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O DESENHO EM CENA - ULisboa

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O DESENHO EM CENA

RESUMO: Em território de associação do visível ao pronunciado, fenómenos da sua

génese, o desenho embrenha-se no teatro como traço orientador, ordenador e

delimitador do acontecimento e como elemento catalisador da convergência e do

percurso dos olhares.

Com as técnicas e procedimentos que lhe são próprios, o desenho estrutura, sistematiza

e formaliza processos operativos de concretização e expressão de um espectáculo visual.

Manifestações motoras do desejo - teatro e desenho - gestos que perseguem o contorno

da sua sombra.

PALAVRAS CHAVE: Desenho, Teatro, Cenografia, Espectáculo, Linguagem, Texto,

Espaço, Gesto, Movimento

ABSTRACT: In the territory of association between the visible and the pronounced,

phenomena of its own genesis, drawing penetrates theatre as a mapping, ordering and

boundering trace of the happening, and as a catalyst element for convergence and

coursing looks.

With the techniques and the procedures of its own, drawing, structures, systematizes

and formalizes operational processes of a visual performance concretion and expression.

Mechanical starters from desire - theatre and drawing - gestures pursuing the outline of

their own shadows.

KEYWORDS: Drawing, Theatre, Scenography, Stage Design, Performance, Language,

Text, Space, Gesture, Movement.

ii

ÍNDICE

INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 1

1. DO DESENHO ............................................................................................................. 5

2. DO TEATRO .............................................................................................................. 13

3. O DESENHO NO LUGAR TEATRAL ..................................................................... 22

3.1 O DESENHO NAS ORIGENS DO LUGAR TEATRAL .................................... 22

3.2 O DESENHO NO LUGAR TEATRAL MEDIEVAL ......................................... 44

3.3 O DESENHO NO LUGAR TEATRAL À ITALIANA .......................................... 60

CONCLUSÃO ................................................................................................................ 83

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................ 85

ANEXO 1 - GLOSSÁRIO DE TERMINOLOGIA DO TEATRO GREGO ................. 90

1

INTRODUÇÃO

A experiência profissional acumulada ao longo dos últimos 20 anos na colaboração em

espectáculos de teatro, dança e ópera, foi acompanhada pela necessidade de sistematizar

reflexões, questões, associações, constatações gradual e empiricamente sedimentadas. A

integração em equipas de cenografia sustentou-se na disponibilidade de uma mão-de-

obra técnica, visual e culturalmente em formação, capaz de se adequar à diversidade dos

modos propostos e às linguagens convergentes e proporcionada pela formação em Belas-

Artes – curso de Escultura. Cedo se tomou como certo que a comunicação com os

responsáveis pela concepção visual dos espectáculos, normalmente profissionais com

formação em áreas das artes visuais (Arquitectura, Pintura, Escultura, Design,

Multimédia), fluía em torno de referenciais próximos, do domínio da cultura visual e no

uso de uma linguagem comum.

O terreno permeável à especulação visual aparecia, assim, disputado pelas corporações

das áreas visuais1; porém, a disposição em palco de um corolário visual, em diálogo

com outros discursos (verbal, musical, gestual), não se verificava incorrompível.

Consoante as materializações em prática fossem mais próximas da Arquitectura, do

Design, da Pintura ou da Escultura, o que o espectador encontrava em cena não eram,

contudo, produtos integrais dessas expressões, mesmo se consideradas em diálogo

sinestésico. Por outro lado, a pureza particular de cada linguagem era extrapolada

quando a unidade visual ensaiada passava a integrar e a ser alterada pela presença de um

corpo interpretativo humano (actor, bailarino, cantor ou performer). Independentemente

da disciplina visual adoptada, o resultado reconhecia-se invariavelmente como

cenografia e as experiências transdisciplinares e de fusão das artes, só por si, não

implicavam esta denominação. Impunha-se, então, apurar em que assentava a sua

convergência com as variantes das Artes Visuais e quais as suas especificidades,

aumentando a suspeição de que o Desenho seria a conjunção das matérias em disputa e

pela qual a ingerência num discurso, que radicava na expressão humana pelo movimento,

gesto, palavra, era permitida.

1 Cabe aqui uma referência a uma mesa-redonda realizada em 1989, no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian em torno da problemática da Cenografia, de que se desconhece o registo em acta ou relatório, numa altura em que a expressão visual dos espectáculos em Portugal se tornava particularmente exuberante, e cujos cenógrafos participantes, todos da área das Artes Visuais, apontavam à vez, a sua formação académica individual como a mais adequada para a prática da Cenografia.

2

A estruturação da formação alicerçada em torno da matéria do Desenho, proveniente do

percurso académico pessoal, concomitante com práticas profissionais que

constantemente solicitavam o recurso a esse universo, produziu uma convivência regular

embora avulsa, entre os dois universos, cuja sistematização se impôs, vantajosamente

verbalizada, encontrando no enquadramento académico o meio ideal e privilegiado,

motivando parcialmente a opção pelo Mestrado em Desenho e determinando o objectivo

desta dissertação.

Subjacente ao reconhecimento, articulação e manipulação do vocabulário recorrente a

qualquer uma das Artes Visuais, incluindo a Cenografia, surge aqui a necessidade de

fixar um conceito abrangente de Desenho, decorrente do acto voluntário, dinâmico e

consciente da Visão, simultaneamente método de apropriação do real e formulador de

raciocínios, cuja prática se confunde com o manuseamento dos seus recursos, para além

do domínio meramente gráfico. Esta dissertação parte da necessidade de sistematização

da articulação desse conceito com o fenómeno teatral.

Uma primeira impressão faria supor que a análise do processo operativo em Cenografia,

meio onde germinou esta necessidade, seria suficiente para corresponder ao objectivo

proposto. Porém, o conceito contemporâneo de Cenografia, comportando a concepção e

articulação da multiplicidade de aspectos visíveis do espectáculo teatral, evolui, ele

mesmo, de uma tradição onde é menor o lugar de actuação que lhe foi atribuído.

Circunscrita ao espaço de representação, ela não determinou mais do que uma

componente parcial de uma unidade geral, o lugar teatral, cuja conformação diz respeito

à esfera do desenho na arquitectura para teatro e funções adjacentes.

Mas, para além disso, este complexo, ditado pela Arquitectura e Cenografia, é

condicionante, mas, também ele, determinado por um conjunto de actos de desenho de

carácter mais volátil e impreciso, emanados das representações a que o lugar teatral se

foi ajustando. Assim, a restrição, nesta dissertação, do campo de pesquisa à Cenografia

ou à Arquitectura teatral, deixaria de fora a atenção a um vasto corpo de desenhos, ou

actos de desenho, fundamentais à determinação dos mais evidentes.

Dada a extensão do universo daí resultante, centrou-se o objectivo deste trabalho na

sinalização das áreas estruturantes do fenómeno teatral onde o Desenho tem manifesta

presença e identificação das formas que, a partir da sua radicação teórica no seio das

Belas-Artes, o Desenho pode tomar, para aí se implantar. Assim, para além da função

estruturante espacial, há que considerar de uma forma genérica, associados à primazia do

3

domínio visual do Desenho, aspectos de carácter háptico e cinético, como funções

enfáticas da linguagem teatral.

A metodologia seguida impôs, em primeiro lugar, a redefinição elementar dos conceitos

de Desenho, dos desenhos, do substantivo e do verbo e da sua articulação em ligação ao

repositório tratadístico, da sua génese mental e gestual, subjectiva e objectiva, dos

processos e meios disponíveis à manipulação, correspondendo à necessidade de

recolocação de marcas referenciais a uma indagação sobre presenças, que se pressentem

e se desejam clarificar.

Num capítulo inicial, 1. Do Desenho, apresentam-se os aspectos gerais e as relações

intrínsecas da problemática do Desenho numa aproximação a um conceito genérico,

dando particular atenção àqueles que se revelam como mais evidentes nas vias de

pesquisa dos capítulos seguintes. Tratou-se de elencar aspectos do Desenho que

pareceram eficazes para a prospecção que se pretende no território do Teatro.

De seguida, em 2. Do Teatro, circunscreve-se a formulação elementar da noção de

Teatro, pela apresentação dos seus aspectos essenciais e do contributo enfático do

Desenho na sua colocação e interacção estabelecida em sistema visual e da sua utilidade

como instrumento da Cenografia.

Referem-se as inerências do Desenho com a linguagem e com a precisão da “ideia” na

análise e interpretação do texto dramático. Foca-se em seguida o lugar da representação,

consensualmente considerado o domínio da Cenografia e nas formas que, pelo Desenho,

manipula os diferentes materiais que enfrenta e os modos pelos quais este pode estruturar

tridimensionalmente o espaço cénico numa materialização, com procedimentos próprios

do método projectual e dos processos construtivos. Por último, partindo da frágil ideia da

desmaterialização da Cenografia, indaga-se a presença do Desenho nos recursos do

trabalho do actor.

Numa terceira secção, explora-se a via pela qual o Desenho foi conformando (numa

relação dinâmica entre o conceito de Cenografia e Arquitectura para Teatro) o lugar

teatral, com vista ao apuramento deste “sistema visual” de acordo com os códigos

próprios de cada época. Concentrou-se a análise nas manifestações que representam

inflexões mais pronunciadas no trajecto de evolução da tradição ocidental e em que a

presença do Desenho se julga mais significativa. Assim, reservaram-se três capítulos

dedicados ao Desenho na evolução do lugar teatral, compreendendo as origens gregas na

Antiguidade, as manifestações medievais de génese religiosa e o surgimento do teatro à

4

italiana, que de algum modo se pode considerar ainda activo nas tentativas actuais da

sua própria negação. Foram deixadas de fora desta visão geral, expressões cuja

significação para esta abordagem dependesse de contextualização específica (por

exemplo a Commedia dell’Arte e o teatro isabelino) ou por representarem

desenvolvimentos de características já enunciadas de algum dos três paradigmas

estudados (teatro romano na Antiguidade e os desenvolvimentos do teatro à italiana dos

séculos XVII ao XIX).

Não se pretendeu, nem aqui caberia, a extensão de um estudo exaustivo e em

profundidade dos exemplos apresentados; apenas se tentou, pelo cruzamento das

informações fornecidas por bibliografia disponível e genérica, apontar as situações em

que o Desenho foi ou poderá ter sido mais influente e seja objecto de estudo posterior

mais aprofundado.

Apesar da inclusão da matriz de pesquisa para “lugar teatral”, não se usou como

metodologia a análise sistemática e inter-relação de todos os seus componentes, que por

si só, requerem focalização e contextualização mais restritas. No léxico contemporâneo

de “lugar teatral”, a componente “lugar de representação” aparece com a denominação

de “espaço de representação”; não foi encontrada referência às causas desta deslocação,

mas pode depreender-se que derive de uma noção menos condicionada e mais dinâmica

do conceito de “espaço” em relação ao de “lugar” e/ou esteja relacionada com a

possibilidade da utilização contemporânea de espaços para representação com a

categoria de “não-lugar” e ainda com a noção de campo expandido.

A metodologia foi sendo adaptada em contacto com o material de pesquisa, onde as

noções de território e mapeamento se tornaram impositivas pelas características dos

objectos de estudo e respectiva terminologia específica (Desenho/lugar

teatral/Cenografia) e acabaram por dirigir pelas instâncias mapeadas, parafraseando Paul

Klee, “a walk for a walk’s sake” 2.

2 KLEE, Paul, Pedagogical Sketchbook, 7ª edição, Introd. e trad, por Sibyl Moholy-Nagy, Praeger Publishers, Nova Yorque, 1972 (1ª edição 1953), p. 16.

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1. DO DESENHO:

A procura de vestígios do Desenho no âmbito de uma actividade que o excede, o Teatro,

apesar de suscitada por constatações durante o processo operativo, obriga à adopção de

uma estratégia analítica, por elementar que seja, de determinação daquilo que

precisamente se busca, acautelando o despontar de contornos menos evidentes, mas que,

até talvez por isso, mais significativos dessa conjunção, que escapem ao apuramento

operativo (se por um lado essa constatação se supõe melhor radicada quando feita no

terreno de actuação - palco - mas menos sistematizada, por outro, na mesa de análise

corre-se o risco de deixar escapar singularidades e subtilezas derramadas por entre os

materiais durante a sua manipulação). Assim, impõe-se ainda que de passagem, uma

delimitação do conceito corrente de Desenho e a invocação dos seus nomes, ou seja, as

interrogações com que se costuma iniciar os tratados e manuais e ainda as provas

académicas como esta, que o Desenho sempre foi colocando a si mesmo, porque aí se

encontram as respostas: o que é o Desenho, o que é um desenho?

No texto de introdução a Desenho3, da colecção O que é, invoca-se, em aproximação à

definição que o título da obra e da colecção prometem, a presença de uma dualidade,

um par compreendido por um objecto e uma acção que o produz – falando do que é o

Desenho; já um desenho, será então “(…) um conjunto de linhas sobre um papel, feitas

directamente com a mão, que resulta nesse objecto comum. (…)”. Acrescenta-se, de

seguida, ao “gesto controlado da mão”, a envolvência de complexos “processos mentais

e capacidades de abstracção”. A definição parte do exemplo mais comum e elementar,

mas permite, analisando deste ponto de partida, chegar a circunscrições mais alargadas,

ou mesmo insuspeitadas.

O Desenho constituirá, então, um conceito que radica numa acção determinada que

produz um objecto definido envolvendo um processo mental.4 Determinar verbalmente

o conceito que se tem de Desenho, ou uma aproximação que seja, parece constituir uma

dificuldade, frequentemente confessada, de resto, logo nos parágrafos de abertura da

grande maioria dos escritos consultados, onde se recorre à evocação do acto de

desenhar e do objecto desenho de modo a poder prosseguir. 3 RODRIGUES, Ana Leonor M. Madeira, Desenho. Colecção, o que é, Quimera Editores, Lda., 2003. 4 “Desenho é, então, tanto o acto de desenhar, como o objecto daí resultante, como o que está contido no conceito do próprio termo.”, Id. p.28.

6

Dificuldade indiciadora, se aceitarmos que o Desenho deve as suas manifestações mais

remotas,5 lá onde a formação da consciência precipitou a interacção social e a

articulação da linguagem, em cujas fronteiras o Desenho se acolhe com função

comunicativa e onde o indizível lhe confere uma carga mágica e mítica que jamais o

abandonará. Acontecimento, de resto, repetidamente testemunhado durante a fase inicial

do desenvolvimento gráfico infantil6 ou, depois, vida fora, sempre que a palavra se

mostrou ineficaz para ir “mais além”.7 O advento do Desenho funda uma relação

dialéctica com a linguagem, particularmente com a linguagem verbal e mais tarde com a

escrita.8

Arnheim denuncia o “fracasso” em tentar codificar e categorizar adequadamente a

experiência visual por via directa do discurso verbal, segundo uma herança cultural que

nos leva a negligenciar a compreensão das coisas pelos sentidos, reduzindo os nossos 5 Ana Rodrigues aponta como possibilidade, que a capacidade de identificar formas como o vestígio de coisas ausentes (marcas no chão deixadas por outros seres, como pegadas, ou na areia, produzidas pelos movimentos das ondas do mar), tenha impulsionado a sua reprodução, com a intenção de declarar uma presença ou iludir outras criaturas, ou que perpetuassem o momento presente (declaração de presença e marcação de território), Ibid., p.28. 6 “Acto de conhecimento, de apropriação, de simpatia e mesmo de comunhão, figura do desejo, o desenho é também um acto vital, necessário, desde a infância individual e desde a infância da humanidade.” RUDEL, Jean, A Técnica do Desenho, Zahar Editores S.A. Rio de Janeiro, 1980, aba da capa. 7 “(...)os pesquisadores de quase todas as disciplinas que, chegados a determinados limites nos próprios conhecimentos expressos pela palavra, encontram com um sinal não verbal a possibilidade de irem mais além.(…)”, MASSIRONI, Manfredo, Ver Pelo Desenho, aspectos técnicos, cognitivos, comunicativos, Edições 70, Lisboa, 1989, p.17. 8 Os primeiros registos rígidos intencionais poderão ter transbordado da necessidade de fixar toda a informação produzida pela linguagem enquanto meio comunicacional, armazenada na memória individual e colectiva. A sua sofisticação, poderá ter evoluído para uma simplificação e tradução em elementos regulares e facilmente identificáveis, originando uma codificação e a escrita. Ana Rodrigues afirma que a escrita terá provavelmente uma origem semelhante à do desenho. Op. cit., p.37. (...)”a arte figurativa é inseparável da linguagem e nasceu da formação do conjunto intelectual fonação-grafia. Consequentemente, é evidente que, desde o princípio, fonação e grafismo têm o mesmo objectivo. Parte da arte figurativa, talvez a mais importante, designarei aqui, por falta de melhor denominação, como «picto-ideografia». Quatro mil anos de escrita linear fizeram-nos separar a arte da escrita e é necessário um esforço de abstracção e o conhecimento de todos os trabalhos etnográficos dos últimos cinquenta anos para reconstruirmos em nós uma atitude figurativa que foi e ainda é comum a todos os povos afastados da fonetização e, sobretudo, do linearismo gráfico.”, GOURHAN, André Leroi, O Gesto e a Palavra, I - Técnica e Linguagem, col: “Perspectivas do Homem”, Edições 70, Lisboa, 1985, p.193. “(…)As linguagens são sistemas de comunicação e de representação que utilizam uma simbologia comum ao emissor e ao receptor da mensagem. As linguagens naturais podem recorrer a sinais visuais (mímicas, gestos), auditivos (gritos, cantos, palavras) ou utilizar qualquer outro canal sensorial. Embora existam alguns sistemas de comunicação aperfeiçoados no mundo animal, a linguagem articulada humana apresenta particularidades consideráveis, sendo uma das principais a dupla articulação: trocando a posição dos sons, modifica-se também o sentido do discurso, o que fornece um número quase ilimitado de possibilidades. Uma outra particularidade que parece ser especificamente humana é de ser capaz de evocar, graças à linguagem, objectos ou acontecimentos futuros, passados ou que nunca existiram. Graças a esta particularidade, somos, sem dúvida, a única espécie animal que possui uma história. As outras espécies precisam de reaprender tudo em cada geração, o que deixa muito pouco espaço para o progresso e para a acumulação de conhecimentos ao longo do tempo. (…)”, PAPE, Gilles Le, Nathalie Puzenat, ABCedário do Cérebro, trad. de Ana Gerschenfeld, Edição Portuguesa da Reborn para o Jornal Público, 2000, p. 80.

7

olhos a meros instrumentos de identificação e de medição e relegando o pensamento

para o território das abstracções, resultando na ruptura entre conceito e percepção, só

superável por análise perceptiva.9 Lersundi10 abre o capítulo dedicado à definição de

Desenho com uma citação de Duchamp,11 confessando o seu desentendimento com a

linguagem e o nulo crédito que lhe atribui e subscreve a ideia de Francastel de que a arte

constitui um “tipo de pensamento autónomo específico” a que toda a “aproximação a

partir do pensamento verbal se limita a uma intenção aproximada e em todo o caso

metafórica”12 e concorda com Dewey13 na impossibilidade de “falar de uma ideia e da

sua expressão”, posto que a “expressão é mais que um modo de comunicar uma ideia já

formulada: é uma parte essencial da sua formulação”. Por último, Garner14, ao propor

uma cartografia da investigação em Desenho na actualidade reunindo ensaios de

investigadores convidados, sintetiza, como uma demonstração da “compreensível mas

afinal frustrante” procura de definições, o capítulo confiado a Deanna Petherbridge, que

toma como sintomáticas a “obsessão” e “frustração” aportadas pelas tentativas de

formulação de definições consensuais, a que se deve o estado latente e irresoluto do

Desenho enquanto tópico de estudo, que aguarda por ser formulado.15 Molina16 repõe

9 “Palavras podem e devem esperar até que a nossa mente deduza, da unicidade da experiência, generalidades que podem ser captadas por nossos sentidos, conceptualizadas e rotuladas.” ARNHEIM, Rudolf, Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora, tradução de Ivonne Terezinha de Faria, 12º edição, 1954/74/98, Introdução, s/ pg.. 10 LERSUNDI, Gentz del Valle de, En Ausência del Dibujo, El Dibujo y su enseñanza trás la crisis de la Academia, 2001, p.17. A definição de Lersundi, que sintetiza como a <”acção do pensamento registada pela imagem, indissoluvelmente ligada à sua materialização num meio, neste caso o gráfico”>, parece basear-se na afirmação de Jean Fisher “< o acto do desenho torna possível a identidade mágica entre pensamento e acção, porque desenhar é o mais rápido médium e pode assim proteger a intensidade do pensamento. Desenhar nunca é uma transcrição do pensamento (no sentido da escrita) mas antes uma formulação ou elaboração do pensamento em si, no exacto momento em que ele se traduz a si próprio numa imagem>”, FISHER, Jean, On Drawing, The Stage of Drawing, Gesture and Act, 2003, p.221-222, citado por DEXTER, Emma, VITAMIN D, 2005, p.008. 11 “En cuanto empezamos a poner nuestros pensamientos en palabras e frases todo se distorsiona, el lenguage no vale para nada – lo uso porque tengo que hacerlo, pero no pongo ninguna fe en ello. Nunca nos entendemos”. Marcel Duchamp, Op. cit., capítulo 1 Sobre la definición de dibujo, p. 15. 12 Id, ibidem, s/ indicação de fonte. 13 “DEWEY, John, Imagination and Expression, Kindergarten Magazine, vol. IX. Nº 1 1896, citado por Seymour SIMMONS em Bringing Art to Mind, tese apresentada na Universidade de Harvard, 1988”, Ibidem, p.17. 14 GARNER, Steve, Writing on Drawing, Essays on Drawing Practice and Research, 2008, p. 10. 15 “< O Desenho como tema de estudo é um tópico à espera de ser formulado. E uma das razões principais para o seu estado irresoluto é a problemática questão de definir o que é o desenho. A comprová-lo, não há um livro ou artigo acerca da história ou prática do desenho que não tenha tentado algum género de definição, mas a urgência com que historiadores e comentadores desenvolvem, pulem, questionam e criticam tais formulações é sintomática do problema. (...) O desenho, contudo, raramente atrai pontos de vista consensuais. Ao contrário ele aporta frustração ou obsessão ao tentar clarificar algo que é escorregadio e por resolver no seu fluido estatuto como acto e ideia performativos; como signo, como símbolo e significante; como diagrama conceptual tanto como médium e processo e técnica.

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alguma tranquilidade ao observar que a dificuldade de compreensão do termo desenho

advém do aparente valor excessivo com que ele se instala na linguagem do quotidiano,

enriquecendo-se com sentidos alheios aos que a prática artística lhe conferiu e que se

relacionam com necessidades fundamentais de compreensão e nomeação do quotidiano.

Uma generalizada aplicação “abusiva” do termo que nos afasta da “clareza definidora”

de “um objecto definido e uma acção determinada”.17 O conceito imediato que a

palavra desenho encerra, parece surgir então balizado entre um uso vulgarizado e

descontraído, com acepção muitas vezes metafórica e, por outro lado, uma recolocação

definidora, estável, referencial.18 Encerra-se aqui este parêntesis acidental, relativo à

manifesta dificuldade em circunscrever verbalmente o conceito de Desenho,

apresentando testemunhos dispersos pelo último meio século, mas com a convicção de

que as relações entre o Desenho e linguagem fixada em texto, de que esta dissertação é

também arremedo, serão uma questão de eterno retorno atendendo ao universo a que

nos dirigimos – o espectáculo de Teatro.

A linguagem e o Desenho parecem ter convivência mais pacífica, quando chamados à

discussão, o gesto e o objecto. É por esse caminho19 que conduz a pesquisa semântica:

“ «O substantivo “desenho” deriva do latim designu, vocábulo rico de sentido,

podendo simultaneamente significar “desenhar” e “designar”. O desenho,

obra inscrita sobre um suporte com duas dimensões, apresenta plasticamente

uma essência, um conceito, um pensamento ou representa as aparências do

nosso mundo natural.»”20

A relação com a fixação de uma essência, de um conceito ou pensamento ficara já

estabelecida atrás, mas, o que surge aqui, é não só a invocação do verbo, da acção, ou Com tantas, tantas utilizações, manifestações e aplicações.>”. PETHERBRIDGE, Deanna, Nailing the Liminal: The Difficulties of Defining Drawing, in GARNER, Steve, Id. p.27. 16 MOLINA, Juan José Gómez, Las Lecciones del Dibujo, Madrid, 1999, p. 17. 17 “ (...) porém o uso e abuso deste substantivo acaba por englobar uma quantidade vasta de significados, chamando nós desenho às marcas das ondas na areia, à imagem impressa a partir de um programa de computador, às sombras de um objecto, ao voltear de uma figura em movimento ou até a qualquer imagem de carácter não fotográfico.”, porém, a seguir, Rodrigues admite a utilidade dessa intrusão mas não com a qualidade enriquecedora de Molina “(...) não obsta a que esses mesmos abusos e excepções expliquem e ajudem a perceber o processo complexo que é desenhar:” Rodrigues, Ana, Op. cit., p.21. 18 < “ (...) o perigo pode ser ficarmos com uma clara impressão de que o desenho pode ser qualquer coisa. Isto constitui o problema de que se tudo é desenho, então ele também é nada – ou pelo menos, nada especial.” >, TAYLOR, Anita, Foreword – Re: Positioning Drawing, in Garner, Steve, Id., p.11. 19 Tentado também por Ana Rodrigues, em capítulo específico (o 2.) dedicado a O termo «desenho», Op. cit., p.20. 20 SOURIAU, Etienne, Vocabulaire d´Esthétique, Paris, PUF, 1990. Citado por RODRIGUES, Ana, Id., ibid..

9

seja, do gesto de “desenhar”21 e do substantivo ou objecto “desenho”22, como também,

a possibilidade de ele representar23 uma aparência da realidade.

“Associamos a ideia de desenho ao acto de desenhar e à forma que resulta desse

acto”24, sendo essa ideia conformada pelo conjunto de desenhos que conseguimos

considerar como tal e aos gestos necessários para os realizar. Esta interdependência que

conduz, na tentativa de delimitar um conceito, à invocação de todos os objectos que o

conformam e dos gestos que os geraram, reside concerteza, na natureza tautológica do

Desenho, de que Emma Dexter fala25 e que faz com que um desenho se refira sempre ao

processo da sua concretização e, a partir daí, do sujeito26 que o realizou, em diversos

graus de aproximação. Uma vasta gama de características decorrem deste factor, e

incompletude, transparência, fragilidade, são ideias que lhe estão associadas.

Simultaneamente e em sentido inverso, o objecto desenho pode remeter para algo para

além de si, representar, uma aparência da realidade exterior ou interior, guardada na

memória ou inventada pela imaginação, uma ideia, ou simplesmente, expressar o estado

psicológico do sujeito.

