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Página 1 de 56 A ESCOLHA (título 1) ou O DESEMBESTADO (título 2) ARIOVALDO MATOS Sala de um apartamento classe média: duas janelas, a porta que dá para a cozinha, outra que comunica com o hall. Percebe-se que, fora, na rua, anúncios a neon se acendem e se apagam, intermitentemente. Atrás de um biombo é bom que seja verde e que tenha flores impressas surgem um homem e uma mulher, ela de robe, recompondo o cabelo. O homem abotoa a camisa. A sugestão é a de que eles estiveram no quarto e se amaram. Ele a beija na nuca, ela levanta os ombros: teme ser excitada. Acomodam-se, em seguida, sobre um tapete grosso, branco, de nylon. São eles o Sr. Albano, de uns 30 anos, funcionário público, e a Sra. Zulnara, doméstica, de 25 anos, sua esposa. ZULNARA . . . você garante, meu bem? Você garante que o que fizemos não é pecado? ALBANO Garanto. ZULNARA Posso contar a Dom Plácido? ALBANO Como é que é? ZULNARA Perguntei se. . . ALBANO Não! E acabe de vez com esse hábito de contar tudo a Dom Plácido e a Madre Elisa. (Querendo ser convincente) O que se passa numa alcova, meu bem, não deve ser contado a quem quer que seja. E ninguém deve ver. ZULNARA Você jura que nós não pecamos? ALBANO Juro (Querendo mudar de assunto, forçando o riso) Posso

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A ESCOLHA (título 1) ou O DESEMBESTADO (título 2)

ARIOVALDO MATOS

Sala de um apartamento classe média: duas janelas, a porta que dá para a

cozinha, outra que comunica com o hall. Percebe-se que, fora, na rua,

anúncios a neon se acendem e se apagam, intermitentemente. Atrás de um

biombo — é bom que seja verde e que tenha flores impressas — surgem um

homem e uma mulher, ela de robe, recompondo o cabelo. O homem abotoa

a camisa. A sugestão é a de que eles estiveram no quarto e se amaram. Ele

a beija na nuca, ela levanta os ombros: teme ser excitada. Acomodam-se,

em seguida, sobre um tapete grosso, branco, de nylon. São eles o Sr.

Albano, de uns 30 anos, funcionário público, e a Sra. Zulnara, doméstica,

de 25 anos, sua esposa.

ZULNARA — . . . você garante, meu bem? Você garante que o que

fizemos não é pecado?

ALBANO — Garanto.

ZULNARA — Posso contar a Dom Plácido?

ALBANO — Como é que é?

ZULNARA — Perguntei se. . .

ALBANO — Não! E acabe de vez com esse hábito de contar tudo a Dom

Plácido e a Madre Elisa. (Querendo ser convincente) O que se passa numa

alcova, meu bem, não deve ser contado a quem quer que seja. E ninguém

deve ver.

ZULNARA — Você jura que nós não pecamos?

ALBANO — Juro (Querendo mudar de assunto, forçando o riso) Posso

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ligar a televisão?

ZULNARA — (Surpresa com a proposta) E a história? Você não quer

ouvir o resto da história?

ALBANO — (Disfarçando a má vontade) Sim, meu bem, claro que quero

ouvir o resto da história. Vá, conte. . .

ZULNARA — Foi em Roma, ano de 1591. Roma já era, então, a luminosa

capital do mundo católico. . .

ALBANO — (Interrompendo) Isto você já contou, meu bem. Você parou a

história quando aconteceu a epidemia de lepra.

ZULNARA — Não foi lepra, Albano: foi peste! Foi um surto de peste,

uma coisa horripilante!

ALBANO — Me perdoe, meu bem. Você tem razão: eu pensei peste, mas

disse lepra. Às vezes me acontece isto: penso uma coisa mas, na hora de

falar, digo outra.

ZULNARA — Era mesmo um espetáculo horrível. Os miasmas dos

moribundos evolavam de toda a parte. Os cadáveres, nas ruas, eram

incontáveis. Nuvens, provenientes das fogueiras, tapavam o azul do céu.

(Com ênfase). Dir-se-ia que a ira do Senhor, contra os pecadores, não teria

mais fim. (Com ternura), Foi quando apareceu o divino São Luiz, lindo e

Santo. Ele era estudante do Seminário e Madre Elisa conta que as feições

dele eram delicadas, que ele era um rapaz muito gracioso e gentil.

ALBANO — (Controlando-se: não quer ofendê-lo) Se apresse, meu bem

estamos quase no horário da novela. . .

ZULNARA — (Um pouco amuada) Se a novela é mais importante...

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ALBANO — As duas coisas são importantes, meu bem. Se você se

apressar um pouco...

ZULNARA — Eu não sei me apressar. As histórias dos Santos não devem

ser apressadas.

ALBANO — Meu bem, não se zangue comigo. Conte a história. É claro

que entre a história e a novela eu prefiro a história. Que seria de nós sem o

imorredouro exemplo dos Santos? (É luxurioso: fala e acaricia Zulnara).

ZULNARA — (Em estado de beatitude) Um dia, naquela cidade de Roma

assolada pela peste, São Luiz, desprezando a proteção do Seminário, saiu a

cuidar dos enfermos, sofrendo a dor de cada um, compreendendo o medo

dos covardes, exaltando a coragem dos simples, assim provando que era

um dos eleitos de Deus. E desse modo, trabalhando, ao lado dos enfermos,

enterrando os mortos, consolando os que temiam e choravam, a peste o

alcançou e ele ficou doente também. Era Deus que o punha à prova. Era

Deus que queria sua companhia. Era Deus que não mais o desejava entre

tantos pecadores e o chamava. E ele, o divino São Luiz caiu ao lado

daqueles que estivera a tratar, a consolar, a enterrar, e caiu sem um

resmungo, sem uma lamúria contra o glorioso destina que Deus Nosso

Senhor lhe concedera. Padeceu semanas, meses, o pobrezinho, e um dia,

mártir da caridade cristã, morreu com apenas 23 anos. . .

ALBANO — (Entre a admiração e o sarcasmo) Apenas 23 anos, que

belíssimo destine!

ZULNARA — (Gloriosa) Sim, morreu com apenas 23 anos, mas já estava

madurinho para as serenas delícias dos reinos do céu.

ALBANO — Já sei o resto da história: tempos depois ele foi canonizado e

se tornou Santo. Certo?

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ZULNARA — Sim, meu bem: ele foi canonizado. Ele é Santo. Não e uma

linda história?

ALBANO — Lindíssima. (Apressado) Posso ligar a televisão?

ZULNARA — (Impede que Albano se levante) — Muitas vozes ouvi, dos

lábios de Madre Elisa, a história de São Luiz. Amanhã, meu bem, contarei

a história de Santo Anastácio. . . Ah! meu bem, Madre Elisa, ela sim é que

sabe contar uma história de Santo e ainda que eu tente imitá-la, não consigo

além do que um pouquinho. Sua voz é meiga, doce, persuasiva. . .

ALBANO — (Tenta levantar-se de novo, Zulnara o impede) Há também

meiguice e doçura em sua voz. Posso ligar a televisão?

ZULNARA — Eu queria dizer que Madre Elisa é quase uma santa.

ALBANO — E você, meu bem, você é um anjo adorável Posso ligar a

televisão?

Enquanto Zulnara responde afirmativamente, com gesto de cabeça, mas

sem interesse (ela pensa na Madre Elisa. . .) Albano levanta-se, beija-a ,na

testa, e olha para o aparelho de TV: tem pressa em ligá-lo. Soa, porém, a

campainha — alguém esta na porta. Albano marcha para a porta, abre-a e

mal o faz um homem entra na sala, expansivo, alegre, é Tancredo:

Tancredo Batista d’Almada.

TANCREDO — Nem uma palavra, irmão! Antes de tudo, um grande

abraço! Zorra, irmão, que alegria ver você novamente! Eu estava, ontem,

no Rio, numa farra pré-comemorativa porque a farra da comemoração será

hoje — estava na referida farra e decidi: amanhã vou a São Paulo só pra ver

Albano, meu amigo/irmão. E vim!

ALBANO — Tancredo, amigo velho, é um prazer, é um imenso prazer!

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(Desejando ser agradável) E vejo que você engordou à bessa. Entre, vamos

ver televisão. .

TANCREDO — (Exultante) Estou gordo e rico, Albano. Na verdade,

estou mais do que rico: estou riquíssimo!

Zulnara não se move. Apreensiva, temerosa, repara no homem estranho e

conserta o robe um pouco descomposto.

ALBANO — (Intrigado) Você tirou na Loteria?

TANCREDO — (Mostrando-se surpreendido) Como é que é?

ALBANO — Perguntei se você acertou na Loteria. Acertou?

TANCREDO — (Um pouco azedo) Loteria, Albano? Eu, Tancredo

Batista, ganhar em Loteria? Você está me desconhecendo? Eu sempre não

disse, irmão, que isso de Loteria, de jogo do bicho, de sorteios, que essas

coisas são próprias para idiotas? Eu estou riquíssimo, irmão, porque

desembestei na vida e se esta noite aqui me encontro, nesta São Paulo

imensa, é porque quero que você desembeste também — e também fique

rico, riquíssimo . (Reparando em Zulnara) E ela? Quem é ela?

ALBANO — (A mão direita no ombro de Zulnara, com certa solenidade)

Minha esposa, Tancredo. Me casei, há dois meses. . ,

TANCREDO — Casamento com papelório, com padre, essa coisa toda

ou...

ALBANO — (Interrompendo) Me casei com a proteção da Santa Madre

Igreja e com muito amor, Tancredo, um amor de que nunca me julguei

capaz (Delicadamente abraça Zulnara). Eu mudei muito, Tancredo, desde

a última vez que nos vimos. Eu mudei da água para o vinho. E Zulnara,

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devo dizer a você. . .

TANCREDO — (Interrompendo) Não me diga mais nada, irmão! Nem

uma palavra mais! Eu, nisso de casamento, sou da lei antiga: casou?, bem,

sua alma, sua palma. Mais ainda, como dizia Mamãe Batista: em coisas de

marido e mulher o certo é não meter a colher. Quer dizer: casou, tá casado,

quem vai prá chuva é prá se molhar. (Sorrindo, os braços estendidos, para

Zulnara) E quanto à senhora, Madame, venha de lá e me dê um

abração/amigo! (Zulnara, timidamente, encolhe-se de encontro a Albano;

ela teme esse estranho que lhe invadiu o lar) Não tenha medo, pelo amor

de Deus. Você é mulher de Albano, logo é minha irmã, irmã aqui no peito,

ó, no peito mesmo, no mais dentro do coração. Dá cá esse abração/amigo!

ZULNARA — Ainda não tive o prazer, senhor. . .

TANCREDO — Besteira! Não há prazer nem desprazer. O que há é

irmandade, muita irmandade. . .

ALBANO — Ela é tímida, Tancredo, é muito tímida.

TANCREDO — Isto acaba, timidez é um troço que acaba. Haja

necessidade grande e não haverá timidez. (A Zulnara, narrando) Eu

também, no começo, era um tímido. E tanto, Madame, que Albano teve

coragem de vir para São Paulo, me convidou, insistiu, quis pagar minha

passagem, mas eu disse: não, Albano, irmão, eu não vou. E não vim e ele

veio e eu fiquei mofando na Bahia ... ,

ALBANO — Entre, Tancredo. Entre e sente-se.

TANCREDO — (Não ouve Albano) . . . mofando? Sim, exatamente isto,

mofando (Com ênfase, para Zulnara), apodrecendo. Porque eu era tímido,

Madame. Porque eu era então um medroso, um Maria-vai-com-as-outras.

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(Gestos de quem deseja crescer, voar) Mas em mim, Madame, em mim

fervia e refervia uma ambição medonha (Gritando) e um dia eu mandei a

timidez e o medo prá puta-que-os-pariu (Em Zulnara o palavrão vibra

como um soco) e desembestei na vida e fiquei rico. Riquíssimo!

ALBANO — (Algo irritado) — Modere sua linguagem, Tancredo.

TANCREDO — Riquíssimo? Eu disse riquíssimo? Besteira minha, estou é

arqui-milionário! Super-milionário! Americanamente rico! E vocês vão

ficar ricos também. (Para Zulnara, os braços estendidos, querendo ser

delicado) Me dê este abraço de amiga e de irmã.

ALBANO — Zulnara não tem o hábito de amizades masculinas, Tancredo,

mas eu creio que com o tempo. . .

