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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA O CONCEITO DE RACIONALIDADE EM HABERMAS DA RAZÃO CENTRADA NO SUJEITO À RACIONALIDADE COMUNICATIVA OLAVO BONGIOVANNI DI GIORGI DISSERTAÇÃO DE MESTRADO Orientador: Dr.º Tomás Prado São Paulo 2015

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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

O CONCEITO DE RACIONALIDADE EM HABERMAS

DA RAZÃO CENTRADA NO SUJEITO À RACIONALIDADE COMUNICATIVA

OLAVO BONGIOVANNI DI GIORGI

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

Orientador: Dr.º Tomás Prado

São Paulo2015

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OLAVO BONGIOVANNI DI GIORGI

O CONCEITO DE RACIONALIDADE EM HABERMAS

DA RAZÃO CENTRADA NO SUJEITO À RAZÃO COMUNICATIVA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade SãoJudas Tadeu, como exigência parcial para aobtenção de título de mestre em Filosofia.

Prof.º orientador: Dr.º Tomás Prado

São Paulo, 2015

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Di Giorgi, Olavo BongiovanniD536c O conceito de racionalidade em Habermas. Da razão centrada no sujeito à

racionalidade comunicativa / Olavo Bongiovanni Di Giorgi. - São Paulo,2015.

110 f. ; 30 cm.

Orientador: Tomás Prado.Dissertação (mestrado) – Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, 2015.

1. Habermas, Jürgen, 1929-. 2. Modernidade. 3. Subjetividade. I. Prado,Tomás. II. Universidade São Judas Tadeu, Programa de Pós-GraduaçãoStricto Sensu em Filosofia. III. Título

CDD 22 – 128.33

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca

da Universidade São Judas TadeuBibliotecária: Daiane Silva de Oliveira - CRB 8/8702

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Dedico este trabalho à minha esposa

Majô e à minha filha Maria Clara

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RESUMO

O conceito de racionalidade calcada no sujeito é problematizado no diagnóstico queHabermas faz sobre a modernidade. Segundo o autor, o princípio da subjetividade confere umcaráter autocertificador à modernidade e é a raiz da sua problemática. Portanto, para superá-la, é necessário pensar uma alternativa ao próprio sentido de racionalidade. Para tanto, atravésde uma nova abordagem epistemológica, Habermas propõe um conceito intersubjetivo derazão. Este trabalho pretende esclarecer como Habermas concebe uma racionalidadecomunicativa a partir de um diagnóstico da modernidade e da teoria do agir comunicativo.

Palavras-chave: Habermas, subjetividade, modernidade, racionalidade instrumental,racionalidade comunicativa.

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ABSTRACT

The concept of rationality grounded in the subject is questioned in the diagnosis ofmodernity that Habermas does. According to him, the principle of subjectivity gives a self-certificatory character to modernity and is the root of their problems. Therefore, to overcomeit, it is necessary to consider an alternative to the very meaning of rationality. So, through anew epistemological approach, Habermas proposes an inter-subjective concept of reason. Thisdissertation aims to clarify how Habermas sees communicative rationality from a diagnosis ofmodernity and the theory of communicative action.

Keywords: Habermas, subjectivity, modernity, communicative rationality,instrumental rationality.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

• TAC Teoria de Agir Comunicativo (HABERMAS, 2012a, 2012b)

• TTTC Teoria Tradicional e Teoria Crítica (HORKHEIMER, 1980)

• DE Dialética do Esclarecimento (ADORNO; HORKHEIMER, 1986)

• DFM O Discurso Filosófico da Modernidade (HABERMAS, 2000)

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SUMÁRIO

Introdução....................................................................................................................71 Parte I – A problemática da modernidade segundo Habermas.........................111.1 A teoria de razão instrumental unilateral e o abandono pós-moderno..............................15

1.2 O conceito de modernidade e a necessidade de autocertificação....................................29

1.3 O princípio da subjetividade e sua formação histórica......................................................38

1.4 O papel da filosofia no restabelecimento da unidade........................................................45

2 Parte II – A alternativa da Racionalidade Comunicativa....................................572.1 Razão instrumental e razão comunicativa.........................................................................64

2.2 A ampliação do domínio da racionalidade.........................................................................79

2.3 A unidade da razão e agir comunicativo............................................................................90

Considerações finais..............................................................................................103

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INTRODUÇÃO

A partir do título deste, tem-se que Habermas, de alguma maneira, trabalha com o

conceito de Racionalidade. Grosso modo, sabe-se de antemão que tal conceito apareceu pela

primeira vez muito antes de Habermas1. Ora, se Habermas empreende esforço em retrabalhar,

reconceituar ou redefinir o que é Racionalidade, ele o faz por julgar que a definição vigente é

problemática. Pode-se dizer que, de maneira geral, quando um conceito é redefinido por um

autor qualquer, o é porque este autor percebe um problema neste e, portanto, realiza um

diagnóstico a respeito de um entendimento vigente. Entretanto, para que tal diagnóstico se dê

é necessário que este autor assuma uma perspectiva diferenciada da qual tal conceito foi

concebido, isto é, é necessário que, de alguma maneira, esse autor opere uma mudança de

percepção de mundo, ou melhor, uma mudança do ponto de vista teórico. Se, para este autor,

tal novo modelo teórico é mais adequado, o anterior por contraposição é um modelo teórico

problemático.

A respeito deste trabalho, a questão acerca de quais seriam tais posições teóricas leva

diretamente ao seu subtítulo. De acordo com este, Habermas entende como problemático o

conceito de razão centrada no sujeito e entende como mais adequado o conceito de

racionalidade comunicativa. Sabe-se que a razão centrada no sujeito é aquela defendida por

Descartes no início da modernidade e que existe, portanto, estreita relação com tal posição e o

próprio conceito de modernidade. Desta forma, pode-se entender que um diagnóstico sobre tal

conceito de razão é em si um diagnóstico sobre a própria modernidade, ou melhor, um

diagnóstico sobre o projeto moderno e, portanto, um diagnóstico de época. Colocado de outra

maneira, se o conceito de razão centrada no sujeito é fundamental para a legitimação de um

projeto de modernidade e se este está em cheque, tal projeto também estará. Em resumo, para

1 Como o conceito de Racionalidade aparece e qual é o seu vínculo com a Modernidade faz parte do objeto deste trabalhoe é retomado adiante.

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Habermas, repensar o conceito de racionalidade é repensar as condições de possibilidade do

próprio projeto moderno.

Para melhor compreensão do objetivo deste é preciso compreender melhor a

distinção que existe entre realizar um diagnóstico e formular uma teoria. Se o entendimento

exposto até agora estiver correto, tais ações são faces de uma mesma moeda, isto é, não é

comum formular uma nova teoria sem que se perceba como problemática a anterior e tal

percepção em si define o ato de diagnosticar. Portanto, sob este entendimento, qualquer

tentativa de analisar uma teoria problemática, um diagnóstico ou uma teoria alternativa de

maneira isolada encontrará dificuldades, pois tal hipotética tentativa tenderia a romper a rede

conceitual necessária para a compreensão de qualquer elemento de tal movimento.

Entretanto, feita tal ressalva, contrariamente à tentativa de isolamento conceitual, um

exercício de afastamento conceitual, que, no entanto, não promova um rompimento da rede

de conceitos, pode se mostrar muito instrutivo, pois tal exercício tenderia a revelar ligações

existentes entre determinados conceitos, antes ocultas ou difusas. Para melhor ilustrar tal

exercício, pode-se imaginar alguém segurando uma emaranhando de elásticos por dois pontos

e, promovendo um afastamento de tais pontos, este alguém esticaria os elásticos que os unem,

revelando-os, enquanto os demais se manteriam frouxos.

O objetivo deste é portanto, mostrar a relação existente entre o conceito da razão

centrada no sujeito, o conceito de racionalidade comunicativa e o diagnóstico da modernidade

de Habermas. Para tanto, como recurso metodológico, este trabalho promove um afastamento

de tais conceitos de razão de maneira a evidenciar as ligações existentes entre estes e destas

procura extrair conclusões.

No Discurso Filosófico da Modernidade2 (HABERMAS, 2000), pode se encontrar

como Habermas pensa a relação entre a modernidade e a razão centrada no sujeito, a

problemática que tal paradigma de razão traz ao projeto moderno e como seria possível

utilizar um conceito de razão alternativa, a razão comunicativa, de maneira a reabilitar o

projeto moderno de forma a coloca-lo novamente em curso.

A obra pode ser entendida nos seguintes movimentos: uma breve exposição sobre a

teoria da modernidade em que o autor indica a razão centrada no sujeito como raiz da

problemática moderna; diversos capítulos intermediários em que Habermas descreve a saga

2 Doravante abreviado como DFM.

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do discurso filosófico moderno e as diversas encruzilhadas em que esse se vê acuado na

tentativa de superar tal problemática; dois últimos capítulos em que o autor propõe a razão

comunicativa como possível saída e como uma nova normatividade para a modernidade.

Nos capítulos intermediários, Habermas articula pensamentos de diversos autores.

Para cada um, Habermas descreve de que maneira o autor, através de seu pensamento, tenta

superar a problemática, indica em que ponto o autor se equivocou e possivelmente poderia ter

escolhido um caminho mais adequado. Habermas articula com Hegel, Nietzsche, Horkheimer,

Adorno, Heidegger, Derrida, Bataille, Foucault e faz referência a vários outros.

Não é difícil imaginar porquê tal obra é considerada problemática. Para comprimir

tamanho conteúdo em um único livro de pouco mais de quinhentas páginas, Habermas é

obrigado a escrever de forma extremamente densa e assumir uma enormidade de pressupostos

teóricos, tanto das teorias com as quais articula como de sua própria. Isto exige do leitor um

cabedal teórico sofisticado, inclusive a respeito da própria Teoria do Agir Comunicativo3

(HABERMAS, 2012a) de autoria de Habermas.

Em particular, no capítulo em que Habermas propõe a razão comunicativa como

alternativa à razão centrada no sujeito, o autor cita três duplicações4 do sujeito que são típicas

da filosofia da consciência e que seriam sanadas ao admitir-se a alternativa da razão

comunicativa. Entretanto, tais duplicações representam, segundo Habermas, sintomas de

desgaste do paradigma de razão centrada no sujeito, sugerindo assim que existam questões

mais fundamentais a respeito de tais perspectivas.

Já a racionalidade comunicativa é introduzida no início da TAC. A obra, que é

apresentada em dois volumes e tem mais de mil páginas, conta com um extenso diagnóstico

sociológico da modernidade. Entretanto carece de informações a respeito dos acertos e erros

do discurso filosófico da modernidade.

Desta forma, sobre o ponto de vista filosófico, as obras se complementam. A

primeira oferece uma perspectiva dos descaminhos do discurso filosófico moderno e a outra

serve de base teórica para a primeira.

3 Doravante abreviada por TAC

4 “Duplicação” pode ser entendido provisoriamente como um duplo registro irreconciliável da razão no qual o sujeito éobrigado a se submeter. Esta se faz presente sempre por conta das delimitações da experiência impostas pela razãocentrada no sujeito. Tal conceito será exaurido no corpo do trabalho.

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Entretanto, para que a metodologia de afastamento conceitual sugerida revele

ligações conceituais fundamentais importantes, é importante enriquecer a rede conceitual

formada pelas duas obras mencionadas.

Repa, em sua dissertação de mestrado (REPA, 2000), procura evidenciar exatamente

como Habermas interpreta e reconstrói o pensamento hegeliano e, no processo, acaba por

fazer o mesmo com o pensamento de Weber e Kant. Na obra, o Prof. Luiz Repa revela

importantes ligações entre o pensamento de Habermas e os destes autores. Desta forma, a

obra se configura como uma importante fonte para este trabalho. Entretanto, como haveria

naturalmente de ser, a teoria problemática, e teoria alternativa e o diagnóstico se encontram

entrelaçados em seu desenvolvimento. Como este trabalho, a obra tem como bases o DFM e a

TAC, o que permite uma interface direta entre ambos.

Reformulado de forma mais específica, o objetivo deste é, portanto, utilizando como

foco o conceito de racionalidade, revelar as ligações fundamentais existentes entre o Discurso

Filosófico da Modernidade e a Teoria do Agir Comunicativo. Para tanto, este contará com os

valiosos comentários de Repa sobre a reconstrução habermasiana do conceito hegeliano de

modernidade.

Desta forma, o trabalho foi dividido em duas partes organizadas conforme exposto

abaixo.

A primeira parte deste mostra qual é a relação existente entre racionalidade e

modernidade, porquê o paradigma da razão centrada no sujeito, compreendida como razão

instrumental unilateral, torna a modernidade problemática, como tal paradigma emergiu

historicamente, como a filosofia toma para si a tarefa de resolver tal problemática e,

finalmente, quais foram os descaminhos primeiros do discurso filosófico que levaram o

projeto moderno a uma aporia.

A segunda parte do trabalho apresenta a como a racionalidade comunicativa

acomoda a razão instrumental, como a racionalidade comunicativa também acomoda as

demais esferas culturais (moral, estética, ...) e como esta pretende resgatar a unidade perdida

entre as esferas culturais.

Ao final, este apresenta uma conclusão a respeito das ligações que foram

encontradas.

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1 PARTE I – A PROBLEMÁTICA DA MODERNIDADESEGUNDO HABERMAS.

É oportuno, antes de passar para o desenvolvimento da questão, localizar Habermas

no panorama filosófico, mas precisamente no panorama da filosofia crítica. Para tanto, vale

resgatar também como a própria filosofia crítica se encaixa no horizonte geral.

Como teoria tradicional se entende qualquer esforço em produzir modelos teóricos

que permitam compreender o mundo como ele é. Tal tipo de teoria é fortemente marcada pelo

pensamento cartesiano moderno e, portanto, segue o paradigma monológico da filosofia da

consciência.

Habermas, assim como os seus pares da filosofia crítica, entende que, por trás de

uma pretensão de universalidade, imparcialidade, pureza e indiferença para com assuntos

práticos, a teoria tradicional5 oculta uma intenção dominadora que usa a razão com respeito a

fins. Portanto, tal intenção dominadora, comumente atribuída a uma lógica capitalista

autônoma, faz da razão uma razão instrumental. Desta forma, tal uso instrumental da razão

seria responsável por um domínio sócio-cultural alienante e consequente anulação das forças

emancipadoras oriundas da práxis social. Assim, é papel da filosofia crítica investigar as

condições de possibilidade de um uso da razão capaz de fazer emergir da práxis social forças

emancipatórias já existentes nesta em potência. Este campo de estudo da filosofia é

denominado teoria crítica. A teoria crítica, desta maneira, investiga a possibilidade de uma

razão imanente à práxis social. Tal investigação teórica pode ser entendida como a primeira

dobra crítica da razão.

5 A expressão “Teoria Tradicional” foi utilizada pela primeira vez com a finalidade de distinguir Teoria Crítica de TeoriaTradicional no manifesto originário da filosofia crítica Teoria Tradicional e Teoria Crítica(HORKHEIMER, 1980).Como texto introdutório ao tema recomenda-se a leitura da obra A Teoria Crítica(NOBRE, 2004).

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Para tanto, munida de um espírito marxista que procura entender a realidade através

da realidade efetiva dos fatos sociais, renegando qualquer abrigo metafísico ou dogmático, a

filosofia crítica, como originalmente posta6, indica que se deve procurar na práxis social,

mediante a diagnósticos de época, seus elementos emancipadores imanentes e entender como

o mecanismo dominador capitalista os detêm, isto é, compreender de que maneira uma lógica

autônoma capitalista instrumentaliza a razão com a finalidade de frear as forças

emancipatórias oriundas de práxis social. Assim, a teoria crítica, usando como recursos as

disciplinas e metodologias de cunho prático da teoria tradicional, deve produzir através da

sociologia, da psicanálise e da economia diagnósticos de época que permitam mapear tais

elementos emancipadores imanentes à práxis social e quais forças repressoras estão à

disposição do mecanismo capitalista autônomo. De fato, foram conduzidos por Horkheimer e

seus pares na época, diagnósticos através de esforços multidisciplinares de porte com esse

intuito. Tal prática foi denominada como Materialismo Multidisciplinar, e nesta foram

investidos os esforços de Horkheimer e seus pares do Instituto de Pesquisa Social, o que

significou um empreendimento crítico primeiro.

Entretanto, apesar dos esforços empreendidos, Adorno e Horkheimer, na DE, passam

a suspeitar das condições de possibilidade da própria filosofia crítica. Tal suspeita é motivada

em boa parte por conta do clima de terror e guerra vivido na época. O surgimento de diversos

regimes totalitários, o enfraquecimento de iniciativas socialistas na Europa e a decepção com

a segunda guerra mundial, fizeram com que os autores revessem suas posições quanto à

possibilidade de uma emancipação racional imanente à práxis social (HABERMAS, 2000, p.

166–167). Na obra, os autores declaram que o gérmen da barbárie estaria contido dentro da

própria razão e que, portanto, todo o uso da razão seria instrumental. A esperança de uma

sociedade emancipada é depositada então em uma espécie de fuga estética, e o projeto

filosófico crítico é posto em um estado latente. Assim, tal teoria totalizante de razão

instrumental, através do que se pode denominar como a segunda dobra crítica da razão,

conduz a filosofia crítica para um caminho aporético.

Habermas entende que tal movimento teórico coloca em xeque o projeto de

esclarecimento moderno como um todo, isto é, compromete totalmente o ideal iluminista de

se construir uma sociedade de pessoas justas e iguais através do racionalismo ocidental. Tal

sociedade moderna seria livre de qualquer espécie de elementos coercivos e se pautaria

6 Ibidem

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somente em princípios universais racionais de verdade e liberdade. Desta maneira, ao colocar

o projeto moderno sob ameaça, tal postura de crítica total a razão que classifica a razão como

instrumental fecha a possibilidade para tal projeto moderno e impele o pensamento social

contemporâneo para uma espécie de pós-modernismo. Este aspecto será retomado. O

importante neste ponto é entender que o porquê que Habermas não aceita tal desfecho teórico

aporético.

Desta forma, Habermas não concorda com tal argumento e propõe um recuo teórico.

Para o autor, a teoria da razão como totalizante que, através de um processo de

desencantamento da natureza, reifica o homem é equivocada. Tal teoria produz nivelamentos

perigosos, não leva em consideração avanços sociais importantes produzidos pela

racionalização ocidental, bloqueia a percepção das causas anteriores da problemática da

modernidade e pode levar ao abandono desta através de uma visão equivocada de pós-

modernidade. O autor, utilizando a teoria weberiana de razão instrumental totalizadora, ilustra

este comportamento e demonstra como, através de Durkhein e Mead, a característica

autocompreensiva da modernidade pode ser percebida como anterior a tal nivelamento

racional. Desta maneira, o autor reposiciona teoricamente a problemática e recoloca a

discussão da modernidade na modernidade. Este é exatamente o foco da primeira sessão desta

parte.

Uma vez recolocada a problemática, Habermas passa a analisar o conceito de

Modernidade através do uso que se faz da expressão “tempos modernos”. Através da análise

de Hegel, Habermas captura, no uso de tal expressão, o ímpeto iluminista e sua pretensão de

criação de um novo mundo profano apropriando-se da promessa cristã de novo mundo. Desta

maneira, o autor ilustra como o projeto iluminista se desliga da tradição cristã e se orienta

para o futuro. Tal característica impõe à modernidade um rompimento completo de qualquer

tradição anterior e, consequentemente, cria uma necessidade de produzir uma nova

normatividade a partir de princípios abstratos racionais próprios, isto é, nos termos do autor, a

modernidade tem a necessidade de autocertificação. Tal necessidade, oriunda do que Hegel

denominou como “princípio de subjetividade”, é a principal marca da Modernidade e é a

característica que a torna problemática. Tal assunto é objeto da segunda sessão desta parte.

Entendido o conceito de “Modernidade”, o autor passa a investigar, ainda recorrendo

a Hegel, como na práxis social o princípio da subjetividade se formou, isto é, em que

processos históricos tal princípio se fez necessário e que características em comum tais

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processos possuem. Desta maneira, é possível entender e abstrair da práxis social o conceito

de subjetividade próprio da modernidade. Este é o assunto abordado na terceira sessão.

Uma vez entendido que o princípio da subjetividade historicamente criado é

responsável pela necessidade de autocertificação da modernidade e que tal necessidade de

produzir uma normatividade a partir de si própria configura uma tendência à crise, Habermas

passa então a analisar qual foi o papel da filosofia neste processo de racionalização ocidental

e qual papel esta assume após Hegel. Este é o objeto da quarta e última sessão.

Cumpridos estes passos, tem-se um quadro-diagnóstico habermasiano da

problemática da modernidade. O diagnóstico que aponta a razão centrada no sujeito, e tem

sua fundamentação teórica oriunda da filosofia da consciência iniciada por Descartes,

constitui a raiz da problemática moderna e é papel último da filosofia analisar alternativas

para este paradigma. De posse deste diagnóstico, é possível então passar para a segunda parte

deste trabalho, que é justamente entender qual é a proposta alternativa de Habermas para a

razão centrada no sujeito.

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1.1 A teoria de razão instrumental unilateral e o abandono pós-moderno

De maneira geral, a ideia de razão instrumental unilateral indica um modelo de

racionalidade orientado a fins, isto é, uma racionalidade que serve a propósitos exóticos. É

dita unilateral pois esta tende a reduzir a moral e a estética a ela mesma e, portanto, de acordo

com o paradigma adotado, é a única forma de razão.

Tal conceito de razão fere o ideal iluminista moderno, pois, uma vez que esta não

mais é um fundamento, mas um instrumento, a ideia de se criar uma sociedade de pessoas

justas e iguais sustentada somente sobre princípios racionais, eliminando-se assim elementos

coercivos, entra e xeque. Fica comprometido, portanto, todo o projeto de esclarecimento

moderno. Desta forma, Habermas entende que tal ideia de razão instrumental unilateral acaba

por favorecer posturas pós-modernas e, consequentemente, de contra-esclarecimento.

Introduzido de maneira geral e provisória o conceito de razão instrumental unilateral

e como este fere o projeto de esclarecimento, prossegue-se como Habermas entende, sob esta

perspectiva, a teoria crítica de Adorno e Horkheimer, o discurso filosófico moderno em geral

e as posturas pós-modernas resultantes.

Entre perspectivas teóricas em que a razão é percebida somente como razão

instrumental, encontra-se a tradição da Teoria Crítica de maneira geral7. Tanto defendendo a

possibilidade de identificar, através de tal uso da razão, forças emancipatórias imanentes na

práxis social, tal como preconizado pelo Materialismo Multidisciplinar exposto em TTTC,

quanto concluindo que tal potencial emancipador é comprometido pelo próprio uso da razão,

posto que neste já se encontra em germe a barbárie, tal como declarado na DE, a tradição da

7 Pode-se citar aqui, além da Teoria Crítica, as teorias de Nietzsche, Heidegger, Derrida, Bataille e Foucault. Habermas,no DFM, se ocupa na maior parte desta obra em realizar de forma meticulosa diagnósticos de cada uma destas teorias.No todo, a tese defendida na obra é a de que tal discurso equivocado que entende a razão instrumental como únicapossibilidade de razão perpassa por todos estes autores, isto é, cada um a sua maneira, todos estão atrelados a umaorientação teórica inerente da filosofia da subjetividade que tradicionalmente existe na modernidade e que precisa sersuperada.

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Teoria Crítica até então entende razão como razão instrumental. Segundo Habermas, tal

posicionamento teórico sempre conduz a um deslocamento equivocado da problemática da

modernidade para algum tipo de pós-modernidade.

Entretanto, não é exclusividade da teoria crítica a ideia de razão como razão

instrumental unilateral. Para Habermas, tal perspectiva teórica perpassa por boa parte do

discurso filosófico moderno e tem suas raízes na teoria centrada do sujeito, isto é, no conceito

monológico de razão sustentado pela filosofia da consciência preconizada por Descartes.

Desta maneira, para o autor, o problema é anterior a teoria crítica, inclusive anterior aos

próprios pressupostos marxistas adotados por esta. Assim, Habermas entende que, para que o

a problemática da modernidade seja adequadamente compreendida, é necessário retroceder o

diagnóstico de época da teoria crítica para quando tal conceito problemático surgiu, isto é,

para Habermas, o diagnóstico de época necessário é o diagnóstico da época moderna como

um todo. Este trabalho trata do problema da racionalidade monológica em seus diversos

níveis. Por hora, é importante entender como Habermas percebe dois modus operandi

escapistas frente a problemática da razão instrumental unilateral e de como o autor aponta

características comuns a ambos.

No DFM, Habermas cita dois tipos de pós-modernidade, a saber: o neoconservador e

o anarquista. Em sua crítica, tanto a postura neoconservadora quanto a anarquista, descolam a

modernidade do seu processo histórico fundamental. O neoconservadorismo segue a linha do

funcionalismo social, considerando relevante para a análise da problemática da modernidade

apenas seus efeitos e desprezando suas causas, pois considera as premissas históricas desta

como fatos superados. Já o diagnóstico dito anarquista sustenta que qualquer processo

racional possui caráter dominador e que a modernização social sucumbirá a um anarquismo

pós-moderno imanentemente anunciado. Desta forma, segundo o autor, ambas as vertentes

ditas pós-modernas não percebem as raízes da problemática da modernidade e sugere que os

esforços de ambas são suspeitas de advir de uma tradição de contra-esclarecimento. Diz o

autor:

Não podemos excluir de antemão que o neoconservadorismo ou o anarquis-

mo de inspiração estética está apenas tentando mais uma vez, em nome de

uma despedida da modernidade, rebelar-se contra ela. Pode ser que estejam

simplesmente encobrindo com o pós-esclarecimento sua cumplicidade com

uma venerável tradição do contra-esclarecimento. (HABERMAS, 2000, p.

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8)

Com o intuito de ilustrar o conceito de razão instrumental, o autor inicia resgatando

o diagnóstico weberiano clássico nomeado como “Problema da História Universal”. Os

motivos pelos quais Habermas escolheu a teoria weberiana como exemplar será exposto ao

final desta parte. É oportuno em primeiro lugar expor de que maneira Habermas utiliza a

teoria weberiana para distinguir as ditas correntes pós-modernas.

