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CHASQUI Boletim Cultural do Ministério de Relações Exteriores Ano 14, número 30 2016 A PINTURA DA ESCOLA CUSQUENHA / FONTES DOCUMENTAIS PARA OS ESTUDOS ANDINOS / CRISTINA GÁLVEZ, A ESCULTURA E O DESENHO / POESIA DE JORGE NÁJAR / COZINHA: BANQUETE DE LIVROS / FOTÓGRAFAS O CORREIO DO PERU Anônimo cusquenho. Niño Jesús Inca. 1680 1720 aprox. Óleo sobre tela. 86 × 75 cm. Coleção particular, Lima.

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CHASQUIBoletim Cultural do Ministério de Relações ExterioresAno 14, número 30 2016

A PINTURA DA ESCOLA CUSQUENHA / FONTES DOCUMENTAIS PARAOS ESTUDOS ANDINOS / CRISTINA GÁLVEZ, A ESCULTURA E O DESENHO /

POESIA DE JORGE NÁJAR / COZINHA: BANQUETE DE LIVROS / FOTÓGRAFAS

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UMA OBRA FUNDACIONALGUIA PARA OS ESTUDOS ANDINOS

Marco Curatola Petrocchi*Publicado em três volumosos fascículos, o compêndio enciclopédico será indispensável para a consulta dos

interessados em estudos andinos do período entre 1530 e o começo do século passado.

Fuentes documentales para los estudios andinos, 1530-1900, é um vasto tratado de caráter

enciclopédico que apresenta sis-temática, crítica e pormenorizada-mente a documentação histórica existente referente às populações indígenas dos territórios ocupados pelo antigo império dos incas, desde o sul da Colômbia até a região central do Chile. Da obra participaram 125 pesquisadores, entre eles, os maiores especialistas no mundo andino antigo, colonial e do século XIX, sob a direção de Joanne Pillsbury. O produto não só representa um instrumento heurístico de extraordinária rele-vância para todos os pesquisadores do passado andino, mas também um marco histórico do próprio estudo andino, tanto que —como escreveu Stella Nair (2011, p. 632) numa resenha da edição original em inglês— hoje seria muito difícil imaginar esse campo de estudo sem a obra.

A edição original, Guide to Documentary Sources for Andean Studies 1530 1900, chamada de forma reduzida Andean Guide pelos especialistas, apareceu em 2008, exatamente meio século após o II Congresso Nacional de História do Peru dedicado à época pré hispâni-ca, que de alguma forma ratificou o nascimento da etno história no Peru (Valcárcel e outros, 1962). Efetivamente, esse evento reuniu um notável grupo de pesquisa-dores, dentre eles John Murra, Maria Rostworowski, Waldemar Espinoza Soriano e Edmundo Guillén Guillén, cujas inovadoras contribuições, com suas perspecti-vas e documentação, iriam ampliar e renovar significativamente no transcurso dos anos seguintes o conhecimento histórico dos incas e, de forma mais abrangente, do mundo andino antigo e colonial. Isso foi prognosticado com extra-ordinária lucidez e manifestado apertis verbis por Luis E. Valcárcel (1891 1987) no discurso de inaugu-ração daquele congresso. Grande pesquisador de história inca, Val-cárcel foi uma das mais eminentes figuras do movimento indigenista cusquenho na década de 1920. Seu discurso, posteriormente publica-do no número da Revista del Museo Nacional de 1958 com o título de «La etnohistoria del Perú antiguo», começou com estas palavras: «A história do Peru atravessou três fases diferentes: a primeira foi a dos

cronistas dos séculos XVI e XVII; a segunda, dos arqueólogos do final do século XIX e do acontecido no presente século; e a terceira, dos etno historiadores ou historiadores da cultura que acabou de começar» (Valcárcel, 1958, p. 3). Nesse texto foi empregado e introduzido pela primeira vez no Peru o termo «etno história», utilizado pelos norte americanos já havia muito tempo para indicar a rama da antropolo-gia interessada na reconstrução da história dos povos nativos. De fato, o congresso marcou a transição de uma fase de redescoberta apaixo-nada e romântica da cultura e a história andinas por parte de um grupo de intelectuais indigenistas, para uma etapa mais madura de estudo, plenamente científica, ba-seada na contínua busca de novas fontes de informação, e a análise crítica, comparativa e interdiscipli-nar das mesmas.

De fato, desde a década de 1960 a etno história andina, disciplina com foco fundamentalmente antropológico, orientação metodo-lógica marcadamente historicista, e estratégias de pesquisa ecléticas e interdisciplinares frequentemente relacionadas à linguística e à arque-ologia (Curatola, 2012, p. 73), é caracterizada pela análise cada vez mais crítica e filologicamente mais atenta das crônicas e pela busca contínua de nova documentação que permita expandir o conheci-mento dos diferentes aspectos cul-turais e os processos de reprodução e transformação das sociedades andinas durante o Tahuantinsuyo (cujos aproximadamente cem anos de desenvolvimento correspondem grosso modo à proto história andina)

e o período colonial. Dessa forma, nos últimos cinquenta anos, foi acumulado um grande volume de documentação (cf. Curatola, 2002). Relações, informações e crônicas dos séculos XVI e XVII foram encontradas; as edições das já conhecidas, foram multiplica-das de forma mais cuidadosa e crítica, pois em muitos casos, o que se tinha anteriormente eram transcrições frequentemente par-ciais, cheias de omissões e erros. Exemplo disso é a primeira edição fidedigna da crônica ilustrada de Felipe Guamán Poma de Ayala (1615), obra de importância trans-cendental para os estudos andinos, em 1980, isto é, mais de setenta anos após ser anunciado o achado na Biblioteca Real de Dinamarca em Copenhague (Pietschmann, 1908). Posteriormente foram ainda publicadas edições completas, com ilustrações originais, das «histórias» dos incas do mercedário Martín de Murúa (1590 e 1613), de quem Guamán Poma deve ter sido in-formante e desenhista. Também foram multiplicados exponen-cialmente os estudos analíticos sobre as crônicas, a vida e a perso-nalidade de seus autores, sobre o particular contexto de suas origens e sobre os fins, nem tão evidentes, com que foram escritas.

Nesses últimos cinquenta anos os pesquisadores também garimpa-ram todo tipo de repositório docu-mental em que pudesse ser achada informação direta ou indireta sobre o mundo andino antigo e co-lonial. Sua busca foi inicialmente centrada nas visitas (e revisitas), na cobrança de impostos e nos cadas-tros realizados por funcionários

coloniais nas diferentes províncias dos Andes, bem como nas visitas e os processos por idolatria e feiti-çaria realizados pela administração eclesiástica. Mas logo começaram a vasculhar todo tipo de material documental: provisões e regula-mentos, livros de Cabildo, provas e informações de serviços, processos de residência, litígios e processos criminais, relatórios das missões, cadastros de índios, testamentos, títulos de terras, atas de compra e venda e protocolos notariais diver-sos. Até apareceu uma série inteira de manuscritos de difícil classifi-cação, aparentemente produzidos pelos cronistas Blas Valera, Anello Oliva e Francisco de Chaves, que, entretanto, foram reconhecidos prontamente pela crítica mais rigorosa como meras falsificações contemporâneas (Adorno, 1998; Boserup, 2015; Boserup e Krabbe Meyer, 2015; Curatola, 2003, pp. 255 256; Estenssoro, 1997). Con-textualmente, foi sendo também revisado e publicado todo tipo de textos em línguas andinas da época colonial: dicionários e gramáticas, cartas e petições, breviários e cate-cismos. Surgiu então uma extraor-dinária compilação em quíchua de tradições orais andinas conhecida como Manuscrito de Huarochirí. Sua primeira tradução completa foi publicada em 1966 pelo grande escritor indigenista José Maria Arguedas, e posteriormente ga-nhou diferentes e acuradas edições críticas. Também aumentaram os esforços para decifrar os sistemas andinos de registro de informação, em particular os quipus, cordas amarradas de diferentes cores, com nós que os incas usavam para fazer

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a contabilidade administrativa do império e manter e transmitir a memória de sua história dinástica, e que os andinos continuaram a empregar em diferentes contextos até a época colonial.

Fuentes documentales para los estudios andinos, 1530 1900, reco-lhe, examina e sistematiza todos esses materiais. Com seus extensos estudos analíticos sobre os diversos tipos de documentos que contêm informações sobre o mundo an-dino antigo, colonial e do século

XIX (volume 1), e seu dicionário crítico das fontes mais significativas e relevantes, organizadas alfabeti-camente por autor ou por título, segundo o caso (volumes 2 e 3), a obra constitui um verdadeiro so-matório no sentido mais autêntico, medieval, do termo, ou seja, é um tratado que reúne e apresenta siste-maticamente todos os aspectos de

um determinado campo do saber. Como aponta acertadamente Jo-anne Pillsbury no prefácio, Fuentes documentales tem seus anteceden-tes no precursor inventário das crónicas dos séculos XVI e XVII, publicado com o nome de Biblio-teca Andina por Philip Ainsworth Means em 1928, e no mais recente Las crónicas y los Andes (1995), de Franklin Pease G. Y., bem como em importantes tratados de histo-riografia peruana, como Historia del Perú: fuentes (1939) e Manual

de estudios peruanistas (1952) de Rubén Vargas Ugarte, e Los cronis-tas del Perú (1962, 1986) e Fuentes históricas peruanas (1963) de Raúl Porras Barrenechea. Entretanto, Fuentes documentales se afasta e diferencia de todos esses trabalhos pela vastidão e a heterogeneidade da documentação contemplada e examinada, em uma dimensão

realmente pan andina, e por seu carácter especializado. Efetivamen-te, a obra reúne um conjunto de materiais, um verdadeiro corpus, com primordial informação sobre a história dos povos originários da região andina, que foi acumulado ao longo de quase quatro séculos, desde a chegada dos espanhóis até o final do século XIX. O tratado também se diferencia dos traba-lhos acima mencionados por sua organização dupla e combinada de compendio analisado dos dife-rentes tipos de documentos e de catálogo analítico das principais fontes, provido de uma rigorosa e utilíssima guia de orientação bi-bliográfica, bem como por seu foco decididamente interdisciplinar. De fato, trata se de uma obra historio-gráfica de carácter etno histórico, que inclui materiais, dados e apor-tes da linguística, a antropologia, a literatura, a arqueologia, a história, a arte, a geografia, a demografia e várias outras disciplinas afins; portanto, sua consulta pode ser de grande utilidade para todo es-pecialista interessado em qualquer aspecto do passado andino. Pela dimensão projeção decididamente interdisciplinar, Fuentes documenta-les se afasta também de seu equi-valente mesoamericano, Guide to Ethnohistorical Sources, publicado entre 1972 e 1975 por Howard Cline no marco do Handbook of Middle American Indians (Pillsbury, 2008, p. XIV), pois esse detalhado repertório comentado das relações espanholas e indígenas relevantes para a história das sociedades proto históricas e coloniais dessa região

não considerou relatos de carácter inquietantemente «etnográfico» ou mítico religioso, como tampouco importantes categorias de docu-mentos administrativos (Chance, 1976, p. 307).