A circunscrição proposta por Molina27 afigura-se paradigmática, por, a partir da

abordagem estruturalista28 e da palavra desenho, estabelecer um conceito geral, a sua

21 Ou designar, com as acepções de apontar; assinalar; significar; nomear; escolher; determinar. 22 Na definição de Lersundi e de Fisher, estava já de certo modo implícito o carácter bidimensional e a sua constituição gráfica. A este propósito, Ana Rodrigues adverte que as definições variam bastante, referindo-se ou não à bidimensionalidade e ao registo de elementos gráficos; por vezes, indicam logo a possibilidade da delineação de formas, desde a sua génese. 23 Francisco Paiva refere também desde logo o aspecto da representação e introduz o termo signo (e a sua derivação etimológica) e a ideia de economia ou simplificação de traçados: “ Além de ser um dos meios de comunicação mais antigos e vulgares, o desenho é o instrumento mental que mais rapidamente associa o visível às ideias, representa, dá a ver e é visto. Representar com o mínimo de signos conceitos complexos permanece ainda uma tentação primordial do espírito humano. “ e, em nota de rodapé: “no idioma italiano segno (port. Signo), no plural segni, é a base etimológica da voz disegno.” PAIVA, Francisco, O Que Representa o Desenho?, Conceito, objectos e fins do desenho moderno, 2005, p.19. 24 MARQUES, António Pedro, Didáctica do Desenho, Apontamentos para os Alunos do Mestrado em Desenho da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, FBAUL, 2007. 25 <”(...)o desenho sempre descreverá a sua própria execução na sua concretização. Em certo sentido, o desenho não é mais do que isso e a sua eterna incompletude sempre comportará imperfeição e inacabamento.”> e, mais à frente, <“Podemos ter uma vasta compreensão do que é o desenho, (...) O desenho é uma sensação, uma atitude denunciada no seu manuseamento tanto quanto nos materiais utilizados.”>, de <“(...) transparência e natureza reveladoras, assim como o facto de ele servir como um registo de um acto não mediado.”>, DEXTER, Emma, Op. cit., pp. 006, 007. 26 Para Molina a estruturação do desenho aproxima-o da objectivação, enquanto o gesto o reintegra na individualidade, onde retoma o valor animista de inter-relação unívoca entre o signo do sujeito e o próprio sujeito, Op. cit. p.18. 27 Apesar de extensa, apresenta-se a transcrição dos dois parágrafos na íntegra, por se temer que qualquer alteração sintáctica possa diminuir a sua abrangência, já arriscada pela tradução. MOLINA, Juan José Gómez, Id., p. 17 28 Também a noção de estruturalismo, revela a mesma clareza, precisão e abrangência rara nas tentativas feitas por outros autores, mesmo (ou talvez por isso) os mais ligados ao método: “< O estruturalismo tratou de reconstruir esse esforço primário do pensamento através de umas ideias matrizes que

10

implantação no território das actividades humanas ligadas ao conhecimento (nas

palavras de Francastel, ao carácter operatório do cérebro humano), predispor uma

plataforma de possibilidades onde cabem todas as variedades operativas do acto de

desenhar e simultaneamente alcançar uma precisão versátil do objecto desenho, das

suas propriedades plásticas, dos procedimentos que lhe estão associados e do seu valor

simbólico:

“ <O desenho é um termo que está presente como conceito em muitas actividades,

determinando o valor mais essencial delas mesmas, no facto de se estabelecer

como conhecimento. Está sempre relacionado com movimentos, condutas e

comportamentos, que têm em comum serem sustento ordenador de uma estrutura,

através de gestos que marcam direcções geradoras ou pontuais, que servem para

estabelecer figuras sobre fundos diferenciados. Refere-se também aos

procedimentos que são capazes de produzir esses traços definidos e ainda ao uso e

às conotações que esses procedimentos adquiriram na sua prática histórica.

O desenho estabelece-se sempre como a fixação de um gesto que concretiza uma

estrutura, pelo que enlaça todas as actividades primordiais de expressão e

construção vinculadas ao conhecimento, à descrição das ideias, das coisas e dos

explicassem o mundo como um processo de criação de sentido; ligava-se a uma tradição ancestral para explicar a estrutura dos fenómenos por meio dos seus gestos e dos traços das suas marcas. Qualquer acção humana acaba por ser marca de si mesma, qualquer comportamento formaliza a sua estrutura e cria-nos uma imagem análoga da sua razão mais profunda. As estruturas que determinam os gestos, marcam as propriedades com que percebemos e reduzimos o mundo entrópico da percepção. >” Id., ibid.. “Estrutura – Relacionado com os termos «forma», «configuração», «trama», «complexo», «conexão» e outros similares, «estrutural» designa um conjunto de elementos solidários entre si, ou cujas partes são funções umas das outras. Os componentes de uma estrutura estão inter-relacionados; cada componente está relacionado com os demais e com a totalidade. Diz-se, por isso, que uma estrutura é composta mais por membros do que por partes e que é um todo mais que uma soma. Os membros de um todo desta índole estão, segundo diz Husserl, ligados entre si de tal forma que pode falar-se de não independência relativa de uns para com os outros, e de compenetração mútua. Na estrutura há, pois, mais ligação e função do que adição e fusão. Por isso, na descrição de uma estrutura, costumam ressaltar vocábulos como «articulação», «compenetração funcional» e «solidariedade». (...)Como exemplos de estruturas, propuseram-se os organismos biológicos, as colectividades humanas, os complexos psíquicos, as configurações de objectos dentro de um contexto, etc. Estes exemplos foram examinados, por assim dizer, «na sua totalidade» e não apenas nos elementos componentes. Por isso foi possível falar de uma concepção estruturalista, mas também de um método estruturalista, contraposto aos métodos analítico e sintético, de decomposição e recomposição de elementos. (...) O termo «estrutura» costuma traduzir o vocábulo alemão Gestalt e, por isso, fala-se de «gestaltismo» no sentido de «estruturalismo». Também se empregaram os termos «forma» e «configuração». A psicologia estruturalista não surgiu inteiramente como reacção às chamadas concepções «atomistas» e «associacionistas». (…)” MORA, José Ferrater, Dicionário de Filosofia, 1982. “ (...) (a noção de estrutura) É uma hipótese ligada à noção geral do carácter operatório do cérebro humano e à verificação do facto de que toda a actividade dirigida do homem produz obras saídas da sua mão ou do seu espírito ou, dito de outra forma, objectos – que tanto são coisas como objectos de civilização, mas que são sempre constituídos por entidades destacáveis, reconhecíveis e classificáveis em séries.”, FRANCASTEL, Pierre, A Imagem, a Visão e a Imaginação, 1983, p.22.

11

fenómenos de interpretação baseados na explicação do seu sentido por meio das

suas configurações.>”

Na concepção de Molina parece caber toda a diversidade de desenhos29 que se

conseguem facilmente reconhecer como tal e que aqui, por razões que se prendem com

a estratégia de análise, se distribuem por três tipologias maiores, se bem que em

manifesta inter-relação.

Uma primeira ordem, mais vasta e transversal, fundada na especificidade humana que

privilegia o sentido da visão na formação da consciência e na compreensão e

conhecimento do mundo que o rodeia, que desponta as primeiras experiências com o

Desenho nas fases do desenvolvimento gráfico infantil. Esta experiência fundadora

beneficia hoje do gradual reconhecimento e importância dada ao papel cognitivo do

Desenho e da criatividade, pela pedagogia e pontua a existência individual segundo

idiossincrasias próprias, constituída essencialmente por exemplos que se classificam

como desenho espontâneo30. Esta prática tem uma motivação impulsiva, associada à

noção de marca, como registo de presença e interacção com o meio envolvente e com

os outros indivíduos, orbitando muitas vezes em torno da linguagem e da escrita,

adquirindo contornos de linguagem visual global, explorando essencialmente a

potencialidade lúdica e comunicativa do Desenho. Adicionada à profusão de informação

gráfica da envolvente, que hoje se verifica sobretudo nos meios urbanos e com a qual

interage, constitui uma espécie de literacia elementar, capaz de atribuir significado

mesmo a usos que se foram tornando mais elaborados, útil e com possibilidades de

manuseabilidade referenciais quando inseridas em contextos comunicativos mais vastos,

como o Teatro.

Uma segunda categoria, de âmbito mais restrito e especializado, de carácter mais

conceptual, onde se inscrevem os desenhos que desempenham especificidades

profissionais, que podem ter várias classificações como algum desenho efémero,

científico, técnico ou integrado, podendo recorrer a mecanismos auxiliares e códigos

que se poderão afastar do gesto do fazer. É frequente, mas não é regra, ser desenvolvido

por indivíduos cuja experiência pessoal tem uma larga expressão na classe anterior.

Pertencem a esta categoria a vasta gama de sinais que organizam e formatam o mundo

29 ”Todas estas situações, tendencialmente inefáveis, tecem o conceito que se vai elaborando de desenho.”, RODRIGUES, Ana, op. cit., p. 13. 30 Usa-se a classificação proposta por MARQUES, António Pedro, Op. cit., p. 4.

12

em que nos inserimos, sobretudo o espaço urbano, e estruturam-se a partir de

actividades como a arquitectura, o design, a publicidade.

Por último, o conjunto mais vasto e diversificado de práticas e finalizações, em

constante questionamento interno e evolução, interessado, vigilante e em permanente

interacção com os anteriores, que é o do domínio da actividade artística. Alicerçado

numa relação estável no campo das Belas-Artes, cuja prática se instituíra como

disciplina e ciência, o desenho conservou uma tradição de recolector, conformador e

censor dos modelos que serviram a Arte como representação da realidade. As profundas

transformações que, sobretudo o aparecimento e vulgarização da fotografia aportaram,

provocam a alteração progressiva do conceito de Desenho e do seu papel no seio das

artes plásticas, conduzindo à sua autonomia. Estas transformações traduzem-se, ao

longo do século XX, em experimentações muito diversificadas e de contornos por vezes

indefinidos ou mesmo apagados, em relações de aproximação ou afastamento do

modelo da definição inicial deste capítulo. Algumas destas experiências foram

ensaiadas nos palcos do Teatro. Terão deixado resíduos insuspeitados dessas

contaminações e iluminam a leitura das que as precederam.

13

2. DO TEATRO

A intenção de ter, como objecto desta pesquisa, a presença do Desenho no universo do

Teatro, obriga a uma estratégia metodológica que, em si mesma encerra dificuldades

desmobilizantes. Para indagar presenças de um universo noutro, há que circunscrever os

domínios, os elementos que os compõem, como e por que vias se manifestam, que tipo

ou tipos de manifestações podem ter, como elas se configuram, em território próprio e

alheio e que relações, essas configurações estabelecem com o terreno da sua

implantação. E daí, então, identificá-las e reconhecê-las, como marcas, manifestações

de uma presença, vestígios que atestam e perduram de uma actividade, uma acção, um

acontecimento que teve lugar num tempo e num espaço e só a memória talvez conserve

de alguma forma integradora. Por fim, tentar identificar os gestos que geraram a sua

marca.

“ (…) estamos perante um modo de expressão e um sistema comunicativo que

requer meios extremamente simples para ser realizado e, afinal, pouco mais é do

que o vestígio dos movimentos que a mão faz. Imaginemos a mais completa

perspectiva desenhada com um lápis e um papel e riscos invisíveis; nada podia

então ser olhado a não ser os gestos que construíam aquilo que se queria fazer,

uma espécie de acção teatral coreografando a movimentação do desenhar de uma

perspectiva. (...)

(...) É claro que não haveria desenho, pois o desenho é um objecto, não a ideia ou

a intenção desse objecto, porém é tão discreto, tão frágil, que lhe poderíamos

atribuir a característica de vestígio, traço duma actividade. Um desenho seria

então o que ficou da nossa intenção de fazer um desenho.” 31

Usando ainda um vocabulário contaminado no capítulo anterior pela pesquisa no

Desenho, pode dizer-se, então, que se necessita aqui de mapear32, demarcar as zonas

possíveis de prospecção, onde dirigir o olhar, percorrer o espaço para observar, medir,

identificar, assinalar, reconhecer.33

31 RODRIGUES, Ana, Op. cit., p.p. 12, 13. 32 <” Em suma necessitamos de um mapa: para cartografar relações entre díspares campos do desenho, para facilitar a comunicação, para sugerir as fronteiras onde o mundo do desenho é contíguo ao mundo de outras disciplinas e para sugerir onde podemos ou devemos explorar. “>, Garner, Steve, Introduction, Op. cit., p. 13. 33 Listar, classificar e categorizar não são já ambições deste trabalho.

14

“When we mean to build

We first survey the plot, then draw the model;

And when we see the figure of the house

Then must we rate the cost of the erection –

Witch if we find it outweighs ability

What do we then but draw anew?34

Uma tarefa difícil, porque se instala uma dualidade na estratégia metodológica, assente

nas particularidades e similitudes essenciais dos dois universos, vastos cada um por si e

descrevendo trajectos próprios e sinuosos onde a conjunção acontece e resulta em

densidades gráficas. Comparação talvez possível, se a partir da citação de Ana

Rodrigues, se pudesse, em transparências, sobrepor o registo de um, sobre o gesto do

outro. O gesto e a transparência podem já listar-se como características essenciais e

comuns.35

Dualidade de universos, portanto (um de partida outro de chegada, ou o registo em

busca do gesto que o gerou) e dualidade exponenciada. Porque o Teatro é, em si mesmo,

assente sobre relações duais36, reciprocidades, trocas, partilhas e conflitos que, desde a

origem, são tema das suas representações. Enquanto processo de construção social,

firmando-se como instituição, ele implica uma dupla presença, a dos actores por um

lado e a dos espectadores por outro, em relações de encontro, troca e conjunção. Acto de

34 SHAKESPEARE, William, King Henry IV, Part II, citado por HOWARD, Pamela, Op. cit., p. 16. Neste trabalho todas as citações em língua estrangeira foram traduzidas para português pelo autor e assinaladas entre < >. A presente é a única excepção por evidente superação de aptidão. 35 C.f. nota 25, p. 9. “ Segnare – Contrassegnare, é fazer qualquer signo. Nos termos da nossa arte toma-se propriamente por fazer qualquer desenho, ou signo ou delineamento com o gesto sobre a tela ou tábua, sugerindo a figura que o pintor deseja pintar; é aquilo que o escultor faz com o carvão; ou marca sobre o mármore para demonstrar a qualidade que a obra deve ter; e o arquitecto para exprimir o seu pensamento com facilidade e brevidade, quase que acenando. “ F. Baldinucci, Vocabolario Toscano dell’Arte del Disegno, citado por PAIVA, Francisco, Op. Cit., p.p. 31 e 32. E ainda, “ a ideia de representação transparece no emprego do verbo accenare (apontar, indicar, mostrar, acenar e sugerir), em dupla referência ao gesto e àquilo que o gesto pode significar. (...) Esta preocupação com o gesto conhecerá diversas analogias com as formas de expressão e representação características do Teatro, com que frequentemente se identifica a pintura de Giotto – por estar prenhe de signos de movimento e de afectos, de códigos que designam e representam as acções e as paixões humanas e acentuar «a efectividade da catarsis como operador terapêutico» entre o real, os signos e a essência da arte.”. 36 <” O teatro e o seu duplo. Entendido, o título célebre de Artaud que sussurra: o teatro e o seu duplo. De si mesmo, ele é o seu duplo, eco redobrado, sempre retomado.>”, REY, Alain, Conclusion: Le Théâtre, qu’est-ce que c’est?, in COUTY, Daniel e Alain Rey (dir.), Le Théâtre, p.178.

15

reunião, preserva a sua atracção agregadora na forma de espectáculo37, ou que atrai o

nosso olhar e atenção38, a cada momento único, irrepetível, tornado acontecimento,

efémero39 por natureza, re-apresentado.

A condição do espectáculo não sobreviver a si próprio, condiciona e contagia os

procedimentos envolvidos nos meios da sua produção, tornando escassos os vestígios

que recoloquem o seu significado no repositório volátil da memória colectiva. A sua

incapacidade para gerar produto, mercadoria, ou admitir reprodução neutra (só aceita

como duplo a si próprio) leva à valorização dos seus resíduos como peças

museológicas, coleccionáveis. Por outro lado, essa efemeridade provocou mobilizações

em sentido inverso, atraiu a atenção enquanto expressão comunitária e para os modos

que lhe são próprios, por parte de outras expressões artísticas, em particular as artes

plásticas, como no caso da action painting, da performance, e da body art, visando a

desmaterialização da obra enquanto produto, conquistando campos profícuos de

exploração híbrida40.

<”À pergunta: ” o que é o teatro”, nós ouvimos várias respostas e as

possíveis não estão esgotadas. De Aristóteles a Brecht, de Artaud até agora,

destaca-se uma constante: o que quer que ele seja, o teatro é um processo

organizado pelo ser humano social segundo um projecto de acção

concomitantemente fictícia e real com significância exclusiva. É precisamente

na relação entre o real tangível de corpos humanos que agem e falam, este

37 Noção de ver: opsis, empregue por Aristóteles, vertido para latim como spectacúlu raiz de espectáculo. 38 Como um desenho. 39 Esta efemeridade e concretização pela acção, faz recair sobre as suas práticas a atenção de outras artes atraídas pela sua incapacidade de gerar produto. A condição de que o espectáculo teatral não sobrevive a si próprio “esteve muitas vezes na génese das suas sucessivas fortunas: outrora era a obra”, obra como “resultado e símbolo da criatividade que assemelha o Homem a Deus”, via para a imortalidade, como monumento que prevalecia para além da vida do autor. A despromoção recente da obra “a produto, semelhante ao produto industrial, símbolo da alienação do trabalho no objecto, comercializável”, tornada mercadoria, torna valorativa a efemeridade do teatro na incapacidade de produzir obra, ou seja, de gerar produtos, tornando-se por um lado, a estrutura por excelência da vida em comunidade, por outro, modelo de adopção das suas condições pela poesia e sobretudo as artes figurativas na performance, action painting, body art, ao excluírem o “valor do produto artístico, para concentrarem, quando muito, a atenção nas modalidades da sua prática”, MOLINARI, Cesare, História do Teatro, 2010, p. 14. 40 < “Bernice Rose descreve o objectivo da arte conceptual como «a ambição de voltar às raízes da experiência, recriar a experiência primária de simbolização não contaminada por atitudes ligadas aos modos visuais tradicionais, sejam representativos ou abstractos.» O desenho é o meio perfeito para esta procura – puro, não contaminado, discreto, directo, anti-monumental e ao mesmo tempo, perto de ser o santo graal do objecto desmaterializado.” >, DEXTER, Emma, Op. cit., p. 007.

16

real sendo produzido por uma construção espectacular e uma ficção assim

representada, que reside a particularidade do fenómeno teatro.”>41

Outra dualidade essencial do fenómeno teatral, traduz-se numa antinomia em que, sob a

forma de espectáculo, ele representa uma ficção e os actores e o espaço onde actuam,

fazem simultaneamente parte da realidade que os espectadores integram e da ficção, a

que os espectadores assistem. A um espaço real – a área de representação onde se

situam os corpos dos actores – sobrepõe-se um espaço ficcional – o lugar imaginário

onde evoluem as personagens.

Esta operação torna-se possível por se firmar em acordos tácitos, convenções

comummente aceites e códigos estabelecidos em comunicação, entre o público e o

grupo que apresenta a acção. Por tradição, essa ficção é registada em texto, que na

origem prevalecia sobre a noção de espectáculo, que Aristóteles considerou mesmo

acessório, perdurando como registo para além deste, facto que contribuiu para que a

História do Teatro, durante muitos anos, se confundisse com a história das obras

literárias dramáticas e correspondesse a um período de primazia do autor sobre o actor.

A conjunção destes dois elementos - estabelecer uma comunicação e estruturá-la sobre

um suporte literário - admite que o teatro seja encarado como uma linguagem e permite

que lhe sejam aplicadas estratégias de análise semiológica42. Daqui se pode adivinhar,

que à presença dual que constitui a essência do teatro, o público e os actores, se podem

acrescentar outras omnipresenças, sendo para já evidente, a do autor. Na Grécia Antiga

e noutros momentos da História do Teatro, o autor dirigia o espectáculo e acumulava as

funções de actor.43 Os textos são a expressão do seu pensamento, do seu ponto de vista

perante a sua contextualidade histórica, (geográfica e cultural) e a sua interpretação e

apresentação em espectáculo fazem do Teatro a expressão de uma civilização, duma

cultura, dum modo de pensar. Esta expressão é operada por meio de um código de

41 REY, Alain, Op. cit., p. 177. 42 <”Enquanto jogo dramático, expressão, mensagem, corpo imaginário, espaço cénico, tempo fictício, apresentação e representação, o teatro é sempre «estruturado como uma linguagem» tendo como base uma fórmula conforme a moda e que pretende definir o inconsciente, ou seja o homem. A expressão «como uma linguagem» implica «enquanto sistema significante». O aparecimento e a gestão dos sentidos (a semiosis) na expressão do desejo e em comunicação caracterizam com outros objectos sociais o espectáculo dramático. O conhecimento dos sentidos é o espaço em si onde se revelam os paradoxos do espectáculo. Paradoxos que engendram, no seio da paixão do teatro, um intolerável incómodo.”>, Id., ibid.. 43 Segundo Molinari foi Sófocles o primeiro a separar estas funções, renunciando ao papel de actor e Aristófanes dispensa a função de ensaiador. MOLINARI, Cesare, Op. cit., p. 52.

17

representação, inteligível por todos num tempo e num lugar. Como as civilizações que

lhes dão origem, os códigos evoluem, adaptam-se e transformam-se e as relações

dialécticas entre os seus elementos alteram-se. No final do século XIX, a relação de

forças entre actores e autor dramático é alterada pela introdução da figura do encenador

como responsável pela globalidade do espectáculo, dirigido segundo a sua interpretação

pessoal do texto representado (Fig.1). Inicia-se a época do primado do encenador, que

de certo modo se reflecte ainda nos dias de hoje e que vem relativizar a importância do

texto e do autor.44 Outras omnipresenças podem surgir, consoante a importância relativa

que é atribuída em cada contexto às funções que lhes são confiadas. Um exemplo, que

tem conquistado um relevo especial e tão recente que carece ainda de análise funcional,

é a figura de dramaturgista, cujo papel se pode resumir, grosso modo, como o de

orquestrador da conjunção sinestésica do espectáculo em acordo com o encenador.45

Outro exemplo, que aqui nos interessa particularmente e cujas funções remontam à

génese do Teatro, é a figura a que hoje chamamos cenógrafo, actuando num campo

muito abrangente, mas cujo estatuto ao longo dos tempos foi diversificado.

 

Figura 1 – Caderno de encenação de Jean-Louis Barrault para Le Soulier de Satin, de Paul Claudel. Fonte: in COUTY, Daniel e Alain Rey (dir.), Le théâtre, p. 96.

44 “(...) a superação da ideia de peça de teatro substituída por uma noção nova: a noção de texto ou materiais para teatro.”, VASQUES, Eugénia, “Teatro”, col. O que é, 2003, p. 151. 45 PAIS, Ana, “O discurso da Cumplicidade, 2004.

18

Mas apesar da herança que dita o predomínio do texto sobre o espectáculo, o teatro, é

também, na sua origem, uma arte para ver, não só fundada no sentido de opsis46, mas

também no nome dado, desde muito cedo, ao lugar onde se situavam os espectadores –

theatron, o lugar de onde se vê.

< “(...) o Teatro é, primeiro e acima de tudo, uma arte visual. A própria palavra

teatro provém do antigo theatron Grego, o nome dado à área onde a audiência se

sentava. (Os Atenienses do séc. V a.C. não tinham uma palavra só para a

totalidade dos componentes físicos do “teatro”.) Theatron, por seu turno, vem da

raiz theasthai, que significa “ver”. O theatron, o lugar onde a audiência se

sentava, é portanto o “lugar de onde se vê”. Ainda dizemos, “vou ver uma peça”.

(E apesar do facto de hoje frequentemente chamarmos o equivalente do theatron

pelo seu nome latino, auditorium, nós não vamos ao teatro para “ouvir uma

peça”).(…)” >47

Esta denotação funda na tradição do teatro ocidental uma vocação e preocupação com a

visibilidade, como via central para a comunicação e em reforço do papel que a palavra

ainda aí detém. Se se poderá dizer que estamos perante o apuramento de um sistema

visual, o desenho, com a sua capacidade de ver, dar a ver, e ser visto, abrange, pela

diversidade das suas atribuições – e muito familiarmente com a palavra, todas as

relações em prática, possibilitando aceder à configuração de um corte topológico

transversal ao fenómeno teatral.

O lugar de onde se vê é formado pelo somatório de todas as linhas correspondentes aos

raios visuais de todos os espectadores situados nos lugares possíveis e que se dirigem a

todos os lugares visíveis do espaço de representação. A conformação biunívoca destes

dois espaços é adaptada e reflecte os códigos de representação num determinado tempo

e lugar e exprime-se como lugar teatral.

<“Por lugar teatral entendemos o lugar de uma representação, quer dizer os espaços reservados ao jogo dos actores e aos espectadores. Esses dois

46 < “Mas, maugrado a proeminência atribuída ao texto sobre o espectáculo, quer dizer, ao relatado sobre o mostrado, todas as palavras gregas nomeando o teatro, ou representação dramática, são construídas não sobre a noção de entender, de escutar ou de ler, mas sobre a noção de ver: opsis, em primeiro lugar, empregue por Aristóteles e depois traduzido por espectáculo, e sobretudo théatron, designando o espaço onde se vê, vem a ser o teatro.” >, SURGERS, Anne, Scénographies du théâtre occidental, 2000, p.15. 47 ARONSON, Arnold, Looking Into the Abyss: Essays on Scenography , 2005, p.2.

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espaços são considerados na sua interdependência funcional: trata-se da sua delimitação recíproca, da sua disposição, da sua utilização. O lugar teatral, com a relação cena-auditório que ele implica, deverá ser estudado tendo em conta: 1) da estrutura das obras (condução da acção, maneira de dispor os tempos e os lugares, composição do diálogo, repartição das personagens); 2) do papel social do teatro e da composição do público, abrangente ou restrita ao qual ele se dirige ( o papel social do teatro é definido pelas instituições ou grupos de que depende, seu modo de financiamento, seus propósitos: exaltação de sentimentos religiosos, monárquicos, patrióticos ou cívicos, erudição, pedagogia, recreação, satisfação do prazer/desejo/gosto artístico).”>48

O lugar teatral corresponde então à concretização física do sistema visual, segundo um

modelo que em determinado contexto, se julga adequado e é produto e terreno fértil à

expressão pelo desenho. Quando determinado contexto dita regras precisas de

implantação espacial para uma forma de expressão teatral fortemente institucionalizada,

o lugar teatral tende a estabilizar-se em arquitectura teatral49 e a normalizar-se no

edifício Teatro. Concentra-se aqui, um conjunto significativo de desenhos mais ou

menos explícitos, consoante o uso e normatividade que a Arquitectura lhes foi dando ao

longo da sua história, relativos a funções de concepção, construção, decoração, etc..