No referido diagnóstico, segundo Habermas, Weber aponta o rompimento entre a

cultura moderna e a tradição ocidental8. Para Weber, o racionalismo ocidental criou

diferenciações entre as esferas culturais devido a seu decorrente processo de

desencantamento. Tal processo, a cargo de uma visão iluminista de mundo, suplantava

crenças religiosas e valores culturais da tradição ocidental e, desta maneira, perdiam-se

justamente os elementos que entrelaçavam tais esferas culturais.

Ao entender que tais esferas culturais originalmente se encontram emaranhadas por

uma certa normatividade mágica, mítica ou dogmática e que o processo de desenvolvimento

ocidental promove um desemaranhar contínuo de tais esferas através de uma racionalização

fundamentada em princípios universais, pode-se dizer que o processo de racionalização

ocidental promove um desencantamento de tais esferas culturais de modo a conferir contraste

a estas e, portanto, produz diferenciações. Consequentemente, a ciência, a arte e a moral, uma

vez neutralizadas as forças culturais que as entrelaçavam, seguiram vias autônomas ao se

desenvolverem racionalmente. Diz o autor:

As ciências empíricas modernas, as artes tornadas autônomas e as teorias

morais e jurídicas fundamentadas em princípios formaram esferas culturais

de valores que possibilitaram processos de aprendizado de problemas teóri-

cos, estéticos ou prático-morais, segundo suas respectivas legalidades inter-

nas. (HABERMAS, 2000, p. 4)

Portanto, a fundamentação em princípios abstratos, característica do processo de

racionalização ocidental, pode ser entendida como o principal instrumento do processo de

8 Para aqueles que quiserem se aprofundar na leitura que Habermas faz sobre as teorias de “Razão Instrumental” e“Ação social” desenvolvidas por Max Weber no título A Ética Protestante, Habermas faz uma meticulosa análise destasno capítulo A teoria de racionalização de Max Weber de TAC (HABERMAS, 2012b, p. 263-472).

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desencantamento. Pois, ancorada a tais princípios, cada esfera cultural perde sua ligação com

a tradição cultural que a formou e passa a seguir de forma autônoma.

Posto desta maneira, segundo Habermas, torna-se evidente no diagnóstico weberiano

um vínculo necessário entre o racionalismo ocidental e a noção de modernidade, pois é nesta

que surge tal maneira de fundamentação por princípios universais. Desta forma, pode-se

afirmar que tal processo se identifica com a própria formação histórica da modernidade.

Para Weber, o racionalismo ocidental é fruto do desenvolvimento social moderno9.

Dirigido por grupos capitalistas, classe hegemônica da época, este processo de

desenvolvimento é entendido por Weber como “institucionalização de uma ação econômica e

administrativa racional com respeito a fins” (HABERMAS, 2000, p. 4). Explica Habermas:

À medida que o cotidiano foi tomado por esta racionalização cultural

e social, dissolveram-se também as formas de vida tradicionais, que

no início da modernidade se diferenciavam principalmente em função

das corporações de ofício10. (HABERMAS, 2000, p. 4)

Nota-se que já aparece na citação anterior uma distinção importante entre

racionalização cultural e racionalização social, tal diferenciação é determinante para que a

teoria weberiana seja colocada em termos universais por Habermas, isto é, não somente como

um fenômeno da cultura ocidental tal como o nome sugere. Tal distinção será retomada mais

adiante.

É de posse desta visão weberiana, segundo Habermas, que a partir dos anos 50 o

termo “modernidade” foi utilizado, ou seja, entendido através de uma reelaboração das teorias

weberianas sob uma ótica do funcionalismo sociológico, corrente em voga na época.

Tal visão de modernidade privilegia os estudos sobre como esta se dá pelos seus

efeitos. Desta maneira, tal corrente pretende enfrentar a problemática da modernidade

tentando compreendê-la através de modelos funcionais. Diz o autor:

9 O processo histórico formador deste “desenvolvimento social moderno” será melhor abordado na terceira sessão destaparte. Antes é preciso entender como Habermas reorienta o diagnóstico da modernidade de forma a evitar um caminhoteórico aporético e consequentes deslocamentos pós-modernos.

10 Entende-se por corporações de ofício, grupos formados, ao final da época medieval, por operários qualificados emdeterminadas funções (construtores, artesões, etc.) a fim de se defenderem e negociarem de forma mais eficiente.

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O conceito de modernização refere-se a um conjunto de processos cumulati-

vos e de reforço mútuo: à formação de capital e mobilização de recursos; ao

desenvolvimento das forças produtivas e ao aumento da produtividade do

trabalho; ao estabelecimento do poder político centralizado e à formação de

identidades nacionais; à expansão dos direitos de participação política, das

formas urbanas de vida e da formação escolar formal; à secularização de

valores e normas etc. (HABERMAS, 2000, p. 5)

Para o autor, esta é a principal característica da posição neoconservadora de pós-

modernidade. Ao entender os princípios históricos da modernidade como superados e

compreendê-la através de reconhecimento de padrões funcionais, tal vertente forma modelos

estanques dos processos sociais. Assim a modernidade é vista neutralizada no tempo e espaço

e separada de suas origens. Portanto, perde-se a relação entre a modernidade e processo

histórico racional que a formou.

Além disso, rompe os vínculos internos entre a modernidade e o contexto histórico

do racionalismo ocidental, de tal modo que os processos de modernização já não

podem mais ser compreendidos como racionalização, como uma objetivação históri-

ca de estruturas racionais. (HABERMAS, 2000, p. 5)

Uma vez encerrada em modelos funcionais e desligada de sua reflexão originária, a

modernidade é vista como padrões que se repetem de forma autônoma. O observador social

entende a modernidade como um processo que, uma vez iniciado, move-se por si próprio e

que portanto as forças que o impulsionaram não mais são relevantes.

Dessa perspectiva, uma ininterrupta modernização social autossuficiente destaca-se

dos impulsos de uma modernidade cultural que se tornou aparentemente obsoleta;

ela opera apenas com as leis funcionais da economia e do Estado, da técnica e da

ciência, as quais se fundem em um sistema pretensamente imune a influências.

(HABERMAS, 2000, p. 6)

Assim, tal observador, ao entender que a modernidade já está esgotada dentro da

plenitude de suas possibilidades, adquire um ponto de vista deslocado para fora da mesma. É

desta maneira que, ao negar sua racionalidade originária, o neoconservadorismo pós-moderno

se despede da modernidade. Diz o autor:

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Esta despedida neoconservadora da modernidade refere-se, portanto, não à

dinâmica desenfreada da modernização social, mas sim à superfície de um

autocompreensão cultural da modernidade aparentemente ultrapassadas.

(HABERMAS, 2000, p. 7)

Posto desta maneira, pode-se entender que a posição pós-moderna dita

neoconservadora utiliza a razão com a finalidade de indicar e entender tais processos

autônomos, pois, apesar de corroborar a teoria weberiana de razão instrumental, esta posição

conserva a confiança no uso de tal razão para produzir tais modelos de forma objetiva e para

pensar de forma funcionalista e pragmática um pós-modernismo.

É possível elaborar a hipótese de que a própria teoria crítica, tal como preconizada

originalmente em TTTC, se encaixaria nesta classificação.11 Apesar de não indicar uma

cristalização das possibilidades da modernidade, tal como entendida por Gehlen

(HABERMAS, 2000, p. 6), o paradigma prático proposto pelo Materialismo Multidisciplinar

sugere um comportamento semelhante, isto é, este propõe que a Teoria Crítica deva utilizar-se

da Teoria Tradicional para elaborar diagnósticos de época. Tal paradigma implica que a

própria Teoria Crítica utilize a razão instrumental para suas análises e que, portanto, mantém-

se a confiança de que seja possível, através de tal uso da razão instrumental, produzir um

pensamento crítico capaz de identificar possibilidades emancipatórias na práxis social

vigente.

Contrariamente à posição neoconservadora, a dita posição anarquista de pós-

modernismo entende o processo de racionalização ocidental como força originária da

modernidade a ser superada, portanto não promove um rompimento tal como a outra. Porém,

ao entender que todo processo racional é orientado a fins e que, portanto, este sempre carrega

um caráter dominador de forma imanente, tal posição não acredita na possibilidade de um

processo racional emancipador. Desta maneira, utilizando-se de um tipo de teoria que entende

que qualquer pretensão racional12 é subjugada por relações de poder inerentes às ações

sociais, a posição anarquista entende que todo uso da razão carrega, antes de mais nada,

pretensões de poder.

11 Não é pretensão deste trabalho investigar tal hipótese, esta é exposta somente com o propósito de localizar o autor nocontexto da Filosofia Crítica e ilustrar de que maneira Habermas propõe um realinhamento teórico para esta.

12 Fica a resalva que diversos autores deste campo resignificam a razão a sua maneira.

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21Ao submergir esse continente de conceitos fundamentais, que sustentam o raciona-

lismo ocidental de Max Weber, a razão revela sua verdadeira face – é desmascarada

como subjetividade subjugadora e, ao mesmo tempo, subjugada, como vontade de

dominação instrumental. (HABERMAS, 2000, p. 7)

E é nestes termos que a razão deve, revelando-se suas reais pretensões de

dominação, ser desmascarada para que a modernidade, tal como concebida racionalmente, se

dissolva e dê lugar ao anarquismo pós-moderno imanentemente anunciado. Nota-se na

citação que Habermas realiza uma ligação muito peculiar entre o pensamento weberiano e a

crítica total da razão realizada pelos ditos pós-modernos anarquistas. Tal ligação é retomada

mais adiante.

Também como hipótese de leitura, é possível classificar nesta categoria anarquista de

pós-modernismo, o pensamento crítico de Horkheimer e Adorno no momento da DE. Foi

realizando uma crítica da crítica que então os autores desenvolveram uma teoria de razão

instrumental totalizante.

Na DE, Adorno e Horkheimer não mais acreditam que seria possível fazer emergir

uma teoria crítica emancipatória da sociedade, pois o germe da barbárie instaurada no que

eles chamam de capitalismo totalmente administrado está presente na própria razão humana,

portanto tal barbárie seria fruto de uma característica auto-destrutiva imanentemente presente

na própria razão. A tese central da DE é a de que esclarecimento e mito se igualam, pois

ambos são fruto da tentativa humana de ordenar a natureza de forma a dominá-la, tentativa

esta impulsionada pelo impulso de auto-preservação. Desta maneira, todo uso da razão

carregaria em si um caráter dominador, isto é, tal uso sempre traz consigo pretensões de

poder.

Habermas, entende que tal visão produz um nivelamento espantoso da imagem da

modernidade e também comete injustiça aos avanços modernos conquistados nas diferentes

esferas. Diz o autor a respeito da DE:

Na modernidade cultural, a razão é despida definitivamente de sua pretensão

de validade e assimilada ao puro poder. A capacidade crítica de tomar posi-

ção ante algo com um “sim” ou um “não”, de distinguir entre enunciados

válidos e inválidos é iludida, na medida em que poder e pretensões de vali-

dade entram em uma turva fusão. (HABERMAS, 2000, p. 161)

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Tal incapacidade crítica de sustentar pretensões de validade também é típica das

teorias fundadas na teoria de Nietzsche sobre Vontade de Poder, tais como as de Foucault e

Derrida. Tal limitação crítica produz um brutal nivelamento teórico a respeito do processo de

desenvolvimento racional acidental. Diz o autor ao comparar tal nivelamento com a teoria

weberiana:

A dignidade própria da modernidade cultural consiste naquilo que Max

Weber denominou a diferenciação específica das esferas de valor. Mas, com

ela, a força da negação, e a capacidade de discriminar entre o “sim” e o

“não”, não é paralisada, mas antes potencializada. Questões de verdade,

justiça e gosto podem então ser elaboradas e desdobradas segundo suas

respectivas lógicas internas. (HABERMAS, 2000, p. 161)

Portanto, segundo a visão weberiana proposta pelo autor no DFM, apesar do fato de

que a ciência, a moral e a arte sofrerem um processo de diferenciação decorrente do

desencantamento e da secularização impostas pela racionalização ocidental e, desta maneira,

seguirem em suas lógicas racionais próprias e autônomas, ainda assim a capacidade crítica de

se sustentar pretensões de validade, não só é preservada, mas potencializada dentro das

lógicas internas próprias de tais esferas culturais. Assim, ainda que pagando um certo preço a

ser considerado, tal processo de racionalização promoveu diversos aperfeiçoamentos e

avanços importantes na ciência, na moral e na estética que devem ser levados em

consideração. Diz o autor a esse respeito:

Refiro-me à dinâmica teórica específica que impele as ciências, [...], cada

vez mais para além da produção do saber tecnicamente útil; refiro-me, além

disso, à fundamentação universalista de direito e da moral, que encontraram,

apesar de tudo, uma personificação (por mais desfigurada e incompleta que

seja) nas instituições dos Estados constitucionais, nos tipos de formação

democrática da vontade, nos padrões individualistas de formação de identi-

dade; refiro-me, enfim, à produtividade e à força explosiva das experiências

estéticas fundamentais que uma subjetividade liberada dos imperativos da

atividade com respeito a fins e das convenções da percepção cotidiana

obtém a partir do seu próprio descentramento; [...] (HABERMAS, 2000, p.

162)

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Desta forma, entendendo que ambas posições pós-modernas problemáticas, tanto a

neoconservadora quanto a anarquista, partem do mesmo pressuposto, ilustrado aqui pela

leitura habermasiana de Weber, de que a razão é sempre a razão instrumental e que tal razão é

utilizada de formas institucionalizadas como instrumento de dominação de grupos

oligárquicos capitalistas, Habermas recorre às teorias sociais de Durkhein e Mead para

entender e demonstrar que existe uma causa anterior a tal institucionalização. Tal análise

permite ao autor levantar a hipótese de que é possível entender a racionalização ocidental em

outros termos, isto é, existe uma característica reflexiva da razão que é anterior a tal

institucionalização orientada a fins.

Portanto, através de uma leitura própria de Durkheim e Mead13, Habermas entende

que tal processo exposto acima, nomeado por ele como “modernização do mundo da vida”,

tem uma causa anterior a tal institucionalização. Afirma o autor:

E. Durkheim e G. H. Mead viram que o mundo da vida racionalizado é caracteriza-

do antes por um relacionamento reflexivo com tradições que perderam sua esponta-

neidade natural; pela universalização das normas de ação e uma generalização dos

valores que liberam a ação comunicativa de contextos estreitamente delimitados,

abrindo-lhe um leque de opções mais amplo; enfim, por modelos de socialização

que se dirigem à formação de identidades abstratas do eu e que forçam a individuali-

zação dos adolescentes. (HABERMAS, 2000, p. 4)

Desta maneira, pode-se entender que a modernização impôs um novo modelo

normativo pretensamente universal à cultura tradicional. No lugar de normas que se

desenvolveram dentro de contextos tradicionalmente circunscritos em formas gregárias,

sejam em clãs, em famílias, em feudos, etc; adotaram-se normas de caráter universalizador,

isto é, normas fundamentadas em princípios abstratos. Portanto, os indivíduos, não se

reconhecendo mais dentro destes contextos gregários, foram obrigados a se reconhecer por

tais princípios, causando a formação de identidades abstratas do eu. Tal fenômeno atinge com

mais intensidade os mais jovens, que, uma vez formados sob o jugo de tal modelo normativo

universalizador, desenvolveram uma individualidade ancorada em abstrações. Assim, as

13 Para aqueles que quiserem se aprofundar na leitura que Habermas faz sobre as teorias de Mead e Durkheim, Habermasfaz uma meticulosa análise destas no capítulo “Mudança de paradigma de Mead e Durkheim: da atividade orientadapor fins ao agir comunicativo” da TAC(HABERMAS, 2012a, p. 1-204).

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tradições ao serem paulatinamente incorporadas ao mundo modernizado, foram enfraquecidas

e destituídas de suas normatividades próprias, perdendo assim a sua espontaneidade natural.

Visto desta forma, o processo de racionalização ocidental, antes de ser posto como

poder institucionalizado orientado a fins, ocorre de forma a suplantar paulatinamente

elementos da rede simbólica, constituída espontaneamente em culturas tradicionais, por

princípios normativos universais.

Neste ponto, Habermas, ao interpretar Durkheim e Mead, o faz utilizando termos

próprios tais como: “mundo da vida”, “ação comunicativa”. Porém, para o presente

entendimento14, é suficiente perceber dois aspectos importantes: o primeiro é que o processo

de racionalização cultural carrega um caráter ambíguo, pois ao mesmo tempo que este

possibilita uma ampliação do potencial comunicativo, abrindo “um leque de ações mais

amplo”, este também favorece um empobrecimento cultural, na medida em que as culturas

tradicionais são destituídas de “sua espontaneidade natural”. Tal caráter ambíguo deixa de

existir quando se adota o paradigma comunicativo de racionalidade em lugar do paradigma

monológico reflexivo, veremos como isto se dá ao longo do trabalho; o segundo aspecto é de

que tal institucionalização capitalista não é determinada pelo primeiro aspecto, isto é, apesar

de que o paradigma monológico reflexivo de razão favoreça tal institucionalização, esta não

decorre necessariamente do processo de racionalização cultural, mas sim de um processo

seletivo decorrente de uma racionalização social através do qual a razão instrumental torna-se

predominante. Voltaremos a estes aspectos ainda nesta parte.

Desta maneira, o autor pretende classificar atitudes escapistas, frente à problemática

da modernidade, em duas categorias: a dos que consideram o processo racional originário

irrelevante e, portanto, viram as costas ao problema; e a dos que entendem qualquer processo

racional como dominador e, portanto, não acreditam em um processo racional emancipador.

Uma vez reconstruída a crítica ao pós-modernismo que Habermas realiza no DFM, é

possível questionar porquê Habermas escolheu a teoria weberiana como uma interpretação

exemplar da modernidade. Segundo Repa, para Habermas, “o conceito de modernidade

desenvolvido por Weber [...] tem uma posição privilegiada, servindo ao mesmo tempo como

critério de ‘precisão’ do respectivo conceito hegeliano e é ponto de partida do conceito

funcionalista de modernização” (REPA, 2000, p. 17). É possível notar que a teoria weberiana

14 Tais expressões são próprias da TAC e serão exauridas na segunda parte deste trabalho.

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representa bem o problema do DFM, que, segundo Repa, consiste em um desequilíbrio entre

a racionalização ocidental e seus reflexos sociais, resultante do predomínio da razão

instrumental instituído por “sistemas de ação articulados pelas media dinheiro e poder”

(REPA, 2000, p. 18). No DFM, segundo Repa, perpassam duas interpretações de tal problema

a saber: a da dialética do esclarecimento, que pretende regenerar a unidade dilacerada por tais

diferenciações, aqui entendidas como cisões da experiência, através de um conceito de Razão

totalizante. Desta, participam Schiller, Hegel e Marx; e o da crítica total da Razão que, ao

entender que a Razão não pode ser simultaneamente doença e cura, preconizam a busca,

através de uma saída estética, do outro da Razão que foi reprimido por uma razão

instrumental. Desta, participam Nietzche, Foucault, Heidegger, Adorno e Horkheimer (REPA,

2000, p. 19). Ambas as interpretações que perpassam o DFM conduzem a equivocados

deslocamento pós-modernos já descritos.

Assim, pode-se localizar, grosso modo, o problema do DFM entre como Kant

entende as diferenciações das esferas e como tais diferenciações são interpretadas como

cisões por Hegel, voltaremos a esse assunto em outra sessão. O importante notar é que a

teoria weberiana localiza o problema de maneira muito conveniente para Habermas, pois tem-

se em tal teoria, tanto com diferenciação das esferas uma aproximação a Kant, quanto na

institucionalização econômica da sociedade e na racionalização como um processo histórico

uma aproximação a Hegel. E, de forma muito peculiar, tem-se uma aproximação também com

a crítica total da razão, uma vez que para Weber a racionalização ocidental se dá através do

predomínio da razão cognitivo-instrumental.

Entretanto, para que a aproximação weberiana seja útil para diagnosticar o DFM,

Habermas, segundo Repa, promove uma reconstrução da teoria weberiana de forma a assentar

o conceito de racionalismo ocidental sob premissas universais (REPA, 2000, p. 25).

Habermas, segundo Repa, entende que existe em uma “ironia profunda”, para não

dizer contraditória, no entendimento do processo de racionalização ocidental no DFM. Ambas

as interpretações, tanto a da dialética quanto a da crítica total da razão, não percebem tal

ironia. Diz Repa:

Porém ambos os lados desconhecem a ironia profunda desse processo, que

consiste em que o potencial comunicativo da razão nas formas dos mundos

da vida modernos teve de ser primeiro libertado para que os imperativos

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soltos dos subsistemas econômicos e administrativos pudessem reagir sobre

a práxis cotidiana e, com isso, proporcionar o domínio da esfera cognitiva-

instrumental sobre os momentos oprimidos da razão prática. (REPA, 2000,

p. 26)

Somente sob a ótica do paradigma comunicativo de Habermas foi possível se

entender a contradição do processo de racionalização ocidental, pois, sob tal entendimento,

percebe-se, quanto ao potencial comunicativo cultural, dois momentos a saber: por um lado

existe um processo de racionalização cultural que viabilizou um ganho cultural sem

precedentes, pois, com o surgimento das estruturas modernas da consciência, as esferas

culturais não mais dependem de fundamentações metafísicas e religiosas e podem se

desenvolver através do consenso intersubjetivo; por outro lado existe também um processo de

racionalização social que leva a um empobrecimento cultural, pois o mesmo também

possibilitou o desenvolvimento do capitalismo e do Estado moderno, favorecendo o

predomínio da esfera cognitivo-instrumental, estreitando assim o potencial comunicativo

cultural. Portanto a ironia do DFM surge quando a distinção entre racionalização cultural e

racionalização social não é percebida. Segundo Habermas, tal confusão é produto da filosofia

da consciência, esta é responsável por produzir o maior problema do DFM, a razão centrada

no sujeito (REPA, 2000, p. 27), voltaremos nisso adiante.

Weber, segundo Habermas, também não foi capaz de entender tal ironia, a de que o

processo de racionalização ocidental promove ao mesmo tempo um desenvolvimento e uma

deformação do potencial comunicativo e, portanto, produz simultaneamente um ganho e um

empobrecimento cultural. Tal fato acarreta uma grave inconsistência à teoria weberiana, a de

que o racionalismo ocidental implica necessariamente no conceito unilateral de Razão

instrumental, que o impele para um diagnóstico equivocado. (REPA, 2000, p. 28)

Desta maneira, Habermas, segundo Repa, entende que Weber erra ao atribuir a

racionalização ocidental à cultura europeia, e não ao processo de racionalização social

formador do capitalismo. Portanto, existe uma confusão entre uma peculiaridade cultural e

um padrão seletivo de razão imposto socialmente. Desta forma, ao distinguir os diferentes

momentos do processo de racionalização moderno, Habermas assenta o racionalismo

ocidental em bases universais, isto é, existe condições de possibilidade para que o

racionalismo cultural se realize universalmente sem que deste se derive necessariamente um

racionalismo social de cunho capitalista.

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Não cabe aqui analisar tal reconstrução15, o importante é notar que, para Habermas, o

equívoco do conceito de razão instrumental unilateral weberiano é exemplar e que tal ironia

profunda do DFM é bem representado na teoria social weberiana. Deve-se notar também que,

para Habermas, o processo de racionalização social tem um efeito seletivo sobre os modos de

ação comunicativa, favorecendo o predomínio da racionalidade cognitivo-instrumental16.

Assim, compreendendo que teorias que entendem razão somente de forma utilitária

são equivocadas, pois conduzem a caminhos teóricos problemáticos e aporéticos, o autor se

posiciona diante da problemática da modernidade e sugere um reposicionamento de base

teórica social para o pensamento crítico, provavelmente por julgar que os pressupostos

marxistas adotados originalmente por Adorno e Horkheimer, precursores da Teoria Crítica,

não levam em conta o processo histórico originário da racionalização moderna.

Entretanto, Habermas vai bem mais além, ele pretende, com o que se convencionou

como virada comunicativa, sustentar que é necessário substituir o paradigma monológico

reflexivo típico da filosofia da consciência, segundo o qual a razão centrada no sujeito é

característica, por um paradigma comunicativo. Este propõe um conceito de racionalidade

intersubjetiva que pode substituir com vantagens o anterior. De fato, Habermas pretende com

isso reorientar todo o discurso filosófico da modernidade, isto é, repensar todos os discursos

calcados na filosofia da consciência iniciada por Descartes. Isto faz com que a TAC tenha a

pretensão e alcance monumentais, fato este que não ocorre desde a época dos grandes

sistemas, de Kant e de Hegel.

Tendo em vista que ambas saídas pós-modernas desligam a modernidade do

processo histórico que a formou, Habermas julga importante resgatar o pesamento hegeliano.

Segundo Repa, Habermas o faz por entender que Hegel foi quem: concebeu a modernidade

como conceito de época; percebeu e tomou a necessidade de autocertificação moderna como

problema fundamental da filosofia; percebeu a subjetividade como princípio da modernidade;

entendeu como cisões da experiência subjetiva as diferenciações das esferas culturais;

separou o Estado da sociedade civil através de uma leitura da economia política (REPA, 2000,

p. 44).

15 Para os interessados em tal reconstrução, Repa dedica uma boa parte de sua dissertação de mestrado sobre o assunto.(REPA, 2000)

16 Na TAC, Habermas faz uma análise profunda de como tal padrão seletivo opera.(HABERMAS, 2012b)

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Portanto, o autor propõe que se faça um recuo teórico ao pensamento de Hegel, pois,

como diz o autor: “É necessário retornar a Hegel se quisermos entender o que significou a

relação interna entre modernidade e racionalidade, que permaneceu evidente até Max Weber e

hoje é posta em questão.” (HABERMAS, 2000, p. 8)

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1.2 O conceito de modernidade e a necessidade de autocertificação

Uma vez exposto que o uso contemporâneo do termo “modernidade” conduz a um

entendimento equivocado da problemática envolvida, Habermas passa a buscar um sentido

mais adequado para o termo analisando o uso que foi feito deste por Hegel. É desta maneira

que o autor pretende elucidar de que maneira a modernidade foi pela primeira vez

autocompreendida como época para daí resgatar a relação interna entre modernidade e

racionalidade.

