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www.neip.info 1 O CULTO AO SANTO DAIME: Um paradoxo da modernidade? 1 Walter Dias Junior 2 A polêmica travada atualmente em torno do Culto ao Santo Daime é relativamente recente. É possível localizá-la a partir dos anos oitenta, quando o assunto começou a ganhar destaque no cenário nacional, em função de sua divulgação nos meios de comunicação de massa. Ela gira em torno da validade ou não do uso sagrado de substâncias psicoativas em rituais religiosos. Esse fato paira no imaginário nacional como verdadeira ameaça aos pilares da chamada cultura cristã-ocidental; como catalisador do medo ao desconhecido, ao estranho, ao exótico, por sua suposta possibilidade de ameaçar a ordem e corromper os bons costumes. Por outro lado, e pelos mesmos motivos, apresenta-se a determinados segmentos sociais como uma promissora oportunidade para a revisão dos descaminhos que conduziram ao "labirinto" da racionalidade moderna. E, desde o principio, esta tem sido uma das características do Santo Daime: gerar discussões apaixonadas, dividindo o debate em dois extremos que 1 Este texto foi originalmente apresentado na Mesa Redonda - O Uso Ritual de Psicoativos no Culto do Santo Daime - S.B.P.C./1991 e reapresentado no 3º Seminário sobre “A Igreja católica diante do pluralismo religioso no Brasil”, promovido pelo Setor de Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em 1994. Foi editado com esse título na coleção Estudos da CNBB; v. 71 – A Igreja Católica Diante do Pluralismo Religioso no Brasil, III/ CNBB. São Paulo: Paulus, 1994. Posteriormente, foi revisado para ser editado eletronicamente pelo NEIP – Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos. 2 Mestre em Ciências Sociais, formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Pesquisador e docente da Faculdade de Pindamonhangaba - FAPI, do Instituto Taubaté de Ensino Superior – ITES e da Universidade Paulista - UNIP.

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O CULTO AO SANTO DAIME: Um paradoxo da modernidade? 1

Walter Dias Junior2

A polêmica travada atualmente em torno do Culto ao Santo Daime é relativamente recente. É possível localizá-la a partir dos anos oitenta, quando o assunto começou a ganhar destaque no cenário nacional, em função de sua divulgação nos meios de comunicação de massa. Ela gira em torno da validade ou não do uso sagrado de substâncias psicoativas em rituais religiosos. Esse fato paira no imaginário nacional como verdadeira ameaça aos pilares da chamada cultura cristã-ocidental; como catalisador do medo ao desconhecido, ao estranho, ao exótico, por sua suposta possibilidade de ameaçar a ordem e corromper os bons costumes. Por outro lado, e pelos mesmos motivos, apresenta-se a determinados segmentos sociais como uma promissora oportunidade para a revisão dos descaminhos que conduziram ao "labirinto" da racionalidade moderna. E, desde o principio, esta tem sido uma das características do Santo Daime: gerar discussões apaixonadas, dividindo o debate em dois extremos que

1 Este texto foi originalmente apresentado na Mesa Redonda - O Uso Ritual de Psicoativos no Culto do

Santo Daime - S.B.P.C./1991 e reapresentado no 3º Seminário sobre “A Igreja católica diante do pluralismo religioso no Brasil”, promovido pelo Setor de Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em 1994. Foi editado com esse título na coleção Estudos da CNBB; v. 71 – A Igreja Católica Diante do Pluralismo Religioso no Brasil, III/ CNBB. São Paulo: Paulus, 1994. Posteriormente, foi revisado para ser editado eletronicamente pelo NEIP – Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos.

2 Mestre em Ciências Sociais, formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Pesquisador e docente

da Faculdade de Pindamonhangaba - FAPI, do Instituto Taubaté de Ensino Superior – ITES e da Universidade Paulista - UNIP.

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tendem a radicalizar cada vez mais suas posições. Pois, diante dele, dificilmente fica-se indiferente.

O chá que recebe o nome de Santo Daime (também conhecido por Ayahuasca, Yagé ou Vegetal) faz parte da tradição cultural de várias nações indígenas da amazônia ocidental. É um produto da decocção de duas plantas nativas da região: um cipó (Banisteriópsis Caapi), conhecido por Jagube; e uma planta arbustiva (Psicótria Víridis), a Rainha da Floresta. Aos caules do cipó macerado, cujos principais alcalóides encontrados são a Harmina e a Harmalina, acrescentam-se as folhas da arbustiva, que contém principalmente Dimetil-Triptamina (DMT). Tais alcalóides têm como característica o fato de serem rapidamente metabolizados e absorvidos pelo aparelho digestivo, sempre que ingeridos isoladamente, produzindo pouco ou nenhum dos efeitos psíquicos normalmente esperados. Isso se deve ao fato de que o organismo humano produz uma enzima (a Monoamina Oxidase - MAO) que neutralizaria a maior parte desses agentes psicoativos. Entretanto, isso não ocorre devido a um "segredo" do Santo Daime, descoberto recentemente pela psicofarmacologia. Quando a análise das substâncias presentes na bebida produzida pela decocção das plantas foi realizada, revelou-se a presença de outro alcalóide (a B-carbolina), cuja ação inibe a produção das enzimas de MAO, facilitando a ação dos demais agentes no organismo humano3. Outra questão, relacionada aos efeitos psíquicos do chá, refere-se à existência de certo alcalóide que, segundo o psicofarmacólogo Elisaldo A. Carlini - da Escola Paulista de Medicina - possui uma estrutura molecular semelhante à de uma das substâncias produzidas pelo cérebro, cuja função é a de estabelecer o contato entre os neurônios para a realização das sinapses.

3 Ver os estudos realizados pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas – CEBRID – do Depto. de Psicobiologia, da Escola Paulista de Medicina - EPM (R. Botucatu, 862 - 1º andar, S. Paulo – S.P.

Especulando um pouco a esse respeito pode-se supor, por exemplo, que o aumento artificial dessa substância no cérebro pode levar o organismo a produzir o mesmo número de sinapses, em tempo menor do que o normalmente necessário para realizá-las. Tal possibilidade

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abre espaço para um conjunto de novas hipóteses que poderiam vir a contribuir para o aprofundamento dos conhecimentos acerca da mente humana, tanto no que se refere aos aspectos bioneurológicos, quanto aos psico-culturais. Será que a alteração do Estado de consciência através da utilização do Santo Daime não provocaria mudanças na capacidade de raciocínio, de maneira semelhante a um computador que recebe uma placa adicional para aumentar sua velocidade de processamento das informações? Ou, talvez, seu efeito seria mais parecido com aquele obtido pela instalação de um disco rígido para aumentar a capacidade de memória do computador? Quem sabe ele não produziria alterações de fato na percepção ou nos sentidos? Ou ainda, não seriam as emoções e sentimentos os elementos mais envolvidos na experiência? Talvez, todas essas questões, simultaneamente? Sem dúvida, trata-se de um vasto campo, muito promissor para pesquisas transdisciplinares. Evidentemente, não pretendo responder aqui a todas estas questões, mas apenas fazer algumas "provocações" para propor um debate, na tentativa de esboçar o assunto dentro de uma perspectiva abrangente, capaz de levantar algumas pistas para a compreensão da dinâmica do fenômeno em nosso contexto cultural. Afinal, o Santo Daime é apenas mais uma droga que dá "barato" ou, realmente, trata-se de um fenômeno religioso peculiar que, como tal, deve ser entendido e respeitado?

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Breve histórico Levando em consideração essa preocupação, farei, inicialmente, um breve histórico das origens do culto e de sua trajetória para, em seguida, introduzir algumas questões que poderão vir a contribuir para o debate acerca da validade ou não de tais experiências religiosas em nossa cultura. O Santo Daime foi criado em 1930 por Raimundo Irineu Serra - o Mestre Irineu - a partir de um sincretismo realizado entre o pensamento xamânico dos povos autóctones da região amazônica, o pensamento cristão ocidental (representado pela tradição esotérica da "Igreja Primitiva", aliada a alguns componentes do que se convencionou chamar de "catolicismo popular") e por uma forte influência da concepção oriental sobre a lei do Carma (a concepção da vida como um ciclo de reencarnações espirituais). Constituído a partir dessas três influências básicas, o Santo Daime afirma-se enquanto instituição religiosa capaz de impor determinado conjunto de valores morais, normas sociais e padrões de comportamento em regiões onde, ainda hoje, vigora a "lei da selva". Antes dele, vários outros "centros" e "casas" espirituais já praticavam diferentes formas de sincretismo religioso com a Ayahuasca. Isoladas nos altos rios da Amazônia Ocidental, distantes dos centros urbanos e de qualquer tipo de assistência estatal, as práticas xamânicas proliferaram na periferia de diversas comunidades tanto peruanas (Iquitos, Pucalpa e outras), quanto brasileiras (Brasiléia, Sena Madureira, Xapurí e outras), particularmente durante o período de declínio do primeiro ciclo da borracha (entre 1913 e 1940). Observa-se, nesse período de retração do mercado da borracha, a incorporação de determinados elementos dos sistemas culturais indígenas, com suas crenças religiosas e sua concepção anímica do universo. Vários estudos4 mostram que essas manifestações de origem xamânica - que se popularizaram, sob a denominação genérica de "curandeirismo" - colocavam-se como prática sincrética alternativa, 4 A esse respeito, consultar os estudos realizados por Marlene Dobkin de Rios, Michael Harner, Reichel-Dolmatof e Claudio Naranjo.