TANCREDO — (Ainda para Zulnara) Não tenha medo de mim, Madame,

nem desse meu jeito: é que hoje eu estou comemorativo às pampas! Hoje

eu comemoro o décimo aniversário da morte de Tancredo Batista d’Almada

o outro que eu fui, o outro que não existe mais e tanto não existe, Madame,

que hoje sou apenasmente Tancredo Batista, sem o d’Almada e este Batista

fica aí, a me argolar, porque Mamãe Batista ainda é viva. . .

ALBANO — (Tentando mudar de assunto) Ela está bem de saúde, dona

Ermelinda?

TANCREDO — (Severo) Está. (De novo excitado) Mas um dia ela capota,

porque afinal todos nós temos de capotar, e nesse dia, eu arranco de cima

de mim este Batista, meto no lugar um Silva, um Jambeiro, um Carvalhal

— e bola prá frente, Madame! e pé na taboa! (Para Albano) Me arranje um

uísque aí, puro, sem gelo, sem água, nada de frescuras, um uísque puro!

(Para Zulnara) Isso de eu embirrar com nomes não parece uma maluquice

minha, um endoidecimento? Mas não é! Olhe aqui, me ouça: faz muitos

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anos, quando eu conheci na rua e depois no Colégio esse aí que hoje é seu

marido, eu disse comigo: Albano, bonito nome. Ele vai ser meu amigo. E

foi. E é. Ontem, e hoje e amanhã. Esse seu marido, Madame, é a verdura do

meu cozido (Caminha em direção a Zulnara) Me dê cá este abraço/amigo.

Até porque eu quero dividir com você toda minha alegria.

ALBANO — (Coloca-se entre os dois) Se acalme. . .

TANCREDO — (Irritado) Me acalmar? Por que eu devo me acalmar? A

quem machuca esta minha alegria? Ela machuca vocês?

ALBANO — Não é isto, Tancredo. É que você ainda não compreendeu o

modo de ser de Zulnara. . .

TANCREDO — E minha alegria? Será que vocês não podem compreender

minha alegria? Sim, sim, por que não? Sim, eu confesso que estou um

pouquinho tocado, mas um pouquinho só. E isto porque desde ontem que

eu não durmo. Saí da boate com minha comitiva e vim mandando braza

pelos caminhos. Porque estes são os dias da grande comemoração.

(Gritando) Morreu Tancredo Batista d’Almada! Viva Tancredo Batista!

(Segurando Albano) Diga a ela, irmão: é ou não é verdade que eu sempre

suspeitei do meu d’Almada? Vá, diga a ela. . .

ALBANO — (Ainda entre Tancredo e Zulnara) Na verdade você sempre...

TANCREDO — (Interrompendo) Sempre! Não foi assim? Sempre! Até

porque eu não sou de falsetas repentinas. (Paro Zulnara, multiplicando

gestos com as mãos) No entanto, Madame, creia em mim, eu hesitei muito

em jogar meu d’Almada fora, isso em respeito à memória do meu pai. Eu

pensava assim, meu pai vai ficar puto se eu jogar o d’Almada fora. . .

ZULNARA — (Interessada) Ficar o que, senhor?

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TANCREDO — (Sinceramente surpreendido com a indagação) Puto,

Madame, puto. Será que a senhora não sabe o que é um sujeito ficar puto

da vida?

ZULNARA — (Para Albano — ele olha Tancredo com raiva) Que coisa é

puto, meu bem?

TANCREDO — (Sem se dar conta da irritação de Albano, para ele) É

verdade, irmão, que ela não sabe?

ZULNARA — (Para Albano) Por que você não me responde, meu bem?

Que coisa vem a ser puto?

ALBANO — (Força o sorriso, quer que tudo pareça natural, com os

olhos pede a cumplicidade de Tancredo) é ficar zangado, aborrecido. . .

Essa palavra é folclore lá da Bahia.

TANCREDO — Folclore? Uma ova que é folclore! (Para Zulnara) Ó,

Madame, que coisa estranha é a senhora! (Para Albano) E você, irmão,

onde foi que você arranjou aqui a Madame?

ZULNARA — (Reagindo à ofensa) Arranjar, senhor? Albano não me

arranjou, senhor! (Para Albano, severa) Você me arranjou, meu bem?

ALBANO — Não, meu bem. Mas, compreenda, o que Tancredo. . .

ZULNARA — (Interrompendo) Em relação à minha pessoa você fez o

que, Albano?

ALBANO — Namorei você, meu bem.

ZULNARA — Muitos meses e sempre com as bênçãos de Dom Plácido.

Não foi assim, Albano?

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ALBANO — Dom Plácido não me autorizou?

ZULNARA — (Para Tancredo) Aí está, senhor: Albano não me arranjou.

Namoramos, noivamos, nos casamos, sempre sob a supervisão e com os

conselhos de Dom Plácido.

TANCREDO — Tudo isto é bobagem, Madame, Dom Plácido, plácido

dom, tudo isto é tempestade em copo d'água. Me dá na telha pensar que o

defeito da Madame é o de encasquetar nas palavras — e isto é tolice.

Porque as palavras isoladas não têm importância. Se uma palavra caminha

sozinha, ela não vale nada. As únicas palavras soltas que valem são as que

significam nomes de pessoas, nomes próprios, nomes! Por exemplo:

Praxedes. Ouça bem o nome: Pra-xe-des, uma bosta de nome.

ALBANO — Contenha-se, Tancredo!

TANCREDO — Não me contenho zorra nenhuma! (Para Zulnara) Ele foi

nosso colega, meu e de Albano. Praxedes de que, Albano?

ALBANO — Não me lembro.

TANCREDO — E dele, se lembra dele? Se lembra como a cara dele era a

cara da própria imbecilidade? (Para Zulnara) Era, Madame, creia em mim.

Quase sempre eu lhe dizia: mude de nome, Praxedes, mude de nome. E ele

mudou! Como tinha mania de coisas americanas ele passou a se chamar

Pritchard. Vejam vocês a diferença: Praxedes/Pritchard. E sabem o que

aconteceu? O bicho foi convidado para visitar os Estados Unidos, aprendeu

inglês, voltou com seu pé-de-meia em dólares, é tradutor da repartição,

abriu um colégio de ensinar línguas e hoje está mais do que remediado. Um

dia desses estará rico. E tudo por quê? Porque aceitou meu conselho.

Porque mudou de nome. Como é mesmo a graça da senhora?

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ZULNARA — Meu nome?

ALBANO — Zulnara, Tancredo.

TANCREDO — Zu... o que?

ALBANO — Zul... Zul... Zulnara.

TANCREDO — Bonito nome. Parece nome de uma garça, de um belo

cisne branco, fêmeo. Ou ainda de uma delicada bailarina dessas que

levitam no azul dos sonhos. (Exclamando) Bonito! Levitar, bailouçar no

azul dos sonhos. Bonito! Eu sonho em azul, minha senhora, eu sempre

sonho em azul. Me diga: a senhora é bailarina?

ZULNARA — Sou esposa, senhor. Dom Plácido e Madre Elisa me

educaram para ser esposa. E, ainda, convicta Irmã de Maria.

TANCREDO — Ótimo, ótimo: a Madame tem um belo nome, é esposa de

Albano, meu amigo/irmão e de quebra é Irmã de Maria. E será rica. Isto

fica aos meus cuidados. Será rica, riquíssima!

ZULNARA — (Mais à vontade: o bicho,não é tão feio quanto lhe pareceu

à primeira vista) O senhor se sente.

TANCREDO — E o abração/amigo?

ZULNARA — Eu não me habituei, senhor, a distribuir abraços, Meu

corpo jamais esteve em contato com outro corpo, senão com o corpo de

Albano, meu esposo, e quando nossos corpos se. . .

ALBANO — (Tentando dissuadi-la: ela não deve prosseguir) Meu bem!

ZULNARA — ... se unem, senhor, Deus Nosso Senhor nos abençoa.

TANCREDO — (Exultante) Lindo! Imagino a cena: vocês dois

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agarradinhos e do Céu caem pétalas perfumadas, coloridas, e soam os

cânticos dos anjos!

ZULNARA — (Fazendo-se severa) Senhor: creio que o senhor veio à

nossa casa apresentar propostas de negócio a meu esposo. Peço que o

senhor se sente e se acalme. Eu irei preparar um cafezinho para o senhor e

para Albano.

TANCREDO — (De novo agitando-se) Ela é fogo, Albano, esta sua

mulher é fogo! Quase que ela consegue parar meu embalo. Ah! Não,

Madame, isto não. A senhora não vai parar meu embalo. Venho com este

embalo comemorativo desde a Bahia e ninguém vai conseguir... Nem a

senhora, Madame, nem a senhora, seja com cafezinho, seja sem cafezinho.

Cafezinho, uma ova! (Para Albano) Zorra, irmão, há meia hora que pedi

um uísque puro, sem gelo, sem água e você nada de se arredar. Cadê o

uísque, irmão? (Enquanto Albano se afasta, para Zulnara) A senhora

também bebe uns tragozinhos?

ZULNARA — Eu não bebo e não fumo, senhor. Eu não tenho vícios.

TANCREDO — (indicando Albano que derrama o uísque num copo) E

ele? Ele deixou de beber?

ZULNARA — Do contrário, senhor, eu não teria aceito a proposta de

casamento.

TANCREDO — Espera aí, Madame, calma no Brasil, a mim a senhora

não vai dizer que Albano deixou de beber! Esta, não!

ZULNARA — (Para Albano, que retorna com o copo) Você ainda fuma e

bebe, meu bem?

ALBANO — Não.

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TANCREDO — é mesmo verdade, irmão? Nem mesmo uma bramazinha,

assim, um golezinho, nada? Nada de nada? Um rabo de galo, um

traçadozinho, nada?

ALBANO — Nada, Tancredo, nada. Absolutamente nada.

TANCREDO — Oh! Deus, mudou tudo! Está tudo subvertido! (Para

Zulnara) Está aí uma coisa, Madame, que se um estranho me contasse eu

não acreditava. E ainda chamava o bicho de maluco (Para Albano,

penalizado) É verdade mesmo, irmão? Nem na rua?... (Retomando o

ímpeto) Isto não importa! (Para Zulnara) Importante mesmo, Madame,

importantíssimo, é que hoje venho oferecer uma vida nova para Albano,

meu irmão, e, por via travessa, para a senhora. Uma vida nova, eu disse

bem, e falei certo. Porque, vejo, é fácil ver (Olha em torno, reparando nos

objetos da sala), vocês ainda não acertaram o passo. (Pega na televisão)

Esta tevê é modelo antigo. . .

ZULNARA — Nos serve bem, senhor.

TANCREDO — É modelo antigo, Madame, antiquíssimo! É um aparelho

sem controle remoto, sem terex 199, o trazeiro é quente, e estou a adivinhar

que o som é uma bosta!

ALBANO — Modere sua linguagem!

TANCREDO — Não modero, não tenho nada a moderar! Me irrita ver que

vocês não têm telefone, não têm radiola rai-fai, nem escova de dente

elétrica. Aposto que vocês nunca viram um baita dum gravador japonês e

nem uma bruta máquina de filmar, das grandes, das enormes — e eu tenho

não uma, mas duas. E tenho um equipo alemão de imagem/som que é o

fino! E mais: fumo cigarro inglês, minha cueca é de linho belga, meus

sapatos são italianos, meu papel higiênico vocês pensam que é de onde? É

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da Suíça! Da Suíça! Meu sanitário, lá em casa, é aquele sanitário! Dinheiro

é prá isso, é para o conforto!

ZULNARA — O senhor se acalme, se sente.

TANCREDO — E por falar em sentar, ouçam isto: sabem qual é a

impressão inicial de quem entra em meu sanitário? É a impressão de um

gabinete, todo de jacarandá. Escondi tudo debaixo de móveis de jacarandá.

Uma beleza! A sentina, propriamente, parece um trono. Eu me sento na

sentina e parece que sou Luiz XV ou Luiz XIV, o Rei Sol. Tudo isto se

chama conforto. Precisamos criar uma forma humana para ele, para re-

presentar o conforto, e adorá-lo. Um novo Deus, aí está, um novo Deus: a

cara gorda e sorridente, tranquilo, descansado, apascentado. O que venho

propor para vocês é isto, uma vida com conforto. Con-forto-to! Conforto! É

como eu digo, parodiando o Noel Rosa: (Canta)

E no século do progresso

O conforto teve ingresso

Prá acabar com a choraria.