Esta seção pretende demonstrar que a autocompreensão da modernidade é tributária

de uma necessidade de autocertificação, isto é, pretende-se sustentar que, ao se compreender

o conceito de modernidade através do seu uso, é possível perceber que a própria

conceitualização é sintoma de necessidade de autocertificação.

No início do DFM, Habermas discorre como a modernidade foi percebida e nomeada

inicialmente. Habermas inicia sua exposição explorando a maneira com que Hegel amplia a

noção cronológica de modernidade conectando as noções “tempos modernos” e “novos

tempos”. Segue apontando, recorrendo a Koselleck, como o dilema da autocertificação se

instala na modernidade para posteriormente indicar como a decorrente dilatação temporal é

percebida e experienciada pela estética moderna. Como um todo, o autor discorre sobre de

que maneira a modernidade, tal como temporalidade distendida, tem como característica a

necessidade de autocertificar-se e como esta autocertificação se relaciona internamente com a

problemática da modernidade.

É oportuno, antes de iniciar qualquer análise, resgatar a etimologia do termo

“moderno”. O adjetivo “moderno” provem do latim “mŏdernus” e é uma adjetivação do

advérbio “modo” que quando usado temporalmente significa: “agora mesmo”, “neste

momento”, “a pouco tempo atrás”, “recentemente”; ou ainda: “presentemente”,

“imediatamente”, “neste momento” (LEWIS, 1890).

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Isto posto, é possível inferir que a expressão “tempos modernos”, assim como

empregado nas ciências sociais e na filosofia, denota uma referência a uma época atual da

humanidade. Ora, não é possível marcar como atual o agora, isto é, capturar e marcar como

atual um efêmero e infinitesimal momento de um tempo contínuo. Referir-se a uma época,

assim como a qualquer período, implica necessariamente em se estabelecer uma janela

temporal, isto é, delimitar início e fim de tal período através de marcos temporais. Tratando-

se neste caso de se estabelecer uma referência a uma época atual, delimita-se somente o

início, pois o fim desta ao futuro pertence. É importante observar também que o termo época

não se refere a um período qualquer, seu uso tem como finalidade cumprir um objetivo

historiográfico e, portanto, tal delimitação não pode ser dada de forma arbitrária ou aleatória e

sim através de marcos relevantes para a história, mais especificamente neste caso para a

história da humanidade. Desta maneira, o primeiro sentido necessário que a expressão

“tempos modernos” carrega é o de estabelecer uma referência a um período atual, portanto

em aberto, cujo o início é delimitado cronologicamente através de marcos históricos

relevantes para a história da humanidade.

Segundo Habermas, Hegel cumpriu tal primeira exigência semântica ao atribuir à

expressão “tempos modernos” a uma delimitação cronológica aberta, através de marcos

históricos relevantes, para a época em que viveu, cerca de 1800 d.C. A época moderna, para

Hegel, iniciou-se a 300 anos antes de sua época e foi marcada por três acontecimentos

importantes, a saber:

A descoberta do "Novo Mundo" assim como o Renascimento e a Reforma [lutera-

na], os três grandes acontecimentos por volta de 1500, constituem [para Hegel] o

limiar histórico entre a época moderna e a medieval. (HABERMAS, 2000, p. 9)

Também é natural inferir que a expressão “tempos modernos”, dado o seu caráter

historiográfico e humanitário, tem necessariamente como objeto um povo, uma cultura, uma

tradição. Portanto, neste sentido, nomear uma época significa nomear um período vivido por

um grupo, por maior que seja a amplitude que tal sentido possa assumir. Pode-se entender

então tal característica como um segundo sentido necessário para a expressão “tempos

modernos”, ou seja, o sentido de se circunscrever uma cultura.

De fato, Hegel também cumpre está segunda exigência semântica, pois como diz

Habermas:

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31Hegel também utiliza esses termos [“tempos modernos” e “novos tempos”], em suas

lições sobre a filosofia da história, para delimitar o mundo germânico cristão que,

por sua vez, se originou da Antiguidade grega e romana. (HABERMAS, 2000, p.

9)

Ora, trata-se aqui de se estabelecer um recorte histórico, isto é, ao se nomear,

delimitar e cincunscrever uma época, cria-se um objeto histórico com a finalidade de

evidenciá-lo, estudá-lo, compreendê-lo. Para tanto é necessária uma motivação, uma

necessidade decorrente de uma consciência histórica, ou seja, de uma consciência que

percebe processos que produziram transformações importantes em alguma cultura ou

tradição. O que suscita questões do tipo: Qual seria a natureza de tal consciência histórica?

De que maneira é importante recortar historicamente a modernidade? Que problemas ou

dilemas se pretende evidenciar com tal recorte?

Habermas cita o conceito de modernidade hegeliano: “Hegel emprega o conceito de

modernidade, antes de tudo, em contextos históricos, como conceito de época: os 'novos

tempos' são os 'tempos modernos'” (HABERMAS, 2000, p. 9). Esta identificação entre as

expressões 'novos tempos' e 'tempos modernos' é chave para o entendimento da natureza da

consciência histórica hegeliana neste contexto.

Para a tradição cristã, segundo Habermas, os “novos tempos” remete à ideia de um

mundo melhor que despontará em um futuro incerto, ou seja, “no Ocidente cristão os 'novos

tempos' significavam a idade do mundo que ainda está por vir e que despontará somente com

o dia do Juízo Final” (HABERMAS, 2000, p. 9). Entretanto, a nova normatividade

universalista proposta pelo racionalismo moderno ao mundo promete um mundo melhor para

o presente e que, portanto, os “novos tempos” já começaram, ou seja, “o conceito profano de

tempos modernos expressa a convicção de que o futuro já começou: indica a época orientada

para o futuro, que está aberta ao novo que há de vir.” (HABERMAS, 2000, p. 9)

Assim, segundo o pensamento hegeliano, pode-se dizer que, de certa maneira, o

racionalismo moderno se apropriou da promessa cristã de um mundo melhor, ou seja,

reclamou para si a responsabilidade de torná-lo real, e mais, o prometeu para o presente e não

para um futuro incerto. Desta forma, a modernidade rompeu com o legado da cultura

metafísica tradicional. Consequentemente, ao se descolar da tradição escolástica, o

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racionalismo ocidental destituiu o passado cultural de valor e criou a expectativa de mundo

melhor para um futuro imediato e, portanto, projetou-se historicamente para o futuro.

Desta maneira, o conceito hegeliano de “novo mundo profano” é o que descreve

melhor tal consciência histórica. A consciência histórica de uma época que rompe com uma

cultura tradicional anterior e projeta-se ao futuro de forma contínua e incessante até os dias

atuais. Assim, a expressão “novo mundo” como “tempos modernos” não denota somente uma

“novidade” e sim um processo contínuo em curso e, portanto, perde-se o sentido puramente

cronológico. Afirma Habermas:

A classificação, ainda hoje usual (p. ex., para a caracterização de disciplinas

de história), em Idade Moderna, Idade Média e Antigüidade (respectivamen-

te História moderna, medieval e antiga), só pôde se compor depois que as

expressões “novos tempos” ou “tempos modernos” (“mundo novo” ou

“mundo moderno”) perderam o seu sentido puramente cronológico, assu-

mindo a significação oposta de uma época enfaticamente “nova”. (HABER-

MAS, 2000, p. 9)

Portanto, tal conceito de novo mundo profano desloca o início do “novo mundo” do

juízo final para 1500 d.C. Diz o autor:

Com isso, a cesura em que se inicia o novo é deslocada para o passado,

precisamente para o começo da época moderna. Somente no curso do século

XVIII o limiar histórico em torno de 1500 foi compreendido retrospectiva-

mente como tal começo. (HABERMAS, 2000, p. 11)

Para explicar melhor a natureza dessa consciência histórica, Habermas cita R.

Koselleck, importante historiador alemão do pós-guerra.

Koselleck mostra como a consciência histórica, expressa no conceito de

“tempos modernos” ou “novos tempos”, constituiu uma perspectiva para a

filosofia da história: a presentificação reflexiva do lugar que nos é próprio a

partir do horizonte da história em sua totalidade. (HABERMAS, 2000, p.

10)

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Ora, é próprio da modernidade tal consciência história, isto é, o projetar-se para o

futuro é percebido retrospectivamente da atualidade até meados de 1500 d.C. Isto ocorre pois

a modernidade, ao rejeitar os valores culturais tradicionais, tem a necessidade de recriar-se a

partir de si própria, ou seja, a negação do passado e a atualização da promessa deve ser

contínua e, portanto, é necessária a manutenção da expectativa de um mundo melhor para o

futuro imediato. Tal atualização autônoma confere uma certa simultaneidade à experiência,

isto é, o momento presente se desvanece na história, é dilatado, é distendido. Desta forma, é

possível entender como tal consciência histórica percebe seu tempo, esta se reconhece

retrospectivamente no “horizonte da história em sua totalidade”, ou seja, percebe

retrospectivamente o alcance de tal dilatação do momento presente, portanto ocorre “a

presentificação reflexiva do lugar que nos é próprio [na história]”. Assim, as expressões

“tempos modernos” e “novos tempos” indicam como uma consciência histórica reconhece no

passado um presente dilatado, um presente que, de certa maneira, perpetua uma expectativa, e

portanto, confere uma noção de simultaneidade para a modernidade. O autor cita Koselleck:

A isso correspondem a nova experiência do progresso e da aceleração dos

acontecimentos históricos e a compreensão da simultaneidade cronológica

de desenvolvimentos historicamente não simultâneos. (HABERMAS, 2000,

p. 10)

Assim, uma vez que a modernidade histórica é vista como uma dilatação de um

presente que se abre ao futuro, cada instante presente deve reproduzir novamente tal

expectativa e, portanto, recriar a própria modernidade, ou seja, a cada instante, ou “tempo

mais recente”, esta se destaca e se recria de si mesma e, ao projetar-se retrospectivamente

mantendo tal dilatação temporal, esta recria o próprio “tempo moderno”. Desta forma a

modernidade se dá em uma renovação contínua que resulta em uma manutenção do

rompimento com a tradição cultural. Diz o autor:

Um presente que se compreende, a partir do horizonte dos novos tempos,

como a atualidade da época mais recente, tem de reconstituir a ruptura com

o passado como uma renovação contínua. (HABERMAS, 2000, p. 11)

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É exatamente nesse movimento de autorenovação contínua da modernidade que se

funda o dilema da autocertificação, isto é, cria a impossibilidade desta adotar quaisquer

critérios exotéricos para se orientar, sejam estes anteriores ou exteriores. Diz o autor:

A modernidade não pode e não quer tomar dos modelos de outra época os

seus critérios de orientação, ela tem de extrair de si mesma a sua normativi-

dade. A modernidade vê-se referida a si mesma, sem a possibilidade de

apelar para subterfúgios. Isso explica a suscetibilidade da sua autocompreen-

são, a dinâmica das tentativas de “afirmar-se” a si mesma, que prosseguem

sem descanso até os nossos dias. (HABERMAS, 2000, p. 12)

Desta maneira, pode-se entender que, dada a necessidade contínua de renovação de

sua normatividade, a modernidade tem no momento presente a geração de tal demanda e,

portanto, o presente é percebido como gerador de problemas. Isto cria um processo que não se

sustenta, pois o futuro, que seria o recurso para responder a tal demanda, será por sua vez

também um presente gerador de problemas e, portanto, este já surge como recurso escasso.

Como consequência, pode-se inferir que o tempo é experimentado na modernidade como

fonte geradora de pressão. (HABERMAS, 2000, p. 10) Assim, ter consciência de tal dilema

significa perceber como a modernidade tende à crise, ou seja, perceber a problemática própria

da modernidade.

Respondendo à pergunta que surge, “Quando e como se dá a consciência de tal

dilema?”, o autor afirma:

É no domínio da crítica estética que, pela primeira vez, se toma consciência

do problema de uma fundamentação da modernidade a partir de si mesma.

Isso fica claro quando acompanhamos a história conceitual do termo

“moderno” (HABERMAS, 2000, p. 13)

Ao contestar o conceito absoluto do belo aristotélico, a arte de vanguarda cria uma

noção de beleza relativa ao presente, associando o belo ao conceito de progresso. Desta

forma, o iluminismo francês, como marco da “arte moderna”, se destaca das tradições

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artísticas marcando o início de uma época onde tal renovação contínua acontece17. Desta

maneira cunha-se o substantivo “moderno”. Diz o autor:

Embora o substantivo modernitas (junto com o par antitético de adjetivos

antiqui/moderni) já fosse empregado em um sentido cronológico desde a

Antiguidade tardia, nas línguas europeias da época moderna, o adjetivo

moderno foi substantivado só muito mais tarde, aproximadamente nos

meados do século XIX e, pela primeira vez, ainda no domínio das belas-

artes. Isso explica por que as expressões Moderne ou Modernität, modernité,

conservaram até hoje um núcleo de significado estético, marcado pela auto-

compreensão da arte de vanguarda. (HABERMAS, 2000, p. 13–14)

Para explicitar a relação interna entre os conceitos de experiência estética e de

experiência histórica, Habermas utiliza o pensamento de Baudelaire. Segundo o autor, é na

estética que se intensifica as implicações da autocertificação, “pois aqui o horizonte da

experiência do tempo se reduz à subjetividade descentrada18” (HABERMAS, 2000, p. 14). A

arte moderna, segundo Baudelaire, cumpre um papel de ligação entre o momento presente,

fugaz e transitório, e o eterno, abstrato e universal.

A modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte,

sendo a outra o eterno e o imutável. (BAUDELAIRE apud HABERMAS,

2000, p. 14)

Assim, tal relação interna se caracteriza em um movimento que consome a

experiência do presente reduzindo esta a uma idealização atemporal extraída da si mesma e

portanto rejeita a figura do passado. Diz o autor:

O presente não pode mais obter sua consciência de si com base na oposição

a uma época rejeitada e ultrapassada, a uma figura do passado. A atualidade

só pode se constituir como o ponto de intersecção entre o tempo e a eterni-

dade. (HABERMAS, 2000, p. 14)

17 No início do século XVIII

18 A noção de “subjetividade descentrada” será exposta na próxima parte.

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Portanto, é na estética moderna que encontramos a autocertificação em sua forma

mais radical e foi através da crítica estética moderna que se percebeu mais claramente tal

manifestação. Assim, percebeu-se de que maneira o processo de racionalização opera a

manutenção da cisura com o passado submetendo a experiência atual a uma normatividade

universalista e, portanto, atribuindo ao passado imediato um caráter atemporal ou eterno.

Também é possível entender, desta forma, como a modernidade confere uma certa noção de

simultaneidade ao processo histórico moderno e de que maneira pôde se reconhecer de forma

retrospectiva o início de tal época.

Desta maneira, é possível entender que a necessidade de se delimitar a época

moderna ou de se cunhar o termo modernidade é sintoma da necessidade de autocertificação.

De fato, não é natural de outros tempos a necessidade de tais delimitações. Diz Habermas:

Há poucos anos, H. Blumenberg viu-se na necessidade de defender, com

grande dispêndio de indicações históricas, a legitimidade ou o direito

próprio da época moderna contra aquelas construções que afirmam uma

dívida cultural da modernidade para com o legado do Cristianismo e da

Antiguidade: “Não é evidente que se coloque para uma época o problema de

sua legitimidade histórica, como tampouco é evidente que ela se compreen-

da em geral como época. Para a época moderna o problema está latente na

pretensão de consumar, ou de poder consumar, uma ruptura radical com a

tradição e no equívoco que essa pretensão apresenta em relação a realidade

histórica, que nunca é capaz de recomeçar desde o princípio” (HABER-

MAS, 2000, p. 12)

Assim, resgatando o sentido hegeliano de tempos modernos, utilizado a crítica

histórica de Koselleck e recorrendo à crítica estética moderna de Baudelaire, Habermas

mostra como a necessidade de autocertificação é característica da modernidade, de que

maneira esta tende à crise e como os próprios conceitos modernidade e tempos modernos são

frutos de tal necessidade.

Entretanto, a problemática da autocertificação moderna tem suas raízes no próprio

instrumento de legitimação do pensamento moderno, isto é, na razão. A modernidade tem a

sua essência, por assim dizer, na necessidade do sujeito cognoscente de reconhecer o mundo e

a sua própria identidade sem recorrer a pressupostos metafísicos exotéricos. Desta maneira, a

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razão calcada no princípio da subjetividade é o fundamento da modernidade e também é a

causa da sua tendência à crise.

Antes de buscar uma alternativa à razão centrada no sujeito que permita ao projeto

moderno criar a sua própria normatividade sem, no entanto, tender à crise, é importante

entender como tal princípio da subjetividade foi percebido por Hegel.

O autor passa então a investigar de que maneira tal necessidade surgiu

historicamente através de uma análise do conceito hegeliano de princípio de subjetividade e

de como tal princípio se manifestou. Expor tal análise é precisamente o objeto da próxima

seção deste trabalho.

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1.3 O princípio da subjetividade e sua formação histórica

Posto que a necessidade de autocertificação é a principal característica da

problemática da modernidade, Habermas passa a analisar de que maneira tal necessidade

tornou-se um objeto de interesse filosófico na forma do princípio de subjetividade e de que

maneira este se formou historicamente.

Esta seção pretende evidenciar de que maneira, segundo Habermas, o princípio de

subjetividade está relacionado com a necessidade de autocertificação da modernidade, como

tal princípio está relacionado com o anseio de liberdade e a consequente reflexividade

moderna e de que forma estas características emergem historicamente da práxis social.

O início da modernidade está localizado historicamente por volta de 1500 d.C.19, pois

foi nessa época que começaram a se formar as tensões que abalaram os fundamentos da

cultura tradicional escolástica. Foram as descobertas de novos povos que apontaram novas

possibilidades de valores sociais que colocaram em cheque a visão humana etnocêntrica

tradicional20, tais descobertas também criaram tensões políticas uma vez que ofereceram

novas possibilidades de exploração e comércio. Foi no início da reforma luterana que se

colocaram em cheque o poder da igreja sobre a espiritualidade individual. Foi no

Renascimento, a exemplo das descobertas de Galileu, que a cosmologia católica também

começou a ser questionada. Foram épocas em que houve retaliações violentas por parte da

instituição católica, pois tal regime extremamente poderoso estava sendo ameaçado em todos

os seus aspectos, sejam estes cosmológicos, políticos ou morais.

Entretanto, foi tempos depois que a modernidade encontrou condições para o

despertar da consciência de si mesma, isto é, foi somente posteriormente que se formou um

interesse filosófico em produzir fundamentações que permitissem à modernidade sustentar

19 Como exposto na seção anterior, os marcos históricos que determinam o início da modernidade, segundo Hegel, são: adescoberta do novo mundo, o Renascimento e a Reforma Luterana.

20 Na idade média, ser humano era ser algo como caucasiano, europeu e católico.

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sua pretensão de autocertificação que, como foi exposto anteriormente, lhe é característica.

De fato, Habermas afirma que, segundo Hegel, tal necessidade de autocertificação passa a

estabelecer a maneira própria que a filosofia adquire de se formar a partir de si mesma. Diz o

autor:

O fato de uma modernidade sem modelos ter de estabilizar-se com base nas

cisões por ela mesma produzidas causa uma inquietude que Hegel concebe

como “a fonte da necessidade da filosofia”. Quando a modernidade desperta

para a consciência de si mesma, surge uma necessidade de autocertificação,

que Hegel entende como a necessidade da filosofia. Ele vê a filosofia diante

da tarefa de apreender em pensamento o seu tempo, que, para ele, são os

tempos modernos. Hegel está convencido de que não é possível obter o

conceito que a filosofia forma de si mesma independentemente do conceito

filosófico da modernidade. (HABERMAS, 2000, p. 25)

Hegel, segundo Habermas, foi quem identificou a subjetividade como o princípio

dos novos tempos. Elevando a modernidade ao conceito de subjetividade, Hegel capturou,

tanto a necessidade de autocertificação e sua consequente atitude reflexiva, quanto a

tendência à crise típica da modernidade. (HABERMAS, 2000, p. 25)

Segundo Habermas, foi conceituando a modernidade que Hegel percebeu sua

principal contradição, a de conquistar uma liberdade nunca antes concebida simultaneamente

com uma forte tendência imanente à crise.

Valendo-se desse princípio [, o da subjetividade,] [Hegel] explica simultane-

amente a superioridade do mundo moderno e sua tendência à crise: ele

[Hegel] faz a experiência de si mesmo como o mundo do progresso e ao

mesmo tempo do espírito alienado. Por isso, a primeira tentativa de levar a

modernidade ao nível do conceito é originalmente uma crítica da moderni-

dade. (HABERMAS, 2000, p. 25)

Devido a sua necessidade de extrair de si mesma sua normatividade, a modernidade

adota uma postura reflexiva. Hegel entendeu tal postura como uma estrutura formal reflexiva

que caracteriza a autocertificação em suas diversas determinações e a denominou como

“princípio de subjetividade”. Segundo Habermas:

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De modo geral, Hegel vê os tempos modernos caracterizados por uma estru-

tura de autorelação que ele denomina subjetividade: “O princípio do mundo

moderno é em geral a liberdade da subjetividade, princípio segundo o qual

todos os aspectos essenciais presentes na totalidade espiritual se desenvol-

vem para alcançar o seu direito.” (HEGEL apud HABERMAS, 2000, p. 25)

Portanto, é possível compreender que o princípio da subjetividade tem duas

características principais inter-relacionadas: um anseio de liberdade do sujeito e uma

respectiva atitude reflexiva de autocertificação.

Posta a pretensão de liberdade e a atitude reflexiva do sujeito, pode-se inferir as

seguintes consequências: uma vez que o sujeito sustenta a pretensão de utilizar somente a

própria razão para legitimar suas ações rejeitando qualquer valor exterior, pode-se se entender

que tal sujeito tem uma postura individualista. Desta forma, a qualquer asserção de valor que

lhe for imposta, este reclamará o direito de submeter esta a seu crivo crítico individual, isto é,

reclamará seu direito à crítica. Assim, sustentando a pretensão de utilizar como instrumento

crítico a própria razão e reclamando o direito de criticar qualquer valor que lhe seja imposto,

o sujeito pode agir segundo parâmetros próprios, ou seja, adquiri autonomia da ação. Por fim,

para que o sujeito possa sustentar sua pretensão de uso da razão e de reclamar seu direito à

crítica, este necessita de uma filosofia que lhe forneça um suporte legitimador. Sendo que tal

filosofia deva se sustentar por si própria, esta não pode recorrer a nenhum valor que lhe seja

estranho e, portanto, deve também criar sua própria normatividade, caracterizando assim uma

forte atitude reflexiva. Desta forma, esta filosofia deve ser necessariamente uma filosofia

idealista. Portanto, dadas as características de pretensão de liberdade e atitude reflexiva, é

possível inferir que o princípio da modernidade pode ser entendido sob quatro aspectos

subsequentes. Diz o autor:

a) individualismo: no mundo moderno, a singularidade infinitamente parti-

cular pode fazer valer suas pretensões; b) direito de crítica: o princípio do

mundo moderno exige que aquilo que deve ser reconhecido por todos se

mostre a cada um como algo legítimo; c) autonomia da ação: é próprio dos

tempos modernos que queiramos responder pelo que fazemos; d) por fim, a

própria filosofia idealista: Hegel considera como obra dos tempos modernos

que a filosofia apreenda a ideia que se sabe a si mesma. (HABERMAS,

2000, p. 26)

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Isto posto, é possível compreender como o conceito de princípio da subjetividade é

entendido por Hegel como uma atitude reflexiva do sujeito cognoscente, fruto de um anseio

da modernidade em se libertar da tradição cultural escolástica.

Entretanto, para o correto entendimento a respeito do princípio de subjetividade, é

necessário dar conta de questões do tipo: Como tal princípio da subjetividade emergiu da

práxis social moderna? Quais foram os acontecimentos históricos que melhor caracterizam tal

conceito? Que tipos de necessidades ou demandadas de tais fenômenos históricos, a filosofia

moderna pretende endereçar?

Hegel, segundo Habermas, atribui a formação da subjetividade na modernidade a

três acontecimentos históricos, a saber: a Reforma Luterana, o Iluminismo e a Revolução

Francesa.21

Na Reforma Luterana a subjetividade se apresenta como anseio de liberdade, a

crítica e a autonomia frente ao poder religioso. Diz Habermas:

Com Lutero, a fé religiosa tornou-se reflexiva; na solidão da subjetividade, o

inundo divino se transformou em algo posto por nós. Contra a fé na autori-

dade da predicação e da tradição, o protestantismo afirma a soberania do

sujeito que faz valer seu discernimento: a hóstia não é mais que farinha, as

relíquias não são mais que ossos. (HABERMAS, 2000, p. 26)

Na Revolução Francesa, o mesmo acontece na esfera Moral. Diz Habermas:

[...] a Declaração dos Direitos do Homem e o Código Napoleônico realça-

ram o princípio da liberdade da vontade como o fundamento substancial do

Estado, em detrimento do direito histórico: “Considerou-se o direito e a

eticidade como fundados no solo presente da vontade do homem, já que

outrora existiam a penas como mandamento de Deus, imposto de fora, escri-

to no Antigo e no Novo Testamento, ou presentes na forma de um direito

especial em velhos pergaminhos, enquanto privilégios, ou em tratados.”

(Hegel apud HABERMAS, 2000, p. 26)

21 Não é objeto deste trabalho esmiuçar tais referências históricas, estas constam apenas como forma de ilustrar como ascaracterísticas do princípio da subjetividade hegeliano podem ser percebidas na práxis social. Portanto, este trabalhopretende se ater exclusivamente às breves descrições oferecidas por Habermas na DFM.

