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O corpo na escola Ano XVIII boletim 04 - Abril de 2008

O corpo na escola · controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos. Organizou uma nova economia do tempo e da aprendizagem. Fez funcionar o espaço como uma máquina de ensinar,

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O corpo na escola

Ano XVIII boletim 04 - Abril de 2008

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SUMÁRIO

O CORPO NA ESCOLA

PROPOSTA PEDAGÓGICA ...................................................................................................03Léa Tiriba

PGM 1: A ESCOLA, A DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS ….......................................................................................................................................... 14Walter Kohan

PGM 2: EDUCAÇÃO DE CORPO INTEIRO......................................................................... 19Daniela Guimarães

PGM 3: ACONCHEGANDO O CORPO NA ESCOLA: AS PERSPECTIVAS......................... 28Alexandra Pena, Isabel C. Bogéa Borges, Leonor Pio Borges

PGM 4: EDUCAÇÃO E VIVÊNCIA DO ESPAÇO: DIÁLOGOS ENTRE A ARQUITETURA E A PEDAGOGIA.....................................................40Léa Tiriba

PGM 5 : O CORPO NA ESCOLA: EXPERIÊNCIAS ALTERNATIVAS …............................ 52Adrianne Ogêda Guedes

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PROPOSTA PEDAGÓGICAPROPOSTA PEDAGÓGICA

O CORPO NA ESCOLA

Léa Tiriba1

Entre os séculos XVII e XIX ganha força a idéia de uma separação entre mente e corpo, uma

das bases sobre a qual se fundou uma ciência e uma civilização que hipervalorizaram a

racionalidade e o trabalho, em detrimento de outros caminhos de conhecer e modos de viver,

buscando suprimir todas as outras formas de conhecimento relacionadas à existência carnal

dos seres humanos: os sentimentos, a imaginação, a intuição, o conhecimento sensual, a

experiência. O objetivo desta série é o de debater e questionar uma lógica de funcionamento

escolar ainda orientada pelo pressuposto de que “Penso, logo existo”, máxima do pensamento

racionalista, que inspira e define, ainda nos dias de hoje, propostas pedagógicas e rotinas

escolares.

(...) Em todos os espaços, chama a atenção a formalidade, o vazio de referências infantis,

não há objetos, brinquedos, desenhos das crianças... A organização é semelhante a das

escolas de ensino fundamental: pequenas carteiras enfileiradas, mesa de professora ao lado

do quadro-negro... Num prédio reformado, de pintura brilhante, limpeza caprichada,

crianças de três para quatro anos assistem, enfileiradas em pequenas e coloridas carteiras

escolares individuais, a uma professora que se esmera em explicar-lhes noção de conjunto.

O que mais impressiona é o formidável empenho e a delicadeza da professora em sua

intenção de ensinar conceitos matemáticos, ali no quadro-negro... As crianças,

desconfortáveis e desengonçadas nas carteiras, apenas repetiam suas palavras: “Quantos

elementos têm aqui? Trêeeees.......!!!” Depois desta atividade, exercícios no papel. Na sala

ao lado, crianças bem menores, algumas ainda bebês de 1 ano e pouco, cercadas por todos

os lados das mesmas carteiras coloridas. Do lado de fora, no pátio da escola, um colorido

parque infantil, que as crianças desfrutavam por um período diminuto em relação ao longo

tempo em que permaneciam na creche. Lá fora, depois da cerca, os campos, as árvores, os

animais, o sol, as nuvens o vento... (Observações feitas em escola infantil da área rural de

um município do Rio de Janeiro - 21/05/01).

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A cena insólita, mas tão comum nas escolas brasileiras, é a expressão de uma concepção de

educação e de escola que, além de não fazer conexões entre conhecimento e vida, está voltada

para processos de transmissão/apropriação de conhecimentos via razão, que necessita,

portanto, de mentes atentas e corpos paralisados. Pois não é necessário mais do que atenção

mental para observar, refletir e compreender as regras de uma realidade que é entendida como

racionalmente organizada. Em outras palavras, o modo de funcionamento descolado do

mundo natural indica que as práticas pedagógicas das instituições escolares estão definidas,

geralmente, pelas concepções ontológica, epistemológica e antropológica que estruturam o

paradigma moderno, compondo uma idéia de que as leis da realidade poderiam ser

apreendidas por um ser cuja principal atividade é a racional (Plastino, 1994). Em

conseqüência, fica secundarizado tudo que extrapola esta dimensão: as brincadeiras, as

sensações corporais, o devaneio.... Mas isto não é só: a reprodução deste modo de

funcionamento se faz com o controle do corpo.

Denominada por Foucault (1987) como instituição de seqüestro, a escola e outras instituições,

como os presídios, os hospícios e os quartéis, visavam controlar não apenas o tempo dos

indivíduos, mas também seus corpos, extraindo deles o máximo de tempo e de forças. De

maneira discreta, mas permanente, as formas de organização espacial e os regimes

disciplinares conjugam controle de movimentos e de horários, rituais de higiene,

regularização da alimentação, etc. Assim, historicamente, a escola assume a tarefa de

higienizar o corpo, isto é formá-lo, corrigi-lo, qualificá-lo, fazendo dele um ente capaz de

trabalhar.

(...) A ordenação por fileira, no século XVII. Começa a definir a grande forma de repartição

dos indivíduos na ordem escolar: filas de alunos nas salas, nos corredores, nos pátios; (...)

determinando lugares individuais (a organização de um espaço serial) tornou possível o

controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos. Organizou uma nova economia do

tempo e da aprendizagem. Fez funcionar o espaço como uma máquina de ensinar, mas

também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar (Foucault, 1987, p. 126).

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As filas que se formam para levar as crianças de um espaço a outro, os tempos de espera em

que permanecem encostadas às paredes, a falta de conforto das salas, as regras que são

impostas nos refeitórios, os tempos previamente definidos para defecar: tudo isto remete à

idéia de fabricação de uma retórica corporal, mas também de uma retórica do espírito, pois,

“é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado

e aperfeiçoado” (Foucault, 1987, p.118).

Tendo como referência a concepção espinosiana de que a vivência do que é bom e do que é

mau constitui dois tipos humanos, que vivem, aprendem e incorporam distintos modos de

sentir e viver a vida (como potência ou como impotência), consideramos que esta

perspectiva (de controle do corpo) está na contramão de um projeto de educação pautado

numa ética da alegria e do cuidado, na medida em que favorece a constituição de um tipo

humano que é fraco, impotente (Espinosa,1983; Deleuze, 2002).

Se somos capazes de produzir história e cultura, como produzir um cotidiano que se paute

pela vivência do que é bom, que alegra e, que frente à vida, nos faz mais potentes? Como

favorecer encontros que compõem? E como evitar os maus encontros, que decompõem,

produzem tristezas? Se estas são sempre expressões da nossa impotência, como trabalhar no

sentido de um cotidiano em que, diria Espinosa, as paixões alegres se sobreponham às paixões

tristes?

Uma resposta possível é: acreditando nos desejos das crianças, apostando em sua capacidade

de escolha, possibilitando contato permanente com o mundo natural, brincadeiras, livre

movimento do corpo. Entretanto, é evidente a distância da realidade escolar em relação a esta

crença e a este movimento a favor do prazer, da potência. Onde estão as origens deste modo

de funcionamento?

Educação, escola e divórcio entre natureza e cultura, corpo e mente

Desde a Revolução Industrial, (que inaugurou a reprodução em série de bens materiais) e,

depois, a Revolução Francesa (que superou o feudalismo e propôs o mercado como eixo da

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vida social) a função social da escola vem sendo a de ensinar às novas gerações a lógica sob a

qual o sistema capitalista-urbano-industrial-patriarcal se estrutura.

No contexto de uma ordem capitalística em que o sentido principal do trabalho social é a

produção e a acumulação de bens, a escola está ainda organizada de acordo com o

pressuposto de que a razão pode decifrar a lógica interna da natureza. Isto explica que o

objetivo fundamental do trabalho escolar seja o de desenvolver plenamente em seus alunos a

capacidade racional para a compreensão e a submissão da natureza aos interesses do mercado,

desprezando ou secundarizando outros caminhos de abordagem da realidade material e

imaterial. Assim, alguns conceitos/idéias/sentimentos/visões de mundo – constitutivos dos

ideais da modernidade – orientam concepções e práticas escolares em nosso tempo.

Primeiramente, uma crença na razão como salvo-conduto para enfrentar os ritmos da

natureza, que são tomados como obstáculos para um espírito conhecedor, pesquisador,

desvendador de todos os mistérios da vida, que seria capaz, inclusive, de determinar os rumos

da história. Há, em conseqüência, supervalorização do intelecto e desprezo pelo corpo. Esta é

uma decorrência da lógica dual que, separando seres humanos de natureza, afirma a

racionalidade como processo superior, em oposição à natureza, identificada com o corpo

humano.

No coração da lógica paradigmática está uma idéia de superioridade em relação à natureza: a

faculdade da razão não apenas coloca o “Homem” acima dos animais, como, por sua

qualidade, é superior a qualquer outra espécie. Decorre daí que o pensamento seja

considerado a atividade humana mais importante, que a cultura se apresente como a

característica peculiar do homem, pela qual se distingue como um ser especial, diferente dos

animais e das coisas e, portanto, acima deles. Nesta perspectiva, a ordem natural seria inferior

à ordem cultural, tudo O que é relativo a este plano se sobrepõe. Assim, a cultura

antropocêntrica fragmenta o que é uno: separa os humanos da natureza, a razão da emoção,

definindo uma oposição hierárquica entre as partes, uma das quais é sempre considerada

como superior e sempre progride mediante a subordinação a outra (Mies e Shiva, 1997).

Assim, a natureza aparece subordinada aos homens, a mulher ao homem, o consumo à

produção, o local ao global, a emoção à razão, o corpo à mente.

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Onde nasceu esta dupla fragmentação, marcante na trajetória do pensamento ocidental? Na

visão de Nietzsche (2000), já no momento de surgimento do pensamento filosófico científico,

na Grécia, algo de essencial se perdeu na relação dos humanos com a natureza e no equilíbrio

entre afetivo e cognitivo.

Para Nietzsche, a tradição filosófica ocidental inaugura um afastamento em relação à

natureza, que é nefasto para os humanos, na medida em que provoca um desequilíbrio

patológico entre corpo e mente, razão e emoção. Na sua visão, algo de essencial se perdeu

quando, a partir de Sócrates, os gregos começam a se afastar dos rituais a Dionísio, o deus da

música e da embriaguez, e passam a privilegiar Apolo, o deus da racionalidade argumentativa,

do conhecimento científico, da lógica. Dionísio é o deus que não habita o Olimpo, mas a

natureza. Representa a força vital, a alegria, o excesso, enquanto Apolo, o deus severo,

representa a ordem, a norma, o equilíbrio. Para Nietzsche, “a história da tradição filosófica é a

história do predomínio do espírito apolíneo sobre o espírito dionisíaco” (Marcondes, 1997,

p.243), ou seja, é a história do predomínio da razão sobre o desejo. A decadência e a fraqueza

da cultura ocidental teriam sua origem neste predomínio da racionalidade sobre a imaginação,

as emoções, as sensações, que o filósofo define como “forças afirmativas da vida”. Em sua

visão, esta distorção teria sido reforçada por elementos trazidos posteriormente pelo

cristianismo, como a culpa, o pecado, a submissão, o sacrifício.

O conceito de corpo (do latim, corpus) vem se transmutando ao longo da história do

Ocidente. Durante a época moderna, a discussão sobre o que se convencionou chamar de

“problema da relação entre alma e corpo” manteve algumas das concepções antigas e

medievais. Mas o desenvolvimento da ciência, em especial da física, em moldes mecanicistas,

trouxe a noção de “corpo material”, radicalmente separado da alma.

Descartes (1596-1650) é o expoente desta distinção entre a substância ou “coisa” extensa (res

extensa) e substância ou a “coisa” pensante (res cogitans). Para o pensamento cartesiano, o

corpo material opõe-se ao espírito, à alma, ao pensamento, na medida em que estes seriam

indivisíveis, enquanto que o corpo/ a matéria seriam divisíveis (Japiassu e Marcondes, 1996).

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Na contramão da concepção cartesiana – em que a mente domina o corpo e as paixões, e tem

o poder de explicar todas as funções corporais de modo puramente mecânico – Espinosa

(1632-1677), ao invés de perguntar “o que é um corpo”, ao invés de buscar uma definição,

interroga: “o que pode um corpo?” Ao fazer esta pergunta, fere a lógica descrita por

Descartes, segundo a qual todas as funções corporais podem ser explicadas, medidas,

quantificadas. Para Espinosa, estamos fechados nos limites corpóreos, mas podemos fugir

sempre, graças à força que nos impulsiona para além. Assim, não haveria hierarquia entre

corpo e alma, “há uma força inconsciente no espírito, assim como há uma potência insuspeita

no corpo” (Barros e Passos, 2000, p. 3).

Entretanto, ao assumir a função de formar as novas gerações para a reprodução do modelo

urbano-industrial, a instituição escolar ignorou concepções que não fragmentam nem

subordinam o corpo à mente. Ao contrário, optou por uma visão que, ao hipervalorizar o ego

e o intelecto, nega a verdade do corpo. De fato, temos sentido as conseqüências de um

cotidiano regido por uma rotina de esforços mentais e inflexibilidade física. As doenças se

manifestam, são resultado de um modo de funcionamento – da sociedade, da fábrica, da

escola, da instituição familiar, de cada um de nós – que é alienado em relação a muitas das

mais elementares necessidades físicas, como respirar profundamente, alimentar-se

sadiamente, dormir bem, relaxar.

O corpo humano é mais do que um portador do texto mental

Numa sociedade marcada por controle e racionalidade, os movimentos de liberdade e

expressividade das crianças assustam os adultos. Amarrados ao império do relógio, ao tempo

da produção, estamos aprisionados aos próprios esquemas, ou melhor, aos limites que nos

foram impostos, na vida escolar, na família, no trabalho. Tendo aprendido a engolir os

desejos, são estes mesmos esquemas que necessitamos reproduzir, através das normas que

pretendemos impor às crianças, modelando os gestos e, simultaneamente, aquietando o

espírito. Pois, corpo e espírito não estão separados, o que é ação no corpo é, necessariamente,

ação na alma (Espinosa,1983).

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“Há, em todos os lugares, como que a obsessão do controle, que perpassa todos os nossos

comportamentos adultos com relação à criança; precisamos sentir-nos donos da situação,

ter presentes todas as alternativas que a criança poderá escolher, porque só assim nos

sentiremos seguros. A liberdade da criança é a nossa insegurança, enquanto educadores,

pais ou simples adultos, e, em nome da criança, buscamos a nossa tranqüilidade, impondo-

lhes até os caminhos da imaginação” (Lima, 1989, p.11).