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capaz de satisfazer aos anseios e necessidades de toda uma população de "deserdados da floresta". Por essa época, os bolsões de seringueiros que se formaram ao redor de Rio Branco - a capital do então Território Federal do Acre - constituíram-se no cenário propício para a gestação do culto que, desde o princípio até meados de 1940, sempre manteve uma relação tensa e tumultuada com o Estado. Nesse período, a simples prática de qualquer tipo de "curandeirismo" já era considerada como motivo justo e legal para a repressão policial. O que dizer, então, quando era associada ao uso de plantas desconhecidas e de origem indígena ? Ao contrário do caminho trilhado pelos demais "curandeiros" da região, (que optaram por sincretizar as práticas xamânicas ao catolicismo e às “religiões de possessão”), Mestre Irineu funda a Igreja do "Alto Santo" (em Rio Branco-AC), filiando-se ao Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento - de S. Paulo. Com isso, ele abre um novo caminho dentro das práticas religiosas até então existentes. Em fins dos anos sessenta, filia-se à ordem Rosa-Cruz, desligando-se do Círculo Esotérico no início de 1971,pouco antes de falecer. Sua trajetória de vida ‚ exemplar e repleta de episódios que refletem a epopéia clássica da iniciação xamânica (Cf. Eliade: 1951). Porém, ao enveredar por esse caminho singular, criando uma nova doutrina capaz de romper determinadas barreiras culturais, Irineu assume grande importância, influindo sobre o destino dos demais grupos de "huasqueiros" existentes na região. Após a morte do Mestre (06/07/1971), o "Alto Santo" entrará em um período de crise. Segundo um grupo de adeptos, o comando dos "trabalhos" fora deixado por Mestre Irineu para Leôncio Gomes (tio de sua esposa - Da. Peregrina). Mas, passou a ser contestado pelo grupo liderado por Sebastião Mota Melo. Este, que entrara para o culto no princípio da década de sessenta, contava com o apoio de cerca de cem pessoas, que o seguiam em função de sua expressiva liderança carismática. A disputa de comando prosseguiu até fins de 74, quando o "padrinho" Sebastião (como era tratado por seus liderados) retirou-se da igreja do "Alto

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Santo", levando consigo seu grupo para organizar o que viria a ser a "Colônia Cinco Mil", em uma gleba mais distante da cidade. Tal fato inaugura uma nova fase, uma outra etapa na existência do culto. Rapidamente, a Colônia Cinco Mil prospera, atraindo novos adeptos que iriam mudar o perfil do daimista tradicional. Eram, principalmente, jovens de classe média provenientes dos grandes centros urbanos que migravam para lá em busca de uma alternativa de vida mística e ligada à natureza. Idealistas, visionários, ou simples curiosos, trouxeram consigo seus sonhos, hábitos e costumes. Desses, alguns retornaram às suas cidades, já na década de oitenta, com a missão de fundar novas igrejas do culto; ao mesmo tempo em que o "padrinho" liderava seu povo em direção ao seringal Rio do Ouro e, posteriormente, para o centro da floresta, ocupando o seringal do Mapiá (no Amazonas), com a finalidade de acomodar um número ainda maior de adeptos que para lá afluía. No princípio dessa década, simultaneamente ao duplo movimento realizado pelo grupo, primeiro em direção ao centro da floresta e, em seguida, em direção aos principais centros urbanos do país, o grupo de Sebastião passa a ter problemas com a Polícia Federal e a repressão estende-se aos demais grupos daimistas, culminando com a proibição do uso da bebida em seus rituais, em 1985. Por cerca de seis meses o Santo Daime foi ilegalmente incluído na lista de substâncias proscritas da Divisão Nacional de Vigilância Sanitária - DIMED. A ilegalidade foi cometida por precipitação do órgão, ao incluir o Daime na sua listagem de substâncias proscritas, sem realizar a prévia e necessária consulta ao Conselho Federal de Entorpecentes - CONFEN. Uma vez acionado, o CONFEN instituiu um Grupo de Trabalho composto por profissionais e representantes das áreas mais diretamente envolvidas, com a finalidade de realizar um estudo abrangente do assunto e emitir um parecer sobre a questão. Uma de suas primeiras providências foi retirar a bebida da referida listagem, restabelecendo a situação anterior à proibição.

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Este estudo foi realizado entre 1985 e 1987, concluindo pela ausência de fatos que comprovassem quaisquer danos psíquicos ou sociais provocados pelo uso ritual da bebida. Ao contrário, destacava até certa rigidez excessiva na preservação das normas e valores morais validados por nossa cultura e recomendava, ainda, a realização de novos estudos que aprofundassem o conhecimento existente acerca do tema. Sem dúvida, estamos diante de uma forma de tratamento "sui generis" da questão; mas, que se coloca perfeitamente de acordo com a abordagem da tradição xamânica regional ao ser considerada como mais uma "planta de poder"5. Trata-se de um enfoque abrangente, que leva em consideração os aspectos culturais do culto, distinguindo-o claramente das demais formas de consumo profano e indevido dos psicofármacos.

5 Sobre esse tema, consultar a obra de Schultes, R. E. e Hofmann, A. – Plantas de Los Dioses. Ed. Fondo de Cultura Económinca – FCE. México. 1982. Ver, também: McKenna, T. – Food of Gods. Ed. Bantam Book. New York. 1992.

Depois de encaminhar seu relatório ao CONFEN, o Grupo de Trabalho dissolveu-se e, no final do mesmo ano, o Conselho do órgão reuniu-se para examinar o documento, aprovando-o em sua totalidade. Desta maneira, atualmente não existe nenhum impedimento legal em relação às práticas do culto ou ao consumo ritual da bebida. Apesar das pressões contrárias, penso que esta tenha sido uma decisão sábia e correta, que reverterá em benefício do conjunto da própria sociedade brasileira.

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A opinião dos especialistas Nesse sentido, é interessante levanter a opinião de alguns estudiosos do assunto. Em suas pesquisas, o médico e psico-farmacólogo americano Andrew Weil, por exemplo, sugere que as diferentes técnicas utilizadas para alterar a consciência corresponderiam a uma pulsão própria da natureza humana, a um valioso impulso "para satisfazer uma necessidade interna de experimentar outros modos de consciência..."6. Para referendar sua posição em defesa da tese do impulso natural, ele recorre ao exemplo das brincadeiras cinegéticas como recurso, utilizado espontaneamente por crianças, para experimentar diferentes estados de consciência. Weil afirma ser irracional o modo de pensar a questão, adotado pela Associação M‚dica Americana e o Instituto Nacional de Saúde Mental, que tenta reprimir sua expressão em indivíduos e na sociedade. Ele chega a ser radical quando diz que este poderia ser "um ato psicologicamente danoso para as pessoas e evolucionalmente suicida para a espécie"7.

6 Weil, Andrew. Drogas e Estados Superiores de Consciência. Ed. Ground. S. Paulo. 1986, pg. 41. 7 Idem, ibidem.

De fato, existem vários aspectos controvertidos e discutíveis em suas posições bem como, de resto, sobre a questão como um todo. Contudo, como os próprios especialistas no assunto não possuem parâmetros minimamente consensuais para lidar com a questão; penso que, além de ter sido precipitada, a proibição pura e simples de tais manifestações, provavelmente conduziria à gestação de problemas de ordem mais complexa e de difícil solução. Primeiramente, parece-me uma tarefa urgente sistematizar e aprofundar os estudos existentes, adotando-se uma perspectiva transdisciplinar capaz de abordar a problemática de maneira abrangente. Sua complexidade exige um debate a ser travado não apenas entre diferentes teorias de uma mesma ciência, mas

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sobretudo, entre os vários campos do conhecimento humano. Num debate em que devem se manifestar, minimamente, as ciências bio-psico-antropo-sociais. Em segundo lugar, é de fundamental importância a adoção de uma postura desprovida de preconceitos, que podem acabar agravando ainda mais a situação e criando novos e imprevisíveis problemas. Pois, a prática tem demonstrado que, além de não resolver a questão a que se propôs, a postura repressiva (quando adotada pelo Estado) acaba fomentando outras questões, estas sim, uma ameaça concreta à ordem social; como é o caso, por exemplo, do perigoso fenômeno representado pelo narcotráfico. Resta, ainda, a necessidade de adotar uma posição de humildade, assumindo a insuficiência dos estudos existentes sobre estas questões. Postura que pode ser observada mesmo entre os especialistas. Por exemplo, falando sobre o tratamento psicoterapêutico mais adequado para os usuários de drogas em geral, Claude Olievenstein – um respeitado estudioso do assunto - é da opinião de que todos os meios são válidos, desde que possuam mecanismos que revalorizem o indivíduo. Segundo suas palavras, "para isso todos os meios são bons, desde o charlatanismo até a ortodoxia freudiana, de acordo com o tipo do paciente e a personalidade do terapeuta."8 Nesse sentido, sua abordagem é pragmática, reconhecendo inclusive a validade do trabalho de recuperação de drogados realizado pelas "Free Clinics" (nos E.U.A.) e relativizando a discussão das questões de ordem teórica a respeito.