A organização do espaço onde se desenrola a acção, o espaço de representação, ou

também chamado lugar cénico, é atribuição da Cenografia50. O âmbito da Cenografia

tem variado ao longo dos séculos consoante a importância que tem sido atribuída ao seu

papel na definição das diferentes concepções de espectáculo, mas a sua génese remonta

48 Em 1963 (22 a 27 de Março em Royaumont, França), por iniciativa do Centre National de la Recherche Scientifique, realiza-se um colóquio internacional de Ciências Humanas reunindo especialistas em torno dos problemas do « Lieu théâtral à la Renaissance ». O texto precisando o que se deveria entender por lugar teatral e quais os aspectos sociais do teatro e da estrutura das obras a ter em conta nesse estudo, acompanhava o convite aos participantes. JACQUOT, Jean, “Avant-Propos” in, Le lieu théâtral a la Renaissance, p.VII. 49 Não considerando as manifestações medievais uma excepção, pois se o drama litúrgico recorre à arquitectura da igreja para as representações, a sua evolução para as representações de mistérios e milagres serve-se da malha urbana como lugar teatral. 50 < “A arte da cenografia – como a palavra ela mesma – nasceu em Atenas, com o desabrochar do teatro, pelo séc.V a.C.. Um pintor, Agatharcos de Samos, terá composto para Ésquilo e Sófocles panos pintados, sem dúvida aplicados sobre a fachada da skènè. As pinturas de Agatharcos terão inspirado os trabalhos de Demócrito e de Anaxágoras sobre a perspectiva. Aqui, de novo, a tradução dos termos gregos presta-se a confusão: quando falamos da arte da cenografia, traduzimos o nome grego technè, que sobrepõe em si mesmo dois campos semânticos hoje claramente distintos: a arte por um lado, a técnica e a fabricação por outro lado. ” > (...) < “Agatharcos de Samos (cerca 536 - antes 582 a.C.): pintor grego. Realiza decorações para Ésquilo e escreveu uma memória sobre cenografia, sendo considerado como o inventor, junto com os seus contemporâneos Anaxágoras e Demócrito.”>, SURGERS, Anne, Op. Cit., p. 4.

20

às origens gregas do teatro e a sua raiz etimológica investe-a, desde logo, como via

privilegiada de manifestação pelo Desenho.

O termo cenografia deriva de scenografia, versão latina do grego skènographia. Palavra

composta, que corresponde à arte de desenhar ou pintar (graphein) a cena

(skènè).51Anne Surgers propõe um esquema para os significados que lhe foram

atribuídos, conservando embora, pelo menos parcialmente, uma memória do sentido

original:

< “- na Antiguidade grega e romana, é correntemente admitido que o cenógrafo é

aquele que desenha ou pinta as decorações ou a cena;

- na Renascença, o termo cenografia tem um sentido diferente e designa a arte de

representar ou de organizar o espaço em perspectiva;

- na segunda metade do séc. XX, o sentido modifica-se outra vez: a cenografia é

encarada como uma intervenção geral sobre o espaço de representação, assentando

sobre uma concepção prévia à realização.” >52

Pamela Howard53 propõe uma estratégia de abordagem da cenografia a partir de sete

perspectivas: Espaço; Texto; Pesquisa; Cor e Composição; Encenação; Actores;

Espectadores. Nesta concepção contemporânea abrangente, estão incluídas também a

concepção de figurinos e adereços e muitas vezes estende-se à imagem de divulgação e

promoção do espectáculo, gráfica ou multimédia. Todos estes topos são matéria

submetida a indagação pelo desenho e, mesmo a mais insuspeita, os Espectadores por

exemplo, é objecto de notas e desenhos durante as representações. Agregados a este

conjunto, costumam também reunir-se desenhos relativos à concepção e concretização

de objectos acessórios, adereços e maquinaria de cena, podendo assumir contornos

menos explícitos, sobretudo os associados a procedimentos técnicos de construção e

manufactura.

51 < “A multiplicidade das acepções do termo vem da complexidade das duas palavras fundadoras: - graphein, por um lado, pode significar escrever, ou ainda por desenhar, pintar. As duas primeiras traduções orientam o termo cenografia segundo um sentido geral de concepção de conjunto, a última confere-lhe um sentido mais restrito de fabricação; - skénè, por outro lado, é, à origem do teatro grego, uma construção em madeira situada atrás do espaço de representação com a função de bastidores, enquanto que nos sécs. XIX e XX, em França por exemplo, a palavra scène, que dela deriva, designa o espaço de jogo dos actores: o sentido actual é um pouco o oposto do sentido original. O termo designava para os gregos o espaço oculto dos actores, quando ele designa para nós o lugar do actor mostrado, o lugar da representação e de jogo.” >, SURGERS, Anne, Id., p.15, sem negrito no original. A inclusão do termo desenho na definição por parte dos autores que expõem a raiz etimológica, nem sempre se verifica e pode dever-se ao facto de a skénè ser decorada por pintura que, na Grécia Antiga se forma geralmente em associação com o desenho de modo explícito. 52 SURGERS, Anne, Id., p. 3. 53 HOWARD, Pamela, Op. cit., p.i.

21

Por fim, uma unidade de desenhos difícil de circunscrever, a que diz respeito ao

trabalho do actor e que gravita em torno do seu corpo e da duplicidade derradeira do

teatro – o par actor/personagem. O corpo do actor é desenhado pelo cenógrafo ou

figurinista para, sobre ele, ajustar uma concepção que se achou adequada à figura donde

parte a representação, mas o seu comportamento enquanto instrumento e território

próprio de gestos do Desenho constitui uma área de exploração (Fig.2). 

Figura 2 – O corpo pode tomar posturas e acções adequadas a configurações estabelecidas pelo desenho. Sonho de uma Noite de Verão, de William Shakespeare, encenação de Peter Brook para a Royal Shakespeare Company (Théâtre de la Ville, Paris, 1972). Fonte: in COUTY, Daniel e Alain Rey (dir.), Le théâtre, p. 107.

22

3. O DESENHO NO LUGAR TEATRAL

Apesar da referência, no capítulo anterior, à noção de lugar teatral e aos aspectos a

considerar no seu estudo contextualizado, procura-se, nos três capítulos seguintes, não a

observação criteriosa e exaustiva desses elementos em inter-relação mas, antes, a

análise dos traços mais evidentes e determinantes dos respectivos momentos da história

do Teatro e a sua possível relação com o Desenho. Atentou-se particularmente em

invocar, através de alguns exemplos, a multiplicidade de gestos condicionados e

emanados a partir da preocupação comunicativa e de visibilidade, que regulados pelos

códigos de representação vigentes, vão determinar direcções geradoras do espaço de

representação e do lugar teatral.

3.1 O DESENHO NAS ORIGENS DO LUGAR TEATRAL

Funda-se a tradição teatral do Ocidente, pela documentação conjugada de textos54

(fragmentos críticos, teóricos ou literários), vestígios arquitectónicos e representações

da arte figurativa coeva (por exemplo em vasos e outra cerâmica), nas primeiras

representações teatrais fixadas em texto e que decorreram em lugares construídos para

esse efeito, na Grécia, particularmente em Atenas, do século VI ao III a.C.55

O costume de reunir assembleias em torno de celebrações ou rituais religiosos em locais

específicos fora dos templos sagrados, parece ser uma prática verificada nalgumas das

sociedades urbano-mediterrâneas dos 2º e 1º milénios a.C.. Porém, a escassez de

vestígios não permite muito mais do que referenciar a possibilidade da existência de

54 Segundo GRIMAL, Pierre em O teatro Antigo, p.10, “...a maior parte da documentação estudada é constituída pelos textos dramáticos conservados. Grande parte deles foi-nos transmitida graças a uma tradição manuscrita bastante enraizada, com graves lacunas, erros, transposições, retoques, que os actuais estudiosos tentam descobrir...” “Durante a Idade Média, o Império do Oriente, com capital em Constantinopla, assumiu grande importância na perpetuação da cultura clássica. Após o século VI a.D., quando as províncias latinas já estavam nas mãos dos invasores, o Oriente tornou-se mais grego em carácter, sendo o grego de um modo geral, aceite como língua oficial. Em resultado, a tradição da crítica grega sobreviveu pelos próximos séculos (Idade Média) entre os eruditos de Constantinopla”, muito se ficando a dever à Igreja Ortodoxa, CARLSON, Marvin, Teorias do teatro: estudo histórico-crítico, dos gregos à actualidade, 1997. p. 29. 55 Para MOLINARI, Cesare, Op. cit., p. 33, a forma das representações trágicas e cómicas está já amadurecida em Atenas, no século V a.C.. No mesmo sentido, GRIMAL, Pierre em Op. cit., p.11, propõe o seguinte quadro: “1) Do fim do século VI a.C. até cerca de 450: período arcaico. Aparecimento da tragédia e pré-história da comédia. 2) Entre a segunda metade do século V a.C. e o fim do século: apogeu da tragédia. Esplendor da comédia antiga (Aristófanes). 3) Entre o fim do século IV e meados do III: aparecimento e apogeu da comédia nova. Início da tragédia helenística.”

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lugares determinados56 para a celebração de rituais e cerimónias religiosas teatralizadas

ainda no Antigo Egipto, ou representações teatrais propriamente ditas na civilização

creto-micénica57, que poderão ter tido lugar no interior de um palácio, segundo um

espaço rectangular ladeado por bancadas de pedra. Já os poemas homéricos referem

espaços nas cidades, denominados choros, onde teriam lugar as danças que animavam

as festividades oficiais, e que devem a sua designação ao nome dado, na Grécia Antiga,

aos grupos de bailarinos que aí actuavam. O choros situava-se na ágora, a praça pública

pontuando todas as cidades e seria, por tradição, um local sagrado, cercado por

bancadas de madeira temporárias, para receber as multidões aquando das cerimónias

religiosas. Este costume, virá a consagrar, na região de Corinto do país dórico, o culto a

Dionísio58, sob o nome de ditirambo59 - um canto lírico-coral - hoje qualificado como

forma teatral.

Do desenvolvimento versado do ditirambo, em meados do séc. VII a.C., e mais tarde do

komos60 (cantos fálicos no decorrer de um cortejo), surgem dois novos géneros, a

56 SOLMER, Antonino, Manual do Teatro, p. 93, aponta como possível um lugar fora do templo, nas margens do lago sagrado em Edfu, no Egipto e reproduz uma reconstituição de um teatro no interior de um palácio de Cnossos (Creta, c. de 1700 a.C.). 57“ Esta possibilidade é referida por MOLINARI, Cesare, Op. cit., p.13: “ É possível que, desde os tempos da civilização cretense, tenham existido «locais de espectáculo», a que os Gregos chamarão theatron (de thean, ver), e os Romanos theatrum, se acreditarmos que, já então, as pessoas se distraíam vendo as evoluções de coros que dançavam verdadeiros bailados, cujo significado era religioso, simbólico ou simplesmente mimético. É possível, por exemplo, que bailarinos, desde o terceiro milénio a. C., tenham imitado, numa área rodeada de espectadores, as evoluções dos grous no céu, aves sagradas regressando para o reino de Apolo, no extremo Norte.” (negrito inexistente no original). Este autor refere ainda na p.8 da mesma obra “(...) a primeira tragédia que sabemos ter sido representada situa-se sob a tirania de Pisístrato, em Atenas, cerca de 534 a.C..”. Também SOLMER, Antonino, Op. cit., p. 93, situa os primeiros indícios do “lugar teatral” na civilização creto-micénica: A escassez de vestígios que o atestem, levam a não considerar indícios de rituais religiosos teatralizados egípcios, que terão tido lugar fora do templo, desconhecendo-se a existência de um lugar específico, nas margens do lago sagrado em Edfu; as primeiras representações propriamente ditas situam-se na civilização creto-micénica (1700 a 1400 a. C.) e supõe-se terem acontecido num espaço teatral de forma rectangular, ladeado por bancadas de pedra e localizado no interior de um palácio. 58 Ou Dióniso, segundo Eugénia Vasques, Op. cit., p. 16, “…um deus de origem vegetal, um deus --árvore…”, “”…deus-da-máscara de Atenas” com a sua correspondente em Esparta, Ártemis. Também descrito por Anne Surgers, em Scénographies du théâtre occidental, p.11, como <“(...) o deus das vinhas, do vinho, do delírio místico e extático, e também o deus do teatro: numa mesma figura divina se sobrepunham por um lado o arrebatamento provocado pelo vinho, por outro lado o arrebatamento místico do entusiasmo no primeiro sentido do termo, e enfim aquele provocado pelo verbo”>. que fora de Atenas tinha o seu correspondente na deusa Artémis, que serve à autora para estabelecer uma leitura feminista da figura lendária 59 O conceito de ditiranbo é descrito por vários autores. Segundo GRIMAL, Pierre em Op. cit., p. 9 trata- -se de uma “... declamação lírica apresentada a um público por um coro, com acompanhamento musical, evocando os feitos de Dionísio e de outros deuses e heróis e que, em certa medida, dava uma interpretação mimada....”. MOLINARI, Cesare, Op. cit., p. 33, descreve-o como “canto lírico-coral, era cantado com acompanhamento de danças e, portanto, mais do que uma forma literária, era uma forma de espectáculo.”. SURGERS, Anne, Op. cit., p.156, refere <“...Na Antiguidade grega, canto, poema lírico em honra de Dionísio. Por extensão, poema lírico entusiasta, pois enfático”>. 60 De onde, deriva o nome “comédia”, MOLINARI, Cesare, Op. cit, p. 55.

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tragédia61 e a comédia62 a que se junta o drama satírico63.64 Estas cerimónias

desenrolavam-se em volta do templo a Dionísio, nas ágora das aldeias e cidades, mas,

gradualmente, um lugar específico à representação foi introduzido no recinto sagrado,

lugar distinto do ágora, embora próximo. Esta configuração, reunindo o espaço do

61 MOLINARI, Cesare, Id., p. 33, através da análise passagem da Poética de Aristóteles e de um excerto das Histórias de Heródoto liga a tragédia com o ditirambo, referindo concretamente que “Aristóteles escreve que a tragédia nasce dos exarchontes (aqueles que iniciam, que dão o tom) do ditirambo” ou “os coreutas que cantavam todo o ditirambo”, ou o “corifeu, ou, em suma, o autor do ditirambo, também director e solista do coro.” Exarchonte - simultaneamente poeta, narrador e organizador das partes dançadas e cantadas Emmeleia – dança da tragédia, MOLINARI, Cesare, Id., p. 38. 62 Segundo MOLINARI, Cesare, Id., p. 55, na opinião de Aristóteles “(...) a comédia deriva dos que entoam (exarchontes) os cantos fálicos no decorrer de um cortejo (komos, donde deriva o nome de comédia), à época celebrado em honra de Dioniso, mas originariamente referia-se certamente aos rituais de fecundidade.” Segundo este autor, em Atenas “(...) as comédias eram representadas predominantemente durante as Leneanas, festas que tinham lugar no mês de Janeiro, Fevereiro e que ficaram sob a tutela do estado a partir de 442 a. C.; mas nas Grandes Dionisíacas também se dedicava um dia aos espectáculos cómicos.”. Divide-se em três fases: antiga, média e nova. “(...) da chamada comédia ática «nova» (a de Menandro e dos seus contemporâneos e sucessores, do fim do século IV a. C. até medos do III), tínhamos apenas uma ideia difusa, aquela que nos foi dada pelas peças de Plauto e de Terêncio, que imitaram as de Menandro, de Dífilo e de outros poetas da comédia nova. Agora é-nos mais fácil seguir a evolução deste género - primeiro na Grécia, sob os reis que sucederam a Alexandre, depois em Roma, a partir da segunda metade do século III a. C. – até ao seu apogeu, aproximadamente um século mais tarde.” GRIMAL, Pierre, Op. cit., p.11. Kordax – dança da comédia, MOLINARI, Cesare, Op. cit., p. 38. 63 O drama satírico é descrito por MOLINARI, Cesare, Id., em várias partes do seu capítulo 2: “... composto por sátiros, personagens animalescas que, representando os antigos espíritos da natureza, fizeram depois parte do cortejo de Dioniso, o deus do êxtase;”, (p. 33.); “…tinha características grotescas e o coro era formado por sátiros (homens-cavalo), donde deriva o nome de dramas satíricos. Todavia o drama satírico não é um estádio cristalizado da evolução da forma trágica, antes um produto posterior à sua afirmação nos esquemas clássicos. Por conseguinte é provável que se possa remontar a uma raiz comum entre ambas, da qual os coros de sátiros ou de bodes deveriam certamente fazer parte. Em todo o caso, um grande nº de documentos figurativos testemunha a existência, ainda nessa época histórica, de coros satíricos, que podem ser autónomos ou integrados num espectáculo dramático mais complexo.” (p.36); “... Por outras palavras, as características específicas do estilo dos dois elementos (divindades olímpicas e sátiros) não se confundiam apesar de estarem juntos. Mas, por outro lado, esta co-presença na distinção permite formular uma hipótese próxima daquela que Nietzsche enunciou na sua fase mais madura. O espectáculo trágico não é a expressão do momento dionisíaco e musical do espírito grego. É, quando muito, o lugar de confronto entre os dois aspectos da realidade humana e metafísica, entre o momento apolíneo, luminoso, elevado, representado pelas divindades olímpicas, e o momento terreno, vitalista, obscuro, indistinto, que ganha corpo na figura animalesca dos sátiros. E o drama satírico seria então a mais tardia degradação escarninha deste decisivo confronto.” (p.40) Sikinnis – dança do drama satírico, MOLINARI, Cesare, Op. cit., p. 38. 64 As manifestações teatrais na antiguidade não se limitam a estas enunciadas no texto. De acordo com GRIMAL, Pierre, Op. cit., p.9, “ Temos também conhecimento dos nomes de diferentes géneros de representações mimadas e cantadas, das quais ignoramos quase tudo, chamadas lisidodia, simodia, magodia, hilarodia. Não são géneros verdadeiramente literários, isto é, obras cujo texto tenha existência independentemente da representação, mas divertimentos líricos que contribuíram certamente para a formação do mimo, género que sobreviveu por muito tempo à decadência da comédia e da tragédia (...) Estas formas menores de teatro, algumas das quais parecem ter uma origem oriental, nomeadamente síria, não deixaram vestígios, o que é natural, pois a sua característica essencial era apresentar um espectáculo e não textos. Dependiam da mímica, da livre gesticulação ou da dança orientada, do canto, da música. Recorriam aos disfarces, às mascaradas. São as origens populares do teatro «nobre» que, sem elas, não teria sido o que foi.”

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choros ou orchêstra65 de planta circular, circundada a 360º por bancadas em degraus de

madeira, encontramo-la no início do século VII a.C. e é o esboço primitivo de um

modelo de organização espacial66 que se multiplicará e desenvolverá a par da escrita, da

representação e da complexidade das celebrações, durante os dois séculos seguintes67.

Acrescida às dificuldades de compreensão do fenómeno pela informação

disponibilizada pelos textos, junta-se a dificuldade de leitura dos monumentos - as

primeiras construções são efémeras, em madeira, dado o carácter excepcional das

festividades e o desenvolvimento das formas literárias e das representações, precede a

construção perene, que só aparece com a consolidação institucional dos eventos (o que

garante um ajuste perfeito e maior eficácia na sua função).

Os monumentos foram objecto de sucessivas adaptações, motivadas quer pela sua

adaptação às exigências da evolução da estrutura dramatúrgica, quer por ajustes feitos

por impulso ou hesitação (como num desenho), pelo crescimento da popularidade e

adesão às realizações, pela incidência de incêndios ou desmoronamentos, ou por

alterações produzidas exteriormente ao fenómeno, fruto de condicionantes

65 GRIMAL, Pierre, Id., p. 14, refere-se choros e orchêstra, para designar o lugar em que se dançava e cantava os ditirambos. A distinção entre os dois termos pode radicar numa fixação histórica deste espaço, inicialmente designado através dos seus ocupantes (choros designa também os grupos de bailarinos que integravam as representações teatrais) e que com a progressiva diferenciação e autonomia dos espaços de representação passou a ser designado de orchêstra (ou orkhêstra). Segundo COUTY e Rey, Op. cit., p. 12, esta <“(...) teve como espaço original uma simples área de terra batida, ocupada no seu centro por um altar (a thymelê), em torno do qual cantavam e dançavam os coregas: dança cíclica de movimentos alternados que impôs à orkhêstra o seu nome (o verbo grego orkheomai para «dançar» e a sua forma circular (...)”>(negrito inexistente no original). O termo orchêstra, que Grimal admite ser usado com maior frequência, é, de facto, aquele que é utilizado por todos os outros autores consultados, pelo que, a partir daqui, se toma como opção também neste estudo. 66 O primeiro exemplo disto, talvez seja o santuário de Dionísio na ilha de Icaria, descrito por SURGERS, Anne, Op. cit., p.12: <”a Este do altar e do templo, encontramos uma zona rectangular de cerca de vinte metros por dez – antepassado da orchestra -, onde evoluía o coro, limitada por um muro de aterro de um lado, e das estelas e as proédria, assentos dos espectadores privilegiados, de outro. Atrás destes, os espectadores [comuns], eram instalados, em bancadas de madeira dispostas no declive do terreno, direccionados para a área de representação e para o templo.”> 67 São vários os autores que se referem a Thepsis ou Téspis como o primeiro responsável por estes desenvolvimentos. SURGERS, Anne, Op. cit., p.12, refere-se a <“Thepsis, autor e actor do século VI a. C., escrevia os versos, organizava os ditirambos de aldeia em aldeia, transportando o material necessário numa carroça e recrutando os coros no local. Ele terá inventado a forma primitiva do teatro, ao intercalar versos recitados entre os cantos e as danças do ditirambo. O desenvolvimento desta nova forma foi rápido, pois o primeiro concurso ateniense de tragédias teve lugar em 534 a.C., à época de Pisístrato. A escrita e a arquitectura do teatro desenvolvem-se então simultaneamente”.> A tradição reporta que Thepsis se terá deslocado a Icaria para apresentar representações. Também MOLINARI, Cesare, Op. cit., p.p. 34-35, associa esta figura às origens da tragédia: “...em virtude das suas representações, terá sido concedida a Téspis (o quase mítico inventor da tragédia) a orquestra de Dioniso, que era a única zona adequada a esse fim, e por esse motivo prático ter-se-á começado a associar as Grandes Dionisíacas à tragédia.”

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circunstanciais e conjunturais, relativas à sucessão, prosperidade e decadência das

estruturas hegemónicas do poder que a zona geográfica foi sofrendo.

Anne Surgers68, apura uma matriz a partir de constantes verificadas ao logo da evolução

dessa organização espacial, assente na disposição e articulação funcional dos distintos

elementos, conveniente por possibilitar uma leitura integradora e simbólica do

espectáculo trágico no recinto sagrado, enquadrado no universo da cidade e nas

festividades que aí tinham lugar. Aparentemente, o modelo é estabelecido a partir do

santuário de Dionísio Eleutério, situado na encosta sul da Acrópole em Atenas, que terá

sido o primeiro a ser construído na cidade69 e que, dada a importância que esta adquiriu

entre os séculos V e II a.C. na civilização grega e o facto de aí se concentrarem os

momentos do desenvolvimento mais significativos de que temos notícia, possa ter

servido de modelo disseminado a outras localidades em posteriores construções70. Terá

sido aí que foram representadas, pela primeira vez, as obras dos grandes tragediógrafos

atenienses à época de Péricles, como Ésquilo, Sófocles71 ou Eurípides72.

68 Op. cit., p.11. 69 Segundo GRIMAL, Pierre, Op. cit., p.14. “ O mais antigo local de espectáculos em Atenas é provavelmente o teatro de Dionysos Eleuthereus” ou “Dioniso Elêuteras” devendo o nome à “...aldeola da Beócia que foi incorporada na Ática no século VI e passava por ser o local de nascimento do deus.” onde “... se dançava e cantava os ditirambos em honra de Dioniso, que ali tinha um templo e um bosque sagrado”. Esta indicação é corroborada por SOLMER, Antonino, Op. cit., p. 94: “A primeira construção com carácter permanente edificada nesta cidade poderá ter sido o Teatro de Dioniso, na encosta sul da Acrópole.” 70 MOLINARI, Cesare, Op. cit., p. 62 descreve este processo de disseminação da seguinte forma: “Representava-se a tragédia e a comédia em Atenas no decorrer das Grandes Dionisíacas primaveris e invernais. Parece que por ocasião destas festividades, quando se representavam os espectáculos trágicos, chegavam a Atenas muitos forasteiros, atraídos à cidade por exigências pessoais, mas que escolhiam aquela data justamente para participar nas festas e nos espectáculos: no sec. IV a.C., o teatro era já um fenómeno comum em toda a vasta área da civilização grega e parece que não faltavam aficionados a fazer viagens para assistir às representações em diversas cidades. Assim o atesta uma passagem polémica de Platão.(…) Todas as cidades tinham um teatro: o viajante que percorre a Grécia, a Itália Meridional e, sobretudo a costa da Ásia Menor (ou seja, da actual Turquia) depara-se frequentemente com ruínas de edifícios que testemunham que o teatro era um elemento fundamental da civilização e da cultura helénicas. De resto, o teatro não era só lugar de espectáculos, mas também de assembleias políticas.”. 71 À sua época, a forma da cávea do teatro de Dionisio Eleutério “… parece ter sido essencialmente trapezoidal e não semicircular, ou seja, relativamente próxima da planta dos teatros arcaicos: já nos edifícios cretences e micénicos foram encontrados pátios com essa forma verosimilmente dedicados a lugar de espectáculo.”, Id.. 72 A importância destes autores é atestada por COUTY e Rey, Op. cit., p. 12 “... a partir de 330 a.C. os grandes «clássicos» do século V fazem parte do repertório que se representa em cada manifestação dramática; sob ordem de Licurgo, então à cabeça das finanças atenienses, os bustos de Ésquilo, Sófocles e Eurípides ornam o novo teatro de Dionísio e estabeleceu-se uma «vulgata» das suas obras para as proteger de alterações diversas. Um século depois da sua brilhante actividade, o teatro ático estava então já fixado, na sua matéria como na sua arquitectura.”

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Escrito por volta do ano 33073, a Poética de Aristóteles, analisa de forma muito

pormenorizada a estrutura da tragédia do século V a.C., preconizando a relevância da

escrita do teatro grego à representação,74 considerando esta de algum modo acessória e

desprovida de necessidade. Esta predominância do texto sobre o espectáculo, revela-se

no facto de as representações serem dirigidas pelos próprios autores, que inicialmente

participavam também no espectáculo como actores.75

As raízes da tragédia são tripartidas, espontâneas, religiosas e populares e tão distantes

que constituem uma dificuldade na precisão da sua origem. Os textos não têm

didascálias como mais tarde virão a ter, que possam ajudar à sua definição e as

sucessivas interpretações são por vezes contraditórias, difusas e as fontes fragmentadas

e pouco explícitas e, a raiz etimológica por si só, não ajuda. As indicações sobre as

formas gerais da tragédia extraídas dos textos são genéricas, as pinturas de vasos têm

um valor documental muito menos exacto e directo do que os referidos ao espectáculo

satírico.