Mas o desejo conspira... Na visão do filósofo Charles Fourier (1772-1837), porque ele não

tem outras alternativas, outros caminhos para satisfazer-se! Torna-se, assim, um subversivo

permanente, “que trabalha de maneira infatigável na desorganização da sociedade,

desrespeitando todos os limites colocados pela legislação” (Konder, 1998, p.17). Isto acontece

por uma questão de sobrevivência física e espiritual. O desejo persevera porque, oprimido, se

manifesta como sintoma, como doença, do corpo e da alma, pois, “toda paixão estrangulada

produz uma contrapaixão tão maléfica quanto a paixão natural seria benéfica” (idem, p.19).

Além de buscar uma compreensão sobre um estilo de educar que desconsidera as crianças em

sua integralidade existencial, a série “O corpo na escola” quer apresentar e refletir sobre

práticas educacionais atentas às vontades do corpo; práticas que não aprisionam os

movimentos, ao contrário, ajudam as crianças a expressarem “a dança de cada um”, isto é, “o

jeito de ser, que é, em outros termos, a expressão de nossa psiquê, de nossa alma. Através da

dança do corpo se mostra o interior de cada um” (Robim, 1997, p. 1).

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Para “dançar” a sua dança e construir uma dança coletiva (o estilo de ser de cada grupo)

precisamos de “espaços-ambientes” (Lima, 1989), que favoreçam esta construção, que

abram espaços (objetivos e subjetivos) para o corpo e o movimento. A escola precisa

recuperar a liberdade de movimentos que a vida na cidade grande e seu respectivo

modelo de funcionamento escolar restringiram, impedindo as mais simples e

fundamentais manifestações como correr, pular, saltar, etc.

“(...) Tudo isto traz também uma redução da confiança no próprio corpo e uma certa

sensação de impotência que é difícil de erradicar, apesar de muitas vezes tentar-se

compensar a criança dando-lhe maior estimulação de sua fantasia ou de sua inteligência,

através de tantos meios de que dispomos atualmente, conseguindo assim que o centro

intelectual supra uma carência que na verdade não pode cumprir porque corresponde a

outros níveis de existência” (Palcos, 1998, p.2).

De acordo com Palcos (1998), a falta de liberdade de movimentos vai formando travas que

impedem as crianças de fazer um crescimento harmônico. Como todo movimento se inicia ou

deveria iniciar-se com um movimento reflexo, aqueles se perdem na medida em que estes

ficam inibidos. As escolas, enquanto espaços de educação integral das crianças, devem

constituir-se como ambientes que contribuam para evitar o surgimento de travas, ou mesmo

eliminar as que já tiverem se instalado, contribuindo para construir ou mesmo recuperar a

liberdade e a confiança no corpo. Esta é uma das responsabilidades do educador que assume a

educação integral das crianças, porque a confiança no próprio corpo está relacionada ao

sentimento de confiança na vida.

Temas que serão abordados na série O corpo na escola, que será apresentada no programa Salto para o Futuro/TV Escola/SEED/MEC de 14 a 18 de abril de 2008:

PGM 1: A escola, a disciplinarização dos corpos e as práticas pedagógicas

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Este primeiro programa apresentará e discutirá a idéia moderna de corpo como máquina e as

suas influências nas rotinas escolares, ainda em nossos dias. Abordará as concepções de corpo

ao longo da história, entre os gregos e, especialmente, em Descartes e Espinosa. E trará

também os estudos de Foucault sobre o papel da escola na constituição da sociedade moderna,

além das idéias da tradição filosófica racionalista e do romantismo sobre os cinco sentidos. A

intenção é a de fazer uma articulação deste conjunto de idéias com as práticas educacionais

cotidianas.

PGM 2: Educação de corpo inteiro

Este segundo programa terá como foco as contribuições atuais dos campos da pedagogia, da

psicologia e da Educação Física, que, nos últimos tempos, vêm apresentando novas propostas

comprometidas com uma educação de corpo inteiro. Serão debatidas as concepções de

conhecimento e de prática pedagógica informadas por teóricos como Piaget, Vygostsky,

Wallon, Maturana e Varela, Deleuze, e também propostas alternativas para uma educação que

considera a escola como espaço de educação integral, isto é, como instituição que considere

ritmos e interesses infantis, que permita às crianças e aos jovens aprenderem a identificar e a

respeitar as vontades do corpo.

PGM 3: Aconchegando o corpo na escola: as perspectivas

Este terceiro programa tem o objetivo de discutir as rotinas que envolvem mais claramente os

processos corporais (os tempos cotidianos para mexer, comer, dormir, dançar, relaxar, correr,

brincar), especialmente nas escolas de horário integral. Assim, serão abordadas tanto as

dinâmicas de escolas de Ensino Fundamental, quanto de Educação Infantil, no que se refere às

necessidades de ampliar os espaços e os tempos de movimentar-se livremente, relaxar,

meditar, estar atento à respiração, melhorar a alimentação, cuidar da postura, ter contato com

a natureza.

PGM 4 – Educação e vivência do espaço: diálogos entre a arquitetura e a pedagogia

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Neste quarto programa, o debate será voltado para as relações entre a educação e a vivência

do espaço. Neste sentido, abordará a questão do conforto e/ou do desconforto que oferecem os

prédios escolares, assim como o afastamento das crianças em relação ao mundo natural. O

objetivo é discutir a sua adequação à educação integral das crianças, considerando o conjunto

de necessidades corporais, espirituais, sociais e cognitivas. O programa abordará a questão da

importância da definição de parâmetros de qualidade (recentemente elaborados no campo da

Educação Infantil), assim como as propostas de arquitetos escolares importantes, como

Mayume de Souza Lima.

PGM 5 - O corpo na escola: experiências alternativas

Este quinto programa estará voltado para o relato e o debate de experiências concretas,

trazendo educadores/instituições que buscam construir propostas pedagógicas e rotinas

cotidianas comprometidas com a superação do divórcio entre corpo e mente, razão e emoção.

O debate envolverá questões como mudanças nas formas de organização dos espaços, dos

tempos, dos materiais pedagógicos e da própria grade curricular, valorizando as atividades

que incluem o movimento do corpo em contato com a natureza, os jogos (cooperativos x

competitivos), a autodisciplina, a cooperação, a valorização das interações humanas.

Bibliografia

BARROS, Regina e PASSOS, Eduardo. “A construção do Plano da Clínica”. In:

Psicologia, teoria e pesquisa, jan./abr. 2000, vol. 16, n.1, p. 71-79.

DELEUZE, Gilles. Espinosa, filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.

ESPINOSA, Baruch de. Ética. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os

Pensadores).

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1987.

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JAPIASSU, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de

Janeiro: Zahar, 1996.

KONDER, Leandro. Charles Fourrier: o socialismo do prazer . Rio de

Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1998.

LIMA, Mayume de Souza. A cidade e a criança. São Paulo: Nobel, 1989.

MIES, Maria y SHIVA, Vandana. Ecofeminismo: teoria, crítica y perspectivas.

Barcelona: Icaria editorial, 1997.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos à

Winttengestein. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1997.

NIETZSCHE, Friedrich. “A filosofia na época trágica dos gregos”. In: SOUZA, José

(org.). Pré-socráticos – vida e obra. São Paulo, Nova Cultural, 2000. (Coleção

Os Pensadores).

PALCOS, Maria Adela. Corpo e Psiquismo. Rio de Janeiro: Espaço Coringa – Rio

Aberto, 1998, mimeo.

PLASTINO, Carlos. O primado da Afetividade. A crítica freudiana ao paradigma

moderno. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

ROBIM, Michel. “A dança nossa de cada dia nos dai, hoje!”. Rio de Janeiro: Espaço

Coringa, 1998, mimeo.

TIRIBA, Léa. “Crianças, natureza e educação infantil”. Tese de doutorado. Rio de

Janeiro: PUC-Rio, 2005.

____. “Reinventando relações entre seres humanos e natureza nos espaços de educação

infantil”. Revista Presença Pedagógica, v.13, n.76, jul./ago., Belo Horizonte,

Editora Dimensão, 2007.

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NOTAS:NOTAS:

Professora ambientalista e jornalista. Coordenadora do Setor de Educação Ambiental do NIMA (Núcleo Interdisciplinar de Meio Ambiente/NIMA) da PUC-Rio. Professora do Departamento de Educação e do Curso de Especialização em Educação Infantil desta mesma Universidade. Assessora da Secretaria de Educação de Santo André/SP. Consultora desta série.

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PROGRAMA 1PROGRAMA 1

A ESCOLA, A DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS

Escola, experiência e verdadeEscola, experiência e verdade

Walter Kohan1

A escola tem sido, nos últimos séculos, uma das instituições privilegiadas para disseminar as

verdades que uma sociedade produz, por meio de uma série complexa de práticas de

disciplinamento, controle e governo. Se pensarmos no corpo, uma das coisas que mais

aprendemos na escola – alunos, professores, orientadores, diretores, funcionários, enfim,

todos nós que passamos pela instituição – é levar os corpos de determinada maneira e

privilegiar certo tipo de relações corporais, com o nosso próprio corpo e os outros corpos que

habitam a instituição. As cadeiras colocadas de acordo com alguma posição predeterminada,

os corpos alinhados nas fileiras nos pátios, o uso de uniformes e outras normas sobre

vestimenta, as regras para controlar a entrada e a permanência nos banheiros são algumas das

mais evidentes técnicas de disciplinamento corporal.

Para pensar a escola, pode ser interessante considerar conceitos como verdade e experiência.

Os conceitos são criações dos filósofos para dar conta de alguns problemas que eles mesmos

criam. Alguns conceitos são tão interessantes que adquirem vida própria, para além do

problema para o qual foram criados. Este é o caso de conceitos como experiência e verdade.

Neste texto, tentaremos pensar, com eles, a escola, a disciplinarização dos corpos e as práticas

pedagógicas. Para isso, primeiro, vamos apresentar um uso específico que M. Foucault faz

dos conceitos de verdade e experiência, contrapondo-os; num segundo momento,

estenderemos esse uso para pensar a questão que nos ocupa. Finalmente, formularemos alguns

interrogantes a partir das análises propostas para o caso específico da infância.

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Foucault propõe pensar a experiência e a verdade em relação com a escrita. O que significaria

escrever um livro a partir dessas duas possibilidades? O autor francês propõe que, segundo a

lógica da verdade, quem escreve um livro o faz porque está instalado numa verdade e o

sentido principal da escrita é a transmissão dessa verdade para os eventuais leitores do livro.

Assim, quem escreve um livro-verdade o faz para transmitir o que sabe para quem ele

considera que não sabe. Um livro funciona muito bem como verdade quando, depois de sua

leitura, sabemos o que antes não sabíamos. De modo que, se há livros escritos como verdade,

é porque também há leitores de livros verdade, ou seja, aqueles leitores que procuram num

livro as verdades que eles desejam conhecer. Há livros que parecem ser escritos estritamente

com essa pretensão: por exemplo, aqueles que levam por título: “O que verdadeiramente disse

X” ou então “tudo o que você queria saber sobre Y”. Também muitas outras formas de escrita

podem ter essa mesma lógica da verdade. Por exemplo, o jornal. Lemos o jornal como

verdade quando pensamos que nele vamos nos inteirar do que não sabemos.

A experiência revela outra relação com a leitura. Um livro que funciona como experiência

também afirma uma série de verdades que pode ser constatada ou refutada. A experiência não

é indiferente à verdade. Mas, diferentemente de um livro que funciona como verdade, um

livro experiência não afirma verdades com o sentido de transmiti-las, mas para problematizar

a relação que um autor, ou um leitor, têm com a verdade. De modo que o ato de escrever ou o

de ler um livro, a partir da lógica da experiência, significam entrar num jogo de verdade que

tem por propósito desestabilizar a própria verdade da qual se parte. Afirma Foucault:

Eu jamais penso exatamente o mesmo pela razão de que meus livros são, para mim,

experiências. Uma experiência é algo do qual a própria pessoa sai transformada. Se eu

devesse escrever um livro para comunicar o que já penso, antes de haver começado a

escrever, não teria jamais a coragem de empreendê-lo2.

Para Foucault, então, é a experiência, como propiciadora de transformações, e não a verdade o

que dá sentido à escrita. Um livro funciona como experiência quando, depois de lê-lo, já não

podemos mais saber o que sabíamos antes, como o sabíamos. Se a verdade consolida os

lugares já habitados, a experiência é uma espécie de viagem que permite sair do lugar que se

habita. Quando ela é intensa e ousada, a transformação sequer conhece o ponto de chegada.

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Temos então a experiência e a verdade como possibilidades da escrita e da leitura. Se o

sentido da segunda é a transmissão da verdade, o sentido da primeira é a transformação de si

através da transformação da relação com a verdade. O leitor já pode estar aplicando essa

distinção ao próprio exercício de leitura que está fazendo agora mesmo com este texto.

Pergunto ao leitor: estas palavras sobre a experiência e a verdade estão sendo lidas como

experiência ou como verdade?

Podemos também estender esses conceitos a muitos outros campos. Para aproximarmo-nos

daqueles que participam deste programa, podemos pensar na educação. Comecemos pelo

corpo. A verdade e a experiência são possibilidades do corpo em pelo menos dois sentidos.

Há, por um lado, corpos que funcionam como verdade, e a serviço de uma verdade, para

reproduzir padrões ou valores socialmente impostos de, por exemplo, comportamento e

beleza. E a verdade é também uma possibilidade para relacionarmo-nos com os corpos, de

saber o que não sabemos sobre eles, de como eles funcionam e como devem ser mostrados e

usados socialmente. Cada sociedade contém uma série de dispositivos para produzir, legitimar

e transmitir suas verdades sobre as questões que lhe interessam. O corpo não é uma exceção.

Porém, há também a possibilidade de um corpo experiência, ou seja, de uma relação de

experiência com o corpo. Neste caso, as práticas corporais não visam à consolidação e à

transmissão de uma verdade sobre o corpo, mas, ao contrário, colocar em questão as verdades

que o corpo carrega consigo.

De fato, a questão é bastante mais ampla e a escola tem funcionado como uma das instituições

mais poderosas na legitimação e na transmissão das verdades de uma sociedade, não apenas a

respeito dos corpos. São tão fortes os dispositivos escolares – consolidados não apenas pela

rigidez dos sistemas de ensino, mas também pelas tradições culturais que se sentem

extremamente à vontade neles –, que a pergunta pela própria possibilidade de uma “escola –

experiência” não carece de sentido. Em outras palavras, é possível uma escola que funcione

como experiência e não apenas como verdade? Pode sobreviver enquanto escola uma escola

que se volta contra as verdades que ela própria afirma e dissemina?