8 Oliveinstein, C. – A Droga. Ed. Brasiliense. S. Paulo. 1970/83, pg. 125.

Reconhece, sobretudo, a importância da existência de um grupo de apoio (tenha ele o caráter terapêutico, religioso ou de ajuda mútua) capaz de fornecer um código de conduta prática e moral, diante do problema. E são esses grupos que, na realidade, têm conseguido maior êxito no tratamento e recuperação de drogados. Dentro dessa perspectiva, o fenômeno do Santo Daime reveste-se de características inusitadas em

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nossa sociedade, por se tratar de um grupo que fornece vários elementos para uma reflexão mais profunda sobre as formas de controle social do uso de psicoativos. O fato de sacralizar a bebida, estabelecer normas de conduta ritual e adotar rígidos padrões éticos e morais, todos eles cumpridos com extrema disciplina, oferece-se como um interessante "laboratório" para a observação e o aprendizado de alternativas para lidar com a questão, sem que seja necessário recorrer à repressão. Em seu estudo sobre o Santo Daime, o antropólogo Edward MacRae9 destaca a importância dos mecanismos de controle social usados no culto ao Santo Daime, durante os rituais e fora deles, no sentido de propiciarem uma forma de utilização positiva de tais substâncias. Se suas observações estiverem corretas, o mal-estar provocado pela existência desse culto seria suscitado pelo fato de que o Santo Daime apresenta-se como verdadeiro paradoxo diante do modo tradicional de pensar os estados alterados de consciência em nossa sociedade. Diante dessa posição torna-se lícito perguntar até que ponto o controle social espontaneamente adotado pelo grupo não seria o maior responsável pela manutenção de sua saúde mental e de sua própria existência enquanto grupo? Quais as conseqüências de uma intervenção repressiva do Estado? Em que medida tal procedimento traria benefícios ou malefícios ao grupo e à sociedade como um todo?

9 MacRae, Edward - Guiado pela Lua: o controle socia l do uso de Ayahuasca no cu l to do Santo Daime, xerox de pesquisa sediada no IMESC-SP, São Paulo , 1989.

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Breve cartografia do imaginário Para avaliar melhor e poder responder com maior segurança a estas questões, seria interessante abordar rapidamente alguns aspectos centrais do culto, numa tentativa de compreender o significado simbólico e ritual da bebida e de suas práticas religiosas. A começar pela forma como é interpretada a experiência mística vivida durante as cerimônias. O êxtase propiciado pelo ritual de beberagem recebe o nome de "miração"10. Algumas “mirações” são consideradas viagens ao Reino Divino (o Astral) com a finalidade de ter acesso à realidade sagrada. Assim, o Astral é um lugar possível de ser visitado durante o vôo extático da alma - uma das formas de representação da miração. Esse Território Sagrado constitui-se numa espécie de Olimpo onde habitam os seres divinos - uma profusão eclética de "entidades" organizadas hierarquicamente, sob o comando supremo do General Juramidam - O Mestre Império (figura sincretizada com a imagem de Jesus Cristo). Ele é o Ser Divino que habita a bebida (o chá de Santo Daime) e o Senhor supremo desse "Panteão Amazônico". Trata-se de um universo divino invisível e paralelo ao nosso, um "domus" de perfeição e modelo ideal a ser atingido a cada “miração”, dependendo do merecimento espiritual de cada um.

... o domus perfeito, o arquétipo do lugar sublime, é um resumo plural do que um único indivíduo não pode realizar ... O que uma única pessoa não pode possuir (juventude, beleza, êxito, inteligência, encanto, etc.), um conjunto o assume.11

Para a irmandade, a partilha do astral assume, acima de tudo, um valor territorial que concentra sobre um coletivo qualidades que raramente são encontradas em um só indivíduo; constituindo-se, assim, a metáfora espacial da União Mística. Esse espaço molda coercitivamente os hábitos e costumes cotidianos que, por sua vez, permitem uma sólida estruturação comunitária. A espacialização da “socialidade”, observada nas descrições do altral, atua como antídoto em relação ao angustiante devir do tempo, constantemente reiterado, principalmente, pelas 10 Miração: estado de êxtase religioso, provocado pela ingestão do chá denominado Santo Daime, durante rituais sagrados, que propicia o surgimento de visões místicas e outros fenômenos de ordem psíquica e religiosa. 11 Maffesoli, M. A Conquista do Presente. Ed. Rocco. R. de Janeiro. 1984, pg. 56.

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“mirações” que envolvem experiências de morte/renascimento. A realidade que emerge dessa “socialidade” aponta, como referências exclusiva, o tempo presente.

A espacialização é o tempo em retardo, é o tempo que tentamos refrear, e daí a importância da ritualização na vida do dia-a-dia, que, pela repetição, representa e mimetiza o imutável... É aí que deve ser buscado o apego do fundamento afetivo ou passional que liga o indivíduo ou grupo ao território, qualquer que seja...12

A partilha imaginária e ritualizada do território sagrado permite aos adeptos a subjetivação da história e a supressão do caráter histórico do devir, proporcionando os meios necessários à reatualização do Mito do Eterno Retorno13, através da recuperação do tempo e do espaço cotidianos em bases sagradas. Dessas imagens emergem a idéia dos arquétipos do Grande Pai Criador e da Terra Prometida: seria o paraíso perdido o alvo ideal a ser atingido durante as “mirações”? Cada "trabalho" com o Santo Daime, cada ritual de beberagem, é considerado como uma lição dentro do processo de aprendizagem dos adeptos. A trajetória de cada um dentro do culto está vinculada à sua caminhada espiritual nesta e em outras vidas passadas. Alguns daimistas são considerados a reencarnação de certas divindades e o encontro com o Santo Daime é visto como o atendimento a um chamado seu. Desta forma, são todos predestinados, escolhidos pelos deuses. Como se pode observar, a idéia do avatar é uma imagem recorrente dentro da doutrina. Certa vez, recolhi um relato que dava conta da possibilidade dos participantes "morrerem" durante um ritual e outro espírito assumir o controle de seu corpo, sem que os demais participantes sequer se apercebessem do fato. É a reiteração da idéia de morte-renascimento, da

12 Idem, ibidem, pg. 57. 13 Eliade, Mircea. O Mito do Eterno Retorno. Ed. 70 – col. Perspectivas do homem, nº 5. Lisboa, 1972.

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"passagem", da transformação espiritual, tantas vezes encontrada nos relatos etnográficos sobre os processos xamânicos de iniciação. Mas, somente os espíritos mais evoluídos assumirão suas missões, sempre recebidas em “miração” diretamente do Astral, a exemplo do processo de iniciação de Mestre Irineu. Como cada um encontra-se em um nível de desenvolvimento correspondente ao seu grau de espiritualidade, não se postula a igualdade como valor; ao contrário, legitimam-se as diferenças. Nas entrevistas realizadas observa-se a existência de uma dada concepção de alma, de experiências de morte/renascimento e da idéia de “vôo da alma” ao separar-se do corpo, da crença na possessão espiritual e, invariavelmente, a leitura religiosa e “fantástica” de todas essas vivências. A idéia de vôo da alma, de abandono do corpo, revela a importância de “duplo” na vida social. Quanto a esse aspecto, Maffesoli afirma que:

"...é pela duplicidade mais ou menos consciente que os indivíduos aparentemente integrados na ordem social preservam um tanto para si que lhes permite sobreviver às varias imposições dessa ordem..., que permite a resistência astuciosa à injunção da identidade que nos obriga a ser isto ou aquilo, operário, intelectual, homem, mulher, etc...."14

Ainda segundo Maffesoli, tal astúcia pode ser considerada como uma estrutura antropológica capaz de assegurar um escudo contra as agressões dos poderes instituídos; pois, é justamente nessa possibilidade mágica de existência do "duplo" que reside o rico espaço para a representação de papéis (para o espaço da "persona"). Esse escudo atua como espaço protetor contra o espaço linear de construção histórica da individualidade. Ele revela:

“... O conflito entre a prática societal que engendra instituições, controle, dominação e o surrealismo empírico que se oferece como concretude; o primeiro remete à ordem da moral, o segundo a uma expressão ética que ajuda a viver o dia-a-dia, através de um imaginal luxuriante e desordenado. Em regra geral, é o primeiro

14 Maffesoli, M, ob. cit., p. 66.

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que, graças à ciência oficial, é retranscrito na historiografia, mas é certamente o segundo que assegura a permanência social, ao abrigo de várias máscaras e através de diversas astúcias.”15

A dimensão fantástica que assume a realidade cotidiana, a partir da crença no astral, coloca-se como uma alternativa contra o processo de uniformização racionalizadora levada a cabo pela coerção das ideologias do progresso, incapazes de absorver as zonas de opacidade que margeiam a tessitura das relações sociais. Desse modo fantástico de pensar emerge um espaço capaz de integrar a "anormalidade", a "loucura" e o "caos" que emergem das incertezas do cotidiano, tornando-o minimamente aceitável.