O seu desenvolvimento, implica a distinção do desempenho de uma nova função

atribuída aos exarhontes, ao corifeu, provinda da narração, da palavra proferida pelo

actor, inicialmente coincidente com o autor, como Téspis, depois se multiplicando com

a evolução da complexidade narrativa.76 A estrutura circular integral primitiva, de

73 Apesar de alguma distância temporal entre a obra de Aristóteles e o “objecto” por ela descrito, o tratado assume grande importância na História do Teatro, dado que nele se fundará toda a tratadística do neoclassicismo italiano e francês. 74 Aristóteles, na Poética, sistematiza uma relação entre texto e espectáculo em que apresenta a tragédia como uma obra puramente literária, completa em si e perfeitamente autónoma, compreensível com a simples leitura, independentemente de qualquer representação que deve ser simplesmente considerada um instrumento de comunicação do texto poético, nem mais, nem menos como o canto e a mímica da rapsódia em relação ao poema épico. Aristoteles não faz uma observação idêntica em relação à autonomia do espectáculo, mas admite que, se, com efeito, é verdade que a tragédia deve suscitar «piedade e terror» independentemente de vê-la ou não representada, é igualmente verdade que é possível «obter este efeito através do espectáculo». “Mas, segundo Aristóteles, isso diz respeito ao coregas e não ao poeta. Por outro lado, Aristóteles admite, entre outros géneros de tragédia, a tragédia espectacular ou seja, aquela escrita em função do espectáculo que, nesses casos, terá multiplicado os elementos visuais: acessórios, figurantes, cenografia e ainda os elementos mecânicos que, sobretudo em Eurípides, serviam para introduzir as aparições divinas, como o deus ex machina. ”, MOLINARI, Cesare, Op. cit., p. 54. 75 Segundo MOLINARI, Cesare, Id., p. 52, “ Os primeiros tragediógrafos, de Téspis a Esquilo, reuniam as funções de autor, de ensaiador e de actor, funções essas que Sófocles começou a separar, renunciando ao papel de actor. E é possível que tenha, em certa medida, dispensado também a encenação (embora as primeiras informações nesse sentido digam respeito apenas a Aristófanes)”. 76 “(...) o teatro antigo teve como sua primeira língua o grego (com todos os recursos dos seus vários dialectos, dado a comédia e a tragédia oferecerem um diálogo falado, redigido em dialecto ático, mas com cantos líricos matizados de dorismos ou de eloismos);(...)”, GRIMAL, Pierre, Op. cit., p. 8. “ No que respeita à história do espectáculo, encontramos informações relevantes que nos permitem determinar que, antes de Esquilo, a tragédia consistia no simples diálogo entre o actor e o coro: foi Esquilo, de facto, quem introduziu um segundo actor, ao passo que Sófocles acrescentou um terceiro. Ainda segundo Aristóteles, é à época de Sófocles que remonta a utilização da cenografia pintada e, como vimos

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eficácia espectacular até então, torna-se desajustada à representação teatral, em acolher

duas unidades distintas, coro e actores partilhando o mesmo espaço, provocando

assimetrias, avessas à visibilidade que o theatron prometia, agravadas pela localização

da thymele, idealmente ao centro, e impossibilitando a frontalidade que o uso da

palavra, sem dúvida, requeria. A distinção do número gradual de actores em relação ao

conjunto formado pelo coro e a sua melhor visibilidade enquanto progrediam no mesmo

espaço de representação levam à introdução do coturno (sapatos de sola espessa que, no

período alexandrino chegavam a atingir 20 a 30 centímetros de altura e implicavam

alguma estaticidade – Fig. 3).

Figura 3 – “Estatueta de marfim encontrada em Rieti representando uma heroína trágica. O alongamento da personagem é obtido pelo uso de coturnos e acentuado pelo vestido plissado. Pelas aberturas da máscara adivinham-se a boca e os olhos do actor.” Fonte: Biblioteca du Petit Palais, Paris, in COUTY, Daniel e Alain Rey (dir.), Le théâtre, p. 35.

anteriormente, é muito improvável que essa tenha tido um grande peso na economia do espectáculo clássico.”, MOLINARI, Cesare, Op. cit., p.p. 53- 54.

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A história do edifício teatral antigo é praticamente a história dos seus elementos

constitutivos (a orchestra, o théatron, o proskénion, a skenè, as parodoi), do seu

significado, da sua função, das suas relações internas, que como se disse, se tornaram

cada vez mais orgânicas ao ponto de se contraírem numa real unidade arquitectónica

nos teatros do período imperial.

O recinto77 consagrado a Dionísio compreende um templo, um altar e um lugar público

- o teatro. Este, era composto por duas zonas distintas mas em articulação: a orchestra,

geralmente de forma circular78, destinada à representação, e o koilon ou theatron79,

conjunto de degraus para acomodação dos espectadores que a circundava em mais de

1800, tomando a forma de uma ferradura. Diametralmente oposto, sobre a lateral mas

visível, o templo consagrado a Dionísio, e no centro da orchestra a thymelê80, o altar

dos sacrifícios rituais.

O theatron81, tal como a orchestra, deve o seu nome e forma à sua função: « o lugar de

onde se vê » que imprime a toda a articulação do espectáculo grego e à concepção

tradicional ocidental teatral, a directiva da preocupação de visibilidade82. Quase sempre

apoiado no relevo natural, adossado ao declive das encostas das colinas em cuja base se

abria a orchestra, evitando construções demasiado grandes e dispendiosas se feitas

77 SURGERS, Anne, Op. cit., p. 11, apresenta um modelo matricial, de resto concordante com a maioria dos autores, mas integrado num sistema organizado a partir da preocupação de visibilidade, que a raiz etimológica de théatron imprime, que se estende a todo o recinto sagrado, às festividades que acolhe, à polis que as tutela, à sociedade e cultura, enfim, à civilização que o produz, com vista à exploração duma simbologia orgânica, apesar de se verificarem variações condicionadas sobretudo pelas adaptações ao terreno ou pela escala imposta pelos recursos disponibilizados. 78 Algumas excepções admitiam outras formas, provavelmente impostas pelas particularidades do terreno de implantação, como o Teatro de Thorikos de orchestra e theatron rectangulares. Neste sentido, SOLMER, Antonino, Op. cit., p. 94. refere “ A preocupação de tirar o melhor partido dos recursos que o terreno oferecia para instalar o theatron fez com que os arquitectos adoptassem planos muito diversos; assim, mesmo em Atenas, outro local de espectáculos – o Lenaion, onde se celebravam as festas de Dioniso «no pântano» (em Limnais) – apresentava uma orchêstra não circular, mas rectangular e, no burgo ático de Thorikos, o teatro tinha a forma de um rectângulo, cujos lados menores eram arredondados e a orchêstra formava um rectângulo quase perfeito.”. MOLINARI, Cesare, Op. cit., p. 41, “A forma da cávea, isto é, das bancadas onde se encontravam os espectadores, parece ter sido, ainda na época de Sófocles (séc. V a. C.), essencialmente trapezoidal e não semi-circular, ou seja, relativamente próxima da planta dos teatros arcaicos: já nos edifícios cretenses e micénicos, foram encontrados páteos com essa forma verosimilmente dedicados a lugar de espectáculo”. Nestes casos, a forma da orchêstra adaptar-se-ia, ocupando todo o espaço interior encerrado pelo theatron. 79 De thean, ver. 80 Segundo GRIMAL, Pierre, Op. cit., p. 16, thymelê é um “ termo com significado obscuro e aplicado a realidades diferentes, mas que, nos teatros, designa o altar onde se oferecia o sacrifício ritual a Dioniso.”. 81 Théatron virá a te, a sua tradução, nos idiomas latinos para o termo “teatro”. 82 Pese embora, o papel preponderante atribuído ao texto e à palavra em relação ao espectáculo, conferida de perto sob a regência do autor, de resto declarada por Aristóteles e que obrigava os processos construtivos a dedicar particular atenção às condições de audibilidade. O tratado de Vitrúvio é disso prova, dedicando grande parte do Capítulo V aos pormenores construtivos que garantiam essas condições de acústica.

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sobre terreno plano, cedo substitui a madeira pela pedra, sendo dos primeiros elementos

a adquirir perenidade83 (século IV a.C.); o público aí se instalava por categorias de

cidadãos correspondentes à idade, sexo ou função, sendo que, os lugares privilegiados,

as estelas e as proédria84, mais trabalhados e personalizados, situavam-se nas primeiras

filas onde um lugar central era reservado ao sacerdote – mestre-de-cerimónias da

celebração - sendo os restantes destinados aos espectadores comuns e por último às

mulheres. A entrada no theatron era feita pelos parodoi e o acesso aos lugares, por

escadas que o dividiam verticalmente segundo linhas radiais que conduziam a

patamares concêntricos, os diazômata.

A orchestra, desde as origens com o altar dos sacrifícios no centro, a thymélè, serve

inicialmente como zona de evolução do choro e actores, porém, à medida que o número

destes se multiplica, a necessidade de os distinguir, conduz os actores protagonistas a

representar sobre um estrado, o proskénion85, situado tangencialmente à orchestra, do

lado oposto ao público. A solução do proskénion poderá ter evoluído de uma solução

intermédia em direcção à melhor visibilidade.

O aumento gradual do número de actores em cena, imposto pelo desenvolvimento

entusiasta do uso da palavra, do diálogo e consequente multiplicação do número de

personagens, diluir-se-ia em espectáculo, no conjunto numeroso, conjugado, exuberante

e estridente dos coreutas (Fig. 4)86, os elementos que compunham o coro, veio a firmar

83 Inicialmente construídos em madeira e desmantelados após as festividades, ou destruídos por incêndios e desabamentos, com a instituição desta prática e aumento do número de espectadores (construídos em pedra chegavam a comportar 14000 espectadores), dada a complexidade da sua construção em declive, tornou-se perene, no período helenístico – IV ao I a.C., ainda que as últimas filas de alguns teatros de grande capacidade revelem encaixes talhados na pedra destinados a receber acrescentos adicionais em madeira. 84 As proédria eram os lugares de maior destaque destinados às personalidades mais eminentes que assistiam ao espectáculo, como, por exemplo, no caso de espectáculos de cariz religioso, o sacerdote que dirigia as festas. 85 MOLINARI, Cesare, Op. cit., p. 41 apresenta duas teorias em que os autores se dividem. Numa, o proskénion, situado na linha de profundidade dos parodoi, ligando-os como uma estreita passerelle, seria usado só para entrada dos elementos do coro e actores e não para representação, que depois se faria na orkêstra, transformando-se assim numa espécie de tribuna, conferindo destaque à entrada e apresentação das figuras intervenientes, aportando artifícios de destaque das figuras sobrelevadas, experimentados e sistematizadas em soluções semelhantes na escultura e arquitectura. 86 Grupo de personagens formadas por dois coreutas mascarados e profusamente trajados, encavalitados um sobre o outro, dançando e cantando conjugadamente, contra o qual, uma personagem singular, de gesto e movimentação contida pela palavra não poderia concorrer como foco de atenção do espectador. (Em gíria teatral mais recente, própria da disputa pelo protagonismo que instala as categorias de 1ª ou 2ªs figuras no teatro burguês, dir-se-ia “roubar a cena”, ou a contracena, a possibilidade de captar a atenção do público quando a réplica não a atribuía. (A atenção e concentração do público dedicada à palavra proferida nos espectáculos gregos, em recintos de grande vastidão sobrepovoados, a céu aberto, permeáveis aos ruídos do exterior, iluminados pela luz do sol, numa assistência animada de ambiente

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o uso de coturnos que, aliado aos trajes coloridos e uso de máscara87 com cabeleira e

barba hirsutas, destacava os actores do conjunto dos coreutas.

Neste sentido, o incremento do proskénion, mais não é do que um nivelamento

confortável da adição da cota que o coturno ensaiara. Porém, o uso do coturno manteve-

se, mesmo actuando sobre o proskénion, indiciando que o incremento da cota que ele

proporcionava não era ainda satisfatório88. Por outro lado, ele resolve um problema da

rotundidade da cena em relação à profusão da palavra, que impõe uma frontalidade na

comunicação, impossível de acontecer perimetralmente. A introdução do proskénion

com todas as implicações que ele representa e que o seu desenvolvimento acentuará,

assinala desde já, uma nova etapa na evolução do teatro grego antigo e na história de

todo o teatro ocidental, uma vez que ele constitui a forma embrionária do elemento

estrutural e emblemático, o palco do teatro dos dias de hoje. A sua configuração era

condicionada na largura, pelo arco de abertura do theatron e a sua profundidade não era

acentuada, uma vez que a procura da frontalidade que lhe deu lugar e a distância a que

se situava do público, com a orchestra de permeio, tornaria imperceptíveis as distâncias

em profundidade. Esta inovação teve uma como consequência a evolução produzida na

festivo, sob o signo do vinho, durante as longas horas do dia, é difícil de imaginar, tendo como referência recolhimento que os auditórios fechados proporcionam aos espectáculos a que hoje assistimos.) 87 A máscara, para além de constituir um recurso ao reforço de identificação, destaque, visibilidade e expressividade das personagens (karacter), produzia vantagens também de audibilidade, incorporando um artifício de projecção vocal. Consistia num cone truncado perpendicularmente à sua geratriz, e que projectava o som que saía da boca do actor à sua ampliação, correspondente à cavidade bucal da máscara. 88 MOLINARI, Cesare, Op. cit., p.p. 41-42, distingue duas possibilidades para datação e função do aparecimento do proskénion sustentadas por duas opiniões em que se dividem os estudiosos. Uma, seguindo uma tradição mais antiga, distingue a configuração da planta trapezoidal da orkêstra e thèatron como uma categoria tipo constituinte do modelo arcaico, em que, nos sécs. VI e V a.C. (ou seja, incluindo já as primeiras representações trágicas de Téspis e de Ésquilo), comportava já a existência de dois planos distintos para a acção e as evoluções do coro, que decorriam na orquestra, enquanto o número crescente de actores actuava numa plataforma erguida no fundo da própria orquestra; (...) ”Para outros, ao invés, o coro e os actores representavam todos na orquestra, sem a distinção de planos, que viria a ser feita bastante mais tarde, ou seja, no período alexandrino,” (...) ”É claro que aceitar uma ou outra hipótese leva a conclusões radicalmente diferentes sobre a concepção que os gregos teriam do espectáculo dramático. No 1º caso, os actores representariam num espaço inequivocamente limitado, como sucede actualmente; a sua representação encontraria um eco, por assim dizer, no espaço mais amplo da orquestra, embora permanecendo inevitavelmente uma fractura entre o coro e a acção cénica. No segundo caso, ao invés, o coro torna-se realmente uma personagem, cuja acção está intimamente ligada à dos actores: ambos os grupos ocupam o único espaço amplo da orquestra onde as danças corais continuavam a acção, e não a intervalavam, mesmo quando os actores saíam do teatro.” (...) ”Porém, no séc. V a.C., quando se representaram os dramas de Ésquilo, de Sófocles, de Eurípides e de Aristófanes, os actores nunca usufruíram de um palco, aliás a própria skené não era do conhecimento dos primeiros autores trágicos (Téspis, Pratina), nem de Ésquilo quando levou à cena as suas primeiras obras: a orquestra era rodeada por um estreito terraço, ao mesmo nível ou ligeiramente mais alto, e sobre esse apareciam, subindo por uma passagem chamada parodos (como o canto de entrada do coro) e recortando a paisagem livre, o coro e os actores, que depois actuariam no mesmo âmbito da orquestra.” A skené aparece muito mais tarde.

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tragédia e na comédia, participando o coro cada vez menos na acção deixando lugar de

protagonismo aos actores.

Figura 4 - Ânfora do séc. VI a.C. representando conjunto de bailarinos agrupados em pares encavalitados de forma a adquirir a configuração de figuras equídeas; em frente ao tocador de flauta, o coro de cavaleiros prepara-se para dar início à dança, decerto de forma elaborada própria da comédia. Fonte: (Pergamon Museum, Berlim), in COUTY, Daniel e Alain Rey (dir.), Le théâtre, p.10.

Os desenvolvimentos da trama narrativa conduzem a um aumento do número de

personagens e a especialização das funções (profissionalização) do actor, levam a que

um novo elemento construtivo apareça associado ao proskénion. Atrás e da mesma

largura que ele, encontramos uma construção fechada, a skénè, cuja raiz etimológica

significa “tenda”89, e que tinha como função permitir aos actores sucessivas entradas e

saídas de cena durante as representações, impostas por condicionantes narrativas que

implicavam deslocações no espaço e/ou passagens de tempo ficcionais, ou necessidades

de alterações de personagem e correspondente troca de traje ou acessórios. A associação

destas duas estruturas90 permite também facilidades construtivas, posto que,

correspondendo ao desejo de progressão em altura, a sua conjugação possibilita

89 SOLMER, Antonino, Op. cit., p. 94, usa o termo na sua verdadeira acepção como materialização original. 90 Duma afirmação de MOLINARI, Cesare, Op. cit., pode depreender-se o aparecimento da skénè ainda em período arcaico, em que o proskènion a existir, não funcionaria ainda para a representação mas apenas para a entrada de choros e actores, que depois actuariam em conjunto na orchêstra: “A skenè, num período arcaico, estava distante da zona da orquestra, onde se desenrolava o espectáculo, mas é certo que já antes de meados do sec. V a.C. ela fornecia o fundo da acção.”, p.p. 62 – 63.

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travamento mútuo e maior estabilidade. Assim, ao longo do século IV, começou a

multiplicar-se o uso da construção da skénè, originalmente provisória, em madeira, mais

tarde, a partir de meados do mesmo século, também construída em alvenaria. A skénè

cumpria então uma tripla função: aquela que hoje atribuímos à zona a que chamamos

“bastidores”, onde os actores se preparam e esperam a sua entrada em cena, para o que a

sua fachada era provida de três portas de acesso ao proskénion; funcionava ainda como

pano de fundo à representação, destacando os corpos dos actores a partir de relações que

hoje podemos identificar como as estabelecidas entre figura e fundo, uma vez que a

distância a que se situava o espectador produzia um efeito aparente de

bidimensionalidade91; por último, acarretava uma melhoria nas condições de projecção

vocal. A partir daqui, o fundo gerador da acção constituído pela skené, apesar de o coro

continuar a entrar lateralmente pelos parodos, acentua a relação de frontalidade do

espectáculo com o público.

Ainda durante o século IV, o volume paralelepipédico altera-se, passando a integrar um

conjunto completado nas extremidades, por dois avançados sobre a orchêstra, os

paraskênia92, dois pavilhões que enquadram lateralmente a acção dos actores sobre o

proskénion, permanecendo o coro na orchêstra. O espaço desta, tende então a sugerir

uma extensão daquele limitado pelos paraskenia, no qual se terá concentrado a acção

dos actores, beneficiando sem dúvida de melhor projecção acústica. Estas skênai, assim

como os paraskênia, viriam a ser o suporte para a instalação dos cenários, consistindo

em decoração pintada.

Mais tarde, nas representações das obras clássicas, os actores começaram a actuar sobre

o logeion, o terraço da antiga skenè, considerada agora como proskénion, o que

91 “Tanto em sentido figurado como literal, a sensação da realidade depende do afastamento entre nós e as coisas. A perspectiva no-lo explicou”, PAIVA, Francisco, Op. cit., p.173. A hipótese de as movimentações dos actores sobre o prôskenion, tendo como fundo a skénè, serem regidas a partir da visão que se tinha no lugar do espectador, será improvável, se elas obedeciam antes a algum tipo de codificação emanada do texto ou da própria dinâmica do espectáculo, mais ainda desempenhando o autor simultaneamente a função de actor e, então, estaria ele mesmo também sobre o prôskenion, donde não poderia aferir da percepção a partir do theatron. Por outro lado, as regras de proporção nas artes plásticas gregas eram aferidas com base na percepção e não segundo outra codificação e, na contemporaneidade, quando o encenador participa na representação como actor, faz-se substituir, em ensaios, nas suas marcações por outro actor, de modo a poder compor a imagem formada pelo grupo, a partir da visão, situado na plateia. 92 “ Um vaso proveniente da Magna Grécia, embora não diga muito sobre os trajes e sobre a acção, dada a concisão e a rudeza do desenho, atesta definitivamente a estrutura da paraskenia, cujas portas podiam servir de entrada dos diversos «lugares» que, por vezes, os paraskenia representavam: a pintura dá a sensação de que a skenè propriamente dita não tem nenhum significado representativo, servindo apenas de fundo espacial neutro. ”(...), MOLINARI, Cesare, Op. cit., p. 52

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constitui uma etapa na conquista em altura inicial, produzindo uma separação definitiva

entre actores e coro. A estrutura transforma-se então num edifício de dois andares em

que o primeiro, a fachada do proskénion, fazia de pano de fundo às evoluções do coro, o

segundo, a fachada da skené, fazia de pano de fundo à representação dos actores,

recortada cada vez mais sobre o fundo da paisagem envolvente93. A agregação recíproca

dos elementos cénicos, tende para que o seu conjunto se venha a contrair num recinto

fechado na época romana. (Fig. 5).

Figura 5 – Evolução do lugar teatral Antigo das origens à época romana Fonte: COUTY, Daniel e Alain Rey (dir.), Le théâtre, p. 12.

Pode-se, a partir daqui, uma vez caracterizado genericamente o espectáculo grego

Antigo, tanto quanto os seus vestígios e a imaginação permitem, identificar as duas

zonas mais férteis para analisar a presença do desenho e a sua importância na definição

do modelo que se acabou de reconstituir. A primeira, que diz respeito à conformação e

evolução da organização espacial, que apura o modelo primitivo até ao modelo

helenístico e cujos vestígios estão patentes sobretudo nas ruínas dos monumentos. A

segunda zona, corresponde à presença do desenho na decoração da skénè de que não

temos vestígios e as fontes reduzem-se a referências textuais e representações pontuais e

indirectas na cerâmica coeva.

93 “Temos a felicidade de possuir as ruínas de um dos primeiros teatros (talvez o mais antigo) onde aparece esta inovação: o teatro da cidade de Priene, na Ásia Menor; este teatro data de 340 a.C. e, nesta cidade, então inteiramente reconstruída segundo um novo plano regulador, foi possível edificá-lo sem depender de edifícios anteriores. Como em Atenas, para instalar a cavea, escavou-se uma colina. A orchêstra já não é um círculo perfeito, mas tem agora a forma de ferradura. Primitivamente, a skênê era ainda um edifício provisório, mas, no princípio do século III (isto é, aproximadamente cinquenta anos após a construção do teatro na sua forma originária), construiu-se uma skênê de alvenaria (sem paraskênia), com dois pisos e apresentando do lado da cavea um avançado de um só piso, a todo o comprimento. Assim, o telhado (em terraço) deste avançado, bastante sobrelevado em relação à orchêstra, forma um longo estrado: é o proskênion, equivalente do «palco» nos nossos actuais teatros tradicionais. O segundo piso da skênê constituiu um pano de fundo e serve de apoio ao cenário. Actores, sobre o terraço do proskênion (designado logeion, porque é daí que eles falam), e coreutas na orchêstra, encontram-se separados por uma diferença de nível que atinge mais ou menos 2,80 m.”, GRIMAL, Pierre, Op. cit., p.17.

Primitivo Grego arcaico Grego clássico Helenístico Romano

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< “Em frente à antiga catedral gótica em Barcelona é uma praça pública. Numa parte da praça, um velho homem vestido com um desbotado fato preto e boina, constrói o seu espaço teatral. Ele convida os transeuntes a parar e verem o que tem escondido numa caixa de fósforos que mantém no bolso das suas calças. Ele fala rápida e sussurrantemente sem uma pausa e, quanto mais e mais pessoas se juntam, ele empurra o círculo alargando-o mais e mais, criando um enorme espaço de actuação para um só performer. O seu andar é apressado, e move-se tão perto dos espectadores que consegue ver dentro dos seus olhos. Por fim ele atraiu pessoas suficientes, possivelmente 300, e o espaço está ajustado. Ele caminha em roda várias vezes, certificando-se que tem a atenção deles, e depois saca de uma absolutamente ordinária caixa de fósforos do seu bolso e mostra-a em redor, à multidão. Ele é um actor consumado donde, só revela a história pouco a pouco. Dentro desta caixa de fósforos, diz ele à audiência silenciosa, está um leão. Ele pára e espera pela reacção. Ninguém se move ou nega a sua possibilidade. Ele abre a caixa de fósforos um pouquinho, e avisa as senhoras para não se mexerem ou fazerem ruído com medo que o leão fique zangado, salte fora da caixa e as ataque. Ele conta depois a história de como o leão entrou para a caixa de fósforos, abrindo-a sempre, pouco a pouco. Quando chega ao fim, fecha de repente a caixa, enfia-a no seu bolso e, sem uma palavra sequer, desaparece por entre a audiência, que foi deixada entreolhando-se em espanto e rindo que nem ovelhas tontas, interrogando-se como é que podiam ter sido apanhados em algo tão ridículo. Claro que não tem nada de original acerca de criar e improvisar um círculo de pessoas numa praça pública por um contador de histórias – deparamos com este tipo de eventos por todo o mundo, das aldeias de África aos atarefados centros comerciais. O que é original é a deliberada manipulação de escala versus espaço. Ele descobriu que quanto mais largo fosse o círculo que criava, maior seria o impacto que a minúscula caixa de fósforos teria – e ainda maior o impacto que ele faria fazendo acreditar que um enorme animal estaria preso dentro dela. Este jogo de tamanho e escala, mostra um uso e compreensão magistrais do espaço, com o mais simples dos recursos, que os cenógrafos e encenadores sonham atingir.”>94

Não se sabe se o performer do episódio que Pamela Howard descreve, é um desenhador

iniciado e se funda a construção da sua actuação nos conhecimentos que aí adquiriu.

Provavelmente, não. Ignora-se se conferia, na linha formada no solo pelos sapatos dos

espectadores, a regularidade curva de uma circunferência absoluta e acredita-se que isso

não o preocupasse. Nem que ao usar os seus membros superiores esticados para a frente

ao nível dos ombros, empurrando a assistência enquanto ele próprio se deslocava

descrevendo perímetros concêntricos, pensasse o seu corpo como instrumento de

medição e aferição de distâncias a um centro que ele intuía. Ou que tenha determinado

sobre papel, num desenho em corte, esse afastamento, de modo a que o ângulo de visão

de cada espectador, focasse verticalmente com acuidade, a parte superior do seu corpo,

entre os olhos e o bolso onde guardava a caixa de fósforos. Ou que tenha pensado,

enfim, que a disposição do seu público sobre o perímetro de uma circunferência,

consigo situado no centro, ou movendo-se segundo arcos concêntricos, garantia com

ele, relações de visibilidade e audibilidade, de comunicabilidade, homogéneas. Intuía - e

94 HOWARD, Pamela, Op. cit., pp. 9-10.

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a sua experiência com o desenho, qualquer que ela tenha sido, determinava a sua

intuição.

As condicionantes do comportamento motor e visual, que se referem a orientação,

situação, direcção e identificação espaciais, estão relacionadas de forma profunda com

as experiências primordiais do desenho nas fases de desenvolvimento infantil e restam

armazenadas na esfera da experiência háptica do espaço e do conhecimento tácito que

incorpora o conjunto de procedimentos específicos de muitas actividades, em que a

aprendizagem se faz por via directa, como é o caso de expressões teatrais tradicionais (e

dos exemplos das aldeias de África, apontado por Howard).

A disposição circular de uma assistência em torno de uma actuação espectacular,

permitindo uma relação radial e equidistante com cada elemento da assistência, parece

ser elementar e espontânea não requerendo qualquer sistematização prévia e alguns

procedimentos necessários ao garante da sua eficácia, poderão estar incluídos na esfera

do que se considera conhecimento tácito.