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Nas ciências e a objetivação seguem ao lado da secularização das tradições visando

também a liberdade, a crítica e a autonomia frente as crenças religiosas e aos costumes

tradicionais. Diz Habermas:

Assim todos os milagres foram contestados; pois a natureza é agora um

sistema de leis conhecidas e reconhecidas, no qual o homem está em casa, e

só é considerado onde ele se sente em casa; ele é livre pelo conhecimento da

natureza. (HEGEL apud HABERMAS, 2000, p. 25)

Nas artes, a subjetividade é expressa na sua forma mais radical, ou seja, a verdadeira

arte seria aquela determinada, em forma e conteúdo, na sua absoluta interioridade. Diz

Habermas

Levada ao conceito por Friedrich Schlegel , a ironia divina espelha a expe-

riência de si de um eu descentrado, “para o qual todos os laços estão rompi-

dos e que somente quer viver na felicidade que o gozo de si mesmo

proporciona”. A auto-realização expressiva torna-se o princípio de uma arte

que se apresenta como forma de vida: “Porém, segundo este princípio, eu só

vivo como artista se toda minha ação e exteriorização … permanecerem para

mim apenas como aparência e assumirem uma forma que fique totalmente

sob meu poder.” (HEGEL apud HABERMAS, 2000, p. 27)

Assim a subjetividade permeia toda cultura moderna. Diz Habermas:

Na modernidade, portanto, a vida religiosa, o Estado e a sociedade, assim

como a ciência, a moral e a arte transformam-se igualmente em personifica-

ções do princípio da subjetividade. (HABERMAS, 2000, p. 27–28)

Entretanto, segundo Habermas, é na filosofia que a subjetividade é apreendida

conceitualmente como estrutura reflexiva. Se o princípio da subjetividade, pautado pelo

imperativo moderno da liberdade individual, se manifestou historicamente determinando a

religião, a ciência, a política, a moral e a arte modernas, é na filosofia que este aparece

retratado formalmente como uma estrutura reflexiva abstrata de um sujeito cognoscente.

Descartes e Kant, como pensadores de seu tempo, preconizam então um novo tipo de pensar

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com a pretensão de dar o fundamento necessário à modernidade. Assim tais autores iniciam

um novo tipo de filosofia, o que no futuro veio a se chamar como a filosofia da consciência,

uma filosofia em que a razão calcada no sujeito nasce como instrumento crítico fundamental

para a modernidade. Esta se dá enquanto uma “dobra do sujeito cognoscente sobre si mesmo,

este toma a si mesmo como objeto e se compreende de forma especulativa” em Descartes e

faz da razão o tribunal ante o qual justifica-se tudo o qual se reivindica a validade a priori em

Kant. Desta forma, a filosofia da consciência é assentada em um paradigma subjetivo e

monológico. Diz Habermas:

Sua estrutura [do princípio da subjetividade] é apreendida enquanto tal na

filosofia, a saber, como subjetividade abstrata no cogito ergo sum de Descar-

tes e na figura da consciência de si absoluta em Kant. Trata-se da estrutura

de auto-relação do sujeito cognoscente que se dobra sobre si mesmo enquan-

to objeto para se compreender com em uma imagem especular, justamente

de modo “especulativo”. (HABERMAS, 2000, p. 28)

Entretanto, é em Kant que se observa a autonomização das esferas culturais. É neste

que, ao criar a delimitação entre fenômeno e coisa em si, Kant separa a jurisdição da razão

teórica da razão prática. E, por conseguinte, separa a ciência, a moral e a arte em jurisdições

próprias, isto é, cada uma dessas esferas pensa a si mesma como formalmente autônoma. Diz

o autor:

Como dirá mais tarde Emil Lask, a filosofia delimita, a partir de pontos de

vista exclusivamente formais, as esferas culturais de valor enquanto ciência

e técnica, direito e moral, arte e crítica de arte, legitimando-as no interior

desses limites. (HABERMAS, 2000, p. 28)

Pode-se concluir que a subjetividade elevada ao conceito pela filosofia foi reflexo do

anseio de liberdade característico do início da modernidade. Portanto, assim como para

Hegel, a filosofia teve no início da modernidade o papel de apreender o espírito do seu tempo,

ou seja, compreender, conceituar e suportar os anseios e inquietações de uma época. Assim, o

pensamento filosófico cartesiano e kantiano representam, fundamentam e, consequentemente,

justificam o espírito da modernidade, ou melhor, a subjetividade.

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Entretanto, segundo Habermas, Hegel percebeu que a modernidade se mostra

conceitualmente insuficiente para sustentar uma unidade cultural tal como era percebida na

cultura tradicional escolástica, ou seja, a razão centrada no sujeito, em vez de produzir um

efeito unificador tal como o percebido pela religião, tende a criar delimitações entre

diferentes modos de ser dela própria. Desta maneira, segundo Hegel a experiência subjetiva,

ou do espírito, perde sua unidade e portanto tem sua harmonia dilacerada. Tal característica

da filosofia da consciência, segundo Hegel, é a que melhor traduz a tendência a crise da

modernidade e, portanto, a filosofia não somente se deve voltar a esse problema como tem

sua própria necessidade de ser pautada por ele.

Como Hegel entende essa problemática, de que maneira ele a tenta resolver e quais

consequências, boas e ruins, a filosofia hegeliana produziu para o discurso filosófico da

modernidade constituem o objeto da próxima sessão deste trabalho.

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1.4 O papel da filosofia no restabelecimento da unidade

Esta sessão pretende elucidar, segundo Habermas: de que maneira Hegel entendeu

como problema a pretensão da modernidade em substituir o poder unificador anteriormente

atribuído à religião pela da Razão; como Hegel entende que tal problema representa a

necessidade da própria filosofia; como esta tem seu papel reorientado para o

reestabelecimento de tal poder unitivo, ou da “harmonia dilacerada”; e, finalmente, onde

Hegel, segundo Habermas, falha em seu objetivo.

Segundo o autor, apesar de Kant ter construído um sistema filosófico racional que

reflete e sustenta a modernidade em todas as características citadas anteriormente, Kant não

sente a necessidade de defini-la, ou conceituá-la, como época22. Diz o autor:

Kant expressa o mundo moderno em um edifício de pensamentos. De fato,

isto significa apenas que na filosofia kantiana os traços essenciais da época

[moderna] se refletem como em um espelho, sem que Kant tivesse conceitu-

ado a modernidade enquanto tal. (HABERMAS, 2000, p. 29)

Como um expoente da modernidade, o pensamento kantiano está atado ao contexto

histórico e cultural da mesma. Tal posição, segundo Habermas, não permite Kant perceber

como problemáticas as delimitações culturais impostas segundo as diferentes jurisdições do

uso racional que ele sustenta. Diz Habermas:

Kant não considera como cisões as diferenciações no interior da razão, nem

as divisões formais no interior da cultura, nem em geral a dissociação dessas

esferas. Por esse motivo, Kant ignora a necessidade que se manifesta com as

separações impostas pelo princípio da subjetividade. (HABERMAS, 2000,

p. 30)

22 Tal como exposto no item 1.2 deste.

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É oportuno neste ponto resgatar com Repa duas hipóteses de leitura do pensamento

kantiano para esclarecer o tratamento ambíguo de Habermas a Kant, pois tal ambiguidade

revela-se bastante instrutiva para o propósito deste trabalho.

A primeira hipótese versa que Kant não sente como cisões as diferenciações das

esferas culturais e desta maneira “Kant expressa mas não apreende a modernidade” (REPA,

2000, p. 45). Tal hipótese, que aparentemente é sustentada por Habermas no DFM (conforme

última citação de HABERMAS), segundo Repa é no mínimo ingênua, pois esta tanto ignora

“os textos [de Kant] em que se tematizam justamente as passagens de um domínio da razão a

outro” (REPA, 2000, p. 45), quanto ignora “o kantismo do próprio projeto moderno de

Habermas, ancorado em um conceito procedural de racionalidade” (REPA, 2000, p. 45). Repa

cita R. Terra:

“[Pode se dizer] que Habermas, com o paradigma da comunicação, radicali-

za a perspectiva kantiana, renunciando a uma racionalidade substancial e

confiando numa racionalidade procedural. Com a diferença – esta sim deci-

siva – de que, no lugar de uma teoria das faculdades de uma filosofia da

consciência, Habermas propõe uma teoria da argumentação, com a diferen-

ciação em discurso teórico, discurso prático ético-jurídico e crítica estética.”

(TERRA apud REPA, 2000, p. 45)

A segunda hipótese, oposta à primeira, sustenta que Kant tinha consciência da

problemática que envolve a diferenciação dos usos da razão. Nesta, Kant estabelece os

princípios de uma racionalidade complexa tematizando as possíveis relações entre os âmbitos

da razão (REPA, 2000, p. 45). Apesar de não ser possível a passagem imediata entre as leis da

natureza e as leis morais, face aos seus respectivos limites legítimos, Kant se empenhou em

arquitetar uma ponte em que, mediada pelo juízo, tal passagem é possível. Portanto, pode-se

dizer que, de acordo com esta hipótese de leitura, Kant não apenas diferencia as esferas de

valores, mas empreende um grande esforço para manter a unidade da razão arquitetando tais

pontes, ou passagens23. Diz Repa:

Assim, o entendimento é a faculdade do conhecimento das regras, do univer-

sal; a razão é a determinação do particular pelo universal (derivação segundo

23 R. Terra empenhou-se em estudar profundamente tais passagens kantianas. O leitor interessado nestas encontrará em(REPA, 2000) diversas referências à Terra.

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princípios), e o Juízo, a da subsunção do particular sob o universal. É de

esperar, já aí, que o Juízo cumpra uma posição intermediária entre entendi-

mento e razão, como se verifica em um silogismo. (REPA, 2000, p. 50)

Não faz parte do escopo deste trabalho investigar tal possibilidade de passagens em

Kant24, porém é importante notar as patentes semelhanças, levantadas por Repa, entre a teoria

das faculdades de Kant e a teoria da argumentação de Habermas (que será exposta na segunda

parte deste trabalho). Entre estas, pode-se enumerar: Habermas radicaliza a

dessubstancialização da metafísica levada a cabo por Kant sustentando a primazia do caráter

procedural da razão (REPA, 2000, p. 45); a preocupação de ambos em não permitir a redução

cognitivista dos componentes prático-morais (REPA, 2000, p. 47). Portanto, cabe dizer que

ambos se esforçaram em não permitir a acomodação de um conceito de razão instrumental

unilateral; e ambos vinculam a possibilidade das ditas passagens através de procedimento

puramente críticos da razão, Kant através da faculdade do juízo e Habermas pelas críticas

estética e terapêuticas (REPA, 2000, p. 55).

Segundo Repa, é de se esperar então que:

Dada esta filiação, o projeto moderno [segundo Habermas] tem de se apoiar

em um certo kantismo, agora livre do dualismo: manter uma unidade da

razão nos seus usos diferenciados, enfatizar [os] procedimentos de racionali-

zação, conservar o universalismo, etc... (REPA, 2000, p. 46)

O tratamento ambíguo de Habermas a Kant, “que Habermas só admite mais

claramente os escritos sobre moral e o direito” (REPA, 2000, p. 46), já se faz presente no

próprio DFM. Diz Repa:

Habermas, não ignora, é claro o papel mediados da crítica do Juízo, do qual

teriam partido Scheling e Hegel e qua não merecera a atenção dos irmãos

Böehme, seguindo Nietzsche. (REPA, 2000, p. 72)

Portanto, de certa maneira, Habermas reconhece o papel mediador da crítica do juízo

em Kant, porém não se esforça em dar o devido crédito a Kant com respeito ao esforço

24 Para o leitor interessado em conhecer melhor as semelhanças da teoria das passagens de Kant e a teoria deargumentação de Habermas, recomenda-se consultar (REPA, 2000).

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empreendido por este em tentar manter a unidade da razão. De fato, Habermas enfatiza muito

mais as diferenciações das esferas de valores (REPA, 2000, p. 73).

A melhor hipótese acerca dos motivos de tal aparente ambiguidade, segundo Repa,

revela que, apesar das notáveis semelhanças entres os referidos autores, se faz presente uma

diferença sutil, mas extremamente importante para a compreensão do diagnóstico de

Habermas sobre como o discurso filosófico da modernidade conduziu o projeto de

modernidade. Tal diferença se apresenta na análise de como cada autor trata as condições de

possibilidade para as passagens intra-modais.

Apesar de a operação das passagens em Kant não fazer parte do escopo deste

trabalho (vide nota 32), é aceitável assumir que estas se dão no âmbito da razão e que,

portanto, fazem referência à racionalização cultural propriamente dita25.

Já Habermas entende que tais passagens não são possíveis dentro do conceito de

razão transcendental, pois, segundo Habermas, não é suficiente afirmar uma unidade

procedural da razão e, portanto, por analogia, tais passagens não se dão dentro dos discursos26

(REPA, 2000, p. 67). Desta forma, deve existir uma motivação externa à teoria da

argumentação para que tais passagens ocorram. (REPA, 2000, p. 69). Para, Habermas,

segundo Repa, é na ação comunicativa efetiva que tais passagens são possíveis, pois, para

Habermas, o núcleo da razão comunicativa se dá na práxis e não na teoria da argumentação.

Desta forma, para Habermas, a possibilidade das passagens intra-modais é garantida não por

aspectos procedurais da razão, mas pelo aspecto performativo da ação comunicativa, pois esta

,movida por uma intenção intersubjetiva de alcançar um consenso frente a um problema em

comum, se faz valer através de tais procedimentos argumentativos. Diz Habermas:

No nexo interno de significado, validade e fundamentação de pretensões de

validade mostra-se que a práxis cotidiana ingênua remete ela própria à possi-

bilidade da argumentação. Mas isso não significa que a razão comunicativa

tem sua sede na argumentação. A teoria da argumentação contribui simples-

mente para esclarecer as condições, efetivas já na ação comunicativa, de um

acordo motivado por razões. (HABERMA apud REPA, 2000, p. 67)

25 A distinção entre racionalização cultural e racionalização social já foi exposta no tópico 1.1.

26 Tal analogia entre unidade procedural e discurso é retomada na segunda parte deste.

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Desta maneira, pode-se afirmar que, para Habermas, as condições de possibilidade

de tais passagens são dadas no plano da ação, ou na práxis social, e que, portanto tais

condições residiriam na racionalização social, e não na racionalização cultural tal como

preconizada por Weber, mas já presente em Kant. Portanto, é na racionalização social que se

encontram os elementos que favorecem ou desfavorecem tais passagens. Para Habermas, a

relação existente entre mundo da vida e sistema27 define os graus de liberdade destas

passagens. Quando tal relação se encontra desbalanceada em favor do sistema, predomina um

padrão seletivo que favorece o discurso cognitivo-instrumental, ou em outros termos,

favorece, mas não determina, o predomínio da razão instrumental.

Assim, pode-se concluir que, segundo Habermas, apesar dos seus esforços, Kant não

obteve êxito em estabelecer condições de possibilidade para as passagens, pois, ao utilizar

como fundamento um conceito de razão centrada no sujeito e assentada no paradigma

monológico da filosofia da consciência, Kant não conseguiu conceituar uma racionalidade

complexa profunda o suficiente. Segundo Repa, “o problema do paradigma da [monológico]

da [filosofia da] consciência residiria na latitude da complexidade da razão.” (REPA, 2000, p.

74) Desta maneira, pode-se também afirmar que, segundo Habermas, o problema das

passagens em Kant prevalece e que, portanto, considerando o paradigma monológico

transcendental de razão vigente, pode-se compreender como as diferenciações entre as esferas

culturais podem ser interpretadas como cisões. Como Hegel interpreta e trabalha estas cisões

está exposto mais adiante.

De fato, segundo Habermas, foi somente através de uma perspectiva histórica que,

tal como foi exposto anteriormente neste, tornou-se possível levantar questões de forma

retrospectiva a respeito das condições de possibilidade da modernidade se sustentar somente

através do princípio da subjetividade, ou seja, somente de maneira retrospectiva torna-se

importante à filosofia questões a respeito da necessidade de autocertificação típica da

modernidade. Diz Habermas:

Coloca-se então a questão de saber se o princípio da subjetividade e a estru-

tura de consciência de si que lhe é imanente são suficientes como fonte de

orientações normativas, se bastam para "fundar" não apenas a ciência, a

moral e a arte, de um modo geral, mas ainda estabilizar uma formação histó-

27 Está fora do escopo deste a relação entre mundo da vida e sistema, entretanto, na segunda parte deste, é ilustrada amaneira que a condição de possibilidade das passagens intra-modais está atrelada ao conceito de mundo da vida.

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rica que se desligou de todos os compromissos históricos. Agora a questão é

saber se da subjetividade e da consciência de si podem obter-se critérios pró-

prios ao mundo moderno e que, ao mesmo tempo, sirvam para se orientar

nele; mas isso significa também que possam ser aptos para a crítica de uma

modernidade em conflito consigo mesma. Como é possível construir, partin-

do do espírito da modernidade, uma forma ideal interna que não se limite a

imitar as múltiplas manifestações históricas da modernidade nem lhes seja

exterior? (HABERMAS, 2000, p. 30)

A cultura tradicional do fim da idade média tinha sua unidade sustentada em

princípios religiosos, isto é, era na religião que se sustentavam a ciência, a moral, as artes.

Desta maneira, a igreja, como instituição religiosa, através de sua cosmologia determinava

politicamente a humanidade. Ao pretender se libertar de tal determinação política valendo-se

unicamente da Razão, a modernidade herda o ônus de manter tal unidade anteriormente

atribuída à religião. Entretanto, a racionalidade moderna revela-se, segundo Habermas,

insuficiente ao tentar dar conta de tal ônus. Diz Habermas:

A subjetividade se revela um princípio unilateral. Com efeito, este possui

uma força inédita para gerar uma formação da liberdade subjetiva e da refle-

xão e minar a religião, que até então se apresentava como, o poder unifica-

dor por excelência. Mas esse mesmo princípio não tem força suficiente para

regenerar no médium da razão o poder unificador da religião. (HABER-

MAS, 2000, p. 30)

Segundo Habermas, Hegel foi o primeiro a questionar se de fato a modernidade seria

capaz criar uma “forma ideal interna” capaz de sustentar tal unidade cultural pautando-se

unicamente nos princípios racionais que esta pretende sustentar, ou seja, sem “imitar

manifestações histórias” anteriores. Habermas cita passagem da obra Fenomenologia do

Espírito de Hegel:

Quanto mais progride a formação, mais diverso é o desenvolvimento das

manifestações vitais em que a cisão pode se entrelaçar, maior

é o poder da cisão [...] è mais insignificantes e estranhos ao

todo da formação são os esforços da vida (outrora a cargo da religião) para

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se reproduzir em harmonia. (HEGEL apud HABERMAS, 2000, p. 31)

Hegel percebe, segundo Habermas, que era preciso uma consciência histórica, a

modernidade deveria se reconhecer tal como época. O sujeito transcendental kantiano deveria

ser repensado, a consciência deveria assumir um papel histórico para dar conta de um

problema histórico. O problema do poder de unificação perdido. Diz Hegel:

Quando o poder de unificação desaparece da vida do homem, e as antíteses

perdem sua relação vital e reciprocidade e ganham independência, origina-se

a necessidade da filosofia. Até aqui esta necessidade foi uma contingência;

porém, sob a cisão dada, é a tentativa necessária de superar a oposição entre

subjetividade e objetividade fixas e de conceber como um devir o ser-que-

veio do mundo intelectual e real. (HEGEL apud HABERMAS, 2000, p. 31)

Desta maneira, Hegel entende que a filosofia, antes circunstancial, torna-se

necessária, pois esta se torna responsável por superar as cisões típicas da consciência

objetivante e restaurar a unidade cultural perdida na modernidade. Diz o autor:

[…] Hegel concebe a harmonia dilacerada da vida como sendo o desafio

prático e a necessidade da filosofia. A circunstância de que a consciência do

tempo se destacou da totalidade e o espírito se alienou de seu si constitui

para ele justamente um pressuposto do filosofar contemporâneo. (HABER-

MAS, 2000, p. 31)

Ao criticar as oposições filosóficas entre natureza e espírito, sensibilidade e

entendimento, entendimento e razão, razão prática e razão teórica, juízo e

imaginação, eu e não eu, finito e infinito, saber e fé, Hegel pretende respon-

der à crise que está na cisão: [a] da própria vida. (HABERMAS, 2000, p. 32)

Para Habermas, segundo Repa, o discurso filosófico da modernidade é inaugurado

por Hegel precisamente no momento em que tais diferenciações culturais são percebidas

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como cisões e a modernidade percebe-se tal como época28, isto é, contrariamente ao conceito

a-histórico de razão transcendental de Kant. (REPA, 2000, p. 75)

Entretanto, para o correto entendimento de como Habermas entende Hegel, é

necessário compreender bem o tratamento dual de Habermas à Hegel. Para Habermas, Hegel

é considerado em dois momentos: o jovem Hegel, o que acredita que o princípio da

subjetividade é o elemento determinante da modernidade e que tenta superar tais cisões por

um viés comunicativo; e o velho Hegel, o da Fenomenologia do Espirito, que concebe a

macro-subjetividade, que invalida as diferenciações das esferas culturais e que se distancia da

questão da autocertificação moderna. (REPA, 2000, p. 83)

Não cabe aqui expor a profunda análise que Habermas faz de Hegel29. Entretanto,

vale ressaltar os pontos principais desta que são importantes para o presente entendimento.

Para Habermas, o jovem Hegel percorria um bom caminho quando: concedeu papel

privilegiado à fantasia e imaginação popular, criticando o fosso intransponível entre cultos e

incultos criado pelo positivismo da época (REPA, 2000, p. 90); defendeu uma nova totalidade

ética em que a arte tem papel preponderante e possibilita reunir ilustrados e não ilustrados

(REPA, 2000, p. 92); sustentou que o princípio da subjetividade produz falsas ideias de

identidade e positividade bem como falsos modelos normativos que, consequentemente,

conduzem às cisões (REPA, 2000, p. 93); considerou a auto-referência subjetiva como a “face

repressiva da Aufklärung30” ao assumir que “tomar consciência de si é tomar-se como objeto”

(REPA, 2000, p. 94); entendeu que existe uma estrutura de comunicação em que os sujeitos

estão em unidade e preservam diferenças e que a relação sujeito/objeto é estranha a esta, pois

tal relação conduz ao rompimento de tal estrutura e, consequentemente, é responsável pela

objetivação do outro (REPA, 2000, p. 98). Portanto, segundo Repa, o jovem Hegel,

influenciado pelo cristianismo primitivo e pela polis grega, elabora um esboço de uma razão

comunicativa cuja potência reconciliadora reside na vida intersubjetiva e não no interior do

sujeito refletido (REPA, 2000, p. 99).

Habermas, segundo Repa, retira também do jovem Hegel o argumento de que em

uma razão da eticidade não se pode reduzir a razão ética à razão instrumental. Portanto,

28 Tal como exposto no item 1.2 deste.

29 O leitor interessado encontrará uma boa exposição de análise de Habermas à Hegel na terceira parte de (REPA, 2000).

30 “Aufklärung” pode ser entendido aqui como Iluminismo ou Esclarecimento,

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também aqui se nota um esforço em não permitir a acomodação de um conceito de razão

instrumental unilateral. Diz Repa:

A racionalidade que se inscreve na noção da eticidade não pode ser derivada

de uma racionalidade com respeito a fins, talhada para a dimensão cognitivo

instrumental. Inversamente, porém, a cisão na totalidade ética concebida

como mundo compartilhado intersubjetivamente gera a relação sujeito-

objeto. (REPA, 2000, p. 98)

Entretanto, para Habermas, Hegel não pôde recorrer a intersubjetividade, pois “a

necessidade de autocertificação consiste na exigência de superação da positividade a partir do

seu princípio, a subjetividade moderna” e que, portanto, impor o ideal clássico à cultura

moderna implicaria um profundo autoengano (REPA, 2000, p. 99).

Hegel pretendeu então resolver tais cisões culturais recorrendo a um contexto de

ordem superior, isto é, um contexto único em que tais diferentes manifestações da razão se

realizem. Com esse propósito, segundo Habermas, Hegel entende como necessário a ideia de

absoluto. Diz Habermas:

Outro pressuposto necessário sobre o qual a filosofia pode empreender sua

tarefa é, para Hegel, o conceito de absoluto, tomado de empréstimo inicial-

mente de Schelling. Com ele, a filosofia pode assegurar de antemão a meta

de apresentar a razão como o poder unificador. A razão deve certamente

superar o estado de cisão em que o princípio da subjetividade arremessará

não só a própria razão, mas também o sistema inteiro das relações vitais.

(HABERMAS, 2000, p. 31)

Porém, segundo Repa, para Habermas, ainda é possível colher, no início deste

momento hegeliano, vestígios de sua época de juventude. Neste momento, Hegel sustentou

que a dialética entre trabalho e interação constitui uma base determinante da totalidade ética,

representada pelo conceito de espírito.

Habermas descobre [em textos de Hegel] uma dialética entre trabalho (ação

instrumental) e interação (ação social-comunicativa) não subsumida pela

dinâmica do espírito absoluto, por um lado, nem reduzidas uma à outra [por

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outro]. Linguagem, trabalho e interação são as determinações básicas do

conceito de espírito, e não apenas momentos de processo auto-reflexivo do

espírito. (REPA, 2000, p. 101)

Desta maneira, é na intersubjetividade que se encontra alojado um “campo ético de

relacionamento recíproco” (REPA, 2000, p. 102). Entretanto, tal campo não é dado a priori, é

sim construído historicamente. Diz Repa:

O processo de reconhecimento recíproco não é, porém, imediatamente intac-

ta e harmoniosa. O processo de reconhecimento entre os sujeitos se inicia,

[...] , após uma perturbação e uma assimetria na totalidade ética, que, inicial-

mente, é ignorada. Assim, a relação dialógica da situação de reconhecimento

é o resultado de uma relação dialética de superação de formas de violência,

de uma luta pelo reconhecimento. (REPA, 2000, p. 102)

Nota-se aqui uma semelhança entre o conceito hegeliano de totalidade ética e o

conceito habermasiano de mundo da vida31, pois ambos a princípio se apresentam como não

problemáticos. Tão logo uma perturbação que os problematize nestes seja notada, esta emerge

para o contexto intersubjetivo de reconhecimento mutuo para que então seja sanada por

consenso e sejam evitadas intenções coercivas. Uma vez equacionada a perturbação, os

elementos desta antes problemáticos voltam a compor uma totalidade não problemática.

Portanto, é possível sustentar a hipótese em que se pode encontrar neste momento de Hegel

esboços, ou rudimentos, do que virá a ser o conceito de mundo da vida de Habermas.

