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i'!O Jr\Pr\0 · C:k!STt\0 F CULTURA t-.:IP<)NlC\ O CRISTIANISMO EM DIÁLOGO COM AS RELIGIÕES NO JAPÃO: DOUTRINA E EXPERIÊNCIA, BUDISTA E CRISTÃ Doutor James Heisig, svd Universidade de Nanzan, Japão 107 De todos os problemas que se nos puseram, no Instituto de Nanzan, durante os últimos 30 anos de diálogo com as religiões do Japão, em parti- cular com o budismo, nenhum tem sido tão incómodo como a tentativa de discutir os nossos próprios "ensinamentos", quando os dois lados têm cons- ciência que a posição relativa da doutrina e experiência nas nossas respec- tivas tradições não era a mesma. A crescente consciência de que este diálogo tem que encontrar uma forma de integrar um número crescente de leigos, tanto cristãos como budistas, que se movem livremente, dentro e fora das tradições estabelecidas, na procura de uma espiritualidade para fundamentar as suas preocupações morais, não tornou tais questões irrelevantes. Pelo contrário, tornou-as mais evidentes. Nas páginas que se seguem eu gostaria de abordar o problema, e dar alguma indicação de porque é que eu penso que uma certa corrente de filosofia contemporânea, aqui no Japão, em cola- boração com a recuperação de um pensamento místico, pode apontar ao cristianismo o caminho certo, enquanto ele tenta preservar e reformar a sua herança doutrinal. Para começar diria que perguntar acerca da relação entre a doutrina e a experiência religiosa é situar-se numa história intelectual particular onde as bases para tomar essa relação problemática estão bem estabelecidas. Quando essa questão é imposta a uma tradição onde não existem essas bases - como é o caso da maioria das religiões - seria de esperar que a própria questão se tomasse problemática. O que normalmente acontece, no entanto, é o oposto: a informação necessária é reunida em solo estrangeiro, são feitas descrições objectivas, e são formuladas hipóteses, que podem ser arrastadas para a pátria, para comparação e contraste. Sejam quais forem as respostas,. é claro que olhando de fora, a justeza da questão vai ser reconfirmada no processo.

O CRISTIANISMO EM DIÁLOGO COM AS · 2013. 7. 27. · C. RI~TJ.\~l.S/.1\0 i'!O Jr\Pr\0 · i.l~JVF.R~,\US.\'\ 0 C:k!STt\0 F CULTURA t-.:IP

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O CRISTIANISMO EM DIÁLOGO COM AS RELIGIÕES NO JAPÃO: DOUTRINA E EXPERIÊNCIA, BUDISTA E CRISTÃ

Doutor James Heisig, svd Universidade de Nanzan, Japão

107

De todos os problemas que se nos puseram, no Instituto de Nanzan, durante os últimos 30 anos de diálogo com as religiões do Japão, em parti­cular com o budismo, nenhum tem sido tão incómodo como a tentativa de discutir os nossos próprios "ensinamentos", quando os dois lados têm cons­ciência que a posição relativa da doutrina e experiência nas nossas respec­tivas tradições não era a mesma. A crescente consciência de que este diálogo tem que encontrar uma forma de integrar um número crescente de leigos, tanto cristãos como budistas, que se movem livremente, dentro e fora das tradições estabelecidas, na procura de uma espiritualidade para fundamentar as suas preocupações morais, não tornou tais questões irrelevantes. Pelo contrário, tornou-as mais evidentes. Nas páginas que se seguem eu gostaria de abordar o problema, e dar alguma indicação de porque é que eu penso que uma certa corrente de filosofia contemporânea, aqui no Japão, em cola­boração com a recuperação de um pensamento místico, pode apontar ao cristianismo o caminho certo, enquanto ele tenta preservar e reformar a sua herança doutrinal.

Para começar diria que perguntar acerca da relação entre a doutrina e a experiência religiosa é situar-se numa história intelectual particular onde as bases para tomar essa relação problemática estão já bem estabelecidas. Quando essa questão é imposta a uma tradição onde não existem essas bases - como é o caso da maioria das religiões - seria de esperar que a própria questão se tomasse problemática. O que normalmente acontece, no entanto, é o oposto: a informação necessária é reunida em solo estrangeiro, são feitas descrições objectivas, e são formuladas hipóteses, que podem ser arrastadas para a pátria, para comparação e contraste. Sejam quais forem as respostas,. é claro que olhando de fora, a justeza da questão vai ser reconfirmada no processo.

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108 ACT.\1 f.>O COI.<)Ql!IO

Não tenho nenhum problema com a validade da questão. As diferenças entre "doutrinas" mais ou menos racionalmente formuladas, por um lado, e a inerente irracionalidade desses eventos, os quais nós, de forma imprecisa, vagamente referimos, como "experiência religiosa", por outro lado, são dema­siado óbvias e interessantes de mais, para serem simplesmente ignoradas. Tão pouco penso que seja completamente errado introduzir esta distinção indis­criminadamente em situações onde as categorias não existem na esperança de encontrar os seus equivalentes funcionais e ajudar a esclarecer a grande variedade do fenómeno da religião. Por natureza, a ciência é promíscua e não há razão para que as ciências da religião sejam diferentes. A minha preocu­pação é mais com a sobrevalorização da questão. Numa palavra, não tenho certeza que o conflito entre doutrina estabelecida e experiência pessoal seja tão central para o ambiente religioso, em que vivo e trabalho, como muitos estudiosos da religião assumem que é. Antes de entrar nesse assunto, uma palavra acerca de como é tratada academicamente a imposição de modelos estrangeiros no Japão.