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Um leitor poderia estar também se perguntando: e caso sobreviva, como seria esta escola no

que diz respeito às necessidades e aos desejos do corpo? A ordem disciplinar tradicional, com

as cadeiras em filas, os uniformes e os regimentos atuais, seria substituída por qual ordem?

Ou seria substituída pela falta de ordem, a desordem? Talvez seja necessário um

esclarecimento: não é apenas mudando de técnicas que se muda o modo de exercer o poder.

Por exemplo, podemos sentar os alunos em círculo, em confortáveis travesseiros, com roupas

coloridas e numa sala bem arrumada para controlar e disciplinar mais sofisticadamente seus

corpos. Também seria interessante pensar que a desordem é também uma ordem. Em todo o

caso, eis o que interessa mais a uma escrita experiência do que a uma escrita verdade: que o

próprio leitor pense a forma que uma escola mais sensível às necessidades e aos desejos do

corpo teria.

Essa pergunta, em parte, diz respeito a todos nós que habitamos a instituição escolar.

Pensemos num professor de uma escola qualquer. Ele também tem a verdade e a experiência

como possibilidades. Um professor verdade é aquele que entra na sala de aula porque pensa

que ele é portador de algumas verdades das quais carecem seus alunos. É claro que se existem

professores verdade é porque também há alunos verdade, ou seja, aqueles que entram na sala

de aula para saber a verdade que os professores pretendem lhes transmitir. Ao contrário, um

professor experiência é aquele que entra na sala de aula, mesmo afirmando uma série de

verdades, com o sentido principal de colocar suas verdades em questão, desejando mais

transformar e ser transformado do que transmitir o que já sabe. E, certamente, só há

professores experiência porque há alunos experiência. Também vale a pena se fazer a

pergunta sobre a própria possibilidade de ser um professor que funcione como experiência no

interior da escola moderna, tão próxima da lógica da verdade. Podemos ser professores

experiência no meio das condições existentes, incluindo as demandas sociais que são

colocadas na escola?

A questão diz também respeito à infância e a como a acolhemos. Se a escola pressupõe uma

infância verdade, é porque temos feito dela um dos principais objetos de saber e poder. Da

infância cada vez sabemos mais e com mais detalhes e sofisticação. Basta sabermos a idade

de uma criança para logo poder antecipar sua conduta, sua reação, e assim planejar

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adequadamente uma estratégia de desenvolvimento. Com efeito, temos feito da infância um

dos terrenos favoritos da verdade. “Diga-me teus anos e te direi como te comportarás!” O

lugar outorgado à infância atravessa a esquerda e a direita. Sabemos a verdade de uma

formação que conservará a sociedade ou ainda a revolucionará. Outorgamos um único lugar à

infância, como é lógico, num lugar onde domina a verdade. A escola verdade acolhe uma

infância verdade, cuja formação alimenta os sonhos dos educadores. Pouco importa se esses

são também os sonhos da infância.

Contudo, podemos afirmar outra relação com a infância e dispor outro lugar para ela. Ela

pode ser também algo mais do que a matéria de nossos sonhos e utopias, se abrirmos a

infância e nossa relação com ela à experiência. Mais uma vez, não está claro se isso é

possível, e como é possível, na escola moderna. Mas parece evidente que a lógica da verdade

está dando sintomas notórios de esgotamento, que ela é pouco sensível à novidade da

infância; ao novo, virtual ou atual, que cada nascimento traz consigo.

Por fim, a questão parece ir um pouco além da escola, do corpo, da disciplina, dos

dispositivos pedagógicos e, ainda, da própria infância. A questão é se somos capazes de fazer

não apenas do corpo, da escola e da infância, mas da própria vida, uma experiência. A questão

então é se é a verdade, ou se é a experiência, que dá sentido a uma vida... dentro ou fora da

escola.

Notas:

Professor titular de Filosofia da Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

2 M. Foucault. “Entretien avec Michel Foucault”. Entretien avec D. Tromabadori. In: Dits et Écrits. Paris: Gallimard, 1994/1978, p. 41.

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PROGRAMA 2

EDUCAÇÃO DE CORPO INTEIRO Daniela Guimarães1

De um modo geral, na escola, o corpo é compreendido e vivido na perspectiva do controle, da

adaptação e da repressão. O ajuste social aprisiona a expansão, o espaço dos impulsos e dos

prazeres. É preciso e precioso o silêncio, o uniforme limpo e alinhado, o jeito correto de se

sentar, o dedo levantado para a pergunta, o gesto calculado para não agitar o ambiente. O

cenário de uma escola costuma ser reconhecido pela presença de cadeiras e mesas, quadro de

giz, murais, ou seja, equipamentos materiais que legitimam a valorização dos processos de

representação (escrita, desenho, e outras marcas gráficas), em detrimento de espaços para a

acolhida e a movimentação do corpo. A dimensão individualizante do trabalho também

contribui para o isolamento corporal: carteiras para uma só criança, atividades individuais,

práticas em que o valor é colocado mais em cada um do que no grupo.

Na escola, os processos mentais têm primazia, em detrimento do corpo que, de modo geral,

ocupa o plano da eficiência, como instrumento do pensamento, funcionando como ponto de

aplicação de diversas técnicas – segurar corretamente o lápis, subir escadas alternando os

passos com sincronia, equilibrar-se, sentar de modo ereto, dentre outras. De um modo geral,

as ações educacionais valorizam mais as crianças como indivíduos do que como participantes

de um grupo social, incentivam mais os processos racionais do que os motores, sensoriais e

afetivos.

Esta situação enraíza-se nas concepções de desenvolvimento e aprendizagem que sustentam o

trabalho nas escolas. Diversos autores, especialmente do campo da Psicologia, elaboraram

visões sobre como as crianças aprendem e se desenvolvem que são incorporadas pelas teorias

pedagógicas, tendo em vista a organização das práticas e dos modos de ensino nas instituições

educacionais. Neste texto, vamos apresentar algumas destas teorias do campo da Psicologia,

com o objetivo de focalizar o lugar que o corpo assume em suas formulações.

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Em suas pesquisas, na área da Psicologia, Piaget buscava responder à seguinte questão: como

o adulto chega a pensar de modo hipotético e dedutivo, quer dizer, criando hipóteses sobre

acontecimentos futuros ou planejando mentalmente suas ações antes de serem realizadas?

Como a criança deixa de precisar dos sentidos (olfato, visão, tato, etc.) ou da experiência

direta com os objetos para conhecê-los, podendo fazer isto somente através da sua ação

mental?

De acordo com Piaget, no início, quando a criança é pequena, até mais ou menos os 6 anos,

para conhecer um objeto, é preciso manipulá-lo, senti-lo, tê-lo presente. Por exemplo, não é

possível entender quanto é a soma de 2 laranjas mais 3 laranjas, se não for possível tocar e

mexer nas laranjas de verdade. Mais tarde, a criança não precisará mais lidar materialmente

com os objetos para concluir relações entre eles, mas conseguirá mentalmente resolver

problemas que envolvam essas relações: a soma, a comparação entre as laranjas, etc. Piaget

estudou como o homem chega a não precisar dos objetos concretos para extrair deles relações,

como faz isso mentalmente, pensando sobre eles.

Piaget estudou também como nasce o conhecimento abstrato, ou seja, independente da ação

do homem sobre os objetos; como é gerado o conhecimento lógico, mental. Este projeto de

estudo piagetiano denomina-se Epistemologia Genética. Genética significa a gênese, isto é, a

origem do conhecimento. Episteme significa científico; e logia quer dizer estudo. Piaget

pesquisou a origem do conhecimento científico no homem. Neste processo, investigou o

desenvolvimento intelectual (o desenvolvimento da inteligência), dividindo-o em quatro

grandes períodos: período sensório-motor; período pré-operatório; período das operações

concretas e período das operações abstratas (ou formais).

A própria definição do projeto piagetiano já expõe o seu limite na consideração do corpo. O

conhecimento pela via das sensações e do movimento é algo a ser superado, tendo em vista a

competência mental, que se coloca como o ponto de chegada final do desenvolvimento, o

pensamento abstrato, formal, hipotético e dedutivo. Conhecer é construir relações lógico-

matemáticas no contato com os objetos.

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A partir das bases piagetianas, muitos projetos educacionais centram seu trabalho na

construção das estruturas mentais das crianças, planejando atividades em que o foco é

organizar objetos logicamente, classificar, seriar, perceber diferenças e semelhanças entre

eles. A competência intelectual e individual da criança marca as práticas.

Vigotski, também no campo da Psicologia, dedicou-se a identificar o “nascimento cultural” da

criança, a partir do substrato biológico (essencialmente corporal) que a constitui. Este autor

propõe uma abordagem dialética para a relação entre biológico e cultural, corpo e mente,

compreendendo que as construções socioculturais transformam o suporte biológico que,

paralelamente, abre-se para novas elaborações simbólicas. Para este autor, a vida

interpsicológica, a cultura na qual nasce a criança, torna-se sua vida intrapsicológica,

formando suas competências particulares, a partir de processos de negociação e re-criação

constantes.

Vigotski (1984) estuda o gesto de apontar como indicador da origem do processo de

constituição sociocultural das crianças. Sobre isso, ele diz que, inicialmente, esse gesto não é

nada mais do que uma tentativa sem sucesso de pegar alguma coisa. Mas, quando a mãe vem

e ajuda a criança, notando que o seu movimento indica algo, a situação muda; o apontar torna-

se um gesto para os outros, para a mãe, neste caso. Então, pegar um objeto transforma-se em

apontar, pela compreensão que o adulto mostra ter da ação da criança. Um comportamento de

base biológica ganha novo sentido, torna-se comportamento dirigido para outra pessoa,

comportamento social, pelo contato com o outro.

Baseado em Vigotski, o trabalho de Pino (2006) dedica-se a buscar os indícios das origens da

constituição cultural da criança no ponto onde ocorre o encontro das formas simbólicas de

comunicação adulta, com as quais o outro significa as coisas à criança, com as formas

biológicas de comunicação da criança (formas que ela dispõe ao nascer). O autor indaga se

existiriam, antes do movimento de apontar, outros mecanismos que, sem exigir a

funcionalidade motora do apontar, poderiam desempenhar um papel equivalente. Ou seja,

antes da existência da funcionalidade motora, seria possível falar já de uma atividade cultural?

Nesta pista, identifica quando e como formas de reatividade do corpo tornam-se expressivas,

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portadoras de significação. Destaca o choro, o olhar, o movimento e o sorriso como

mecanismos que promovem essa relação entre natureza e cultura, localizando, através da

relação do adulto com essas expressões do bebê, a construção de padrões relacionais com o

mundo cultural circundante.

Desde os primeiros instantes da existência, diferentes mecanismos culturais entram em ação,

conferindo ao movimento do bebê um caráter cada vez menos automático e cada vez mais

imitativo e deliberativo. Então, choros, sorrisos, deslocamentos e olhares são interpretados

pelos adultos, criando formas relacionais com os bebês. A forma natureza (reflexos,

movimentos fortuitos, balbucios, etc.) adquire um novo modo de existência quando ganha

significação nas relações interpessoais.

Ou seja, no início, a função sensorial e a função motora constituem o primeiro circuito de

comunicação da criança com o outro. Podemos ver as crianças trocando objetos, olhares,

muitas vezes de forma casual e contingente. Ao entrar em funcionamento, esse circuito as

coloca numa rede de relações em que suas ações vão ganhando significação, de acordo com a

tradição cultural do seu grupo. Pouco a pouco, ganham intencionalidade, sentido e direção.

Neste enfoque, o corpo é entendido como espaço de construção simbólica e cultural a partir

da relação com o outro. O mundo adulto insere a criança no universo das construções

simbólicas e verbais, quando, por exemplo, nomeia a ação das crianças, tutela suas

expressões, controla seus movimentos.

Pino (2006) propõe que “a cultura supõe a natureza, porque ela é, em última instância, a

própria natureza transformada em cultura, mas uma natureza que, sem deixar de ser

natureza, torna-se algo novo” (p. 268), o que se pode chamar de “natureza humanizada”.

Essa ponderação é importante porque chama a atenção para o risco da construção de

dicotomias e desequilíbrio na valorização de um ou outro plano, o natural ou o cultural.

De um lado, o trabalho de Vigotski chama a atenção para a importância das relações sociais

na constituição cultural das crianças, valorizando o que podem descobrir e como podem

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crescer em colaboração com adultos e parceiros com experiências distintas. Por outro lado, é

preciso desviar do risco de considerar o plano cultural como um ideal a atingir. É importante

focalizar, por exemplo, as formas não-verbais através das quais o mundo vai sendo

significado e experimentado. De um modo geral, os adultos se colocam como aqueles que já

sabem o que a criança quer, deseja, para onde vai seu movimento. Se as vêem perto de um

balanço, a tendência é colocá-las em cima dele; se percebem objetos perto de uma caixa,

concluem que vão colocá-los dentro dela.

O referencial que Vigotski aponta para pensarmos a aprendizagem e a escola demanda que

possamos focalizar os processos de negociação de sentidos das crianças entre si, e delas com

os adultos, como diferentes relações de força se compõem. O que pode a criança no contato

com o adulto, de fato? Qual sua potência, e não como se molda ao adulto? Trata-se de uma

tênue e fundamental diferença que se coloca no cotidiano das escolas. Até que ponto o adulto

tutela a ação das crianças, ou dispõe referências e apresenta possibilidades que podem ser

agenciadas pela criança, no movimento do seu crescimento?

No plano do corpo, o desafio é perceber como a dimensão natureza se torna cultura sem

deixar de ser natureza, expressão de emoções e afetos não deliberados. Gestos e movimentos

que nascem do imponderável, para obter prazer pelo prazer, podem tornar-se gestos para e

com o outro, sem que se perca o espaço para o irrefletido, o inesperado, a surpresa, a alegria.

De modo semelhante a Vigotski, as investigações do psicólogo Wallon buscavam como as

conexões cerebrais modificam-se à medida que o ser humano relaciona-se socialmente.