Estamos em presença do círculo primordial95, de que nos fala Arnheim, sustentado no

princípio gestáltico da simplicidade, que se manifesta segundo uma tendência para a

procura da configuração mais simples na organização formal e espacial das primeiras

representações do desenvolvimento gráfico infantil: “(...) a tendência fundamental no

sentido de uma configuração mais simples no comportamento motor e visual é

absolutamente suficiente para explicar a prioridade das formas circulares. O círculo é

a forma mais simples possível no meio pictórico porque é centralmente simétrico em

todas as direcções.”96 Configuração estabelecida a partir de relações elementares ainda

pouco diferenciadas do indivíduo com o meio circundante, que se exprime, no desenho

infantil, pela noção de rotundidade. Um estádio de consciência elementar, tende para a

identificação e o seu posicionamento no centro e a registar a distância às entidades

exteriores, ainda não diferenciadas, de uma forma radiante, equidistante e não

direccional. A tendência autocêntrica radica nesta colocação original da consciência

humana e permanecerá ao longo da vida como um impulso primordial97. A criança

95 “Depois que um deus separara os céus, as águas e a terra seca umas da outra, relata Ovídio nas Metamorfoses, «seu primeiro cuidado foi conformar a terra numa imensa esfera, de modo que ela pudesse ser igual em todas as direcções»”, ARNHEIM, Rudolf, Op. cit., p. 166. 96 Id.. 97“A tendência no sentido de uma configuração mais simples, p. ex., dirige as actividades do organismo a um nível fisiológico e psicológico tão básico que o contexto histórico ou geográfico é pouco importante na análise dos comportamentos perceptivos e representativos. Todas as características fundamentais que operam de maneiras refinadas, complicadas e modificadas na arte madura apresentam-se com clareza

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situa-se a si própria como elemento central do universo que a rodeia, que percepciona a

partir de relações de aproximação ou afastamento98 e as suas acções são comandadas

“(...)pelas necessidades e desejos, prazeres e temores.” A expressão gráfica

característica desta fase do desenvolvimento infantil exprime uma relação exploratória

dessas relações comandada por estas sensações.

De igual modo, “um grupo social, seja ele a família, uma associação, uma nação, ou

mesmo a humanidade como um todo, na sua relação com a natureza, mantém a

centricidade como forte componente da sua perspectiva e da sua motivação”.

A evolução do lugar teatral pode sintetizar-se, numa primeira leitura, independente-

mente das sucessivas e significativas alterações respeitantes à introdução e adaptação

dos novos elementos, como sucessivos apuramentos em torno de uma constante

estrutural determinante, que se expressa na configuração da planta circular99. A primeira

alteração à coesa conjugação do modelo primitivo composto por choros circular

circundado a 360º pelas bancadas, correspondendo ao sistema cêntrico de composição

proposto por Arnheim100, deriva, como vimos, da agregação do prôskhenion, ou seja, da

razão que conduziu ao seu aparecimento, a palavra proferida, o texto, ou mesmo, a

origem da tragédia. Tão significativo como o aparecimento do prôskhenion que, pelas

razões já indicadas se situou tangencialmente à orchêstra, é a consequente interrupção

da porção de círculo do theatron, tomando a configuração em ferradura. O modelo

primitivo com visibilidade para o espaço de actuação a 360º101, mantivera-se eficaz para

elementar nas pinturas de uma criança ou de um bosquímano. Isto acontece para as relações entre forma observada e inventada, para percepção de espaço em relação aos meios bidimensionais, para a interacção de comportamento motor e controlo visual, para a conexão íntima entre percepção e conhecimento, etc.. Não há por isso introdução mais esclarecedora para a arte do adulto do que um exame das primeiras manifestações dos princípios e tendências que sempre governam a criação visual.”, ARNHEIM, Rudolf, Op. cit., p. 153. 98 Serge Tisseron, citado por Tania Kovats, em Op. cit., p.8, no seu ensaio “All writing is drawing”, “esquematiza este processo, sugerindo que nesta etapa o olho segue a mão mas sem grande controlo sobre ela. Aos 24 meses o olho guia a mão. Ele sugere que o acto de desenhar, a marca para cá e para lá, afastando-se e aproximando-se do corpo da criança, descreve e traça a distância física e psíquica entre o corpo da criança e o da sua mãe. Mais, ele situa o desenho como parte da nossa história psíquica colectiva: “Os primeiros desenhos não são guiados por uma exploração visual do espaço mas por uma exploração de movimento. Na sua origem, a expressão gráfica é cega”. 99 A inflexão que representam as variações que se consideram constituir o modelo arcaico, não são justificadas nos textos consultados por qualquer questão orgânica do espectáculo mas antes por razões de natureza construtiva, como se viu. 100 ARNHEIM, Rudolf, O Poder do Centro, trad. de Maria Elisa Costa, col “Arte e Comunicação”, Edições 70, Lisboa, 1990, p. 12. 101 Equivalente ao que na escultura se denomina “ronde boss”, correspondendo à igual valorização de todos os perfis, definidos a partir de qualquer tomada de vista possível.

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as expressões coreográficas e corais, próprias da actuação do coro, que assentavam em

evoluções movimentadas e conjugadas, com direcção radiante, que com certeza

garantiria condições de visibilidade e audibilidade homogéneas a toda a assistência.

O mesmo não se verificava com a participação dos actores que consistia na profusão da

palavra. Por exemplo, se confiada alternadamente a um elemento singular, a actuação

em direcção radial para uma porção do público, ideal para a comunicabilidade oral,

significava a visão do dorso para outra porção de espectadores e consequente défice na

comunicação (o performer de Barcelona de Pamela Howard, “...fala rápida e

sussurrantemente sem uma pausa...”, “... caminha em roda várias vezes, certificando-se

que tem a atenção deles...” e “...o seu andar é apressado, e move-se tão perto dos

espectadores que consegue ver dentro dos seus olhos...”). A partilha do espaço da

orchêstra, com o coro e a thymelê e a natureza do texto trágico não aceitavam como

boa, uma movimentação frenética. A deslocação da palavra proferida, para a zona

tangente à orquestra, permite com a assistência, a relação frontal que lhe é mais

adequada102. Mas o aditamento do prôskhenion é só a primeira, de outras inovações que

derivam da proeminência crescente da palavra, e que se relacionam directamente com as

imposições da presença de uma narrativa, como é o caso da skenê, cujo aparecimento

diz respeito mais directamente à ficção.

De volta ao performer de Barcelona, depois de termos visto o modo como o espaço de

actuação por ele criado se ajustou à relação que lhe era conveniente ter com a sua

assistência, tente-se agora perceber de que modo ela se adequou à sua narrativa. Uma

vez garantida a visibilidade e atenção do público, o actor introduz uma narrativa de que

se mantém alheio. Ele situa-se no mesmo plano da realidade tangível do espectador e

alude a uma ficção, que tem como pólo espacial de referência, o interior da ínfima caixa

de fósforos. Tem-se então a presença de mais uma dualidade inerente ao espectáculo

teatral; à primeira que consiste na relação actor/público, junta-se real/ficção. Mas neste

caso joga-se uma inversão ou mesmo uma subversão: a dualidade actor/personagem é

102 Na verdade só em relação aos lugares próximos ao eixo de simetria e mais lateralizada para os lugares que dele se afastavam mas que, por outro lado, beneficiavam de maior proximidade ao theatron, surgindo uma dialéctica que virá a ser a grande problemática de todo o teatro à italiana até aos dias de hoje. De qualquer modo, no que se refere à actuação sobre o prôskhenion, a colocação e rotação do actor poderia compensar estes desequilíbrios e, dirigindo-se frontalmente para os lugares laterais, oferecia uma visão lateral para o eixo central donde, a actuação do actor, podias compensar uma distribuição desequilibrada da visibilidade.

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dúbia e posta em causa pela incredulidade da possibilidade de um leão caber numa caixa

de fósforos, mas a convenção depressa é aceite. Por uma inteligente solução de

economia de recursos, a caixa de fósforos constitui o seu dispositivo cenográfico,

enquanto determinação da fronteira entre realidade e ficção, visível e ocultado103, e essa

é a razão porque a personagem, durante a actuação se lhe mantém exterior. No passado

em que se desenrolou a acção, que levou a que o leão entrasse para a caixa, o actor

enquanto personagem, participou nela, mas, no momento em que a narra, ele não faz

mais parte da ficção. Se a linha de fronteira entre realidade e ficção coincidisse com o

círculo confinado pelos espectadores, sem outro dispositivo cenográfico, o actor não

teria ponto de retorno a partir da personagem, não poderia abandonar a ficção de volta à

realidade sem quebrar a convenção aceite pelo público, desaparecendo pelo meio dele;

dada a forma circular do lugar de representação, ficaria encurralado, encerrado na

ficção, “aprisionado nela”104.

Regressando a Atenas, na Antiguidade, depara-se então com a fundamental função da

skénè, de que a caixa de fósforos na história de Barcelona foi uma inversão, uma linha

de fronteira para a ficção, entre o visível e o invisível, um espaço de recuo para os

actores prepararem ou trocarem de personagem, uma zona de entrada e saída para

actores/personagens, cuja fachada se prestou à decoração. É a partir daqui, que se instala

a noção de cenografia - skènographia, vertido para latim como scenografia, que na raiz

composta grega graphein, pode traduzir-se por escrever, desenhar, ou pintar a skénè. É

possível de antemão destacar também, um corpus de desenho directamente relacionado

com a palavra fixada em texto, com a estrutura narrativa e com a ficção.

Recolocando este conjunto no complexo do lugar teatral, pode dizer-se que o

aditamento do prôskhenion e da skenê, constituem uma alteração na configuração da

composição geral, do sistema cêntrico que tinha como fulcro a orchêstra, mais

precisamente a thymélè e a sua irradiação religiosa, para o sistema excêntrico, figurando

como segundo centro o lugar da palavra, da mitologia, da ficção, e da cenografia como

seu instrumento, logo, do desenho. A interacção vectorial dos dois sistemas traduz-se,

na sistematização de Arnheim, na conjugação do esquema original circular e radiante,

com o esquema ortogonal cartesiano105 do segundo, já adivinhado na sua propensão

103 Segundo a determinação já apresentada de SURGERS, Anne, Op. cit.. 104 Nas palavras de Couty e Rey, Op. cit., p. 177. 105 “(...) as grelhas implícitas na pintura ou na arquitectura ajudam a criar uma ordem visual e, desse modo, servem uma finalidade importante da composição.” ARNHEIM, Rudolf, Op. cit., p. 26. Arnheim

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para as relações de frontalidade, numa deslocação simbólica da orchêstra para a skenê,

que se pode traduzir, nas palavras de Daniel Couty e Jean- Pierre Ryngaert106, do cultual

ao cultural.

A skenê terá, durante muito tempo, funcionado como fundo neutro às representações e a

decoração surgido, em meados do século V, do aproveitamento, por preenchimento por

pintura, dos espaços que a estrutura da sua fachada deixara vazios. A influência em

sentido inverso, ou seja, que a decoração tenha condicionado posteriormente a estrutura

da fachada, a ter-se verificado, só talvez mais tarde quando a porta central é

pontualmente adornada com um pórtico e os paraskenia são dotados de porta ou

adornados com colunas, ou quando a fachada adquire a estrutura de dupla colunata.

A leitura destes elementos oscila entre a consideração de meros adornos ou soluções

construtivas próprias da gramática arquitectónica, ainda que simultaneamente

cenográficos, e a possibilidade de integrarem a estrutura da representação decorativa.

Tal como os paraskenia, que apesar de aportarem ganhos espaciais com a compressão

lateral da zona do prôskhenion com prolongamento para a orquestra, constituindo uma

concepção algo abstracta sem ter evoluído de qualquer ensaio prévio, seria difícil que

essa fosse a razão única do seu aparecimento, sendo que provavelmente são, antes de

mais, uma extensão emanada da representação pictórica. De qualquer forma, o impulso

de usar a fachada para criar um fundo que se identificasse com o espaço da ficção terá

partido da adequação natural da estrutura arquitectónica base, a algumas representações

espaciais (alguns textos dão a indicação de palácios, templos, para o espaço em que se

desenrola a acção), surgindo depois a necessidade de usar representações adequadas a

outros contextos.107

As representações obedeciam a uma codificação (de seguida retomada pelo teatro

romano, atestado por Vitrúvio e ainda em Itália na Renascença): paisagem de floresta

abandona a denominação de grelha cartesiana na segunda edição, que substitui por excentricidade, porque “embora as grelhas figurem na composição, especialmente no desenho de edifícios e cidades, referem-se somente ao caso especial dos vectores organizados da forma mais regular”, Id., p.13. 106COUTY, Daniel e Alain Rey, Op. cit., p. 10. 107 “É possível que a disposição assim criada, com o aditamento do proskênion à skênê tradicional, tenha sido sugerido por certo tipos de casas privadas, na arquitectura oriental, onde os terraços são, e sempre foram, um importante elemento da paisagem urbana. Mas é muito duvidoso que se tenha querido, com a introdução do proskênion, imitar tal paisagem: o proskênion e o seu terraço mais não são do que um cenário, pelo que isso só seria válido para a comédia nova, em que a acção se desenrola numa cidade; em contrapartida, uma acção de tragédia estaria aí totalmente deslocada.”, GRIMAL, Pierre, Op. cit., p.19.

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para o drama satírico, casa à escala humana para a comédia, templo, palácio ou tenda

guerreira para a tragédia, que punha em cena reis e heróis.

A decoração pintada sobre painéis em tela ou madeira – pinakes, dependurados sobre o

muro da skénè e das paraskénia, permitia a sua remoção e adequação ao género a

representar. No final do séc. V a.C., junto aos parodoi, são usadas duas estruturas

laterais móveis, os periactos, prismas triangulares de madeira, pintados em cada uma

das suas faces, com a altura da skênê e colocados em cada uma das suas extremidades.

A decoração mudava pela simples rotação em torno do eixo vertical do periacto, o que

permitia figurar três lugares diferentes correspondentes aos três géneros dramáticos,

ficando visível para o público uma face de cada vez, escolhida de acordo com o género

a representar. A partir do século III a.C., em pleno período helénico, as fachadas do

prôskhenion e da skénè podiam estruturar-se segundo uma dupla colunata sobreposta,

cujos intervalos eram revestidos com painéis pintados.

As primeiras referências aos painéis pintados, remontam a Ésquilo108, que terá confiado

a pintura de certas decorações das suas tragédias a Agatharcos de Samos109, mas

segundo a tradição terá sido Sófocles o primeiro a recorrer a este artifício. Essas

decorações terão sido pintadas com um cuidado de representação verosímil do espaço, a

julgar pela mestria atribuída a Apollodoro110 de Atenas, que trabalhou para Eurípides,

pelo seu trabalho de skiagraphia, ou seja, a representação dos volumes pelo claro-

escuro e modelação de sombra e luz.

A pintura grega antiga, sobre painéis de madeira ou mural, parece ter constituído um

conjunto de qualidade muitas vezes igualada ou mesmo superior à escultura mas, não

tendo subsistido qualquer exemplar, só o recurso a fontes indirectas pode ajudar a

aproximar a uma ideia do que ela pode ter sido. As fontes, são sobretudo a pintura coeva

que tem a cerâmica como suporte, as mútuas contaminações dos frescos etruscos e as

pinturas murais tardiamente encontradas em território imperial, que levam a reconhecer

também, algum legado da pintura mural cretense. Juntam-se alguns testemunhos

literários, sobretudo por Plínio, o Velho, no livro XXXV da sua História Natural e

Aristóteles que, na Poética, referindo-se ao trabalho de pintores como Polignoto, 108 Grimal, em O Teatro Antigo e Molinari, em História do Teatro, reconhecem que as referências mais remotas de valor indeterminável, remontam a Ésquilo, mas atribuem a Sófocles, segundo a tradição, ter sido o primeiro tragediógrafo a recorrer a este “artifício”, mas Anne Surgers, em Scénographies du théâtre Occidental, com certeza baseando-se em Vitrúvio, atribui a iniciativa a Ésquilo. 109 AGATHARCOS de Samos (cerca de 536 – antes de 582 a. C.) – “pintor grego, realiza decorações para Ésquilo e escreveu uma memória sobre a cenografia, donde é considerado como seu fundador, com os seus contemporâneos Anaxágoras e Demócrito. “, SURGERS, Anne, Op. cit., p.163. 110 APOLODORO de Atenas – “ pintor, activo entre 430 e 400 a. C.” Id., p.164.

42

Páuson, Dionísio e Zêuxis como exemplum ou paradeigma faz uma homologia entre

pintura e poesia. A literatura não é elucidativa sobre as técnicas empregues, das

intenções e dos ditames que norteavam a sua execução e dos géneros em que se

filiavam.

Maior dificuldade ainda é julgar o desenho grego desta época que, para além do

conjunto que tem como suporte os lécitos atenienses - lekythoi, recipientes para óleo

destinados a oferendas funerárias - em que a expressão da linha pura se destaca sobre

fundo branco, tem a pintura como fonte principal e residual da sua caracterização,

dificultando a consideração da existência de um desenho autónomo111.

Prodigiosamente, nesta secção que propõe analisar o desenho através da pintura

decorativa da skenê, a tarefa parece, apesar de tudo, facilitada, porque a pintura grega

Antiga, ou o que se crê que ela tenha sido, comporta uma associação explícita com o

desenho. Apesar de se concluir, a partir de vestígios de pintura mural descobertos em

Pompeia, da existência de desenho prévio a sinopia e a sua prática comentada como

constante112, a linha aparece como definidora e mesmo modeladora da forma; noutros

casos, a partir de um registo directo incorporado no gesto ou maneira de cada autor, que

dispensa a elaboração de desenho prévio, “pelo menos nas figurações de paisagens”113.

O gradual abandono da planimetria de herança egípcia em benefício da euritmia e da

adequação das figuras por aferição perceptiva, proporciona esta organicidade e fluência

da linha em detrimento do rigor e do perfil, conduzindo à utilização generalizada do

escorço e permitindo alcançar o domínio da representação espacial. Sobretudo a partir

de meados do século V, a linha esquematiza ao mesmo tempo que modula e evoca o

modelado.

É igualmente certo que os gregos experimentaram a representação perspéctica,

consistindo em projectar um espaço sobre um plano, a fim de obter uma representação

dita verosímil, próxima da visão humana. Vitrúvio, de facto, atesta no prefácio do seu

sétimo Livro de Arquitectura:

<“ …VII Agatarco, pois, foi o primeiro que, instruído por Ésquilo sobre a tragédia em

Atenas, dispôs a cena e escreveu um tratado sobre ela. A exemplo de Agatarco

escreveram sobre o mesmo Demócrito114 e Anaxágoras, dando a razão de corresponder

111 RUDEL, Jean, Op. cit., p.12. 112 Id., p.13. 113 Id., ibid. 114 DEMÓCRITO (cerca de 460 – 2º quartel séc. IV a. C. ) – “filósofo e matemático grego. Discípulo de Leucito, foi o principal representante da doutrina dos átomos.”, SURGERS, Anne, Op. cit., p.168.

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naturalmente à vista e extensão dos seus raios as linhas de um centro assinalado, de

modo que de uma coisa fingida nas cenas pintadas, resultem aparências de verdadeiros

edifícios e que as coisas desenhadas em superfícies planas e rectas, umas pareçam

remotas, e outras aproximadas.”>.115

Porém, a representação ilusória do espaço pelo uso sistemático da perspectiva central só

será alcançada no Renascimento, onde irá constituir o elemento fulcral da

representação, no teatro à italiana.

Figura 6 – Detalhe do vaso de Pronomos (cerca de 410 a.C.) Preparativos de um drama satírico. Fonte: COUTY, Daniel e Alain Rey (dir.), Le théâtre, p.17. 

115 VITRUVIO POLIÓN, Marco, Los diez Libros de Arquitectura, 3ª edição, Trad. e Com. de José Ortiz y Sanz, Prólogo de Delfin Rodriguez Ruiz, Ediciones Akal, Madrid, 2001 (1ª ed. 1987), livro VII, prefácio, p.164.

44

Figura 7 – Teatro de Vergina, Grécia.

Figura 8 – Dusty Boots Line, The Sahara, Richard Long 1988.

45

3.2 O DESENHO NO LUGAR TEATRAL MEDIEVAL

Ao período medieval inicial corresponde uma descontinuidade116 na actividade teatral

institucionalizada tal como se vinha desenvolvendo desde a Grécia Antiga;117 adaptado

ao modo de vida imperial de que se tornara um reflexo expressivo, o teatro acompanha

o seu declínio e desaparece com a queda do Império Romano do Ocidente.

Apesar da presente e crescente multiplicação da actividade jogralesca, de expressão

individual ou, quando muito familiar, só no século XIII se volta a verificar alguma

estrutura organizativa na prática teatral118. Porém e apesar da manifesta ausência da

prática teatral enquanto instituição verifica-se, neste período, uma acentuada

manifestação do que se pode definir como “teatralidade generalizada”119.

Evoluindo a partir de formas teatrais geradas remotamente na periferia dos géneros

dramáticos da antiguidade120, ao sabor de um gosto popular e de manifestação

espontânea, alimentadas pela necessidade de divertimento do modo de vida imperial

mas resistindo ao derrube que a sua queda acarretara nas expressões institucionais,

assiste-se na época medieval, a uma prolífera actividade jogralesca121, beneficiando do

116 “(...)a última informação relativa a autênticas representações teatrais, segundo o significado que se atribuía a esta expressão na civilização greco-romana, remonta a 467 d.C. para o Ocidente europeu. (...) A actividade teatral de carácter oficial perpetuou-se durante mais tempo no Império do Oriente.” MOLINARI, Cesare, Op. cit., p. 78. 117 No Traité de Scénographie, Pierre Sonrel, <“(...) limita essencialmente o seu objecto à descrição da cena clássica modernizada e ao estudo do material necessário aos espectáculos que poderão aí serem montados.”> e em nota de abertura ao CHAPITRE PREMIER, intitulado “les fêtes medievales”, precisa <“Para iluminar o objecto do nosso estudo, remontar-nos-emos somente àquele período que precede a Renascença onde se descobriram os diversos elementos cuja fusão vai compor o nosso teatro.”>, SONREL, Pierre, Op. cit., p. 13. 118 “(...)a actividade teatral institucional, isto é, entendida como actividade que se desenvolve regularmente em edifícios projectados ou adaptados para o fim, com a contribuição de vários especialistas e graças ao financiamento do Estado ou de particulares ricos está menos presente na Alta Idade Média.”, MOLINARI, Cesare, Op. cit., p.79. 119 MOLINARI, Cesare, Op. cit., p. 79. 120 As lisidodia, simodia, magodia, hilarodia., C.f. nota 64. 121 “Jograis, contorcionistas, cantores, acrobatas, ilusionistas, exibicionistas de animais amestrados ou mimos que fossem recorriam ao excesso de gesticulação e vocalidade. Mas, contrariamente ao que pensavam os moralistas os jograis também fazem uso da palavra significante, sobretudo na sua acepção crítica e narrativa; por vezes contratados para difamar, constituem o espírito crítico do corpo social, que acarreta um conotação com o poder, identificados com os loucos, que lhes permitia variar o objectivo (imprevisibilidade) e satirizar as classes altas e poderosos. A sátira tinha também uma função informativa. O jogral cumpre também a função de narrador o que lhe confere algum crédito por parte dos eruditos e moralistas mais flexíveis. Do seu reportório podiam também fazer parte as Chansons de gestes (com os ciclos de Carlos Magno ou do Rei Artur), bem como curtas histórias ridículas ou irónicas, fábulas ou fabliaux, cujas personagens são extraídas da vida quotidiana burguesa ou popular que virá a ser o universo da farsa. Contos de acções, uma narração com fortes realces mímicos, em que o diálogo entre as personagens intervenientes é relevante, transformando-se o narrador em actor sempre que o texto o sugeria. Tal como os eruditos

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desenvolvimento urbano como meio fecundo para a sua multiplicação. As artes

figurativas atestam a sua presença e a diversidade das suas atribuições, nos códices com

iluminuras, nos capitéis esculpidos das igrejas, assumindo formas animalescas e

demoníacas, e em esculturas decorativas de caleiras de palácios e conventos. Tinham

carácter predominantemente individual ou, não raro, apoiavam-se em estruturas

familiares, o que permitia diversificar o repertório de expressões, objectivo desejável

que podia levar ao recurso a colaborações especializadas, resultando quando muito, na

constituição de reduzidas companhias de durabilidade relativa, condicionada pelo

nomadismo frequente. A sua actividade era irregular, assentando sobretudo na

espontaneidade e na sazonalidade de qualquer oportunidade ou acontecimento social

para se manifestarem por impulso próprio, onde podiam pontuar várias manifestações

simultâneas, sem qualquer concertação. A diversificação da sua gramática era tão vasta

quanto possível ou, em alternativa, solidificada em especializações de modo a poder

corresponder a possíveis solicitações para abrilhantar eventos de iniciativa privada ou

municipal, que significava sempre garantia de subsistência122.

A afirmação do Cristianismo faz-se também pela negação da cultura clássica, que tinha

no teatro a sua expressão mais mundana123 logo, condenável. O conhecimento dos

clássicos que deixaram de se representar, reduzia-se a leituras124 (não representações)

nos conventos e mosteiros pelos eruditos, cerceadas pela aplicação de teorias centradas

na interpretação e alegoria bíblicas, raramente se debruçando sobre os géneros

dramáticos. Ao longo destes séculos, o Império do Oriente que ainda subsistia, com

capital em Constantinopla, assumiu grande importância na perpetuação da cultura

clássica grega, mantendo-se o uso generalizado da língua, enquanto os eruditos

ocidentais se interessaram sobretudo na tradição latina.125. Consequentemente, a

consideravam, o teatro como uma alternância entre a narração e acção, influenciados pela observação do trabalho dos jograis, considerados uma versão simplificada do teatro «verdadeiro» e antigo.”, MOLINARI, Cesare, Op. cit., p. 87. 122 “Mas os jograis não desapareceram, permaneceram activos ainda por vários séculos em vários contextos e em novas situações económicas: condimento alegre das feiras e dos banquetes continuou a representar de várias formas aquela teatralidade difusa e anti-institucional que se insere no quotidiano e que, há alguns anos, voltou a aparecer nas praças das cidades e nas estações ferroviárias das áreas metropolitanas.” MOLINARI, Cesare, Id., ibid.. 123 “logo demoníaca”, Id. p.p. 80-81. 124 “ nos mosteiros continuava-se a copiar as comédias e as tragédias da latinidade clássica, e a monja Hroswita (935-973) testemunha que Terêncio ainda era lido por muitos: lido, mas não representado, como provavelmente eram concebidos para a leitura os textos da própria Hroswita, considerada o único verdadeiro autor dramático da Alta Idade Média.” MOLINARI, Cesare, Id.. 125 “(...)No Ocidente, o período carolíngio (do sec. VIII ao X) produziu uma florescência de poesia e comentário crítico sobre literatura clássica e cristã. Disso pouca coisa dizia respeito ao drama, mas a

47

tradição da crítica grega sobreviveu, nos séculos que se seguiram, entre os eruditos de

Constantinopla devendo-se a sua conservação sobretudo à Igreja Ortodoxa.

Este contacto recolhido, pontual e indirecto, durante séculos com os textos dramáticos,

associado à imagem que se tinha da actividade jogralesca, identificada com a memória

persistente e traumática do estatuto decadente do actor em Roma126, instala uma ideia

difusa e inquisitória de teatro, que inicia uma tradição censória secular da Igreja127 para

com a actividade.