O fantástico encontrado invariavelmente nas entrevistas pode ser considerado excepcional somente dentro de uma perspectiva universalista, racional e asséptica do mundo; na realidade, essas histórias constituem o substrato dos mitos que são revividos e atualizados a cada trabalho, desempenhando um papel-chave na abertura das portas para uma comunicação mais densa e, ao mesmo tempo, fluida, que expressa a tentativa de escapar à angustiante certeza do tempo que passa. O ritual é um recurso utilizado como possibilidade de regeneração do tempo ao reatualizar a cena mítica original. O crescimento do culto no sudeste do país, por exemplo, não obedece a nenhuma estratégia de planejamento. Encontra-se sujeitado à “vontade superior” e ao acaso das conversas informais e das "fofocas" que são, de fato, o vetor das relações entre as pessoas em suas práticas cotidianas, definindo alianças e inimizades, simpatias e antipatias. A trama originada desse jogo organiza a troca, define a densidade de compromisso das relações e seus parceiros, numa disputa de muitas potências que ora se aliam, ora se opõem, formando um mosaico de relações fluidas, que tendem à permanente fragmentação na medida em que o culto cresce.

15 Idem, ibidem, p. 68.

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Também é interessante observar a forte tendência à centralização do poder baseado no carisma do comandante, fato que, geralmente, acaba conduzindo o grupo a um processo de cisão, após seu falecimento. Possivelmente, essa característica conduzirá a Igreja a um novo processo de disputa de poder e de conseqüente divisão, após a morte do padrinho Sebastião. Fato ocorrido recentemente com a Igreja do Céu do Mar, em São Conrado, quando um dos freqüentadores entrou em disputa com seu comandante e retirou-se para fundar uma nova Igreja (a Rainha do Mar, em Pedra de Guaratiba).

No geral, nenhum dos adeptos discorda da moral expressa pela doutrina que, inclusive através dos hinos, prega o respeito aos irmãos e alerta para os perigos e venenos da língua (referência direta às "fofocas"); no particular, o que acaba vigorando com maior intensidade são as opiniões e impressões sobre o comportamento ético de tal ou qual irmão, passadas à boca pequena nos pequenos círculos de amizade, dando origem às cizânias. É nesse desdobramento do social entre a versão oficial - genérica, uniformizadora, centralizadora e controladora - e a versão oficiosa - particular, fragmentária e policêntrica - que emerge com maior clareza o ‘non-sense” do social. Essa duplicidade confere uma outra dimensão aos fatos, podendo ser interpretada como uma forma de manifestação da resistência a uma existência unidimensional e "monadizadora"; como uma manifestação de astúcia a uma dada ordem social. Como nos lembra Maffesoli: ... em face de uma gestão da existência que é sobretudo linear, planificada, cheia de sentido e racional, o duplo introduz a descontinuidade, o non-sense, a acentuação do presente... 16 A rica e densa concretude do cotidiano, observada nas relações dos devotos do culto, permanece refratária aos esquemas de análise positivistas. Isso ocorre porque tais manifestações não se esgotam numa causalidade ou finalismo capaz de lhes conferir um significado lógico. Ao lado de um social simplificador e redutivo, existe sempre uma

16 Idem, ibidem, p. 70.

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“socialidade” multiforme, vivida de uma forma mais ou menos intensa através do recurso à teatralidade. O primeiro, enquanto produto de uma construção lógico-racional, é unidimensional; enquanto que, a segunda, é a própria expressão de uma vigorosa resistência, de uma vontade de viver, de uma potência de vida (cf. Nietzsche) tanto individual, quanto social. Trata-se de duas formas de análise que têm por base, de um lado, o pensamento lógico/racional/empírico; e, de outro, o pensamento simbólico/mitológico/mágico. O primeiro controla, mas atrofia o pensamento; o segundo, não só o alimenta, mas também confunde. Buscando compreender a relação entre ambos, evito privilegiar um ou outro. Sobretudo, em concordância com o que nos propõe Edgar Morin (1986), fiz minhas as suas palavras, quando afirma não acreditar:

...numa superação totalizante que englobaria harmonicamente um e outro. O que posso e quero considerar é, em contrapartida, o desenvolvimento de uma racionalidade que reconheça a subjetividade, a concretude, o singular, e que trabalhe com eles; é o desenvolvimento autocrítico da tradição crítica que reconheça não só os limites da racionalidade, mas os perigos sempre renovados da racionalização, isto é, da transformação da razão em seu contrário; (buscarei) é o desenvolvimento de uma razão aberta, que saiba dialogar com o irracionalizável...17

Procurei despir-me dos preconceitos e adotar uma abordagem fenomenológica para poder penetrar nesse imaginário e captar uma outra lógica, capaz de desvendar os mecanismos mentais e espirituais que operam durante os rituais. Lá, cada participante desempenha determinado papel a fim de propiciar o surgimento das condições necessárias à chegada das "energias" invocadas pelos hinos; pois, somente a ação da bebida não seria suficiente para garantir a chegada da "força" e da "luz", das energias responsáveis pela miração. Aqui, todos os detalhes do ritual são voltados para o objetivo maior de atingir o êxtase, com a finalidade de estabelecer contato com o universo sagrado; particularmente o canto e o bailado (importantes técnicas que,

17 Morin, Edgar. O Método 3/1 – O Conhecimento do Conhecimento. Ed. Europa-América. Lisboa. 1986: p. 164.

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juntamente com a bebida, possibilitam a alteração dos estados de consciência). Estas "viagens" estão sujeitas a muitos perigos e ameaças - representados pelas "peias" (que abordarei a seguir) - e que se constituem em fonte geradora de permanente ansiedade pela possibilidade de dispersão, ou mesmo, de desagregação do Ego, colocada como "prova", pela Iniciação: a possibilidade de passar por uma experiência simbólica de morte e renascimento espiritual. Penso que, além de potencializar o processo de alteração da consciência, o ritual também contribui para o processo de organização da experiência, minimizando o medo e o pânico que, por vezes, se instauram numa situação como esta em que se está diante do desconhecido; diante da possibilidade de se entrar em contato com o as questões mais profundas do ser: a dor e a morte... o tempo.

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O ritual iniciático

Tendo a morte como pano de fundo, o prazer e a dor passam a ocupar as cenas centrais da experiência, regulando o espaço e demarcando o tempo, num roteiro definido pela prova da "passagem" espiritual (morte e renascimento ritualizados). O próprio tempo de duração dos trabalhos oficiais (12 h. em m‚dia) tem um significado muito especial; começam, geralmente, no final da tarde e terminam com o nascer do Sol. A travessia desse período, que em muitos aspectos lembra as tragédias clássicas do período pré-socrático, é dramática e revive, simbolicamente, a dissolução dos limites da realidade nas trevas da noite, permitindo sua reorganização formal ao alvorecer de um novo dia. Durante esse período, o ritual oferece a segurança necessária para a vivência das passagens mais difíceis em busca do "bom e verdadeiro tempo", ao mesmo tempo em que assegura o regresso a um "porto seguro". A dança repetitiva e os tons monocórdicos das músicas produzem um certo efeito de "distanciamento mental" da situação concreta, propiciando a criação de um espaço para a concentração do pensamento e para a "viagem da alma". Sem o ritual, dificilmente o êxtase seria atingido; ele é uma espécie de garantia de que o empreendimento ser realizado dentro de determinados limites de tempo e espaço e de que haverá um retorno garantido. Muitas vezes as "peias" - como são conhecidas algumas "passagens" mais difíceis - são relacionadas às questões e experiências mais profundas da existência. Para um daimista, colocar-se diante delas, dentro de um ritual, representa a possibilidade de re-viver o desvelar das cenas míticas "primordiais". Trata-se, também, de uma maneira de acabar re-vivendo (mirando) todos os sofrimentos e traumas do momento da criação. Ontogenia e filogenia anelados em torno do êxtase religioso, em função do intenso contato estabelecido com os centros arquetípicos da mente. Todo sofrimento e dor que, eventualmente seja experimentado durante a "peia" é interpretado como parte integrante do "processo de purificação" e aperfeiçoamento físico, mental e espiritual dos

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participantes. Nesse sentido, a "passagem só se realiza plenamente se houver uma entrega total capaz de gerar mudanças concretas em cada um daqueles que viveram o ritual de iniciação. Essa entrega é feita a Deus por intermédio direto de seu filho, símbolo sincretizado da própria bebida. Para o adepto, tomar o Santo Daime assume o próprio sentido da comunhão com os reis e as rainhas celestes, telúricos, ígneos, aquáticos, vegetais, animais e humanos. Esse é o grande acontecimento da comunhão sagrada com os espíritos e seres divinos. Na maior parte das vezes, essa "peia" acontece com os novatos que, consciente ou inconscientemente, resistem aos efeitos da bebida e do ritual, tentando manter a situação "sob controle". Nessa situação, a entrega esperada corresponde à grande prova de sua iniciação. O que prevalece é a noção de que esses momentos de sofrimento eventualmente vividos durante os trabalhos são provações divinas que devem ser aproveitadas com a finalidade de extrair o máximo de conhecimentos para se avançar na caminhada espiritual. É comum encontrar depoimentos de pessoas que, de uma maneira ou de outra, passaram pela prova. Seus relatos apontam as dificuldades que tiveram que enfrentar para superar a situação e poder ascender na vida espiritual. Um dos elementos centrais, constantemente reiterado nessas narrativas, expressa a idéia de que é necessário realizar um Sacrifício - seja ele pessoal ou coletivo - para poder merecer a complacência divina e partilhar do Universo Sagrado. Esse sacrifício, esse sofrimento, é entendido mais como prova divina do que como expiação dos pecados. Esse estado de gozo místico proporcionado pela partilha do Astral, o "locus" sagrado por excelência. O Sacrifício seria, então, o "conditio" para a elevação espiritual. Sua descrição revela que ele possui forma e ocupa um lugar concreto na vida dos adeptos. É justamente na partilha desse solo imaginário que, a meu ver, residem os fortes laços de solidariedade do grupo. Estes, transcendem a esfera da solidariedade social e vão deitar raízes na dimensão sagrada. Desta forma. o Astral ‚ projetado como a domus perfeita.