É lugar-comum nos círculos académicos japoneses e, daquilo que sei do resto da Ásia Oriental, também nos países vizinhos, queixarem-se que os modelos ocidentais - basicamente cristãos - dominam o estudo do fenómeno religioso de forma desproporcionada, enquanto os modelos baseados nas religiões orientais raramente são tidos em conta a partir do seu quadro de referência. Parte da razão está na facilidade com que o Ocidente tem conseguido fazer face a uma consci­ência nebulosa da sua própria identidade, neutralizando muitas das suas supo­sições culturais a fim de mais facilmente as universalizar. Mas parte da culpa reside na falha geral dos especialistas asiáticos em produzir modelos próprios, contentando-se com a aquisição qualificada do que lhes é oferecido do estran­geiro. O processo desenrola-se mais ou menos assim: uma teoria ocidental é estudada, analisada e aplicada tal como é à situação japonesa. Dados impor­tantes que o modelo omite são usados para demonstrar o "carácter ocidental" da teoria. São feitos alguns ajustamentos para acomodar o modelo ao Japão e, ao mesmo tempo, para discutir a sua diferença de todos os outros locais onde o modelo foi aplicado. O resultado final é duas teorias: uma teoria universal para o resto do mundo e outra ajustada ao Japão. E aí o processo chega ao fim, sem o passo seguinte e óbvio ser dado, nomeadamente, are-universalização da teoria1•

1 - Como exemplo específico, mostrei isto nos casos dos modelos da psique. r :St~ L..t;: Êl C,(7)!i L- : 13 * (7) ~JfH,,l1.1!"f:f;:1iNt -5 ~v / 7 J [Cura do eu dividido: o dilema da psicologia profunda japonesa], W*fiU:: llt L-.! [Religião e Cura] (Tóquio: Kobunsha, l990): 96-108.

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No mundo das ciências físicas tal interrupção seria impensável; em qualquer área que toque na identidade distintiva da cultura japonesa (filosofia, antropo­logia, psicologia, sociologia, estudos religiosos), é inteiramente aceitável.

É raro deparar-se com pensadores que tentam criar uma teoria cuja univer­salidade não é comprometida pelo lugar que nela é mantido para o que é distintamente japonês. Isto é uma das coisas que me atraiu no pensamento do~ filósofos nos quais me basearei hoje para oferecer uma "visão do Oriente" sobre a questão da doutrina e experiência religiosa. Como será demonstrado, a base a partir da qual eles falam da experiência religiosa coloca no centro ques­tões que têm sido geralmente periféricas no mundo ocidental cristão. Pretendo sugerir que a relevância das suas questões para o Ocidente poderá ter que ser reavaliada à luz do radical pluralismo das religiões, que se tomou parte integrante da consciência religiosa actual e todavia permanece para muitos, como foi para Karl Rahner há quase cinquenta anos atrás, "o maior escândalo e perigo para o cristianismo"2•

A PRIMAZIA DA DOUTRINA

A batalha entre experiência religiosa e doutrina religiosa pela primazia do lugar é muito mais acentuada no cristianismo ocidental do que no budismo oriental. As razões parecem prender-se com a maneira de valorizar o conteúdo proposicional da doutrina. O essencial da questão toma-se claro se for exposto de forma simples e sem atenção às nuances que acompanham o modo como as doutrinas funcionam na realidade.

Na tradição cristã, o conteúdo cognitivo é inseparável de asserções da verdade acerca da realidade objectiva. Obviamente as doutrinas não são apenas asserções ontológicas. Servem como símbolos unificadores e auto­ritativos para uma tradição comum. Modelam a prática litúrgica, arte e literatura. Oferecem um contexto para a expressão da experiência "reli­giosa", e uma base para preceitos morais. Mas elas também, e necessaria­mente, articulam factos sobre uma realidade transcendente, que está fora do alcance do conhecimento comum, senão mesmo inteiramente fora do alcance da experiência humana. Esta realidade transcendente não só criou o mundo como o conhecemos, mas guia-o através do tempo e é livre de

2 - Karl Rahner, "Christianity and Non-Christian Religions" The Church: Readings in Theology (New York: Kennedy & Sons, 1963), 113

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110 ACT.\ S fJO COf.(\QU!O

intervir no desenrolar natural dos acontecimentos e, assim, manifestar-se na forma de acontecimentos sobrenaturais. Ao interpretar a história, à luz destas manifestações, o crente é capaz de discernir um ritmo diferente na história e entrever o final da história, quando o véu que separa o natural do sobrenatural for levantado. Em qualquer dos casos, o que transcende a história nunca poderá ser reduzido, sem mais ao simples impulso humano de transcendência de si mesmo.

Os modos como a facticidade do transcendente tem sido compreen­dida, estende-se ao longo de um espectro, separado, de um lado, por uma objectivação literal e ingénua e, do outro, por uma expressão altamente metafórica de experiências limite. A questão é, não se o ritmo transcen­dente da história possui realidade factual como o mundo histórico da expe­riência comum, mas como melhor articular asserções da verdade, baseadas nos símbolos recebidos da fé. Não há necessidade de considerar aqui essa questão, embora pudesse oferecer para discussão modelos interpretativos, que suavizariam algo do que será tratado a seguir. Para o fim que nos propomos, é suficiente considerar duas formas gerais das manifestações directas do transcendente.

Primeiro, há acontecimentos do passado distante, expressos num credo fundacional que é obrigatório para os crentes. Eles incluem tudo, desde os primórdios do estado da criação, da qual não existem registos, até à encar­nação e ressurreição do Divino na pessoa de Jesus Cristo, que alguns docu­mentos atestam. Como acontecimentos passados, não são acessíveis à expe­riência directa, mas precisam de ser aceites como ocorrências factuais, que tiveram lugar num determinado período de tempo - localizados, por sua vez, algures no espectro entre, dados objectivos publicamente verificáveis e os balbucios míticos de uma comunidade unida por aquilo que tem sido visto com os olhos da fé. O número de tais acontecimentos reconhecidos como definitivos para o cristianismo, e a quantidade de detalhes a eles ligados, podem divergir largamente, e a interpretação de doutrinas particulares a eles associadas podem tornar-se claras somente através da reflexão lógica sobre textos escritos, que foram aprovados como sagrados, mas a crença na facti­cidade é fundacional.