Choraria entrou aí de araque. Quando digo choraria eu quero dizer

lamentação (Para Zulnara) Eu não tolero, Madame, quem se lamenta.

(Para os dois) Vamos, vistam-se! Esta noite eu sou o Príncipe Encantado e

minha missão é a de mudar a vida de vocês! Vamos, se endominguem!

ZULNARA — Mas, senhor, nossa vida nos basta.

TANCREDO — Não tem mas/mas nem mais/menos. Esta noite sou eu,

Príncipe Encantado Tancredo Batista, quem dou as cartas. Estou com um

big Impala-conversível lá embaixo, minha comitiva veio comigo, vocês

mudam de roupa, se enfarpelam, e iremos todos a um grande restaurante,

depois a uma grande boate — e lá explicarei meu grande plano para o total

desembestamento de vocês. (Ele está alegre: ri) Vamos, cambada! Rápido,

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mudem de roupa!

ALBANO — Outro dia, Tancredo.

TANCREDO — Não, hoje, esta noite, agora!

ZULNARA — É impossível, senhor. Nós nos habituamos. , .

TANCREDO — (Enérgico, para Zulnara) Deixe-se de soberbas,

Madame! Bote este orgulho de lado que orgulho não dá camisa a ninguém.

ZULNARA — Não sou orgulhosa. Nunca cedi e nunca cederei ao pecado

do orgulho. Sou católica, senhor, sou humilde.

TANCREDO — É, sim, você é orgulhosa, tanto quanto eu fui orgulhoso no

tempo em que era pobre, paupérrimo. Mas eu me libertei. Um dia eu

desembestei na vida, me meti nos negócios — e venci, Madame, venci!

Estou rico. Americanamente rico! Vocês, ao contrário, são dois

paupérrimos e eu venho ajudá-los e eu saio dos meus cuidados para ajudá-

los e prá que? Para que a Madame aí faça pose de orgulhosa (Para Albano)

Para que você, Albano, meu irmão, se recuse a sair comigo numa noite de

comemoração. Se ela não quer ir, irmão, seja homem e saia sozinho! Até

porque mulher é prá isso mesmo. É como diz o Grande Hino dos Homens

Casados (declamando):

"A mulher que é mulher

Não deixa o lar atoa,

A mulher que é mulher

Se o homem errar, perdoa".

Vambora, Albano, irmão, vambora!

ZULNARA — (Entre reprovativa e temerosa) Senhor. . .

TANCREDO — Senhor? Senhor uma ova! Me chame Dinho, Madame!

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Quer ficar de bem comigo, quer? Então me chame Dinho. Meu apelido era

este, Dinho. E as domésticas freteiras me chamavam Dinhozinho. Se

recorda, Albano? Se recorda, irmão?

ALBANO — (Desajeitado) Sim, me recordo.

TANCREDO — (Evocativo) Todos me chamavam Dinho, Madame,

naqueles bons tempos da juventude (Explicativo) Dinho vem de

Tancredinho, o apelido que meu pai me botou. Aos poucos foi sumindo o

Tancrê e ficou apenas o Dinho. E eu gostava, Madame, eu me sentia irmão

de todo o mundo — e bom mesmo, Madame, legal, bacana, prá frente, é a

gente ser irmão de todo o mundo, e naqueles tempos, Madame, creia em

mim, eu era irmão de todo o mundo. Eu sofria e chorava pelos outros,

Madame, palavra de honra, creia em mim, eu sofria e chorava pelos outros.

Depois, na entanto, eu percebi que ninguém chorava ou sofria por mim.

Ninguém, Madame, ninguém. Com exceção de Albano, meu irmão, com

exceção de Mamãe Batista, um anjo de gente, nunca ninguém olhou prá

mim com ternura, com boa vontade, com empenho de me entender. Nunca,

Madame, nunca! (Bebe o último gole do uísque. Pensa um pouco. Agora,

tanto Albano quanto Zulnara parecem desejar que ele continue falando; de

algum modo ele os comove) Por que, diabo, eu falei dessa coisa que

pertence ao passado? Por que, Deus do Céu, eu não me liberto do passado?

(Pausa) Esqueçam tudo isto (Gestos de cabeça e de braços, gestos desespe-

rados) Esqueçam porque esta noite eu sou de novo Dinho (Para Zulnara) e

você será Nara, Narinha, nada de senhora, nada de Madame, nada dessas

frescuras respeitosas. Você é doravante Narinha, mulherzinha do meu

querido amigo/irmão Albano. Vamos, vamos, mudem de roupa!

ZULNARA — Senhor, hoje é impossível. Amanhã, talvez. . .

TANCREDO — Senhor? Você disse outra vez senhor? Não, por favor,

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diga Dinho. Não diga irmão, mas, seja humilde e boa, e diga Dinho. Eu

preciso que você diga Dinho.

ZULNARA — (Há um mínimo de simpatia no modo como ela fala) Devo,

Albano? Posso?

ALBANO — (Condescendente) Não veja nenhum mal...

ZULNARA — (Encarando Tancredo) Senhor Dinho: hoje não sairemos

de casa, em hipótese alguma. Compreenda, senhor Dinho: honrada é a

nossa pobreza e a maior aspiração que temos é a da tranquilidade que a boa

religião aconselha e permite, . .

TANCREDO — (Exclamativo) Zorra! Que lábia! Que língua de ouro!

ZULNARA — (No mesmo tom) Em havendo Deus em nossos corações,

senhor Dinho, há tudo. Deus é conosco, senhor Dinho, Deus é conosco!

TANCREDO — (Admirado, para Albano) Ela é mesmo fogo, Albano! Se

você deixar, boto ela de corretora e ela terminará vendendo todo um

loteamento no Nordeste da lua! É uma língua de ouro, Albano, é uma

língua de ouro! Você me defere outro uísque, irmão? Puro, Albano, purinho

(Cheira o copo) É Haigs este seu uísque?

ALBANO — (Ele não sobe se deve rir ou se deve protestar. Esta

hesitação, fundamental, é expressa em movimentos fisionômicos) É

Drury's.

TANCREDO — (Acompanhando Albano que se afasta em direção ao

criado-mudo. Segredando) É verdade, irmão que você deixou de beber?

ALBANO — É. (Bota o uísque, entrega o copo a Tancredo) Vou pegar um

tira-gosto.

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TANCREDO — Palavra de honra, irmão?

ALBANO — Sim.

TANCREDO — Nem uma bramazinha?

ALBANO — Nada, Tancredo, nada.

TANCREDO — (Caminhando para Zulnara, enquanto Albano sai de

cena) É mesmo verdade? É mesmo verdade que ele deixou de beber?

ZULNARA — Eu não minto, senhor.

TANCREDO — (Sinceramente admirado) Você deve ser muito boa de

cama. . .

ZULNARA — (Surpresa) Como? Não entendi, senhor.

TANCREDO — (Com alguma malícia) Eu disse que você deve ser uma

grande mulher, muito boa de cama. Foi isso o que eu disse e repito. Ou não

teria conseguido que Albano deixasse de beber. De fumar, sim, acredito,

mas deixar de beber, ele, Albano, puxa vida! Porque, Narinha, este hoje seu

marido, Albano, meu irmão, bebia cerveja como uma fera. Quando eu

chegava na segunda ele já estava babando a quarta. E sem urinar! Só uma

grande mulher, dessas de cama-e-mesa, poderia desentortar um cabra como

Albano. E pelo que vejo, hoje, aqui, você, Narinha, é mesma uma grande

fêmea! Uma grande mulher desentortadora! Meus parabéns! Sua vitória

merece encômios! (Zulnara esforça-se por manter-se dura, distante, ina-

tingível) Minha mãe, por exemplo, que nunca foi sopa, jamais conseguiu

fazer com que meu pai abandonasse o positivismo Ou que deixasse de

frequentar sua loja maçônica. Meu velho era tarado pelo positivismo,

Narinha. Toma-lá-dê-cá ele metia o positivismo em cima da gente.

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ZULNARA — (Demonstra que Tancredo não a abalou) Não sei o que

seja o positivismo e nem me interessa saber.

TANCREDO — (Bebe outro gole do uísque, para Albano que se

aproxima com o tira-gosto: uns pedaços de salsicha) Ô, Albano, irmão, me

perdoe o desplante, mas esta sua mulher, Narinha, minha irmã, é o fino em

ignorância motora. Imagine que não sabe, sequer, o que seja o positivismo

(Comendo um pedaço da salsicha que Albano oferece) Se lembra, irmão

como Papai era tarado peio positivismo?

ALBANO — (Enfastiado) Me lembro.

TANCREDO — (Cheirando o uísque) Você tem certeza que este uísque

não é Haigs? Eu sou capaz de jurar que é Haigs! Isto é uma coisa, sabe? A

gente pensa que Felônio é Antônio e Felônio não é Antônio! É Felônio

mesmo. Zorra! Me dê água aí, Albano, água com gelo, do contrário eu vou

chumbar — e eu chumbado sou aquela coisa, Albano. Vá, irmão, vá

(Albano sai, para Zulnara) A gente estava aonde?

ZULNARA — Eu não estava em lugar nenhum, senhor.

TANCREDO — Dinho! Diga Dinho!

ZULNARA — Eu estava aqui, senhor Dinho, e continuarei aqui. No meu

lar. Na minha casa.

TANCREDO — E é daqui que vamos sair. Vamos para o grande

restaurante! Para a grande boate! Estas coisas é que são importantes.

Sobretudo importante é você, Narinha, grande mulher, hein! Grande fêmea

desentortadora! (Albano retorna com o copo d'água) Com uma mulher

como você é que eu sonho. Uma mulher que me ajeite, me desentorte, me

dê gosto pela vida me faça esquecer o passado. Uma mulher como você,

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Narinha, me salvaria — mas hoje em dia, quase não há mais mulheres que

saibam perdoar e desentortar a gente. Elas todas, quase todas, estão tortas e

ao invés de conceder perdão elas é quem pedem perdão. Tá tudo

subvertido! (Agitando as mãos) Narinha, garça, jóia, bailarina: já não

existem, no Brasil, oito ou nove mulheres como você. Juro, não existem!

(Recebe o copo d'água que Albano entrega: agora as duas mãos estão

ocupadas) Este copo d'água é prá quê? Água, H20, é veneno... fale,

Narinha, fale. Lave minha alma com sua voz de anjo. (Põe os copos no

chão).

ZULNARA — Senhor Dinho, se acalme.

TANCREDO — Lindo! Lindo! Você me chamou Dinho! Na entanto,

desobedeço ao anjo, não me sento. Esta noite eu não me sento. Porque se

eu me sentar eu paro de falar e eu não posso deixar de falar. Esta noite, em

esta noite de comemoração, eu sou novamente Dinho, Dinhozinho. Hoje,

esta noite, em mim, Narinha, minha irmã, mexem e remexem todas as

minhas fibras alegres e eu me sinto como se eu fosse um grande e belo

pavão. (Pausa: ele pensa um pouco, ele avalia o que irá dizer, vê flores de

papel em um jarro, apanha-as, compõe, com elas, um multicolorido buquê)

Se eu fosse um pavão, um grande pavão, imenso, enorme pavão, eu abriria

minha cauda assim, ó, assim (Gesto: usa o ramo de flores de papel no

trazeiro), e com a grande cauda aberta, mil penas e mil cores, afrontaria a

todos, afrontaria o mundo, para que o mundo soubesse que o Tancredo

Batista de hoje não é mais o Tancredo Batista d’Almada de há 10 anos

atrás, e para que, em sabendo, o mundo, todos os homens do mundo,

pudessem admirar os azuis, os verdes, os vermelhos de minha alegria, as

cores de Tancredo Batista, hoje um homem rico e livre, hoje um grande e

glorioso pavão!

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ALBANO — Sente-se, Tancredo.

TANCREDO — Não. Jamais!

ZULNARA — Acho que os pavões também se sentam, senhor Dinho.

TANCREDO — Você tem certeza, Narinha?

ALBANO — Todos os bichos se sentam.

TANCREDO — Mesmo os pavões? (Apanha o copo, bebe água) Também

os pavões se sentam?

ALBANO — (Persuasivo) Mesmo os pavões, Tancredo. Também os

pavões se sentam e descansam e dormem.

TANCREDO — (Retomando a excitação de antes) Descansam e dormem,

os pavões, de acordo (Bebe mais água, todo o copo) mas não pensam.