Diante da evidência aqui apre-sentada de todas essas caracterís-ticas, Fuentes documentales para los estudios andinos, 1530 1900, constitui indubitavelmente uma obra fundacional, que sendo a pri-meira a reunir e apresentar crítica e sistematicamente todos os tipos de materiais documentais existen-tes para os estudos andinos, faz com que eles sejam reconhecidos como um verdadeiro e específico campo de estudo, pela própria natureza metadisciplinar, em se referindo a um objeto histórica e culturalmente determinado —as sociedades andinas, suas manifes-tações culturais e seus processos de reprodução e transformação no tempo e no espaço— e não a uma disciplina ou um método de investigação específico. De fato, no campo dos estudos andinos convergem diferentes disciplinas cujas delimitações tradicionais esvaecem em prol de uma aproxi-mação mais profunda e «densa», no sentido «geertzista» do termo, dos fenômenos estudados. E se a etno história ainda é disciplina cardinal dos estudos andinos, é evidente que nenhuma outra ci-ência humana, social e natural lhe é estranha; pelo contrário, todas cabem, se encontram e sinergizam dentro de seu âmbito.

Na realidade, o termo «etno história» é no Perú posterior à

Na realidade, o termo «etno-história» é no Perú posterior à locução «estudos andinos», adotada por um grupo de

cientistas e diplomáticos franceses para nomear um centro dedicado ao estudo da etnologia, a arqueologia e a geografia andinas, inaugurado em Lima em 14 de

maio de 1948.

«El pinnípedo Otaria ulloae». Johann Jakob von Tschudi, Untersuchungen über die Fauna Peruana, 1844-1846.

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locução «estudos andinos», ado-tada por um grupo de cientistas e diplomáticos franceses para nomear um centro dedicado ao estudo da etnologia, a arqueologia e a geografia andinas, inaugurado em Lima em 14 de maio de 1948, sob a direção do naturalista e et-nógrafo Jean Vellard (1901 1996), que em 1962 receberia o nome de Instituto Francês de Estudos Andinos, e ampliaria progressi-vamente seu campo de atividades e pesquisas para os territórios da Bolívia, do Equador e da Colôm-bia. A vocação multidisciplinar da instituição é atestada pela variedade de matérias e temas de pesquisa que durante anos foram acolhidos nas páginas de seu Bulletin e de sua coleção de mo-nografias, Travaux. Com análoga tendência interdisciplinar, embora com inclinação a focar o sul an-dino, existe o Centro de Estudos Regionais Andinos Bartolomé de las Casas, em Cusco, que come-çou suas atividades em 1974. Sua notável Revista Andina, criada em 1983 por Henrique Urbano (1938 2014), representa até hoje um foro científico do mais alto nível e um referente bibliográfico essencial para todo pesquisador da história e a cultura andinas. Cabe lembrar duas instituições nos Estados Unidos expressamente dedicadas aos estudos andinos: o histórico Institute of Andean Research (IAR), em Nova Iorque, e o Institute of Andean Studies, em Berkeley, Cali-

fórnia. O primeiro foi fundado em 1937 por um grupo de renomados pesquisadores como Wendell C. Bennett, Alfred Kroeber, Samuel K. Lothrop e o próprio Julio C. Tello (1880 1947), considerado como pai da arqueologia peruana, quem recebeu do IAR os recursos para diferentes expedições no norte do país. Quanto ao Institute of Andean Studies, ele foi criado

em 1960 por John H. Rowe (1918 2004), professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley, e um dos fundadores tanto da etno his-tória como da arqueologia andina modernas. Desde 1963 o instituto publica a mais importante revista de arqueologia andina em língua inglesa, Ñawpa Pacha, e organiza anualmente um congresso que re-presenta o maior foro de discussão de temas de história andina antiga na América do Norte.

Porém, várias décadas se pas-saram até a validação dos estudos andinos como um campo específi-co de estudo acadêmico, quando em 2006 a Pontifícia Universidade Católica do Peru (PUCP) criou um

programa de mestrado e doutora-do em antropologia, arqueologia, história e linguística andinas, de-nominado justamente Programa de Estudos Andinos. Os planos de estudo do programa contemplam, além do mais, qualquer outra área do saber que possa contribuir para o conhecimento do mundo andino, tanto do passado como do presente. No âmbito desse progra-

ma, foi instituído em 2008 —ano em que precisamente apareceu Andean Guide— o Seminário Inter-disciplinar de Písac. Nessa antiga aldeia do Vale Sagrado dos Incas, próxima a Cusco, o evento reúne todos os anos, na primeira semana de julho, os estudantes de doutora-do e seus assessores com um grupo de estudiosos de diversos países e das mais variadas especializações, a fim de que todos possam dissertar sobre suas respectivas pesquisas. Do seminário também partici-pam regularmente os ganhadores do Prêmio de Estudos Andinos, dedicado à memória do eminente etno historiador Franklin Pease G. Y. (1939 1999), e instaurado pela

Faculdade de Ciências Humanas e o Programa de Estudos Andinos da PUCP, também em 2008, a fim de fomentar o estudo do mundo andino e difundir o trabalho de jovens antropólogos, arqueólo-gos, historiadores, linguistas e especialistas de disciplinas afins. Finalmente, cabe lembrar também que, em 2007, o Fundo Editorial da PUCP inaugurou a Colección

Várias décadas se passaram até a validação dos estudos andinos como um campo específico de estudo acadêmico,

quando em 2006 a Pontifícia Universidade Católica do Peru (PUCP) criou um programa de mestrado e doutorado

em antropologia, arqueologia, história e linguística andinas, denominado

justamente Programa de Estudos Andinos.

«Puerta de entrada y valle de Ollantaytambo». Ephraim George Squier, Peru: Incidents of Travel and Expedition in the Land of the Incas, 1877.

«Danza (ayllas) de los mineros de Nuantajayal». Alcides Dessalines d'Orbigny, Voyage pittoresque dans les deux Amériques, 1836.

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Estudios Andinos, em que foram pu-blicados trabalhos de história inca, etno história colonial, antropolo-gia, arqueologia, história da arte, demografia e linguística, incluído um realmente «histórico» léxico chipaya, e em que agora aparecem Fuentes documentales para los estudios andinos, 1530 1900.

Nesse contexto, ao fixar e orga-nizar uma série de elementos, no-ções e conhecimentos efetivamente já empregados na prática científica e acadêmica, mas não suficiente nem claramente explicitados e relacionados entre si de forma sis-témica, e ao evidenciar desse modo uma epistemologia latente, a obra não só contribui com a afirmação dos estudos andinos como um campo específico de estudo, mas também os funda «culturalmen-te» —tomando uma expressão de Ruggiero Romano na «Premessa» da Enciclopedia (Einaudi) (Romano, 1982, p. XIV) —. Com sua projeção metadisciplinar e pan andina, Fuentes documentales para los estudios andinos, 1530 1900, legitima então, de alguma forma, o início de uma nova e mais evoluída fase (quarta segundo a periodização de Valcár-cel) na história das pesquisas sobre o mundo andino: justamente a dos estudos andinos, que o próprio título da obra consagra.

Porém, talvez não devemos ver a obra «apenas» como o magnífi-co instrumento heurístico aqui descrito, mas também como um criterioso convite para voltar à leitura das fontes, particular-mente das crônicas e dos relatos dos exploradores e viajantes dos séculos XVIII e XIX, para nos

aproximar —através dos olhos e da mente de Cieza, Betanzos, Mo-lina, Guamán Poma, Garcilaso, o anônimo autor do Manuscrito de Huarochirí, Marcoy, Tschudi, Raimondi e o resto de extraor-dinárias testemunhas —pesqui-sadores do mundo andino aqui mencionados— de uma das mais fascinantes, complexas e multi-facetadas civilizações da história, de suas conquistas culturais e de suas mutações através do tempo.

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* Etno-historiador, professor principal de His-tória do Departamento de Humanidades e diretor do Programa de Estudos Andinos da Escuela de Posgrado da Pontifícia Universida-de Católica do Peru (PUCP). É diretor da Colección Estudios Andinos do Fundo Edito-rial da PUCP.

1 Cabe apontar que Fuentes documentales não é uma mera tradução de Andean Guide. Alguns autores fizeram correções e atuali-zações em suas contribuições. Além disso, graças ao cuidadoso trabalho de edição de Ximena Fernández Fontenoy, foi possível corrigir pequenas erratas e imprecisões da obra original e acrescentar, nas seções bi-bliográficas dedicadas aos textos publicados de crônicas e documentos, novas edições que foram aparecendo nos últimos anos.

Sacsayhuamán, Cusco. Antonio Raimondi, El Perú, vol. 2, 1876.

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O CORPO COMOMETÁFORA DA ALMA

CRISTINA GÁLVEZ

Guillermo Niño de Guzmán*

Comemora-se o primeiro centenário do nascimento de uma das artistas peruanas mais notáveis.

Nesses tempos em que o desenho parece ter sido en-viado para o exílio no po-

rão da arte por causa da invasão das novas tecnologias (instrumentos digitais e virtuais), o centenário de Cristina Gálvez (1916-1982) é um bom pretexto para reivindicar sua importância e para nos aproximar da obra de uma artista essencial no Peru. Mencionamos o desenho por se tratar da «mãe de todas as artes e ciências» (como afirmou Gerardo de Brujas em seu célebre tratado do século XVII); porém, devemos lembrar que Gálvez não só destacou nessa matéria, mas também, e principalmente, como uma notável escultora.