Segundo, há manifestações do transcendente que ocorrem nas vidas de indivíduos que partilham do núcleo destas crenças. Embora estas ocorrências não gerem novas doutrinas obrigatórias para todos os cristãos, servem para

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CRfSTlr\~[S.\\0 NO }API\() · O~l\'ER~/\J.LO,t\\0 CRlSTI\0 F. Cll t.TUK\ Nlf'\)~1CA JJ J

corroborar a verdade destas doutrinas e para confirmar a exactidão daquilo em que se acredita. Estas manifestações compreendem estados altamente privados e rupturas miraculosas das leis do mundo natural, mais ou menos publicamente observadas. É na harmonia deste contacto vivo com a reali­dade transcendente, que o conteúdo doutrinal da fé cristã é passado de uma geração para outra.

Surgem problemas quando esta expenencia vivida é expressa numa linguagem que contradiz, ou pelo menos, apresenta de uma maneira não conformista, o conteúdo doutrinal aceite. Isto deixa duas opções: ou a doutrina é tida como normativa para a experiência e as conclusões que dela derivam, ou a experiência é aceite como uma hermenêutica normativa para reinter­pretar textos sagrados e a doutrina recebida. No primeiro caso, a experiência é subserviente à doutrina; no outro a doutrina é reinterpretada.

Apresentadas da forma mais vincada possível, estas são as linhas ao longo das quais a relação entre a doutrina religiosa e a experiência religiosa é deli­neada na tradição cristã. Dado que o que está em questão é a facticidade de uma história que transcende, mas interage com a nossa própria história, não é difícil perceber o porquê dos guardiães do cristianismo institucional fazerem pender a balança a favor da doutrina e controlarem as expressões de experi­ência pessoal que levantam suspeita.

Se observarmos de fora a fé cristã e virmos o que se passa nesta luta pela primazia, pode parecer não mais que uma guerra de interesses pelo que não é mais que um mundo de fantasia. E, na verdade, parece ser mesmo isso para um crescente número de pessoas, precisamente nos países que outrora fomentaram a doutrina cristã como pilar do comportamento civilizado. Mas se observarmos com mais atenção - como eu acredito que deveríamos, tendo em conta a forma notável como os símbolos centrais do Cristianismo têm conseguido sobreviver às críticas que acompanharam os avanços nas ciências naturais e ciências humanas - vemos que a luta entre doutrina e experiência, não é só um problema cristão. Na verdade, aponta para uma ambiguidade fundamental na própria condição humana: por um lado, o desejo irreprimível de uma certeza objectiva acerca de coisas que não estamos equipados para conhecer; por outro lado, a participação, muitas vezes contra a nossa vontade, em acontecimentos que rompem através das racionalidades comuns da vida de todos os dias e parecem oferecer certezas pessoais. É exactamente esta ambiguidade que se revela, por exemplo, no

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112 r\CTJI.S fJC' C. l) f. {)QtJ !O

poder inexplicável dos símbolos e mitos, que nos foram ensinados a nós, na juventude, e depois ignorados como não fazendo sentido, para subitamente aflorarem e oferecerem sentido diante de situações de grande alegria ou grande tragédia.

Esta ambiguidade faz parte da condição humana e não apenas da condição humana cristã. No Oriente Budista é tratada de maneira diferente. Aí, a doutrina é geralmente entendida duma maneira que não provoca conflito com a experiência religiosa. Todos os ensinamentos, desde as simples nobres verdades, tidas como ensinamentos do próprio Gotama Buda, às complicadas maquinações do Abidharma, são considerados upãya ou "meios hábeis ". Não importa se as descrições de uma terra pura paradisíaca, para além da morte, ou a transmigração da alma a caminho do "nirvana", sejam levadas à letra ou interpretadas simbolicamente. Em ambos os casos, os ensinamentos são ajudas para um nível de consciência que está para além da distinção entre interpretação literal e simbólica. Por esta razão, reduzir um ensinamento ao nível de facto histórico ou racionalizar o seu conteúdo de acordo com algumas normas hermenêuticas é pô-lo ao serviço de qualquer outra coisa. Como tal, a doutrina pode ser útil, mas não é útil para a transformação de perspectiva, que é o objectivo do ensinamento e prática budistas.

Não é difícil perceber porque é que tanto budistas como cristãos vêem a doutrina budista mais como filosofia do que teologia. Na terminologia, os pontos coincidentes do budismo com a fé cristã são numerosos, mas na prática todos os ensinamentos estão ligados à clarificação da percepção e à transfor­mação de perspectiva. Onde o cristianismo requer crenças específicas sobre um domínio transcendente para além dos limites humanos o budismo vê todo o discurso sobre um tal domínio como um meio para ver através da distinção entre o eu e a realidade no mundo do aqui e agora. Como tal, esta abordagem budista da doutrina não é uma mera crítica epistemológica, mas sim uma filo­sofia perjormativa. A exactidão da descrição doutrinal pode ser medida em termos da sua concordância com a tradição ou textos, mas a sua verdade é medida pela experiência à qual ela conduz. Por outras palavras, a ambiguidade fundamental da condição humana, subjacente ao conflito que o cristianismo vê entre a doutrina e a experiência manifesta-se na noção de upãya, que vê toda a doutrina e experiência visando substituir a obscuridade da ignorância, ou avidyã, pela clareza do discernimento.

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Não é correcto simplesmente concluir que o budismo inverte a insis­tência cristã da primazia da doutrina sobre a experiência. Certamente que o conflito dentro do cristianismo, pode ser definido em termos do conteúdo doutrinal, ou mais especificamente, da fonte de informação necessária para a humanidade ultrapassar o seu estado decaído. Mas quando pensamos em termos escatológicos - isto é, desde o ponto de vista da imagem do estado final dos salvos, onde a fé na doutrina já não difere do conheci­mento humano - a experiência da salvação toma-se prioritária também para o cristianismo3• O que o budismo inverte, pois, é antes a noção do tempo que a primazia doutrinal (para qualquer compreensão religiosa, cristão ou budista), pressupõe. A plenitude do tempo está no aqui e agora para todo aquele que tenha olhos para ver. Desde que há consciência humana, a salvação do seu estado sombrio não precisou de uma intervenção final e futura de um poder transcendente4•