Conversas do bebê com a mãe, o colo dos adultos, poder ver e escutar outras pessoas, tudo faz

com que as regiões do cérebro do bebê se ampliem e mudem suas funções. As interações

sociais transformam os padrões biológicos. Wallon afirmava que o humano é organicamente

social. Também como Vigotski, Wallon propõe que somos sujeitos a partir do outro, pela

mediação do outro, ou seja, a partir da linguagem, que se coloca no meio, entre nós e o

mundo, para organizar a nossa relação com ele. Mais uma vez, neste caso, o desafio é

perceber a linguagem para além da dimensão oral, materialização do pensamento. Há

linguagem nos olhares, no toque, na entonação, em outros modos de significar e trocar com o

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outro, para além da forma verbal dominante e socialmente mais valorizada – qual o lugar

destas outras formas na escola?

Wallon propôs três centros que se entrelaçam diferentemente, ao longo do desenvolvimento

da criança: a afetividade, a motricidade e a cognição. Num período inicial do

desenvolvimento, no recém-nascido, predomina a afetividade (a inteligência ou cognição não

se separa da afetividade). É o período denominado por ele como impulsivo-emocional (até por

volta de 2 anos). Nesse momento, o autor reconhece algo como um "diálogo tônico", ou seja,

uma espécie de conversa entre o bebê e o adulto por intermédio não só das palavras, mas do

tônus corporal, da expressão facial, dos gestos, do contato físico.

É na relação com o movimento e a fala dos adultos que a criança vai entendendo quem é ela e

quem são os outros. O processo de imitação tem um papel importante neste momento.

Quando faz algo igual a alguém, quando busca imitar a palavra dita pela mãe, quando imita o

jeito de a avó esconder um boneco embaixo de um pano, a criança ganha novos movimentos e

vai inserindo em seu repertório a possibilidade simbólica, ou seja, a capacidade de representar

ações e objetos ausentes do seu campo perceptivo, da sua visão presente.

Conforme os movimentos se expandem e desenvolvem-se – o pegar, o andar e o deslocar-se

no espaço – também os movimentos simbólicos aparecem. Trata-se do que Wallon denomina

dos primeiros ideomovimentos, característicos do período sensório-motor projetivo (entre 2 e

4 anos).

Wallon propõe que o ato motor – o deslocamento do corpo no espaço com cada vez mais

desenvoltura e segurança – gera o ato mental. As primeiras idéias mentais das crianças

nascem em seus movimentos. Ao observarmos crianças pequenas (de 3 anos, por exemplo)

brincando, é comum percebermos que dos gestos brotam palavras e significados. Também

quando desenham, só conseguem dizer o que fizeram depois que terminam e não antes. Ou

seja, as palavras que retratam as idéias surgem nas relações e ações no espaço.

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É importante ressaltar que o ato mental inibe o motor, mas não deixa de ser atividade

corpórea. Começa a haver uma economia no movimento quando o pensamento ganha um

lugar maior, à medida que a criança mexe menos músculos para realizar tarefas. No entanto,

Wallon reconhece nas atividades de pensamento o que ele chama de função tônica do

movimento, ou seja, uma motricidade expressiva. Então, há dois tipos de atividade corpórea:

a cinética, responsável pelo movimento, deslocamento, mudança de posição e a atividade

tônica, presente na imobilidade e responsável pela expressividade.

Para Wallon, por volta dos 4 anos, surge o período personalista, momento de afirmação do eu;

e a partir dos 7 anos, o período categorial, quando o domínio cognitivo oferece as bases para

que se desenvolvam as ações mentais de explicar, definir, diferir objetivamente o mundo.

É relevante pensarmos que tanto a dimensão afetiva, quanto a cognitiva (mental) e do

movimento estão em jogo em todos os momentos do desenvolvimento. Não há para Wallon

superposição de uma pela outra, somente predominância alternada. Valorizar estes três planos

no cotidiano da escola é um desafio!

A contribuição de Wallon para pensarmos a escola traz algumas outras provocações: como

equacionar a valorização tanto do movimento cinético quanto do tônico, quer dizer, a

importância dos deslocamentos da criança no espaço, da expansão, correr, pular, saltar e a

contração inerente ao pensamento? Como considerar o que o autor denomina como diálogo

tônico, que aparece entre o bebê e o adulto, como forma de relação mediada pelo contato

corporal, como algo importante para a vida inteira? Como o professor toca, olha, escuta e,

pelas vias sensoriais, constitui uma qualidade afetiva na relação com as crianças no cotidiano?

Autores contemporâneos do campo da Biologia e da Psicologia, Maturana e Varela, propõem

que sujeito e meio são efeitos de uma rede processual, constituindo-se reciprocamente. O

princípio é a relação. Assim, não conhecemos um mundo preexistente, que existe

independente de nossas ações nele. Não há separação entre nosso conhecimento do mundo e o

que fazemos nele. Essa circularidade entre ação e experiência permite a afirmação de que todo

ato de conhecer faz surgir um mundo. Quando nos debruçamos sobre a realidade para

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conhecê-la, também produzimos essa realidade. Na relação entre sujeito e ambiente, ambos

estão em constante mudança. A capacidade de o organismo produzir a si mesmo sem destruir

sua unidade é denominada pelos autores de autopoiesis.

Assim, a cognição, ou a produção de conhecimento, acontece no domínio das interações de

todo o sistema autopoiético (onde a produção de sujeito e a produção de mundo acontecem

simultaneamente). Portanto, o conhecimento não é algo que acontece na mente, mas em todo

o corpo. Maturana e Varela chamam de enação a cognição corporificada, isto é, o fruto da

ação do sujeito no mundo, possibilitada pelo corpo. A ação é guiada por processos sensoriais.

A partir dessas idéias de Maturana e Varela, podemos dizer que a aprendizagem envolve a

coordenação de corpo e mente e não somente a representação mental do mundo.

Aprendizagem não é repetição mecânica, mas atividade criadora, que envolve o acoplamento

do organismo com o meio. Na escola, é importante focalizar quais as experiências sensoriais,

afetivas e relacionais das crianças, tendo em vista percebermos quais mundos criam e como

são constituídas como sujeito. A experiência produz o conhecimento e produz a própria

criança, como exploradora, criadora, confiante em si, ou submissa, passiva, expectadora da

ação do outro.

A interlocução com a Filosofia dilata essa compreensão da aprendizagem como criação de um

mundo, experiência e não representação mental, algo que acontece somente no pensamento.

Deleuze (1987), analisando a obra de Proust, propõe que a aprendizagem acontece sempre por

intermédio de signos e não pela assimilação de conteúdos objetivos; acontece quando um

signo interpela o sujeito, no encontro, não como algo planejado de antemão. Para o autor,

todo aprendiz é “egiptólogo” de alguma coisa, decifra signos que emanam dos objetos, do

mundo, das relações.

Portanto, para a escola, coloca-se o desafio de organizar espaços, objetos, relações que

incitem ao movimento, aos encontros, à alegria, à surpresa e ao imponderável. Isso não

significa deixar de lado ou de fora o pensamento e a razão, mas de equacioná-los com o corpo

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e a emoção, na perspectiva de dar sentido e compreender os acontecimentos da vida, o que é

diferente de controlar a vida, antes que ela aconteça.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense, 1987.

MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo

Horizonte: Editora UFMG, 2002.

PIAGET, Jean. O raciocínio na criança. Rio de Janeiro: Record, 1967.

PIAGET, Jean. O nascimento da inteligência na criança. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.

PINO, Angel. As marcas do humano: as origens da constituição cultural da criança na

perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005.

VYGOTSKY, Lev Seminovich. A formação social da mente. São Paulo: Martins

Fontes, 1984.

VYGOTSKY, Lev Seminovich. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes,

1987.

WALLON, Henri. As origens do caráter na criança. São Paulo: Nova Alexandria,

1995.

WALLON, Henri. As origens do pensamento na criança. São Paulo: Manole, 1989.

Nota:

Professora do Curso de Especialização em Educação Infantil – Perspectivas de trabalho em creches e pré-escolas – na PUC-Rio. Doutora em Educação pela PUC - Rio.

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PROGRAMA 3

ACONCHEGANDO O CORPO NA ESCOLA: AS PERSPECTIVASPensando o lugar do corpo na escola

Alexandra Pena1

Isabel C. Bogéa2 Leonor Pio Borges3

A famosa máxima “penso, logo existo” implica numa concepção que permeia todo o

conhecimento e os valores ocidentais, e que tem duas características muito definidas: a de que

corpo e mente são opostos, e a de que o corpo é um mero suporte para as nobres atividades

mentais. Essa concepção, na escola, se materializa como a crença de que só se aprende com a

mente.

Nossos questionamentos estão relacionados, principalmente, às rotinas e atividades escolares

que envolvem o corpo, de bebês dos berçários até crianças de 10 anos, como comer, brincar,

tomar banho, correr, se mexer, dançar, ir ao banheiro... Por que estabelecemos uma “hora”

para cada uma dessas atividades? Será que todo mundo tem fome junto? Quem diz que é hora

de dormir? Além disso, por que propomos determinadas atividades e não outras? Temos, na

escola, uma hora para dançar? E para fazer o que se tem vontade?

No início, procuramos compreender o modelo de escola vigente, evidenciando, a partir desta

contextualização, a relação que a sociedade ocidental estabeleceu com o corpo e com suas

necessidades e desejos. Em seguida, abordamos a questão do corpo como a primeira morada

do psiquismo e finalizamos com a esperança de conquistar novas concepções sobre o corpo e

sobre a criança, que gerem desdobramentos nas práticas pedagógicas e no cotidiano da escola.

Historicamente, a relação do ser humano com o corpo é marcada pelo controle. Hoje, as

instituições escolares ainda reproduzem estas práticas dicotômicas por duas razões: primeiro,

porque o discurso higienista produziu, além de uma preocupação com o corpo, a saúde e a

higiene, um discurso social e político, e segundo pela presença ainda marcante de instituições

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religiosas nos espaços educacionais, sustentadas por um discurso do sagrado e da moral. O

controle da economia do corpo pela limpeza, pela abstinência sexual e não-masturbação foi

um princípio básico para a formação dos sujeitos capitalistas e cristãos, que nós somos.

Os corpos ficaram cada vez mais regulados e administrados em nome da ordem social. O

corpo solto torna-se imoral, desviado, desocupado e deve ser transformado, com a ajuda da

educação moral, em corpo útil. Segundo Foucault (1982), poderíamos dizer que o século XIX

realizou um “grande esforço de disciplinarização e de normalização”.

Podemos constatar a expressão destas marcas em algumas práticas escolares como: filas de

carteiras, o emparedamento por horas a fio das crianças dentro das salas de aula, as filas

indianas, as músicas para todas as atividades, a hora definida de cada coisa, etc.

A descoberta das crianças como seres diferentes dos adultos trouxe uma questão: como fazer

para educá-las, para torná-las virtuosas? Uma das respostas encontradas foi a criação de

instituições para civilizar as crianças e, em conseqüência, controlar as famílias e a sociedade

(Barbosa, 2006, p.54).

A rotina da escola demonstra um automatismo das relações e uma acomodação a padrões de

comportamento previamente estabelecidos, onde não há lugar para o surgimento do novo.

Que concepções de criança e de desenvolvimento infantil estão por trás desse modelo de

educação? Seria a concepção de uma criança autônoma, criativa, capaz de produzir cultura?

Parece mais a de uma criança em falta, que precisa ser ensinada, moldada.

No entanto, não podemos nos esquecer que somos, nós mesmos, profissionais de educação

cuja formação é marcada fortemente pelo viés cartesiano que perpassa toda a civilização

ocidental e que, inclusive, influencia a forma como construímos e organizamos nosso

conhecimento. Deste modo, por mais que saibamos que não existe desenvolvimento motor

separado de desenvolvimento afetivo nem de desenvolvimento cognitivo, ainda é difícil ter

um olhar integrado sobre o processo de desenvolvimento de nossas crianças na prática

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cotidiana. O risco de compartimentalizar o processo de desenvolvimento infantil é real e

constante

Além dessa compartimentalização, existe a questão do peso que cada um desses aspectos

encontra em nossa sociedade. Como já colocado anteriormente, vivemos numa sociedade que

prioriza o racional, o pensamento, os processos mentais em detrimento de outras experiências

como as sensoriais, sentimentais, artísticas e o contato com a natureza.

A importância dada à ordem e ao controle aparece claramente em diversos momentos do

cotidiano: as crianças não têm liberdade para escolher as atividades que desejam realizar, de

se servirem sozinhas na hora do almoço, de dormir o tempo que precisam, de se

movimentarem da maneira que quiserem.

Todas essas questões nos fazem refletir sobre como a escola pode acabar contribuindo para a

formação de pessoas sem autonomia, que desconhecem seus próprios corpos, seus

sentimentos, suas possibilidades e seus limites.

É através do corpo que a criança experimenta o mundo, conhece as sensações de calor, frio,

aconchego, dor, prazer, medo, etc., mas para isso é necessário que ela possa se movimentar e

interagir com o ambiente à sua volta. De fato, para Maturana (2001) viver é sinônimo de

conhecer. Segundo este autor, um biólogo chileno, o ser humano aprende com o corpo inteiro.

Seu conceito de acoplamento estrutural supõe que o conhecimento se dá nas trocas

estabelecidas a partir das relações do ser humano com o outro humano, mas também com o

outro ambiente à sua volta.

Neste processo, o ser humano se modifica e modifica o outro simultaneamente, o que

significa dizer que a cada encontro, a cada momento, estamos modificando e sendo

modificados, numa espiral infinita que só cessa com a morte. Esse conceito dá a dimensão da

importância do espaço entre o eu e o outro, o espaço da relação, que é chamado por Maturana

de espaço de convivência. (Maturana, apud Pio Borges de Castro, 2006, p. 16) Este conceito

implica num ambiente verdadeiramente acolhedor à construção do conhecimento, pois parte

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do princípio de que o conhecimento não está em mim nem no outro, mas sim na relação que

estabelecemos entre nós. Esse pressuposto inclui a necessidade de reconhecer a alteridade em

todas as suas dimensões, pois, sem respeito ao outro, às suas diferenças, desejos e

necessidades, não há aprendizado, não há paz no viver e no conviver.

Para Maturana (2001), o conhecimento não é representativo, não está gravado na mente

humana, mas é corpóreo – está gravado em nossos corpos, o que inclui outras dimensões que

não só a mente racional humana: inclui as sensações corporais e os sentimentos vivenciados.

No entanto, estamos inseridos em uma cultura que enfatiza o conflito mente-corpo e a escola

acaba reproduzindo esta dualidade em suas estruturas curriculares e em suas rotinas.

(...) o jeito de ser do nosso corpo não é algo que possuímos “naturalmente”, não é apenas

uma construção pessoal, mas social e política: é algo aprendido, construído ao longo de

toda a vida. Portanto, a história e a cultura significam nossos corpos (Tiriba, 2001, p. 01).