Devido aos imponderáveis da biografia da artista, é mais comum lembrar sua última etapa vital, quando se estabeleceu em Lima e montou sua casa-ateliê na rua Roma de Miraflores, onde foi vizi-nha do amigo Antonio Cisneros, poeta cujo excelente suplemento

El Caballo Rojo teve como logotipo um dos emblemáticos corcéis dese-nhados pela artista. Nesse local, ela deu aulas de desenho para muitos

jovens que mais tarde seriam re-conhecidos escultores e pintores, dentre eles Sonia Prager, Margarita Checa, Armando Williams, Bruno

Zeppilli e Rhony Alhalel. Sem dúvida, foi uma escola privilegiada que preencheu um vazio e ajudou a definir vocações.

Entretanto, à margem de sua atividade docente (ou até talvez graças a ela), Cristina Gálvez reno-vou seu entusiasmo criador e con-cebeu, nos últimos anos de vida, trabalhos gráficos e escultóricos que confirmaram seu imenso talen-to. Todavia, é preciso reconhecer que, desde a década de 1930, ela já havia percorrido uma significativa trajetória que faz dela uma figura fundamental para a arte peruana do século XX, embora a história e a crítica especializada ainda não tenham valorizado devidamente seu magnífico legado.

Cristina Gálvez passou grande parte de sua vida na França, onde transcorreram dois períodos bási-cos de sua formação; o primeiro corresponde a sua infância, ado-lescência e primeira juventude; o outro, a sua maturidade. Nascida

Los enemigos. Pánico.

Cristina Gálvez, 1981.

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em 1916, experimentou de perto a efervescência artística da Europa no período entreguerras. Em Paris foi aluna de Mauride e depois, em Bruxelas, de Van der Stecken. Mas foi na academia de André Lhote, célebre teórico e pintor cubista, onde percebeu que assumir a modernidade não implicava uma renúncia total à tradição, o que é corroborado pelo fato de ela não ter aderido à abstração. Infelizmen-te, a morte do padre interrompeu essa fase tão estimulante e, em 1936, teve de voltar para o Peru.

Já em Lima, Gálvez entrou na Escola Nacional de Belas Artes, onde então predominava o magistério de José Sabogal e o

indigenismo. Nessas circunstân-cias, não é de se estranhar que ela, impregnada das últimas ten-dências europeias, ficasse alheia a essa corrente e que aderisse ao movimento dos independentes, isto é, de artistas como Ricardo Grau, Macedonio de la Torre ou Sérvulo Gutiérrez, como também do peruano–suíço Enrique Kleiser. Entretanto, cabe aclarar que não rejeitou as formas inerentes ao mundo andino, mas sim os postu-lados estéticos da corrente indige-nista. Tanto é assim que, em 1975, como júri do Prêmio Nacional de Cultura, não hesitou em galardoar Joaquín López Antay, fato que desatou grande controvérsia entre os artistas plásticos, pois muitos deles consideravam o criador de retábulos, natural de Ayacucho, um simples artesão.

Em 1947, Gálvez empreendeu uma viagem de estudos para Nova Iorque, cidade que emergia como um novo farol da modernidade artística (a final, muitos artistas europeus mais inovadores pro-curaram resguardo entre seus arranha-céus durante a segunda

guerra). Na volta, começou a rea-lizar esculturas em couro a partir de máscaras de arte popular de Huánuco. Em 1951, voltou para os Estados Unidos com a finali-dade de estudar no Art Students League. No ano seguinte, casou com o francês Pierre Wolf, um sobrevivente do Holocausto que pertencera à Resistência, com quem retornaria a Paris. Lá, ela retomou suas aulas com o mestre André Lothe e expôs sua obra, que nesse momento oscilava entre o desenho e a escultura (a última, sob a estela renovadora do grande Alberto Giacometti, cujas contri-buições seriam determinantes para seu trabalho futuro).

Em 1965, Gálvez decidiu se estabelecer em Lima e trouxe uma brisa de ar fresco para uma cena cultural minguada, em que a falta de incentivos obrigava os artistas a abandonar o país. Infelizmente, a morte do marido, em 1967, foi um golpe muito forte que turvaria o resto de seus dias. Mas, para combater a tristeza, ela se refugiou em suas aulas de desenho, que lhe permitiram des-cobrir as inquie-tudes de uma nova geração, e mergulhou em seu ofício com mais afinco e tenacidade. Es-ses foram anos in tensos em que chegou a dar aulas para os presidiários de Lurigancho, por mediação do sacerdote Hubert Lans-siers, e se en-tregou à paixão criadora com

um ímpeto e constân-cia avassaladores. «Se você desenhar a figura humana, pode dese-nhar qualquer coisa», costumava dizer Gál-vez. É claro que ela estava certa. Seus de-senhos mostram uma artista nata, capaz de traçar com precisão e esmero as formas de um homem, um animal ou um objeto. Nessa perspectiva, uma de suas obras mais origi-nais e contundentes é a série de litografias que fez inspirada no xa-drez. São composições estilizadas que utilizam as peças do jogo e do tabuleiro para articular um mundo fantasioso e enigmático, regido por estranhas leis, que supera a dimensão lúdi-ca e gera uma poderosa metáfora da existência. Gálvez coloca a perspectiva no nível do tabuleiro, o que leva o espectador a se internar no desenho como se fosse mais um dos seus impiedosos personagens. Dessa forma, ele é envolvido numa batalha surda em que a violência é a ordem do dia. Vale a pena lembrar que, quando perguntada sobre a razão de ter escolhido o xadrez como motivo artístico, ela declarou sem hesita-ção: «A resposta é simples: fazia bastante tempo que eu sentia ânsia de matar».

Suas esculturas reforçam essa impressão. Daí seu mundo «me-tálico e pontudo, sua atmosfera sinistra e envenenada», como sugeriu o crítico Luis Lama. Isso é visível em suas peças de bronze, de formas esmirradas e texturas rugosas e tortas, que são, a final de contas, monumentos à desolação e ao sofrimento. Gálvez moldou fi-guras de todo tipo, desde pequenas representações de Dom Quixote ou da mítica nave dos loucos, até onças e cavalos de maior tama-nho, passando por recriações do corpo humano, ora realistas, ora distorcidas pela imaginação. São obras densas e complexas, definiti-vamente perturbadoras, em que se

percebe a luta por firmar uma nova linguagem. Cristina Gálvez possui, portanto, mérito o bastante para ser incluída entre os fundadores da escultura moderna no Peru, ao lado de mestres como Joaquín Roca Rey, Jorge Piqueras e Alberto Guzmán.

O centenário da artista pro-piciou uma exposição antológica na galeria Luis Miró Quesada Garland do Município de Mira-flores, evento que, dentre outros feitos, recuperou um documento de singular interesse: um diário da artista, encontrado por acaso num sótão em 2009, que contém reflexões filosóficas, observações técnicas e notas íntimas sobre a re-lação com o marido, escritos tan-to em francês como em espanhol. São textos de uma intensidade esmagadora que confirmam o profundo compromisso de Cristi-na Gálvez com sua arte e revelam sua requintada sensibilidade. Ela, que transmitia a imagem de uma mulher forte e dura, abandona suas máscaras e transparece como um ser vulnerável que apela a seus desenhos e esculturas para livrar um combate desesperado e ao mesmo tempo maravilhoso contra a morte.

* Jornalista e escritor.

La nave. 1954. Couro tratado e madeira.

40 × 37 × 13 cm.

Ícaro. Aprox. 1966. Bronze fundido. 17 × 36 × 23 cm.

Caballo. 1976. Bronze fundido. 61.5 × 80 × 38 cm.

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CHASQUI 8

A PINTURA DA ESCOLA CUSQUENHA

Durante quase três séculos, o Cusco colonial foi um centro de produção pictórica sem

paralelo no vice-reino do Peru. Essa longa história começa imediata-mente após a conquista, quando a linguagem artística ocidental se tor-nou fator essencial para a profunda transformação cultural que atingiu a sociedade andina. Logo ficaria patente a eficácia da pintura como meio para a difusão dos mistérios do catolicismo. Porém, num senti-do mais amplo, ela contribuiria na reformulação de toda uma visão do mundo, deslocando definitivamente as formas simbólicas da antiga arte inca. Isso não iria impedir que, com o passar do tempo, fosse gerada em Cusco uma tradição local, dona de um estilo próprio e reconhecível, mesmo por seus contemporâneos, que conseguiria expressar as comple-xas aspirações da sociedade colonial.

Gênese de uma tradição (1580-1700) O primeiro século e meio foi marca-do pela atividade de mestres docu-mentados, cujos nomes permitem traçar uma linha de continuidade na evolução da pintura cusquenha. Seu impulso inicial ocorreu durante o governo do Vice-rei Francisco de Toledo (1569-1581), reorganizador político e religioso do vice-reino, também promotor da Companhia

de Jesus, ordem que privilegiava o uso da imagem com fins doutrinais. Isso favoreceu a chegada do irmão jesuíta Bernardo Bitti, pintor e escultor italiano que entre 1583 e 1600 decorou muitas igrejas na serra sul. A beleza idealizada de suas figuras e a claridade de seu estilo narrativo tiveram durante décadas inúmeros seguidores e imitadores. Paralelamente, a intensa circulação de gravuras —principalmente fla-mencas— orientou a criação visual, oferecendo um amplo repertório de modelos e soluções formais para uma tradição incipiente.