A fé em Cristo morto e ressuscitado, via para a salvação, potência agregadora da Igreja,

deveria ter como resultado da sua doutrina a regulação da vida, privada e social, na sua

orientação para a contemplação divina, remissão dos pecados para salvação da alma na

vida eterna. A actividade teatral em geral, pagã e mundana, é considerada demoníaca e

pela sua influência social nefasta, torna-se alvo também dessa vigilância. Este desejo de

regulação, a partir daquela concepção indefinida e obscura do teatro enquanto

instituição, mas à mercê da pluralidade de fenómenos em presença, possibilita

considerar e agrupar um vasto conjunto de manifestações, de outra forma, anti-

institucionais. Reconhecia-se a actividade do actor, de algum modo relacionada com o

vago conceito de teatro antigo e a designação que lhe era atribuída acarreta de antemão

conotação negativa, herdeira do status social degradado já conferido pela sociedade

romana. A condenação inaugurada pelos Padres da Igreja, Santo Agostinho, Tertuliano

e São Jerónimo, baseava-se em três acusações: o actor era «gyrovagus» ou vagabundo,

o que o excluía do corpo social organizado128; «vanus», a arte do jogral é vazia de

conteúdo técnico, cultiva o empirismo desprezando a normatividade imposta pelas

autoridades e vã, alimenta o divertimento em vez da utilidade da catequese; e «turpis»,

que desvirtua a imagem natural, transfigura o seu corpo, obra sublime de Deus, pelo uso

do disfarce e da máscara, disfarçando-se de animal ou mulher, contra a norma natural e

social.

persistente importância de Donato e Horácio garantiu para o género pelo menos alguma atenção crítica ocasional.”, CARLSON, Marvin , Op. cit., p. 29. 126 Que culminara nos “jogos grandiosos e bárbaros do circo onde os primeiros cristãos representavam sobretudo o papel de mártires”, SONREL, Pierre, Op. Cit., p. 13. 127 Verificável ainda no século XVIII. 128 O que leva os profissionais a partir do sec. XII, a procuraram uma defesa profissional, unindo-se em corporações e confrarias e a adoptarem outras estratégias de integração: “Cerca de 1300, o bispo de Salisbúria Thomas de Cabham, distingue três tipos de jograis:1- Os que transformam ou transfiguram os seus corpos com gestos e saltos abjectos, tirando ou pondo máscaras horríveis;2- Os que seguem as cortes dos grandes dizendo opróbrios dos ausentes;3- Os que cantam para celebrar as gestas dos príncipes e santos, verdadeiros cantores populares de cantigas, utilizados para levantar a moral dos soldados em campanha ou nas igrejas para contar os milagres e o martírio dos santos”, MOLINARI, Cesare, Op. cit, p.85, (sem negrito no original).

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Esta regulação por parte da Igreja, obriga a centrar a atenção sobre a actividade e a

estudar as suas particularidades, nomeadamente as comunicativas e a reconhecê-las

enquanto potencialidades e leva, por sua vez, os profissionais a cederem a estratégias de

integração. Esta aproximação mútua, terá provocado algum abrandamento ou

flexibilidade nos meios clericais que começa a reflectir-se ao nível da linguagem – “ao

espectáculo mundano e demoníaco, a Igreja contrapõe o espectáculo espiritual e

purificador do rito”129.

Em geral, os ritos religiosos são ricos em elementos espectaculares e o rito católico, tem

como unidade central, a liturgia, cerimonial pleno de palavras e gestos e que pela sua

forma dialogada do texto, atinge mesmo um significado dramático. Em si mesmo,

representa e reinvoca perante os fiéis, um acontecimento que ele renova a cada

celebração, é simultaneamente evocação e repetição desse acontecimento, que constitui

o dogma da fé, o milagre da transubstanciação. Da necessidade de doutrinar e

galvanizar os fiéis em torno desse ritual, celebrado em latim perante assembleias

iletradas, a Igreja preocupa-se em adoptar os meios mais expressivos para ilustrar e

difundir com maior eficácia os seus ensinamentos, o Drama da Redenção, a Paixão de

Cristo e as suas origens bíblicas. Partindo do simbolismo da liturgia, lentamente se vai

elaborando uma dramatização destinada a preencher o imaginário ingénuo dos fiéis.

Gradualmente e a partir de extensões dramatizadas de partes da liturgia, pela introdução

de versículos em forma de diálogo, os tropi130, vai nascendo no seio das igrejas, o

drama litúrgico, representação desempenhada pelos clérigos, de cenas tiradas das

Sagradas Escrituras, que viria a ser o embrião do ressurgimento da actividade teatral

medieval, com contornos de institucionalização já pelo século XIII. Tal como o teatro

grego tem a sua origem religiosa na evolução do ditirambo, o drama litúrgico deve a sua

génese à introdução dos tropi131.

129 “(...) o monge bávaro Honorius d’Autun (sec. XII), não comparava ele a missa a uma tragédia antiga com o seu público (os fiéis) e seus actores (os padres e celebrantes)? E o bispo Jean de Salisbúria (sec. XII), desenvolvendo certas páginas dos Padres da Igreja, não comparava ele o mundo a um vasto «teatro terrestre» em que os «espectadores são Deus e os homens virtuosos que estão no céu»? “.Couty e Rey, Op. cit., p.12. 130 Terão sido introduzidos para facilitar a memorização de partes vocalizadas dos salmos na liturgia, as antífona, versículo principal de um salmo cantado antes e depois desse salmo. Os primeiros tropi remontam ao século IX e incluem-se no ofício da Páscoa com o Quem quaeritis? que representava a visita de Maria Madalena e Maria, mãe de Jesus, ao Santo Sepulcro. 131 <“ Da mesma forma, com efeito, que a celebração dos ritos dionisíacos está na origem da tragédia e comédias gregas, o teatro clássico moderno nasce do desenvolvimento da liturgia da missa, pouco a

49

Não beneficiando de lugar específico à representação, o drama litúrgico serve-se dos

elementos arquitectónicos da igreja, tais como o altar, o púlpito, o coro, o sepulcro e a

cripta, extraindo da simbologia do espaço das igrejas, a sua aplicação espacial narrativa.

Mais tarde, são introduzidas estruturas simples e quadrangulares, assentes sobre

estrados, que dão pelo nome de mansions ou lugares designados132. O drama litúrgico

cede progressivamente lugar aos mistérios, que ilustram cenas e parábolas das

Escrituras (Antigo e Novo Testamentos) e aos milagres que, inspirados na tradição

representam a vida de santos e mártires, a que corresponde um aumento do número de

mansions. O elemento mais característico das representações dos mistérios é a estrutura

simultânea do cenário, os lugares designados ou mansions dispunham-se em

justaposição, representando os lugares em que se desenrolava a acção.

No século XII, estas estruturas dispunham-se ao longo da nave central da igreja. As

mansions que simbolizavam o paraíso e o inferno eram uma constante, situando-se em

posições diametralmente opostas: a primeira no altar e a segunda na porta oeste e

encerravam entre si o conjunto das restantes. Noutros casos, menos comuns,

apresentavam-se sobrepostas, formando uma cena frontal. Constituem já verdadeiras

representações teatrais, porém sempre inspiradas nas récitas bíblicas e evangélicas e

traduzindo, em linguagem vulgar e cenas variadas, os ensinamentos contidos no latim e

nas rubricas da liturgia.

A popularidade crescente destes espectáculos conduz a que estes se desloquem

progressivamente do interior da igreja -coro e partes baixas da igreja - para o exterior,

primeiro o adro e depois para a praça pública da cidade, onde era edificada uma

estrutura de cavaletes que suportava as mansions. Dispunham-se por todo o perímetro

da praça, e o público concentrava-se em seu redor. Com este deslocamento, o lugar do

drama perde o carácter religioso e o assunto torna-se profano também. Apesar de as

primeiras representações sagradas, encenadas fora das igrejas sem vínculo ao cerimonial

litúrgico, terem ainda sido dirigidas por clérigos ou padres, e manterem uma certa

ligação com o recinto sagrado, a responsabilidade do desempenho das representações

pouco ampliada da representação de cenas tiradas das Sagradas Escrituras.”>, SONREL, Pierre, Op. Cit., p.13. 132 Não foi possível neste estudo determinar a origem desta denominação, mas a procura no território do teatro por vestígios da presença do desenho não pode deixar de assinalar raiz comum com o termo disegno que se vulgarizará na Itália do Quatrocento e a nomeação destes lugares de representações por excelência e onde o desenho terá tido um papel determinante. “no idioma italiano segno (port. Signo), no plural segni, é a base etimológica da voz disegno.” PAIVA, Francisco, Op. cit., p.19.

50

diferencia-se. Paralelamente à tradição dos mistérios e milagres, encorajada e

representada pelos membros do clero e das confrarias no interior e adros das igrejas, por

todo o lado se representam moralidades, farsas e soties (ou sotties), apresentadas

apenas sobre um estrado apoiado em cavaletes, condenadas pelo clero mas do agrado do

povo e dos burgueses que asseguravam o seu desempenho.

No caso das farsas, a cena podia ser enquadrada por uma cortina que ocultava os

bastidores. Anne Surgers, caracteriza a representação dos mistérios e dos milagres pela

ausência de fronteira separadora entre realidade e ficção, funcionando em

concomitância: o público incluído no espaço geral da representação, desloca-se com os

actores e estes podem tomar lugar entre o público. Encontramos a mesma

indiferenciação nas mansions de estrado: algumas representam lugares da acção, outras

poderão servir ao público. (Fig. 9)

Figura 9 – Martírio de saint Apolline, de Jean Fouquet. 1420 – 1480 (Museu Conde Chantilly) Fonte: COUTY, Daniel e Alain Rey (dir.), Le théâtre, p. 22.

51

Apesar da disparidade dos meios de expressão, não existe lugar teatral específico nem

cenografia medieval ou, mais precisamente, o lugar teatral e a cenografia medieval está

por todo o lado: na arquitectura das igrejas, da abadia ou da cidade. “Está no

conhecimento que todos, a níveis de consciência diversos, tinham do sentido simbólico

do espaço.”133

Sobre a encenação e decoração destes espectáculos resta muito pouca documentação e a

erudição é reduzida a conjecturas. Nenhum testemunho gráfico restou respeitante às

representações religiosas entre os sécs. X e XV.134A estrutura fragmentada e simultânea

segundo disposição geralmente linear, não implicando contudo uma utilização

sequencial dos lugares designados invoca, mesmo por descrição verbal, a memória dos

códices e livros de modelos do período medieval. A variedade de motivos que aí são

representados, o modo como muitas vezes se mesclam sem caracterização do espaço de

modo integrante, facilmente se associam à ideia que conseguimos fazer da

representação de um mistério ou milagre.

A associação é comum e decerto, quer por influência clerical quer pela posterior

mobilização de confrarias e ofícios, o desenho daqueles cadernos há-de ter informado e

mesmo estruturado estas representações. A simultaneidade e verticalidade dos suportes

costuma levar também a relacionar as representações dos lugares designados das

manifestações mais tardias, com a pintura retabular e aqui é normalmente aceite que a

influência se tenha feito em ambos os sentidos; de facto, quando as representações se

tornam mais elaboradas, atesta-se a presença de colaborações mais especializadas que

poderão ser responsáveis por contaminações recíprocas. De resto, a pintura de Giotto é

muitas vezes caracterizada como encerrando alguma teatralidade.

O aparecimento do papel e a sua vulgarização a baixo custo, vem possibilitar o primeiro

passo na autonomia do desenho, ou seja ele adquire existência exclusiva enquanto até

aqui ficava soterrado pela sedimentação dos procedimentos próprios da técnica a que se

destinava, como o desenho a sinopia. Tal como os esboços compositivos das pinturas,

muito do desenho preparatório para a representação teatral, desaparecia por entre os

133 SURGERS, Anne, Op. cit., p. 65. 134 “ O Mistère d’A.dam et d’Eve do séc. XII, é sem dúvida o mais antigo texto dramático de língua francesa que subsistiu. «O manuscrito onde encontramos esse mistério...oferece toda a encenação do drama; ele começa por uma notícia sumária, não somente sobre as decorações do teatro e sobre o traje de cada personagem mas ainda sobre a postura e os gestos dos actores, assim como sobre a maneira como eles devem debitar os seus papéis». Lacroix, Moeurs et Coutumes du Moyen-Age (Didot), citado por SONREL, Pierre, Op. cit., p. 15.

52

procedimentos necessários à realização que ele mesmo condicionava: as linhas no

terreno de construção, os esquemas compositivos da pintura cenográfica, as linhas de

construção e marcação de modelos de carpintaria ou guarda-roupa, etc. Alguns

artefactos do desenho operativo mantiveram-se do domínio dos ofícios até muito

recentemente. É vulgar encontrar, nas oficinas de carpintaria e ateliers de costura de

companhias de teatro, excedentes de materiais que conservam desenhos ou negativos de

recortes de realizações anteriores, por vezes modelos conservados como cérceas para

futuras realizações implicando procedimentos específicos, transformados em peças

museográficas privadas, fragmentos da memória colectiva do grupo.

Figura 10 – Coro de igreja cisterciense e apóstolo adormecido no Jardim das Oliveiras por Villard de Honnecourt Fonte: Paris, BNF. Fr. 19093 fº 7, in RECHT, Roland, “Desenhos e «tratados» de arquitectura”, in Duby, Georges e Laclotte, Michel, “História Artística da Europa”, Tomo II, p. 211.

53

Figura 11 – A paixão de Donaueschingen 2ª metade do século XVI Fonte: COUTY, Daniel e Alain Rey (dir.), Le théâtre, p.20.

54

O documento gráfico mais antigo, relativo a uma representação teatral medieval, data da

2ª metade do sec. XV, (cerca de 1485) e é um esquisso135 relativo à implantação de

diferentes decorações de um Mistério numa praça pública e refere-se a uma

representação da Paixão em Donaueschingen.

O desenho representa, no meio duma praça da cidade, um estrado alongado sobre o qual

são alinhadas diversas decorações das cenas da Paixão, segundo as várias mansions ou

lugares designados. “< Os espectadores deveriam fazer a sua entrada pela porta central

(em baixo, na figura) e tomar lugar de um e de outro lado do grande rectângulo. Duas

outras portas (das Tor, escrito na central) dividiam o espaço cénico em três grandes

zonas: em cima, provavelmente sobrelevado (assim pode deixar supor a duplicação do

traço), o Paraíso (der Himmel), a cruz de Gólgota e o Santo Sepulcro; em baixo, o

Inferno (à esquerda) e o Monte das Oliveiras; ao centro, os pilares da flagelação e do

galo, rodeados pelas mansions de Herodes, Caifás, de Ana e de Pilatos.>”136

O facto do documento gráfico mais antigo consistir num plano ou planta de um

mistério, parece paradigmático e carregado de significações. Por um lado, enquanto

plano e sua colocação no contexto do universo do desenho da época em que se insere e

do valor simbólico que nesse contexto adquire, estabelecendo-se como compromisso

determinante para uma realização. Por outro lado, ainda como planta, da autoridade

simbólica também, de que vem investida pelos significados que, o que representa, lhe

atribuem.

Sem indicação de material ou suporte, apresenta um registo rápido e pouco cuidado

segundo três códigos de representação distintos sobre o mesmo plano, auxiliando-se de

legendas anotadas e distribui segundo três zonas, os lugares designados necessários à

representação teatral. Estes apresentam-se em planta, segundo a mesma codificação dos

desenhos planimétricos de arquitectura e essa codificação contamina o seu fundo; as

portas encimadas por arcos e as cruzes de Gólgota, segundo uma configuração

esquemática levantada do plano geometral sobreposta ao primeiro, procedimento

135 SONREL, Pierre, Op., cit. p.15, classifica-o segundo o modo de “croquis”, cuja tradução literal seria esboço mas, pela classificação de MARQUES, António Pedro, Op. cit., p. 9, a partir do programa de desenho do curso de Arquitectura do Porto, onde Joaquim Vieira “estabelece quatro modos de fazer desenho: esquisso, esboço, contorno e detalhe, o esquisso caracteriza-se pela rapidez de execução, pela simplificação formal, pela síntese que apela à memória e ao gesto imediato” enquanto o “esboço implica um tempo de execução mais lento, com dúvidas e correcções sucessivas, num processo de conquista gradual de semelhanças morfológicas e informação gráfica.” parece corresponder ao modo esquisso. 136 Legenda que acompanha a ilustração, Couty e Rey, Op. cit., p. 20.

55

também comum em traçados de arquitectura posteriores ao século XIII e que hoje,

segundo o método de Monge, se identifica como rebatimento de um plano sobre o

outro. Por último, a representação dos pilares, em perspectiva cavaleira, que era a usada

na época em que o desenho foi feito, mas que na verdade se aproxima mais da

perspectiva militar contemporânea. O cruzamento destes três sistemas, permite ler as

duas linhas horizontais paralelas na base da terceira porta, como indicadoras de desnível

do solo. As representações dos pilares, das portas e das cruzes, fornecem a informação

sobre a orientação a dar ao desenho. A intenção do autor, será esta mesma, determinar a

localização relativa das mansions e lugares designados num determinado espaço, as

suas inter-relações e estabelecer um percurso, não fornecendo pormenores construtivos

ou descritivos dos diferentes elementos. Essas informações, relegam-se para outros

desenhos particularizados a outra escala, aferem-se no local de construção ou delegam-

se a terceiros.

Apesar de desenvolvimentos, no campo do Desenho como no do Teatro, prepararem o

caminho a profundas alterações, contemporâneas do esquisso apresentado e das

manifestações teatrais a que ele se refere, a verdade é que estes radicam numa prática

que se institucionalizou e popularizou tornando-se persistente e aqueles contextualizam-

se ainda noutra geografia. Trata-se, é claro, do florescimento do termo toscano disegno

que Cennino Cennini, Lorenzo Ghiberti e Leon Battista Alberti em Florença, se

esforçam em consolidar como “disciplina e ciência da arte” e que permitirá ao artista

abandonar as botteghe e a sua actividade passar de ars mechanicae a ars liberalis. O

contexto onde o desenho de Donaueschingen deve ser analisado, se bem que

convergente para esses desenvolvimentos, deve todavia recuar um pouco no tempo.

Roland Recht137, afirma que uma alteração semelhante, no estatuto do arquitecto perante

as corporações dos ofícios, ocorre no decurso do século XIII, mais precisamente na

segunda metade, devendo-se, não a razões de ordem teorética mas antes de ordem

prática, associadas directamente com o aparecimento e desenvolvimento gradual do

plano ou planta do edifício de Arquitectura.

Embora sejam testemunhados anteriormente alguns registos planimétricos rudimentares

de edifícios, o desenho prévio de arquitectura quase não era usado, ou sendo, era-o de

uma forma irregular. A concepção do edifício assentava então, na articulação de

preceitos mais ou menos canonizados e tecnicamente condicionados das suas partes, o

137 RECHT, Roland, “Desenhos e «tratados» de arquitectura”, in Duby, Georges e Laclotte, Michel, “História Artística da Europa”, Tomo II, p. 207.

56

que permitia que se conservasse como idealização ou representação mental do

arquitecto, aguardando até aos primeiros traçados no terreno de implantação para, então,

adquirir maior definição a partir das suas linhas mestras. A forma de comunicar e

garantir os resultados, solicitados às diferentes corporações de oficiais colaborantes,

implicava o enquadramento da função do arquitecto, como mais uma das diversas ars

mechanicae em presença no estaleiro.

A complexidade formal da arquitectura gótica, impõe gradualmente a necessidade de

execução de desenhos a pequena escala, que possam representar e prever a construção

na sua totalidade, o que requer mais tempo de execução e menos de permanência no

estaleiro e donde resulta uma multiplicação do número de desenhos a executar. A

impossibilidade de conferir em permanência a conformidade da construção é suplantada

pela produção de desenhos de leitura cada vez mais inequívoca e contendo informação

pormenorizada. Por correspondência, a interpretação adequada e mediadora junto dos

corpos de ofícios, produz especializações e distribuição de tarefas, segundo estruturas

hierárquicas agora sob a chefia do arquitecto. Para além da figura do mestre-de-obras,

surge a categoria do segundo arquitecto, o “parlier” e a organização piramidal estender-

se-á até às funções mais mecânicas. Reguladas pela profusão do número e qualidade dos

desenhos, as construções tornam-se exuberantes e dispendiosas, mas desejadas. Torna-

se necessária a representação prévia do edifício que possa ser apreciada pelos

encomendadores, altos patrocinadores e mesmo pelos fiéis. As representações

planimétricas, entretanto complexificadas, comportando representações de planos a

vários níveis sobrepostos no mesmo plano de projecção, se bem que perceptíveis para

técnicos especializados, não o são, contudo, para leigos. Acrescenta-se então ao

projecto, a representação em levantamento, do plano geometral que, para corresponder a

um grau de pormenorização cativante e simultaneamente representar a configuração

global do edifício, pode atingir dimensões consideráveis, obrigando a coser várias

folhas de pergaminho entre si, onde seguidamente se traçavam as linhas gerais a ponta

metálica com recurso a compasso, régua e esquadro, depois passadas a tinta, à mão

livre. Os pormenores ou detalhes mais reduzidos são traçados à mão livre sem qualquer

traçado prévio. Para economizar pergaminho e tempo, os desenhos de pormenor

simétricos são desenhados parcialmente segundo o eixo de simetria e raramente têm

indicação de escala. De todas estas tarefas, o arquitecto teve que delegar muitas,

dividindo-as com o segundo arquitecto ou mesmo com o mestre-de-obras, decerto com

atribuições distintas. A preocupação pedagógica e a necessidade de um repositório

57

gramatical de recurso introduzem o uso do livro de modelos e mais tarde o

aparecimento de pequenos tratados. Porém, a construção depende essencialmente da

planta planimétrica. À medida que a prática do desenho se desenvolve, no, decurso dos

séculos XIV e XV, passa a servir não só para formalizar a ideia arquitectural, mas

também para a aprendizagem dos arquitectos principais e segundos arquitectos

No século XIV, parece ter-se instituído o uso de a planta desenhada acompanhar um

contrato. É dela que depende a construção do edifício, é a expressão racional do

pensamento do arquitecto e comporta a celebração de um compromisso, adquire valor

de troca simbólico. O arquitecto moderno adquire, agora, o estatuto de conceptualizador

e artista, a sua arte desloca-se para a esfera das ars liberalis.

A planta no teatro corresponde à delimitação de um território, aquele onde se desenrola

a acção que dá corpo à ficção. Nos mistérios medievais, a planta encerra a possibilidade

da construção da Cidade de Deus sobre a cidade dos homens.

Na orientação imposta pelo desenho de Donaueschingen e consequente percurso

espacial, podemos identificar a simbologia que a evolução de ritual litúrgico a mistério

deslocou do interior da igreja para a praça da cidade. A orientação das cruzes de

Gólgota coincide com as que dão forma à planta das igrejas góticas e evocam o corpo de

Cristo crucificado e o percurso do exterior para o interior corresponde a uma ascensão

do inferno ao paraíso. Porém, a simbologia estabelecida segundo o eixo longitudinal,

que, a partir das representações escultóricas no pórtico, estipula as relações de bem e de

mal com referências espaciais de direita e esquerda, neste caso não se verificam. Mas o

que parece interessante é que esta correspondência e o potencial de concreção que o

desenho da planta encerra, o investem e a quem o detiver, de um determinado poder

simbólico.

Reconstituindo a “contínua tentativa” de Alberti em apurar o âmbito semântico do

termo disegno empregue na sua versão vulgar de circumscriptio, Pedro Paixão associa

ao lineamentum a que Alberti ancorava, a noção ichnographia138, um dos três aspectos

que compunham a dispositio139, uma das partes primárias da Arquitectura sistematizada

138 Pedro Paixão, traduz do italiano, o que significa para Vitrúvio “o paciente uso contínuo do compasso e do esquadro, através da qual se obtém as discrições da forma da área [ ou planta ] do edifício”, PAIXÃO, Pedro A.H., Desenho: A transparência dos Signos, col. “Estudos de Teoria do Desenho e de Práticas Diciplinares Sem nome”, Assirio &Alvim, Lisboa, 2008, p. 29. 139 Em nota, “era uma das seis partes que compunham a Arquitectura, das quais três eram inerentes às qualidades do edifício ( Eurythmia, Symmetria, Decor ) e três inerentes às capacidades técnicas do artífice ( Ordinatio, Dispositio, Distributio ). A dispositio – capacidade de «mediar» entre uma ordem

58

por Vitrúvio no De Architectura. A dispositio, do grego oikonomía – “literalmente

«ordenamento», «governo», «administração» ou «gestão da casa»” surge associada por

Giorgio Agamben à noção contemporânea de economia e, no uso que a Teologia lhe

deu “«gestão da casa de Deus», a ordem ou administração providencial que hoje se

traduz na «actividade de governo do mundo»”. Mas mais próximo do que aqui interessa,

“«a planta, como ideia primeira da criação do espaço, foi no princípio património de

Deus, daquele que ditou as medidas aos seus representantes na terra; e de seguida

passa a ser património destes, dos que detinham a autoridade religiosa ou

política.»”140. Paixão prossegue ilustrando com a passagem das tábuas141 da Lei, das

mãos de Deus para as mãos de Moisés, numa alegoria que funda as Escrituras enquanto

desenho da Lei, que se institui como mecanismo que administra e autoriza, a quem for

confiado, a “uma participação na esfera que gere, medeia e influi directamente no

processo de criação, de distribuição e execução – instituindo, determinando e

salvaguardando a distância entre criador e criatura” (...)”A testemunhar esta esfera de

mediação, ou «mecanismo» que governa (e cria) a linha austera, que perpetuamente

conserva e excuta o desenho da providência, estão a liturgia, a iconografia e a mimésis,

que a mantêm e fixam num preciso sistema de representação.”142

A Igreja, detentora dos planos dos seus próprios edifícios, sancionou, regulou e

administrou a actividade teatral medieval mas, ao lhe franquear as portas para o

exterior, delegou noutrem a detenção da planta, que surge agora empunhada pelo mestre

de espectáculos, augurando um percurso de quatro séculos conduzindo ao primado do

encenador. (Fig. 12)

perfeita e a sua distribuição nas coisas – era dividida por Vitrúvio em três «aspectos» ou idéai: ichnographia[ =planta ], orthographia [ =alçado ( erecta frontis imago )] e scaenographia [=perspectiva ]”, PAIXÃO, Pedro A.H., Id., p.71. 140 Estaban Lorente citado por PAIXÃO, Pedro A.H., Op. Cit. p. 29. 141 As tábuas de grafar, preparadas a cera, paradigma em que se centra a sua pesquisa. 142 PAIXÃO, Pedro A.H., Id., p.30.

59

Figura 12 – Le Meneur de Jeu, personagem chave da interpretação de um Mistério empunhando o manuscrito. Fonte: COUTY, Daniel e Alain Rey (dir.), Le théâtre, p.24.