Entretanto, para Habermas, segundo Repa, Hegel retrocede em Fenomenologia do

Espírito. Nesta, ao tomar a identidade entre espírito e natureza como pressuposto, Hegel

perde de vista a distinção entre trabalho e interação e, consequentemente, inviabiliza o projeto

de totalidade ética intersubjetiva e incorre em seguidos equívocos (REPA, 2000, p. 52).

Não cabe aqui analizar tal momento32, mas também é importante ressaltar os

principais pontos que são importantes para este trabalho. Como consequência de tal

movimento de Hegel, pode-se enumerar os seguintes retrocessos: Hegel assume como espírito

absoluto uma subjetividade superlativa formal, isto é, um sujeito absoluto que se apresenta

31 O conceito de “mundo da vida” é introduzido na segunda parte deste.

32 Recomenta-se par o leitor interessado o terceiro capítulo de (REPA, 2000)

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somente como estrutura de auto-referência e que, portanto não determinado e não substancial.

Hegel retrocede então à filosofia da consciência (REPA, 2000, p. 106); a arte e a religião

representam momentos do espírito absoluto que em seu desenvolvimento histórico são

superados. Portanto, a dimensão estética é superada no processo (REPA, 2000, p. 108); ao

dissolver qualquer distinção entre saber e objeto do saber, Hegel dissolve qualquer relação

determinada entre filosofia e ciência. Desta forma, Hegel torna a ciência supérflua o que

configura um nivelamento brutal das conquistas modernas comparável ao nivelamentos dos

críticos totais da razão33 (REPA, 2000, p. 109); ao entender que a filosofia tem o papel de

apenas contemplar os feitos do espírito absoluto sem possibilitar, portanto, qualquer via de

engajamento político, Hegel interdita a simultaneidade entre ação e saber, suprime a

possibilidade de crítica e, portanto, desarma a filosofia de realizar qualquer intervenção

prática. O que representa para o projeto do esclarecimento um retrocesso (REPA, 2000, p.

126); consequentemente Hegel abandona completamente a problemática da autocertificação,

aquela que, no final das contas, foi a que o impulsionou inicialmente e serviu de justificativa

para a filosofia quanto necessária (REPA, 2000, p. 84).

Desta forma, para Habermas, Hegel se equivocou em não conseguir se desvencilhar

da razão calcada no sujeito. Apesar de que em sua juventude Hegel partilhava ideias

reconciliadoras com Hölderin e Schelling, Hegel viu-se obrigado a desenvolver uma teoria de

sujeito absoluto calcada unicamente na razão para evitar influências estranhas à modernidade.

Diz Habermas:

Os motivos da filosofia da unificação remontam às experiências de crise do

jovem Hegel. Elas estão atrás da convicção de que a razão pode ser convo-

cada, enquanto poder reconciliador, contra as positividades da época dilace-

rada. No entanto, a versão mito-poética de uma reconciliação da

modernidade, que Hegel partilha inicialmente com Hölderlin e Schelling,

permanece ainda presa aos passados exemplares do cristianismo primitivo e

da Antiguidade. (HABERMAS, 2000, p. 33)

Ao se ater a razão tal como moldada historicamente como um princípio subjetivo,

Hegel transforma o sujeito cognoscente no sujeito superlativo, isto é, Hegel eleva ao absoluto

33 Vide anarquistas pós-modernos no item 1.1.

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o sujeito transcendental kantiano. Desta maneira, segundo Habermas, Hegel não percebe o

problema da autocertificação moderna através da razão calcada no sujeito. Diz Habermas:

Hegel retrocede, todavia, em relação às intuições de juventude: pensa em

superar a subjetividade dentro dos limites da filosofia do sujeito. Disso

resulta o dilema de ter de negar afinal à autocompreensão moderna a possi-

bilidade de uma crítica da modernidade. A crítica à subjetividade dilatada

em potência absoluta transforma-se ironicamente em repreensão do filósofo

à estreiteza de espírito dos sujeitos, que ainda não compreenderam sua filo-

sofia nem o curso da história. (HABERMAS, 2000, p. 33)

Como consequência, todos os pensadores filosóficos pós-hegelianos tanto assumiram

este novo papel quanto, segundo a DFM, ficaram presos ao equívoco hegeliano de alguma

maneira. Assim, a herança hegeliana perdurou até os dias atuais.

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2 PARTE II – A ALTERNATIVA DA RACIONALIDADECOMUNICATIVA

Esta parte do trabalho expõe como, segundo Habermas, a racionalidade

comunicativa endereça e pretende resolver a problemática moderna sustentada pela razão

centrada no sujeito.

Vale a pena repassar o caminho percorrido até aqui.

Em primeiro lugar, foi exposto como Habermas localiza a problemática da

modernidade na modernidade, ou seja, Habermas entende o projeto da modernidade como um

projeto em aberto afirmando que as posturas pós-modernas, tanto a neoconservadora quanto a

anarquista, descolam a modernidade do seu processo histórico originário e,

consequentemente, conduzem a diagnósticos de época equivocados. Habermas entende que o

termo “modernidade”, tal como utilizado atualmente, carrega um viés pós-moderno, pois foi

sobrecarregado pelas teorias sociais contemporâneas que fazem uma releitura funcionalista da

teoria social de Weber. Habermas demonstra, através da reconstrução da teoria weberiana,

como o racionalismo ocidental, tal como entendido por Weber, representa bem a ironia da

modernidade e como está foi incompreendida pelo discurso filosófico da modernidade. Tal

ironia se dá pelo fato de que a racionalização ocidental ao mesmo tempo promove um ganho

cultural, ao prover limites legítimos para as esferas culturais, e produz um empobrecimento

cultural, ao favorecer o aparecimento e desenvolvimento das estruturas capitalistas modernas

alienantes. O autor expõe também que o principal equívoco da teoria weberiana consistiria em

considerar a racionalização ocidental como um processo único, pois Weber não diferencia a

racionalização cultural da racionalização social e, consequentemente, não permite a

compreensão de que a modernidade, tal como constituída culturalmente e socialmente

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respectivamente, não determina a razão instrumental unilateral, mas apenas favorece de forma

seletiva o seu predomínio.

Uma vez que Habermas entende que o termo “modernidade”, tal como utilizado na

atualidade, carrega um viés pós-moderno equivocado, o autor sugere uma releitura de como

Hegel conceituou, pela primeira vez, a modernidade como problemática e como um processo

histórico. Desta maneira, analisando como Hegel emprega as expressões “tempos modernos”

e “novos tempos”, Habermas aponta como a modernidade mantém constantemente uma

ruptura com a cultura tradicional e, consequentemente, tem que construir sua própria

normatividade. Assim, o autor indica a necessidade de autocertificação como principal

característica da modernidade e como esta confere à modernidade uma imanente tendência à

crise.

Posto que a necessidade de autocertificação é a principal característica da

modernidade, Habermas passa a analisar como na práxis social tal necessidade surgiu.

Segundo Habermas, Hegel entendeu a estrutura formal reflexiva que caracteriza a

autocertificação em suas diversas determinações e a denominou como “princípio de

subjetividade”. Hegel aponta a Reforma Luterana, o Iluminismo e a Revolução Francesa

como os principais fatos históricos que determinaram tal princípio. Pode-se notar que, em

todas as suas determinações, está presente no princípio de subjetividade uma forte

reivindicação de liberdade, frente a uma cultura dogmática dominante, cujo preço é a

necessidade de criar-se uma normatividade que não dependa de tal cultura a ser ultrapassada.

Habermas aponta como características primeiras do princípio da subjetividade o anseio a

liberdade e o caráter reflexivo. Consequentemente, cumprindo o papel de compreender,

conceituar e suportar os anseios e inquietações de sua época, a filosofia moderna fundamenta

tal normatividade de forma racional e universal, ou seja, a figura do sujeito cognoscente

dobrado sobre si passa a ser referência de verdade e validade, nasce a filosofia da razão

centrada no sujeito, ou filosofia da consciência.

Por último, foi exposto como só retrospectivamente foi possível interpretar

criticamente o pensamento moderno. De fato, foi somente tempos depois que Hegel percebeu

o dilema moderno, percebeu que esta não seria capaz de assumir uma função unificadora tal

como tinha a cultura tradicional suplantada. Entretanto, foi exposto uma leitura de Kant em

que o autor realiza esforços para construir uma racionalidade complexa em que seria possível

passagens entre os contextos de validades distintos e, portanto, dar unidade a razão. Segundo

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Habermas, tal esforço kantiano falha ao se ater somente a aspectos procedimentais da razão,

pois seria necessário considerar o aspecto performativo. Desta forma, uma conceito de razão

complexa puramente formal, ou transcendental, impõe limitações para se pensar a unidade da

razão. Seria necessário pensar a razão de maneira determinada na história. Assim, é possível

compreender como Hegel entende como cisões as diferenciações das esferas culturais em

Kant. Desta maneira, Hegel reconfigura o papel da filosofia como o de reestabelecer a

experiência humana dilacerada, isto é, deve-se resolver as cisões das esferas culturais

fundamentadas por Kant e, assim, conferir novamente uma unidade para tal experiência.

Neste ponto, foi exposto o tratamento dual de Habermas Hegel. Habermas considera Hegel

em duas fases, o jovem Hegel, período em que Hegel aproximou seu pensamento de um

paradigma comunicativo intersubjetivo que hipoteticamente teria potencial para resolver o

problema da unidade da razão e da autocertificação moderna, e o velho Hegel, período em

que Hegel adota o paradigma do espírito absoluto e, segundo Habermas, retrocede à filosofia

da consciência e fechas as portas da filosofia para a problemática da necessidade de

autocertificação moderna. Segundo Habermas, é exatamente este o ponto de inflexão em que

o discurso filosófico moderno segue por um caminho equivocado34, ou seja, desde o velho

Hegel até os dias de hoje, o pensamento filosófico se encontra atado ao paradigma da

filosofia da consciência e, portanto, não encontra recursos para solucionar a problemática da

modernidade e acaba por conduzir o pensamento contemporâneo para posturas pós-modernas

equivocadas.

Após analizar o discurso filosófico moderno que ocorre após o dito ponto de inflexão

Hegeliano, Habermas indica como raiz da problemática moderna a racionalidade calcada no

sujeito preconizada pela filosofia da consciência e aponta sintomas gerais de esgotamento de

tal paradigma.

Habermas entende o fato do sujeito cognoscente ser obrigado a assumir diferentes

registros de pensamento diante do objeto de conhecimento como sintoma de esgotamento da

normatividade proposta pela filosofia da consciência. Tais registros são entendidos pelo autor

como dicotomias irreconciliáveis da razão. Consequentemente, quando o sujeito se vê

obrigado a adotar ora um registro, ora outro, este experimenta uma espécie de duplicação da

consciência, pois o sujeito que pensa com dois registros opostos e irreconciliáveis se percebe

tal como dois sujeitos pensando cada qual um registro.

34 Aqui, tal caminho representa o caminho que Habermas considerou como o “mais influente na academia”, ou “caminhodos vencedores”, ou ainda “main stream”.

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No capítulo XI do DFM, Habermas indica três eixos distintos em que tal duplicação

ocorre, ou por brevidade, três duplicações distintas. São estas: a duplicação entre o eu

transcendental e eu empírico, a duplicação entre o sujeito consciente e o sujeito inconsciente e

a duplicação entre o sujeito autônomo que se autodetermina e o sujeito contingente

determinado pelo mundo. Habermas aponta como estes sintomas se manifestam, quais são as

causas ulteriores a estes, por que as tentativas anteriores falharam e como a TAC endereça e

propõe uma alternativa. Diz o autor:

Uma solução mais sólida delineia-se ao abandonarmos a pressuposição um

tanto sentimentalista da perda do abrigo metafísico e entendermos o vaivém

entre a consideração transcendental e a empírica, entre a auto-reflexão radi-

cal e imemorial inalcançável por meio da reflexão, entre a produtividade de

uma espécie que se gera a si mesma e o originário que precede toda a produ-

ção – se entendermos portanto o jogo enigmático dessas duplicações como

aquilo que realmente é: um sintoma de esgotamento. O que está esgotado é o

paradigma da filosofia da consciência. Se procedermos assim, certamente

devem se dissolver os sintomas de esgotamento na passagem para o paradig-

ma do entendimento recíproco. (HABERMAS, 2000, p. 414)

De certa maneira, tais duplicações da razão apontam como a ideia hegeliana de

harmonia dilacerada permeia o discurso filosófico até os dias atuais, isto é, ainda perdura,

segundo Habermas, a errônea percepção de experiência subjetiva cindida. Segundo

Habermas, esta percepção equivocada esta estritamente associada ao modo reflexivo

monológico de razão.

Pode-se entender como raízes de tais sintomas de esgotamento alguns pontos

levantados na primeira parte deste trabalho. Desta maneira, é possível elencar alguns

requisitos que um paradigma alternativo hipotético deveria cumprir para ser considerado

suficientemente adequado.

O primeiro requisito, se o raciocínio desenvolvido até aqui estiver correto, seria que

o paradigma alternativo deve possibilitar passagens intermodais de contexto de validade.

Com Repa, foi exposto na primeira parte deste como Habermas entende que tal possibilidade

de passagens deve necessariamente advir de um conceito complexo de racionalidade que

tenha como fundamento o aspecto performativo e, portanto, não se resuma, tal como proposto

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por Kant, a uma racionalidade transcendental que leva em consideração somente aspectos

procedimentais. Tal requisito, de largada resolveria o fosso existente entre teoria e prática,

resolvendo assim a primeira duplicação.

O segundo requisito que, como exposto mais adiante neste, é intimamente associado

ao primeiro, é que tal paradigma hipotético alternativo deveria, de alguma forma, articular um

conceito de totalidade ética formada historicamente, tal como esboçado pelo jovem Hegel. Tal

totalidade ética serve como pano de fundo não problemático que ao mesmo tempo provê

substrato e substância para a formação e manutenção da consciência individual e coletiva.

Esta conceito de totalidade ética, portanto, oferece o fundamento de tal racionalidade

complexa formada por dois níveis. Um não problemático que, quando perturbado, oferece

situações problemas que, quando equacionadas de maneira intersubjetiva, voltam a compor

tal totalidade, promovendo assim a sua manutenção. Desta forma, tal totalidade ética

resolveria as duas últimas duplicações.

Uma vez que a formação de identidades individuais se dá dentro da dita hipotética

totalidade ética, pode-se entender que o inconsciente como uma parte desta totalidade não

problemática em que, quando perturbações surgem, situações problemas emergem deste para

o consciente e que, quando equalizadas por alguma prática terapêutica racional, estas voltam

a compor tal totalidade não problemática. Desta maneira, remove-se o fosso instransponível

entre o consciente e o inconsciente, dissolvendo-se assim a referida duplicação.

Posto que, para um determinado momento, é dada uma totalidade ética não

problemática e que desta surgem situações problemáticas no referente a autonomia de atores,

estes não necessariamente precisam obliterar, negar ou desprezar tal totalidade, somente

precisam resolver intersubjetivamente as situações problemas que desta emerjam e, portanto,

prover a manutenção de tal totalidade. Somado a isso, dado que os atores em questão são eles

mesmos produtos desta totalidade e, simultaneamente, a reproduzem constantemente,

dissolve-se, portanto, a terceira duplicação, aquela em que o sujeito se vê ao mesmo tempo

como produtor e produto de sua época.

Se possível for encontrar tal paradigma hipotético que preencha os ditos requisitos, a

problemática da autocertificação moderna em si se dissolve, isto é, está não seria mais total,

absoluta e universal, pois teria uma totalidade ética para se apoiar, removendo assim a

necessidade constante de ruptura radical com o passado e eliminado a experiência do tempo

como pressão. Ao mesmo tempo, está proveria contextos legítimos de validade para que as

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esferas sociais se desenvolvam racionalmente sem que as possibilidades de passagens entre

tais contextos sejam bloqueadas, favorecendo o desenvolvimento, a manutenção e a unidade

de tal totalidade ética de maneira a restringir o uso de elementos estratégicos e coercivos,

violentos ou não, suprindo assim o anseio de liberdade moderno.

Desta forma, uma determinação do dito paradigma hipotético teria potencial de

resolver a questão da autocertificação moderna e colocar o projeto de modernidade, ou de

esclarecimento, em curso novamente. É esta exatamente a pretenção de Habermas com a

TAC.

O objetivo desta parte do trabalho é de apresentar como Habermas entende que é

possível um paradigma comunicativo de racionalidade que sirva de alternativa ao referido

paradigma monológico de razão centrada no sujeito. No decorrer da apresentação, esta parte

localiza de que maneira tal paradigma proposto pelo autor cumpriria os dois requisitos inter-

relacionados mencionados anteriormente, ou seja, o de possibilitar as passagens intermodais

entre contextos de validades culturais e prover a possibilidade de uma totalidade ética

intersubjetiva historicamente constituída.

Desta maneira, apesar de que este trabalho corrobora os sintomas de esgotamento da

filosofia da consciência, as ditas duplicações, tal como apontado por Habermas, este segue

critérios diferentes que o autor utiliza no capítulo XI do DFM. O propósito aqui, tal como

apontado na introdução deste, é de apontar como os dois paradigmas de racionalidade, o

monológico da filosofia da consciência e o intersubjetivo de Habermas, se interrelacionam,

isto é, apontar, sob o ponto de vista da filosofia, quais foram exatamente os pontos

problemáticos de contato entre estes dois paradigmas que foram, de alguma maneira,

retrabalhados por Habermas. Para tanto, com Repa, tem-se novamente elementos

interpretativos importantes a relevar que não ficaram claramente postos originalmente pelo

autor.

Para dar conta do objetivo proposto, esta parte do trabalho foi dividida em três

seções.

A primeira visa evidenciar como Habermas entende a racionalidade comunicativa

como não apenas uma alternativa ao conceito de razão instrumental ou ações estratégicas de

maneira geral, mas de servir como base para que ações finalistas possam ser discutidas e

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defendidas intersubjetivamente, isto é, é possível, dentro de um paradigma orientado ao

entendimento, viabilizar pretenções de validades de planos de ações finalistas individuais.

A segunda mostra como tal conceito de racionalidade orientada ao entendimento

intersubjetivo acomoda não somente as pretensões associadas a ações estratégicas, mas

também a pretensões de reconhecimento intersubjetivo de validade oriundas de ações

referentes a todas as demais esferas culturais, isto é, as esferas estético-expressiva e ético-

moral.

A última expõe como Habermas pretende, através da sua teoria de argumentação e

do agir comunicativo como um todo, criar as condições de possibilidade para que a

racionalidade comunicativa cumpra as exigências de não coerção.

Assim como já dito, as análises de como tal projeto de racionalidade habermasiano

se encaixaria no protótipo hipotético de paradigma alternativo mencionado anteriormente

entremeará o desenvolvimento desta parte como um todo.

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2.1 Razão instrumental e razão comunicativa

Na abertura deste, foi exposto como Habermas entende que as despedidas pós-

modernas, tanto a neoconservadora quanto a anarquista, se distanciam do projeto moderno de

esclarecimento, considerando-o ora como acabado ora como falacioso, e por isso seriam

suspeitas de “simplesmente encobrir com o pós-esclarecimento sua cumplicidade com uma

venerável tradição de contra-esclarecimento” (HABERMAS, 2000, p. 8). Uma vez que, para

Habermas, o conceito equivocado de razão instrumental unilateral conduz a tais posturas

aporéticas e que este pode ser evitado, o autor entende que o projeto de ilustração da

modernidade permanece em aberto e deve ser reconstruído, com Repa:

Esse projeto se mostrou inacabado, já que a configuração racional das rela-

ções de vida significa a busca não somente do domínio técnico da natureza

[através da razão teleológica], mas também da emancipação de formas de

vida, o que se tornou duvidoso com o desenvolvimento da modernização

capitalista” (REPA, 2000, p. 138).

De fato, na TAC, o autor traz como modelo o projeto de ilustração de Condorcet,

pois este, tal como a teoria de racionalização weberiana, “pensaria o projeto do iluminismo

como processo histórico de racionalização” (REPA, 2000, p. 40). Entre as características

emancipatórias defendidas por Condorcet, Habermas ressalta:

O Estado pode e deve ser reorganizado segundo a razão, ao se eliminarem os

preconceitos que garantem a sustentação de um poder em última instância

ilegítimo e à medida que ele assumir a forma de uma república, no contexto

de uma organização internacional que assegure a paz perpétua e de uma

sociedade que garanta o desenvolvimento econômico, o progresso técnico e

a eliminação (ou pelo menos a compensação) das desigualdades sociais e

das desigualdades de direitos entre os sexos. E a ciência pode influir para

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isso por meio da opinião pública esclarecida. O progresso científico também

garantiria o progresso moral do homem, pressupondo-se que problemas

normativos são derivados também de preconceitos sobre a natureza e a

ordem social, e a felicidade humana, já que a vida poderia ficar cada vez

mais livre da miséria, das doenças e mesmo ser prolongada indefinidamente.

(REPA, 2000, p. 40)

Portanto, Habermas questiona fortemente se de fato deve-se abrir mão de tais

pretensões admitindo-se o fracasso do projeto iluminista de modernidade ou se, por outro

lado, este projeto iluminista de desenvolvimento histórico por via racional pode e deve ser

reconstruído sobre uma nova base teórica que permita, através da liberação de potenciais

cognitivos latentes de uma razão complexa, conduzir a diferenciação das esferas culturais,

produzindo ganho cultural, sem entretanto no processo perder o poder unitivo tradicional

favorecendo o predomínio da razão instrumental e desta forma enredar em um

empobrecimento cultural.

Na última sessão da primeira parte deste, foi dito que Habermas entende que, para

conceituar tal razão complexa que permita passagens intra-modais e garantir o poder unitivo

desta, não é suficiente trabalhá-la somente sob os seus aspectos procedurais, tal como Kant o

fez, mas deve-se sustentar tais passagens baseando-se em seus aspectos performativos, ou

seja, deve-se sustentar tal racionalidade complexa sobre uma teoria da ação. Desta maneira,

um bom ponto de partida para o entendimento da racionalidade comunicativa seria introduzir

o conceito de ação comunicativa.

A primeira vista entranho à filosofia, Habermas traz o conceito de ação emprestado

da sociologia, pois o autor sugere uma espécie de acoplamento entre a sociologia e a filosofia

através da teoria da ação. Tal acoplamento por um lado se faz necessário à sociologia, pois

“ela jamais pôde afastar de si as questões da racionalização, não pôde redefini-las nem

restringi-las a formatos reduzidos, como fizeram outras disciplinas” (HABERMAS, 2012b, p.

26), por outro lado este também se faz necessário à filosofia caso esta queira sustentar o

conceito de racionalidade complexa sem as limitações impostas pela filosofia da consciência.

Como dito da primeira sessão da parte anterior, Habermas toma como exemplar a

teoria de ação weberiana para ilustrar o problema da razão instrumental unilateral. Para

Habermas, “Weber parte de um modelo teleológico da ação e determina o ‘sentido subjetivo’

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como uma intenção (pré-comunicativa) da ação. Quem age parte de interesses próprios como

a conquista de poder ou a obtenção de riqueza [...]” (HABERMAS, 2012b, p. 487). Grosso

modo35, pode-se extrair dai dois aspectos: Weber concebe uma teoria da ação em que atores

se orientam teleologicamente ao êxito, pois pretendem por meio de suas ações realizar suas

intenções subjetivas; e ao entender que a intenção da ação, ou pretensão do ator, não é

acessível publicamente, pois tem sentido subjetivo, Weber fecha a possibilidade de se

conceber ações orientadas teleologicamente ao entendimento. Desta forma, dado que os

atores orientam suas ações ao êxito e suas motivações não estão à disposição publicamente,

Weber de largada fica atado ao conceito de razão instrumental unilateral.

Com o intuito de sanar tal limitação da teoria da ação weberiana, Habermas concebe

uma teoria da ação, denominada ação comunicativa, que, contrariamente à versão weberiana,

defende a possibilidade de acesso público à intenção de uma ação determinada através das

exteriorizações simbólicas do seu ator. Desta maneira, tal teoria permite que tal ator ofereça a

seus pares a oportunidade para que aprovem ou critiquem tais ações, ou seja, permite que

atores orientem suas ações, em primeiro lugar, para o entendimento mútuo. Diz Habermas:

Se não pudéssemos referir-nos ao modelo da fala, não teríamos condições de

analisar, nem preliminarmente, o que significa o entendimento de dois sujei-

tos. É como télos que o entendimento faz parte da linguagem humana. E,

embora linguagem e entendimento não se relacionam entre si como meio e

fim, só podemos explicar os conceitos de fala e entendimento se indicamos o

que significa empregar sentenças sob uma intenção comunicativa. (HABER-

MAS, 2012b, p. 499)

Para tanto, Habermas utiliza o concento de ato de fala concebido por Austin. O ato

de fala é composto de um elemento ilocucionário36, isto é, elemento que declara a intenção,

35 Em (HABERMAS, 2012b), na “Primeira consideração intermediária: agir social, atividade teleológica e comunicação”,Habermas expõe minuciosamente a sua teoria da ação frente a teoria weberiana.

36 “É sabido que Austin distingue atos locucionários, ilocucionários e perlocucionários. Locucionário ele denomina o teorde sentenças enunciativas ('P') ou de sentenças enunciativas nominalizadas ('que p'). Com atos locucionários o falanteexpressa estados de coisas; diz algo. Com atos ilocucionários o falante executa uma ação ao dizer algo. O papelilocucionário fixa o modus de uma sentença ('M p') empregada como asserção, promessa, comando, confissão etc. [...]Com atos perlocucionários, enfim, o falante almeja desencadear um efeito no ouvinte. Ao executar uma ação de fala,realiza algo no mundo. Os três atos que Austin distingue podem ser caracterizados, portanto com as seguintes palavras-chaves: dizer algo; agir enquanto se diz algo; realizar algo por meio de se estar agindo enquanto se diz algo.”(HABERMAS, 2012b, p. 501)

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ou pretensão37 do autor (em última análise: verdade, êxito, adequação e veridicidade)38, e de

um elemento locucionário, ou seja, o que carrega o sentido, ou teor enunciativo propriamente

dito. Desta maneira, tem-se em um ato de fala desta natureza uma estrutura linguística auto-

referente que carrega uma intenção e um sentido, isto é, uma estrutura comunicativa

pragmático-formal. Tal característica ilocucionária dos atos de fala constitui a base de teoria

da ação comunicativa de Habermas e permeia todos os seus aspectos.