Foi nessas bases que se estabe-leceu o diálogo com o naturalismo sevilhano, que cerca de 1640 teve uma fugaz presença na região. Pintores como Lázaro Pardo de Lago e Juan Rodríguez Samanez incorporaram em suas obras ele-mentos veristas, mas ao mesmo tempo encarnaram a transição para uma primeira linguagem pictórica regional, que iria sendo definida durante o processo de reconstru-ção do Cusco após o terremoto de 1650. Assim começou uma etapa de emulação do barroco europeu, que atingiu seu ponto máximo durante o governo eclesiástico de Manuel de Mollinedo y Angulo, bispo de Cus-co entre 1673 e 1699. Naquele mo-mento, foi firmado o prestígio dos mestres indígenas Basilio de Santa

Perto da comemoração do bicentenário do nascimento da República, a cultura peruana revisita seu passado milenar com um novo olhar. O Museu de Arte de Lima expõe uma amostra excepcional sobre um dos aportes criativos mais importantes do período do vice-reino: a pintura barroco-mestiça desenvolvida na antiga capital dos incas. A curadoria esteve a cargo de Luis Eduardo Wuffarden e Ricardo Kusunoki.

Anônimo cusquenho. Divina Pastora. Aprox. 1760. Óleo sobre tela. 109 × 82 cm. Banco de Crédito del Perú.

Antonio Vilca (Act. Cusco, 1769-1778). Virgen del Rosario de Lima con los misterios del Rosario. 1769.Óleo sobre tela. 156 × 112 cm. Banco de Crédito del Perú.

Anônimo cusquenho. San José con el Niño y la corte celestial. Aprox. 1793-1803. Óleo sobre tela. 126× 92 cm. Ministério de Relações Exteriores do Peru, Lima.

Atribuído a Juan Rodríguez Samanez (aprox. 1586, depois de 1651). San Isidro Labrador. Aprox.1630-1650. Óleo sobre tela. 144 × 121 cm. Coleção particular, Lima.

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CHASQUI 9

A PINTURA DA ESCOLA CUSQUENHAPerto da comemoração do bicentenário do nascimento da República, a cultura peruana revisita seu passado milenar com um novo olhar. O Museu de Arte de Lima expõe uma amostra excepcional sobre um dos aportes criativos mais importantes do período do vice-

reino: a pintura barroco-mestiça desenvolvida na antiga capital dos incas. A curadoria esteve a cargo de Luis Eduardo Wuffarden e Ricardo Kusunoki.

Cruz e Diego Quispe Tito, cuja so-fisticada obra imitava os efeitos da pintura flamenca contemporânea. Entretanto, foi no entorno deles que surgiu um conjunto de experi-mentações formais que abriram o caminho para o estilo regional mais característico.

Uma política da imagemO auge alcançado pelos ateliês cusquenhos no final do século XVII potenciou o papel da pintu-ra como veículo de expressão das complexas argumentações políticas e religiosas. Não por acaso foi o bispo Mollinedo quem promoveu mais ativamente o uso da imagem como meio propagandístico em favor de sua autoridade, do culto católico e da monarquia espanho-la. O prelado tinha ligação direta com o surgimento de invenções iconográficas como a série Procesión del Corpus Christi ou La defensa de la Eucaristía, que exaltavam o culto ao Santíssimo Sacramento, valor da monarquia espanhola. Nessa mesma época apareceram também os arcanjos arcabuzeiros, associa-dos com a defesa da Imaculada Conceição e o ideal de uma igreja combativa diante dos infiéis. Por sua vez, os porta-vozes da Compa-nhia de Jesus destacaram a ligação entre a ordem e a elite indígena com a recriação fantasiosa do casa-

mento entre a ñusta Beatriz Clara Coya, filha do inca Sayri Túpac, e Martín Garcia de Loyola, sobrinho neto de Santo Inácio. Dentro dessa lógica, os jesuítas promoveram —com alguma oposição— o culto ao menino Jesus com vestimenta inca, conferindo um carácter local à ideia do poder celestial. Quanto ao cha-mado «renascimento inca», a pró-pria nobreza indígena encarregou pouco tempo depois a realização de galerias familiares de retratos ou séries imaginárias de soberanos do Tahuantinsuyo que apoiaram a reivindicação de privilégios. Todas essas imagens ajudaram a identificar a cidade de Cusco como um ente que cumprira o papel de capital de um império, remarcando sua importância simbólica dentro dos domínios hispânicos e diante de Lima, sede do governo colonial.

O auge dos ateliês (1700-1750)A partir do início do século XVIII, a pintura cusquenha se tornou uma das produções emblemáticas do vice-reino, a ponto de chegar a influir numa área que ia do norte do Peru até Buenos Aires e Santiago do Chile. Tal apogeu comercial era baseado numa sistematização do trabalho cada vez maior, ligada ao aparecimento de grandes ateliês. Diferentemente do período ante-rior, marcado pela fama dos prin-

cipais mestres, neste predominava o anonimato, e ao mesmo tempo, a pintura era identificada generi-camente como obra «indígena». Muitos de seus artífices cusquenhos desenvolveram diversas formas de produção, que iam da execução se-riada e impessoal até uma singular habilidade técnica, frequentemente realçada por aplicações de ouro. De fato, é nesse momento que se define um estilo caracterizado pelo convencionalismo extremo e o menosprezo pela ilusão espacial, bem como pelo trato cuidadoso na superfície da pintura. Essa lingua-gem de aparência atemporal, radi-calmente afastado da arte europeia coetânea, favoreceu o desenvolvi-mento de gêneros como as imagens de piedade, que mostram a figuras sacras isoladas, para favorecer a contemplação do espectador devo-to. Nessa mesma linha podem ser catalogadas as «esculturas pintadas» ou imagens religiosas «retratadas» em seu contexto de culto, bem como as cenas sacras locadas no meio de paisagens ideais.

Da Ilustração à Independência (1750-1850)As grandes mudanças culturais que começavam a experimentar as prin-cipais cidades do vice-reino na meta-de do século XVIII não chegaram a alterar o rumo tomado pela pintura

cusquenha, embora foram sentidos em diversos aspectos temáticos. Concomitantemente à chegada dos primeiros lampejos da Ilustração, o pintor Marcos Zapata consolidava um estilo que parecia levar ao extre-mo o esquematismo de seus prece-dentes. Zapata conseguiu conciliar também a tradição local com novos modelos piedosos baseados em estampas centro-europeias. Alguns pintores de sua geração assumiram similarmente um inovador interesse descritivo por certos elementos do entorno, muitas vezes incorporados como ambientação das represen-tações religiosas. Essa vontade de adequação permitiu que os ateliês cusquenhos mantivessem parte do sucesso comercial diante das novas expectativas, até sofrer um duro gol-pe decorrente da rebelião e derrota de Túpac Amaru II (1780-1781), que impactou profundamente na região. Essa forte queda seria agravada pela concorrência com a produção pro-cedente de Quito, numa dinâmica que seria irreversível.

Nessas décadas finais, entretan-to, a pintura continuou a cumprir um papel importante na luta ideo-lógica pela independência através de alegorias patrióticas e imagens de um passado inca, que procuravam restaurar a importância simbólica de Cusco dentro do novo Estado republicano.

Anônimo cusquenho. San José con el Niño y la corte celestial. Aprox. 1793-1803. Óleo sobre tela. 126× 92 cm. Ministério de Relações Exteriores do Peru, Lima.

Anônimo cusquenho. Santiago Matamoros y la toma de Cajamarca. Aprox. 1730-1750. Óleo sobre tela. 130,6 × 136,3 cm. Coleção Llosa Larra-bure, Lima.

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CHASQUI 10

FOTÓGRAFAS PERUANAS (II)Mario Acha*

As pessoas comuns tomam fotografias como num ritual, capturando instantes de sua

vida com a esperança de poder futu-ramente comprovar que existiram. Daí os álbuns familiares e os arqui-vos digitais, sempre associados a uma longa e tediosa explicação posterior.

Já o «fotógrafo», como artista, tem o objetivo de produzir uma obra que gere uma relação entre ele e seu entorno ou consigo mesmo, e que possa ser apresentada e vendida em espaços de exibição pública, museus e galerias. Para tanto, deve cumprir com requisitos de qualidade estética e artística, determinados pelo grupo cultural e a época a que pertence.

Todavia, as coisas não são tão fáceis num mundo globalizado, onde toda atividade humana vira mercadoria, os interesses pessoais estão por cima dos coletivos e os requisitos de qualidade, fora de

controle, acabam se submetendo aos interesses do mercado da arte e ao gosto de uma maioria manipulada pela opinião tendenciosa e pouco preparada da mídia.

O que resta ao fotógrafo é a ho-nestidade para reconhecer e respon-der a sua cultura e a sua formação sensível. Porém, apesar de tudo, as possibilidades são imensas, como demonstrado pela exposição de 58 fotógrafas peruanas, que respondem com honestidade a sua condição social e sensibilidade de género de maneira não só única, mas também criativa.

As imagens representadas vão desde o documento social compro-metido e a exploração de processos técnicos próprios do meio, até a expressão artística conceitual que eleva a fotografia ao nível de uma arte contemporânea cada vez mais renovada e criativa.

Em outras palavras, os trabalhos são fruto da capacidade de obser-vação profunda e crítica que cada artista tem, da exploração criativa de processos fotográficos primários e das propostas contemporâneas que prefe-rem, desde a década de 1970 e talvez erroneamente o conceitual, à visua-lidade plástica de épocas anteriores.

Uma análise mais detalhada da obra revela, numa primeira parte, manipulações formais quase cinematográficas, fotomontagens, sombras desvanecidas, texturas, abstrações e cores chamativas; uma segunda parte apresenta segmentos abstraídos de uma realidade ainda reconhecível, paisagens oníricas e situações humanas estranhas, com interiores mágicos, rostos marcados pelo tempo e a pobreza, retratos camponeses, etnias e rituais em extinção; numa terceira parte, pode-mos apreciar criações visuais de uma

poesia intensa que se aproximam do cinema de terror e que magnificam de maneira surrealista rostos e re-tratos fantasmagóricos nessa época de ausências e presenças efêmeras e artificiais, de seres humanos perdi-dos num emaranhado impossível de formas sem sentido, enquanto uma banda musical uiva inconsolável pela identidade perdida; finalmente, no último salão, podemos admirar um pequeno grupo de obras que volta com saudade à simplicidade dos inícios da fotografia, quando tudo era descoberta e deslumbramento, sem complicações intelectuais nem o facilismo digital.

A exposição «Muestra 58 fotógrafas peruanas» foi organizada pelo Centro Cultural Inca Garci-laso e a plataforma fotografiaperuana.com, com curadoria de Mario e Maria Acha.