60

3.3 O DESENHO NO LUGAR TEATRAL À ITALIANA

A popularidade alcançada pelas diversas manifestações teatrais, derivadas das extensões

do ritual litúrgico medieval e que conquistaram, cada vez mais, o espaço exterior ao

local de culto, redundou em excessos que a Igreja viria a condenar, renunciando à sua

determinação inicial em preencher integralmente a vida espiritual dos fiéis.143 O teor

religioso destas manifestações sobrevive, contudo, na sua iniciativa popular,

convivendo com a pluralidade de géneros de carácter profano ou híbrido, como os

milagres, martírios, moralidades, farsas ou sotties. Esta convivência e contaminação

devem-se, não só à oportunidade efémera e esporádica das realizações, em

comemoração de datas festivas ou por ocasião de eventos importantes, mas também e

por consequência, à comunhão do mesmo espaço de instalação em ruas, praças ou

feiras. Variando em torno de um dispositivo elementar evoluído da estrutura unitária das

mansions, constituído essencialmente por um estrado com uma cortina em fundo para a

representação, situado de frente para o público que assiste em pé ou acomodado em

bancadas, esta fórmula comporta leveza, praticabilidade, mobilidade, versatilidade de

implantação e adequação aos diferentes géneros, beneficiando, em certos casos, de

alguma permanência. O uso desta fórmula básica, generalizou-se por toda a Europa e

verificou-se o seu emprego improvisado em pátios de palácios, de academias e

estalagens, salas de colégios, de castelos e casas burguesas, e em França, muito

frequentemente, em recintos de jogo de péla.

Em Itália, onde as representações de teor religioso terão tido um alcance mais tímido,144

o renascimento da cultura Antiga, fundado nos estudos filológicos e recuperação dos

autores clássicos e alimentado pela redescoberta145 da obra de Vitrúvio e de vestígios

143 Na fase inicial da sua afirmação, o cristianismo assumira uma postura crítica em relação à cultura clássica, tentando, “embora através da multiplicação e da extensão do rito em formas espectaculares, esgotar em si toda a vida espiritual dos fiéis, incluindo (...) a vertente recreativo-cultural.” Perante os excessos resultantes da sobreposição ao rito de “manifestações festivas que contemplavam uma aberta expansão do elemento vitalista”, a Igreja “não soube, ou não quis, assimilar e organizar estes diferentes elementos e preferiu reafirmar (...) a exclusiva pureza do rito, pondo fim drasticamente não só a todas as manifestações de entretenimento e de paródia, como também às extensões dramáticas do rito: o drama litúrgico foi abolido e os mistérios afastados do âmbito do recinto sagrado”, MOLINARI, Cesare, Op. cit., p. 108. 144 “(...) as representações sagradas não tiveram nem as dimensões, nem o alcance que obtiveram em outros países, tratando-se de manifestações geralmente privadas e circunscritas a limites de progresso que podemos dizer normais. Mas talvez por isso, (...) além de terem sido a principal forma de teatro, se não a única, durante quase todo o século XV, tenham influenciado o novo teatro que estava a despontar: o teatro erudito, o teatro clássico.”, Id., p. 109. 145 Roland Recht abre a secção Desenhos e «tratados» de arquitectura com uma ilustração representando o “tratado de Vitrúvio, datado do século XI”, atestando que a obra não era desconhecida na Idade Média;

61

arqueológicos dos teatros romanos, vai dirigir o interesse para o modelo teatral Antigo

na sua globalidade literária, cénica, arquitectónica e cenográfica. A referência à

Antiguidade, do ponto de vista dramático, surgira do trabalho filológico centrado nas

Academias, no estudo de Horácio e Aristóteles em que os géneros dramáticos,

sobretudo a tragédia, merecem particular destaque, suscitando o interesse extensivo às

obras recuperadas de autores dramáticos.146 A sua publicação, comentário e imitação,

despoleta o aparecimento de inúmeros tratados relacionados com o assunto,

estabelecendo uma normalização da produção dramatúrgica e conduzindo ao impulso da

sua representação, correspondendo, no entanto, mais a um gosto erudito de feição

humanista do que a uma necessidade popular de recreação. Representavam-se sobretudo

comédias, promovidas e animadas por cortes ducais147 e Academias, mas a sua

modalidade popular, a commedia dell´Arte ou all’improviso, viria a reunir maior

número de adeptos, entre o povo e a burguesia.148

Inicialmente, todos os fenómenos acima indicados, que constituíam uma mera parte das

festividades que integravam, partilhavam os mesmos lugares de implantação, mas à

medida que a elite humanista procura a aproximação ao ideal do teatro clássico, uma

construção específica, embora efémera, normalmente em madeira, se vai impondo, até

alcançar a conclusão num edifício fechado e permanente. A construção do cenário

adquirira, gradualmente, preponderância e solidez, apesar da utilização exclusiva e

excepcional da festividade a que se destinava, não admitindo, por isso, alterações ou

adaptações, sem implicar a demolição de todo o conjunto e, logo, a sua precariedade, só

superável pelo apuramento de um modelo matricial que correspondesse às necessidades

modernas idealizadas.

De igual modo, o impulso de levar à cena os pressupostos teorizados, impõe o recurso

às fontes Antigas, para articular o espaço onde aquela concepção se devia realizar. A

no entanto, as ilustrações à obra apresentadas “provêm de um outro manuscrito e poderiam remontar à época carolíngia”, RECHT, Roland, Op. cit., p. 206. 146 “Os momentos mais importantes foram os estudos de Lovato Lovati (1241-309) e de Nicolau de Trevet (1259-1329) sobre Séneca e, principalmente, a descoberta de novas comédias de Plauto por parte de Nicolau de Cusa, em 1425.”, MOLINARI, Cesare, Op. cit., p.109. 147 “As cortes de Urbino, de Mântua, de Ferrara, foram ainda, durante todo o Renascimento, focos de criação que rivalizaram com os grandes centros, Florença, Veneza e Roma.”, HOCHMANN, Michel, ABCedário do Renascimento Italiano, p.23. A corte de Ferrara, sob a influência da família d’Este, foi particularmente importante 148 <”(...) escritores, diletantes, sábios, interessam-se em escrever e interpretar tragédias e comédias literárias, cujo sucesso não ultrapassa círculos restritos. Os seus jogos difíceis e frios, deixam indiferente o público burguês e popular.”>, SONREL, Pierre, Op. cit. p. 23.

62

obra de Vitrúvio149, De Architectura, composta por Dez Livros, representa uma

referência incontestada da arquitectura romana e da sua herança grega e helenística e

depressa foi traduzida (quer em italiano quer em francês), abundantemente interpretada

e comentada por especialistas, graças ao estatuto recentemente alcançado por

arquitectos e artistas, como Cennino Cennini, Lorenzo Ghiberti e Leon Battista Alberti,

que através da elaboração e produção teorética, conquistaram o reconhecimento do

pendor intelectual do seu trabalho, deslocando-o da categoria de ars mechanicae a ars

liberalis e promovendo a sua aceitação nos círculos académicos. Certos capítulos do

Livro V, dedicado à edificação de locais públicos, tratam da construção do edifício

teatral, da sua fundação, articulação, configuração, harmonia, acústica e ainda, no

Capítulo VIII, do teatro grego e da decoração da cena dos três géneros dramáticos. É

esta alusão que, aliada ao estudo arqueológico dos vestígios de teatros romanos vai

consolidar a idealização teatral feita a partir da literatura clássica. Porém, a busca da

fidelidade ao modelo vitruviano pelos arquitectos modernos é, muitas vezes, traída pela

inexistência de ilustrações que acompanhassem o manuscrito encontrado; tendo

algumas das suas descrições e terminologia técnica sofrido diferentes interpretações

gráficas e semânticas, pelo que o seu legado será compreendido diferentemente pelos

seus numerosos comentadores e seguidores, produzindo uma definição, essencialmente

teórica, da ideia de teatro. (Fig. 13)

Os artistas italianos do Quattrocento sustentaram a sua conquista de estatuto de

actividade liberal, na reivindicação do Desenho e da sua vertente mental, enquanto

disciplina e ciência da arte, como fonte estrutural do seu trabalho. O Desenho configura

a ideia do artista, que protagoniza assim a concepção demiúrgica do Homem no centro

do mundo, capaz de o representar à sua medida e a partir do seu ponto de vista. Fruto de

observação científica e conceptualização, surgem os sistemas de proporções e de

representação perspéctica, como instrumentos eleitos para pôr em prática esta visão

humanista, um sistema de representação baseado no estudo da visão humana, concebido

sobre abstracções produzidas pela sua mente e organizado a partir do seu ponto de vista.

149 Marcus e/ou Marcellus Vitruvius Pollio (ou Pollione), (80/70 a.C.-25 a.C.) – arquitecto e engenheiro romano da época de Augusto. A descoberta do manuscrito terá ocorrido em Montecassino em 1414 e segundo MOLINARE, Cesare, Op. cit., p. 126, a primeira edição, traduzida e comentada, data de 1521 e deve a sua coordenação a Cesare Cesariano, mas COUTY, Daniele e RYNGAERT, Jean-Pierre, Op. cit., p. 40, falam de uma edição por Suplicio da Veroli de 1486.

63

Figura 13 – O Teatro Romano segundo a descrição de Vitrúvio.

Fonte: VITRUVIO POLIÓN, Marco, Los diez Libros de Arquitectura, 3ª edição, Trad. e Com. de José

Ortiz y Sanz, Prólogo de Delfin Rodriguez Ruiz, Ediciones Akal, Madrid, 2001.

64

A perspectiva, sistematizada a partir do Desenho para a Pintura, Escultura e

Arquitectura surge, assim, embora com algum retardamento em relação à Arte, como

resposta à senda da tradição da decoração por pintura da cena teatral e como elemento

de afirmação de modernidade da ideia antropocêntrica, da representação verosímil em

palco do mundo exterior. São estes dois vectores, a Antiguidade como referência e o uso

da perspectiva, que estão na génese do que virá a chamar-se o teatro à italiana mas,

também, na origem da sua contradição fundamental: o modelo essencialmente

idealizado que procura confronta-se com a bidimensionalidade da representação

perspéctica sobre um plano e a impossibilidade da sua transposição pela realidade

tridimensional do corpo do actor.

Anne Surgers150, para quem a consideração deste conflito é fundamental, sistematiza a

partir da sua imposição, a conjunção dos elementos que a expressão teatro à italiana

implica:

Como princípios fundadores deste tipo de representação, há que considerar um

espectador imóvel, olhando de frente151 uma imagem delimitada e enquadrada152, obtida

por meio do sistema perspectivo, perseguindo e alcançando a semelhança entre a visão

humana da realidade e a sua representação. A propósito destes elementos fundadores

deve-se ainda assinalar que eles se mantêm ainda activos na actualidade em áreas de

exploração da imagem com a sua condição espectacular, em parte ainda no teatro, no

cinema, na fotografia, na televisão e na imagem chamada virtual.

O teatro à italiana deriva de uma forma de representação elaborada para uma elite153 a

partir do Desenho para servir a Pintura, em Itália nos sécs. XV e XVI, e aí se

desenvolve, generalizando-se depois rapidamente como prática por toda a Europa.

Despontando em representações teatrais de carácter esporádico que tinham lugar em

construções efémeras, passa a beneficiar de edificação própria, configurando um teatro

fechado e coberto.

Este edifício é organizado segundo um plano vertical de simetria, situado sobre o seu

eixo longitudinal, intersectando o espaço do público e o espaço da representação,

150 SURGERS, Anne, Op. cit., p.p. 67 a 70. 151 Posição teórica e ideal, que só os espectadores privilegiados ocupam, o Príncipe, em particular. 152 “ Desenho um quadrado [...] o qual imagino ser uma janela aberta, através da qual olho aquilo que depois será pintado”, Alberti citado por Rodrigues, Op. cit., p .11. 153 Para Eugénia Vasques o Renascimento procede à separação entre arte e sociedade, Op. Cit., p.44.

65

regidos por esse mesmo plano. Num teatro à italiana, existe uma separação

simultaneamente simbólica e material entre os espectadores e a representação. Esta

separação faz-se no plano de frente em que se situa o arco de proscénio, perpendicular

ao plano de simetria do teatro: para cá desse plano, a realidade, o público; para lá, a

ficção, os actores em representação e o cenário em perspectiva. Esta separação foi sendo

progressivamente acentuada, entre os séculos XVI e XIX, pela dilatação do arco de

proscénio, pela sistematização do uso da cortina de cena, pelo eventual acréscimo de

planos suplementares atrás do arco de proscénio, pela diferenciação da iluminação da

sala e da cena.

A caixa de cena, delimitada à frente pelo arco de proscénio, é o lugar de um espaço

fictício, tornado verosímil porque organizado segundo as regras da perspectiva, sendo

portanto o lugar da ilusão. O seu volume é completado por dois volumes idênticos, um

chamado subpalco e outro teia, utilizados para mutações de cenários e efeitos de

maquinaria.

A imobilidade do espectador, fixo no seu lugar, é condição necessária para que a ilusão

possa funcionar. Os lugares de visibilidade privilegiada são os situados em frente ao

arco de proscénio, a relação ideal cena/sala é frontal. Quanto maior a proximidade do

espectador ao ponto a partir do qual é construída a perspectiva, mais eficaz ou realista é

o efeito de ilusão. A esse ponto corresponde um lugar ideal, situado de frente, na

primeira galeria, sobre o eixo de simetria do teatro: é o “lugar do Príncipe”, destinado

aos convidados de honra, o palco reale (camarote ou tribuna real) em Itália. O teatro à

italiana foi criado por e para uma elite, numa sociedade hierarquizada manifestada na

disposição do público pela sala. A qualidade da ilusão é desigual, consoante a situação

na sala, a eficácia da ilusão diminui para os lugares demasiado altos nas ordens mais

elevadas de camarotes, ou demasiado laterais nos extremos das plantas em forma de

arco de círculo, em U, ou em porção de elipse.

No teatro à italiana a arquitectura do edifício é indissociável do cenário, situado na

caixa de cena, a que chama também caixa mágica, ou caixa de ilusão e a sua concepção

em perspectiva pode mesmo condicionar a arquitectura do edifício. O cenário à italiana

pode-se caracterizar pelos seguintes pontos:154

154 Ainda segundo a síntese elaborada pela mesma autora, agora sobre a relação da cenografia com o lugar teatral à italiana, Op. Cit., p. 68.

66

Tal como a pintura a partir da Renascença italiana, é construído segundo as leis da

perspectiva, porém diverge daquela por se implantar num espaço, o da caixa de cena.

De modo a acentuar o efeito espectacular da ilusão, o espaço real da caixa de cena era

frequentemente menor que o espaço fictício aí representado: os primeiros cenários à

italiana figuravam cidades ou vastas paisagens abertas sobre um horizonte

aparentemente longínquo. A perspectiva na pintura desenvolve-se sobre um só plano, a

superfície do quadro, no cenário à italiana ela tem por lugar o espaço da caixa de cena,

graças à decomposição sucessiva do espaço representado sobre uma série de bastidores,

em geral planos e paralelos ao arco de proscénio e ao plano vertical que contém os

olhos do espectador – o plano frontal. Sobre os bastidores frontais podem estar

representados planos perpendiculares ou oblíquos ao plano frontal; sugerindo os

bastidores planos, a ilusão de volume. As séries de bastidores podem ser completadas

por um conjunto de bambolinas, frisos também frontais suspensos de varas a partir da

teia.

O cenário à italiana é implantado sobre um palco também ele, dito à italiana, em

declive155, contribuindo para o efeito de ilusão. O palco é equipado por uma série de

carris ou calhas nos quais deslizam os bastidores dispostos em planos sucessivos e

separados por entradas em cena laterais, cujo pavimento é amovível. As aparições pelo

subpalco, de personagens ou elementos cenográficos, fazem-se por alçapões156

distribuídos pelas sucessivas entradas. Um teatro à italiana é tradicionalmente equipado

duma importante maquinaria, de subpalco e teia.

De modo a facilitar as mudanças de cenário, a volumetria era representada sobre uma

superfície plana, e a substituição de uma série de bastidores representando uma cidade,

por uma outra representando uma floresta, é suficiente para tornar clara a mudança de

lugar da acção, segundo uma operação simples e rápida. Por fim há que “sublinhar” que

a caixa de cena era simultaneamente considerada e utilizada como um volume e como

um plano, facto que constitui a “grande contradição” do teatro à italiana, origem de

todas as interrogações, consistindo num volume para o cenário e a ilusão, mas também

uma superfície, uma zona de representação, o palco que os actores não utilizavam mais

do que um terço, situado à frente, o proscenium. Quando mais distante, a realidade do

corpo do actor era incompatível com a representação em perspectiva, e a ilusão seria

denunciada.

155 A gíria teatral em Portugal vulgarizou a expressão caimento. 156 Em Portugal denominadas na gíria, quarteladas.

67

Se o teatro romano evoluíra integrando os elementos físicos que compunham o teatro

grego, constituindo uma unidade orgânica e portanto uma síntese formal e dramática, o

teatro à italiana constitui uma recuperação do espírito e forma do teatro romano, sofre

influência da sua arquitectura ou da interpretação que os arquitectos italianos fizeram

dela. Aporta a sua vertente espectacular, o divertimento, a independência em relação ao

rito religioso. Acentua a preocupação com a visibilidade que está nas origens e essência

do teatro e o facto de se organizar a partir do ponto de vista do observador. Desta

variedade das condições das representações fazendo a ligação entre o modelo grego

Antigo e uma unificação dos meios de expressão cénica, durante o último quartel do

séc. XVI, deverão nascer em Itália os princípios essenciais do teatro dito à italiana.

A mais remota referência a uma representação teatral indiciando o uso de perspectiva na

decoração da cena, é textual, não restando qualquer vestígio gráfico que a ateste e data

do início do séc. XVI. Em Ferrara, por ocasião das festas do carnaval de 1508, para uma

representação de La Cassaria de Ariosto na grande sala do palácio ducal, Pellegrino da

Udine157, pintor activo nesta cidade entre 1504/1514, terá sido o responsável pela

decoração pintada do espectáculo.158

O comentário leva a imaginar que a decoração consistia num fundo pintado, produzindo

a ilusão volumétrica do espaço de uma cidade e os actores representando à sua frente,

em justaposição. A julgar pelos usos que mais tarde se verificaram, o fundo poderia ser

pintado sobre um plano, complementado ou não por um anterior fragmentado em

painéis laterais, deixando livre o espaço central para a representação dos actores e

visível a imagem do primeiro, em fundo; outra hipótese, seria, a representação ilusória

da cidade se produzir por desmultiplicação no espaço de fragmentos construídos em

baixo-relevo.

Baldassare Peruzzi terá realizado os primeiros desenhos que se conhecem para uma

cena perspectivada, destinando-se aos cenários de La Calandria, comédia do cardeal

157 Também conhecido como Martino da Udine ou Pellegrino Da San Daniele (1476-1547), pintor italiano, activo em Frioul e Ferrara entre 1504-1514 e, segundo Vasari, terá sido aluno de Giambellino, SURGERS, Anne, Op. cit., p. 172. 158 Surgers classifica a referência como primordial e traduz do italiano a notícia que Prosperi, um cronista de Mântua em estada em Ferrara, escreve sobre a representação: < “ O que ali havia de melhor, de todas essas festas e representações, eram todas as decorações [...] que fez um pintor, Peregrino, que trabalha para o Senhor (de Ferrara, n.d.t.). Era uma contracção em perspectiva de uma cidade com casas, igrejas, campanários e jardins. Não nos podíamos saciar de olhar tanto de coisas assim engenhosas e bem compreendidas. Eu não creio que essas coisas tenham sido destruídas, mas creio que as terão conservado para as utilizar uma outra vez.” >, Id., p. 77.

68

Bibbiena, representada em Urbino em 1514 e, ao que parece, para o papa Leão X em

Roma, no mesmo ano. Contêm os primeiros atractivos da decoração em perspectiva

que, à época, terão impressionado e influenciado outras realizações. Vasari comenta-os

na sua Vida de Artistas:

< “ No tempo de Leão X, Baldassare realizou duas decorações maravilhosas, que

abriram o caminho aos nossos contemporâneos. É difícil de imaginar como num

espaço assim estreito, ele pôde situar tanto ruas e palácios, tanta fantasia nos

templos, loggia e cornijas, tudo tão bem feito que, longe de parecer falso, o

conjunto parecia com efeito verdadeiro, de igual modo, a praça não parecia nem

pintada nem estreita, mas real e muito vasta.” > 159.

A observação dos desenhos, apesar de nenhum deles apresentar a cena em planta,

permite concluir que a ilusão perspéctica já não se confinava à representação sobre um

único plano, mas antes se apresenta decomposta por uma sucessão paralela de planos no

espaço, rematada em fundo por uma tela pintada. O conjunto funcionaria ainda como

um fundo em “baixo-relevo”160 não permitindo aos actores a sua transposição.

De Sebastiano Sérlio (1475–c.1554), que estuda e reinterpreta a obra de Vitrúvio,

conhece-se um plano e um corte de um teatro provisório, em madeira, instalado no pátio

do palácio ducal de Parma em 1540 e, mais divulgados, os desenhos de perspectiva para

as cenas trágicas, cómicas e satíricas161 que ilustravam o seu Secondo libro

dell’Architettura, publicado em Paris, em 1545. Estes representam cenas

perspectivadas, segundo a codificação do teatro romano descrita por Vitrúvio: cidades

para as cenas trágicas162, uma rua de escala modesta para a cena cómica e uma

floresta163 para a cena satírica e poderão ter tomado como modelo os desenhos de

Peruzzi, de quem Sérlio terá sido discípulo. É o primeiro a estabelecer um método para

159 Traduzido do italiano por Surgers a partir de VASARI, Vita di Baldassare Peruzzi in Le Vite de piu eccelenti pittori, scultori ed architettori, primeira publicação 1550, traduzido por Surgers da reedição Edizioni Milanesi, 1878, tomo IV, p. 600-601. 160 A denominação é de Anne Surgers que distingue, por comparação com a representação em volume desenvolvida sobre um fundo na escultura, três etapas na evolução da cena teatral em perspectiva: baixo-relevo, médio-relevo e alto-relevo. Surgers, pp. 78 e 79. 161 Ou Pastoral, segundo alguns autores. 162 As personagens da tragédia, eram habitualmente reis, grandes senhores, duques ou condes e as da comédia podiam ser burgueses, gente da lei ou mercadores. 163 Ou árvores, rochedos, montanhas, vegetação, fontes, ribeiros, ambientes apropriados ao divertimento das divindades pãs.

69

desenhar cenas em perspectiva, e a ilustrar as três cenas do teatro Antigo. Nestes

desenhos, o ponto de fuga é central, ou seja, é situado sobre o eixo longitudinal de

simetria, comum ao dispositivo cénico e às bancadas, mas não se verifica ainda simetria

absoluta entre os elementos situados à sua esquerda e direita. Deixa indicações sobre

como dispor teatros nas salas de castelos e palácios pois como ele mesmo diz,

<” na sua grande parte, essas comédias representam-se em lugar coberto

como será em qualquer sala, perto da qual houver alguns quartos para a

comodidade dos actores “>.164

Os planos legados por Sérlio são os documentos técnicos mais antigos que temos de

decorações deste tipo onde encontramos o germe das implantações dramáticas e líricas

dos dois séculos seguintes. Sérlio dá indicações técnicas sobre a construção dos cenários

em madeira e tela, cuidadosamente pintados,

<” ao natural; ou pelo menos, como gostaríamos que fosse esse ao natural,

mais feérico, mais acusado, num modo mais teatro.”>165.

A volumetria era talhada em madeira, em ronde-boss, mas mais tarde por economia de

meios ou por excesso de trabalho, as decorações simplificam-se, e reduz-se a pintura,

sobre bastidores de tela, o que nos primeiros cenários perspectivados era realizado em

relevo. Sérlio indica igualmente na sua obra processos de iluminação para os seus

cenários, aconselha artefactos de maquinaria e efeitos especiais.

A observação da planta e corte do teatro de Parma, em que este método é aplicado,

permite perceber que ele consiste na articulação e distinção absoluta, entre o espaço

reservado ao público e aquele que é destinado à representação, para que o efeito

perspéctico possa funcionar. A bancada para o público era disposta por uma quinzena de

degraus concêntricos em torno de um espaço vazio em forma de semicírculo, onde era

rematada por uma fila de poltronas reservadas ao Príncipe e respectiva corte. A fila das

bancadas mais exterior e elevada até cerca de 5 mts166 acima do solo, apoiava-se nas

164 SONREL, Pierre, Op. Cit. p.25. 165 SONREL, Pierre, Traité de Scénographie, Librairie Theatrale, Paris, 1956, p.27. 166 Segue-se a leitura da escala na descrição feita por Pierre Sonrel que Solmer parece também adoptar. SONREL, Pierre, Id., SOLMER, Antonino, Op. cit., p. 100.

70

paredes do espaço de implantação ou a sua estrutura, em carpintaria, era autoportante e

podia sustentar-se isolada no meio de um pátio, por exemplo. Ligeiramente mais baixa

que os lugares privilegiados, uma passagem térrea transversal, separa as bancadas do

espaço de representação e conduz às zonas de acesso do público.

Imediatamente a seguir e em posição frontal, situa-se a cena, repartida em duas áreas

morfologicamente distintas. O proscenium, à frente, espaço preferencial de

representação, um estrado de tabuado horizontal a toda a largura da sala mas com pouca

profundidade (21mt x 3mt) e elevado a 1,70mts aproximadamente. Atrás deste, um

segundo estrado mas em declive, acentuado no sentido do afastamento à razão de 8 a 10

cm/m, sobre o qual seriam implantados os cenários em perspectiva167.

As funções do cenário na concepção de Sérlio aparecem assim, clarificadas, cumprindo

por um lado, a função de situar e caracterizar o lugar da acção, mantendo os espaços que

distinguem e separam os lugares representados de maneira a que aparentem verdadeiras

distâncias e, por outro lado, apresentá-la num espaço distinto daquele em que se

encontram os espectadores, ao mesmo tempo que permite dissimular os actores antes da

sua entrada em cena. 168

O cenário compunha-se de painéis pintados, ali dispostos segundo planos paralelos ao

proscenium, intervalados por aberturas laterais por onde os actores fariam as suas

entradas na cena. Os painéis representavam as duas faces visíveis das casas que

rematam as ruas de uma cidade, correspondendo aos espaços deixados livres entre os

planos. As duas faces articulam-se segundo um ângulo, sendo uma frontal e a outra, que

seria ortogonal, representada em perspectiva e fugando num ponto central, situado no

plano de fundo à altura do olho do príncipe, sentado no centro da bancada. Do lado

central, as fachadas em ângulo dessas casas limitam uma rua alinhando-se a partir do

167 <” A arte da perspectiva consiste em representar sobre quaisquer pés de profundidade várias centenas de metros de monumentos. As alturas diminuem à medida que se afastam do espectador enquanto que o solo parece elevar-se até ao horizonte. A aplicação destas leis é a única origem do caimento da cena, caimento que determinavam com precisão Sérlio, Sabbattini e outros cenógrafos. “>. Sonrel, Op. cit., p.26 e, em nota, <” O caimento era mais forte na origem que na época clássica: 8 a 10 cm por metro e 4 a 6 cm, mais tarde. A redução explica-se pelo facto de, na origem, só a perspectiva reservada às entradas e não à representação estava em declive e que o proscenium, verdadeira cena era horizontal; à época clássica ao contrário, a cena inteira tem caimento o que reparte a variação das alturas sobre um comprimento maior. Para além disso, a dança e a representação não teriam suportado um caimento tão forte.”>, idem, ibidem. 168 “<Contrariamente ao princípio medieval que procurava sugerir os lugares, muito mais do que representá-los>” SONREL, Pierre, Id., p.26. A distinção em relação ao lugar teatral medieval faz-se também pela separação entre o espaço do público e o da ficção e a dissimulação dos actores quando não participam na acção, acentuando a fronteira entre realidade e ficção.