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Como é na partilha desse território que residem os laços de solidariedade , o prazer do êxtase divino somente se torna possível na e pela comunidade religiosa; na valorização do grupo e pelo desinvestimento do indivíduo. Os sentimentos afetivos que emergem dessa experiência são extensivos a todo o grupo, delineia os contornos de seu ethos. O fato é que, originalmente isolados dentro da mata, residindo em colocações distantes umas das outras, os seringueiros conseguiram estabelecer permanentes e sólidos laços de solidariedade a partir de um conjunto de rituais que se apresentam como condição e possibilidade de acesso ao prazer do encontro com o outro. Prazer que ultrapassa os limites da esfera profana e constitui-se no prazer do encontro com o próprio Universo Sagrado: a união Mística.

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O canto como arte propiciatória É interessante iniciar esta exposição citando uma frase esclarecedora, proferida por um dos entrevistados, que definiu o Culto ao Santo Daime como sendo "uma doutrina musical". Juntamente com a bebida, os hinos ocupam uma posição central dentro do culto. Tanto é assim que uma das orientações dadas aos novatos, sempre que participam do ritual pela primeira vez, é para que tomem o Daime e prestem atenção aos hinos; pois, esta seria a melhor forma de compreender a experiência. Dentro dessa concepção, são eles que conduzem o ritual, participando diretamente do processo de alteração do estado de consciência dos participantes.

Outro esclarecimento importante diz respeito ao fato de que os hinos não são considerados pelos adeptos como produto da criação humana. Segundo essa concepção, esses hinos (letra e música) são mensagens divinas "recebidas" diretamente do astral, apenas pelos devotos "merecedores". Que, por sua vez, são considerados como veículos da manifestação divina. Independentemente de outras implicações, o que quero ressaltar é o fato de que o grupo acredita que tais músicas vem prontas lá do astral e a pessoa apenas capta e reproduz as palavras e as notas musicais enviadas (num processo semelhante ao das mensagens psicografadas no Kardecismo); pois, o grupo crê que quem os cria e os envia aos adeptos são as Entidades Divinas que habitam o astral, comandadas por Juramidam. Trata-se de um “dom divino” recebido pelos devotos: a Palavra Divina que se manifesta por seu intermédio. Como bem observa Edgar Morin acerca da magia:

"...já se disse que a magia era a crença na onipotência do espírito. Na realidade, ela funda-se no poder simbólico da linguagem, no poder analógico da imitação, no poder sintético e específico do rito, que opera a passagem, a comunicação, a integração no universo mitológico e permite estabelecer o comércio com os espíritos..."18

18 Morin, Edgar - "O Método 3/1" - O Conhecimento do Conhecimento", ed. Europa- América, Lisboa, 1986, pg. 155;

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A partir do próprio ato de nomear encontra-se a chave para o desvendamento da dimensão do coletivo contido nesse ato. Nele não há exatamente uma troca de palavras, já que se trata muito mais de uma comunicação unilateral realizada desde o astral. Não existe a possibilidade de estabelecimento de uma relação de reciprocidade no mesmo plano. Se houver alguma possibilidade de retribuição, ela só pode ser considerada na e pela devoção, no ato de fé e de entrega aos desígnios divinos; mas, por maiores que sejam os sacrifícios desse compromisso de entrega, eles jamais chegarão a ser suficientes a ponto de retribuir plenamente o dom recebido. Tais suposições levam em consideração o fato de que...

“...A magia obedece a uma lógica da troca e da equivalência: nada se obtém com nada, e. para obter, é sempre preciso pagar com um sacrifício ou com uma oferenda... A magia simbólica do Nome conjuga-se muitas vezes com a magia pneumática do “sono” (expressão do princípio vital e manifestação interiorizada do “duplo”) para constituir a magia da Palavra. O Nome dispõe do poder de evocar a coisa nomeada, a palavra mágica chama e ordena... Os grandes poderes estão concentrados em Nomes secretos, Nomes-chaves, fórmulas rituais, e os detentores desses poderes são os feiticeiros e os magos. É através deles que a Palavra se torna Verbo e, para o bem ou para o mal, comanda as coisas, as forças ou os espíritos que nomeia. Compreende-se que as grandes mitologias genésicas tenham dotado as Palavras-chaves de poderes supremos e que, na origem do mundo, tenha sido um Verbo divino a criar todas as coisas e todos os seres proferindo o seu Nome, a começar pela luz.”19

A Palavra dada através do hino, em geral, é uma resposta do astral às questões fundamentais que estão sendo vivenciadas pela pessoa ou por todo o grupo em determinado momento e situação. O hino, visto desta perspectiva, pode ser considerado como uma resposta auto-organizada do Oráculo, que propicia a 19 Idem, Ibidem, pg. 154.

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União Mística com o cosmos e o estabelecimento de relações permanentes entre o mundo dos vivos e dos mortos. A intimidade com o mundo dos espíritos e dos ancestrais permite a elaboração de uma nova concepção de vida, que adquire o atributo daquilo que é eterno (a anima). Ao fazê-lo, consegue apreender e encaminhar uma solução diferente para uma das questões fundamentais da existência, que é a sua própria condição de finitude: a maior das tragédias humanas.

...A tragédia representa o conflito entre o apolíneo e o dionisíaco, entre o “principium individuationis” e o uno originário... (ela) não produz sofrimento, mas alegrias; uma alegria que não é mascaramento da dor, nem resignação,32 mas a expressão de uma resistência ao próprio sofrimento... a alegria que proporciona a tragédia é o sofrimento de que o limite da individualidade será abolido e a unidade originária restaurada... Enquanto a arte apolínea nega - pela aparência, pela mentira, pela ilusão – o sofrimento dá vida e afirma a eternidade do fenômeno, a tragédia nega o indivíduo, justamente por ser fenômeno, manifestação, representação, afirmando a eternidade da vontade...20

É exatamente em função da profunda relação que se estabelece consigo mesmo e que para se realizar passa, necessariamente, pelo conjunto da irmandade, é que reside a expressão de um vigoroso coletivo plural, capaz de se afirmar contra o processo totalitário de monadização a que nos conduziu a noção de indivíduo, construída pela “modernidade ocidental”. Os laços de solidariedade que se estabelecem nessas condições, são qualitativamente diferentes daqueles definidos rígida e formalmente (por exemplo, pelo Estado ou pela economia), para o conjunto da sociedade. As bases dessa aliança não estão assentadas em relações formal e abstratamente igualitárias; ao contrário, suas estruturas estão ancoradas na noção de "desigualdade complementar" que se exprime no "jogo das diferenças", única condição para a existência de laços efetivos e permanentes de troca, uma vez que a condição de igualdade exclui a própria necessidade do estabelecimento de trocas em 20 Machado, Roberto. Nietzsche e a Verdade. Ed. Rocco. Rio de Janeiro: 1985, pgs. 30 e 32.

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função da impossibilidade de haver complementaridade (se há igualdade entre os termos, nada há para ser trocado).

A construção da identidade do indivíduo, na modernidade, esvazia a interdependência social, pois parte do pressuposto de que todos são igualmente completos (ou igualmente incompletos); mas, sobretudo indivisos, eliminando a necessidade da própria troca. Com isso, dissolvem-se os laços de solidariedade. Os indivíduos transformam-se em mônadas que compõem, apenas abstratamente, um dado conjunto social; são como o somatório de populações que habitam um território delimitado, personificado pela figura do Estado moderno, tendo como identidade o “modelo” de cidadão(?) fornecido pela cultura de massa.

A “modernidade ocidental” chega ao paroxismo de simplesmente alijar do cotidiano duas das questões fundamentais que se colocam para qualquer sociedade: a dor e a morte. A dor envolve toda uma discussão sobre a relação saúde-doença, conhecimento e poder, que será retomada mais adiante, quando da análise da ação dos mitos nos Trabalhos de Cura espiritual. Por ora, devo esclarecer que a cura é entendida pelos adeptos da doutrina do Santo Daime como um processo de aperfeiçoamento físico, mental e espiritual permanente. Para melhor compreendê-la é preciso recuperar o significado etimológico da própria palavra. Originalmente, Curar tem o sentido de aperfeiçoar, tornar perfeito. Curar é buscar o equilíbrio, a harmonia e a perfeição do ser. O São (saudável/santo) é aquele que atingiu um ideal de perfeição.

No entanto, neste momento quero ressaltar apenas que, das mais diferentes maneiras, a dor dor foi sumariamente excluída do cotidiano nas sociedades modernas; seja através da utilização intensiva e banalizada das drogas analgésicas em geral, seja através do uso “consumista” das técnicas orientais tradicionais de tratamento, como o doin e a acupuntura, que passam a ser procuradas para o tratamento dos sintomas da doença ou de dores localizadas, da mesma forma como se procura a alopatia. As manifestações de dor devem ser simplesmente eliminadas do

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cotidiano e, quando isso não é possível, deve-se isolar o doente colocando-o distante da visão, afastando-o do convívio com as pessoas, isolando-o asceticamente nos hospitais.