(Para Albano) Não pensam porque não têm memória. É a grande vantagem

dos pavões: eles não têm memória! E nós temos memória e o passado mora

aí, mora na memória, e esta é toda a nossa desgraça, e este é todo o nosso

mal. Nós, todos nós, somos cativos do passado e da memória Nós nos

exilamos da pobreza suja mas nunca percebemos que a pobreza tingiu de

roxo todas as nossas sombras! Eis a perversidade do mal: o mal tingiu de

roxo nossa sombra; o mal marcou de preto nossa memória.

ALBANO — Beba mais água. Irei buscar.

TANCREDO — Não, não quero mais água. Quero uísque. Ouça, irmão,

ouça: concedo, os pavões são lindos, todos os pavões são lindos de morrer

(Agora a fisionomia é de quem se apega a uma ideia inteiramente nova e

interessante), mas já os canarinhos são apenas bonitinhos. (Evocativo) Eu

tinha um canarinho naqueles anos de pobreza. Ele cantava lindamente, um

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canto longo e triste e eu imaginava... — sabem o que eu imaginava?

Imaginava que sobre minhas mãos tombavam as lágrimas mornas daquele

manso passarinho. Mentira minha! Eu estou mentindo, até porque outra

vantagem que os bichos têm sobre a gente é esta: eles não choram. Eles são

lindos, não têm memória e não choram. No entanto o que de principio eu

disse é verdade: eu tinha um passarinho e certa noite, na noite em que

comecei a me desembestar, fiz uma bruta farra e dormi e sonhei que meu

canarinho se tinha transformado num imenso pavão; era pavão e era

canarinho, abria a belíssima cauda de pavão e cantava mesmo que um bom

canarinho; eu me agarrava àquelas penas coloridas e voávamos, livres,

inteiramente livres, por sobre os campos de estrume e por sobre as cidades

apodrecidas pele pobreza. Sim, um bom sonho. Meu primeiro sonho bom,

colorido e duradouro. De manhã, quando acordei, agradecido a ele, abri a

gaiola do meu canarinho e disse com muita delicadeza: voa, canarinho,

voa; agora você está livre e pode voar. . .

ZULNARA — (Interessadíssima) Ele voou?

TANCREDO — (Violento) Voou, claro que voou! Eu dei um senhor

berro: voa, puto, voa! — e ele voou e nunca mais voltou à gaiola. Vocês

têm um passarinho? Não, claro que não têm! Não importa que tenham ou

não: onde quer que vocês encontrem passarinhos digam a eles que na única

casa de cor vermelha/ouro do Morro do Ipiranga, Salvador, Bahia, Brasil,

há uma gaiola cuja porta nunca mais será fechada. .

ALBANO — Sente-se, Tancredo.

TANCREDO — Não. Cadê o uísque? (Para Zulnara) Sabe, Narinha, sabe

de uma coisa? Nunca mais eu sonhei com pavões ou passarinhos

(Querendo-se luxurioso) Agora eu sonho com minhas pavôas, as lourinhas,

as pretinhas, as cabo-verde (Como quem faz uma confidência) Sou muito

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chegado às mulatas, Narinha. . .

ALBANO — Tancredo, contenha-se! Esse seu modo de falar (Tancredo

ouve: sua fisionomia diz que Albano é o mais chato dos oradores que já

conheceu) supõe uma intimidade que Zulnara não lhe concedeu . . .

ZULNARA — Nem concederei! Jamais, a homem nenhum!

ALBANO — Penso. . .

TANCREDO — Penso! Penso! Toda hora você diz isto: eu penso, eu

penso. Não pense! Minha ordem é esta: não pense (Baixa o tom de voz)

Fale, vá falando, diga outra vez que eu não mereço a intimidade de

Narinha, sim, vá, fale, mas não pense, porque eu não quero ser obrigado a

pensar. Para me fazer pensar basta a presença de minha comitiva: um

homem, duas mulheres, três pedaços da minha podridão de antigamente. Tá

vendo a que você me obrigou? Não pense, irmão, não pense. Ao invés de

pensar me consiga outro uísque (Andando em direção ao criado-mudo)

Não, deixe, eu mesmo me sirvo (Apanha a garrafa de uísque) Puxa vida! O

uísque é Drury's mesmo e eu jurava que era Haigs! É uma zorra, isto! A

gente julga que uma coisa é uma coisa e vai ver. . . não é, é outra coisa,

puta- merda!

ZULNARA — (Ingenuamente, com interesse) Que é isto?

ALBANO — (Desajeitado) Esqueça, Nara, esqueça!

TANCREDO — (Depois de beber um gole do uísque) Mas vocês, se

mexam, vamos para o grande restaurante, para a grande boate! Ou vocês

não querem ficar ricos? Ou vocês querem continuar paupérrimos como

estão?

ZULNARA — Amanhã, talvez. . .

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TANCREDO — (Querendo forçar a intimidade) Dinho, diga: amanhã.

Dinho. . .

ZULNARA — (Depois de hesitar um pouco, desejando, com os olhos, a

anuência de Albano) Amanhã, Dinho, talvez que amanhã. . .

TANCREDO — (Vitorioso) Não, hoje! Será hoje! Esta foi a noite que

escolhi para vocês ficarem ricos. E depois vocês dirão como diz o título

daquele filme: "Naquela noite choveu prata". Prata? Não, ouro, vai chover

ouro, vai chover conforto, vai chover liberdade! Ouro, conforto e liberdade

compõem uma bela mulher nua, inteiramente nua, deitada numa cama

oval...

ALBANO — Pare, Tancredo, pare! Isto é um abuso!

ZULNARA — Por que, Albano, ele deve parar? Não é imoral! Você

mesmo me disse que uma mulher nua na cama não é imoral!

TANCREDO — Você é um boiola, Albano! Eu tentava uma imagem

poética, para definir ouro, conforto e liberdade e você julgou que eu ia

contar um caso de Bocage. Não ia! Eu queria dizer que ouro, conforto e

liberdade são coisas que quando a gente toca não quer largar nunca mais.

ZULNARA — (Para Albano, intrigada) Quem foi Bocage, meu bem?

ALBANO — (Para Zulnara) Um poeta. E não faça mais perguntas, por

favor (Para Tancredo) Tancredo, prometo que amanhã, você mais calmo,

iremos com você, sairemos. Digo a você, com franqueza, que nossa

situação financeira não é boa e é do meu interesse...

TANCREDO — Vistam-se, nada de amanhã, a noite é esta.

ALBANO — Amanhã, amanhã. Hoje Zulnara não se sente bem. . .

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ZULNARA — (Sugerindo que a proposta de Tancredo, afinal...) Para

boates, meu bem, você sabe disso, estou sempre indisposta Mas eu iria a

um restaurante, não vejo mal nisto. Um restaurante modesto. . . Mas, para

boates, nunca!

TANCREDO — Não, Albano, não? Definitivamente, não? Tá bom, então

eu passo a noite com vocês. Me esperem. Vou aí embaixo apanhar o

pessoal de minha comitiva (Bebe o último gole de uísque) É um minutinho

só (Sai).

ZULNARA — Que coisa acontece com ele, meu bem?

ALBANO — Ele está de porre.

ZULNARA — Que coisa é porre?

ALBANO — Álcool, Zulnara, álcool. Ele está bêbado. E no entanto ele

não está apenas bêbado. Alguma coisa está ferindo Tancredo, ferindo fundo

— e eu não sei o que é. Ele mudou, transformou-se, é outra pessoa. Ele se

estuda demais, olha exageradamente para dentro dele mesmo.

ZULNARA — Ele voltará?

ALBANO — Não sei. Talvez tenha inventado esta história da comitiva

para ir embora de uma vez, sem necessidade de despedida . Ele estava tão

exacerbado e nós o tratamos tão friamente!

ZULNARA — Você me culpa, meu bem?

ALBANO — Não, meu bem, nem quero que um dia você possa se

imaginar culpada seja do que for. Eu sempre desejei você como você é:

pura, além da brutalidade, terna, amorosa, sempre fazendo amor comigo,

como é dever de toda boa esposa.

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ZULNARA — (Sonhadora) ... acima e distante da maldade uma vez você

me disse assim: que eu estava acima e distante da maldade. E foi onde eu

sempre estive e estou, graças a Mamãe, a Papai, a Dom Plácido, a Madre

Elisa; graças à Virgem Santíssima! Se hoje não estou no Convento, para

sempre, é porque Deus encaminhou seus passos para mim e encontrei você

e nos amamos. . .

ALBANO — Você está arrependida?

ZULNARA — Oh! Meu bem, não! Estou muito feliz.

ALBANO — Para que você permaneça assim, sempre acima e distante da

maldade, é necessário que você nunca se misture com o mundo lá fora. É

um mundo sujo, porco, desumano, impiedoso.

ZULNARA — (De carretilha) Pecaminoso, indecente, mau.

ALBANO — É por isso que sempre lhe digo: saia o menos possível, da

casa para a Igreja, da Igreja para a casa. Os pecados estão nas ruas, nos

apartamentos dos vizinhos, nas casas das amigas. Saia o menos possível,

Nara, de modo que possamos permanecer sempre juntos, unidos,

defendidos. Como foi que uma vez Dom Plácido disse? Sim, ele disse:

refúgio da boa esposa é o lar, a cozinha, a sala, a alcova.

ZULNARA — (Lembrando-se de algo) Sabe o que ele se disse?

ALBANO — Dom Plácido?

ZULNARA — Não, seu amigo, Dinho. Ele disse que eu sou muito boa de

cama. . . Que coisa é ser boa de cama?

ALBANO — (Espantado) Ele disse o quê?

ZULNARA — Que eu sou muito boa de cama, que eu sou uma fêmea

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desentortadora, que você era um torto e que eu desentortei você. . .

ALBANO — (Esforçando-se para mudar o tema) E eu era mesmo um

torto na vida e na verdade você me consertou: deixei de beber, de fumar, de

jogar Agora só penso em você e em nossa felicidade. . .

ZULNARA — Sim, meu bem, eu sei, mas o que é mesmo ser boa de

cama?

ALBANO — (Desajeitado) Que você dorme como um anjo, que seus

sonhos...

ZULNARA —- (Atilada) Não me engane, meu bem, não deve ser isto . . .

ALBANO — Que você e boa esposa, amiga, companheira. Na Bahia,

quando a gente quer. . .

ZULNARA — (Um pouco coquete) E eu sou mesmo boa de cama?

ALBANO — É meu bem, você é um anjo.

ZULNARA — Posso dizer na Congregação que você me considera muito

boa de cama? Posso dizer a Dom Plácido. . .

ALBANO — Não, Zulnara, de modo algum!

ZULNARA —- (Alegre) Agora, meu bem, eu sei com certeza o que ele

quis dizer quando disse que eu sou boa de cama. E não fico zangada, ao

contrário. Você está zangado?

ALBANO — (Levantando-se, caminha em direção à TV) Não, não estou

zangado. Vou ligar a televisão.

ZULNARA — (De costas para Albano) Não, meu bem, não ligue a

televisão. Eu estou muito confusa. . . (Albano se dirige à porta; Tancredo

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deixou-a aberta e ele vai fechá-la) Não, Albano, não feche a porta. Talvez

ele volte. Venha, sente-se comigo, venha (Albano obedece e ela lhe toma

as mãos) Você se recorda da história do divino São Francisco de Assis? Se

recorda que ele. . .

TANCREDO — (Reaparece na porta, sorri) Irmãos, eu voltei! (Fala em

direção à porta) Entrem! Entrem! (Entram um homem, violinista, e duas

mulheres, prostitutas) Aqui está a comitiva, irmãos. (Para as mulheres)

Burregas, ali estão Albano, meu irmão, e Narinha, minha irmã. Digam boa-

noite pra eles.

MULHERES — (Em coro) Boa noite, patrões!

TANCREDO — (Para o violinista: ele traz seu instrumento) Agora você,

Otacílio.

VIOLINISTA — (Curvando-se) Boa noite, patrões.

TANCREDO — Eles estão muito contentes (Para o violinista) Você não

está contente?

VIOLINISTA — Estou muito contente.

TANCREDO — (Para as mulheres) E vocês?

MULHERES — (Em coro) Estamos muito contentes.

TANCREDO — (Para Albano e Zulnara, ambos atônitos) Eles são

obedientes, não se assustem. Basta que eu dê uma ordem e eles obedecem,

Porque eu pago. E eu pago bem. (Para uma das mulheres) Cadê as flores?