A esta altura, é possível ao leitor atento questionar: A teoria de ação comunicativa

não seria uma redução das ações fatuais, aquelas em que os atores de fato produzem

imediatamente efeitos no mundo, a ações comunicativas, ações mediadas pela linguagem em

que atores sustentam pretensões de validade dentro de uma comunidade de ouvintes, e que,

portanto, seria uma teoria que restringe arbitrariamente o domínio que uma teoria da ação

deveria assumir?

Ora, olhando de uma perspectiva racional, isto é, supondo que atores se orientem

racionalmente ao produzirem seus efeitos no mundo, é razoável admitir: que o ator se baseia

em um certo saber prático, ou um know-how, para orientar suas ações; que este saber útil ou é

adquirido culturalmente ou é fruto de um aprendizado; e que, portanto, tal saber é

concretizado e transferido através da linguagem. Isto posto, é legítimo afirmar que ações

factuais, em última análise, são subsumidas a, ou legitimadas por, ações comunicativas.

Obviamente, subentende-se nesta perspectiva racional uma disposição de todos os

atores de uma comunidade em resolver suas diferenças sempre de maneira consensual e,

portanto, abdicarem de recursos estratégicos ou coercivos, violentos ou não. Bem como,

ficam de fora ações instintivas ou intuitivas. Como estas questões são consideradas na teoria

da ação comunicativa de Habermas serão tratadas mais adiante.

Posta a necessidade de uma teoria da ação e exposta a maneira que esta é concebida

como ação comunicativa por Habermas, é possível compreender o motivo pelo qual

Habermas trata o saber por um viés claramente pragmático. Em sua introdução ao conceito de

racionalidade comunicativa no início da TAC, diz o autor:

37 A noção de pretensão, introduzida no lugar de modus de uma sentença, tal como dito por Austin, é conceituada porHabermas e resolve uma série de problemas da forma original dos atos de fala. Vide (HABERMAS, 2012b, p. 503–520).

38 As diferentes forma básicas de pretensão serão expostas na próxima sessão.

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A estrutura de nosso saber é proposicional: opiniões podem ser repre-

sentadas explicitamente sob a forma de enunciados. Pretendo assumir

como pressuposto esse conceito de saber, sem maiores explicações,

pois racionalidade tem menos a ver com a posse do conhecimento do

que com a maneira pela qual os sujeitos capazes de falar e agir adqui-

rem e empregam o saber. (HABERMAS, 2012b, p. 31)

Ora, se o saber é um saber acessível para uso fruto de membros de uma determinada

comunidade, deve-se assumir que tal saber esteja estruturado simbolicamente em uma

linguagem que tais membros dominem, isto é, para que este seja de público acesso, este deve

ser proposicional. Tal cabedal de saber público e, portanto, proposicional obviamente não

surge de maneira espontânea, deve sim ser gerado ou adquirido historicamente pela própria

comunidade que dele se serve.

Assim, através de tal perspectiva, o saber que se afirma como objetivo, ou seja, o

saber que sustenta que um determinado estado do mundo é verdadeiro ou que uma

determinada ação no mundo é eficaz, é concretizado proposicionalmente de forma coletiva

através de atos de fala39. Nestes, Habermas afirma que os atores expressam em suas

exteriorizações as pretensões correspondentes, isto é, a pretensão de verdade e a pretensão de

eficácia40 (HABERMAS, 2012b, p. 32). Tais pretensões podem ser fundamentadas e

criticadas, portanto, os atores, ao exteriorizar tais pretensões publicamente, devem estar

preparados para fundamentá-las se assim for exigido pelos demais participantes. Para tanto,

deve ser possível a todos mensurar a racionalidade contidas em tais exteriorizações. Diz o

autor:

A racionalidade de suas exteriorizações pode ser mensurada pelas

relações internas entre o teor de significado, as condições de validade

e as razões que necessariamente precisam ser acrescentadas, seja em

prol de sua validade, da verdade do enunciado ou da eficácia da regra

de ação. (HABERMAS, 2012b, p. 33–34)

39 No caso do saber objetivo, dada a sua natureza, o componente ilocucionário dos respectivos atos de fala pode serinferido implicitamente, pois sabe-se de antemão que as pretensões de êxito e verdade estão subentendias e que, emúltima análise, a pretensão de êxito pode ser reduzida à da verdade.

40 Até este ponto, considera-se somente o saber objetivo, isto é, o saber que orientam ações práticas e, portanto, orientadoapenas às pretensões de êxito e eficácia. Existem, para Habermas, outras pretensões que os atores podem assumir e,consequentemente, saberes de outras naturezas. Tal conceito expandido de saber é tratado na próxima seção.

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Posto desta maneira, Habermas pretende sustentar que um determinado julgamento

se torna objetivo se e somente se puder obter o assentimento de todos os participantes de uma

comunidade de agentes comunicativos. Desta forma, no contexto de um processo de

entendimento intersubjetivo, é pressuposto de um sujeito racional a capacidade de

fundamentar suas exteriorizações mediante a atos de fala utilizando-se de critérios racionais

de validade aceitos por tal comunidade comunicativa, assim como também se tem como

pressuposto de tal sujeito a disposição de se submeter a críticas que eventualmente possam

surgir espontaneamente no decorrer de tal processo. Desta forma, é possível afirmar que é

julgamento objetivo aquele que é obtido consensualmente como resultado de tal processo de

entendimento e que tal julgamento consiste, portanto, em uma concretização de um saber

falível, posto que, mesmo obtendo o assentimento de todos em um determinado momento,

este sempre estará sujeito a futuras críticas que eventualmente possam surgir e invalidar suas

fundamentações. Assim, o processo de entendimento, visto de uma maneira mais ampla, é

sempre um processo em aberto, isto é, sempre manterá um estado de “work on progress” e o

conhecimento por este produzido deverá sempre estar sujeito a críticas e, portanto, mantido

em caráter provisório. A esse respeito, afirma Habermas:

A exteriorização cumpre os pressupostos de racionalidade à medida que

concretiza o saber falível: com isso, ela faz referência ao mundo objetivo, ou

seja, mantém relação com os fatos e permanece acessível a um julgamento

objetivo. Um julgamento pode ser objetivo quando emitido com base numa

pretensão transubjetiva de validade que tenha o mesmo significado para

quaisquer observadores e destinatários, assim como ao próprio sujeito que

age. (HABERMAS, 2012b, p. 34)

Racional, portanto, pode ser predicado do sujeito capaz de, em um processo de

entendimento, sustentar suas pretensões através de razões, como também pode ser predicado

das exteriorizações simbólicas proferidas por tal sujeito. Racionalidade por sua vez pode ser

tanto uma faculdade do sujeito racional, quanto um atributo de suas exteriorizações

(HABERMAS, 2012b, p. 32). Neste segundo sentido, a racionalidade representa parâmetro de

medida do quanto racional é tal exteriorização, isto é, em que grau tal exteriorização

apresenta, na forma de argumentos válidos, razões. Desta maneira, a racionalidade de uma

exteriorização carrega em si um sentido crítico, isto é, representa uma maneira de, ou

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apresenta critérios para distinguir o que é racional do que não é. É neste sentido que podemos

entender as diferenças entre as racionalidades cognitivo instrumental e a comunicativa, ou

seja, deve-se entender como e porquê estas se diferenciam quanto a seus critérios, ou

parâmetros críticos, para distinguir o que é racional do que não é.

Segundo Habermas, a racionalidade cognitivo instrumental tem forte cunho empírico

e diz respeito a como um determinado ator se adapta frente a um meio contingente, diz o

autor:

Ele [o empirismo] traz consigo conotações de uma autoafirmação

exitosa, que se vê possibilitada pela adaptação inteligente às condi-

ções de um meio contingente e pela disposição informada dessas

mesmas condições. (HABERMAS, 2012b, p. 35)

Já a racionalidade comunicativa, defendida por Habermas, diz respeito a uma

disposição espontânea de atores comunicativos para alcançar um consenso, isto é, uma

disposição que favorece a transformação de opiniões inicialmente subjetivas em

conhecimento objetivo mediante a fala argumentativa. Diz o autor:

Esse conceito de racionalidade comunicativa traz consigo conotações

que, no fundo, retrocedem à experiência central dada força espontane-

amente unitiva e geradora de consenso própria à fala argumentativa,

em que diversos participantes superam suas concepções inicialmente

subjetivas para então, graças à concordância de convicções racional-

mente motivadas, assegurar-se ao mesmo tempo da unidade do mundo

objetivo e da intersubjetividade de seu contexto vital. (HABERMAS,

2012b, p. 36)

O que Habermas quer evidenciar com esta diferenciação é que, uma vez que as

posições referem-se a diferentes formas de emprego de um determinado saber, estas se

distinguem independentemente do saber em si. Portanto, é possível inclusive que um mesmo

determinado saber estruturado proposicionalmente possa ser empregado de distintas

maneiras, isto é, tanto de maneira instrumental quanto de maneira comunicativa. Desta forma,

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o que está em questão aqui não é o conteúdo do saber propriamente dito, mas sim como este é

utilizado. Diz o autor:

Suponhamos que a opinião “p” represente o mesmo cabedal de saber de que

[um sujeito] A e [outro sujeito] B dispõem. Ora, A (que é um entre muitos

falantes) participa de uma comunicação e propõe a asserção “p”, ao passo

que B, como ator (solitário), escolhe os meios que ele, em virtude da opinião

“p”, considera apropriados numa dada situação para alcançar um efeito dese-

jado. A e B empregam o mesmo saber de forma diversa. [...] As duas tentati-

vas podem fracassar – o consenso almejado pode não ser alcançado, e o

efeito esperado pode não acontecer. (HABERMAS, 2012b, p. 36–37)

Posto desta forma, a distinção entre as duas maneiras de utilizar a racionalidade se

determinam através da intenção do ator, isto é, da finalidade almejada de uma ação no mundo.

Tal distinção se configura, portanto, como de natureza teleológica. Entretanto, Habermas

entende que, para tanto, os atores adotam uma postura epistemológica respectiva à disposição

teleológica assumida. Segundo este raciocínio, Habermas pretende sustentar que os atores que

agem visando uma disposição instrumental tradicionalmente o fazem adotando uma posição

epistemológica “realista”, pois estes “assumem como ponto de partida o pressuposto

ontológico do mundo como quintessência do que o caso é.” (HABERMAS, 2012b, p. 38), já

os atores que agem em vista de um possível entendimento comunicativo o fazem adotando

uma posição epistemológica “fenomenológica”, pois esta posição “impõe uma reviravolta

transcendental; ela reflete sobre a circunstância de que os que se comportam racionalmente

têm de pressupor, eles mesmos, um mundo objetivo.” (HABERMAS, 2012b, p. 38).

Para melhor entendimento da posição realista é oportuno um breve excurso sobre o

respectivo paradigma epistemológico, primeiro da modernidade, que é o da epistemologia

representativa cartesiana. Em suas meditações metafísicas, após a dúvida hiperbólica,

Descartes indica a sua primeira certeza, o famoso “cogito ergo sum”41. Desta maneira,

inaugura a filosofia da consciência e confere estatuto ontológico a substância pensante,

colocando o sujeito refletido do centro, isto é, funda o paradigma monológico de razão

centrada no sujeito. Neste, monologicamente, o sujeito cognoscente conhece o mundo através

de ideias que correspondem às coisas contidas neste, isto é, o significado de uma ideia é dado

41 Penso, logo existo.

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imediatamente pelo objeto que esta representa. Portanto, o sujeito é portador de um saber, ou

seja, ele detém um conjunto de ideias inatas que por correspondência representa e dá acesso

racional a um conjunto de coisas no mundo objetivo. Desta maneira, o saber cartesiano é algo

que o sujeito porta, detém ou possui e que lhe permite acesso ao mundo objetivo por

correspondência.

Outra característica importante do paradigma epistemológico cartesiano é de que este

é suportado por princípios universais. Este adota como critérios racionais as características

primárias das ideias, isto é, o sujeito cognoscente pode confiar apenas nas propriedades

matemáticas e físicas capturadas das coisas no mundo na forma de ideias. As demais

características dos objetos, ou as ditas características secundárias, são consideradas como não

apreensíveis pela razão e, apesar de serem inegáveis, não fornecem parâmetros racionais

confiáveis o suficiente, sob o ponto de vista deste paradigma, para sustentar ideias

verdadeiras universalmente. Desta forma a epistemologia cartesiana opera com a noção de

verdades universais, isto é, de ideias que, independentemente de contextos passíveis de serem

utilizadas, possuem valor de verdade assegurado racionalmente por leis universais da física e

da matemática. Portanto, pode-se afirmar que o posicionamento epistemológico cartesiano

promove uma dissociação tanto da ideia, quanto do objeto que esta se refere, de um contexto

prático, utilitário ou instrumental em que esta possa ser utilizada através de ações finalistas do

sujeito cognoscente. Assim, tal posicionamento carrega a pretensão de produzir um saber

livre, puro, desinteressado e descontaminado de qualquer influência de ordem prática, isto é,

sustenta a pretensão de objetividade promovendo uma desvinculação entre o saber e qualquer

intenção ou ato prático.

Neste ponto, é importante enfatizar as características do paradigma epistemológico

cartesiano que são especialmente relevantes para esta argumentação: a de que o saber é

entendido primordialmente como posse de uma coleção de ideias verdadeiras e universais; a

de que tal coleção pode ser apreendida por um sujeito cognoscente de forma monológica,

imediata e autônoma; a de que o sujeito cognoscente se vale de princípios universais para

fundamentar tais ideias; e por fim o fato que tal posicionamento epistemológico sustenta uma

pretensão de autonomia e desinteresse por assuntos de cunho prático.

Apesar empreender esforços em desubstancializar o sujeito cartesiano, Kant não

livra a razão da perspectiva ontológica de mundo, isto é, entendendo que, ao invés de ter

acesso imediado ao mundo, o sujeito enxerga, ou enforma, o mundo mediado a priori através

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das intuições puras da consciência e dos conceitos puros do entendimento, a possibilidade de

conhecimento de mundo é dada pelo sujeito e esta é limitada ao fenômeno. Desta forma, o

mundo ontológico cartesiano que ainda vigora é encoberto pela cortina intangível da coisa em

si e a filosofia da consciência continua refletida e monológica, só que agora transcendental,

mantendo o fosso intransponível entre o conhecimento teórico e ações práticas. Finalizado o

breve excurso.

Para evidenciar quais os parâmetros racionais que os realistas adotam para sustentar

que um determinado ato é racional ou não, Habermas sustenta que para mensurar ou criticar

uma determinada ação finalista, um ator realista “pode se limitar a analisar as condições a

serem cumpridas pelo sujeito agente para que ele possa estabelecer objetivos e realizá-los”

(HABERMAS, 2012b, p. 38). Como exemplo dos critérios adotados na racionalidade

cognitivo instrumental, Habermas sugere que se leve em consideração uma série de condições

que Max Black entende como necessárias para que uma ação finalista possa ser considera

como racional. São estas42:

1. Somente ações sob controle, atual ou potencial, do agente podem ser apreciadas

criticamente...

2. Apenas ações voltadas para alguma finalidade podem ser racionais ou não...

3. Apreciamento crítico é voltado ao agente de ação finalista escolhida ...

4. Julgamento de racionalidade são somente apropriados quando existe um

conhecimento parcial sobre a disposição e eficácia dos meios ...

5. Julgamento crítico sempre poderá ser suportado por razões.

Vista desta maneira, a racionalidade instrumental refere-se a quanto uma proposição

a respeito de estados no mundo objetiva é verdadeira ou quanto uma ação é eficaz, mas a

razão centrada no sujeito não permite, a aquele que dela faz uso, estabelecer o vínculo de um

determinado estado hipoteticamente verdadeiro com o estado efetivo de um ente determinado,

42 Originalmente em inglês em (Max Blanck apud. HABERMAS, 2012b, p. 38), tradução nossa.

1. Only actions under actual or potential control by the agent are suitable for dianoetic appraisal...

2. Only actions directed towards some end-in-view can be reasonable or unreasonable...

3. Dianoetic appraisal is relative to the agent and to his choice of end-in-view

4. Judgments of reasonableness are appropriate only where there is partial knowledge about the availability andefficacy of the means...

5. Dianoetic appraisal can always be supported by reasons.

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tampouco permite vincular uma determinada regra universal, ou um plano de ação, a uma

circunstância factual determinada. Tal razão permite apenas teorizar sobre sistemas

hipotéticos e fechados que tem como motor princípios mecânicos ou orgânicos. Pretende-se

assim manter as condições de objetividade desejadas, entretanto, analisando este

posicionamento sob a ótica da racionalidade comunicativa, esta visão de racionalidade falha a

não permitir que o sujeito da ação possa ele mesmo fundamentar suas ações, pois, tal

racionalidade não o permite vincular um determinado saber teórico a uma ação prática. Desta

maneira, a deliberação sobre a finalidade da ação é sempre dada arbitrariamente, isto é, dada

uma determinada finalidade de antemão, usa-se a razão para se criticar qual, hipoteticamente,

é a melhor teoria a aplicar. Diz Habermas a esse respeito:

Contudo, nesses casos [em que a racionalidade se refere somente a

estado no mundo ou a comportamentos incitados por estímulos], só se

pode falar de racionalidade em sentido metafórico. Pois a capacidade

de fundamentação exigida para proceder a exteriorizações racionais

significa que o sujeito ao qual elas podem ser atribuídas deve, ele

mesmo, ter condições de apresentar fundamentos, sob circunstâncias

apropriadas. (HABERMAS, 2012b, p. 39)

Em contrapartida, segundo Habermas, a posição fenomenológica tem como ponto

central a questão sobre quais são as condições de possibilidade de se obter uma visão objetiva

de mundo que possa ser partilhada coletivamente. Desta maneira, a pressuposição ontológica

de um mundo objetivo torna-se problemática, diz o autor:

Pois ele [o fenomenólogo] não se serve irrestritamente desse fio condutor

das ações orientadas para um fim ou destinadas a solucionar problemas. Pois

ele não parte simplesmente do pressuposto ontológico de um mundo objeti-

vo, mas faz deste último um problema, ao se perguntar pelas condições sob

as quais se constitui a unidade de um mundo objetivo para os integrantes de

uma comunidade de comunicação. O mundo só conquista objetividade ao

tornar-se válido enquanto mundo único para uma comunidade de sujeitos

capazes de agir e utilizar a linguagem. (HABERMAS, 2012b, p. 40)

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Pode-se entender, portanto, que o mundo objetivo fenomenológico é uma visão de

mundo acordada como válida por uma comunidade de agentes comunicativos. Ora, visto que

qualquer saber proposicional construído intersubjetivamente tem como pressuposto ser a

concretização de um saber falível, a visão fenomenológica de mundo objetivo é sempre

provisória, isto é, esta está sempre sujeita a uma crítica que possa surgir e colocá-la como

problema novamente, seja pela expansão do espaço público racional, ou seja, pelo

amadurecimento histórico do mesmo. Isto posto, tal visão fenomenológica de mundo objetivo

só pode ser de natureza abstrata. Diz o autor:

O conceito abstrato de mundo é condição necessária para que os sujeitos que

agem comunicativamente possam chegar a um entendimento mútuo sobre o

que acontece no mundo ou sobre o que se deve fazer nele. Com essa prática

comunicativa, eles ao mesmo tempo se asseguram do contexto vital que têm

em comum, isto é, de seu mundo da vida intersubjetivamente partilhado.

(HABERMAS, 2012b, p. 40)

Percebe-se que surge na argumentação a primeira noção provisória do conceito de

mundo da vida, a de um contexto vital partilhado coletivamente. Neste ponto, para que se

entenda melhor qual é o papel de tal contexto vital subjacente dentro de uma interação

comunicativa orientada ao consenso, Habermas sugere que se analise o que Melvin Pollner

fez sobre o que A. Schütz nomeia como “raciocínio mundano”:

Para que uma [determinada] comunidade se oriente para o mundo como

essencialmente constante, [isto é,] como um que é conhecido [por um] e

cognoscível em comum por outros, esta [comunidade] deve dispor de funda-

mentos seguros para formular questões de um tipo particular cujo o protóti-

po representativo é: ”Como assim, ele vê [algo no mundo] e você não?”43

(M. Pollner apud HABERMAS, 2012b, p. 40)

Entretanto, Habermas pretende sustentar que o mundo da vida, contrariamente ao

saber objetivo posto de forma descritiva proposicionalmente, não é falseável, pois deve

43 Tradução nossa do original:

“That a community orients itself to the world as essentially constant, as one which is known and knowable in commonwith others, provides that community with the warrantable grounds for asking questions of a particular sort of which aprototypical representative is: 'How come, he sees it and you do not?'”

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permanecer como pano de fundo não problemático no qual o processo de entendimento

intersubjetivo sub-existe. Habermas diz que, ainda segundo M. Pollner:

A idéia de um mundo em comum compartilhado (Lebenswelt) não funciona

para o raciocínio mundano como uma asserção descritiva. Ele não é falseá-

vel. Ao invés disso, ele funciona como uma incorrigível especificação de

relações que existem a princípio entre uma comunidade de “percebedores”

que experienciam o que é suposto ser um mesmo mundo (objektive Welt) ...

A grosso modo, a unanimidade antecipada da experiência (...) pressupõe

uma comunidade de pessoas que se consideram observando um mesmo

mundo, que são psiquicamente constituídos de forma a ser capaz de uma

experiência verídica, que são motivados a falar “verdadeiramente” sobre

suas experiências e que falam de acordo com esquemas de expressão reco-

nhecíveis e compartilhados. 44 (POLLNER apud HABERMAS, 2012b, p.

41)

Neste pano de fundo cultural não problemático constitui o que pode-se

provisoriamente denominar como totalidade ética. Quando ocorrem perturbações neste, um

recorte problemático deste emerge para o plano comunicativo em que dentro de um processo

de entendimento é equalizado e o produto deste processo recompõe uma determinada situação

no mundo da vida, reproduzindo e reformando o contexto não problemático. Assim, a ação

comunicativa propriamente dita já nasce com uma pretensão de resolver uma situação

problemática acessível a todos que neste mundo atuam, de maneira que o ator que sustenta tal

pretensão está perfeitamente apto a sustentá-la sob o ponto de vista prático e os ouvintes,

enquanto cohabitantes de tal mundo, também se encontram aptos a compreender a situação

problemática, a pretensão do ator e a eventualmente criticá-la.

O mundo da vida, aqui foi denominado provisoriamente como totalidade ética para

fazer referência ao conceito similar sustentado pelo jovem Hegel, resgatado por Habermas e

exposto brevemente na parte anterior. Desta forma, tal conceito é reabilitado.

44 Tradução nossa de:

The assumption of a commonly shared world (Lebenswelt) does not function for mundane reasoners as adescriptive assertion. It is not falsifiable. Rather, it functions as an incorrigible specification of the relations which existin principle among a community of perceivers' experiences of what is purported to be the same world (objektive Welt)...In very gross terms, the anticipated unanimity of experience (or, at least of accounts of those experiences) presupposesa community of others who are deemed to be observing the same world, who are psychically constituted so as to becapable of veridical experience, who are motivated so as to speak 'truthfully' of their experience, and who speakaccording to recognizable, shared schemes of expression.

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Neste ponto, o conceito de mundo da vida é introduzido no intuito de ilustrar a

perspectiva fenomenológica frente a ontológica e evidenciar como a segunda resolve as

limitações impostas pela primeira. Tal conceito também é central na teoria do agir

comunicativo de Habermas e será retomado novamente adiante.

Apesar de apontar diferenciações importantes como o intuito de evidenciar a

distinção entre as posições realista e fenomenológica, Habermas indica que existe uma

relação interna entre estas. O autor pretende sustentar que a racionalidade cognitiva

instrumental pode valer-se do mesmo enfoque que a posição fenomenológica adota e que,

portanto tal racionalidade instrumental ocorreria dentro do contexto da ação comunicativa.

Diz Habermas a respeito:

Pois há relações internas entre a capacidade de percepção descentrada e a

manipulação de coisas e acontecimentos, por um lado, e a capacidade de

entendimento intersubjetivo sobre coisas e acontecimentos, por outro. É por

isso que J. Piaget opta pelo modelo combinado de cooperação social segun-

do o qual diversos sujeitos coordenam suas intervenções no mundo objetivo

por meio da ação comunicativa. (HABERMAS, 2012b, p. 42)

Ora, é perfeitamente aceitável que atores comunicativos sustentem suas pretensões

de verdade e êxito. Desde que o façam visando em primeiro lugar o entendimento

intersubjetivo, não há nenhuma objeção. Desta maneira, pode-se entender que a racionalidade

cognitiva instrumental é melhor explicada como um caso especial da racionalidade

comunicativa, isto é, pode ser entendida dentro de um contexto fenomenológico onde atores

comunicativos cooperam entre si com a finalidade de produzir intervenções no mundo.

Portanto, em ações finalistas, o estado atual do mundo e quais ações são as mais eficazes e

eficientes para que se alcance um estado pretendido são objetos de debate dentro de um

contexto comunicativo e que a objetividade a respeito é obtida, sempre de maneira provisória,

pelo consenso obtido intersubjetivamente por meio da ação comunicativa.

Habermas afirma ainda que tentativas de dissociação entre a racionalidade cognitiva

instrumental e a racionalidade comunicativa tipicamente produzem diferenciações artificiais a

exemplo das distintas noções de imputabilidade e autonomia (HABERMAS, 2012b, p. 43),

resumidas no quadro abaixo:

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Razão instrumental Razão comunicativa

Parâmetro

crítico

Mensurada através do sucesso de

intervenções orientadas a fins.

Mensurada pelo êxito de processos de

entendimento.

Imputabilidade

Atores podem ser responsabilizados

por suas escolhas quanto as alternativas

de regras de ação e de controle de

condições de entorno.

Atores podem ser responsabilizados sobre

de que maneira orientam suas ações segundo

pretensões de validade intersubjetivamente

reconhecidas.

Autonomia

Refere-se à conquista de

independência em relação ao mundo

circundante e suas contingências.

Refere-se à ampliação do espaço

estratégico para: coordenação não coativa de

ações; e superação consensual de conflitos de

ação.