* Artista visual, fotógrafo, cineasta documen-talista, pesquisador e roteirista.

Ros Postigo.

Liz Tasa. Karen Zárate.

Mafe García.

É exibida a segunda série da exposição dedicada a mostrar as obras de uma centena de fotógrafas peruanas contemporâneas.

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Liese Ricketts.

Deborah Valencia.

Stella Watmough.

As fotógrafas que participam da exposição são: Abigail Giol, Adriana Peralta, Aissa Chrem, Alejandra Ipince, Alejandra Morote, Alexandra Feldmuth, Alessandra Rebagliati, Alexandra Huarancca, Ana Castañeda, Ana Cecilia Farah, Ari Om, Ariana Loli, Astrid Jahnsen, Brenda Pastor, Carmen Barrantes, Carmen Rávago, Cecilia Larrabure, Claudia Cavassa, Daniela Ch. Ysla, Daniela Di Francesco, Daphne Carlos, Daphne Zileri, Deborah Valença, Flavia Gandolfo, Gianella Alfaro, Irma Cabrera, Jeannine Ferrand, Jessica Cáceres, Joselyn D’angelo, Karen Zárate, Karina Cáceres, Kiara Lozano, Leslie Spak, Liese Ricketts, Liliana Takashima, Liz Tasa, Macarena Puelles, Mafe García, María Sofía León, Mariel Vidal, Marlyn Vilchez, Martha Woodman, Mili DC Hartinguer, Mireya Canales, Nelly García, Paola Miranda, Paula Herrera, Peruska Chambi, Pilar Pedraza, Ros Postigo, Rosario Vicerrel, Silvana Pestana, Sofía Ferrari, Stella Watmough, Sutsely Kanashiro, Talía Duclos, Verónica Barclay e Yael Rojas.

Alejandra Ipince.

Cecilia Larrabure.

Liliana Takashima.

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A REPÚBLICA DOS POETAS

Jorge Nájar é considerado um dos mais importantes poetas peruanos da chamada Geração de 70. Nasceu em Pucall-pa, Ucayali, em 1946, e durante a infância e adolescência morou em Iquitos e outras cidades da Amazônia peruana. Em 1964 migrou para Lima e integrou o Movimento Hora Zero. Reside em Paris desde 1976. Publicou poemários como Malas maneras (1973), Patio de peregrinos (1976), Fini-bus terrae (1985, Prêmio Copé), Taller mediterráneo (1997) e Hotel Universo (2016). Sua obra poética foi compilada em Formas del delirio (1999) e Poesía reunida (2013). Alguns de seus poemas fazem parte de diversas antologias e vários livros seus foram traduzidos para o francês. Em 2001, ganhou o Prêmio Juan Rulfo de Poesia, convocado por Radio Francia Internacional.

JORGE NÁJAR

DESTINO

A veces piensas en tu destino e imaginas ser un árbol fulgurante lleno de plumas y de pájaros relucientes,sin que te importe que nadie pueda verlos.Te basta con soñar que allí en el fondo, amado por el aire, perdurasentonando cantos, descifrando historiasy la sonrisa de quien voltea la esquinay arde en la noche mientras el tren se aleja.(Ahí donde brota la luz, 2007)

DESTINO

Às vezes pensas em teu destino e imaginas ser uma árvore fulgurante cheia de penas e de pássaros reluzentes,e não te importas se que ninguém os vê.Para ti basta sonhar que lá no fundo, amado pelo ar, perdurasentoando cantos, decifrando históriase o sorriso de quem vira a esquinae arde na noite enquanto o trem se afasta.Aí onde brota luz, 2007

ARTE RUPESTRE

Sobre la tierra de flores azulesnadie sueña ni canta, abuelo mío.Únicamente doy testimonio que existeentre tú y nosotros un río anaranjadoque funde tiempos y armonías,indescifrables desde la montañadonde se tienen tus ojos antiguos.

Dibujados en ella, arrancados de ti,hay ademanes divinos y ajenosque en la turbulencia del aire entrana este patio donde el amor se extraña,abuelo de plumas coloradas y negraseternizadas en la celosías del Pajatény en las que tus ojos feroces no cesanen su odio casi humano, casi nuestro.

Tan eterno en tu grandeza parecesque sólo me dejas de consuelo la imagen que aquí fijo: tu vuelo altivo por la cañada, entre los bosquesy en el que no canto ni sueño más allá de tu altura.(Mate burilado, 1976)

ARTE RUPESTRE

Sobre a terra de flores azuisninguém sonha nem canta, meu avô.Unicamente dou testemunho de que existeentre tu e nós um rio laranjaque funde tempos e harmonias,indecifráveis desde a montanhaonde se têm teus olhos antigos.

Desenhados nela, arrancados de ti,há trejeitos divinos e alheiosque na turbulência do ar entrama este pátio onde há saudade do amor,avô de penas coradas e negraseternizadas na treliça do Pajaténe onde teus olhos ferozes não cessamem seu ódio quase humano, quase nosso.

Tão eterno em tua grandeza parecesque só me deixas de consolo a imagem que aqui fixo: teu voo altivo pela canhada, entre as florestase no que não canto nem sonho para além de tua altura.Mate burilado, 1976

AEROPUERTO DE PUCALLPA

Una muchacha sonríe a mi ladoy vuela una cometa desde su corazón.¿Tú también has hecho volar una cometadesde tu corazón hasta la lluvia?Aquí me dicen que en inviernola gente naufragaba entre las aguasde ese río invisible y violentoque invadía recuerdos y afectos,la casa construida sobre un volcán.

Tú no has visto el invierno.Se caen las hojas de los árbolesy el corazón es un vaso olvidado.Se amontonan en la memoria imágenesde quienes ya no volverás a ver,páginas amarillas del Apocalipsis,amores rotos hundiéndose en el aire,sobrevolando la tierra y la historiade los años de guerra que nos tocó vivir.

Una multitud se aglutina y nadieviene desde lo hondo a nosotros.¿Qué ave de rapiña ha devoradola cometa que volaba en el corazón?¿Alguien te llama entre el gentío?Juro que jamás había imaginadoasí la soledad en medio del sol,junto a la gente que habla y sonríehundiéndose en un pozo de nieve.

AEROPORTO DE PUCALLPA

Uma moça sorri a meu ladoE solta uma pipa desde seu coração.Tu também fizeste voar uma pipado teu coração até a chuva?Aqui me dizem que em invernoas pessoas naufragavam entre as águasdesse rio invisível e violentoque invadia lembranças e afetos,a casa construída acima dum vulcão.

Tu não viste o inverno.As folhas caem das árvorese o coração é um copo esquecido.Na memória amontoam-se imagensdaqueles que não tornarás a ver,páginas amarelas do Apocalipse,amores quebrados afundando no ar,sobrevoando a terra e a históriados anos de guerra que nos coube viver.

Uma multidão se aglomera e ninguémvem lá do fundo até nós.Qual a ave de rapina que devoroua pipa que voava no coração?Alguém te chama dentre o gentio?Juro que jamais imaginaraa solidão assim em meio ao sol,junto da gente que fala e sorriafundando num poço de neve.

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SONS DO PERU

CHABUCA GRANDA E A RENOVAÇÃODA MÚSICA POPULAR

Abraham Padilla*A cantora e compositora peruana

Maria Isabel Granda y Larco (1920-1983), mais conhecida no

meio artístico como «Chabuca», nasceu em Cotabambas, Apurímac, a 4.800 acima do nível do mar, num pequeno assentamento mineiro da serra, local para onde o pai foi morar e trabalhar. Embora pertencesse a uma família aris-tocrática, no início da infância ela teve a oportunidade de compartilhar durante seus dias e noites a visão dos condores e das estrelas com os habitantes do lugar, e dali, como ela gostava de dizer, ascendeu para o povo. Ainda pequena, em 1923, mudou com a família para Lima. Estudou no colégio Sagrados Corazones de Belén e quando acabou os estudos, fez alguns cursos livres no Instituto Femenino de Estudios Superiores, da Pontifícia Uni-versidade Católica do Peru.

Na alma sensível de Chabuca, fica-ram impregnados os sabores e as cores do povo. Sua refinada educação a cobriu de poesia, andar delicado e solidez intelectu-al. Sua força interior, posta à prova num casamento muito curto, foi demonstrada ao longo de sua vida com integridade, firmeza em suas opiniões e disciplina artística, que começara a cultivar com 12 anos de idade, quando descobriu sua voz como meio de expressão de seus anseios. Cantou em dupla, cantou só, interiorizou a música, despertou sua vocação criadora.

Após o divórcio, ela dedicou mais tempo a sua evolução na criação musical. Em 1948, ganhou um concurso organiza-do pelo Município de Rímac com o vals «Lima de veras». Depois vieram «Zaguán» e «Callecita escondida», todas saudosas de uma cidade de outros tempos, histórica e outonal. Já nessas primeiras composições foi evidenciado um refinamento das melodias, ritmos e acordes, que foi sendo acentuado ao longo de sua vida. Manteve introduções lentas e em tom menor e seções posteriores com mais movimento, em tom maior. Da mesma forma, as letras

de suas músicas têm rima elegante, e a artista conseguiu integrar com requinte as linguagens literária e musical.

«La flor de la canela», expressão an-tiga empregada para se referir a alguma coisa muito especial e fina, foi tomada

por Chabuca para dar título a um vals e, em 1953, ela passa a ser conhecida nacionalmente quando a música é gravada pelo grupo Los Chamas. À mesma época pertencem os valses «José Antonio», «Fina estampa» e «Puente de los suspiros», o último com uma lírica poético musical ainda mais delicada e profunda, empregando o tempo musical com muita maior liberdade. Pouco mais tarde, a artista incursiona em alguns gêneros da música afro-peruana, que também são nutridos e renovados com seu particular estilo. De fato, uma das contribuições de Chabuca à música tradicional peruana foi estabelecer uma diferenciação, mais clara entre as músi-cas de origem africana do Caribe ou de outras latitudes da América e as desen-volvidas no Peru. Em outras regiões, os ritmos são mais rápidos, os acordes mais circulares e as letras mais repetitivas. No Peru, os ritmos, o acompanhamento ins-trumental e o canto são mais complexos e frequentemente mais tranquilos. Isso fica mais patente nos ritmos tomados por Chabuca como base para compor, como o landó e o panalivio.