Da mesma forma, com a morte acontece processo semelhante. Por exemplo, a três décadas era comum a realização de velórios na casa do “falecido”, que, em geral, também morria em casa. Agora, deve-se morrer preferencialmente nos hospitais e ser encaminhado diretamente ao cemitério, após breve velório realizado na capela do hospital ou do cemitério; até porque, atualmente, sua realização em apartamentos e proibida por lei. Doravante, o Estado passa a “gerenciar” a dor e a morte através dos Institutos de Previdência Social e Institutos Médicos Legais. Tudo é realizado de forma que sejam alijadas do cotidiano. Nem mesmo o luto consegue sobreviver por muito tempo nos modernos centros urbanos: sobretudo, é preciso reafirmar a todo momento que “a vida continua”.

Ao repor estas questões no centro das experiências cotidianas, seja através das “peias”21, seja através das experiências de morte/renascimento espiritual vivenciadas dentro dos rituais, o Santo Daime recria um espaço tanto para a manifestação da dor quanto para a expressão dos sentimentos de perda ou mesmo de vivência simbólica da própria morte. O espírito disciplinador de "Marachimbé", entidade responsável pela aplicação da disciplina e das "peias" - distribui publicamente as sanções e, com elas, reintegra aqueles que estão excluídos da interdependência essencial que emana da irmandade, já que esse sentimento de interdependência do coletivo - expressão do "divino social" - somente se viabiliza através do ritual realizado pelo conjunto da irmandade.

Dentro deste contexto, a função dos hinos é a de restabelecer o contato com as Entidades Divinas, ora para receber suas mensagens, ora para invocar suas presenças no ritual. A música 21 “Peia”: expressão utilizada pelos adeptos para designar certa sensação de mal-estar provocada pela ingestão da bebida, durante os rituais. É uma reação orgânica que ocorre, eventualmente, por alguns participantes do culto, sendo considerada como um fato normal, geralmente atribuído ao despreparo da pessoa ou ao descumprimento das regras necessárias à participação nos rituais. Esse mal-estar pode ser acompanhado por vômitos e/ou diarréias, que são entendidas como uma forma de purificação e limpeza do corpo. Essa experiência também é considerada por eles como parte integrante do processo de aprendizagem e de desenvolvimento espiritual de cada um.

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e a dança, com tom monocórdico e movimentos repetitivos, pela monotonia e redundância, acabam produzindo um efeito de “distanciamento mental” da situação, propício para o surgimento de um espaço para a “viagem” do pensamento. Seu papel é o de facilitar a ação da bebida pela possibilidade de controle da ansiedade em que se encontram os participantes do rito, e também das possibilidades de alteração dos estados de consciência. Uma vez controlada a ansiedade, tem início a concentração coletiva do pensamento através da palavra dos hinos e da harmonia musical: os únicos pontos de referência mais concretos nessa “viagem astral”. É como se, durante os rituais, o Templo se transformasse numa nave, conduzida pelo comandante através da seleção de determinados hinos e da ordem em que os entoa, pois é a composição de cada hinário que orienta a direção básica a ser percorrida em cada Trabalho. A cada período de mais ou menos duas horas faz-se um breve intervalo para tomar mais Daime. Como os Trabalhos Oficiais têm uma duração de cerca de doze horas (começando normalmente entre as 18 h. e 20 h. e terminando entre 6 h. e 8 h. da manhã do dia seguinte), esse longo período de duração pode ser visto como uma espécie de “provação” da firmeza dos participantes; como uma espécie de sacrifício aos deuses, estabelecendo uma relação entre o início da noite (representando a morte, o caos, a escuridão dionisíaca) e o amanhecer de um novo dia (significando um renascimento espiritual para uma nova ordem, um Cosmo renovado), analogamente associada a uma batalha entre a desordem da escuridão e as luzes da ordem cósmica.

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O Astral como “locus” sagrado do encontro

Para os devotos do Santo Daime, esta bebida abriga uma Entidade Sagrada em seu interior, cujo nome é Juramidam, o Senhor supremo desse Panteon amazônico, juntamente com a Virgem da Conceição. Sua imagem é diretamente associada à de Jesus Cristo que, por sua vez (como afirmam os daimistas), teria em Mestre Irineu um de seus Avatares. Essa crença é reafirmada por uma das explicações existentes à respeito da adoção da Cruz de Caravaca como um dos símbolos da Doutrina (a cruz de dois braços horizontais). O segundo braço da cruz simbolizaria a segunda volta de Cristo à Terra, na figura de Mestre Irineu.

O Mestre Império Juramidam habita o grande palácio do Astral, a Morada do Pai Eterno, fonte da luz primordial, da divina beleza e do prazer celestial. Contudo, essa imagem somente é considerada em sua plenitude quando inclui seus adeptos, como seu "povo eleito". Segundo o padrinho Sebastião, "Jura" representa a Entidade (o próprio Cristo) e "Midam", o seu povo aqui na Terra. Juramidam tem missão divina de expandir essa doutrina por todo o mundo, propiciando a salvação daqueles que ouvirem seu chamado e se alinharem nas fileiras de seu exército. Pode-se supor que esse fato demarca a passagem do culto como forma de resistência cultural para uma outra etapa, caracterizada pelo caráter expansionista adquirido com o padrinho.

Esse "Ente Superior" é o comandante das luzes e das trevas, da palavra e do conhecimento. Em uma palavra: é o Criador. Seu império situa-se no "alto astral", região que pode ser visitada durante as “mirações” e onde habitam todos os seres divinos, desde santos da igreja católica, passando pelas forças elementais da natureza, até chegar a incluir os espíritos ancestrais e os desencarnados. De lá, atravessando várias outras regiões inferiores do astral, esse império espraia-se sobre alguns pontos do planeta, onde reside o seu povo.

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Desta forma, o astral caracteriza-se como um "locus" sagrado: a "eterna Jerusalém". Ou melhor, o Olimpo onde habitam os seres divinos, uma vez que existe uma profusão eclética de entidades, organizadas hierarquicamente , sob o comando de "Juramidam". Em várias entrevistas realizadas com os adeptos surgiram descrições do astral em que aparece um palácio de cristal com um grande portal de onde partiam luzes intensas, ora de cor violeta, ora de cor verde, ora ainda, de cor dourada, que ofuscavam a visão. Nenhum dos entrevistados afirmou ter penetrado em seu interior, insinuando-se com isso que seu acesso é vedado aos simples mortais. Lá dentro devem circular a Virgem da Conceição, o próprio Cristo, Buda, São Miguel, Krishna, Tintuma, Agarrupe e Titango, os preto-velhos e todas as demais entidades espirituais.

Na outra extremidade desse lugar, situa-se o espaço das trevas e das sombras. É lá que residem os seres malignos e demoníacos. Às vezes, é descrito como um lugar que emite luz vermelha de pouca intensidade, produzindo penumbra e frio. Às vezes, chama intensa e muito calor, acompanhado de sensações de asfixia e desfalecimento, sentimentos de medo e sofrimento. Entre um e outro extremo, haveria uma zona intermediária, caracterizada pela indefinição de formas, ambigüidade de sentimentos, onde a mente ficaria a deriva em relação ao tratamento das questões mais profundas e relevantes de cada um. Nessa zona, o ego ainda se faria presente, tentando controlar e entender racionalmente a experiência.

Segundo os daimistas, se a pessoa resistir aos efeitos do Daime, tentando bloquear seus efeitos e estes conseguem se impor, o que se segue, geralmente, é uma grande "peia". Se, ao contrário, a pessoa consegue resistir aos seus efeitos e não "mira", diz-se que perdeu a grande chance de conhecê-Lo. Quanto a esse aspecto, a doutrina sugere que se deve confiar no Daime, entregando-se sem medo; pois, agindo assim, a pessoa será conduzida aos mais belos lugares, ao mais "alto astral".

Sintetizando o que foi exposto até o momento, a concepção que emergiu das entrevistas realizadas durante os estudos sobre a

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doutrina do Santo Daime revela a existência de determinadas crenças: uma dada concepção de alma, uma dada interpretação das experiências de morte/renascimento, a crença na possibilidade de possessão espiritual, a possibilidade de realização do Vôo da alma e, invariavelmente, uma leitura religiosa e fantástica de todas essas vivências.

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Mitos e mitologias do sacrifício

Para se compreender os mitos no culto ao Santo Daime, seria interessante resgatar algumas referências e reflexões sobre os mitos e a própria mitologia. Por outro lado, os próprios rituais do Santo Daime colocam outro foco de discussão nas possibilidades de compreensão de determinados processos vivenciados pela psique, através do recurso aos “estados alterados de consciência”22 (cf. Stanislav Grof: 1985) induzidos, controlados e legitimados pelo pensamento mágico-religioso. É de Andrew Weil (1986) a idéia de que, desde a infância (com a utilização de brincadeiras cinestésicas, por exemplo), o homem busca, das mais diferentes formas, alterar seu estado de consciência através do uso de técnicas ou substâncias que possibilitam conhecer a realidade para além da atividade exclusivamente intelectual. Segundo ele, esta questão somente se torna um problema, quando nossa cultura fracassa em satisfazer tal necessidade básica.