Agora se a relação entre a experiência e a doutrina não é definida em termos das diferenças do conteúdo da crença, mas antes em termos da expe­riência do transcendente no aqui e agora (em linguagem teológica, "uma escatologia realizada"), então o cristianismo poderá conseguir resolver o conflito, da mesma forma que o budismo. Deixando de parte todos os problemas do papel que a clareza doutrinal desempenhou na história cristã para assegurar a continuidade institucional, interpõem-se dois obstáculos no caminho para esta redefinição do problema. O mais óbvio é a distinção rígida e inveterada entre a lumen naturae e a lumen revelationis, entre as fórmulas da fé e da razão, entre os métodos da filosofia e da teologia. Um segundo obstáculo, mais subtil, que está na base do primeiro, é a falta de humildade em relação à doutrina. Em questões de mistério reconhecido, sobre o qual as Escrituras não se pronunciam e sobre o qual não houve promulgações doutrinais, há um certo grau de incerteza e reserva. Na questão do credo, tal

3 - Podemos referir aqui que George Lindbeck, que vê todas as questões da possível correspondência entre a linguagem cristã da fé e as estruturas metafísicas da realidade divina como "supérfluas", no sentido que elas "não são necessárias doutrinalmente e não podem ser obrigatórias", recorre à linguagem mítica da escatologia, que ele considera "indispensável ao cristianismo", para alargar a fé na salvação sola Christi que inclua a salvação dos não crentes. Ver: The Nature ofDoctrine: ReligionandTheology in aPostliberalAge (Louisville: Westminster John Knox Press, 1984), 55-63, 106; e The Church in a Posliberal Age (Grand Rapids: Eerdmans, 2002), 77-87

4 - Esta a razão que, por mais interessante que seja a aplicação que Marie Heim faz do "rncionalisrno perspectivante" (''perspectivai rationalism'') de Nicholas Rescher para resolver as diferenças doutrinais entre budistas e cristãos, chamando a atenção para os seus objectivos distintos, faz conjunturas acerca da centralidade da informação de uma realidade transcendente dificil de manter. Para uma avaliação ponderada da obra de Heim: Salvations: Truth andDi.fference inReligion ( Maryknoll: Orbis, 1955), ver PatrikFridland, "A More Pluralistic Pluralism?'' Swedish Missiological Themes 93/1 (2005): 43-59; e a sua mais recente obra: Mobile Perjormonces (Lund University, 2007)

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114 ACT.'\S DO CU{.()Q(.l[Q

postura seria equiparada a descrença. Não vejo nenhuma maneira de contra­riar directamente esta presunção residual. Provavelmente, poucos teólogos abertamente acusados da falta de humildade, no exercício da sua profissão, responderão de forma humilde à acusação, mesmo que a acusação seja lançada pelos seus pares. Insistir em afirmar que o cristianismo tem algo a aprender do budismo nessa questão, dificilmente ajudaria. Uma táctica mais simples, mas mais indirecta é exigida. Felizmente temos meios à disposição na tradição mística.

CONHECIMENTO MÍSTICO

Tudo o que li acerca das questões místicas, sugere-me que o estado de consciência acerca do qual os místicos escrevem e o modo de vida que o confirma, afecta radicalmente o seu entendimento da estrutura doutrinal, dentro da qual a sua experiência toma forma. Acredito que é errado definir essa experiência em termos da sua concordância ou não com um credo arti­culado, mesmo tendo um papel essencial na formação da experiência. Pelo contrário, a experiência religiosa desaloja crenças doutrinais da posição central, da qual afirmam ser normativas da verdade ou falsidade do que é experienciado. Não temos que aceitar tudo o que é místico como sendo, de certa forma, "mais verdadeiro" que pronunciamentos teológicos, para nos apercebermos que questões de exactidão doutrinal não são o mais impor­tante. Temos, contudo, de aceitar a possibilidade de um entendimento da fé, para a qual a doutrina, mesmo o núcleo do kerigma do credo, não é o centro à volta do qual a tradição mística se move. Antes, a doutrina torna-se um meio de expressão do que é conhecido, um meio para ajudar na apropriação de uma experiência, que é ao mesmo tempo crítica de si mesma e de todos os meios de expressão. E isto, estou convencido, é o que de mais parecido a tradição cristã tem com a postura budista de ver a doutrina como upãya, ao serviço de algo maior, e do enraizamento da religião, não em acontecimentos do passado ou futuro, mas do presente.

Vão desculpar-me se me cingir a um só e paradigmático exemplo, e isso num curto apontamento, nomeadamente, os sermões alemães de Mestre Eckhart.

Como muitos na tradição mística antes e depois dele, Eckhart tendia a não insistir na importância dos estados de êxtase, e em certo sentido era

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até céptico em relação a essas experiências5• A ênfase que ele colocou nas limitações da linguagem, não era tanto uma função do carácter extraordi­nário da experiência, mas da localização da dimensão inefável mesmo dos acontecimentos mais comuns da consciência contemplativa. Isto era o que estava subjacente à sua tentativa de recolocar o centro da fé cristã dos artigos do credo para o "conhecimento"- como haveria dito William James, não o saber sobre (knowledge about), mas o saber de experiência (knowledge by acquaintance). Isto exigiu ir às raízes metafísicas últimas do credo: a defi­nição de Deus em termos de existência e vontade. Em vez disso, ele define Deus em termos de intuição. Como ele esclarece: "não me parece agora que Deus entende porque existe, mas antes, existe porque entende."6 Num dos seus sermões é ainda mais claro:

Eu estaria tão errado em chamar Deus um Ser, como estaria em dizer que o sol é pálido ou negro .... Quando recebemos Deus como Ser, recebemo-lo no seu átrio .... Onde está ele então no seu templo, onde brilha ele em santidade? Intuição é o templo de Deus .... Intuição é mais nobre que a vontade. A vontade apresenta Deus sob o manto da bondade. A intuição apresenta Deus desco­berto, quando ele é despojado de ser e bondade7•

Afirmar que a existência de Deus não é o centro da fé, não é tão anti­cristão como pode parecer à primeira vista. Precisamos de acreditar na exis­tência somente daquilo que não conhecemos; a existência do que conhecemos não é problema, de forma alguma. Para aquele que é consciente de Deus por intuição, a questão da existência de Deus é, por isso, estranha e até irrelevante. O conhecimento de Deus por experiência8 implica, assim, uma rasura ou, pelo menos, um obscurecimento da linha divisória, entre a luz da razão e a luz da fé. Para Eckhart, todo o conhecimento é baseado numa única fonte, comum ao conhecedor e ao conhecido- "a centelha da alma" é o Sellengrund, do qual emergem todas as faculdades humanas, e ao mesmo tempo o Gottesgrund, onde a divindade está presente na sua totalidade - e é para essa fonte que, em primeiro e acima de tudo, temos de dirigir a nossa atenção.