Com suas mais de cem composições musicais, versos e múltiplas apresenta-ções do mundo afora, Chabuca Granda deu um aporte fundamental para a renovação, atualização e projeção fu-tura das expressões musicais crioulas e afro-peruanas. Dedicou obras a diversos personagens da época e compartilhou ideais com outros artistas, como Javier Heraud e Violeta Parra, aos quais também dedicou algumas criações. Sua estampa foi sempre fina, seu poncho, de linho. Sua voz grave, devido a uma afec-ção na garganta, caracterizou seu estilo único de cantar, íntimo e sorridente. Sua obra, vasta e diversa, contribui deci-didamente a engrandecer o patrimônio musical do Peru.

* Musicólogo, compositor e diretor de orquestra.

OFERENDA, EM MEMÓRIA DOS AUSENTES. Cemduc. PUCP. 2005. www.pucp.edu.pe/cemduc

Oferenda, em memória dos ausentes é uma produção discográfica do Centro de Música e Dança da Pontifícia Univer-sidade Católica do Peru, (Cemduc), dirigida desde 1992 pela recentemente falecida pesquisadora Rosa Elena (Cha-lena) Vásquez (1950-2016), quem pro-duziu importantes materiais em resgate do patrimônio musical peruano. Como nesse caso, grande parte da produção do Cemduc toma a forma de histórias fictícias como suporte para pôr em cena música e dança, integrando temas tradi-cionais com alguns de autoria recente e intervenções teatrais ou declamações, que dão continuidade e coerência ao espetáculo. A publicação de discos de áudio de alguns desses espetáculos constitui uma das contribuições do

Cemduc ao estudo e revalorização da música peruana.

Para esse disco, «Chalena» criou um roteiro com referências aos diferentes tipos de ausências que os habitantes de Ayacucho, Huancavelica e Apurímac experimentaram durante as últimas décadas. A realização, embora baseada na música tradicional andina, expressa um conceito ocidental e moderno dos arranjos e da afinação, devido eviden-temente à busca de refinamento na interpretação e a gravação em estúdio. A actriz peruana Delfina Paredes participa como narradora. É claro que o trabalho de Vásquez transcende amplamente esse material, entretanto, o disco constitui hoje um testemunho, embora pequeno e parcial, de seus múltiplos esforços por compreender e explicar a arte popular e suas complexas relações com os processos políticos e culturais de um país tão misterioso e mágico como o Peru. É também uma oferenda a sua produtiva presença e sua memória.

Franco carranza

TEXTURAS, TROMPETE CONTEMPORÂNEO DO PERU. Discográfica Intercultural Americana. 2016. www.edmusicam.cl

Num país como o Peru, criar música nova é algo cotidiano, pois é uma arte viva em todo o território. Porém, a situ-ação é outra em se tratando de música

contemporânea acadêmica. Os projetos desse tipo são raros e não instituciona-lizados, e exigem grande esforço por parte das pequenas comunidades ou dos músicos individualmente. Por isso, do nosso ponto de vista, há um valor especial no recente lançamento do disco Texturas, trompeta contemporánea del Peru, de Franco Carranza, primeiro trompetista da Orquestra Sinfônica Na-cional do Peru. A produção inclui nove obras de três compositores peruanos de longa trajetória: Cuentas, Gervasoni e Padilla. O projeto foi iniciado com uma convocatória, solicitando aos composi-tores que criassem obras para trompete e conjuntos de câmara, tendo como poética unificadora alguma referência ao Peru. As obras foram concebidas para combinações de trompete com bateria, baixo eletrônico, marimba, flauta, violão, cajón, percussão, pedras e pista de áudio. Da mesma forma, os títulos «El verso interior», «Sonatina», «Imágenes de la costa peruana», «Rei-nos ancestrales» ou «Tejidos del viento» abrangem a diversidade de propostas e têm caráter enraizado na tradição e, ao mesmo tempo, no que é totalmente novo. O resultado é uma valiosa e re-presentativa amostra da criação musical acadêmica peruana atual a partir da visão unificadora do trompete. A execu-ção é impecável. O som é natural, com claridade no timbre e profundidade expressiva. A importância e qualidade da produção mereceram o apoio dado pelo Ministério de Cultura do Peru. A apresentação do disco num concerto

no foyer do Grande Teatro Nacional do Peru, em 27 de abril de 2016, foi um grande sucesso.

«Chabuca» Granda.

CHASQUIBoletim Cultural

MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES

Direção Geral para Assuntos CulturaisJr. Ucayali 337, Lima 1, Peru

Telefone: (511) 204 263

E mail: [email protected]: www.rree.gob.pe/politicaexterior

Os artigos são responsabilidade de seus autores.Este boletim é distribuído gratuitamente pelas

missões do Peru no exterior.

Tradução:Angela Peltier Maldonado

Impressão:Tarea Asociación Gráfica Educativa

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BANQUETE DE LIVROSTeresina Muñoz Nájar*

Alguns livros ficam para sempre perto da nossa mesa. Tenho seis e cinco deles são dicionários. O monumental Diccionario de gastronomia peruana tradicional, de Sergio Zapata, tem lugar cativo desde minha segunda visita a Lima. É nele que começam minhas pesquisas e consultas. O mesmo acontece com o Diccionario de frutas y frutos del Perú, de Antonio Brack, imprescindível para desbravar a incrível despensa peruana. Meu terceiro volume de referência é La gran cocina mestiza de Arequipa, de Alonso Ruiz Rosas, um livro que transcende a cozinha regional para alcançar a essência das cozinhas do Peru. Depois está a magna obra de Elmo León, 14.000 años de alimentación en el Perú, que parece abranger tudo; Cien siglos de pan, de Fernando Cabieses; La nutrición en el antiguo Perú, de Santiago Antúnez de Mayolo, ou La cocina de los incas, de Rosario Olivas Weston. Não vão pensar que sou iconoclasta, mas outra obra definitiva é ¿Qué cocinaré?, mais conhecido como o Nicolini, que aproximou várias gerações de peruanas da cozinha. Perú, de Gastón Acurio é outro receituário a se ter em consideração. O décimo, permitam-me a licença, fui eu que escrevi faz cinco anos e se chama Edén.pe.

Crítico gastronômico espanhol estabelecido no Peru. Seus artigos são publicados nos jornais El País de Madri e El Comercio de Lima.

MEUS DEZ LIVROS FAVORITOS DE COZINHA PERUANA

Bizcochero. Lima. M. A. Fuentes, Paris, 1867.

Ignacio Medina*

Adán Felipe Mejía. Desenho de Alonso Núñez.

Capas da primeira edição de Manual del buen gusto (1866) e de La Mesa peruana (1867), primeiros livros de receitas publicados em Arequipa.

Um olhar à considerável produção editorial dedicada à cozinha peruana nas últimas décadas e ao interesse que desper-tou entre locais e visitantes desde tempos distantes

Foram os cronistas (viajantes impenitentes, naturalistas, his-toriadores, botânicos, médicos,

missioneiros, etc.) os primeiros a se empenhar em descrever os insumos e registrar os usos e costumes culinárias do Peru antigo e do país que encontra-ram diante dos olhos. Entre os séculos XVI e XVIII, Garcilaso da Vega, Gua-mán Poma, José de Acosta Bernabé Cobo, Cieza de León, León Pinelo, entre muitos outros, forneceram inúmeros dados que posteriormente permitiram construir boa parte de nossa história gastronômica. Vamos citar só alguns de exemplos.

Em 1603, em Comentarios reales, Garcilaso descreve um dos frutos mais apreciados pelos estrangeiros chegados às novas terras: a atemoia ou chirimoya, nativa da serra norte do Peru e do sul do Equador. «A fruta —diz ele— é do tamanho de um melão pequeno, tem a casca dura como uma cabaça seca, e quase da mesma grossura; dentro dela, a medula tão estimada, com um toquezinho de agrura que a faz mais gulosa ou guloseima». Em 1653, Cobo corrobora as palavras do cronista Inca: «Tem a carne branca e suavíssima, com um agridoce apetitoso, de modo que, na opinião de muitos, é o fruto melhor e mais regalado de todas as Índias».

O padre Acosta aponta a propó-sito da chicha peruana: «O vinho de milho, chamado azúa no Peru, e chicha no léxico comum de Índias, é feito de diversos modos. O mais forte, a modo de cerveja, umedecendo primeiro o grão até ele começar a brotar, e depois cozinhando-o seguindo uma certa ordem; sai tão forte que derruba em poucos goles. Ele é chamado sora no Peru». E sobre a quinoa, da cada vez mais conhecida, disse o próprio Gar-cilaso: «O segundo lugar dos cereais cultivados na face da terra é dado àquele que chamam de quinua, e em espanhol mijo ou ‘arroz pequeno’, porque o grão e a cor têm certa seme-lhança […]. as folhas tenras comem índios e espanhóis em seus guisados, porque são saborosas e muito saudá-veis; também comem o grão em suas sopas, feitas de muitas maneiras. Da mesma forma que fazem do milho, os índios preparam beberagem da

quinoa, mas isso só em terras onde não há milho».Já entrada a Repú-blica, uma legião de viajantes como Humboldt, Marcoy, Squier e outros se ocuparam dos costumes culinários nacionais. O escritor peruano Manuel Atanasio Fuentes se dedicou também a registrar os costumes culinários da capital em sua Guia histórico descriptiva, administrativa, judicial y de domicilio de Lima, publicada em 1860. De acordo com o pesquisador Sergio Zapata, autor do fundamental Diccionario de gastronomía peruana tradicional (publi-cado pelo Fundo Editorial da Uni-versidade San Martín de Porres), esse seria o primeiro texto escrito dedicado integramente às comidas da época. «Embora não se trate de um livro de receitas —diz Zapata—, sua consulta revela o preparo de vários pratos tí-picos, alguns dos quais são descritos detalhadamente (puchero, chupe, tamal, cebiche), além de dar informação sobre o consumo e os costumes da mesa». Mais tarde, em Lima, apuntes históricos, descriptivos, estadísticos y de costumbres, livro editado em 1867, Fuentes volta ao tema das comidas e acrescenta pa-rágrafos dedicados às bebidas. Indica, por exemplo, que o aguardente (pisco,

no caso), a chicha e o guarapo (suco de cana fermentado) são as «três únicas bebidas produzidas no Peru e usadas em Lima». Fuentes conta, dentre ou-tras coisas, que o puchero tinha mais de 30 ingredientes, o cebiche ardía até as lágrimas e a chicha era a bebida nacional.