Há uma grande valorização do intelecto, já que a sociedade em que vivemos tende a ignorar

tudo aquilo que nos identifica enquanto animais. Relegando o corpo a um segundo plano,

ficam também esquecidos outros canais de expressão, entre eles as sensações físicas, as

emoções, os afetos, os desejos.

As práticas escolares, em geral, associam movimento à bagunça, à dispersão e, por isso,

privilegiam o não-movimento, a postura estática, quieta e atenta como condição para a

aprendizagem. Valoriza-se apenas o movimento mecânico e sistemático, que tem como

objetivo aprimorar a coordenação motora, para garantir a aquisição da leitura e da escrita ou,

ainda, o movimento ligado à prática esportiva.

Um corpo escolarizado é capaz de ficar sentado por muitas horas e tem, provavelmente, a

habilidade para expressar gestos ou comportamentos indicativos de interesse e de atenção,

mesmo que falsos. Um corpo disciplinado pela escola é treinado no silêncio e num

determinado modelo de fala; concebe e usa o tempo e o espaço de uma forma particular.

Mãos, olhos e ouvidos estão adestrados para tarefas intelectuais, mas possivelmente

desatentos ou desajeitados para outras tantas (Louro, apud Pena, 2003, p. 35).

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Os comportamentos e os movimentos previamente determinados compõem a rotina de

atividades infantis, desconsiderando o interesse das crianças. O espaço externo das escolas

costuma ser muito mal aproveitado, restringindo-se apenas ao recreio. O dia-a-dia escolar

lembra o de uma linha de montagem, onde os encontros acontecem sem criatividade, sem

troca, sem emoção, sem produção de conhecimento.

Hoje, quando ainda temos muitas de nossas práticas educativas resultantes desse modelo

autoritário e assistencialista, observamos, com freqüência, escolas que mantêm na sua rotina

um excessivo controle sobre as atitudes espontâneas das crianças.

O atendimento aos bebês também denuncia práticas estereotipadas de atendimento. Com a

criação de berçários, um enorme número de bebês passou a ser atendido em ambiente escolar.

O que dizer dos bebês que são impedidos, por exemplo, de explorar os alimentos com as

mãos, com a boca, de se sujarem por inteiro? Provavelmente, eles perderão muito com relação

à conquista de sua autonomia pessoal e parte da confiança em si mesmos.

Em geral, não temos idéia do quanto o corpo, desde muito cedo, está implicado na

constituição do psiquismo. No início da vida, nossa comunicação com o mundo se dá no nível

corporal, através dos sentidos: tátil, olfativo, visual, auditivo, gustativo e muscular (Anzieu,

1989).

O nascimento biológico e o nascimento psíquico não coincidem no tempo. Neurobiólogos,

psicólogos, além de psicanalistas, vêm estudando esta questão desde os anos 70,

principalmente na França e nos EUA, procurando identificar o percurso que leva ao

nascimento psíquico, considerando especialmente a enorme plasticidade do cérebro nos três

primeiros anos de vida.

Em um primeiro momento, o bebê vai adquirindo, pouco a pouco, a consciência de uma

separação de corpos entre ele e seus cuidadores. Adquirir a consciência desta separação é uma

travessia extremamente delicada que se dá durante o primeiro ano de vida. Sair da unidade-

dual, para perceber a existência de um “eu” e de um “não-eu”, é o caminho inicial para o

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desenvolvimento do psiquismo. De início temos, portanto, um ego corporal para construir um

ego psíquico. Segundo Tustin (1990), a maneira como o bebê toma consciência do “não-eu” é

essencial à constituição de sua identidade individual.

Numa interseção com seus cuidadores, que deve ser contínua, se dá a interpenetração de

alguns aspectos corporais: os olhos relacionados ao olhar acolhedor do outro; a boca

relacionada à amamentação e ao auto-erotismo oral; a vivência de colo, experimentada como

suporte pelo bebê, numa junção entre cabeça, nuca e costas e, finalmente, todos estes aspectos

embalados pela capacidade de expressar sons adquirida pelo bebê. Num sutil alinhavar de

sensações, o bebê vai organizando seu corpo e percebendo-se como único e inteiro.

Os processos de subjetivação vão depender dessa primeira organização do corpo sensível.

Nesta primeira costura se faz necessária uma parceria com a doçura, como acolhedora deste

funcionamento precoce, em que as emoções ainda são confundidas com as sensações (Haag,

1991, p. 53-54). Será através da doçura do toque que construiremos a ternura. “A ternura é,

portanto, inicialmente tátil” (Fontes, 2002).

O sentido do toque entre o cuidador e o bebê é uma maneira de transmissão entre os dois. O

toque entre cuidador e bebê pode resgatar ou impedir um melhor equilíbrio nesta díade, que é

a base do contato do bebê com o mundo. Com o nascimento de um bebê, recebemos em

nossos braços muito mais que uma tabula rasa, na qual iremos imprimir nossa educação

parental ou pedagógica. O que na verdade ocorre são trocas bilaterais, que são construídas

desde o nascimento. Estas interações podem formar uma troca positiva quando há: sincronia

(simultaneidade), mutualidade (reciprocidade) e sintonia afetiva. Por outro lado, temos as

interações patológicas e patogênicas – que são o resultado de sobrecarga, carência e

assincronia (Golse, 2003).

O cuidador é uma peça-chave nesta atmosfera que envolve o bebê. Se o adulto for sensível a

este momento especial da vida do bebê, estará cuidando do espaço relacional entre ele e o

bebê, construindo um “campo de afetação” (Maia, 2004) favorável ao desenvolvimento

infantil. Desta forma, promove-se o fortalecimento dos laços afetivos, fundando uma

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intimidade estruturante na escola. Estes subsídios permitem que os educadores possam

identificar diferentes modalidades relacionais, com o intuito de promover interações positivas

que incentivem o desenvolvimento saudável do bebê e da criança, prevenindo assim,

possíveis desequilíbrios nestas trocas.

Nos lactentes, percebemos que os estímulos auditivos constituem o grande motor da

interação. A voz do adulto provoca sorrisos, atrai o olhar, facilita uma relação face a face,

além de permitir uma troca de comunicação verbal. O ambiente lingüístico dos bebês está

composto por formas particulares de linguagem. A prosódia (pronúncia das palavras)

contribui para a estruturação do universo afetivo do bebê e também ajuda na estruturação de

seu tratamento da palavra. A criança, ainda bem pequena, já percebe os sons das palavras,

podendo organizá-los, segmentá-los e reconhecê-los. Os bebês reagem às variações na

duração e na entonação da fala dos adultos e, em resposta, se comunicam, se identificam e

captam a emoção transmitida em cada fala. A maneira de falar com as crianças, assumida,

“instintivamente” pelos pais e por grande parte dos que cuidam das crianças, mergulha a

criança num banho lingüístico e afetivo (Soulé & Cyrulnik,1999).

A Educação Infantil, ao lidar com crianças de zero a cinco/seis anos, e a primeira parte do

Ensino Fundamental, ao lidar com crianças até 10 anos, são etapas que estão mergulhadas no

mundo da comunicação, não só da comunicação verbal, como também da comunicação não-

verbal. O mundo da expressão corporal e sensorial, embora desprezado, é um universo a ser

explorado, quando o aprendizado direcionado e restritivo não dominará mais as relações

escolares.

Portanto, é de crucial importância que os educadores sejam sensíveis às necessidades e

desejos do corpo. Mas como desenvolver essa escuta com as crianças se não a tivermos

conosco? Como perceber as sensações dos outros sem conectarmos as nossas próprias? Como

estar aberto às emoções infantis sem recuperarmos os nossos sentimentos? Como acompanhar

o ritmo das crianças sem sentirmos os nossos ritmos biológicos?

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Novas práticas, como a arte milenar de massagem para bebês desenvolvida na Índia, chamada

Shantala, poderiam ser desenvolvidas nas creches e nas escolas.

A Shantala na escola seria uma ponte entre a experiência corporal com o bebê e a

apropriação de um olhar mais amplo pelas educadoras de berçário. Praticar a Shantala, para

além de uma técnica, traduz uma oportunidade de contato não só com o corpo do bebê, mas

também com o próprio corpo das educadoras, repensando a relação que estabelecem com

cada criança, assim como valorizando as inúmeras formas de comunicação produzidas

pelas crianças. Tocar implica em ser tocado, já que o relaxamento necessário para a prática

da Shantala pode trazer uma nova forma de contato das educadoras/cuidadoras com elas

próprias, oferecendo novas representações psíquicas, que seriam acolhidas num trabalho de

formação destas educadoras (Bogéa Borges, 2007, 57-58).

Estar atento ao corpo, aos sentimentos e aos desejos das crianças nas relações e atividades

cotidianas na escola implica reconhecer, legitimar e dar voz às necessidades infantis, seja da

ordem do corpo ou do psiquismo, favorecendo o desenvolvimento de seres sensíveis a si

mesmos e aos outros. Nas situações cotidianas, por exemplo, esse reconhecimento acontece

quando a criança chega a um adulto mostrando o joelho machucado e este pergunta “está

doendo?”. Ou quando uma criança bate em outra e o adulto pergunta: “O que aconteceu?

Você está com raiva? Por que você fez isso?” Estas perguntas fazem com que a criança possa,

gradativamente, perceber e nomear as sensações do seu corpo e seus sentimentos até que seja

capaz de expressar-se pela fala, verbalizando as situações ocorridas, as sensações

experimentadas, os seus pensamentos e sentimentos. Dessa forma, constituem-se como

sujeitos sensíveis a si mesmos e ao outro, pois, ao experimentarem um olhar externo atento,

carinhoso e acolhedor em relação a si, são marcados inevitavelmente pela dimensão da

alteridade.

Em outras palavras, estamos falando de um ambiente que possibilite a constituição de sujeitos

solidários, conscientes de si e da alteridade, da existência de um outro que é “diferente de

mim”. Num mundo regido cada vez mais pela massacrante ditatura do individualismo e do

imediatismo, do “eu quero agora”, do “não me importa o que você sente, pensa ou qual a sua

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situação – me importa que eu esteja satisfeito”, é urgente pensarmos, como profissionais de

educação, nos seres humanos que estamos formando e que queremos formar.

Segundo Tiriba (2005), o paradigma que norteia a civilização ocidental produz desigualdade

social, desequilíbrio ambiental e sofrimento pessoal. De fato, cada vez torna-se mais claro que

há algo errado num mundo onde existe um abismo entre os muitos sem nada e os poucos que

concentram a riqueza; onde a natureza sinaliza não suportar mais o modo de produção

capitalista que a explora sem trégua; e, por fim, um mundo em que os seres humanos estão,

cada vez mais, consumindo compulsivamente (bens, medicamentos, drogas, comida, sexo,

etc.) em busca de uma satisfação que não chega, o que os mantém cada dia mais deprimidos e

angustiados.

É preciso mudar. É preciso resgatar e valorizar a dimensão do cuidado conosco, com o outro e

com o mundo, começando no berçário das creches e, se possível, até incorporarmos o cuidado

ao nosso modo de viver.

Pensamos que um caminho é considerar uma concepção de formação e qualificação dos

profissionais de educação que estimule um processo de construção de autonomia, que só é

possível valorizando a história, a experiência, a palavra e também o corpo desses

profissionais.

Ao analisar as práticas escolares, especificamente entre os bebês de berçários e as crianças de

até 10 anos, procuramos demonstrar o quanto rotinas estereotipadas podem prejudicar uma

experiência rica em trocas, transformando-a numa atividade mecânica e carente de sentido.

Todos os envolvidos nesta cena sofrem, tanto adultos, como crianças. A coragem de mudar

aparece bem traduzida nas palavras de Freire:

Não nos tornamos "delinqüentes", anti-sociais, "narcisistas", deprimidos, obcecados pela

domesticação do corpo e por sensações corporais estáticas apenas porque queremos devorar

tudo e todos, segundo a lei do consumo. Tornamo-nos cronicamente insatisfeitos, infelizes,

abatidos, ansiosos, impiedosos, truculentos, apáticos ou "resignados" porque nos fazem ver,

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sentir e pensar que nada do que somos ou temos desperta o menor "interesse", "admiração",

"cuidado" ou amor do outro (Freire Costa, 2000).

Reafirmamos nosso desejo de contribuir para um mundo diferente, uma vida menos banal,

onde a “ética do cuidado” possa retomar o seu valor, ao favorecer em cada um o encontro

com sua maneira singular de ser. Assim, propomos e buscamos maneiras de conviver com

nossos parceiros de vida, tenham eles a idade que tiverem, estimulando que o debate, os

desdobramentos e as respostas possam ser construídos pelos que vivem a experiência num

eterno compartilhar ao longo do trabalho e ao longo da vida.

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Revista Vida Simples - 06/2003

Nós fazemos o mundo.

Notas:

Psicóloga com Formação em Psicoterapia Reichiana, especialista em Educação Infantil pela PUC-Rio e mestranda em Psicologia pela UFRJ.

2 Psicanalista e membro do grupo de pesquisa "Primórdios da Vida Psíquica - Clínica dos Primeiros Anos", do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ. Especialista em Educação Infantil pela PUC-Rio.

3 Psicóloga, bailarina, especialista em Educação Infantil e mestranda em Educação pela PUC-Rio.

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PROGRAMA 4

EDUCAÇÃO E VIVÊNCIA DO ESPAÇO: DIÁLOGOS ENTRE A ARQUITETURA E A PEDAGOGIA

Léa Tiriba1

Salas de aulas, geralmente inóspitas, alunos em carteiras enfileiradas, quadro de giz, um

professor à frente: estranha e inadequada organização, em especial, nos lindos “dias-de-sol-lá-

fora”. Fechada entre muros, estranha à interação com a realidade social, desarticulada dos

cenários onde ocorre a vida de verdade, indiferente, insensível ou artificial na relação com o

que, de fato, para as crianças e jovens, mobiliza e tem significado. E inadequada à saúde do

corpo, à relação dos humanos com o mundo natural, ao desfrute do sol, do vento. Indiferente à

beleza do universo mais amplo em que estamos situados, às necessidades do corpo e do

espírito. Espaço contido, de crianças e adultos emparedados, mas fervilhante de energias.

A escola é o único espaço social que é freqüentado diariamente, e durante um número

significativo de horas, por adultos e crianças. Para os pequenos, que freqüentam creches, pré-

escolas e as séries iniciais, especialmente os que permanecem em horário integral, é aí que,

para além do convívio familiar, aprendem a viver e a conviver. Nove horas diárias, às vezes,

mais! Para quem tem entre 0 e 10 anos, o que resta de tempo em cada dia? Se é na escola que

grande parte da vida transcorre, é preciso que aí as crianças se sintam muito bem, que aí sejam

felizes...