5 -Ver: Benard McGinn, The Mystical Thought of MeisterEckhart: The Manjrom whom God His Nothing (New York: Herder and Herd er, 2001), 9.

6 - Parisan Questions (1302-3). Noutro lugar, de um ponto de vista diferente, ele coloca o ser como superior ao conhecimento. Ver, por exemplo, Sermon 82, Walshe, II: 244-5.

7 - Sermon 84 (Pfeiffer), ajuste de tradução de M. O'C. Walshe, Meister Eckhart: Sermons and Treatises (London: Watkins, 1979-1981) II: 150, 151-3.

8 - O termo experiência, evidentemente, não era usado na Idade Média como é usado hoje. Eckhart preferia outras expressões, tais como "ser idêntico à verdade" (Sermon 87, Walshe II: 276).

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116 ACTI\S fJO CC'f.()QUfC'

Esta forma de unir o conhecedor e o conhecido envolveu duas estratégias para Eckhart que, do ponto de vista da teologia cristã centrada na doutrina, só poderia parecer contraditória. Por um lado, usou a linguagem figurativa das Escrituras como fonte primeira e guia do seu pensamento; por outro, insistiu em trespassar o imaginário religioso para chegar ao fundo do qual emanam as imagens, o fundo no qual a própria distinção entre o humano e o divino se desvanece num abismo para além de toda a compreensão, "onde nunca imagem alguma lá entrou", mas apenas "o conhecimento perfeito que Deus tem de Si". Ele estava convencido que esta compreensão radical do conhecimento de Deus era o culminar da fé. Por consequência, na medida em que a história da salvação estava centrada no estado de cons­ciência da alma particular, as próprias Escrituras submetiam-se à primazia do conhecimento.

Será difícil ler um dos sermões de Eckhart sem reparar como ele deixa a imaginação vaguear livre sobre uma passagem, parando para fixar-se numa frase ou palavra com vista a inseri-las num contexto diferente. Os seus pensa­mentos são controlados antes por uma questão particular em foco que por um sentido de responsabilidade para com a doutrina recebida. Quando o foco se move, assim também o seu uso das palavras. A linguagem teológica comum que ele usa numa determinada altura para passar de um pensamento a outro é muito provável ser revertida num outro contexto. A aparente inconsistência é resolvida se junto com ele virmos as doutrinas particulares mais como meios de conhecimento que objectos de conhecimento. A estrutura doutrinal geral nunca é contestada, mas os pontos particulares da doutrina são destrinçados para nos incentivar a ver por meio dela. Por exemplo, num lugar ele compara abertamente Deus a uma vela que alguém usa para procurar algo. "E quando encontras o que procuras, deitas a vela fora". Mas o que alguém encontra é- nada: "Alguém que possuísse o mundo inteiro com Deus, não estaria em posse de nada mais do que se tivesse apenas Deus"9• A vela com que alguém procura é a imagem de Deus, Escrituras e ensinamentos doutrinais. O que alguém vê com ela é o vazio das coisas e um Deus desnudado de tudo o que sabemos de Deus. Com isto, ele refere-se não a um conhecimento sensível ou racional, mas a um conhecimento da alma, que tem o poder de vislumbrar Deus despojado de todas as imagens, na pureza do momento presente. Este poder não conhece o ontem, o anteontem ou o amanhã e dia seguinte, pois na

9 - Sermon 40. Walshe, I, 284.

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eternidade não existe nem o ontem nem o amanhã, há o momento presente: aquilo que foi há mil anos atrás, e que ocorrerá daqui a mil anos é o presente aí, e, por isso, é o que está para além do oceano. Esse poder apreende Deus no seu camarim 10•

Não podemos deixar de sentir que a noção budista de toda a doutrina como upãya, que visa despertar-nos para o vazio de todas as coisas teria sido imediatamente inteligível para Eckhart. Mas há uma diferença crucial. No Ocidente cristão a tradição mística tem feito parte de uma corrente subter­rânea e de oposição à tradição. Tem sido definida em termos da tradição principal e visível, e sem ela não pode existir. Lendo o texto da condenação de Eckhart - sem dúvida, o único teólogo medieval julgado pela Inquisição, por heresia- toma-se claro que o modelo dos juízes era aquele que colocava a doutrina autorizada no centro. No Oriente budista, não há esta cisão na tradição. Tudo está à superfície porque a experiência é colocada no centro. Certamente que há formas fundamentalistas de budismo, mas a sua finali­dade não é depor ou desfazer-se da noção de upãya, mas somente insistir que uns meios particulares são superiores a outros. E assim como também há movimentos esotéricos no mundo budista, eles tendem a ser geralmente sectários, não anti-tradicionais, no sentido do Ocidente cristão. Hoje, dentro do próprio cristianismo, há sinais de uma mudança que se distancia desta dualidade. Antes de me voltar para esta questão, poderemos fazer uma pausa para considerar o que os pensadores no Oriente, que tentaram ver a doutrina cristã através do olhar não cristão, têm a dizer sobre a relação entre a doutrina e a experiência.