Os primeiros livros de receitasNo Peru, o primeiro receituário

propriamente dito, ou seja, um volume que inclui a descrição de ingredientes e as indicações para o preparo das comidas, com algumas notas e dados curiosos, apareceu em 1866. Trata-se do Manual de buen gusto, que facilita el modo de hacer los dulces, budines, colacio-nes y pastas, y destruye los errores en tantas recetas mal copiadas, de autor anônimo. Foi editado em Arequipa e, como o extenso título já indica, só contém receitas de sobremesas e doces. Em 1867, é publicado nessa mesma cidade pela imprensa de Francisco Ibánez La mesa peruana o sea el libro de las familias, que facilita, pela primeira vez, receitas de diversas comidas e bebidas além de sobremesas e doces, começando pela chicha. Ele é, a rigor, o primeiro receituário de cozinha peruana e foi

reeditado mais três vezes (1880, 1896 e 1924) até ser recentemente resgatado.

Em 1872, Federico Flores Galindo publicou em verso um volume com o título Salpicón de costumbres nacionales. Uma espécie de defesa à culinária nati-va diante do impacto provocado pelas novas cozinhas estrangeiras que come-çavam a fincar raízes, especialmente na capital. Zapata acha que outro livro importante «pelo carácter regional» é Cocina ecléctica, da escritora saltenha Juana Manuela Gorriti.

«Publicado originalmente em 1890 —aponta— ele contém uma boa quantidade compilada de receitas de origem peruana e/ou fornecidas por damas peruanas (32%)». Em 1895, aparece em Lima um Nuevo manual de la cocina doméstica, de autor anônimo, que se incorpora à lista de primeiros receituários nacionais.

Receituários e cronistasNa primeira metade do século XX cir-cularam em edições populares alguns novos livros de receitas de cozinha peruana e se multiplicaram nos jornais as seções de cozinha com profusão de receitas. Surgiram também notáveis cronistas que escreveram frequente-mente sobre o tema, como os relem-brados Federico More e Adán Felipe Mejía, «El Corregidor», jornalista que

em 1946 e 1947 publicou uma série de crônicas no jornal La prensa, todas dedicadas à gastronomia peruana e seus insumos, que seriam compiladas num volume clássico para os interes-sados no assunto: De cocina peruana (1969). As crônicas de More e de Mejía passaram por edições posteriores, e à exaltação do tema se uniram vários cronistas como Octavio Mongrut, Guillermo Thorndike, o poeta Anto-nio Cisneros —autor de uma notável antologia que tem o título de Diente del Parnaso—, dentre outros.

Um dos receituários de maior circulação no Peru em meados do século XX foi El libro de doña Petrona, da argentina Petrona C. de Gandulfo, muito usado pela classe média e alta de Lima e outras cidades. Mais tarde, a fábrica de macarrão Nicolini publicou ¿Qué cocinaré? Esse receituário, além de propor receitas com seus produtos (prática frequente de diversos fabri-cantes de alimentos ou fogões), incluía 300 receitas de pratos e sobremesas nacionais e internacionais e foi muito bem aceito. Em 2012, quando ele se tornara uma espécie de relíquia achada apenas nos sebos, Alicorp (empresa que se fusionou com Nicolini) lançou

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uma nova edição contendo as 300 receitas originais e 50 adicionais.

A multiplicaçãoQuando as bondades da gastrono-

mia peruana começaram a ultrapassar fronteiras, começou também uma avalanche de publicações que tenta-vam explicar sua origem e futuro e que compilaram receitas de todos os tempos. Receituários e pesquisas. Vamos mencionar primeiramente Tratado de dulces y licores de Moquegua (1990), de Rosario Olivas, e Cien siglos del pan (1995), de Fernando Cabieses. Nesse último, o autor, fascinado pela medicina e a alimentação tradicionais, descreve com muito detalhe e erudição os produtos nativos da América e os que chegaram do Velho Mundo. Den-tre os valiosos estudos regionais desses anos figuram também um trabalho de Lupe Camino sobre a chicha em Catacaos e o livro Picanterías cusqueñas, vitalidad de una tradición, da socióloga Eleana Llosa.

Em 1995, Peru Reporting E. I. R. L., dirigido então pelo jornalista Jonathan Cavanagh, publica uma obra muito importante. Trata-se de La gran cocina peruana, de Jorge Stanbury, livro pioneiro quanto à compilação de receitas de quase todas as regiões do Peru. No ano seguinte e sob o mesmo selo, sairia Las recetas de Rosita Yimura, primeiro livro de cozinha ni-kkei publicado no país, em que Rosa Yimura revela os segredos de uma de suas criações mais aplaudidas: o polvo ao azeite.

No final da década de 1990, Ber-nardo Roca Rey iniciou, através do jornal El Comercio, a publicação dos «colecionáveis» de cozinha, receitas de autores ou de anônimos que saem semanalmente até hoje. Outros jor-nais copiaram a iniciativa e tiveram bastante acolhida.

Em 1998, a Universidade San Martín de Porres (USMP), que inicia-ra seu vasto catálogo de publicações gastronômicas em 1993 com Cultura, identidad y cocina en el Perú (com textos de Antúnez de Mayolo, Juan José Vega, Giovanni Bonfiglio, Rosario Olivas, dentre outros), editou La cocina en el virreinato del Perú, volume que descreve as comidas, as bebidas e os costumes cotidianos durante a co-lônia. Da mesma autora são também La cocina cotidiana y festiva de los limeños en el siglo XX (1999) e La cocina de los incas. Costumbres gastronómicas y técnicas culinarias (2001).

Cabe apontar que, até o momento, a Universidade San Martín de Porres de Lima, através de sua Escuela Pro-fesional de Turismo y Hostelería, sob a destacada liderança do dominicano Johan Leuridan Huys, apresentou mais de cem livros dedicados a nossa gastronomia, tornando-se o primeiro e mais reconhecido editor de livros culinários de nosso país. Destacam, além dos já citados, Los chifas en el Perú. Historia y recetas (1999), profusa e profunda pesquisa de Mariella Balbi; Pachamanca: el festín terrenal (2001), de Jesús Gutarra e Mariano Valderrama; La flor morada de los Andes (2004), de Sara Beatriz Guardia; Diccionario de gastronomía peruana tradicional (2004), de Sergio Zapata, extraordinária fonte de consulta que já conta com uma segunda edição (2009) «corrigida e aumentada»; Panes del Perú. El encuentro del maíz y el trigo (2007), de Andrés Ugaz; Chicha peruana: una bebida, una cultura (2008), de Rafo León e Billy Hare; Bodegón de bodegones. Comida y artes visuales en el Perú (2010), de Mirko Lauer; Memorias de un comensal (2010), de Raúl Vargas; El gran libro del postre peruano (2011), reimpresso três vezes e traduzido para o inglês,

de Sandra Plevisani, quem já publi-cou cerca de 30 livros de receitas sob diversos selos e com tiragens de até 200 mil exemplares; La cocina mágica asháninca (2011), de Pablo Macera; La cocina monacal en la Lima virreinal (2009) e Vino y pisco del Perú (2013), de Eduardo Dargent; La cocina aimara (2012), de Hernán Cornejo; as valiosas compilações de culinárias regionais e de picanterías dirigidas por Isabel Álvarez e o minuciosos estudo 14.000 años de alimentación en el Perú (2013), de Elmo León, que, além de oferecer uma retrospectiva nas origens da comida pe-ruana, contém uma lista taxonômica com grande quantidade de recursos comestíveis consumidos no período pré-hispânico. Muitos dos volumes que foram citados ganharam signifi-cativo reconhecimento internacional, como o que outorga o Gourmand World Cookbook Awards.

Da mesma forma, é muito va-lioso o livro de Josie Sison Porras de De La Guerra, titulado El Perú y sus manjares. Un crisol de culturas. Ele apareceu em 1994 e contém receitas dos principais conventos de Lima e das famílias mais notáveis da cidade. Não podemos deixar de mencionar todas as edições de Cocina peruana, de Teresa Ocampo, nem os dois volumes publicados por Tony Custer: El arte de la cocina peruana. A primeira edição do volume I saiu em 2000 com grande tiragem: mais de 85 mil exemplares. Recolhe cerca de 100 receitas de re-conhecidos chefs e cozinheiros. Em 2006, o poeta e gourmet Rodolfo Hinostroza publicou uma espécie de tratado de gastronomia titulado Primicias de cocina peruana, texto que estende a visão da história de nossa gastronomia a partir da Conquista. Outro livro gravitante e que reúne todo o acervo de uma das cozinhas mais destacadas do país é La gran coci-na mestiza de Arequipa, de Alonso Ruiz Rosas, cuja segunda edição, corrigida e aumentada, foi publicada em 2012. O volume reúne um enorme número de receitas compiladas pelo autor em picanterías e casas de família, e traz em anexo La mesa peruana o sea el libro de las familias (1867).

Finalmente há os livros escritos pelos próprios chefs. Em 2006, Rafael Osterling publicou Rafael. El chef, el restaurante, las recetas, primoroso livro em que o sofisticado cozinheiro nos presenteia com suas melhores receitas e descreve a filosofia de sua cozinha. Do mesmo autor é El Mercado (2016), que reúne todos os segredos de seu restaurante na rua Hipólito Unanue. Virgilio Martínez, nosso laureado chef, também publicou Central (2016), um livro em tributo à biodiversidade do país. É claro, há uma longa lista de títulos cuja autoria pertence ao famoso Gastón Acurio, de quem só mencionamos alguns: Perú una aven-tura culinaria (2002), Cocina casera para los tiempos de hoy (2003), Larousse de la gastronomía peruana (2008), 500 años de fusión (2008), Cebiche Power (2012) e Edén.pe: 21 revelaciones para el mundo. Nesse último, escrito pelo crítico Ignacio Medina, Gastón com-partilha comentários com o mítico Ferran Adriá; são descritos 21 produ-tos nativos e é revelada a identidade de 21 produtores peruanos. No ano passado, Gastón Acurio e o jornalista Javier Masías apresentaram Bitute. El sabor de Lima, livro que contém 70 receitas recolhidas de receituários que datam desde 1867, reformuladas sob a filosofia de Acurio e da chef Martha Palacios.