Vá buscar as flores! (A mulher sai) É uma imbecil! (Para Zulnara e

Albano) Vocês querem que o Otacílio toque o quê? (Violinista se prepara:

espera, apenas, a ordem) Uma valsa? Vocês querem ouvir uma valsa?

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ALBANO — Tancredo é tarde. . .

ZULNARA — (Mulher regressa: traz um enorme ramo de flores) Ele sabe

a Avé Maria, de Gounod?

TANCREDO — (Para violinista) Você sabe essa Avé Maria?

VIOLINISTA — Sabia, já me esqueci.

TANCREDO — (Para a mulher que tem as flores) Zorra, boboca, bote

essas flores num canto qualquer! (Mulher se movimenta em direção ao

fundo do palco) Ali não, estúpida! Ali (aponta o lado direito do palco, na

frente) Sim, burrega, aí (Para o violinista) Você tem quantos anos,

Otacílio?

VIOLINISTA — 43.

TANCREDO — Amanhã você vai tocar 43 vezes a Avé Maria falada ali

pela Madame. Se errar, 86 vezes. Se errar, 172 vezes! Violinista meu,

porra! Deve saber todas as músicas!

ZULNARA — (Para Albano) Que coisa é porra, meu bem?

TANCREDO — Zorra, Zuzu, porra é porra! Porra é este imbecil aí não

saber as Avé- Marias! Deve saber, porra! Vai ter que aprender, porra!

ALBANO — Tancredo, não se exceda!

TANCREDO — Me excedo, porra! Claro que tenho de me exceder. Pago

500 contos por mês a este estafermo e ele nem ao menos sabe tocar a Avé-

Maria. É uma esculhambação! Me arranje um uísque, Albano, um uísque

puro. E me arranje um copo d'água, irmão. (Para Zulnara) Amanhã, Zuzu,

este imbecil vai tocar prá você todas as Avé-Marias que existem: de

Gounoud, da mãe de Gounod, do pai de Gounod, todas, todas! (Para o

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violinista) Me ouviu? Me entendeu? Todas as Avé-Marias! (Para o

Albano) Cadê o uísque? Vá pegar o uísque! (Enquanto Albano se afasta, de

novo para o violinista) Agora, animal, meta aí aquela música do cassino, a

da japonezinha que se campou por causa do americano mau caráter. (Fala,

agora, com enlevo) Toque com alma, com sentimento, toque como se a

japonezinha campada fosse sua filha. Vá, toque! (Ato contínuo — e Albano

vem de volta com o uísque pedido — o violinista começa a solar o trecho

inicial da ária "Un bel di vedremo", da ópera "Madame Butterfly") É uma

linda história, lindíssima! (Recebe o uísque Albano, cheira) Parece Haigs e

não é Haigs! Isto é uma coisa, sabem? É uma coisa! Ouçam esta música, é

a música de uma bonita história, Albano/Narinha, irmãos, é a música de

uma história triste, mas bonita. É uma história da tragédia dos outros, uma

tragédia que aconteceu longe, não na nossa rua, não na nossa cidade, e por

isso é bonita, embora seja triste. Este animal aí, o Otacílio, tem tocado esta

música prá mim há muitos anos e agora ele a vem tocando desde a Bahia

até o Rio, ontem, e até São Paulo, hoje. (Para o violinista) Não é isto

mesmo, animal?

VIOLINISTA — (Prossegue tocando) Perfeitamente.

TANCREDO — (Para Albano e Zulnara) Vocês sabem o significado

dessa música, a história que ela encerra?

ALBANO — (Com evidente má vontade; Zulnara está, porém,

interessada) Não, não sabemos. De resto, é tão tarde. . .

TANCREDO — Tarde? É cedíssimo! Mal estamos nas 24 horas! Ouça,

Albano: em regime de comemoração — e hoje eu comemoro o 10°

aniversário da morte de Tancredo Batista d’Almada — o tempo não existe

e o espaço é um servo do meu arbítrio. Bonito! Lindo! Por esta e outras é

que às vezes Mamãe Batista me diz: Tancredo, você é o rapaz de mais lábia

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que eu já ouvi. É um anjo, Mamãe Batista, é um anjo! É a mãe mais coruja

que esta terra cobre. (Para o violinista que não cessou de tocar) Pare esta

zorra e comece do começo! Me acompanhe como daquela vez, no Cassino.

(Violinista vai tocar novamente) Espere aí, estúpido. Aguarde que eu

comece! (Violinista se imobiliza) Um dia. . .

ALBANO — Amanhã, Tancredo, por favor, amanhã!. . .

TANCREDO —- Não, hoje, agora!

ALBANO — Zulnara está cansada, eu estou cansado. . .

TANCREDO — Vocês não importam! O que vocês são hoje não serão

amanhã. Eu trago uma nova vida para vocês. Eu trago conforto, ouro,

liberdade. Eu é que sou importante. Eu é que estou comemorando o 10°

aniversário de um sujeito podre que já morreu, o que eu era antes, o que eu

não sou mais, o que vocês são hoje! Zorra, isto vale alguma coisa! Isto vale

uma comemoração! Eu sou viúvo de mim mesmo e isto não é pouco. Se

manque, Albano, meu irmão, se manque! (Bebe o último gole do uísque.

Tosse. Afinal se recompõe) Onde é que eu estava? Hum, na japonezinha

que se campou (Para o violinista) Atenção, Otacílio! (Para Albano e

Zulnara) Ouçam vocês: a primeira vez que eu fiz esta declamação eu passei

a saliva no pessoal do Cassino e inventei que a moça emprenhada pelo

americano era uma moça do Viet-Nam. Vejam bem: Viet-Nam! Mas a

verdade é que ela nunca foi do Viet-Nam. Fiz uma safadeza, porque a

moça, segundo a verdade histórica, era uma japonezinha. Mas — vejam aí

minha jogada pró simpatia para mim — como o pessoal do Cassino está

todo subversivo eu aproveitei e meti a moça como sendo Viet-Nam. E não

foi. E não era. E não é.

ZULNARA —- (Para Albano) Que coisa é Viet-Nam, meu bem?

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ALBANO — É uma terra. . .

TANCREDO -— (Preocupado com a narrativa) Foi uma capadoçagem

minha, até porque, eu acho, quando fizeram dita musica o Viet-Nam nem

existia. Ou, se existia, ninguém sabia. Ou, talvez, existisse com outro nome

— uma porra aí qualquer.

ALBANO — Penso, Tancredo, que você está a se exceder além dos

limites. . .

TANCREDO — (Irritado) Como é que é?

ALBANO — Penso que você...

TANCREDO — Não pense, Albano, não pense! Vou lhe pagar um tutu

alto, o triplo do que você hoje ganha, ou o quádruplo, ou o quíntuplo, mas

lhe faço esta exigência: não pense. (Pausa) Onde eu estava? Sim, a história.

(Para o violinista) Vá, imbecil, agora, mêta a música (Violinista inicia a

ária já referida: "un bel di vedremo”) Era uma vez um oficial da Marinha

norte-americana, um cara muito chegado a mulher. Era um sujeito grandão,

bonito, todo vestido de branco, com uns enfeites cor de ouro. Ele chegou ao

Japão, assim tão bacana e encontrou a linda japonezinha (Acerca-se de uma

das prostitutas) Conversa vai, conversa vem, vocês sabem como é (Ele diz

vup! E agarra a prostituta, ele e ela de frente. ..) o gajo mandou o líquido

no profundo da japonezinha. (Para Zulnara e Albano) No profundo mais

profundo, se é que vocês me entendem. Bom. Como naquele tempo não

existiam as hodiernas pílulas anti-conceptivas e nem os hodiernos Dius —

se é que vocês me entendem. . . — a pobre da japonezinha ficou prenha

mesmo. Se emprenhou.

ZULNARA — Que coisa é emprenhar, meu bem?

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TANCREDO — (Para Albano) Ela não sabe?

ALBANO — Não.

ZULNARA — Que coisa é isto, meu bem?

ALBANO — É enganar, mentir, iludir...

TANCREDO — (Para Albano) É assim que você vive não é? Porra,

Albano, isto é sujeira. (Arrependido) Bem, eu não tenho nada com isso.

(Para Zulnara) O certo, Narinha, é que a japonezinha ficou prenha mesmo,

quero dizer, esperando o filho Ai então o gringo mau caráter partiu para os

sete mares do mundo e a japonezinha, de bucho cheio, deu-se a cantar, a

cantar, sempre a cantar, na esperança de que um dia o gringo iria retornar

para o casório prometido. Ele nunca que voltou mas ela não deixou de

cantar (canta)

Lá,

Lá-ri-lá-!á

Lá-ri-iá-iá

Lá-ri-lá (Continua cantando, o violinista a tentar segui-lo), e cantando

morreu, pobre moça, pobre japonezinha enganada! (A música cessa, as

duas mulheres aplaudem com entusiasmo, o violinista igualmente aplaude,

batendo o arco no instrumento: é uma cena de circo mambembe) Não é

uma história triste e bonita?

ZULNARA — (Para Albano) Que coisa é emprenhar?

ALBANO — (Visivelmente chateado) Enganar, iludir. . .

TANCREDO — É bonita, sei disso, mas é muito triste esta história e eu

fiz mal em contá-la. Fiz mal, muito mal. (Incisivo, para Albano e Zulnara)

Porque hoje, esta noite, eu proíbo que alguém fique triste, eu proíbo que

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alguém se lembre seja da japonezinha, seja da italianinha, quem quer que

tenha sido pisado, enganado. Tenha sido ou possa ser. (Com o ímpeto de

antes) Porque hoje eu comemoro o 10° aniversário da morte de Tancredo

Batista d’Almada, aquele imbecil que eu fui (Violinista reinicia a ária "Un

bel di vedremo”), aquele estúpido, aquele estafermo, aquele energúmeno

(Dando-se conta do violinista a tocar, para ele e para as mulheres).

Merda, pare esta merda! Sumam-se. Desapareçam.

VIOLINISTA — De acordo com nosso contrato, senhor, isto é impossível.

TANCREDO — Feche esta boca, porco!

VIOLINISTA — Isto, senhor, é possível.

TANCREDO — Você e estas duas putas, já, agora, vão pra cozinha, já,

agora! Mas não façam silêncio.

ZULNARA — (Para Albano, enquanto violinista e mulheres saem) Ele

vendeu a alma, pobre homem.

ALBANO — Besteira, não diga besteira!

ZULNARA — (Admirada da violência de Albano) Meu bem!

ALBANO — Uma ova! Meu bem uma ova! (Para Tancredo) Tancredo,

que aconteceu com você? Por que esta gente mal- encarada, imunda? Por

que, irmão?

TANCREDO — Você sabe cantar "Carolina?" (Canta):

"O tempo passou na janela

E só Carolina não viu"

ALBANO — (Irritado, gritando) Tancredo

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TANCREDO — (Canta):

"Os teus olhos fundos

Guardam tanta dor,

A dor de todo este mundo"

ALBANO — (Ainda irritado, sacode Tancredo) Tancredo! Tancredo!

ZULNARA — Ele está possuído!

TANCREDO — (Para Zulnara, depois de empurrar Albano) Possuído?

Uma merda que estou possuído! Estou é rico, riquíssimo! E vocês também

vão ficar ricos, riquíssimos!

ALBANO — E por que eles? Por que aquele porco e aquelas duas putas!

ZULNARA — Meu bem, você está sujando sua boca. De seus lábios. . .

ALBANO — Cale esta boca, Zulnara! Porra! Cale-se!

TANCREDO —- Isto, irmão, xingue ela. Mulher gosta de porrada! Certa

vez tive um frete com certa viúva. . .

ALBANO — Responda, irmão, responda: por que eles? Eu me

comprometo a sair com você, já, esta noite, agora, mas livro nossa casa da

presença desta gente imunda. Expulse eles! Em nome de nossa amizade,

Tancredo, expulse eles!

TANCREDO — Não posso expulsar ninguém. Eu tenho um contrato com

eles e não sou de romper contratos. (Veemente) Pago para que eles me

sigam; pago para que não partam, não me deixem sozinho; pago para que

eles me lembrem a fisionomia e o fedor do começo, o meu começo. Ouça:

eles são o pus da miséria que eu vivi. . . (Para Zulnara) Eu gostei de você,

Narinha, apesar dos fricotes que você tem, eu gostei de você, gosto, aqui, ó

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(Gesto), aqui, no mais fundo do meu coração. . . (Para Albano) Albano,

irmão, me dê outro uísque. . . (Albano toma o copo, a cara fechada, se

afasta) gosto, sim, gosto de você, Narinha, e conto que antes de ficar rico

eu mofei anos e anos num emprego miserável, despachando rumas de

papéis dos outros, respirando a miséria fedorenta que é a miséria dos mais

pobres. (Albano retorna, entrega o copo) Vocês chegaram a cheirar eles?