Referindo-se às áreas destinadas às escolas nas cidades contemporâneas do Terceiro Mundo, a

arquiteta Mayume de Souza Lima escreveu:

As construções podiam se destinar tanto a crianças, a sacos de feijão ou a carros, pois são

apenas áreas cobertas, com fechamento e piso. (...) os seres humanos perderam não apenas

a sua capacidade única de dar sentido às coisas, mas também perderam o instinto primário

de todos os animais adultos de buscar o ambiente mais favorável para o desenvolvimento

dos seres jovens de sua espécie (Lima, 1989, p.11).

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Atualmente, somos informados sobre esforços investidos por dirigentes de secretarias de

educação, e mesmo por diretores e/ou professores, no sentido de qualificar os espaços

escolares. Sabemos de escolas que reorganizam as salas derrubando paredes, introduzindo

grandes espaços interativos e cantos para brincadeiras; que abrem “janelas” nos muros,

possibilitando a visão do lado exterior; que assumem o entorno, os parques, as praças, o

patrimônio cultural e ambiental da cidade como objeto de investigação pedagógica.

Entretanto, esta não é a realidade da maioria das cidades brasileiras! No município do Rio de

Janeiro, por exemplo, várias escolas não dispõem de áreas ao ar livre. O resultado é que

crianças passam manhãs e/ou tardes inteiras em espaços fechados, muitas vezes em salas

inteiramente ocupadas por mesas e cadeiras.

Mesmo considerando a precariedade de muitos Sistemas de Ensino, a situação salarial dos

professores e os recursos limitados para a educação, entendemos que é hora de levantar a

bandeira da qualidade de vida nas escolas! Não é mais possível compactuar com a

insalubridade do modo de funcionamento escolar. Já é hora de serem efetivadas as condições

concretas de materialização dos direitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente e

que dizem respeito à integridade da pessoa humana.

Este desafio exige que superemos uma visão de mundo que concebe os seres humanos

separados do mundo natural. Não podemos esquecer que o divórcio primordial da

modernidade, entre seres humanos e natureza e os outros que dele se originam – entre corpo e

mente e entre emoção e razão – se materializam também nos espaços escolares. Como

assegurar bem-estar se as crianças não são assumidas em sua integralidade existencial, se a

escola não tem pelo corpo o mesmo apreço que tem pela mente?

Escola: um direito, uma alegria!

Do ponto de vista das crianças, não importa que a escola seja um direito, importa que seja

agradável, interessante, instigante, que seja um lugar para onde elas desejem sempre retornar.

O poder público tem o dever de assegurar acesso e permanência. Mas, a freqüência à escola

não pode ser entendida apenas como direito a um espaço que ofereça proteção física e

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desenvolvimento cognitivo. É preciso que as crianças se sintam bem, que sejam cuidadas; e

cuidar implica oferecer aquilo que satisfaça o conjunto de suas necessidades e desejos.

Entretanto, as escolas:

Não são pensados para crianças alegres e brincalhonas, (...) mas para “massas de crianças”

(...). Roubam das crianças o direito a flores e gramados, à água no pátio, barro, areia, salas

amplas, abertas, coloridas, saudáveis (Hoemke, 2004, p.18).

Segundo esta autora, quando se trata de construir escolas, aqueles que pensam e projetam os

espaços das crianças não se dedicam a compreender a lógica da infância. Muitas vezes, o

projeto arquitetônico é realizado por uma empresa terceirizada, a partir de dados de demanda,

como número de crianças e o que se quer nas salas. Estas informações são obtidas junto às

equipes das Secretarias de Educação. Isto é, no processo de elaboração do projeto

arquitetônico, há pouca ou nenhuma participação de educadores, crianças e suas famílias,

aqueles que farão uso do prédio que está sendo construído.

Referindo-se ao processo de definição do local que abrigará a escola, Lima (1989) aponta uma

situação ainda comum: nem sempre é escolhido pela sua salubridade, acesso, topografia, mas

por decisões políticas “que se voltam para o não confronto com os loteadores e para a

diminuição aparente dos custos da construção dos prédios” (p. 65).

Há ainda um aspecto, relativo às políticas de ampliação do acesso à escola, que podemos

denominar como “ideologia do espaço construído”. Consiste em ocupar todos os espaços do

terreno com edificação de salas. Assim, as crianças ficariam confinadas, porque as áreas ao ar

livre vão sendo ocupados com novas instalações, o verde vai sumindo, as crianças vão ficando

emparedadas.

Esta situação se deve à falta de recursos econômicos, mas também a uma visão que objetiva

estender a cobertura do atendimento, sem assegurar qualidade de vida. Neste caso, o

compromisso do poder público está restrito ao cumprimento de um dever que corresponde a

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um direito legal. Porém, esta referência não basta, porque a ética do cuidar não se pauta num

conceito de moralidade centrado em direitos, num princípio moral abstrato, assentado sobre

condutas universais (Tronto, 1997). Pois, partindo do princípio de que as pessoas são

singulares, não há uma quantidade ou uma determinada maneira de cuidar que sirva a todas.

Assim, oferecer instalações adequadas à saúde e ao bem-estar das crianças e adultos é cumprir

com um primeiro dever, pois não basta que a freqüência à escola seja apenas um direito, é

preciso que, para as crianças, seja também uma alegria!

Na contramão do desejo, aprisionadas, as crianças vão sendo despotencializadas, adormecidas

em sua curiosidade, em sua exuberância humana. Como diria Foucault (1987), seus corpos

vão sendo docilizados. Sua subjetividade vai sendo modelada. Esta situação corresponde, no

plano macropolítico, a um quadro socioambiental em que a natureza vai sendo também

destruída. Este duplo e simultâneo processo de degradação vai fazendo da Terra um planeta

inóspito, inadequado para a vida das espécies que hoje o habitam, e o das instituições

educacionais, espaços de aprisionamento, de impotência.

Controle e docilização dos corpos

Embora já haja documentos orientadores2, em muitas cidades, prevalecem os padrões antigos.

A denúncia da arquiteta Mayume de Sousa Lima é ainda atual:

“(...) as salas de aula tinham, como continuam tendo, orientação para abertura de janelas à

esquerda das carteiras, quadro à frente (...), junto à porta de acesso, com visor para a

inspeção dos administradores. Essas salas sucediam-se lado a lado, ao longo de corredores

(...). Este esquema, sempre igual, dava às escolas uma ar de caserna ou de presídio, onde as

crianças caminhavam em filas, sob as vistas dos professores ou dos bedéis. Mas o esquema

ainda hoje não mudou inteiramente. O condicionamento à disciplina dá o tom geral dos

espaços escolares” (Lima, 1989, p. 58).

A questão do controle relaciona-se com a possibilidade de olhar cada indivíduo. Na visão de

Foucault (1987), o próprio conceito de indivíduo foi produzido socialmente, e este foi um dos

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aprendizados fundamentais para a adequação das pessoas ao modo de produção capitalista. De

fato, os espaços das salas favorecem o olhar atento e o acompanhamento das ações de cada

indivíduo. Excluindo as inovações que já podemos vislumbrar, em especial em algumas

experiências inspiradas em concepções sociointeracionistas, podemos dizer que a própria

organização dos espaços é definida em função de assegurar a atenção de cada um, não do

grupo. O seu objetivo é contribuir para a formação de pessoas que atuem produtivamente na

sociedade.

Como, na perspectiva moderna, o atributo humano principal para esta atuação é a razão, são

priorizados os espaços que favoreceriam o seu desenvolvimento. As salas escolares, como as

demais áreas fechadas que limitam os movimentos, seriam lugares mais apropriados que os

pátios para modelizar as formas de pensar, agir e sentir, assim como para controlar as

possíveis diferenças e ensinar as crianças a tornarem-se capazes, úteis e adequadas ao

mercado de trabalho. Nas palavras de Lima:

(...) o poder, primeiro da sociedade, depois das instituições representativas desta sociedade

e, terceiro, dos adultos em geral, se apodera dos espaços da criança e o transforma num

instrumento de dominação. A organização e a distribuição dos espaços, a limitação dos

movimentos, a nebulosidade das informações e até mesmo a falta de conforto ambiental

estavam e estão voltadas para a produção de adultos domesticados, obedientes e

disciplinados – se possível limpos – destituídos de vontade própria e temerosos de

indagações. (...) A liberdade da criança é a nossa insegurança, enquanto educadores, pais ou

simples adultos, e, em nome da criança, buscamos a nossa tranqüilidade, impondo-lhes até

os caminhos da imaginação (Lima 1989, p.10 - 11).

Neste contexto, o ambiente de referência é o da sala, mais propício a metodologias voltadas

para captar a atenção das crianças. Esta necessidade levaria a uma pedagogia que privilegia os

espaços fechados. E, tanto como causa, quanto como efeito, a uma concepção e a uma prática

de formação de educadores (inicial e em serviço) que é pensada tendo os espaços das salas

como referência.

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O emparedamento das crianças

O documento “Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil”, citado

anteriormente, já anuncia a idéia de que o convívio com elementos do mundo natural é um

direito das crianças! Entretanto, na Portaria nº 321 de 26/05/88, do Ministério da Saúde – que

serviu, ou ainda serve de referência para a construção de espaços de Educação Infantil em

municípios brasileiros – as definições para a área interna são detalhadíssimas. Ao contrário,

são poucas e genéricas as normas técnicas que orientam o projeto arquitetônico, no que diz

respeito ao espaço externo.

A falta de atenção à área do terreno que não será construída é uma característica comum a

documentos que orientam a construção de creches e pré-escolas no Brasil. Se não há uma

ênfase à importância de contato de meninos e meninas com o mundo natural, é porque ainda

não alcançamos a compreensão do quanto é fundamental para as crianças um cotidiano em

liberdade, em relação com elementos da natureza que se compõem positivamente com elas, e

que, portanto, geram potência.

Esta situação se deve ao fato de não nos percebermos enquanto seres de natureza, membros de

uma espécie entre outras. A concepção de criança enquanto ser de cultura está assegurada na

maioria das propostas pedagógicas, pois todos nós aceitamos a idéia de que nenhum ser

sobrevive com características humanas se não receber cuidados de outros humanos, e de que

só entre humanos aprendemos a recriar o jeito de ser da espécie e do grupo social de que

somos parte. Entretanto, ainda não assumimos a concepção de criança enquanto ser de

natureza, porque, na prática, esquecemos que a vida de cada criança e a vida do coletivo

social acontecem num universo maior, o cosmo, a Natureza. Nossa cultura antropocêntrica

“esquece” que os seres humanos não estão sós, partilham a existência com inúmeras outras

espécies, sem as quais a vida no planeta não pode existir. Somos parte da natureza! Somos

fruto de autopoiese, isto é, de um fenômeno de auto-organização da matéria que dá origem a

todos os seres vivos (Maturana e Varela, 2002). Portanto, as crianças são, ao mesmo tempo,

seres da natureza e seres de cultura.

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Portanto, os espaços educacionais precisam ser pensados em função desta dupla dimensão. É

verdade que, nos últimos anos, a dimensão cultural foi valorizada: ganharam importância

outros caminhos de conhecer que envolvem as múltiplas linguagens de que os seres humanos

fazem uso no processo de interação com a realidade, mediada por outro ser humano. Mas, as

relações com o mundo natural seguem sendo de distanciamento, já que ele seria simplesmente

pano de fundo, cenário onde humanos mentais se movem.

Talvez por serem modos de expressão da Natureza (Espinosa, 1983), as crianças têm

verdadeira paixão por espaços ao ar livre, em contato com elementos do mundo natural. Mas

as rotinas as mantêm distanciadas: mesmo que se deslocando de um espaço para outro, a

maior parte do tempo permanecem emparedadas.

Utilizamos esta expressão para designar, de forma genérica, a situação das crianças nos

muitos espaços, além das salas de aula, que são utilizadas pelas crianças: dormitório,

refeitório, sala de vídeo, galpão... De fato, analisando as rotinas, aparece claramente uma

dinâmica em que a criança vai de um espaço fechado a outro: da sala onde é recebida, para a

sala da TV, para o refeitório, para sala de sua turma, para atividades de higiene, para o

dormitório... A chegada aos espaços externos é demorada, e pode mesmo não acontecer!

Em pesquisa recente (Tiriba, 2005) – realizada em quarenta instituições de Educação Infantil

vinculadas à rede pública, que atendem em horário integral – constatamos que as crianças

permanecem em espaços entre-paredes durante 8, 9, 10 horas ou mais, sendo que, em 10% das

instituições investigadas, elas dispõem, diariamente, de um curto período de 30 a 60 minutos

ao ar livre. No caso dos bebês e dos que têm até 2 ou 3 anos, evidenciou-se uma situação de

aprisionamento, pois, nas unidades que não dispõem de solário, até mesmo o banho de sol

pode não acontecer!

Verificamos também que, em 25% das instituições pesquisadas, as janelas não estão ao

alcance das crianças, ou não existem. Ou seja, além de permanecerem muito tempo em

espaços entre-paredes, são impossibilitadas de acesso à vida que transcorre lá fora.

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E as áreas ao ar livre? O que há aí: terra, árvores, água, areia, o quê? Raramente de pés

descalços, as crianças brincam sobre chão predominantemente coberto por cimento e brita,

revestimentos que predominam nas áreas externas. Poucos pátios são de terra ou barro. A

grama, onde existe, muitas vezes não está liberada para as crianças, sob o pretexto de que nela

não se pode pisar. Por outro lado, onde ocupa a totalidade da área externa, não oferece

alternativas de brincadeiras de cavar, amontoar, criar e demolir, atividades tão desejadas, que

só a terra e a areia propiciam.

Mesmo quando as escolas estão localizadas em áreas próximas a parques, praças, bosques,

terrenos baldios, campos de futebol, elas não são utilizadas com regularidade. É como se a

realidade se reduzisse às áreas intramuros, e elas tivessem nascido para a escola, não para o

mundo. A conclusão possível é que estar ao ar livre não é uma definição, um imperativo, um

princípio pedagógico, mas uma opção de cada educadora. Como aprender a respeitar a

natureza se as crianças não convivem com seus elementos?

As três ecologias: cuidar de mim, cuidar de nós, cuidar da Terra

As formas de organização do espaço e o modo de funcionamento das creches e pré-escolas

expressam uma situação de emparedamento e desrespeito aos desejos do corpo, que se mostra

ainda mais grave em outros níveis escolares. Isto acontece porque o divórcio entre corpo e

mente é paradigmático: atravessa toda a sociedade e, conseqüentemente, as instituições

educacionais em todos os seus segmentos. Via da regra, a partir do Ensino Fundamental, as

crianças são afastadas de forma ainda mais radical do mundo da brincadeira, da vida ao ar

livre, estabelecendo-se um impasse entre o desejo das crianças e as normas impostas.