Em resumo, há uma oferta de re-ceitas e estudos vasta e variada, quase tão generosa quanto a própria cozinha peruana.

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Luis Eduardo Wuffarden*UM UNIVERSO REFLEXIVO

Amostra antológica do pintor limenho Alejandro Alayza no Centro Cultural Inca Garcilaso do Ministério de Relações Exteriores.

Como os antigos mestres do Re-nascimento, o pintor Alejandro Alayza (Lima, 1946) assume em

seu trabalho a unidade indivisível entre a arte e a vida. Consequentemente, não costuma separar suas facetas comple-mentárias de criador e mestre, exercidas simultaneamente faz várias décadas. Conseguiu também fazer de sua casa--ateliê, em Barranco, uma espécie de bottega generosamente compartilhada, o espaço ideal para viver uma vocação que não conhece pressa nem pausa. Nele, graças ao poder formativo da arte —entendida como atividade con-ceitual e manual ao mesmo tempo—, o afazer diário de Alayza congrega em liberdade todos os membros da família, sem impor modos excludentes de ver ou apreciar. É precisamente a partir desse genuíno modus vivendi como surge o sur-preendente universo figurativo de quem hoje, sem dúvida nenhuma, merece ser considerado entre os pintores peruanos mais singulares de sua geração.

Se houver algo que possa definir o desempenho pictórico de Alayza, isso é seu carácter predominantemente refle-xivo. Esse traço poderia ser atribuído, em grande parte, a seus anos formativos nos ateliês da antiga Escuela de Artes Plásticas da Pontifícia Universidade Católica, onde o método de ensino, implantado por seu fundador e diretor, o mestre austro-peruano Adolfo Win-ternitz, propiciava o autoconhecimento do aluno e a meditação constante sobre determinados aspectos cruciais da cria-ção como vias para descobrir e orientar a própria personalidade artística. Alayza transmitiu, em mais de ocasião, a leitura das Cartas a un joven poeta, de Rainer Maria Rilke, leitura essencial para todo aspirante. Nelas, Rilke discorre sobre a introspecção, a solidão criativa —base do necessário encontro do artista consigo mesmo— e sobre o retorno à infância como forma de fugir do mundo con-vencional dos adultos. Havia, ainda, a gravitação contemporânea do expressio-nismo abstrato e o informalismo, tanto na escola como na cena artística local e inclusive latino-americana. Naquele en-tão, tanto Winternitz como Fernando de Szyszlo, outro professor de enorme influência entre os alunos da EAPUC, estavam plenamente adscritos no abstra-cionismo e o jovem aluno praticou essa tendência por um tempo, como parte de seu aprendizado.

Todavia, como muitos de seus coe-tâneos, na década de 1970 Alayza iria se voltar para figuração partindo, em seu caso, do repertório abstrato que já manipulava. Não aderiu ao surrea-lismo nem ao hiper-realismo, em boga naquele momento, mas optou pelo caminho mais arriscado de construir um mundo próprio: equidistante tanto da ilusão ótica como das convenções da pintura onírica. Após vários anos de paciente indagação, o pintor final-mente se inseriu no vasto horizonte do expressionismo figurativo, tendência que atravessa a história da moderni-dade artística peruana graças a alguns personagens insulares. Entre eles está o próprio Winternitz, procedente da tradição expressionista centro-europeia que, ao chegar ao Peru, era portador de uma concepção figurativa radicalmente distante dessa tendência. Em compen-sação, vinha investido de uma potente carga espiritualista e humanista. Essa é a principal fonte que nutre inicialmente

a pintura de Alayza, e nesse sentido, sua obra se erige também como um produto paradigmático desse centro de estudos.

Com o passar do tempo, o pintor enriqueceu seu trabalho com outro tipo de influências que permitem enxergar uma rara consciência da história da arte ocidental. Não é raro que transpareça em suas telas a evocação daquilo con-siderado «primitivo». Isto é, anterior à conquista plena da perspectiva e a representação realista a partir do Renas-cimento. Assim por exemplo, é possível que algumas obras de Alayza tragam para a mente, embora de forma fugaz, os velhos muralistas sieneses, as peças precursoras de Giotto e Massaccio, ou a variegada imaginária do gótico inter-nacional. Mas ocasionalmente também nos remete à pintura fantástica antiga e moderna, bem como à lógica narrativa e ao humor das histórias em quadrinhos e da ilustração em general. Tudo isso ganha total coerência sob o olhar do artista quando põe em cena objetos, figuras e situações sob os efeitos de uma luz reverberante: assim é gerada uma inquietante ambivalência, a metade de caminho entre o registro subjetivo da realidade visível e o febril desvario alucinatório.

Por cima da diversidade de seus temas, a pintura de Alayza constrói laboriosamente uma poética do sos-sego que repousa, geralmente, em seu vigor narrativo, entendido em sentido amplio, pois o que essas composições transmitem não é uma ação nem ane-dota precisas. Inclusive nas telas que mostram paisagens desolados, o pintor apela para um conjunto de sensações que parecem anunciar a iminência de

uma mudança. Suas paisagens de Bar-ranco, por exemplo, ou aquelas outras que representam o encontro entre as montanhas e o mar, exprimem uma espécie de animismo panteísta que dá protagonismo a seus componentes. De repente, as plantas e as árvores são percorridos por um sinuoso ritmo lineal que entra em sintonia com a atmosfera circundante, para virar às vezes presen-ças quietas, mas ominosas, ou dançar, repentinamente, gerando essa sensação de solidão fantasmagórica que obriga a olhar com outros olhos alguns espaços familiares e cotidianos.

Poucos artistas tentaram recriar de modo tão livre o entorno rural e mari-nho de Lima, e talvez o poeta José Maria Eguren, antigo vizinho de Barranco e pintor ocasional, seja seu precedente mais notável. No caso de Alayza, ele extrema a fantasia interpretativa sem que o lugar representado acabe sendo irreconhecível.

Às vezes desloca seu olhar à profun-didade da selva ou a uma serra que foge dos tópicos do pitoresquismo andino tradicional, como comenta com ironia. Quando introduz a presença humana, a história contada ganha de um sentido teatral, oscilando entre o heroico e o humorístico. É frequente detectar também alguma fugaz alusão ao espírito circense, como sugere a figura do pes-cador de caranguejos transmutada em breve colosso, ensaiando malabarismos sobre um par de recifes impossíveis. Ou a mulher que se ergue, com ar seguro, sobre a folhagem da floresta, com uma serpente domesticada, e desse modo parece propor um lampejo localista e irreverente ao mito de Eva. Seja como

for, a nudez do corpo assume nessa e em outras ocasiões um aspecto de primigê-nia ingenuidade, falto de toda sugestão sensual ou incluso carnal.

Similar espiritualidade reaparece, surpreendentemente, em suas obras de natureza-morta que se oferecem ao espectador como autênticas epifa-nias. Seus objetos —frutas e vegetais diversos, peixes, vasos— se apresentam amorosamente descritos, mas também dispostos como si constituíssem ver-dadeiros rituais cotidianos. Às vezes a ideia é reforçada por um ponto de vista singularmente alto e por uma intensa luminosidade que gera típicos contrastes reverberantes de verdes, azuis e amarelos. Em outras ocasiões, o pintor apela à ilusão cenográfica gerada por umas cortinas que emolduram os objetos colocados diante de uma janela e são envolvidos, outra vez, por uma atmosfera deslumbrante. Dispostos sobre a simples superfície de uma mesa doméstica, as flores e os recipientes ganham um protagonismo que beira —literalmente— o teatral. Tudo indica que, como muitos dos mestres da natu-reza-morta no passado, Alayza propõe desse modo sutis metáforas da natureza e do mundo a partir do exame detalha-do de seu entorno familiar e cotidiano.

Nesse sentido, o pintor parece con-tradizer o conceito de «natureza-morta» —ou «natureza quieta»— aplicado tradi-cionalmente a esse gênero de represen-tações. Frequentemente magnificados e em primeiríssimo plano, esses vegetais e utensílios domésticos parecem providos de uma misteriosa energia e, precisa-mente por causa disso, a ponto de en-trar em movimento, como encarnando o antigo mito da «rebelião dos objetos». Acontece o contrário com as grandes paisagens desoladas que sugerem ter perdido sua condição de espaços incal-culáveis e opressivos para se apresentar diante do observador como uma espécie de inesperada natureza-morta, cujas dimensões amigáveis, literalmente, fazem com que pareçam ao alcance da mão: os efeitos «Gulliver» e «Lilliput» se alternam sem prévio aviso. Por isso, as imagens de Alayza desafiam constante-mente nossa lógica visual e nos colocam num território fantástico, uma espécie de mundo real contemplado através de espelhos deformantes.

Através desse tipo de estratégias, Alayza consegue forjar um conjunto de imagens que remetem a uma di-mensão feérica dotada, entretanto, de uma sólida coerência interna. Como os contos infantis ou as lendas popula-res, as histórias transmitidas pelas telas possuem a lógica implacável de uma ficção amplamente consensual. Para além de sua aparente simplicidade te-mática, o pintor desdobra uma inquie-tante condensação de conteúdo: não só pelo tom vivencial de suas ficções, mas também porque elas encerram inquietantes analogias. Falam de uma realidade palpável, mas esquiva, vista sempre sob um prisma desconcertan-te. Daí a eficácia comunicativa presen-te numa pintura como a de Alejandro Alayza, que —a base de disciplina, cons-tância e autêntica modéstia— durante os últimos anos conseguiu enriquecer a memória visual dos peruanos com a mesma naturalidade com que se apre-senta diante de seus olhos.

* Curador, historiador e crítico de arte.

El pescador y la sirena, Alejandro Alayza, Óleo sobre lienzo 97 × 72 cm, 2015.