Desta maneira, Habermas sustenta que: diferentemente da razão cognitiva

instrumental, a razão comunicativa se pauta através de um posicionamento fenomenológico

intersubjetivo; que a razão cognitiva instrumental pode ser melhor explicada como um caso

especial da razão comunicativa; e que tentativas de dissociação da tal relação interna existente

tipicamente conduz a diferenciações artificiais a exemplo das que ocorrem sobre as noções de

imputabilidade e autonomia. Assim, Habermas pretende reposicionar o instrumento crítico

racional moderno para um paradigma intersubjetivo sem abrir mão das pretensões de

autonomia e liberdade do projeto iluminista de esclarecimento racional.

Entretanto, as ações com pretensões finalistas não são o único tipo que pode ocorrer

em um dado contexto comunicativo. Diz Habermas: “[...] a racionalidade de pessoas não se

revela explicitamente apenas na capacidade de alcançar consenso e agir de modo eficiente.”

(HABERMAS, 2012b, p. 43) Também não foi contemplado até a presente exposição de que

maneira Habermas pretende resgatar a reflexividade típica do projeto iluminista de

esclarecimento sem incorrer nos erros da razão centrada no sujeito. Estes são justamente os

objetos de análise da próxima seção deste trabalho.

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2.2 A ampliação do domínio da racionalidade

Assim como exposto na seção anterior, a orientação teleológica de uma

exteriorização tem papel primordial na determinação do paradigma epistemológico adotado

para fundamentá-la.

Também foi evidenciado de que maneira as orientações teleológicas finalista e

consensual, atribuídas às racionalidades instrumental e comunicativa respectivamente,

determinam a adoção dos paradigmas epistemológicos realista e fenomenológico nessa

ordem.

Por último, finalmente foi exposto como a racionalidade instrumental pode ser

entendida como caso especial da racionalidade comunicativa, isto é, foi evidenciado de que

maneira Habermas entende que a racionalidade que visa o consenso comunicativo serve de

contexto para a racionalidade em que as exteriorizações próprias das ações voltadas ao êxito

ou eficácia podem ser fundamentadas e criticadas.

Entretanto, Habermas chama a atenção na TAC (HABERMAS, 2012b, p. 43) para o

fato de que é evidente que existam tipos de ações que possuam orientação teleológica

diferente das vinculadas às pretensões de eficácia e êxito, mas que também apresentam boas

razões, ou que também produzem exteriorizações racionais, isto é, tipos de exteriorizações

que também são passíveis de serem fundamentadas e criticadas por razões. Segundo

Habermas, além das ações finalistas, podem-se observar no mundo ações normativas, auto-

representativas e valorativas.

Segundo Habermas, tal evidência se torna clara quando se nota que existem outros

contextos comunicativos em que sujeitos se comportam de maneira racional, ou seja, em que

sujeitos que são capazes de fundamentar e defender de críticas suas exteriorizações.

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Habermas cita que também se pode predicar como racionais os sujeitos que orientam suas

ações por normas ou simplesmente expressam seus estados interiores. Diz o autor:

Também é assim chamado de racional quem segue uma norma vigente e se

mostra capaz de justificar seu agir em face de um crítico, tratando de expli-

car uma situação dada à luz de expectativas comportamentais legítimas. E é

chamado de racional até mesmo quem exterioriza de maneira sincera um

desejo, um sentimento ou um estado de espírito, que revela um segredo,

admite ter cometido um ato qualquer etc., e então se mostra capaz de dar a

um crítico a certeza dessa vivência revelada, tratando de tirar consequências

práticas disso e comportar-se a partir dali de maneira consistente. (HABER-

MAS, 2012b, p. 44)

Portanto, segundo o autor, ações reguladas por normas e auto-representações

expressivas também são capazes de produzir exteriorizações que dentro de contextos

delimitados são passíveis de serem fundamentadas e submetidas a críticas, ou seja, estas

também estão vinculadas a condições de validade e suprem os pressupostos de

exteriorizações racionais.

Habermas entende que, se para expressões assertivas se pretende fazer emergir um

mundo objetivo a todos os participantes de uma comunidade de atores comunicativos, as

ações orientadas por normas analogamente o fazem para o mundo social e as ações auto-

expressivas para o mundo subjetivo. Entretanto para o presente entendimento é suficiente

entender que existem diferentes atos comunicativos que sustentam diferentes pretensões45.

Diz Habermas:

Nesse ponto, contento-me em mencionar de maneira provisória a existência

de atos comunicativos caracterizados por referências ao mundo diversas das

que caracterizam as exteriorizações constatativas, e vinculados a pretensões

de validade diversas daquelas a que as exteriorizações constatativas se

vinculam. (HABERMAS, 2012b, p. 45)

45 Habermas reserva um capítulo inteiro na TAC para expor a sua Teoria da Ação e outro capítulo para explicar como tais“mundos” emergem do mundo da vida.

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Assim como as ações finalistas, pode-se concluir então que as exteriorizações

produzidas em ações orientadas por normas e em ações auto-representativas, cumprem os

pressupostos de racionalidade já expostos, ou seja, também podem falhar em suas pretensões

e também são passiveis de reconhecimento intersubjetivo.

Para facilitar o entendimento dos diferentes tipos de ação apresentados até este

ponto, segue um quadro resumo em que se pode observar os tipos de ação, que objetos estas

se referem em seus contextos, como estas se diferem quanto às suas pretensões e a aos

contextos que se aplicam.

Ações

Tip

o

Finalistas Normativas Auto-representativas

Refe

ren

cia

a Fatos a Normas a Vivências

Pre

ten

são

de Verdade

(de Eficácia/Êxito)de Correção

de Veracidade

(de Sinceridade)

Mu

nd

o

Objetivo Social Subjetivo

Habermas ainda aponta que existe um quarto tipo de ação, as ações valorativas, que

também podem ser fundamentadas e criticadas e, portanto, também podem ser predicadas

como racionais. Entretanto, ao contrário dos tipos de ações já apresentados, as ações que

produzem exteriorizações valorativas, por se sustentarem através de juízos de valor, não

dispõem de um contexto de validade bem delineado. Diz Habermas:

Elas não são nem simplesmente expressivas, isto é, não dão expressão a um

sentimento ou carência meramente particulares, nem rogam para si uma

obrigatoriedade normativa, ou seja, mantêm-se em conformidade com uma

expectativa de comportamento generalizada. E mesmo assim pode haver

boas razões à disposição de exteriorizações como essas. O desejo de tirar

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férias, a preferência por paisagens de outono, sua recusa ao serviço militar e

o ciúme que ele sente dos colegas: diante de um crítico, o agente pode

encontrar explicações para todas essas coisas, com auxílio de juízos de valor.

(HABERMAS, 2012b, p. 45)

Apesar de tais exteriorizações valorativas não sustentarem pretensões universais, tais

como as exteriorizações normativas, ou particulares, tais como as exteriorizações auto-

expressivas, ainda é possível fazer-se distinção entre o uso racional ou não destas. Como

exemplo, Habermas cita um dado por R. Norman:

Simplesmente querer um pires [cheio] de lama é irracional, pois é necessário

algumas razões adicionais para [justificar] querê-lo. Querer um pires [cheio]

de lama porque alguém quer desfrutar do seu rico aroma de riacho é racio-

nal. [Neste caso,] Não é preciso aguardar por nenhuma razão adicional para

que se desfrute do rico aroma de riacho, [pois] por caracterizar o que se quer

como “desfrutar o rico aroma de riacho” é por si mesmo dar uma razão acei-

tável para querer isto, e portanto este querer é racional.46 (R. NORMAN

apud HABERMAS, 2012b, p. 46)

É possível perceber dado o exemplo que o teor de significado das exteriorizações

valorativas podem variar em grau quanto a sua aceitação racional por uma comunidade

comunicativa, isto é, caso a proposição valorativa “querer desfrutar o rico aroma do riacho”

seja aceita culturalmente por tal comunidade como valorativamente interessante, o argumento

será para tal comunidade racional. Entretanto, se no lugar de tal proposição fosse posto

“querer desfrutar o rico aroma pútrido de matéria em decomposição”, provavelmente tal

exteriorização teria menos sucesso em obter o assentimento de tal comunidade e o argumento

seria considerado por tal comunidade, segundo Habermas, como um argumento

idiossincrático.

Entretanto, Habermas entende que existem exteriorizações de teor de significado

idiossincráticos que podem ter o seu valor para a comunidade e, portanto, não devem ser

46 Tradução livre nossa de:

To want simply a saucer of mud is irrational, because some further reason is needed for wanting it. To want asaucer of mud because one wants to enjoy its rich river-smel is rational. No further reason is needed for waiting to enjoythe rich river-smel, for to characterize what is wanted as 'to enjoy the rich-river-smel' is itself to gie an acceptablereason for wanting it, and therefore this want is rational.

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interpretados simplesmente como irracionais, é o caso de exteriorizações de cunho estético.

Diz o autor:

Em meio a valorações particulares como essas, pode haver algumas que

apresentem caráter inovador. Estas certamente se destacam por apresentar

uma expressão autêntica, por exemplo por meio da forma estética de uma

obra de arte, isto é, de uma forma que instigue os sentidos. [Entretanto exis-

tem] Exteriorizações idiossincráticas, [que] ao contrário, seguem modelos

rígidos; seu teor de significado não se torna acessível por meio da força do

discurso poético ou pela conformação criativa, e ele dispõe tão somente de

um caráter privado. [...] Para essas reações tidas como abjetas, não basta a

força justificante dos valores culturais associados. (HABERMAS, 2012b, p.

46)

Desta maneira, o modo como as exteriorizações valorativas variam quanto a

amplitude de sua aceitação dentro de uma comunidade comunicativa se mostra especialmente

instrutivo para Habermas, pois estas reforçam a ideia de que, para que possa ser predicada

como racional, qualquer exteriorização necessita tão somente em apoiar-se em razões cujo

contexto de validade a que esta se aplica seja compartilhado por uma comunidade

comunicativa. Isto implica que a amplitude de aceitação, ou a pretensão de universalidade, se

torna um requisito secundário, isto é, a questão quanto à universalidade do teor de significado

de uma exteriorização comunicativa qualquer, de maneira geral, se torna meramente uma

questão de escopo de contexto cultural em que esta pode ser aplicada ou utilizada, atores de

exteriorizações com diferentes pretensões as pleiteiam em contextos de diferentes amplitudes.

Assim, para Habermas: “Esses casos-limite [os das ações valorativas tidas como abjetas] só

vem a confirmar que também as parcialidades e suscetibilidades de desejos e sentimentos

expressos em juízos de valor mantêm relação interna com razões e argumentos.”

(HABERMAS, 2012b, p. 47)

Percebe-se que, assim como nas ações finalistas, também nas ações ditas normativas,

auto-expressivas e valorativas os seus atores devem estar preparados para dar a

fundamentação racional destas caso sejam solicitados, assim como também devem estar

dispostos a submeter estas ao escrutínio crítico de uma determinada comunidade

comunicativa. Portanto, da mesma maneira que as ações finalistas, tais ações também operam

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dentro do contexto da Racionalidade Comunicativa, isto é, em última análise, tem sua

orientação teleológica voltada à obtenção do entendimento intersubjetivo. Diz Habermas:

Em resumo, pode-se dizer que as ações reguladas por normas, as auto-repre-

sentações expressivas e as exteriorizações avaliativas servem de comple-

mento às ações de fala constatativas, para que estas se tornem uma prática

comunicativa voltada à conquista, manutenção e renovação do consenso,

ante o pano de fundo do mundo da vida: um consenso baseado no reconheci-

mento intersubjetivo de pretensões de validade criticáveis. A racionalidade

inerente a essa prática revela-se no fato de que um comum acordo que se

pretende alcançar por via comunicativa precisa, ao fim e a cabo, sustentar-se

sobre razões. (HABERMAS, 2012b, p. 47)

Segundo Habermas, é na prática argumentativa que uma comunidade de atores

comunicativos apresentam e contestam pretenções de validade controversas com a finalidade

de alcançar um reconhecimento intersubjetivo a respeito, ou seja, sustentando-se somente por

razões, a prática argumentativa ampara a prática comunicativa provendo a essa o espaço

público racional livre de instrumentos coercivos de maneira que somente a força do melhor

argumento prevaleça. (HABERMAS, 2012b, p. 48)

Habermas define argumentação como um “tipo de discurso em que os participantes

tematizam pretenções de validade controversas e procuram resolvê-las ou criticá-las com

argumentos” (HABERMAS, 2012b, p. 49) e argumento como conjunto “de razões que se

ligam sistematicamente à pretensão de validade de uma exteriorização problemática.”

(HABERMAS, 2012b, p. 49).

Uma vez que, em argumentações, argumentos podem falhar e, portanto, são passíveis

de correção, a argumentação em si representa um medium intersubjetivo reflexivo, ou seja,

possibilita a uma comunidade obter de maneira reflexiva um ganho cognitivo a respeito das

pretensões problemáticas tematizadas. Portanto, a argumentação, através da reflexividade

intersubjetiva inerente, oferece a possibilidade de aprendizagem. Diz Habermas:

Podemos corrigir tentativas malsucedidas quando logramos identificar os

erros que nos tenham passado despercebidos. O conceito de fundamentação

está intimamente ligado ao de aprendizado. Também no caso dos processos

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de aprendizado a argumentação desempenha um papel importante.

(HABERMAS, 2012b, p. 49)

Desta forma, segundo Habermas, a dita racionalidade instrumental de orientação

ontológica é infecunda quanto à produção de conhecimento, pois, dada a sua orientação

finalista, esta se prende exclusivamente a nexos causais e, portanto, não produz as condições

para que os atores aprendam a partir de erros e, consequentemente, não favorece a

aprendizagem ou a obtenção de ganho cultural. (HABERMAS, 2012b, p. 49)

Posto que existem diferentes maneiras de agir comunicativamente, isto é, de produzir

exteriorizações simbólicas que sustente diferentes pretenções de validade intersubjetiva,

existem também diferentes formas de argumentações, ou seja, diferentes meios

intersubjetivamente reflexivos.

Tais formas argumentativas são categorizadas por Habermas em dois grupos:

discursos e críticas. O como estas duas categorias são definidas é objeto da próxima seção

deste trabalho, seção que expõe como Habermas concebe a sua teoria da argumentação. Para

o presente entendimento, o importante é entender quais são estes modos argumentativos e

como cada um destes modos oferecem tal meio intersubjetivo reflexivo e, portanto, favorece a

aprendizagem.

O discurso teórico oferece tal meio às ações finalistas, isto é, aquelas ações

comunicativas que sustentam pretenções de validade controversas a respeito da verdade de

fatos ou da eficácia de planos de ação. Diz Habermas a respeito:

O discurso teórico constitui o medium em que essas experiências negativas

podem ser elaboradas de modo produtivo e, por conseguinte, a forma de

argumentação na qual pretensões de verdade controversas podem ser trans-

formadas em tema. (HABERMAS, 2012b, p. 49)

O discuso prático faz o mesmo com respeito a ações normativas, ou seja, aquelas

que sustentam pretenções de correção a respeito de normas de ações. Com Habermas:

Algo semelhante acontece na esfera prático-moral. Consideramos racional a

pessoa capaz de justificar suas ações perante contextos normativos existen-

tes. E isso vale especialmente para quem age de forma razoável no caso de

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conflitos normativos em contextos da ação, isto é, para quem se esforça não

somente em avaliar o conflito de modo imparcial, sob pontos de vista

morais, mas também em superá-lo de modo consensual, não seguindo

simplesmente seus afetos ou interesses imediatos. (HABERMAS, 2012b, p.

50)

É importante notar que, Habermas, assim como Kant e o jovem Hegel47, empreende

esforço para evitar que ações prático-morais sejam reduzidas a ações cognitivo-instrumentais,

isto é, deve-se evitar que o padrão seletivo da racionalização social moderna48,que favorece

tal tipo de assimilação, obtenha êxito. Diz o autor:

Com certeza, só podemos defender que essa posição tenha perspectivas

promissoras quando evitamos assimilar precipitadamente os discursos práti-

cos (que se caracterizam por uma referência interna às carências interpreta-

das das pessoas atingidas) aos discursos teóricos (que fazem referência às

experiências interpretadas por um observador) (HABERMAS, 2012b, p. 52)

Já na crítica estética, atores comunicativos podem questionar padrões de valores,

sejam estes adquiridos culturalmente ou formados por vivências próprias. Desta forma, a

crítica estética também oferece um meio para que tais autores possam aprender e desenvolver

padrões valorativos mais adequados. Desta maneira, nesta se sustentam pretensões de

adequação e de autenticidade. Diz Habermas:

Denominamos racional uma pessoa que interpreta sua natureza elementar à

luz de padrões valorativos culturalmente apreendidos; mas muito mais quan-

do ela é capaz de assumir uma postura reflexiva diante dos próprios padrões

valorativos que interpretam as carências elementares. [...] No caso prototípi-

co, elas [, as argumentações valorativas,] assumem a forma de crítica estéti-

ca. (HABERMAS, 2012b, p. 52)

47 Vide tópico 1.3 deste.

48 Vide tópico 1.1 deste.

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É na crítica terapêutica que as ações auto-representativas, ou exteriorizações

expressivas, também podem assumir uma postura reflexiva, pois livrar-se de auto-enganos

sem dúvida nenhuma é um ato de aprendizagem, talvez o maior deles. Diz Habermas:

Algo semelhante vale para os argumentos de um psicoterapeuta especializa-

do em treinar um analisando a poder assumir uma postura reflexiva diante

de suas próprias exteriorizações expressivas. Pois também denominamos

racional, e de forma muito acentuada, o comportamento de uma pessoa que

esteja disposta e em condições de se libertar de ilusões, e mais especifica-

mente de ilusões que não se baseiem em erro (acerca de fatos), mas em auto-

engano (acerca de vivências próprias). Isso diz respeito à exteriorizações de

desejos e pendores próprios, sentimentos e estados de espírito que surgem

com a pretensão de veracidade. (HABERMAS, 2012b, p. 54)

Finalmente, caso todas as tentativas de se alcançar um entendimento a respeito de

pretenções de validade controversas falhem, pode-se, como recurso último, elaborar

questionamentos a respeito da linguagem utilizada para sustentar as dadas razões. O que está

em jogo neste caso é a capacidade de compreensibilidade, de representabilidade e de

articulação da própria linguagem utilizada. Trata-se, portanto, de um discurso meta-

linguistico ou, assim como Habermas entende, um discurso explicativo. Da mesma maneira

que nos outros casos de argumentação, o discurso explicativo oferece oportunidade de

desenvolvimento e de melhoramento da linguagem utilizada e, portanto, também é um meio

intersubjetivo reflexivo que favorece a aprendizagem. Diz Habermas:

Denominamos racional uma pessoa que se comporta com disposição positi-

va diante do entendimento e, diante de problemas de comunicação, reage de

modo que reflita sobre as regras da linguagem. [...] O discurso explicativo,

[...], é a forma de argumentação em que a compreensibilidade, a boa formu-

lação ou a regularidade de expressões simbólicas deixa de ser suposta ou

resguardada de maneira ingênua, para tornar-se tema de discussão, como um

apelo acerca de controvérsia.

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Posto como para cada tipo de ação comunicativa, existe um meio adequado para

expressá-la, isto é, existem diferentes modos argumentativos correspondentes, segue o quadro

resumo que Habermas propõe (HABERMAS, 2012b, p. 57):

Grandezas referencias

Exteriorizações problemáticas Pretensões de validade

controversas

Form

as

de a

rgu

men

taçã

o Discurso teórico Cognitivo-instrumentais Verdade de preposições;

eficiência de ações teleológicas

Discurso prático Moral-prática Correção das normas de ação

Crítica estética Avaliativas Adequação de padrões valorativos

Crítica terapêutica Expressivas Veracidade de expressões

Discurso explicativo [Simbólicas] Compreensibilidade ou boa

formulação de construtos simbólicos

Portanto, Habermas mostra na TAC como outros modos de racionalidade com

orientações teleológicas diferentes da racionalidade instrumental podem habitar o contexto

que a racionalidade comunicativa provê.

Fica claro então, a esse ponto do desenvolvimento, como Habermas entende que a

razão comunicativa é capaz de dar conta do aspecto reflexivo da necessidade de

autocertificação moderna tratando-a de maneira intersubjetiva, diferentemente da maneira

monológica tal como preconizado pela racionalidade centrada no sujeito. Também fica

compreendido o esforço do autor em não permitir, ou ao menos desfavorecer, a redução de

ações prático-morais a cognitivo-instrumental.

Aos poucos vai se delineando também de que maneira Habermas pretende tornar tal

necessidade de autocertificação não problemática.

Entretanto, ainda falta entender como a teoria da argumentação de Habermas seria

capaz de garantir tal espaço público racional livre de elementos coercivos, violentos ou não.

Desta maneira, fica por explicar como o autor pretende resolver o outro aspecto problemático

da necessidade de autocertificação, o anseio de liberdade.

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Para tanto, deve-se voltar a atenção a como Habermas propõe a sua teoria da

argumentação. É este o objeto da próxima seção deste trabalho.

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2.3 A unidade da razão e agir comunicativo

Na sessão anterior, foi exposto que Habermas explica a diferenciação das esferas

culturais através da sua teoria do discurso de maneira análoga a como Kant fez com a teoria

das faculdades do entendimento. Entretanto, a pergunta que fica é: Seria a teoria da

argumentação, tal como defendida por Habermas, suficiente para apontar as condições de

possibilidade das passagens inter-modais e, portanto, preencher os requisitos necessários para

que a razão comunicativa de fato seja capaz de, não somente evitar uma redução cognitivista-

instrumental de aspectos éticos-morais, mas também de garantir a unidade da razão?

Foi dito anteriormente neste que a razão comunicativa tem orientação teleológica ao

entendimento. Entretanto, é comum o erro de atribuir como finalidade do agir comunicativo a

obtenção de consenso. Para responder a pergunta acima, é necessário em primeiro lugar

compreender bem a distinção entre consenso e entendimento. Habermas entende consenso

como o reconhecimento de pretensões de validades compartilhadas intersubjetivamente por

uma comunidade de sujeitos capazes de falar e agir, já entendimento refere-se ao processo

iterativo em que sujeitos capazes de falar e agir sustentam e criticam pretensões de validade

visando a obtenção de tal consenso (HABERMAS, 2012a, p. 221). Para Habermas, é bem

provável que durante uma sessão de debate não se alcance um consenso, mas, mesmo assim,

se o processo de discussão for de fato orientado ao entendimento, provavelmente haverá a

liberação de potenciais cognitivos latentes, ou ganho cultural, através de uma aprendizagem

intersubjetivamente refletida inerente a este processo. Também assume-se que, chegado a um

consenso ou não, um determinado debate poderá ser retomado a qualquer momento e,

portanto, tal hipotético consenso carrega sempre um caráter provisório. Desta maneira, é o

conceito de entendimento que captura corretamente o télos da razão comunicativa, pois o que

se almeja sempre é o ganho cultural obtido espontaneamente ao longo de um processo de

entendimento e, portanto, é enfatizado mais o caráter histórico, tal como processo, do que o

deliberativo, tal como produto.

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Dada a distinção, um determinado ato de fala pode representar um consenso, mas

isto depende do sucesso do desempenho performativo do sujeito que o sustenta dentro de tal

processo de entendimento, isto é, um consenso depende do desempenho do sujeito em

sustentar suas pretensões a respeito de uma situação, que se apresentam a princípio como

uma pretensão de validade intersubjetiva problemática, nas sucessivas iterações de objeções e

refutações.

Dada a natureza iterativa de tal processo, para que este se realize se faz necessária a

existência de normas que regulem a sequência, ou o rito, em que os partícipes deste

apresentam e criticam pretensões de validade, isto é, devem ser apresentadas questões de

ordem de como tais iterações devem ocorrer. Assim, a argumentação mostra o seu aspecto

procedimental. Tal aspecto pode se apresentar de várias maneiras que podem ser mais ou

menos institucionalizadas. Diz Habermas:

E o processo de entendimento discursivo passa a ser normatizado sob a

forma cooperativa de uma divisão de trabalho entre proponentes e oponen-

tes. Isto ocorre, então, de maneira que os partícipes:

– tematizem uma pretensão de validade problemática;

– assumam um posicionamento hipotético, ao estarem desonerados da pres-

são acional e experimental; e

– chequem mediante razões, e tão somente mediante elas, se a pretensão

defendida pelo proponente tem razão de subsistir ou não. (HABERMAS,

2012b, p. 61)

Portanto, se tais formas discursivas e críticas citadas anteriormente, tal como

modalidades de argumentação, não permitissem uma análise do aspecto processual destes,

não seriam capazes de, por si só, garantir um consenso verdadeiro, pois não garantiriam que o

processo de entendimento pudesse ser conduzido de maneira adequada, isto é, que fossem

dadas todas as garantias necessárias para que este processo fosse livre de qualquer forma

coerciva e que, portanto, mantivesse seu telos no entendimento, ou em outras palavras, que

neste predominasse a razão comunicativa.

Vale marcar neste ponto que é exatamente este enfoque performativo que Habermas

dá à questão que distingue a sua teoria da argumentação da teoria das faculdades de Kant,

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pois a última leva em questão somente aspectos procedimentais da razão, e, ainda assim,

somente prove à razão o papel crítico para que sujeitos “chequem mediante razões, [...], se a

pretensão defendida [...] tem razão de subsistir ou não”.

Tal raciocínio conduz ao que Habermas entende como planos argumentativos. Para

Habermas, uma argumentação pode e deve ser compreendida concomitantemente através dos

três aspectos já introduzidos, isto é, compreendida como processo, como procedimento e

como produto. Segue uma tabela resumo:

Plano Argumentativo Representação

Processo Normas reguladoras de ação que buscam garantir uma argumentação livre

de coerção.

Procedimento Normas de condução e validação do processo de entendimento.

Produto Argumentos com pretensões de validade intersubjetivamente reconhecidas.

Segundo Habermas, é no plano processual que devem ser apresentadas as garantias

para que o processo do entendimento seja conduzido alheio a qualquer força coerciva, isto é,

que seja garantida a simetria das condições oferecidas a todos os participantes de tal processo.