Em última instância, esses procedimentos implicam um processo de reconhecimento que requer um grande esforço no sentido de realizar um mergulho nas instâncias mentais mais profundas de cada indivíduo. Para os índios Tucano, por exemplo, tomar a Ayahuasca assume o mesmo significado ritual da prática do incesto, no sentido de que, conforme Reichel-Dolmatoff23, representa o ato de comer da própria carne. Isto é, tem o sentido de penetrar o inconsciente em busca do conhecimento das origens do mundo e do próprio homem. Em busca de respostas às questões básicas da existência humana: o prazer e a dor, a vida e a morte.

São vários os relatos etnográficos que, de certa forma, corroboram essa afirmação e podem ser observados através das práticas culturais que buscam, a partir da alteração da

22 Cf. conceito de “abreação”, exposto por Lévi-Strauss (1958) no texto intitulado “O Feiticeiro e sua

Magia”. Ou, ainda, conforme Grof (1985) e sua abordagem da psicologia transpessoal. 23 Reichel-Dolmatoff, G. “O Contexto Cultural de um Alucinógeno Aborígene: Banisteriopsis Caapi”. In Coelho, V. Penteado (org.), Os Alucinógenos e o Mundo Simbólico. Ed. E.P.U./EDUSP. São Paulo:1976.

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consciência, outras formas de conhecer a realidade. Sabe-se, por exemplo, que entre os índios do Alto Amazonas (Kampa, Kulina, Katukina, Kachinawá, etc.) Dentre eles, vale citar o relato de uma das versões da origem mítica da bebida, vigente entre os Tucano do rio Uaupés. Este mito relata que:

"...apareceu uma mulher chamada Ghapí Mahsó, a mulher Yagé. Enquanto os homens estavam no interior da casa bebendo chicha, fora a mulher deu à luz e a criatura nascida era o cipó Yagé. A mulher levou a criança para o interior da casa, o que causou grande consternação entre os homens. A criança tinha forma humana. Mas, diz o mito: '...a criança tinha forma de luz, era humana, porém era luz, era Yagé.' Ao ver a criança, os homens ficaram como que intoxicados, porque '... a mulher os afogou com visões.' A mulher perguntou: - ' Quem é o pai desta criança?' Um homem que estava sentado a um canto e de cuja boca gotejava saliva, arrancou o braço direito da criança e disse: 'Sou eu'. Os outros fizeram o mesmo; agarraram a criança, despedaçaram-na e dispersaram seus membros. 'Agarraram o cordão umbilical', diz o mito, e assim `nossos progenitores obtiveram o Yagé’.”24

E, a cada vez que tomam o chá desse cipó é como se comecem da própria carne, entrando em contato com o que há de mais profundo no inconsciente. Reatualizando na memória o momento e os movimentos fundadores da primeira separação. Aquele que deu origem à cultura, à linguagem, ao pensamento e à própria psique. Segundo Reichel-Dolmatoff, a partir das informações dos “nativos”, essa criança seria fruto de uma relação incestuosa entre o pai Sol e sua própria filha, a Lua.

São vários os exemplos etnográficos que, de certa forma, corroboram essa afirmação e podem ser observados através das práticas culturais que buscam, a partir da alteração da

24 Reichel-Dolmatoff, G. – “O Contexto Cultural de um Alucinógeno Aborígene: Banisteriópsis Caapi”. In Penteado Coelho, V. (org.) - Os Alucinógenos e o Mundo Simbólico. Ed. E.P.U./EDUSP. São Paulo: 1976. Pgs. 70/79

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consciência, formas de conhecer a realidade. Sabe-se, por exemplo, que entre os índios do Alto Amazonas (Kampa, Kulina, Katuquina, Kaxinawá e tantos outros) é tradicional o uso da Ayahuasca com a finalidade básica de conhecer características e intenções dos inimigos em situação de guerra, os territórios e as características dos animais destinados à caça e as causas e tipos de tratamento das doenças, configurando-se como uma forma oracular de utilização da bebida. Ou seja, seu uso se destina a obter conhecimentos que permitam superar as ameaças à sobrevivência do grupo (guerra, caça e doenças) fornecendo, ao mesmo tempo, um sistema simbólico capaz de dar sentido, organizar, orientar suas ações e legitimar sua própria existência. Sempre e em toda parte, seu uso está relacionado a um conhecimento prévio e mais amplo de situações que possam causar ameaças, quer à vida de um dos membros em particular, quer à sobrevivência de toda a coletividade.

Nessas circunstâncias, o uso de outros estados de consciência está vinculado a um dado contexto cultural e religioso. Tem um espaço definido dentro da forma mítica de pensar a realidade, exercendo a função de atribuir-lhe significados. O que exige conhecimento prévio e mais amplo de situações que possam causar ameaças, quer à vida de um dos membros em particular, quer à sobrevivência de toda a coletividade. O mito fala por metáforas e deve ser interpretado por meio de um código de leitura. Dentre as várias definições de mito existentes, cada uma opera com seu código próprio. Para incitar o debate cito, como exemplo clássico, a definição proposta por Junito de Souza Brandão, para quem:

"...mito é o relato de um acontecimento ocorrido no tempo primordial, mediante a intervenção de entes sobrenaturais."25

Dentro dessa perspectiva de análise, os relatos míticos podem ser considerados como mensagens transmitidas pela tradição oral, através de imagens e cenas arquetípicas (cf. Jung), como 25 Brandão, J. S. – Mitologia Grega. Ed. Vozes – vol. 1. Petrópolis: 1987. Pgs. 34-35.

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forma de explicação do mundo e do próprio homem. Ser o agente mediador dessas mensagens, dispondo-se a penetrar no universo espiritual a fim de buscar soluções para as aflições humanas é a grande tarefa reservada aos xamãs e curandeiros em geral. Dentro dessa perspectiva, pode-se dizer que, com os mitos, os deuses tentam nos ensinar como viver e como morrer.

De acordo com essa concepção, seria correto afirmar que as mirações no culto ao Santo Daime são manifestações do inconsciente. Elas transmitem imagens paradigmáticas que se situam no limiar entre as experiências individuais e as injunções do pensamento coletivo. Podemos afirmar, como diz Campbell, que:

"...o sonho é o mito personalizado e o mito é o sonho despersonalizado; o mito e o sonho simbolizam, da mesma maneira geral, a dinâmica da psique."26

Trata-se de um código que fornece pistas para enfrentar os perigos durante a trajetória iniciática. Os ritos de passagem constituem-se assim, na representação simbólica desse percurso. Novamente, segundo Campbell:

"...rituais de passagem, separação, iniciação e retorno podem ser considerados a unidade nuclear do monomito."27

Quer seja realizado pelos deuses, quer seja realizado pelos heróis, esse caminho refere-se à busca de uma outra ordem de conhecimentos do mundo e do homem. Na verdade, a jornada heróica é uma representação daquilo que se está buscando internamente: o conhecimento da unidade na multiplicidade. Por isso não há final feliz, já que não se pode negar a desintegração, o desmembramento ou a crucificação. Em outras palavras - a morte: sentido trágico da existência humana.

Outro aspecto interessante em relação ao mito de origem do Yagé entre os Tucano, relacionado à cena do desmembramento

26 Campbell, J. – O Herói de Mil Faces. Ed. Cultrix/Pensamento. São Paulo: 1988. Pg. 27. 27 Idem. Ibidem. Pg. 36.

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da criança e ao ato antropofágico praticado por seus ancestrais. A narrativa do nascimento do menino Yagé revela a existência de uma analogia muito forte com os mitos de origem de diversas religiões, desde a antigüidade clássica ao cristianismo.

Segundo Brandão, tanto o desmembramento quanto o cozimento são os elementos fundamentais desse mito e de suas inúmeras variações. Como veremos, o cozimento, que implica uma passagem pelo fogo, é uma operação mágica que representa a purificação associada à outorga de dons especiais, inclusive a imortalidade. Segundo Mircea Eliade, o cozimento e passagem pelo fogo caracterizam as iniciações xamânicas. No mito de Dioniso, os Titãs cumpriram o papel de mestres que "matam" aquele que não sabe, afim de que ele possa "renascer" em uma condição superior, com a consciência elevada.