OS FILÓSOFOS RELIGIOSOS DA ESCOLA DE QUIOTO

Acima foi referido que a atitude do budismo em relação à doutrina reside na natureza de uma filosofia performativa. O corolário disto é uma compre­ensão da filosofia que não é, em princípio, desligada da doutrina religiosa. No sentido que os princípios hermenêuticos e reflexões metateóricas que regulam a leitura da doutrina, são também vistos como um meio para a transcendência de si e uma transformação da vida, é também uma "espiritualidade"11• Embora

10- Sermon 90, Walshe II: 160. 11 - Isto está em clara oposição ao modo como a teologia cristã vê o uso da hermenêutica filosófica. Por

exemplo, a distinção vincada, que George Lindbeck estabelece entre as suas reflexões linguístico culturais e as doutrinas em que são aplicadas, é eliminada nestes filósofos com também o é na aplicação geral do

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as tradições filosóficas do Oriente tenham sido sistematicamente excluídas nas definições ocidentais de filosofia 12, um dos maiores impulsos para pôr um fim ao paroquialismo vem de um grupo de filósofos Japoneses do séc. XX, os quais tentaram usar os instrumentos e fontes da filosofia ocidental para oferecer respostas novas às questões tradicionais, e colocar novas questões a partir de uma perspectiva fundamentalmente não ocidental. Refiro-me aos pensadores da escola da Quioto, cujo início remonta a Nishida Kitarõ ( 1870-1945), e o seu imediato círculo de discípulos13• Tudo o que eu disse anteriormente é confirmado pelo ponto de vista que eles levam para o cris­tianismo, mas em termos muito diferentes. Aqui eu só posso fazer alusão às coincidências.

Se tivéssemos que escolher a ideia mais importante que percorre o pensa­mento de Nishida, seria a ideia que o ponto de partida da filosofia é a experi­ência consciente da unidade de subjeito e objecto. Na sua primeira obra filosó­fica, esta é referida como "experiência pura", uma ideia que tirou de William James, que também falou em superar a dicotomia entre sujeito e objecto. A dependência de Nishida em relação à ideia de James é limitada. Uma razão é que ele não se dedicou ao estudo de James com a mesma seriedade com que o fez em relação aos filósofos continentais. Outra razão foi que ele não se deixou condicionar pela distinção ocidental entre questões filosóficas e teoló­gicas. Nishida não usou nenhuma das habituais desculpas quando recorria ao imaginário cristão ou a citações de textos das Escrituras e de teologia. Ele não os acolheu na fé como fonte de conhecimento sobre um mundo trans­cendente ou como argumentos lógicos a serem testados quanto à sua consis­tência. As doutrinas da religião eram para ele expressões do modo como experimentamos a condição humana: quanto mais resistiam às mudanças do meio intelectual e cultural, mais universalmente interessantes eram; menos interessantes quanto mais paroquiais e vinculadas à cultura eram. Assim, por exemplo, chegado o momento de expressar o facto do eu experimentar um poder transcendente a si mesmo, que actua através de si, mas não está sob

(an) upãya na tradição intelectual budista. Por isso é que ele insiste que o seu método teológico, por mais radical que seja, "tem sempre de permitir a possível verdade proposicional" (The Nature oj Docrrine, 63), sem considerar a possibilidade de um passo adicional que implicaria o abandono de todos os métodos, incluso o seu, sem deixar de ser intelectual e filosoficamente respeitável.

12 - Ver: "Redefining Defining Philosophy," Japanese Philosophy Abroad, ed. By J. W. Heisig (Nagoya: Nanzan Institute for Religion and Culture, 2004), 275-85.

13 - Apresento uma visão panorãmica das principais figuras na minha obra: Philosophers oj Nothingness (Honolulu: University ofHawaii Press, 2001).

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o controlo da vontade, não hesitou em recorrer às noções cristãs de Deus para orientação, absorvendo o que era útil (por exemplo, o mundo fenomenal como manifestação de um criador numenal), e pondo de parte o que não que não era útil (por exemplo a noção de Deus como pessoa).

O mesmo poderia também ser dito em relação a certo número de filó­sofos ocidentais. A diferença é que Nishida não se sentia na obrigação de fazer uma separação entre a sua "crença" pessoal e as suas conclusões filosó­ficas. A distinção entre fé e conhecimento, na medida em que é usada no seu pensamento, não tem nada a ver com tomar decisões sobre questões de facto. Estimulado pela distinção, de alguma forma simplista, entre experiência e a expressão da experiência, ele sentiu que tal como todas as linguagens, a linguagem da doutrina era um índice de experiência e nunca poderia asse­verar primazia sobre ela. Apesar da forte influência do pensamento zen, nos seus anos formativos, a estratégia de Nishida não pode ser chamada nem de religiosa, nem de filosófica no sentido ocidental dos termos. Ela atravessa, ou antes subjaz à distinção. A haver alguma distinção, seria entre o pensamento religioso-filosófico (que é universal por natureza), e a prática (que pertence a uma tradição religiosa em particular).

A abordagem de Nishida sobre a doutrina religiosa teve continuidade no pensamento de Tanabe Hajime (1885-1962), e Nishitani Keiji (1900-1990), os quais lidaram com uma maior variedade de doutrinas, cristãs e budistas, do que Nishida. É com Ueda Shizuteru (1926-) que o modelo implícito com o qual Nishida estava a lidar, recebeu a sua explicação mais clara. Ao analisar uma afirmação anterior de Nishida - "Eu gostaria de tentar explicar tudo, em termos de experiência pura, como a única realidade" - Ueda vê três actos distintos: (A) A própria experiência pura, onde não há distinção entre sujeito e objecto; isto é chamado de "despertar", ou é o evento inscrito em imagens zen de iluminação. (B) Experiência pura como a única realidade, na qual a dicotomia sujeito-objecto volta, na forma de uma declaração primordial, como a expressão de si de A; isto é chamado de "despertar de si mesmo", e pode ser considerada uma expressão da prática zen, de tentar ver a totalidade da realidade, tal como é. E (C) Explicar tudo em termos de experiência pura como única realidade, que não é mais zen, mas um estruturar filosófico do mundo; isto é a consciência que de si tem o sujeito como ser-no-mundo, ou "o entendimento que o mundo tem de si". Ueda vê estes três actos como uma unidade dinâmica que funciona em ambos os sentidos: A--tB--tC afasta-