Meninos e meninas têm verdadeiro fascínio pelos espaços externos, porque eles são o lugar da

liberdade. Tudo indica que o prazer de estarem aí se deve ao fato de o tempo ao ar livre não

estar previamente esquadrinhado. As vivências ao ar livre suscitam encontros, favorecem o

exercício amplo da liberdade e possibilitam embates, oposições a movimentos individualistas,

sempre alimentados pelo sentido do "é meu", que se constitui fortemente na privacidade das

salas. Nos espaços externos, as crianças estão menos expostas aos regimes disciplinares.

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Nesses espaços, o movimento do corpo não está capturado e a liberdade favorece a criação.

Nas salas há um campo de controle claramente predefinido, é mais fácil cortar a conexão com

os desejos e impor uma realidade em que as crianças se submetem aos objetivos da escola. O

trabalho de educação não convive com a liberdade de movimentos de corpo-espírito, porque,

no mundo ocidental, a infância é um tempo de preparação para a vida adulta, cujo sentido é a

inserção num modo de produção capitalista urbano industrial. Isto exige mecanismos de

controle. É por isto que, historicamente, a liberdade de movimentos está relacionada ao

recreio, justamente o momento em que os professores deixam suas funções para descansar,

tomar um café, relaxar. Vários teóricos têm relacionado a dicotomia aula x recreio a uma

dicotomia maior, entre atividade produtiva e lazer: divórcio típico do modo de produção

capitalista, em que o trabalho é a atividade principal. Reproduzindo a lógica da fábrica, na

escola, o tempo do recreio não tem importância para a pedagogia porque não é o tempo do

trabalho produtivo. Não está sob o foco da pedagogia porque não é lócus de aprendizagem

escolar. Seria, talvez, lugar de uma liberdade temida, porque difícil de controlar.

O que seria possível em termos de inovação pedagógica se os adultos se permitissem

acompanhar as crianças, seguir a trilha dos desejos delas? Na contramão do que é

hegemônico, esta postura exigiria uma crença na vida como vontade de potência, e, por outro

lado, uma concepção de conhecimento e de aprendizagem que não obedece a hierarquias, que

se processa de maneira rizomática, sem fronteiras (Deleuze, 2002). Nesta perspectiva, o

cuidar seria uma referência importante, porque:

(...) orienta o trabalho em relação a três ecologias (Guattari, 1990) e nos ajuda a avaliar: i) a

qualidade dos espaços/atividades relacionadas ao eu (ecologia pessoal); ii) a qualidade das

interações coletivas, relacionadas ao nós (ecologia social); e iii) a qualidade das relações

com a natureza (ecologia ambiental) (Tiriba, 2007, p. 49).

O desejo de construir uma nova qualidade nas relações de cada ser consigo mesmo (ecologia

pessoal) nos levará a inventar modos de educar/ensinar (Guattari, 1990), que possibilitem o

aprendizado da atenção às vontades e necessidades que Lowen (1991) chama de verdades do

corpo. Será necessário, então, ampliarmos os espaços e os tempos de movimentarem-se

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livremente, assim como relaxar, meditar, estar atento à respiração, melhorar a alimentação,

cuidar da postura.

Se o objetivo é construir uma nova relação dos seres humanos com a natureza (ecologia

ambiental),

“(...) precisamos propiciar as crianças – e a nós mesmas – um contato cotidiano e íntimo

com a terra, com a água, com o ar, de tal maneira que sejam percebidos e respeitados como

fontes fundamentais de vida e de energia. Mas a proposta deve ir além de situações de

aprendizagem que são meros eventos. Não basta plantar uma árvore e difundir conceitos de

ciências naturais no dia nacional do meio ambiente: é preciso incorporar à rotina as

atividades de semear, plantar, cuidar e colher alimentos ou outros vegetais úteis à própria

escola” (Gouvêa e Tiriba, 1998).

Com o propósito de contribuir para a construção de uma nova ecologia social, o primeiro

desafio está em qualificarmos as relações entre adultos e crianças, criando espaços e rotinas

que favoreçam sentimentos de amizade, companheirismo, e solidariedade, entendendo que

estes são sentimentos que precisam ser aprendidos e exercitados no cotidiano, são conteúdos

que precisam ser introduzidos em nosso planejamento de trabalho.

Nesta linha, cozinhas, hortas, marcenarias, oficinas de produção e conserto de brinquedos

passam a ser assumidos como privilegiados espaços educacionais. Plantando, costurando,

preparando um canteiro, estaremos trabalhando Matemática, Ciências, Língua Portuguesa; e

ainda contribuindo para que, no processo de construção de saberes, o conceito assimilado seja

de conhecimento enquanto valor de uso, e não enquanto valor de troca (Oliveira, 1995).

Por fim, será necessário buscar a parceria das crianças nas decisões sobre a organização e na

decoração da escola, Pois, se as crianças são sujeitos de conhecimento e também de desejo, se

crescem e modificam seus interesses e possibilidades, também os espaços podem ser por elas

permanentemente modificados.

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Horizonte: Editora Dimensão, 2007.

TRONTO, Joan C. “Mulheres e cuidados: o que as feministas podem aprender sobre

moralidade a partir disso?” In: JAGGAR, A. e BORDO, S. Gênero, corpo e

conhecimento. Rio de Janeiro: Record / Rosa dos Tempos, 1997.

Notas:

Professora ambientalista e jornalista. Coordenadora do Setor de Educação Ambiental do NIMA (Núcleo Interdisciplinar de Meio Ambiente/NIMA) da PUC-Rio. Professora do Departamento de Educação e do Curso de Especialização em Educação Infantil desta mesma Universidade. Assessora da Secretaria de Educação de Santo André/SP. Consultora desta série.

2 Por exemplo, no campo da Educação Infantil, o MEC elaborou o documento Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil (2006), contendo referências de qualidade que promovam a igualdade de oportunidades educacionais e levem em conta diferenças, diversidades e desigualdades do nosso imenso território e das muitas culturas nele existentes. No site do MEC, o documento Parâmetros Básicos de Infra-Estrutura para Instituições de Educação Infantil (2006) apresenta estudos e parâmetros nacionais relacionados à qualidade dos ambientes das Instituições de Educação Infantil para que estes se tornem promotores de aventuras, descobertas, desafios, aprendizagem e facilitem as interações. Ver www.mec.gov.br

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PROGRAMA 5PROGRAMA 5

O CORPO NA ESCOLA: EXPERIÊNCIAS ALTERNATIVAS O corpo nosso de cada dia

Adrianne Ogêda Guedes1

O corpo traz uma história, uma espécie de memória, nos tendões, nos órgãos, no padrão da

respiração. Memória afetiva dos tempos de infância, memória muscular do desenvolvimento

motor nos primeiros anos de vida, e também memória de cada tombo, cada salto, cada

cambalhota, cada dança (Vianna e Castilho, 2002).

(...) É preciso perceber a necessidade de desenvolver uma cumplicidade com o próprio

corpo, a fim de que este se transforme num aliado do ser humano na busca por uma

sociedade e uma educação melhores. Tem-se consciência de que a essência da

aprendizagem está no saber se relacionar com o próprio corpo a partir do corpo do outro

(Stefano e Amaral, 2005).

Inicio nosso texto-diálogo relatando algumas cenas que provocam reflexões. Deixemos-nos

envolver pelas situações que evocam, para que possamos identificar nessas situações, cuja

ocorrência é tão corriqueira na nossa vida de professores, o lugar do corpo e do movimento e

os dilemas que os acompanham. Assumimos aqui uma atenção à educação integral das

crianças, o que, portanto, inclui o corpo e suas expressões como dimensões fundamentais.

Para tal, é preciso “instituir práticas de trabalho que não fragmentem o sentir do pensar;

práticas atentas às vontades do corpo, que não aprisionem os movimentos, ao contrário,

ajudem as crianças a expressarem ‘a dança de cada um’, isto é, ‘o jeito de ser, que é, em

outros termos, a expressão de nossa psique, de nossa alma” (Tiriba e Robin, 2003 e 1997).

Cena 1 – “O movimento limitado”: A mãe chega ao fim da tarde, vem buscar seu filho de

dois anos. O menino pula alegremente de uma pequena mureta para o chão, entre risos e

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contentamento. A mãe, com expressão assustada, se alarma e, dirigindo-se para a professora

diz: “É muuiiito perigoso! Ele não pode fazer isso! Vou chamar o pai dele para ver!”.

Cena 2 – “A dificuldade em experimentar mudanças”: Duas professoras de Educação Infantil

que trabalham numa mesma sala e grupo discutem acaloradamente a mudança de posição da

mesa da sala. Uma delas defende que a troca tem vantagens, abre espaços de circulação para

as crianças. A outra, por sua vez, pondera que não vai ser bom, vai dar confusão, não haverá

lugar para todos se sentarem. Chegam a um meio termo, experimentam a troca da tal mesa. A

mudança é positiva, dá um novo ritmo ao trabalho, abre novas possibilidades.

Cena 3 – “As rotinas e espaços infantis”: A equipe planeja um dia diferente. Nesse dia, ao

invés de as crianças ficarem cada qual em sua sala com seu professor, circularão pela escola.

As salas estarão equipadas com diferentes materiais e estímulos e, elas terão a possibilidade

de percorrer todos os espaços ao longo do dia, com o apoio de alguns educadores. Para pensar

esse “dia diferente”, muita conversa, muitas preocupações por parte da equipe. A experiência

surpreende, as crianças têm mais autonomia do que se esperava.

Cena 4 – “Relação com as crianças ou ‘controle de turma’?” - A professora está trabalhando

com crianças do Ensino Fundamental. Ela dispõe de uma forma diferente o mobiliário, a

atividade envolve movimento das crianças, troca, diálogo. Não é uma turma “silenciosa”. A

inspetora passa pela sala, faz expressão de estranhamento e comenta, em outro momento, que

a professora “não tem domínio de turma”.

Muitas são as cenas vividas ao longo de minha vida em espaços educacionais que me vêm à

lembrança e que trazem as questões do corpo, do espaço e do movimento no cotidiano da

educação institucionalizada. Cenas que revelam aspectos recorrentes do cotidiano e que dizem

respeito às idéias que orientam nossa prática diária com crianças. Interessa-nos refletir sobre

tais cenas, enfocando o lugar do corpo no espaço educacional e as interdependências entre

este e suas relações com o espaço físico e relacional.

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Quais são os modelos de “sala de aula” que estão entranhados em nosso imaginário

(construídos em nossa própria história e formação)? Como estes convidam (ou não) ao

movimento, à experimentação? O que é permitido e o que é proibido ao corpo em tais

espaços? E nós, professores, como dispomos de nosso próprio corpo no dia-a-dia? Na relação

com crianças e conosco mesmo? Sentamos no chão? Vivenciamos jogos corporais com as

crianças (Embolamo-nos com elas? Oferecemos nosso corpo como espaço de contato e apoio

a brincadeiras, aconchegos?) Experimentamos trocar de lugar objetos e móveis? Organizamos

nichos que convidem a diferentes utilizações por parte da criança? Que práticas fazem parte

de nosso cotidiano, nas quais é possível reconhecer possibilidades de movimento espontâneo?

Como as repetições e rituais rotineiros levam à formatação do movimento, empobrecendo a

criação e a expansão de nossa capacidade de expressar-nos via corpo? Perguntas que nos

levam a refletir sobre nossa postura diante de nosso próprio corpo e movimento e,

conseqüentemente, sobre como lidamos com o corpo e o movimento da criança. Perguntas

que conduzem à reflexão sobre os princípios que orientam nossa prática pedagógica. Tendo-as

como guia e provocação, analisemos as cenas que apresentamos neste texto.

Cena 1 – “O movimento limitado”

Quando recebemos uma criança numa instituição educacional, seja ela pública ou privada,

recebemos de fato uma família inteira, com seus valores, cultura, idéias preconcebidas e

expectativas com relação à escola e/ou Instituição de Educação Infantil. Nessa cena, a mãe

revela uma relação de zelo com seu filho que se expressa no controle e na limitação de seu

movimento. Para ela, movimento é risco, gera insegurança e a deixa exasperada. No caso em

especial da criança dessa cena, era possível reconhecer no seu próprio movimento, em outras

situações do cotidiano, uma certa retração. Correr, saltar, embolar-se fisicamente com os

amigos eram experiências que ela custou a se permitir. É possível pensar, no que nos

apoiamos em Wallon (2007), o quanto nos constituímos em nossos primeiros anos de vida

nessa díade mãe-filho/a (que podemos ampliar para adultos de referência-filho/a). Quando

experimentamos nossas primeiras reações, expressões, movimentos, é a resposta do adulto de

referência que vai nos dando um retorno sobre o sentido de nossa expressão, constituindo-o.

O adulto nos apóia no processo de nomear emoções e impressões acerca do mundo e de nós

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mesmo. Quantos de nós já não presenciamos crianças que, ao caírem, olham para o(s)

adulto(s) e, dependendo da reação que seu tombo provoca neste(s) – apreensão, susto, excesso

de zelo – o choro pode ser mais intenso e angustiado, ou mais tranqüilo.

Para nós, educadores, lidar com famílias é lidar com visões que nem sempre são semelhantes

às nossas, o que nos leva a buscar espaços de diálogo. Se tivermos como foco a família como

parceira e a promoção da saúde infantil, é necessário que possamos abrir espaços de escuta,

compreender os medos que cercam aquela família e que se revelam em atitudes de um zelo

por vezes excessivo e limitador da expressão e expansão infantil. Além de escutar, é

fundamental convidar os familiares a refletirem sobre o que está em jogo: o desenvolvimento

pleno da criança, a descoberta de seu corpo e do movimento, o fortalecimento de sua

capacidade de explorar, com o movimento, o espaço e as possibilidades corporais de que ela

dispõe (e ampliá-las). Descobrir, explorar, ampliar são ações que só podem acontecer num

contexto que PERMITA o movimento. É claro que cabe ao educador garantir uma exploração

segura, porém o impedimento dessa exploração, para “preservar” a criança de um possível

tombo ou machucado, poderá preservá-la não apenas de acidentes, mas da própria vida.

Ramos (2007), em seu livro sobre a pedagogia do corpo de Angel Vianna (bailarina que

construiu uma metodologia de trabalho corporal apoiada na consciência do movimento),

realça:

“É pelo movimento que exploramos e descobrimos o mundo. Necessitamos tocar, mover

objetos, lançá-los no espaço, girar, nos colocar em cima e embaixo, dentro e fora deles para

realmente conhecê-los, descobrir suas estruturas, formas, direções e volumes” (Ramos,

2007, p. 35).