71

proscenium, em direcção ao fundo da cena. O proscenium figura assim, tanto uma

praça, como uma rua transversal, paralela a outras ruas transversais que desembocam na

rua principal ao longo do seu curso. Graças ao declive do palco e à perspectiva das

fachadas em escorço, as casas decrescem rapidamente de altura e de largura até ficarem

10 vezes mais pequenas do que seriam e o espaço entre as ruas transversais vai também

diminuindo à medida que se afastam do proscenium e torna-se insuficiente, a partir do

segundo plano, para aí poder passar um actor. Os actores não podem então representar

nas últimas ruas nem próximo à tela do fundo, sem pôr em causa toda a ilusão de

perspectiva. Só as duas primeiras casas de cada lado são praticáveis pelos actores,

confinados à área do proscenium e entradas laterais que lhe dão acesso e ao espaço

deixado livre entre o primeiro e segundo planos.

Surgers assinala que, apesar da dilatação progressiva, em meados do século XVI, do

espaço ilusório do cenário em perspectiva, parecendo transformar-se de baixo-relevo em

médio-relevo, a integração do corpo humano nesse espaço perspectivado, a ter lugar,

está ainda em esboço, posto que o actor representava sobretudo no proscenium e o seu

corpo não estava ainda integrado naquela representação.169

Esta afirmação é atestada pela análise confrontada da planta do teatro provisório de

Parma com as gravuras que ilustram as três cenas do teatro clássico, trágica, cómica, e

pastoral. A observação da planta do teatro provisório de Parma, permite verificar que a

malha quadrangular do pavimento do proscenium é desenhada sem perspectiva, ou seja,

como um pavimento real visto em planta mas, apresenta-se perspectivado ou em

representação perspéctica daquele, a partir do início do declive, na mesma linha de

afastamento do painel da primeira casa, ou seja, do fim do proscenium. A diferença de

codificação gráfica entre as duas áreas torna evidente o “hiato”existente na transição

entre o espaço real e o da ilusão, limitando o corpo real do actor à zona do não

perspectivado, ou seja, o proscenium.170

A distinção entre espaço de representação dos actores e espaço perspectivado, é pouco

perceptível nas gravuras do livro, por serem imagens duplamente perspectivadas, e

ilusórias, porque a construção geométrica do pavimento não respeita a realidade tal

como é representada em planta. Nas ilustrações, as linhas ortogonais do proscenium

169 SURGERS, Anne, Op. cit., p. 79. 170 Exceptuando as entradas e saídas já referidas, entre o primeiro e segundo planos, indiciada pela presença de uma escada representada, nas ilustrações, à face do palco, confirmando a possibilidade de circulação para dentro e fora de cena.

72

fugam no mesmo ponto que as do espaço contíguo, tendo como resultado anular

visualmente a distinção existente nas duas partes da cena de Sérlio.

Utilizando o mesmo critério dos exemplos anteriores para classificação da volumetria

do espaço cénico perspectivado, pode dizer-se que, no final do século XVI, o espaço de

representação do teatro à italiana, atinge a representação em profundidade semelhante à

da volumetria em alto-relevo.

Cerca de 1580, a sociedade de humanistas Academia Olímpica de Vicence confiou, a

um dos seus membros, o sonho de edificar, num pátio, um teatro permanente – que viria

a chamar-se Teatro Olímpico - concebido segundo os princípios modernos do teatro à

italiana. Um dos mais convictos seguidores de Vitrúvio, Andrea Palladio (1518-1580),

havia já construído muitos teatros provisórios e concebeu o seu teatro à imagem dos

teatros romanos, tornando-o um traço emblemático do pensamento renascentista. Mas

nesse mesmo ano o arquitecto morre, deixando a obra ainda em fase de fundação que

terá sido confiada a um filho seu, de nome Silla, até atingir a conclusão estrutural em

1584, ano em que é atribuída a Vicenzo Scamozzi (1552-1616), a responsabilidade de

imaginar a cena ou a cenografia permanente para a inauguração em 1585, em que os

membros da Academia representaram uma tradução de Édipo Rei de Sófocles. É uma

arquitectura teatral híbrida, no sentido que ela tem como referência fiel, a arquitectura

do teatro romano, patente na disposição e decoração do edifício, tanto em planta como

em alçado e, ao mesmo tempo, é inovadora na articulação e função modernas dos seus

elementos.

As bancadas dispõem-se, em planta, em forma de semi-elipse alongada por 18,10 mts

segundo o seu eixo maior e são uma evocação ligeiramente achatada, provavelmente

condicionada pela exiguidade do terreno, do semicírculo da orquestra romana. Junto à

sua base, tomavam lugar o Príncipe e a sua corte, sendo as entradas do público situadas

em cada extremidade do anfiteatro. O proscenium (com 25 mts de largura por 6,70 mts

de profundidade), sobrelevado em frente, é limitado nos lados menores por duas paredes

providas cada uma por sua porta (as portas de retorno à cena) e limitado posteriormente

por uma fachada reproduzindo a frons scenae romana. Como no teatro romano, o Teatro

Olímpico é coroado na parte superior por uma colunata coríntia e os elementos

arquitectónicos, as proporções e molduras sintetizam a noção que no século XVI se

tinha sobre a gramática arquitectural Antiga.

73

Figura 14 – Palladio / Scamozzi, Teatro Olímpico de Vicence. (1580-1585).

Fonte: SURGERS, Anne, Scénographies du théâtre occidental, col. “Lettres Sup.”, Éditions Nathan,

Paris, 2000, p. 81.

74

Figura 15 – Palladio / Scamozzi, Teatro Olímpico de Vicence. (1580-1585).

Fonte:. COUTY, Daniel e Alain Rey (dir.), Le théâtre, p. 35.

A principal inovação, que se desconhece dever-se a Palladio ou Scamozzi, é introduzida

no elemento mais tradicional, a frons scenae, que contém aqui um prolongamento

óptico estendido por cinco ruas (três frontais e duas laterais), perspectivadas em alto-

-relevo, visíveis e enquadradas a partir das cinco portas que rompem a frons scenae e

assim emolduram a perspectiva; a da porta central, ou real; decompõe-se por sua vez na

vista de três ruas, também elas construídas em alto-relevo. Ornadas de elementos

arquitecturais de gosto romano, constam de maquetas realizadas em madeira e

cuidadosamente pintadas, aparentando ter um comprimento muito superior ao real,

vindo convergir na cena. São implantadas sobre um tabuado acessível aos actores e

inclinado segundo as regras da perspectiva sendo as primeiras demasiado grandes para

que um actor possa por aí entrar e aparecer à janela do primeiro nível. Cada entrada de

rua é bordada por uma casa com caracterização útil ao jogo dos actores, a sua

diversidade confere a cada uma um papel particular, loja de mercador, palácio senhorial,

fortaleza, etc.. Os actores representavam à frente da frons scenae, sobre o estrado, lugar

75

indeterminado, mas também nos alvéolos, nas casas que representavam entretanto

cenários diferentes.171

Esta solução, poderá ter surgido do uso, no final do século XVI, aquando das entradas

reais nas cidades, da construção efémera de arcos de triunfo, sob cuja porta central, o rei

ou príncipe e a sua comitiva, à semelhança dos cortejos imperiais romanos, faziam a sua

entrada. Na Renascença, o vão das portas laterais destes arcos, era frequentemente

preenchido por pinturas em tromp-l’oeil representando perspectivas da cidade. Palladio

ou Scamozza terão feito uma síntese entre o arco de triunfo e a porta real da frons

scenae, e retomaram o motivo da rua da cidade enquadrada pela porta, desenvolvendo

espacialmente a perspectiva de modo a que o actor possa aí encontrar lugar para

representar. A partir daqui, o espaço de representação rompe a parede de fundo,

prolonga-se para lá da frons scenae.

A frons scenae romana evoluiu da skénè grega à custa da perda do seu significado

simbólico, a transposição para o lugar da invisibilidade onde outrora se investiam os

actores da manifestação do divino deixou de ser interdita, a sua transposição ou era uma

transgressão para a visão do público, ou signo da manifestação do divino no actor, ela

tornou-se decorativa em Roma. A lógica desta simbologia e interdição é dissolvida à

transposição dessa fronteira pelo homem, na figura do actor, e pela legitimidade do

espectador de a observar através do seu prolongamento óptico. O corpo do actor entra

no enquadramento da ficção perspectivada transpondo o plano do quadro. Por outro

lado foi subvertida a função da frons scenae romana de encerrar o espaço de

representação, que em vez disso o prolonga, transformando-se em abertura como a

janela de Alberti, que enquadra uma representação.

Esta colocação do Homem representado no meio da cidade, que estes três exemplos

ilustram, derivando embora da codificação fixada por Vitrúvio e herdada da tradição

grega, parece indiciar, uma atracção essencial do teatro, desde a Antiguidade, pelo meio

urbano, onde germinam as condições para ele se estabelecer enquanto processo de

construção social e que no Quattrocento tem como paradigma as pinturas da città

ideale.

171 <” Contrariamente ao final que se esperava, é menos o princípio do teatro antigo que aqui está

imitado, que aquele, ainda vivo, das mansions tradicionais da Idade Média da cena simultânea que por uma reminiscência involuntária se encontra de novo aplicada. “>,SONREL, Pierre, Traité de Scénographie, Librairie Theatrale, Paris, 1956, p. 28.

76

<” A perspectiva veicula visualmente a cidade como cenário teatral. O

triângulo cidade – perspectiva – teatro, gravitando sobre a ideia da

antiguidade clássica é, possivelmente, o esquema mais representativo do

Renascimento.”>172

Os três exemplos apontados ilustram a tentativa de resolução da preocupação que se

anunciou ser constante na evolução da cena em perspectiva, de integrar numa

representação plana uma realidade tridimensional, o corpo do actor. Consiste numa

resolução técnica, a de perspectivar o espaço a partir de uma sistematização

bidimensional, ou seja, a passagem da perspectiva linear ao espaço, onde a integração

de um corpo, só é possível pela transposição do plano do quadro. Este processo é

revelado nos exemplos acima descritos, recorrendo à evocação do relevo na escultura

como referência.

Inicialmente as casas representadas em cena implantavam-se segundo as duas faces

visíveis pelo público – a fachada paralela à boca de cena e a que se via em

profundidade. Esta situava-se obliquamente à primeira para forçar o efeito de escorço e

para se dirigir ao ponto de fuga central situado no plano de fundo da cena (tal como na

planta do teatro de Sérlio ou nas casas da porta central do Teatro Olímpico de Vicence).

São as chamadas casas em relevo. Esta técnica da perspectiva cénica diferencia-se da

perspectiva normal por incluir, apesar de reduzida, a terceira dimensão, contrariamente

às pinturas ou desenhos em que essa está anulada. Pode chamar-se por isso, perspectiva

em relevo, ou frequentemente, perspectiva acelerada, devido à rápida diminuição do

tamanho dos elementos que a compõem e, tal como a perspectiva aplicada nos relevos

escultóricos, inclui a terceira dimensão, mas em proporção mais acentuada.

Já no século XVII, as duas faces em fachada, representam-se sobre um só plano, situado

paralelamente à boca de cena. Este plano é a superfície pintada do bastidor e o seu

limite central determina-se situando os bastidores em distintas posições cujo intervalo

vai diminuindo no sentido do afastamento, de modo a que o seu lado interior se vá

aproximando do eixo de simetria, enquanto vão diminuindo em altura e o declive da

superfície do palco se vai acentuando, permitindo assim obter o efeito de escorço,

172 ZUVILLAGA, Javier Navarro de, Mirando a través: La perspectiva en las artes, col. “Cultura artística”, Ediciones del Serbal, Barcelona, 2000.p. 188.

77

seguindo as leis da perspectiva frontal com o ponto de vista situado no eixo longitudinal

do cenário e da sala.

A inovação introduzida na frons scenae do Teatro Olímpico por Palladium e Scamozzi,

de alguma forma rompendo com a solidez do seu encerramento posterior do espaço

cénico, constitui o início de um percurso traçado pelas construções que se seguiram,

conduzindo à sua dissolução num único cadre de cena, estabilizado no modelo apurado

alguns anos mais tarde, como lugar teatral à italiana.

Um desenho de Inigo Jones relativo a uma concepção não edificada, marca apesar da

sua aura de projecto utópico não concretizado, uma etapa intermédia entre os três cadres

frontais de Vicence e a solução definitiva do cadre único que consagrará a forma

apurada do teatro à italiana. A Porta Real neste projecto, atinge uma dimensão

desproporcionada em relação ao que costumava ter com os restantes elementos

arquitectónicos da fachada, ela aparece excessivamente ampliada segundo uma grande

abertura aproximada à grandiosidade monumental de um arco de triunfo. O seu enorme

e surpreendente rompimento da robustez da parede, enquadrador do espaço de ficção

posterior, se observado em planta, corresponde na realidade a uma interrupção da

estrutura arquitectural, e a sua configuração é obtida por simulação cenográfica como as

ruas escorças do Teatro Olímpico. A sua função apurou-se como um artifício da

perspectiva, um mero enquadramento para a cena, para o espaço de representação e para

a ficção. Nas palavras de Anne Surgers, a Antiga Porta Real é sugada pela ficção, da

qual passa a ser a moldura enquadradora como o quadrado de Alberti, ou “a parede de

vidro de Leonardo, a famosa quarta parede do teatro à italiana”, uma “parede

ausente”.173 (Fig. 16)

173 SURGERS, Anne, Id., p. 83.

78

Figura 16 – Projecto de teatro de Inigo Jones.

Fonte: SURGERS, Anne, Scénographies du théâtre occidental, col. “Lettres Sup.”, Éditions Nathan,

Paris, 2000, p. 84.

79

É no final da segunda década do século XVII, que o processo evolutivo da fórmula

essencial do modelo teatral à italiana se pode considerar concluído, com a construção

do teatro construído em Parma para a família Farnese em 1618-1619 por Giovan

Battista Aleotti (1546-1636). Inaugurado em 1629 para as bodas de Odoardo Farnese

com Margherita de’Medici, foi parcialmente destruído por um bombardeamento durante

a 2ª guerra mundial mas posteriormente reconstruído a partir dos planos originais.

O Teatro Farense de Parma constitui um protótipo onde, pela primeira vez, se reúnem

os elementos básicos constitutivos do teatro à italiana, articulados segundo a sua

reinterpretação e reformulação dos herdados do teatro romano, na forma definitiva. O

espaço de representação é remetido para lá da linha de implantação da frons scenae, na

realidade dissolvida num desmesurado arco de proscénio, cuja confinação com as

paredes do edifício deixa a descoberto as paredes laterais e portas de retorno do antigo

proscenium que, ali, desaparece. A representação da ficção é recuada para o interior da

caixa de cena, numa transposição absoluta do plano do quadro da representação

perspéctica pelo corpo do actor, que “atraído pela ficção e pela perspectiva, invadiu

sem transgressão um espaço interdito noutras civilizações”174. Para que isso seja

possível, a cenografia é decomposta em representações perspécticas pintadas sobre

engradados planos, de modo a reservar maior espaço de circulação entre si aos actores e

para que possam ser recolhidas, dissimuladas e trocadas rapidamente a partir da teia, do

subpalco, ou dos bastidores laterais, através de maquinaria teatral que equipa o Teatro

Farense.

174 Id., p. 86.

80

Figura 17 – Aleotti, Teatro ducal de Parma. (1618-1628).

Fonte: SURGERS, Anne, Scénographies du théâtre occidental, col. “Lettres Sup.”, Éditions Nathan,

Paris, 2000, p. 85.

81

Pode considerar-se estar concluído, no princípio do século XVII em Itália, o processo de

apuramento da forma essencial do teatro à italiana, embora ela continue a evoluir,

sobretudo em questões formais que, de resto, acentuarão as suas características. Assim,

verificam-se variações na forma da planta da sala, segundo um U, alongado ou abatido,

em porção de círculo ou elipse, experimentando soluções alternativas para melhoria da

visibilidade, ou acentuações da separação entre a sala e a cena ou seja, entre a realidade

e a ficção, para o que contribuirão experiências realizadas no âmbito da cenografia,

mais propriamente na representação perspéctica.

Através da perspectiva frontal com ponto de fuga central, situado sobre o eixo

longitudinal de simetria comum ao palco e à sala, a separação entre a realidade e a

ficção era acentuada, o olhar e imaginário dos espectadores é atraído de forma

convergente e simétrica, do real para um infinito virtual, ou pelo menos para o distante,

visível ou implicitamente situado. Em meados do século XVII, na procura de alguma

variedade e virtuosismo, os cenógrafos experimentaram modificar os pontos de vista;

representando distâncias mais curtas sobre planos menos afastados, como os de cenas de

interior, possibilitando maior detalhe e verosimilhança, adequação à escala do actor e

efeitos de espectacularidade. Procuram também evitar a monotonia da simetria absoluta

que a arquitectura do teatro e a sua preocupação com a visibilidade impunham. Para tal,

experimentam a deslocação do ponto de fuga do cenário em relação ao eixo de simetria

da sala, mantendo o ponto focal do cenário no plano do arco de proscénio mas

deslocado do eixo de simetria

Em finais do século, este procedimento foi radicalizado e ficou conhecido como veduta

per angolo – visão em ângulo, que tinha como finalidade provocar a ilusão ao

espectador imóvel no seu lugar, que ele olha o espaço representado de forma lateral e

não frontal como se instituíra representar. A novidade terá sido divulgada pela primeira

vez em 1687, na reabertura do Teatro Ducale de Piacenza, numa cena desenhada pelos

célebres irmãos Bibiena, vindo Ferdinando Bibiena a sistematizar o método num tratado

de perspectiva publicado em 1711, para os discípulos da Academia Clementina de

Bolonha.175 A veduta per angolo representa também, tecnicamente, a manuseabilidade

das possibilidades de articulação entre o ponto de fuga perspéctico e o plano do quadro,

isto é, entre aquele e o ponto focal que se situa no plano e as situações de invisibilidade

possíveis de provocar pela obliquidade das projecções entre os dois planos que os

175 Id., p. 87.

82

contêm. Esta posição relativa do plano do quadro em relação ao ponto de fuga pode

portanto ocultá-lo, deixando-o fora do campo visual o que, no sistema de representação

do teatro à italiana parece constituir um paradoxo, idealizado como uma possibilidade

da visibilidade do infinito representado a partir do mundo real, o que terá provocado

reacções de alerta por parte de alguns artistas a usos menos criteriosos da perspectiva.

Fica assim disposta a história da génese do lugar do teatro à italiana e do seu

fundamento no Desenho, ou mais precisamente, nas origens do termo disegno seu

contemporâneo, iniciando um percurso comum na procura da correspondência entre o

mundo real e a sua representação idealizada, que o sistema de representação perspéctico

funda. Teorizado e desenvolvido pelos artistas da Renascença foi seguidamente

adoptado pelos cenógrafos para funcionar numa representação espacial, resultando na

instalação de um conflito cuja tentativa de resolução atravessa a história da sua

adequação: a realidade tridimensional do corpo do actor e a interacção com a ficção

plana da perspectiva.

<”Como se formula a partir da visão que o homem tem do real, a imagem perspectivada

tende, cada vez mais a perder a sua condição de imagem. A sua natureza enquanto

representação (um código de representação entre outros), tende a que seja tomada como

realidade. É esta confusão entre representação e realidade que permite falar com

frequência de realidade virtual, “noção em si mesma inconcebível” mas corrente nos dias

de hoje, tanto no pensamento como na linguagem. Tudo se passa como se no início do

século XX tenhamos passado insensivelmente a barreira para o outro lado da imagem, ou

como se o suporte da representação tivesse perdido o seu papel e a sua função de

fronteira... Numa vertiginosa convergência, a perspectiva perde o seu estatuto de código de

representação, o semelhante passa a ser o verdadeiro, a realidade... virtual e o virtual,

realidade.”>176

À força do seu uso persistente e generalizado, na génese da produção da maioria das

imagens que ilustram o universo contemporâneo, a perspectiva foi-se tornando

“paradoxalmente discreta” e foi impondo, nos últimos quatro séculos, “curtos na escala

de tempo da história da humanidade”, o império da visibilidade. 177

176 Id., p. 70. 177 Id., p. 70.

83

CONCLUSÃO

O desenho com função estruturadora do lugar teatral pode, paradoxalmente, dizer-se

anterior à própria origem do fenómeno teatral. Fruto de sucessivas e anónimas medições

e inscrições implícitas na demarcação das suas limitações circulares nas ágora antigas,

para acomodação da realização das danças e coros consagrados a Dionísio, ele é

adoptado pelas primeiras representações ditirâmbicas como uma formulação apurada

pela preocupação dirigida, antes de mais, à noção de espectáculo, ainda com pendor

exclusivamente religioso.

O paradoxo repete-se de certo modo, no renascimento do teatro, em período medieval,

situado nas primeiras representações litúrgicas, que adaptaram a simbologia do espaço

das igrejas conservada no desenho da sua planta, à estruturação das representações. A

deslocação do desenvolvimento dessas fórmulas embrionárias dos Mistérios e Milagres,

para o exterior, primeiro para o adro e em seguida para o espaço urbano, transporta

consigo o referencial simbólico original.

O aparecimento e desenvolvimento da ficção, introduz, pela dinâmica interna das

representações, uma nova ordem em interacção, instalando a preocupação da

visibilidade e produzindo a transformação articulada de todo o sistema visual teatral.

Deve-se, portanto, ao aparecimento da ficção, não só a origem do teatro mas também a

da cenografia, que na evolução histórica da sua definição, segundo o conceito

introduzido de Anne Surgers, chamou a si, a função de traçar a linha de demarcação da

fronteira entre realidade e ficção.

Essa linha, levantada do plano geometral para o plano do quadro, passando a descrever

a moldura de enquadramento de Alberti, fará convergir no interior da caixa mágica, um

universo de produção gráfica com vista à representação da realidade pela ilusão, durante

cerca de quatro séculos. Dispersa-se pelo desenho espacial do próprio sistema

perspectivo, pela definição do modelo arquitectónico que o veicula, pela ilustração da

tratadística que garante a conformidade dos procedimentos técnicos adequados à sua

eficácia, do funcionamento técnico do teatro e maquinaria, pela estruturação da pintura

cenográfica e adequação do recorte das figuras dos actores pelo desenho dos figurinos e

pela definição dos gestos e movimentos conformes à ilusão perspéctica.

O questionamento do seu espelhismo e contestação da sua génese bidimensional em

relação à natureza tridimensional imposta pelo corpo do actor, alia-se à possibilidade de

84

considerar os elementos estruturais do desenho como abstracções, libertos da função da

representação mimética, propiciada pelo aparecimento e vulgarização da fotografia.

Inicia-se uma fase de exploração do desenho em cena, desenvolvida agora em

profundidade espacial, estruturada a partir da autonomia do ponto, da linha e do plano,

explorados na sua potencialidade visual, cinética e háptica. Esta exploração, irradia do

espaço de representação, agora em sentido inverso ao da génese original, da cenografia

para o lugar teatral, questionando sobretudo a relação de frontalidade imposta pelo

modelo do teatro à italiana. Um novo corpo de desenhos é introduzido, através do

ensaio de projectos de arquitectura para infinitas formulações de modelos de espaços

teatrais.

Outro factor fortemente contestado é a barreira que o plano do quadro impõe, entre

realidade e ficção representada em sistema perspéctico. Associados à experimentação

das novas concepções do espaço teatral, surge a adaptação a espaços destinados a outras

funções e mesmo à adopção de não-lugares para a representação teatral.

A estrutura narrativa, avessa aos princípios das primeiras vanguardas das Artes

Plásticas, perde valor também na representação teatral e é substituída pela noção de

materiais para teatro. A desvalorização da peça de teatro, instrumento da representação

espelhista evoluída do modelo do teatro à italiana e garante do predomínio do autor

sobre o actor, último reduto da manutenção da obra como produto no teatro, cede cada

vez maior lugar à introdução da realidade na unidade de “re-presentação”, segundo

modelos sistematizados na obra O teatro pós–dramático - LEHMANN, Hans-Thies,

Postdramatisches Theater, Frankfurt/Main: Verlag der Autoren, 1999.

A obliteração ou intermitência da ficção, e da consequente fronteira que a separa da

realidade, acarreta o apagamento de um thesaurus gráfico, subvalorizado por associação

à representação. Por outro lado, a intermitência e incorporação de fragmentos da

realidade, ela mesma simulacro, nos fenómenos teatrais, aportará consigo o actual

recrudescimento do desenho em campo expandido, pleno de representações.

85

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ANEXO 1 -GLOSSÁRIO DE TERMINOLOGIA DO TEATRO GREGO

ágora - a praça pública de todas as cidades.

choros - designava essencialmente os grupos de bailarinos; um local sagrado. Por analogia serviu também para designar o local do lugar teatral onde estes bailarinos actuavam.

coreutas – indivíduos que cantavam todo o ditirambo,

corifeu - o autor do ditirambo, também director e solista do coro.

coturno - sapatos de sola espessa que, no período alexandrino chegavam a atingir 20 a 30 centímetros de altura

diazômata - patamares concêntricos do theatron

ditirambo – canto lírico-coral. Declamação lírica apresentada a um público por um coro, com acompanhamento musical, evocando os feitos de Dionísio e de outros deuses e heróis.

drama satírico – representação teatral composta por sátiros personagens animalescas que, representando os antigos espíritos da natureza, fizeram depois parte do cortejo de Dionísio

estelas e proédria - assentos dos espectadores privilegiados, as proédria eram destinados ao espectadores mais importantes religiosas políticas ou aristocráticas.

exarhontes - aqueles que iniciam, que dão o tom nos ditirambos

koilon - O mesmo que theatron

komos ou kommòs- cantos fálicos no decorrer de um cortejo Dionisíaco ou originalmente associados a ritos de fecundidade.

lekythoi - recipientes para óleo destinados a oferendas funerárias

orchêstra – local do espaço de representação reservado à movimentação do choros(dança e cantos)

paraskênia - dois pavilhões entre os quais se desenrolava a acção, dois avançados, localizados um em cada extremidade da skênê,

parodoi ou parodos – corredores que davam acesso aos assentos no teatro grego.

periactos - prismas triangulares de madeira, com a altura da skênê e colocados em cada uma das suas extremidades.pintados

pinakes - decoração pintada sobre painéis em tela ou madeira

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Proskénion - um estrado, situado tangencialmente à orchestra, do lado oposto ao público, inicialmente utilizado apenas para acesso dos actores no espaço de representação e que progressivamente passou a ser utilizado para representação dos actores principais. Numa fase posterior situa-se a um nível sobrelevado da skene. Corresponde ao que actualmente chamamos “palco”

Skenè ou skênai (plural) - originalmente simples barracas provisórias mas, mais tarde, a partir do final do sec IV a.C. serão construídas em alvenaria. Cumpria então uma tripla função: função de “bastidores”, funcionava ainda como pano de fundo à representação e permitia uma melhoria nas condições de projecção vocal.

skiagraphia - a representação dos volumes pelo claro-escuro e os jogos de sombra e luz.

theatron – o “lugar de onde” se vê, correspondia na antiga Grécia à actual plateia

thymele,- altar das festas dionisíacas localizado no centro da orchestra ; altar onde se oferecia o sacrifício ritual a Dionísio