Diz Habermas:

Participantes de uma argumentação têm de pressupor de maneira geral que a

estrutura de sua comunicação, em virtude de traços que cabe descrever de

maneira puramente formal, exclui toda a coação (quer ela atue a partir de

fora sobre o processo, quer se origine dele), exceto a coação do melhor argu-

mento (o que implica também a desativação de todos os motivos, exceto o

da procura cooperante pela verdade). Sob esse aspecto, pode-se conceber a

argumentação como um prosseguimento reflexivamente direcionado do agir

que se orienta por outros meios ao entendimento. (HABERMAS, 2012b, p.

61)

Este tal conceito formal que Habermas se refere na citação acima é a tão falada

situação ideal de fala. Nesta, Habermas enumera quatro garantias processuais que, segundo

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ele, devem ser perseguidas para que uma argumentação atenda as exigências de não coação e

de simetria. São estas:

1) Todos os participantes potenciais em um discurso devem ter igual oportu-

nidade de empregar atos de fala comunicativos, de modo que a qualquer

momento possam tanto iniciar um discurso, como perpetuá-lo mediante

intervenções e réplicas, perguntas e respostas.

2) Todos os participantes no discurso devem ter igual oportunidade de

formular interpretações, afirmações, recomendações, dar explicações e justi-

ficativas, e de problematizar, fundamentar ou refutar sua pretensão de vali-

dade, de modo que nenhum prejulgamento se subtraia a longo prazo da

tematização e da crítica. [...]

3) Para o discurso admitem-se apenas falantes que, como agentes, tenham

oportunidade iguais de empregar atos de fala representativos, isto é, de

expressar suas posições, sentimentos e desejos. Pois somente a concordância

recíproca dos universos de expressão individual e a simetria complementar

entre proximidade e distância nos contextos de ação garantem que os agen-

tes, também como participantes no discurso, sejam também verídicos uns

com os outros e tornem transparente sua natureza interior.

4) Para o discurso só se admitem falantes que, como agentes, tenham a

mesma oportunidade de empregar atos de fala reguladores, isto é, de mandar

e opor-se, de permitir e proibir, de fazer e retirar promessas, de prestar e

pedir contas. Pois somente a reciprocidade plena das expectativas de

comportamento, que excluem privilégios no sentido de normas de ação e

valoração que só obriguem unilateralmente, podem garantir que a distribui-

ção formal uniforme das oportunidades de iniciar e continuar uma discussão,

seja empregada também faticamente para deixar em suspenso as coações da

realidade e passar para a dimensão comunicativa do discurso, dimensão livre

da experiência e desobrigada da ação. (REESE-SCHÄFER, 2010, p. 24)

Nota-se claramente que a situação ideal de fala é contrafática. O que a torna alvo de

muitas críticas. Porém, este trabalho pretende corroborar a posição defendida por Schäffer.

Diz o próprio:

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Precisamente esta limitação indignará muitos filósofos. Não considero

porém, uma debilidade, mas um ponto forte desta teoria da verdade, ao

contrário da maioria das outras. A percepção da falibilidade, da possibilidade

do erro, advém aqui da própria teoria, da diferença entre a “ultimate opini-

on” e o estado atual da discussão. Com isso, essa teoria da verdade não

produz a aparência da objetividade total, metafísica, associada à teoria tradi-

cional. (REESE-SCHÄFER, 2010, p. 24)

Precisamente, a situação ideal de fala serve como elemento regulador de ações e não

como condição necessária para que um processo de entendimento legítimo se dê. O que na

prática confere às verdades consensuais um estatuto provisório, o quão provisório é este varia

em função do quão distante o processo de entendimento que produziu aquela estiver da

situação ideal de fala. Dado que tal situação é contrafactual, a pretensão de verdade universal

ou absoluta, tal como preconizada pela orientação ontológica de mundo, também o é. De fato,

o conceito duro de verdade é enfraquecido para o de acordo, ou de melhor de argumento até o

momento, ou seja, tal raciocínio sugere a substituição de uma valoração universal do tipo

“verdadeiro” ou “falso” por outra que indique uma noção de “grau de confiança”49. Tal noção

permite que, para uma determinada situação problemática que tematiza um determinado

processo de entendimento, uma dada pretensão de validade possa ser considerada

intersubjetivamente até o momento como aceitável ou inaceitável e, portanto, eventualmente

declarada como verdade consensual. Assim, justamente pelo fato de que a situação ideal de

fala se apresenta como elemento regulador de ações, e não como necessidade transcendental,

é que a crítica que questiona uma suposta natureza idealista desta acaba em última análise por

se reverter.

Para o presente entendimento, a primeira coisa a notar é que, ao compreender a

argumentação também como processo em que sujeitos desempenham pretensões, Habermas

coloca o aspecto performativo desta em primeiro plano. Assim, Habermas vincula a

possibilidade de uma razão livre de coerção à capacidade de agir comunicativamente, o que

remete novamente à necessidade de uma teoria da ação apoiada em atos de fala. Entretanto,

tais ações desempenhadas devem ser reguladas de tal forma que se busque sempre favorecer,

em um entendimento discursivo, a simetria de condições dadas aos participantes deste.

49 Ainda que tal noção de situação ideal de fala não traga nenhuma forma prática que permita mensurar o quanto umdeterminado processo de entendimento se aproxima ou se afasta desta, sua natureza contrafactual sugere tal grau deaproximação. Portanto, a noção de “grau de confiança” utilizada aqui tem sentido fraco.

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É justamente este conceito de simetria que serve de critério para a distinção entre as

formas argumentativas de discurso e crítica. Se levarmos em conta que um processo de

entendimento legítimo é necessário que se busque, o tanto quanto for possível, a simetria

total entre as possibilidades de ações comunicativas oferecidas a cada partícipe, as críticas se

tornam circunstâncias especiais e, portanto, “torna-se difícil qualificar a crítica como uma

forma de argumentação” (REPA, 2000, p. 62), pois diz Habermas:

Unicamente a verdade de proposições, a justeza de normas de ação orais e a

inteligibilidade ou boa conformação de expressões simbólicas são, segundo

seu sentido, pretensões de validade universais que podem ser examinadas

em discursos. Só em discursos teóricos, práticos e explicativos os participan-

tes na argumentação devem partir do pressuposto (amiúde contrafático) de

que as condições de uma situação ideal de fala são satisfeitas com suficiente

aproximação. (HABERMAS apud REPA, 2000, p. 63)

Ora, se é justamente nas críticas terapêutica e estético-expressiva que se encontram

manifestações valorativas e, portanto, nestas residem os juízos de valores, e se estas, pelo

menos a princípio, não ativam as condições processuais de simetria, não é possível somente

através da teoria da argumentação compreender como estas estão fundadas e como podem ser

fundamentadas. Portanto, tal falta de simetria revela uma limitação da teoria da

argumentação, dado que esta por si só é insuficiente para explicar como é possível operar as

passagens inter-modais necessárias para conferir unidade à razão, visto que Habermas

corrobora Kant ao passo que também entende que é através do juízo que tais passagens

acontecem. Diz Repa com Honneth a respeito:

A faculdade de julgar (Urteilskraft) opera, portanto, as passagens (Übergan-

gen). Habermas atribui a essa faculdade de julgar a capacidade de “transfe-

rência intermodal de validade, isto é, a transformação não coerciva dos

mesmos conteúdos proposicionais de um modo a outro” (HONNETH apud

REPA, 2000, p. 69)

Da fato, assim como foi exposto no início deste, Habermas entende que a razão

comunicativa tem suas raízes não na teoria da argumentação, mas na ação comunicativa

propriamente dita.

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Já introduzido na primeira seção desta, o mundo da vida e a teoria de atos de fala

constituem a base da teoria do agir comunicativo. De tal maneira, é necessário compreender

também a relação existentes entre estes conceitos para tentar responder a pergunta que abre

esta seção.

Como é da sua natureza, qualquer teoria da ação deve pressupor o ator da ação, algo

que sofre a ação e um mundo que este e aquele habitam. Mais especificamente, para a teoria

do agir comunicativo, como visto na seção anterior, um ator pode, respectivamente a

diferentes pretensões que possa assumir, referir-se a diferentes mundos. Deduz-se daí que

uma ação pressupõe uma relação ator-objeto e outra objeto-mundo, e que podem ser

simplificadas transitivamente para uma relação ator-mundo. Desta maneira, no caso do agir

comunicativo, Habermas entende que, através de um ato de fala, um sujeito assume três tipos

puros de relações ator-mundo. Diz Habermas:

A análise dos modos de utilização da linguagem permite esclarecer o que

significa o fato de um falante, ao realizar um ato de fala padrão, entabular

uma relação pragmática:

– com algo no mundo objetivo (enquanto totalidade das entidades sobre as

quais são possíveis enunciados verdadeiros);

– com algo no mundo social (enquanto totalidade das relações interpessoais

reguladas legitimamente); e

– com algo no mundo subjetivo (enquanto totalidade das vivências às quais

o falante tem acesso privilegiado e que ele pode manifestar de modo veraz

diante de um público) (HABERMAS, 2012a, p. 220)

Não obstante, Habermas entende que, em um ato de fala, o ator sempre estabelece

simultaneamente os três tipos puros de relação ator-mundo (HABERMAS, 2012a, p. 221),

isto é, dito de forma mais precisa, factualmente em um ato de fala, o ator estabelece uma

relação ator-mundo tríplice, ou seja, tais ‘tipos de relação’ se configuram como três diferentes

aspectos de um único tipo de relação. De qualquer maneira, posta a observação, este trabalho

manterá a nomenclatura “tipos puros do agir comunicativo” tal como formulada por

Habermas. O que importa no presente entendimento é que, portanto, grosso modo, os três

mundos referidos são cooriginários de um único, o mundo da vida. Tal conceito ainda será

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melhor desenvolvido neste. Por hora, para melhor entendimento dos conceitos acima, vale

colocar um exemplo de um caso particular. Com Repa:

Cada ato de fala orientado para o entendimento pode ser questionado sob

pelo menos três aspectos de validade: a justeza normativa, a veracidade e a

verdade (...). Que um professor peça a um aluno que traga um copo de água

pode ser contestado por este sob cada um desses aspectos ou todos ao

mesmo tempo, ou seja, ele pode tomar o pedido como injusto (recusando-se

a aceitar o papel de subordinado), como não veraz (atribuindo outra intenção

ao dito, como o propósito do professor de desqualificá-lo ante os compa-

nheiros) ou como deficiente quanto aos pressupostos de existência (lembran-

do a distância da fonte de água mais próxima e a impossibilidade de voltar a

tempo). Esse exemplo vale para todos os atos de fala [...] (REPA, 2000, p.

60)

Tal aspecto tríplice dos atos de fala pode incitar ao leitor atento a seguinte questão:

Se o componente ilocucionário dos atos de fala, tal como descrito na primeira seção deste, é

decisivo para que pretensões de validade sejam expressas e sendo estas necessárias para

distinguir uma ação comunicativa de uma ação estratégica, como pode ser o caso de atos de

fala que se referem a todas as pretensões de validade simultaneamente?

Dada a pergunta, faz-se necessário clarificar mais uma distinção, isto é, deve-se

entender claramente a diferença que existe entre a ação comunicativa cotidiana daquela

utilizada em argumentações.

Como já dito anteriormente, o processo de entendimento tem como propósito

resolver situações em que pretensões de validade intersubjetiva tornaram-se problemáticas.

Para tanto, tal processo deve ser orientado exclusivamente pela força do melhor argumento.

Desta forma, os atos de fala em argumentações devem selecionar qual pretensão desejam

sustentar através do componente ilocucionário destes, isto é, o partícipe do processo de

entendimento deve indicar sob qual tipo puro de ação comunicativa uma determinada

situação tornou-se problemática. Entretanto, mesmo assim, os outros tipos puros de ação não

selecionados se mantêm implicitamente como não problemáticos e podem ser evocados caso

tornem-se problemáticos.

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Tais características dos atos de falas em argumentações revelam as dos atos de fala

cotidianos por oposição.

Se uma determinada situação tornou-se problemática, deve ter existido um momento

em que esta não era. De fato, os atos de falas cotidianos não são problemáticos, ou, pelo

menos, não a ponto de fazer emergir uma situação problemática para o plano argumentativo.

Pode-se ilustrar tal raciocínio através do exemplo de um simples cumprimento

cordial cotidiano, isto é, se situações de fala cotidianas fossem problemáticas, um simples

cumprimento poderia enredar em um diálogo hipotético, absurdo e potencialmente infinito do

tipo:

A: — Bom dia!

B: — Não entendi? Você está dizendo que o dia é bom? Existe um dia mal?

B: — Você quer que o dia seja bom para mim, para você, para nós ou o dia é só

bom?

B: — Você está sendo irônico a respeito da minha situação?

...

A: — Hã!?

Se uma situação tematiza, ou delimita um escopo problemático de uma

argumentação, esta realiza um recorte, isto é, seleciona uma pretensão de validade

intersubjetivamente problemática. Sendo que a parte pressupõe o todo, uma situação

problemática delimita um recorte de uma totalidade não problemática. Portanto, os atos de

fala cotidianos50 representam aqui tal totalidade não problemática.

Se em um processo de entendimento, uma determinada situação problemática pode

ter seu escopo ampliado ou modificado indefinidamente em função de outras pretensões que

possam ser levantadas ou criticadas ao longo das iterações de um processo de entendimento, e

como uma parte não pode nunca ser maior que o todo, tal totalidade não problemática tem

horizontes indefinidos.

Se em um processo de entendimento, pretensões de validades intersubjetivas são

iterativamente trabalhadas até que, se possível, chegue-se a um consenso, isto é, até que estas

50 Cotidiano aqui não tem sentido restritivo de trivial, mas de qualquer contexto comunicativo não problemático. Seja este,mais ou menos institucionalizado, especializado, culto, etc ...

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se tornem não problemáticas, tal processo argumentativo subsiste em um pano de fundo não

problemático, pois é necessário uma base não problemática para que pretensões de validade

se sustentem. Caso contrário, se tal contexto não problemático não existisse, tal argumentação

não teria primeiramente de onde emergir, bem como nenhum consenso poderia assentar-se,

tendendo assim a uma progressão infinita e completamente sem sentido. Desta forma, pode-se

inferir que a argumentação tem com o agir comunicativo cotidiano uma dupla relação, é neste

que se encontram as condições de possibilidades desta e, ao mesmo tempo, é neste que esta

subsiste.

Pode-se aproximar o conceito de agir comunicativo cotidiano do conceito de mundo

da vida, como em uma relação em que é neste que aquele ocorre. Assim, o raciocínio até aqui

permite apontar algumas características importantes de tal mundo da vida. Resumidamente,

até o momento, o mundo da vida: é uma totalidade não problemática; tem horizontes

indefinidos; e serve ao mesmo tempo como substrato e substância para argumentações. Em

uma única sentença, o mundo da vida serve como pano de fundo não problemático para o

processo de entendimento. Diz Habermas:

Para os participantes, a situação da ação constitui o centro de seu mundo da

vida; ela é dotada de um horizonte móvel porque aponta para a complexida-

de do mundo da vida. De certo modo, o mundo da vida, ao qual os partici-

pantes da comunicação pertencem, está sempre presente; porém, somente

como um pano de fundo para uma cena atual. E tão logo tal conjunto de

referências é introduzido numa situação, transformando-se numa parte dela,

perde sua trivialidade e sua solidez inquestionável. (HABERMAS, 2012a, p.

229)

Desta maneira, se somente em atos de fala cotidianos as diferentes pretensões ainda

são subentendidas e, portanto, os diferentes mundos para estes ainda se encontram

embricados em uma totalidade não problemática, ou no mundo da vida, pode-se arguir que, se

existe condições de possibilidade para as passagens inter-modais, é no cotidiano que estas se

encontram. Repa comenta Habermas:

“Parece, assim, que os aspectos da razão que se diferenciaram nessas contra-

correntes queriam remeter a uma unidade que, no entanto, só pode ser recon-

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quistada aquém das culturas de especialista, por conseguinte no cotidiano, e

não além, nos fundamentos e profundeza da filosofia da razão”. Com isso, a

inter-relação que se dá faticamente na história do desenvolvimento interno

das esferas de validade parece corresponder à inter-relação equilibrada dos

aspectos de validade no nível do cotidiano. (HABERMAS apud REPA,

2000, p. 69)

De fato, para Habermas, é na ação comunicativa que a faculdade de julgar ocorre e,

consequentemente, as passagens inter-modais. Assim, estas são externas à lógica

argumentativa. Diz Habermas por Repa:

As distintas formas de argumentação formam um sistema na medida em que

elas, por causa de sua necessidade de complementação, remetem interna-

mente uma a outra. Ora, a mudança de uma forma de argumentação para

outra é motivada muitas vezes internamente devido ao desfiladeiro do curso

de argumentação, mas muitas vezes uma tal passagem necessita de impulsos

externos: pelos problemas que vêm a nosso encontro. Como uma passagem

pode ser efetuada em cada caso é regulado pela lógica da argumentação; se e

quando devemos efetuá-la depende daquela faculdade de julgar assentada na

própria ação comunicativa. (HABERMAS apud REPA, 2000, p. 69)

Assim, de certa maneira, tais passagens são impulsionadas pelo próprio mundo da

vida, isto é, da mesma maneira que uma situação emerge espontaneamente da comunicação

cotidiana quando uma pretensão de validade intersubjetiva se torna problemática, as

passagens inter-modais assim surgem. Diz Repa:

A necessidade de interdependência parece brotar do mundo da vida enquan-

to tal. A unidade da razão, afirma Habermas, deve ser reconquistada para

aquém das culturas especialistas. Uma forma de argumentação que não

rompeu completamente com o mundo da vida deve satisfazer a necessidade

de uma combinação não coerciva dos momentos da razão. Parece ser o senti-

do das reações à unilateralização dos aspectos de validade dentro das

próprias esferas de valor. (REPA, 2000, p. 71)

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Pode-se, portanto, entender como Habermas concebe a possibilidade das passagens

inter-modais através da relação entre ação comunicativa e mundo da vida. Desta maneira, a

esse ponto, é possível marcar as semelhanças existente entre o mundo da vida, tal como

apontado por Habermas, e a totalidade ética, tal como citada por Hegel em sua juventude,

pois ambas representam uma totalidade não problemáticas que, quando percebidas

perturbações, fazem emergir situações que devem ser equacionadas intersubjetivamente a fim

de reparar e restaurar tal totalidade. Portanto, o reconhecimento intersubjetivo não é dado a

priori, mas sim conquistado historicamente. Diz Repa sobre o campo ético hegeliano:

A intersubjetividade que constitui o campo ético do reconhecimento recípro-

co não é, porém, imediatamente intacta e harmoniosa. O processo de reco-

nhecimento entre os sujeitos se inicia, tal como no caso do crime em O

Espírito do Cristianismo e seu Destino, após uma perturbação e uma assime-

tria na totalidade ética, que, inicialmente, é ignorada. Assim, a relação dialó-

gica da situação de reconhecimento é o resultado de uma relação dialética da

superação de formas de violência, de uma luta pelo reconhecimento. Tal

reconhecimento preserva a oposição entre os agentes, ao mesmo tempo em

que se releva sua identidade. De qualquer forma, a relação ética básica do

reconhecimento não é dada a priori, mas se constitui por processos. (REPA,

2000, p. 102)

Entretanto, não é objeto deste analizar profundamente tais possibilidades, tal tarefa

em si já consistiria uma pesquisa à parte. Quanto a isso, diz Repa:

A rigor, só poderíamos aprofundar a análise de como as formas de argumen-

tação constituem em sistema se penetrássemos nos respectivos estudos de

Habermas, particularmente aqueles relativos à ética e ao direito. Só aí pode-

ríamos destacar os problemas que conduzem à articulação de passagens, por

exemplo, entre a esfera da política, da moral e do direito. (REPA, 2000, p.

71)

Nota-se, portanto, que Habermas, utilizando a noção de agir comunicativo e de

mundo da vida, procura cumprir os requisitos para uma alternativa hipotética a racionalidade

centrada no sujeito tal como formulada no início desta parte. Intimamente inter-relacionadas,

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tais noções cumprem tanto o primeiro requisito, o de possibilitar em tese as passagens

intermodais de contexto de validade e o de prover uma totalidade ética não problemática

formada e mantida historicamente. Desta forma, as duplicações do sujeito são dissolvidas e o

problema da autocertificação moderna é sanado.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Talvez, para o leitor deste trabalho, tenha ficado a impressão de uma certa dureza, ou

de exagerada pretensão, ou até mesmo de descortesia, a respeito de como Habermas tece suas

críticas com relação aos pensadores que o antecederam, que, diga-se de passagem, não são

poucas nem para poucos.

Pode ser que em parte tal impressão se deva ao fato da brevidade de como algumas

destas críticas foram expostas e tratadas neste, naturalmente, por uma questão de escopo.

Nesse caso, fica como sugestões as referências dadas para que o leitor forme suas próprias

opiniões a respeito.

Entretanto, pode ser percebido no desenvolvimento deste um certo modus operandi

muito característico de Habermas que explicaria tal impressão de uma maneira mais

adequada. Para cada autor que Habermas trata, ele ressalta os pontos positivos, aponta os

momentos em que tais atores se equivocam, procura compreender os motivos que levaram tais

atores a tais aporias e, eventualmente, propõe como os pensamentos de cada autor poderiam

ser reconstruídos de maneira hipoteticamente mais adequada para que o propósito original

deste fosse alcançado.

De fato, tal modus operandi não é novidade, a expressão ciências reconstrutivas é

citada várias vezes do DFM e vários autores a exemplo de (REPA, 2000), (NOBRE; REPA,

[s.d.]) e (BARBOSA, 1996) trabalharam com o tema.

O próprio Habermas faz questão de defini-lo com precisão. Em Para a reconstrução

do Materialismo Histórico, Habermas abre a obra trazendo uma espécie de definição do termo

reconstrução. Apesar de ser uma obra anterior a TAC e ao DFM, Habermas já exibe indícios

de tal modus operandi. Diz o autor:

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Restauração significaria o retorno a um aponto de partida que, nesse meio

tempo, ter-se-ia corroído: mas meu interesse por Marx e Engels não é

dogmático e nem mesmo histórico-filológico. Renascimento significaria a

renovação de uma tradição que, nesse meio tempo, teria estado sepultada: o

marxismo não precisa disso. Reconstrução significa, em nosso contexto, que

uma teoria é desmontada e recomposta de modo novo, a fim de melhor atin-

gir a meta que ela própria se fixou: esse é o modo normal (quero dizer:

normal também para os marxistas) de se comportar diante de uma teoria que,

sob diversos aspectos, carece de revisão, mas cujo potencial de estímulo não

chagou a se esgotar. (HABERMAS, 1990, p. 11)

Por certo, é possível notar que TAC não é exceção. Na realidade, tais reconstruções

são elementos constitutivos desta. No desenvolvimento deste trabalho, de acordo com o

propósito inicial de se realizar um afastamento conceitual entre os paradigmas de

racionalidade, os elementos de ligação entre as partes deste trabalho se revelaram ser

exatamente como reconstruções. Principalmente sobre as teorias de Weber, Kant e Hegel.

Entretanto, vale ressaltar dois pontos: que a TAC é formada por muitas outras

reconstruções que ficaram de fora da presente análise por questão de escopo; e que as

reconstruções citadas aqui foram enriquecidas pela pesquisa de (REPA, 2000) e, portanto, são

mostradas neste de maneira diferenciada, seja do DFM ou da TAC.

Posta a observação, pode-se notar que os dois requisitos, formulados neste trabalho,

para um hipotético paradigma de racionalidade alternativo ao da filosofia da consciência são

frutos das reconstruções de como Kant pensa as passagens intermodais e de como o jovem

Hegel entente uma totalidade ética intersubjetiva como não problemática e historicamente

formada. Nota-se também como uma reconstrução da teoria da ação de Weber é fundamental

para que a racionalidade comunicativa de Habermas pudesse cumprir tais requisitos.

Assim, tal como proposto como objetivo deste na introdução, tais reconstruções se

revelam como os elementos fundamentais que ligam o diagnóstico da modernidade de

Habermas e a sua teoria do agir comunicativo. É curioso notar que indicações de tais

reconstruções do pensamento filosófico moderno não são facilmente localizáveis no DFM e

na TAC. De fato, somente com um esforço de diversos pesquisadores foi possível revelá-las,

pois foi somente com a ideia das passagens em Kant levantadas por Terra, como elas

participam da reconstrução do conceito de modernidade hegeliano que Habermas opera,

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como exposto por Repa, e com o afastamento conceitual proposto por este trabalho, foi

possível notá-las mais nitidamente.

Talvez seja pela dificuldade em notar tais reconstruções fundamentalmente

filosóficas que a TAC seja incompreendida por muitos em sua essência e importância teórica.

Talvez seja por isto que existem objeções sobre um suposto distanciamento de Habermas a

respeito do objetivo original da TAC, que seria resgatar as condições de possibilidade da

ciência social. Tais críticas versam que o autor, ao tratar de um tema tão fundamental quanto a

racionalidade, perdeu o foco e tornou o escopo do trabalho não manejável. Quanto a tais

críticas, este trabalho corrobora o comentário de Schäfer. Diz este:

Apesar de sua abrangência impressionante, a Theorie des kommunikativen

Handelns não é, portanto, nenhuma doutrina integral, mas provê abordagens

antes rudimentares e programáticas justamente também nos pontos cruciais

de articulação. O próprio Habermas certamente aceitaria de bom grado se a

caracterizássemos não como palácio da república dos sábios, mas como

projeto de saneamento da parte antiga da cidade. (REESE-SCHÄFER, 2010,

p. 63)

É desta maneira que Habermas restaura o projeto de esclarecimento moderno e abre

caminho novamente para o desenvolvimento da filosofia crítica. Realmente é um trabalho

monumental que pretende realinhar todo o pensamento moderno.

Entretanto não foi possível neste trabalho, por uma questão de escopo, realizar uma

análise mais profunda sobre como o conceito de mundo da vida ofereceria efetivamente as

condições de possibilidades de tais passagens inter-modais. Tanto sob o ponto de vista teórico

filosófico quanto a respeito ao uso do espaço publico racional e da possibilidade de uma

democracia deliberativa. Portanto, fica em aberto o estudo de futuras linhas de pesquisas que

poderiam se mostrar interessantes.

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