É possível desfilar inúmeras situações em que tendemos a limitar o movimento da criança.

Não apenas no que diz respeito ao próprio movimento em si, mas à exploração de materiais.

Tradicionalmente cobrimos as crianças de aventais para pintar, tentamos evitar que se sujem

ao máximo, pedimos a elas que escutem histórias sentadas, inquietamo-nos com seus

movimentos, exigimos seu imobilismo. Ao corpo é permitido o movimento nos momentos

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dirigidos: as aulas extras, as atividades psicomotoras, os momentos “livres”. Desse modo,

vamos cunhando um cotidiano em que a espontaneidade perde seu espaço, em que o corpo

conforma-se a uma postura mais estática e em que, conseqüentemente, vamos nos

distanciando do conhecimento de nossas dores, apoios, articulações, desejos de movimento

que se encolhem e amoldam-se às horas estabelecidas pela instituição. Fomos formados

entendendo que a atitude corporal que é própria da escola é manter os alunos sentados, os

“corpos dóceis” (FOUCAULT, 2003), e essa imobilidade, exigida e apreciada pelo professor,

é sinal de obediência. Tal perspectiva vai contra a necessidade do corpo, o movimento nos

leva ao conhecimento e à conscientização de nosso próprio corpo, considerado a base do

próprio “impulso de vida” (Ramos, 2007).

A mobilidade do feto, por exemplo, surge como um impulso primitivo, aparentemente sem

finalidade, demonstrando um prazer no movimento por si só; Angel procura a volta dessa

espontaneidade, perdida durante a vida, para que possamos reconquistar movimentos

esquecidos e descobrir novos (RAMOS, 2007, p. 34).

Nesse sentido, a Cena 1 nos convida a pensar na necessidade de um diálogo estreito com

famílias, a uma observação atenta às crianças e às suas expressões corporais, que se

evidenciam na forma como tomam parte de jogos, relacionam-se com seus pares, exploram

espaços, lidam conosco e consigo próprias. A aproximação com as famílias precisa ter em

vista a necessária compreensão mútua da imperiosidade da permissão ao movimento infantil,

necessidade vital para um corpo que cresce e descobre o mundo. Além dessa perspectiva,

pensar na cena em questão é pensar também a respeito de como proporcionamos,

acompanhamos, instigamos as crianças a brincarem, conhecerem, expandirem seus corpos e

movimentos, mantendo-nos como referência de segurança e acolhimento, apoiando a criança

na construção de uma relação confiante com seu corpo.

Cena 2 – “A dificuldade em experimentar mudanças” e Cena 3 – “As rotinas e espaços

infantis”

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Herdeiros dos modelos tradicionais de salas de aula, que remontam às primeiras instituições

educativas brasileiras, não é raro encontrarmos, na grande maioria das salas de crianças do

Ensino Fundamental em diante, a clássica disposição de carteiras enfileiradas, quadro de giz

na frente, perto da mesa do professor. Murais podem ornamentar as paredes, com produções

diversas.

A influência da Escola Nova no Brasil em meados do século XX, apesar das críticas que

suscitou, trouxe inegáveis mudanças nos ambientes e na forma de compreender a criança, que

passou a ser reconhecida com um sujeito sensível, capaz de construir seu conhecimento, a

quem era preciso escutar e estimular adequadamente. Na Educação Infantil, experiências

como as da médica italiana Maria Montessori (1870-1952) revolucionaram o mobiliário

infantil e os espaços de trabalho nas instituições, com mesas e cadeiras adequadas ao tamanho

das crianças e diferentes nichos de espaços com objetivos distintos (cantos de jogos, de

material de vida diária, etc.). Freinet (1896- 1966) foi também uma influência importante,

retirando os tradicionais tablados que colocavam professores em um nível mais alto que

estudantes, e promovendo uma dinâmica de trabalho que envolvia a cooperação entre todos, a

circulação pela sala de aula, a exploração do entorno da escola (Santos, 2003).

Hoje, mesmo que os espaços tenham ganhado novos contornos e disposições, ainda adotamos

atitudes pouco criativas com relação à forma como compomos tais espaços. Nas creches,

berços em quantidade por vezes subtraem espaços de circulação; mesas em excesso impedem

a utilização do chão para brincadeiras e movimentos; áreas verdes, onde a criança possa ter

contato com a natureza, experimentando com seu tato as coisas do mundo, são exíguas ou até

mesmo inexistentes. Mais do que as próprias limitações dos espaços, vale pensarmos na

“vida” que ocupa esses espaços. Modificamos a disposição dos móveis de acordo com

desejos, necessidades, curiosidades? Permitimos às crianças um uso criativo de móveis,

experimentando funções novas, diferentes das tradicionais, em que as mesas possam virar

casas, carros, pontes e as cadeiras sejam trens, torres, e o que mais a imaginação e a ação

infantis criarem?

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Essas Cenas 2 e 3 nos remetem a essa nossa rigidez na ocupação dos espaços cotidianos, à

nossa dificuldade de vê-los como móveis, como espaços flexíveis que precisam dialogar com

nossas necessidades e originais desejos de experimentação. Para isso, vale lembrar que nos

cabe ter em conta nosso foco principal: possibilitar às crianças oportunidades ricas de

vivenciarem com seus corpos e movimentos os espaços, encontrando neles anteparo para seus

impulsos e demandas de descanso, pesquisa, experimentação, criação. Convite à autonomia

de, também nós, olharmos para o entorno com “olhos de criança”, inaugurando possibilidades

insuspeitas de vida e movimento.

Para que este corpo possa se expressar de forma mais livre, é preciso que a escola se abra a

esta possibilidade, estabelecendo espaços e tempos que favoreçam tal construção. No entanto,

sabemos que a estrutura escolar, de um modo geral, é erigida em uma dura organização do

tempo e do espaço. Quanto às oportunidades de movimentação neste contexto escolar, é

também bem possível que nos lembremos de que, durante grande parte de nossa rotina, nos

mantínhamos sentados, corpos estáticos, movimento controlado. O cotidiano da escola era (e

é ainda em muitas de nossas escolas) regido pelo tempo do relógio: hora do lanche, hora do

recreio, hora das aulas específicas... Tempo ao qual nosso corpo vai se adaptando,

gradativamente, até amoldar-se a ele.

Refletir criticamente nas Cenas 2 e 3 é repensar os tempos e espaços e ocupá-los

criativamente, permitindo o movimento, experimentando inovações, tornando-os espaços de

vida e criação.

Cena 4 – “Relação com as crianças ou ‘controle de turma’?”

Modelos do que é o comportamento de um grupo que tem um professor com “bom domínio

de turma” estão entranhados em nós. Escolas voltadas, a maior parte do tempo, para

atividades de ensino dos conteúdos socialmente organizados, seguindo uma estrutura de aula

verbalista, ou seja, em que o professor fala e o estudante escuta (e repete, confirmando o

aprendizado). Somos filhos desse modelo de escola.

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A escola faz parte de um contexto histórico e social amplo que diz respeito à própria

concepção de conhecimento que a orienta, desde a época de sua criação. Conhecimento que

divorcia saber popular de saber erudito, saber do corpo do saber racional, colocando em pólos

distintos tais dimensões. Instituições que nascem com vocação para modelar os sujeitos, as

escolas e suas práticas partem do princípio de que o silêncio e a quietude dos corpos são

condições fundamentais para que se dê o aprendizado.

A rigidez do espaço e da própria relação professor e estudante intensificam-se quanto mais a

criança cresce. Amarrada à idéia de um extenso currículo cujos conteúdos precisam ser

“transmitidos” às crianças, a escola de Ensino Fundamental reserva menos tempo ainda –

comparando com a Educação Infantil – para o jogo, o brincar, os espaços de encontro. Tais

modelos – de uma sala de aula bem estruturada e de uma concepção de ensino que se dá pela

transmissão – estão apoiados numa visão de mundo, de relação com o corpo e o conhecimento

muito específicos.

O movimento na escola tem sido visto, de um modo geral, de duas formas. Uma espécie de

bagunça, sinal de descontrole da turma, agitação, dispersão. O movimento não está incluído

nas práticas pedagógicas. Nesta concepção, entende-se que o corpo deve-se manter quieto e os

movimentos contidos, pois só desta forma o aprendizado pode-se dar.

Outra visão é a assumida, muitas vezes, pelas aulas ligadas ao corpo, tais como as práticas

esportivas ou exercícios. Nestas propostas de trabalho, a ênfase é dada à preparação física, ao

treinamento motor e ao aprendizado das regras. Colocamos em questão tais visões, apontando

para a necessidade de olhar para o corpo e suas expressões de forma diferenciada, apoiando a

presença do movimento, incluindo o corpo em nossas práticas pedagógicas. A respeito desta

visão do movimento na escola, que se restringe muitas vezes às aulas de Educação Física, o

professor de Educação Física Marco Santoro (2005) ressalta que:

(...) As conseqüências dessas relações na escola se estabelecem de uma forma um tanto

quanto estranhas, mas de tão cotidianas, de tão comuns, acabam por se “naturalizarem”,

com a escola oferecendo um espaço para o corpo se expressar apenas nas aulas de educação

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física, como se não houvesse expressão corporal, gestos, e movimentos nos outros

momentos e espaços da escola. “As relações entre as crianças e o seu espaço escolar ficam

reduzidas à quadra de esportes, com tempo limitado e com, no máximo, dois encontros por

semana” (SANTORO, 2005).

No entanto, vemos que a escola se organiza em torno de práticas e rituais que direcionam e

controlam o corpo e o movimento da criança.

Em função de sua tarefa disciplinadora, a escola, desde tempos nem tão remotos assim,

lançava mão, inclusive, de castigos corporais. O corpo disciplinado era aquele do silêncio, da

imobilidade, do controle dos movimentos. O corpo que obedecia às prescrições adultas, que

se amoldava às regras socialmente impostas.

Quando a escola nega a expressão corporal do indivíduo, esta instituição está negando a

própria criança, pois o sujeito é aquilo que seu corpo é, ou seja, as emoções, os

movimentos, a razão... É impossível separar o movimento das outras habilidades, pois

somos um corpo uno. (...) A educação deve assumir a criança em seu aspecto cognitivo,

emocional, social e corporal (Thais Guimarães Vaz, 2005).

A escola se constituiu tendo, como uma de suas tarefas, disciplinar mentes e corpos,

moralizando e padronizando os comportamentos, de modo a que eles se curvassem às regras

sociais vigentes. Certamente, desde sua emergência até os dias de hoje, muitas coisas se

transformaram. Hoje, qualquer professor tenderá a afirmar que o corpo não deve ser tolhido,

que na escola é preciso haver espaço para expressão e liberdade de movimentos. No entanto,

mesmo assim, sabemos que a escola ainda guarda marcas de sua tarefa disciplinante e

controladora. Como este controle se expressa, hoje, nas relações entre professores e alunos?

Nas práticas escolares? Na disposição dos espaços físicos das salas de aula? Nas rotinas? Nos

discursos? No movimento dos professores e das crianças? Como o corpo tem ocupado os

espaços escolares? Qual o seu lugar? Quais os seus limites e possibilidades?

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Diante de um currículo que se baseia num enfoque racional, o movimento corporal é

entendido como desordem, bagunça, dispersão. Pude observar que a noção de disciplina na

escola é entendida como “não-movimento”. As crianças educadas e comportadas eram

simplesmente aquelas que não se moviam. O excesso de disciplina na escola começava no

horário de entrada, onde as crianças deveriam se dirigir à fila de sua turma e ao seu lugar,

marcado por ordem e tamanho, e a ordem do não movimento prevalecia durante todo o

horário escolar, terminando somente na hora da saída, que era o momento em que eu via

que elas ficavam mais alegres. O dirigente do turno, no momento da fila, falava no

microfone palavras como “cobrir” e “firme”, para que os estudantes ficassem imóveis e em

silêncio. (...) Lembrei-me do regime militar. Diante dessa expressão de alegria que observei

nestas crianças, no horário da saída, perguntei a uma delas o porquê de tamanha felicidade

e a aluna me respondeu, rapidamente: “Fico feliz porque a escola é chata” (Thais

Guimarães Vaz, 2005).

Vemos, então, que o desafio da escola e do professor consiste em refletir sobre as relações

que se estabelecem, em seu cotidiano, entre a expressão de cada um, seu movimento e seu

corpo. Garantir que a disciplina não seja um sinônimo de imobilidade corporal, mas, sim, seja

fruto de uma construção coletiva, é tarefa desejável. Neste sentido, o papel da escola é

promover mudanças em uma sociedade heterogênea, é a “busca de qualidade de vida para

todos, justiça social e que promova a convivência entre as diferenças, que respeite as

expressões culturais de cada grupo social e, neste caso, o corpo necessita de ser ‘libertado’

para que as pessoas possam desenvolver os seus potenciais, as suas compreensões de mundo”

(Santoro, 2005).

Para assumir esta tarefa – de abrir a escola para a expressão do corpo – é importante que

professor de sala de aula estimule as crianças a descobrirem os espaços que a escola

proporciona, não restringindo seu uso aos momentos de recreio. O pátio, a própria sala e os

demais espaços podem e devem ser explorados para brincadeiras, jogos e até mesmo para

propostas de pesquisa e estudo, relacionando conteúdos das diversas disciplinas por meio das

atividades corporais. Desta forma, o professor estará contribuindo para ultrapassar os

obstáculos que a escola reproduz em seu meio e ensinar também pelos gestos, pelas músicas,

pelo corpo. Conhecer os gestos e as expressões corporais de cada criança é uma forma de

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conhecê-la integralmente, estreitando nossos laços com ela e ampliando nossa possibilidade

de comunicação e troca.

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Nota:

Doutoranda em Educação UFF-RJ, Psicóloga (UFRJ), bailarina formada pelo curso técnico da Escola Angel Vianna. Atualmente atua como professora do curso de pós-graduação em Educação Infantil da PUC-RJ e de graduação em Pedagogia da UFRJ, UCAM e UNESA.

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Presidente da RepúblicaLuís Inácio Lula da Silva

Ministro da EducaçãoFernando Haddad

Secretário de Educação a DistânciaCarlos Eduardo Bielschowsky

TV ESCOLA/ SALTO PARA O FUTURO

Diretor de Produção de Conteúdos e Formação em Educação a DistânciaDemerval Bruzzi

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Coordenadora-geral de Capacitação e Formação em Educação a DistânciaSimone Medeiros

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Coordenação de Utilização e Avaliação Mônica MufarrejFernanda Braga Copidesque e RevisãoMagda Frediani Martins

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