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se da experiência em direcção à filosofia, enquanto que c~B~A move-se em direcção à experiência e afasta-se do pensamento filosófico. A transição A~B é comum em zen, mas B~c não está normalmente presente em zen, nem B~c na filosofia. Para Ueda, o génio de Nishida está em ter preen­chido essas lacunas - como Ueda reconhece, "pela primeira vez na história da filosofia" 14 •

Nishitani abordou o problema da relação entre filosofia e religião ao lançar-se no debate perene sobre até que ponto pode a doutrina ser desmisti­ficada, "um problema que subjaz escondido, bem profundo sob a superfície do cristianismo desde o princípio, mas não tem sido um problema para o budismo"15 • Nishitani rejeitou todos os lados do debate (Bultmann, Jaspers e F. K. Schumann são para ele as figuras representativas), tanto a desmistifi­cação fundamental de todas as doutrinas, como a reinterpretação existencial do mito. Ele admirava a vitalidade no cristianismo, por se envolver em tais debates com o pensamento moderno, mas no final achou que era infrutífero, porque assume a dicotomia entre verdade racional, histórica e científica, por um lado, e verdade transcendente, religiosa, por outro. Em seu lugar, ele propôs uma perspectiva que vê uma espécie de não-natureza no âmago do próprio mundo natural, relativizando ambos os lados no argumento para uma mais alta perspectiva do "vazio". Só assim pode o domínio do despertar (ele usa o termo alternativo "testemunha"), que é a vida da religião tornar-se aces­sível ao pensamento racional, assim como a razão crítica da filosofia pode tornar-se acessível à religião.

Ao ser aplicada à verdade religiosa, nem a "experiência pura" de Nishida nem "a perspectiva do vazio" de Nishitani fazem sentido sem a compreensão da doutrina como upã)'a, cuja finalidade reside fora do próprio conteúdo e, por isso, incapaz de manter a posição central na vida da fé. Este pareceria ser o desafio mais imediato que o Oriente budista coloca ao Ocidente cristão, mas não foi assim para os pensadores da escola de Quioto. A razão por que não viram isso como um obstáculo foi que já tinham encontrado uma abor-

14 · W l:IEM!ffi#U [Ueda Shizuteru Collection] (Tokyo: Iwanami, 2001-2003), v:80- Publiquei recentemente um artigo que apresenta uma visão geral dos onze volumes da colecção em: W*~.jijf~~ [Religious Studies] 79/345 (2005):339-50. Ver também a minha introdução à obra de Ueda: Zen e filosofia (Palermo: L'Epos, 2006)

15 - "Ein buddhistische Stimme zumm Thema Entmythologisierung," Zeitschrift jür Religions-und Geistesgeschichte 13/3-4:244-62, 345-56. Ao ler este ensaio é necessário ter em mente que Nishitani confundiu "concepção imaculada" com "nascimento virginal".

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dagem comparável da doutrina nos místicos cristãos. Nishitani foi animado por Nishida a ler Eckhart; Tanabe foi inspirado pelo jovem Nishitani a fazer um estudo aprofundado dos escritos dos místicos para o período último da sua filosofia. Ueda foi ainda mais longe, tomando-se uma autoridade, interna­cionalmente reconhecida, sobre o pensamento de Eckhart e a sua relação com o zen e a filosofia de Nishida. Todos eles encontraram uma relação imediata entre a ideia de Eckhart do absoluto como um Deus para além do Ser, e as suas diversas compreensões do absoluto como nada16• Nishitani e, especialmente, Ueda também estavam de acordo com a insistência de Eckhart em trespassar as imagens de Deus até ao fundo a partir do qual essas imagens emanam, o fundo no qual Deus e o Ser são um só.

Dado estar fora de questão estes pensadores professarem um credo Cristão, e eles se moverem entre as linhas divisórias que o Ocidente cristão estabe­leceu entre a filosofia e a teologia, não é imediatamente claro como responder ao que eles têm para dizer. Se fosse só uma questão de exactidão na delineação das doutrinas, não haveria problema. Mas eles oferecem uma interpretação das ideias cristãs que não podem simplesmente ser ignoradas, porque vêm de "não-crentes". O seu direito de herdar a riqueza dos ensinamentos cristãos não lhes pode ser negado por causa de diferenças filosóficas, mas tão pouco pode a sua abordagem ser simplesmente incorporada no modo como o cristia­nismo veio a entender-se a si mesmo. Há aqui dois problemas interligados.

Primeiro, como vimos, os filósofos de Quioto desenvolvem o seu pensa­mento com base na suposição que a doutrina religiosa é subsidiária à experi­ência religiosa. Evidentemente que eles não retiram simplesmente a linguagem doutrinal do seu contexto sem ter em conta a tradição mais vasta do pensa­mento cristão e os seus textos definitivos. Tão pouco permitem o conteúdo de qualquer doutrina adquirir a posição privilegiada de estar para além de qual­quer crítica ou livre da qualidade do upãJa. Esta é dificilmente uma área em

16 - O interesse de Tanabe dirige-se para a ideia de Eckhart sobre transcendência, que ele entende como existindo para além do ser. Ver a sua obra: Philosophy as Metanoetics (Berkeley: University ofCalifornia Press,l986) ,183. De modo semelhante, o primeiro ensaio das Obras completas de Nishida, escrito quando estudava na Alemanha em 1938, também aborda Echkhart. Neste ensaio ele sente-se atraído pelo modo como Eckhart supera a associação de Deus com o ser, e como "Deus e o homem se tornam sim_plesmente um no nada" r:::...{ "T::r.ll)'/7 7 '/ l-- 7l: '"'<' -1 Ã ~-:x. '/ 7 / "'lv 1-- J WW~~jj<:ltfF#U (Tokyo:Sõbusha, 1986), 23. Em alemão, ver a sua obra: Was ist Religion? (Frankfurt: Insel Verlag, 1986). Para uma visão geral rápida da obra de Ueda sobre Eckhart, ver nota n° 13 e Steffen Doll, Wozu also Suchen? Zur Einfuhrung in das Denken von Ueda Shizuteru (Munchen: Iudicium, 2005), 63-8.