(Bebe um gole do uísque) Aquele violinista é fedorentíssimo!

ALBANO — Livre-se dele. Ainda há tempo.

TANCREDO — Não, não há mais tempo. (Para Zulnara, ignorando

Albano) Lá na repartição, Narinha, cinco e seis horas por dia, era aquela

miséria desfilando diante de minha cara, se impregnando em mim, mas aos

sábados, longe daquela gente imunda, eu me vingava tomando uns porres

geniais. Sim, geniais! (Cheira o uísque. Para Albano) Você jura, irmão,

que este uísque não é Haigs?

ALBANO — É Drury's! É a quarta ou a quinta vez que eu digo: é Drurys.

Eu não ganho o bastante para servir uísque estrangeiro.

TANCREDO — Vai ganhar! Juro que vai ganhar! Esta noite serei o

Príncipe Encantado de vocês. .(Para Zulnara) Eu estava dizendo o que,

Narinha?

ZULNARA — Você dizia. . .

ALBANO — (Interrompendo Zulnara) Você não estava dizendo nada,

Tancredo. Eu é que lhe pedia para expulsar aquela gente. ,

TANCREDO — (Para Albano, afastando-o) Você é um chato! (Para

Zulnara) Eu falava de meus porres sabatinais. Que porres, Deus do céu!

Pela bênção de minha mãe, Narinha, se eu ainda falo desses assuntos é

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porque aquele fedor de miséria se incrustou em mim (Gestos de quem se

sente penetrado, todo o corpo penetrado. Para Albano) Você me entende,

irmão, entende? Fibra a fibra do meu corpo fedem, inteiramente,

integralmente...

ZULNARA — Você está contaminado.

TANCREDO — . . .a carne, os ossos, as cartilhagens, os cabelos, tudo

fede, a miséria me penetrando, me penetrando. Você me entende, irmão,

entende?

ALBANO — (Agora sem nenhuma relutância) Entendo. Me esforcei para

não entender, mas entendo.

ZULNARA — (Espantada) O que, meu bem? O que é que você entende?

ALBANO — (Com raiva) Cale esta boca. . . merda! Vá para o quarto!

ZULNARA — Não, não vou. Meu papel de esposa não é o de ficar apenas

no quarto, na cama. Você chega eu estou no quarto, esperando. . . Você sai,

eu fico no quarto, esperando. . . Não, não vou para o quarto. Vou ficar aqui.

Vou sofrer com você as desditas desta noite. É Deus que nos põe à prova!

TANCREDO — Deus, porra, Deus. . . Quem meteu Deus nesta história?

Deus não cuida de pequenas coisas. Ele está sempre em reuniões de cúpula.

ALBANO — Tancredo, me ouça: tudo o que eu peço é que você mande

essa gente embora. Porque eles são a maldade.

ZULNARA — Sim, ela mesma, a maldade!

TANCREDO — Besteira, irmã, besteira sua. Eles são hoje o que eu fui

ontem. Mas eu arranquei a casca da pobreza porca, fedorenta, arranquei e

estou riquíssimo. Eles, não. (Joga o copo de uísque no chão).

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ZULNARA — Oh! Deus, vai manchar o tapete!

TANCREDO — (Gestos de um enraivecido, como se quisesse ai roncar

pedaços da roupa, do corpo) Tirei a casca assim, ó, assim, ó, sofridamente,

com raiva, com ódio, sofridamente. . .

ZULNARA — Albano, veja, as veias dele. . .

TANCREDO — . . . assim, ó, casca e casca, pedaço e pedaço de casca,

furúnculo e furúnculo, arrancando, arrancando (Cessa os gestos) Eles, não.

Neles a casca da miséria engrossou, já não sabem onde começa a casca e

onde começa o corpo. Antes, logo que comecei a executar o contrato, eu

temia que eles reagissem, que aquelas mulheres me xingassem, que aquele

homem me quebrasse o violino na cara — mas são uns podres! Narinha

Albano, estão integralmente podres, por dentro e por fora podres. . .

ALBANO — (Exigindo) Despache-os. Mande-os embora!

TANCREDO — (Veemente). . . podres, inteiramente podres, perebentos,

furunculosos, pestilentos. (Ainda veemente, com rapidez) No caminho da

Bahia para cá, pela estrada, perto da divisa com Minas Gerais, eu me retei

com eles, porque estavam em silêncio, e eu não gosto de silêncio, o

contrato prevê a permanente ausência de silêncio, isto porque o silêncio me

provoca memórias, e eles estavam em silêncio, uma conspiração, eu me

retei e disse prá eles, gritando: "saltem! os três, todos três, saltem do carro,

vou castigar vocês!" e eles saltaram e eu gritei: "todo mundo nu" e eles

ficaram nus e então eu ordenei: "esfreguem-se no barro, rolem nus pelo

asfalto, rolem!" e eles me obedeceram. Se sujaram de barro e rolaram no

asfalto, porque eu mandei (Bebe um gole do novo uísque que Albano lhe

entregou) Vocês querem que eles rolem nus aqui pela sala, querem?

ALBANO — Não, não é necessário. Não estamos interessados em revolver

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monturos...

ZULNARA — Que coisa é retei, meu bem?

TANCREDO — (Para Albano) Monturo, você disse bem, lixo, monturo,

eles são isto mesmo: um monte de lixo. Mas não eles apenas. Eles e outros,

eles e muitos outros. Na estrada, quando eles rolavam sobre o asfalto, o

chofer de um caminhão que passava na hora gritou prá mim: "que farra,

hein patrão!" e eu gritei: "não é farra, imbecil!", mas o bestalhão não me

compreendeu e continuou a sorrir e não era o caso de rir e eu gritei "é meu

ódio, imbecil, é meu ódio!" e ele continuou rindo e não era caso de rir, era

caso daquele chofer de caminhão saltar e todos reunidos me agredirem; isso

é que deviam fazer, deviam me espancar, deviam me cuspir na cara!

ZULNARA — (Aproveita a pausa: Tancredo bebe) Meu bem. . .

ALBANO — Meu bem, meu bem, meu bem o que?

ZULNARA — Ele disse retei. . . Que coisa é retei?

ALBANO — (Com má vontade) Se aborrecer, se zangar. . .

ZULNARA — Ficar puto?

TANCREDO — Isto, irmã, eu fiquei puto com eles. E já disse porque:

porque eles ficaram em silêncio e eles sabem que eu tenho horror ao

silêncio. Porque não havendo silêncio reduzem-se as oportunidades da

memória ruíam (Apontando para onde devem estar o violinista e as

mulheres) e veja, irmã, eles estão, de novo, me atacando com o silêncio.

Silêncio é prá corredor de hospital e eu não sou corredor de hospital.

(Caminha em direção onde se supõe estejam o violinista e as mulheres)

Toque qualquer coisa, animal! (Arrepende-se: volta e caminha em direção

de Albano) Albano, irmão, vá lá dentro e dê a ordem: eu mandei que ele

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toque uma coisa qualquer (animando-se um pouco) algo assim bonito como

"Coração de Papel". Sim, "Coração de Papel". Ele vai dizer que não sabe

música pelo título da música, é um descarado embromador, mas você

cantará assim, (canta):

"Se você pensa que meu coração

É de papel

Não vá pensando pois não é

Ele é igualzinho ao seu

E sofre como eu

E la-la-Ia (interrompe). . . ao leo. . . Vá lá dentro, irmão, vá, ordene

(Enquanto Albano se afasta para Zulnara) Será que agora Narinha, você

afinal me entende?

ZULNARA — Aprendi, desde cedo, muitas verdades profundas e uma

delas é esta: não julgueis para não serdes julgados. Quanto a você meu

sentimento é de piedade. Creia: eu me apiedo de você, com toda a caridade

de que sou capaz. Tenho muita piedade, muita. Sua alma é uma alma

perdida.

TANCREDO — (Irritado) Oh! Nara, minha irmã, você é mesmo muito

tapadinha, você não entende bulhufas da vida. Você não entende nada de

nada (Albano retorna: ouvem- se as primeiras notas da canção "Coração

de Papel") Eu é que posso ter piedade de você (Vê Albano, aponta-o

também) de você, da Bahia toda, de toda São Paulo. E tanto posso que

contratei as mulheres e o músico porque assim entristeço na hora que quiser

entristecer e fico alegre no momento que desejo alegria. E vocês, ham, e

vocês?

ZULNARA — (Desejando ser didática) Temos o que falta a você. Temos

tranquilidade, uma vida arrumada, temos segurança no amanhã, certeza de

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que...

TANCREDO — (Para Albano) Ela me força a falar, irmão! Ela me força a

dizer o que eu não quero dizer!

ALBANO — Zulnara, cale sua boca. Você já está enchendo, entendeu?

Enchendo!

TANCREDO — (Com gestos, pede a Albano que não fale mais) Sabe o

que ela disse, irmão? (Ri) Que tem piedade de mim. Veja só: que tem

piedade de mim! Não é engraçado, irmão? Ela disse; "eu me apiedo de

você" e disse de um jeito, com tanta comiseração na voz, que me supõe um

grande doente, eu Tancredo Batista, eu o muito rico Tancredo Batista, eu

sou para ela um doente a merecer piedade.

ZULNARA — Uma doença na alma, foi o que eu quis dizer, Na alma.

TANCREDO — (De novo irritado) Ouça, Zulnara, ouça: eu posso dizer

assim — é hora de ficar alegre e tudo se faz para que eu fique alegre

(Violinista entra: ainda toca "Coração de Papel"); posso dizer assim — é

hora de eu ficar triste, e tudo se faz para que eu fique triste. Bom, e vocês?

ALBANO — Zulnara, saia! Vá para o quarto!

ZULNARA — Não.

TANCREDO — Vocês são incapazes para as grandes alegrias. Vocês são

incapazes para as grandes tristezas e isso significa que vocês são incapazes

para o grande amor, a grande paixão, o grande ódio. Vocês são incapazes

para a vida! Em vocês tudo é medido, contado, recontado. Vocês são

incapazes porque chapinham no lodo da mediocridade. Suas vidas são

vidas pequenas, perceberam? Albano vai pro trabalho e sabe: (Para

Zulnara) você estará a esperá-lo, no quarto. Sempre no quarto. No máximo,

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nesta sala ou na cozinha — sempre, porém, perto do quarto.

ALBANO — Tancredo, exijo respeito!

TANCREDO — Respeito uma ova! Ela é quem disse que você sempre a

quis permanentemente no quarto. Ou perto do quarto. E ela me provocou.

O que peço que tenha para comigo ó ou muito amor ou muito ódio, nunca

piedade. (Bebe, baba-se, tosse) Eu disse o que não queria dizer. Eu disse

que você são incapazes para as grandes emoções (Quase apoplético), sim,

as grandes emoções, vocês são pedaços de merda! Merda produzida pela

mediocridade que se chama Sra. Tranqüilidade Segurança-no-Amanhã

(Para o violinista) Pare com esta bosta! (Pausa de alguns segundos: o

ambiente é tenso. Ele acende um cigarro) Seu uísque é um bom uísque,

Albano, parece Haigs, não é Haigs, você disse, mas parece Haigs. Puxa

vida, como parece! Eu não pareço que sou um grosso, um estúpido? Não

sou! (Violinista se afasta: volta à coz inha) O que eu sou mesmo, agora,

não sei. Quando jovem eu era um jovem alegre. Eu me dizia apontando um

pedaço qualquer do céu ou do mar ou os dois juntos, apontava e dizia: a

vida está ali, me esperando, e será porreta. Depois, rapaz/já adulto, meu pai

morto, eu naquela repartição miserável, define-me: eu sou um pobre

fedorento — e era um pobre fedorento. Quando, depois, desembestei eu

sabia que estava desembestado. Quer dizer: eu pisava um território

conhecendo cada pedacinho do território. Eu não digo nunca que cresci,

que fiquei rico, agindo honestamente. Não, não digo. Não direi nunca. Eu

sei de cada um dos meus caminhos. E prevejo qual será o caminho de

vocês, a menos que me acompanhem, a menos que desembestem também

na vida. Cada um no seu estilo, mas desembestadamente! (Para Albano)

Me dê outro uísque, irmão. Será o último. (Albano recebe o copo que ele

estende) Obrigado, irmão. (Segura Albano) Irmão, peço, vamos acabar com

este ambiente de tristeza, de desconfiança, eu apalpo você, você me apalpa

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—- isto é uma coisa estúpida, você sabe por que? Porque é assim que a

gente esconde nossos corações. Ó irmão, vamos acabar com este ambiente

que parece um velório. Por que deve haver tristeza precisamente na noite

em que eu comemoro o 10° aniversário de meu glorioso desembestamento?