Quando o homem toma consciência do seu modo de ser no mundo e de como fazer para ser, ele toma, ao mesmo tempo, uma decisão trágica. A descoberta da agricultura (domínio de Dioniso), é relacionada, por alguns povos, a um homicídio primordial. Quem nos fala sobre o mistério do sacrifício é Mircea Eliade:

"...Um ser divino foi morto, esquartejado e os pedaços do seu corpo deram nascimento a plantas desconhecidas até ali, sobretudo a tubérculos, que depois desse tempo passaram a constituir o alimento principal dos humanos. Mas para assegurar a próxima colheita é preciso repetir ritualmente o primeiro homicídio. Dai o sacrifício humano, o canibalismo, bem como outros rituais por vezes cruéis."28

Perseguindo a trilha de Eliade, pode-se estabelecer uma nova analogia estrutural, desta vez, relacionada ao canibalismo simbólico praticado a partir do consumo ritual da bebida no culto ao Santo Daime. Já que, também para os adeptos, a bebida simboliza o sangue e o corpo de Cristo, colocando-se como expressão da metamorfose do pão e do vinho nos rituais

28 Eliade, M. – A Provação do Labirinto. Publicações Dom Quixote. Lisboa:1987. Pgs. 90-92.

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cristãos. O mistério do sacrifício, ou do desmembramento, diz respeito à permanência da vida no tempo. E, é isso que é celebrado tanto na tragédia grega, quanto nos ritos Dionisíacos ou nos trabalhos do Santo Daime. O Dioniso sofredor dos mistérios (tal como Cristo, ou o menino Yagé) é o Deus que vive na própria carne a individuação. Os Tucano de diferentes fratrias utilizam, cada qual, determinada parte do cipó para a fabricação da bebida. Cada grupo toma o chá feito das partes correspondentes ao pedaço da criança devorado por seu ancestral durante a cena mítica descrita; fato que demarca a identidade mística de cada fratria em relação às demais. O sacrifício sagrado resgata, restaura, reorganiza a experiência

Quanto a esse aspecto, é interessante relatar um evento presenciado durante os trabalhos de campo na comunidade do Céu do Mapiá. Dentre os rituais de "cura espiritual" observados, destacou-se um que, em função de suas particularidades, demonstra de maneira exemplar, a eficácia simbólica do sacrifício primordial como resgate da ordem cultural.

Numa tarde de maio de 1989, chega à comunidade do Mapiá uma canoa vinda de Boca do Acre, trazendo alguns doentes da região em busca de cura. Entre eles havia um rapaz - de nome Raimundo (com mais ou menos vinte e cinco anos), que chegou acorrentado, trazido por seus irmãos. Do ponto de vista psiquiátrico, possivelmente, apresentava um quadro que seria caracterizado como de surto psicótico.

Não era necessário possuir muita sensibilidade para perceber que estava com a personalidade completamente desestruturada; era visível sua desordem mental e emocional. Soube-se, mais tarde, que ele havia passado dois dias perdido na mata, fugindo de seu melhor amigo. Este, pretendia matá-lo, após uma briga entre ambos. Quando foi encontrado, estava em estado de choque e já não tinha, sequer, a possibilidade de dialogar com as pessoas.

Foi levado à presença do pd. Sebastião que, imediatamente deu início à uma seqüência de três Trabalhos de Cura de São Miguel; estes, deveriam ser realizados em três dias consecutivos. No

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primeiro deles, esse rapaz manteve-se da mesma forma como havia chegado: gritando, se batendo e agindo de maneira incontrolável. Foi um trabalho cheio de interrupções e todo esforço despendido foi praticamente inútil para contê-lo e acalmá-lo. Na segunda noite de trabalho, embora ainda não fosse capaz de dialogar com as pessoas, já não gritava e nem se debatia mais, adotando uma postura mais calma, incomparável à da noite anterior.

No dia seguinte, o padrinho suspende o último trabalho e o manda participar da matança e esquartejamento de um boi (fato muito estranho, principalmente quando realizado no meio dos trabalhos de cura, particularmente, em função das prescrições alimentares). Para espanto de muita gente, todo ensanguentado e de faca e machete em punho, Raimundo ajudava a esquartejar o boi no centro da vila. Naquela noite não houve trabalho.

Finalmente, na quarta noite tem início o terceiro e último trabalho da série. Naquela noite concluiu-se o ciclo, juntamente com o processo de cura do rapaz. O fato é que, alguns dias depois, Raimundo conversava normalmente, relatando-me o motivo pelo qual havia entrado em surto. O mais impressionante dessa história foi o curto espaço de tempo que o rapaz levou para sair daquele processo. Diferentemente do que ocorreria caso fosse, por exemplo, internado numa clínica psiquiátrica. Fato que sugere a eficácia do procedimento terapêutico adotado pelo padrinho.

Vários outros casos de cura coletados apresentam-se como evidências de que os estados alterados de consciência permitem lidar satisfatoriamente com o campo de tensões gerado pelas forças desagregadoras da personalidade em confronto com as forças organizadoras e regeneradoras dos tecidos traumatizados (tanto individuais, quanto coletivos). E, fazem isso através da reatualização simbólica do sacrifício primordial.

Pode-se dizer que a sabedoria espiritual do padrinho Sebastião permitiu que Raimundo revivesse o mito do esquartejamento como representação simbólica da purificação, resultando no "mistério" da cura. O reencontro de Raimundo consigo mesmo,

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seu reconhecimento foi possível a partir do contato com arquétipos re-vividos através de um rito ancestral. Foi reconhecendo suas próprias forças instintivas, contatando-as e expressando-as, que se tornou possível sua re-integração interna e externa.

O homem que é arrebatado pelo êxtase se transforma num outro homem, diferente do que era no seu mundo cotidiano. No mundo cotidiano o esquema trágico é o do homem que caminha, mas não extrapola seus próprios limites humanos; torna-se herói e encontra seu destino na condição heróica, porém humana.

Para compreender o êxtase sagrado o esquema trágico adotado é outro. Trata-se do sair de si-mesmo como forma de comunhão com o divino. Aqui, o herói sai de seus limites. Elimina a distância entre mortais e imortais. Portanto, esse tipo de experiência religiosa pode tornar-se uma ameaça aos valores da moderação e do comedimento. São experiências que se apresentam como um insulto a todo um estilo de vida, a todo um determinado conjunto de valores - o do "conhece-te a ti mesmo".

Pois, no sentido aqui exposto, conhecer é mais que aprender os segredos, é decifrar mistérios. E, conhecer a origem - do mundo, de si próprio - fazendo com que se adquira um poder mágico sobre as coisas. No rito, a Palavra - os hinos – transformam-se em Verbo. Fora do rito são simples versos com construção literária "naif". Seu significado ritualístico está intimamente relacionado com a Enunciação - a palavra proferida - aproximando-os, enquanto função, do coro das tragédias gregas.

O papel central dos hinos no Santo Daime está relacionado à própria música enquanto linguagem universal, através da qual podemos nos comunicar com os deuses. Ela é a forma que orienta a experiência e induz as mirações, invocando as cenas arquetípicas vividas durante os rituais (com a vivência do prazer, até na dor do conhecimento). O ir para além do que os olhos são capazes de captar. O ouvir para além do que os ouvidos podem fazê-lo, são estados extáticos que possibilitam a abreação (a experiência do contato da consciência com o trauma original), através da desconstrução/reconstrução da experiência

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traumática e de seus significados, tanto no plano individual, quanto no plano coletivo.

Conclusão Antes de concluir, gostaria de lembrar que a busca de experiências com os estados alterados de consciência é antiga e nem sempre foi considerada "problemática", como têm demonstrado os vários estudos etnológicos à respeito29. Ao contrário, existem inúmeros exemplos de culturas e religiões que - lançando mão de diferentes técnicas ou usando diversas substâncias psicoativas - estruturam seu ethos em torno do êxtase, como canal de contato com o universo sagrado.

29 Consultar, desde as obras de Sir James G. Frazer, B. Malinowski, Marcel Mauss, passando por Mircea Eliade e Claude Lévi-Strauss, até as mais recentes obras, organizadas por Michael Harner e outros.

Bruce Lamb (1985), por exemplo, descreve uma narrativa que coletou na Amazônia Peruana, tendo por protagonistas, de um lado, os Huni Kui (da nação Amahuaca) e, de outro, Manoel Córdova-Rios (um seringueiro peruano). Da parte que nos interessa, esse povo faz uso ritual da Ayahuasca, tradicionalmente, com três finalidades estratégicas bem definidas: vencer os inimigos em caso de guerra, obter abundância na caça e curar as doenças dos membros do grupo. Essas finalidades tem em comum o fato de se apresentarem como possibilidade de superação de uma ameaça vital à sua existência. Da mesma forma, é o que pode ser observado em relação à conduta das comunidades que cultuam o Santo Daime. Tais fenômenos são encontrados em culturas dispersas por todos os continentes e em diferentes períodos históricos. Somente no continente americano podemos citar o caso dos Quechua (que fazem uso milenar da Coca), dos Amahuaca (com a própria Ayahuasca) e dos Huichol (com o uso do Peyotl), para citar apenas alguns exemplos.

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Então, se o problema não está na "droga" em si, onde se localizaria a questão? Estaria ela na estrutura familiar, ou no processo de organização da personalidade do indivíduo? Na estrutura econômico-social? Na ordem cultural da modernidade? Ou em todos esses fatores simultaneamente? Talvez aqui possamos encontrar a origem de nossos fantasmas, de nossos medos, de nossos "estranhamentos". Diante da complexidade dessas questões, penso que não seria correto pensar em soluções baseadas, exclusivamente, na classificação de substâncias químicas (a esfera orgânica), sem levar em consideração a esfera mental (a psique) e a esfera cultural (o contexto de uso). Pois, como espero ter demonstrado, uma droga não pode ser considerada intrinsecamente benéfica ou maléfica, sem que se leve em consideração o contexto bio-psico-cultural em que é consumida. De qualquer maneira, o fenômeno do Santo Daime apresenta-se como uma importante oportunidade para se repensar os aspectos biológicos, psíquicos e religiosos envolvidos na questão, situando-se como um dos paradigmas das diferentes formas culturais de se lidar com os estados alterados de consciência. Oferece-se como um contraponto à maneira “tradicional” de encarar a relação com os psicoativos e de tentar evitar os problemas advindos do uso indevido dessas substâncias.