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que a teologia tradicional está à vontade. Mesmo uma teologia radicalmente desmistificada que procura o significado das doutrinas na sua interpretação existencial, ainda vê a própria doutrina como normativa para a delineação e avaliação da experiência. Além disso, dado que os pensadores Japoneses não estão simplesmente interessados no que "racionalmente" faz sentido nas doutrinas, não podem ser colocados na mesma categoria dos filósofos ociden­tais, que lêem os ensinamentos cristãos somente dentro dos limites da razão. Devido à sua abordagem única e não crente e, no entanto, religiosa do cristia­nismo, os pensadores da escola de Quioto vêem o pensamento místico como representativo do melhor que o cristianismo tem para oferecer àqueles que o olham de fora da igreja institucional17• Isto também é uma intricada área para a teologia, que prefere relegar a tradição mística para o estatuto ancilar.

Segundo, as palavras doutrina e experiência estão a ser usadas num sentido de alguma forma diferente. No cristianismo, é um corpo específico de doutrina que é tido como central, mas é a ideia da experiência religiosa, qualquer que seja o seu conteúdo, que se torna subordinada à doutrina. Deste modo, seja qual for o conteúdo "doutrinal" que derive de uma experiência religiosa particular pode ser julgado à luz de uma tradição de ensinamentos mais ou menos estável. Por outras palavras, a experiência religiosa é vista primeiramente como uma fonte alternativa de doutrina ou de doutrina avalia­tiva, e é a esta ideia que tem de ser dado o seu lugar próprio. Mas para os filósofos de inspiração budista da escola de Quioto, é a ideia de doutrina que é tornada secundária, e a experiência actual que é definitiva. A doutrina é vista como um meio para orientar o crente ao longo do caminho de uma experiência de iluminação. Assim, perguntar a um budista para descrever que crenças objectivas são centrais para a sua fé é tão provável introduzir supo­sições adventícias, como pedir a um cristão para descrever que experiências religiosas são centrais para a fé cristã.

Agora se fosse uma mera questão de duas tradições diferentes, que em certo ponto, são incompatíveis, o assunto podia acabar aí, ou pelo menos, a base de entendimento estaria mais livre de obstáculos para ulteriores discus­sões. Mas há outro ingrediente crítico que muda tudo: o aparecimento de espiritualidades inter-religiosas no cristianismo.

17 - O especialista coreano das religiões, Hee-Sung Keel, vai mais longe ao afirmar que o cristianismo de Eckhart enquadra melhor com o cristianismo da Ásia que o dualismo ontológico da tradição dogmática ocidental. Ver o seu artigo: "Meister Echart's Asian Christianity," Studies in lnterreligious Dialogue 14/1 (2004): 75-94.

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O DIÁLOGO NA ESPIRITUALIDADE

Tenho a impressão que está a operar-se uma mudança no mundo do diálogo inter-religioso, mas que ainda não se fez sentir por completo ao nível académico. O último quartel do séc. XX assistiu a uma explosão de interesse no diálogo entre as religiões do mundo. Surgiram por todo o mundo cristão, e em menor escala no mundo budista, cursos especializados, disser­tações de doutoramento, livros, revistas especializadas e até associações académicas. Todo este movimento teve duas consequências. Por um lado, abriu o caminho para uma maior atenção à dimensão religiosa no diálogo político e de solução de problemas que tem existido particularmente com o mundo islâmico. Por outro lado, como diálogo puro, levantou preocupa­ções mais sérias no cristianismo sobre a forma de sobreviver num mundo religiosamente plural. Em relação a este último ponto, há sinais evidentes de que a balança pende a favor de aceitar o desafio do que a repeli-lo como "escândalo e perigo".

Um sinal desta tendência é a passagem do diálogo entre tradições estabele­cidas ao diálogo entre espiritualidades vivas. No primeiro caso a comparação de doutrinas religiosas centrais tende a definir a agenda para o diálogo. Isto quer dizer que uma tradição de textos e teoria hermenêutica enfrentaria outra tradição para enriquecimento e crítica mútua. Deixando de parte questões sobre a parcialidade do cristianismo na agenda do diálogo, o que se perdia frequentemente no intercâmbio era a consciência que o espírito que movia o diálogo não surgia de materiais que formavam a base para o diálogo ou mesmo dos declarados representantes das religiões estabelecidas. Diria que o diálogo entrou nas religiões estabelecidas somente através de uma falha na resistência a um Zeitgeist que se formou nas suas áreas de fronteira. O diálogo formal entre religiões era uma refracção de um diálogo que já tinha começado nos corações de uma geração de pessoas em busca de uma espiritualidade dese­josa de atravessar as fronteiras recebidas na busca de um sentido religioso. Mais ligado à prática e experiência do que à doutrina, este "diálogo" tem sido em grande parte informal, relativamente livre de autoridade institucional, e com frequência insuficientemente crítico. Tenho a impressão que isto está a mudar à medida que a procura para localizar o repositório dos símbolos cris­tãos, práticas e ensinamentos numa estrutura multi-religiosa mais alargada se torna mais articulada.

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Não nos deve surpreender que numa tal situação deva ser dado à tradição mística um lugar de importância renovada na compreensão que o cristia­nismo tem de si mesmo, indo ao ponto de retirar o credo objectivo da sua posição dominante e absorver mais e mais as correntes subterrâneas anti­tradicionais na corrente ortodoxa cristã. Eu sugeria que é precisamente aqui, que o Ocidente cristão tem muito a aprender do Oriente budista em recu­perar um sentido de humildade em relação à doutrina que há muito tempo sufocou sob o peso da teologia tradicional. O modo como isto se realizará é uma questão para o futuro. Talvez os pensadores da escola de Quioto tenham ainda a desempenhar o seu papel mais importante nos anos de diálogo acadé­mico inter-religioso.