E ainda por que esta tristeza de agora se, graças ao meu desembestamento

vocês vão ficar ricos também? Vamos, alegrem-se! (Albano prepara a dose

de uísque) Vamos, irmãos, desatem o nó da tristeza. Alegria! Alegria!

(Para Zulnara) Você sabe dançar tango, Narinha? (Sozinho, canta e dança)

"Sei que na comédia desta

Vida nossas almas

Mal unidas

São farrapos do destino". . . (Recebe o copo que Albano entrega) Por que

vocês não dançam?

ALBANO — É tarde para Zulnara, Tancredo. Ela precisa dormir ,

TANCREDO — Dormir? Por que dormir? Cada hora dormida é uma hora

perdida. Além do mais, ir mãe, dormir é como partir, é morrer um pouco.

Se lembra disso, irmão? Partir é morrer um pouco. Zorra, Narinha, eu era

bacana nessa coisa de decorar poesia. Eu era mesmo um senhor decorador

de poesia. Lia milhões de poesias. Lia e decorava. (Para Albano) Se lembra

daquela, irmão? A do ventre... Deixe eu me lembrar... (Pausa.

Declamando):

"Se eu fosse teu, se fosses minha

La-lari-la-lá. . . não me lembro direito

... e do teu ventre nasceriam deuses!” — Puxa vida, que beleza de poesia!

ZULNARA — É ímpia!

TANCREDO — (Sem ouvir Zulnara, para Albano) Se lembra, irmão, se

lembra? Ó tempos, é gostosuras! Para recordar essas coisas, irmão, eu amo

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a memória, mas o diabo é que esta minha memória faz escrotidão comigo...

ZULNARA — Escrô. . . o que?

TANCREDO — (Incisivo) Escrotidão! Quero dizer, minha memória me

manda tudo de cambulhada, alegrias e tristezas confundidas, misturadas

umas com as outras, quero dizer, minha memória ora me bate, ora me

acaricia, ora me joga flores, ora me joga lama, uma sacanagem, uma grossa

sacanagem.

ZULNARA — Sacan... o que?

TANCREDO — Sacanagem. . . Eu disse sacanagem. Que mal há nisso?

ZULNARA — (Para Albano) Que coisa é sacanagem, meu bem?

(Violinista surge na sala tocando "Olhos Negros") Me diga, meu bem!

ALBANO — Oh!, Zulnara, não encha!

TANCREDO — (Movimentando os braços estendidos, a pedir silêncio,

atenção) Fechem suas tramelas, irmãos, que esta música é lindíssima!

(Para o violinista) Mais alto, imbecil, mais alto! Vamos, fechem os olhos,

ouçam! (Pausa) Esta música fala de um barqueiro do Volga e o Volga,

irmãos, é um senhor rio. Era, pelo menos, era. Os comunistas

esculhambaram o Volga. Já não se fala mais no Volga, eles mataram o

Volga — era um barqueiro do Volga, ouçam bem, era um barqueiro do

Volga a puxar seu barco, rio acima, rio abaixo, recordando os olhos negros

de sua amada distante, e a amada não lhe dava nenhuma atenção, vivia lá

empernada com um lorde qualquer, mas o barqueiro cantava, tristemente,

rio abaixo, rio acima, o barco deslizando entre flores de alegres cores...

Bonito!

ZULNARA — (Violinista retorna à cozinha) O que é, meu bem?

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ALBANO — (Chateado) O que é o que, Zulnara?

TANCREDO — Bonita música!

ZULNARA — (Para Albano, desejando que Tancredo não a ouça)

Sacanagem. . .

ALBANO — (Ainda chateado) É desordem, mixórdia, confusão.. .

TANCREDO -— (Com ênfase) O que me aporrinha nos russos, Albano, é

que eles demitiram um senhor rio, como era o Volga, para promoverem uns

riozinhos vagabundos, isto também não lhe aporrinha, irmão?

ALBANO — (Chateadíssimo) Aporrinha, me aporrinha muito (Para

Zulnara) Vá dormir!

TANCREDO — Que fizessem o comunismo deles, vá lá — como é que

aquele nosso professor de português dizia? Hum, me lembro; ele não dizia

vá lá, tá certo, okei, dizia admitamo-lo, onde é que eu estava?

ZULNARA — (Para Albano) Sacanagem e puto são palavras aparentadas?

TANCREDO — (Para Zulnara) Quer calar esta boca e me ouvir? Bote

isto na cabeça, Narinha: o comemorativo hoje sou eu, logo quem fala sou

eu (Gritando, em direção à cozinha) Otacílio! (Para Zulnara e Albano)

Sim, sim, grande rio era o Volga. Começa pelo nome: Volga! É um nome

que enche a boca: Volga! (Para o violinista que chega) Toque aí aquela

musiquinha francesa (Violinista toca “Paris c'est upe blonde") Um dia

desses eu me aporrinho prá valer, pego o avião, vou a Moscou e mijo em

cima de todos os rios russos — menos o Volga. (Zulnara parece distante)

Sabe outra coisa que me aporrinha, Albano? É que o Brasil não tem uma

coisa assim como Paris. Eu gosto mais de Londres, mas venha cá, meu

irmão, Paris é uma coisa, sabe? Acho que o nosso governo devia fazer uma

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Paris e botar lá na Bahia. O único lugar do mundo que merece Paris é a

Bahia. Esta é uma idéia que eu defendo com muito empenho. Também não

lhe aporrinha que a gente não tenha assim uma coisa como Paris?

ALBANO — (Chateadíssimo) Muito, me aporrinha muito.

TANCREDO — São Paulo e Rio são muito cidades de gringo. Tem gringo

demais. Já a Bahia tem preto demais. Afora Edinho — se lembra dele,

Albano, aquele que a gente chamava Periquitinho Verde? — afora ele,

palavra de honra, eu não gosto de preto. (Para Zulnara) Você gosta de

preto?

ALBANO — Tancredo, é tarde! Leve esta gente daqui, vá pro Hotel,

durma, amanhã eu estarei com você, conversaremos.

TANCREDO — (Ignorando Albano, para Zulnara) Fiz uma pergunta!

Responda: você gosta de pretos?

ZULNARA — (Com firmeza) Eu amo meus semelhantes.

TANCREDO — Falei em preto, zorra! Não falei em semelhante zorra

nenhuma!

ALBANO — Tancredo, por favor?

TANCREDO — De preta eu gosto, de preto, não!

ZULNARA — Desde que tragam Deus no coração, eu amo todos os meus

semelhantes!

TANCREDO — Eu falei de preto, não falei de semelhante zorra nenhuma!

E isso de Deus. . . Zorra, tôda hora você mete Deus na conversa! Eu trago

Deus no coração e eu sou seu semelhante? Onde, hein? Como, hein? Saia

dessa! Besteira, não force a cuca que dessa você não sai! Eu não me

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assemelho a nada, a ninguém! Eu sou um homem sozinho! Você entendeu?

Sozinho! Oh! Narinha, minha irmã, por que você me obriga a falar do que

eu não gosto? Sabe como às vezes eu me sinto? Que eu estava entre os

meus, entre meus semelhantes, e Deus Nosso Senhor, usando uma pinça, lá

de cima, Ele, usando uma pinça, me escolheu. Deus disse: é ele! E pimba!

— me escolheu, me tirou de entre meus semelhantes e me botou no alto,

bem no alto. Sabe como eu me sinto quando estou entre os ricos bem-nasci-

dos? Os que não precisaram desembestar para ser ricos? Eles me dizem

com os olhos: você é rico, mas fede. Muitos de nós dependem de você, mas

saiba: você fede. E um côro invisível me grita: você fede! Você fede! E eu

sei que isto é verdade. E eu sei que eles não mentem. Porque em mim a

miséria porca penetrou fundo, fibra e fibra. . . Oh! Eu disse isto, um milhão

de vezes, eu já disse isto. (Gritando) Porra! Por que eu sou obrigado a vida

toda a repetir isto?

ZULNARA — Porque você pecou!

ALBANO — (Para Zulnara) Zulnara, merda, entendeu? Merda! Cale esta

boca!

ZULNARA — (Contendo um acesso histérico) Ele pecou, ele está em

estado de pecado, ele pecou! Pecou!

TANCREDO — (Gritando) Como é o nome? Pecado? Porra, vá lá que

seja, porra!

ALBANO — (Enérgico) Tancredo, se você já não me respeita, respeite

pelo menos nossos vizinhos. Não grite!

TANCREDO — (Ainda gritando) Eles que se campem! Ou chame eles,

encha a casa com eles, eu compro uísque prá todos, ou melhor: eu compro a

atenção de todos. Ou mais do que melhor: eu compro todos! Um por um!

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Eu compro todos! Eu tenho dinheiro para comprar você, ela, eles, todos.

Todos, entendeu, todos! (Falando para o fundo do palco) Otacílio!

(Violinista aproxima-se. Ele estava a postos) Toque aí uma zorra

qualquer...Toque aquele negócio (Canta)

"Danúbio azul,

Miau, miau,

Mudou de cor,

Miau, miau...", vá, toque. . . (Para Albano) Sabe, irmão, porque esta noite

eu vim aqui? Para lhe trazer dinheiro, Albano tutu, tutu firme, alto, seguro,

tutu para sempre. Porque você vai trabalhar comigo e vai ficar rico, muito

rico. Veja: esta noite você muito brigou comigo e muito eu briguei com

você. E foram brigas de irmãos. Em hora nenhuma, em vez nenhuma, com

os olhos você me disse, ou com o silêncio você me disse, que eu trago

fedor em mim. Porque o fedor que está em mim, aquele fedor da miséria

porca, é o fedor que está em você. Nós semelhantes. (Para Zulnara) Você

botou na conversa estas palavras: semelhantes, semelhança. Bom,

admitamo-lo: estas palavras existe e ferem fundo. Bem, eu sou semelhante

a Albano, meu passado é o passado dele, o passado dele é o meu passado. E

ele vai ficar rico, vai ficar mais semelhante ainda. Rico como eu estou rico.

Poderoso como eu sou poderoso. (Para Albano) Bom, para isto, irmão, o

que é preciso é romper com o passado, é perder a memória nas horas de

serviço, é dizer como hoje eu digo: antes me pisavam, me pisavam, hoje eu

é que piso, e piso mesmo, sem piedade, sem contemplação, isto é que é

necessário: pisar, pisar sempre, e a coisa é tal, nesse exercício de pisar, que

a gente vai subindo, subindo, e de repente a gente já não sabe mais em

quem pisa — e isto é ótimo! — a gente pisa e não identifica o pisado e isto

é mesmo ótimo! É aí que o dinheiro vem chegando, cada vez mais,

chegando: milhões, milhões!

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ZULNARA — A riqueza desbragada também é pecado mortal.

TANCREDO — Uma ova que é pecado, uma ova! Eu tenho uma ilha lá na

Bahia e construí uma Igreja e botei um padre velhote na direção da Igreja.

Eu pago tudo: a manutenção da Igreja, o salário do Padre, as velas, o

incenso, as hóstias, eu pago tudo. Por isso a verdade do Padre é a minha

verdade combinada com a verdade da Bíblia. Isso porque eu pago.

Importante é poder pagar e hoje eu posso pagar. Estou rico, riquíssimo!

(Para Otacílio) Cadê o diabo da música!? (Para Zulnara) O começo é que

foi difícil, muito difícil, mas eu venci (Violinista toca "Danúbio Azul”) e

venci naquela base. (Para Albano) Deixei a repartição, Albano, e me meti

de cara nos negócios, vendendo terras, apartamentos, isto, aquilo, um

contrabandozinho aqui, outro contrabandozinho lá, de repente perdi o

medo, uma agiotagenzinha, etc., e comecei a entrar nos bancos, e fui indo,

indo, a princípio ganhando de modo aritmético, depois de modo geométrico

c cheguei a uma conclusão genial: em negócios, irmãos, a geometria é o

fino. Nada de 2 mais 2 mais 2, nada disso. A coisa é na base de 2 e 2 — 4,

4 e 4 — 8, 8 e 8 — 16 (Levanta os braços) e assim vai, e vai, e vai. . .

ZULNARA — Os remorsos não são, também, geométricos?

TANCREDO — Besteira! Eu não tenho remorsos de nada. O que há em

mim, o que me persegue, é o fedor de antes, de muito antes, do tempo em

que eu fedia também. Isto é que me dói e me dói fundo. (Lave as mãos à

cabeça) Me dói aqui, na cabeça, em todas as partes da cabeça (Anda,

tropeça no divã, por alguns momentos se senta).

ALBANO — Descanse um pouco.

TANCREDO — (É com dificuldade que se levanta: o corpo lhe pesa)

Não, o que eu quero é andar (Anda, percorre a sala, repara numa

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reprodução colorida: a Ceia de Cristo; repara, ainda, em outras

reproduções de santos, todas emolduradas). Sabe, Narinha, eu também já

fui católico, desses ranhetas, como eu vejo que você é. Ia muito à Igreja e

gostava sinceramente do Padre Ovídio (Para Albano) Se lembra dele?

(Albano bate a cabeça, diz que sim) Meu pai é que não tolerava minha

amizade com o Padre Ovídio. Sempre que me surpreendia a rezar, ele me

esculhambava. Isso porque era positivista, Narinha, um positivista dos

feios, dos fanáticos. Escreveu não leu, ele metia o positivismo em cima da

gente. Se lembra do meu velho, Albano?

ALBANO — Me lembro.

TANCREDO — Era um bom velho, mas tinha aquela mania de

positivismo. (Para Zulnara) Você imagine, irmã, que ele arranjou com uns

parentes de Lisboa um grande retrato do Augusto Comte, enforcou o bicho

num passe-partout, um passe-partout dourado, e desenhou, debaixo, com

letras caprichadas e vermelhas, dois versos de Camões, uns versos bacanas,

versos que, na minha opinião só um homem é deles deveras merecedor.

Fleming, o grande Fleming! Quero me referir a sir Alexander Fleming, o

inglês, . . Você sabe quem foi Fleming, irmã?

ZULNARA — Não.

TANCREDO — (Espantado) Verdade mesmo? Uma mulher do seu

tamanho, da sua idade e não sabe quem foi Fleming?! Diga: sabe ou não

sabe? Sabe quem foi o genial Sir Alexander Fleming?

ZULNARA — Não. Nunca tive interesse em saber. E nem tenho hoje.

TANCREDO — (Irritado) Devia ter. Você fala com esta tranquilidade

toda porque nunca sofreu uma doença venérea das brabas!

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ALBANO — (Entre o susto e a irritação) Tancredo!

ZULNARA — (Apenas interrogativa) O que é isto? Que coisa é venérea?

TANCREDO — (Violento, para Zulnara) Você não sabe o que seja uma. .

.

ZULNARA — O que?

ALBANO — (Interpondo-se, empurra Tancredo) Respeite! Respeite

minha casa!

ZULNARA — (Para Albano) Que irritação é esta, meu bem?

TANCREDO — (É com facilidade que se liberta de Albano) Que ele se

irrite ou não irrite, pouco se me dá. O mal de vocês é que me interrompem,

não me ouvem, não se apropriam do meu espírito comemorativo, da minha

alegria. Vocês me olham como se eu fosse passarinhozinho quando hoje eu

sou um grande pavão. Um imenso pavão. Isto é que me aporrinha. Eu exijo

que vocês me ouçam (Percebe que o ambiente está carregado. Para o

violinista) Você aí, ó animal, meta aí uma coisa acalmativa, vá, meta.

(Violinista toca uma valsa) Esta mesma, tá boa. Isto aí é de Schubert?

(Violinista sacode a cabeça, diz que não) É de Baqui? (Violinista com

gesto de cabeça diz que não) Então é coisa de um valdevino aí qualquer

(Violinista, ainda sem deixar de tocar, faz gesto afirmativo) Continue

tocando, vá, toque (Repara em Albano e em Zulnara), adiante, adiante.

Agora, vamos, acabe. (O violinista prossegue) Acabe, seu porco!

(Violinista obedece) Bom. . .

ZULNARA — (Para Albano) Que coisa é venérea, meu bem?

TANCREDO — (Para Zulnara) Se manque, Narinha, se manque. A

palavra está comigo. Se o dinheiro é meu, a palavra é minha. . . Isto de ter

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dinheiro, irmãos é o fino, ainda mais se o dinheiro é farto e bom. Noel Rosa

disse uma vez que c dinheiro é a flor sumítica amarela. . . Bobagem dele.

Pelo que uma vez me disseram, alguém xingou o dinheiro chamando-o de

"rufião universal". Besteira. Dinheiro, quando pouco, é bosta, quando

muito é uma flor de intenso perfume (Alegre com a idéia) Sabem o que um

dia desse vou fazer? Vou pingar gotinhas de perfumes franceses nas minhas

muitas notas de 10 mil pratas... A propósito de que falei disso? Engraçado,

as idéias se atropelam em minha cabeça — tudo porque não me lembro

direito dos versos de Camões. Se lembra dos versos, Albano?

ALBANO — Quero apenas lembrar que estamos mais de meia noite. . .

TANCREDO — Meia noite que se campe! Quero é me lembrar dos

versos.

ALBANO — Diga, ao menos, que tipo de proposta você pensa em me

fazer.

TANCREDO — (Forçando a memória) Era um negócio assim começando

com um "morte peitada", uma coisa assim, vamos, memória escrôta,

vamos, burrinha. . . "Peitada foste...", é assim, começa assim. . . "Peitada

foste". . . deixe eu me lembrar. . .

ZULNARA — (Para Albano) Que coisa é venérea, meu bem?

ALBANO — (Chateadíssimo) — Um estado de espírito.

TANCREDO — Há "Peitada foste" mas falta o começo. . .

ZULNARA — (Para Albano) É coisa do materialismo?

ALBANO — (Chateadíssimo) O que, Zulnara, materialismo o quê?

ZULNARA — A tal de venérea?

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ALBANO — É! Esqueça isto! Vá dormir!

TANCREDO — Vocês podem ficar calados enquanto eu penso?

ALBANO — (Tentando ser persuasivo) Amanhã, Tancredo, amanhã você

virá almoçar conosco, fará sua proposta, dirá os versos. Por favor,

amanhã...

TANCREDO — Não. Tudo se resolverá hoje.

ZULNARA — (Para Albano) Já perdi o sono, meu bem.

TANCREDO — No começo havia morte, sim, havia a palavra morte e

havia sol, sol. Isto mesmo, sol! Eis aí, sol! Agora me lembro. Ouçam: havia

o retrato de Augusto Comte, cercado de dourado por todos os lados, e

debaixo, em letras vermelhas, os seguintes versos de Camões: "Do sol

peitada foste cruel morte / para...”Ouçam, ouçam seus palermas, ouçam que

beleza:

"Do sol peitada foste, cruel morte,

Para o livrar de quem o escurecia!"

Perceberam vocês que versos assim devem definir um homem como Sir

Alexander Fleming e nunca um tipo secundário como Augusto Comte?

ZULNARA — Eu não percebi nada

TANCREDO — (Para Albano) E você, irmão?

ALBANO — Tancredo, por favor, amanhã. . .

TANCREDO — (Gritando, excitadíssimo) Vocês são uns tapados!

Sobretudo você, Albano, que é homem, você deveria Oh! meu Deus, tudo é

tão claro! Com estes maravilhosos versos de Camões meu pai queria dizer

que o sol — olhem aí de quem se trata, do sol! Do astro-rei! — meu pai

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queria dizer que ele, o sol, invejando Augusto Comte, contratou a morte

para matar o homem, ou seja, o dito Augusto Comte. E a morte não se fez

de rogada — matou-o. Perceberam? O sol teve ciúmes da glória de

Augusto Comte. Ora, real merecedor desses versus maravilhosos é

Fleming, Sir Alexander Fleming, glória imorredoura da Humanidade,

magnífico triunfador sobre a gonorréia!

Albano — Respeite esta casa, Tancredo!

ZULNARA — Não entendo esta sua agitação, meu bem. Ele está dizendo

que é contra o materialismo!

ALBANO — (Para Zulnara) Deixe de ser imbecil, cale esta boca!

ZULNARA — Mas, meu bem, a gonorréia é venérea, é materialismo. . .

ALBANO — (Irritadíssimo) Cale-se, já disse, cale se!

TANCREDO — (Espreguiçando-se) Estou ficando com sono (Boceja)'.

Há dias que não durmo de enfiada. Dava uns cochilos, coisa e tal, e tome

farra!

ALBANO — Vá para o Hotel, Tancredo. Amanhã falaremos de negócios.

Irei buscá-lo, faço questão.

TANCREDO — Não vou pro Hotel zorra nenhuma. (Aponta o divã) Vou

ali (Caminha para o divã) deito e durmo e, seja Deus bom, eu sonharei

com passarinhos.

ALBANO — É incômodo, Tancredo, este divã é muito incômodo.

TANCREDO — (Deitando-se) Para mim está bem (Para o violinista) Vá,

animal, toque; você sabe o que tocar, toque. (Violinista toca o "Acalanto",

de Dorival Caymmi. As duas mulheres acariciam-no. Para Albano) Vou

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lhe pagar cinco, dez vezes, o que você ganha aqui. Vou lhe facilitar a

compra de um apartamento, dos grandes, e carro, e radiola e tudo o que

significa conforto. Lhe juro isto, irmão, você terá conforto. Vá, agora saia,

leve ela pró quarto, saia, eu quero dormir.

Zulnara sai. Albano põe-se atrás do violinista e das prostitutas, a repará-

los .Zulnara regressa com um cobertor. Albano impede que ela o estenda

sobre Tancredo. As prostitutas e Zulnara cantam, acompanhando o

violinista, o estribilho do "Acalanto". Albano hesita um pouco e passa a

cantar também. As luzes se apagam e quando retornam apenas permitem

ver que o violinista entrega paletó e gravata a Albano e que as duas

prostitutas vestem um vestido simples em Zulnara, Tancredo vigiando a

todos. Agora o palco está iluminado: é um escritório amplo. O divã agora

transformado em sofá, serve para que nele estejam sentados o violinista e

as duas prostitutas. Tancredo, Albano e Zulnara estão de pé.

TANCREDO — (Dirige-se à platéia) Meus amigos, companheiros de

trabalho, esta é a senhora Zulnara, espôsa aqui do nosso diretor geral de

vendas, o senhor Albano, que todos vocês conhecem. Todas as sextas-

feiras, neste horário, a senhora Zulnara estará aqui para nos brindar com

maravilhosas histórias de Santos da Santa Madre Igreja Católicas. Hoje

encontram-se reunidos somente os funcionários da Matriz mas já na

próxima sexta-feira teremos conosco os funcionários das filiais e das

demais empresas que tenho a honra de presidir. Quanto aos operários, nada

feito. Eles têm o mundo deles, que fiquem por lá. São interesseiros,

rebeldes, indisciplinados. Fiquem por lá. Bom, já falei demais. Agora

ouçam a senhora Zulnara com o acompanhamento musical ali do Otacílio.

Zulnara, por favor...

ZULNARA — (Violinista a acompanha tocando "Avé Maria" de

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Gounod) Irmãos em Cristo, boa tarde. Vou cantar hoje, neste nosso

primeiro encontro, a maravilhosa história do divino São Francisco de Assis.

São Francisco de Assis. . .

TANCREDO — Zulnara, permita. . . (Para a plateia) É que eu esqueci de

avisar o seguinte: após a reunião haverá distribuição de bombons e

refrigerantes (Albano acende um cigarro) Para os homens, claro, umas

bramazinhas e alguns tira-gosto. Adiante, Zulnara. . .

ZULNARA — Falar de São Francisco de Assis, meus irmãos, é falar na

humildade, na fé poderosa, na bondade pura, na devoção permanente à

Santa Madre Igreja Católica. Falar do São Francisco de Assis é falar nos

melhores sentimentos que nossos corações abrigam. . . (Pouco a pouco,

dominando, poderosamente, o violino e a voz de Zulnara, ouvem-se,

estridentes, as notas da canção. “Era um rapaz que, como eu, amava os

"Beatles" e os "Rolling Stones".” Todos, então, se imobilizam. As luzes se

apagam lentamente).

FIM