70

O Deserto e Outros Contos

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Livro de contos de Léo Vieira.

Citation preview

Page 1: O Deserto e Outros Contos
Page 2: O Deserto e Outros Contos
Page 3: O Deserto e Outros Contos
Page 4: O Deserto e Outros Contos

1º Edição

2009

Copyright © by Léo Vieira

Reservado todos os direitos de tradução e adaptações

Arte da capa: Felipe SantosPrefácio: Jucilene VieiraBiografia: Jucilene VieiraFoto do Autor: Léo VieiraDiagramação: Felipe SantosSinopse: Jucilene VieiraImpressão e encadernação: Gráfica Bocaiúva

Autor: Léo Vieira

[email protected]@hotmail.com (MSN)

Apoio cultural:

UNIPAC - Bocaiuva

Page 5: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 3

Minha gratidão e estima às pessoas que acharam que este livro era uma boa idéia - Zélia, Larissa, Caio e Jucilene.

Um carinho inveterado à Brisa.

Meu eterno carinho à Maria Helena que me presenteou com um excelente livro cuja inspiração me rendeu dois contos presentes nesta obra, a Felipe Santos por me ajudar com o livro desde a capa à arte final, a Jucilene por ter me apoiado todos esses anos, por ter estado ao meu lado em todos os momentos, por ter sempre acreditado em mim, por ter sido um anjo em minha vida e me dado um grande incentivo, aos meus pais por me aguentarem até aqui, a to-dos os amigos que acreditaram no meu possível potencial, ao professor Paulo César, por ter me ajudado com tudo e me incentivado a escrever nos tempos de faculdade, a Moisés Tedeschi, a idéia de um dos contos presente neste livro, à banda Gammaray, a grande inspiração ao conto “O deserto”, a Jerry Siegel e Joe Shuster, por terem in-ventado o maior herói de todos os tempos e ícone de bon-dade e justiça e inspirador de um dos contos desta obra e a Dixie Linha Plana, as ótimas conversas no constructo de personalidade. A todos os outros que esqueci, meu gran-dioso obrigado por tudo.

Léo VieiraAgradecimentosLéo Vieira

Page 6: O Deserto e Outros Contos
Page 7: O Deserto e Outros Contos

Prefácio - 7

A Brisa - 9

A constante “se” - 12

Altos e Baixos - 16

Ciúmes - 18

Dente no Céu - 21

Deserto - 23

Ele existe - 26

Luna - 30

Margaridas sobre o peito - 31

O assassino de cães - 34

O céu dos balões - 38

Sebastian - 43

Um mundo dentro do sofá - 49

Um outro dia - 58

Vermes - 60

Vozes - 63

Biografia - 66

O Deserto e Outros ContosSumárioO Deserto e Outros Contos

Page 8: O Deserto e Outros Contos
Page 9: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 7

“Quem conta um conto, aumenta um ponto...” E quem os escreve? Quantos pontos novos são acrescidos no emara-nhado das letras, através da ação de escrever um conto? E quantas coisas ficam desditas nas entrelinhas, martelando a cabeça do leitor: preencho ou não preencho isso aqui com meus próprios pontos? É essa a sensação que temos ao ler os contos de Leonardo Vieira. Um misto de horror com humor, de fantástico com real, de infantil com filosófico. Teias de uma trama que se prolonga e não termina na frase final. Os contos sempre deixam um gosto de busca, nem sei bem a quê; um querer respostas, sem nem ter formulado as perguntas. De acordo com Jean-François Lyotard (1971) “O artista ou o escritor pós-moderno está na posição de um filósofo: em princí-pio, o texto que ele escreve, a obra que ele produz não são governados por regras preestabelecidas, e não podem ser julgados segundo um julgamento determinante, pela aplicação de categorias comuns ao texto ou à obra. São essas regras e categorias que a própria obra de arte está buscando.” Léo Vieira é pós-moderno, mas não abandona nenhuma referência a estilos anteriores, seja de contos-de-fada, de contos fantásticos ou contos, simplesmente contos.O bom de tudo isso, é que dá para ser criança, passando pelas páginas brandas do “Céu dos Balões”, do “Dente no Céu” ou do “Um mundo dentro do sofá”; ao mesmo

O Deserto e Outros ContosPrefácioO Deserto e Outros Contos

Page 10: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 8

tempo, dá para questionar a vida, a morte, a infância, a família. Depois, é possível ser gótico, rastejar juntos aos “Vermes”, perder-se no “Deserto” ou nos labirintos do Ci-berespaço. Nas páginas deste livro, é possível revisitar Edgar Allan Poe, Cortázar, Borges e, ao mesmo tempo, sentir um sabor de La Fontaine e Esopo, além de uma atmosfera das “Mil e uma noites”. De certa forma, os leitores desses contos não saem im-punes, embora estes não tragam nenhum didatismo. O leitor sai carregado de enigmas, impregnado de imagina-ção e alimentado de fluidez. E cada um carrega a certeza de querer voltar ao livro e ler tudo outra vez...

Jucilene VieiraMestranda em Estudos Literários – Literatura Brasileira

Page 11: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 9

Você foi a exordial perfeita. Você foi tudo o que sempre imaginei que jamais encontraria. Nos seus olhos encontrei algo diferente, algo especial, algo além de tudo que jamais sonhei. Você estava aqui desde quando nasci, escrito nas linhas do universo. Você é a mulher ideal que vi em um filme. A mulher invisível que existe somente em minha mente. Você é a paixão perpétua que corre em meu sangue, a fênix que renasce a cada segundo em um ninho de perpétuo amor. Você é a escoteira da minha vida, decide qual o nó perfeito, a fogueira que alimenta meu peito, o acampamento da minha alma. A advogada dos meus sonhos, a defensora dos meus males, a fazedora de justiça dos meus ares. Você, minha eterna paixão, preencheu-me com o saudável paladar das frutas do mar, com a noite mais bela que jamais pude imaginar, você chegou como uma brisa, um leve vento sobre meu rosto, uma partícula oriunda, divina. Todos nós estamos sob uma rota de colisão, somos alvos iminentes de tudo que se movimenta de encontro a tudo. Somo partículas universais a serem alteradas, a serem completas, a serem transformadas. Somos corpos celestes divididos ao meio vagando na imensidão infinita a acharem sua outra metade. Naquela específica hora um vento soprou no extremo nordeste da noite. E a minha rota de colisão bateu com a sua. O universo conspirava. Das infinitas

A BrisaA BrisaA Brisa

Page 12: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 10

probabilidades nós nos esbarramos. As duas metades da lua. Os dois hemisférios, as duas metades de um corpo só. A sua luz mudou as marés da minha vida, mudou os uivos do coração como a lua o faz. Com você aprendi a ser um homem melhor que jamais fui, aprendi a querer alcançar o máximo de mim, a amar mais do que o corpo pode suportar. Às cegas te encontrei. Num mundo caótico, imprevisível, no meio de tanta gente eu te achei. Junto a tantos mundos, planos e universos paralelos o seu sorriso, mais belo que uma constelação inteira de estrelas recém criadas, no meio a tanta energia cósmica, tanto poder divino você apareceu. Com você entendi o real propósito universal dessa união perfeita e que para alcançá-la terei que seguir um árduo caminho. Meu caminho será esse até eu dar uma volta no universo e tentar bater de frente com você, até ter seus “xêros” novamente, até poder ver você nos olhos e ver que tudo é tão real quando tudo no universo. Desver o invisível em você. Você é uma metáfora completa. Você é tudo o que a vida quer ser, mas não consegue dizer. Você é a palavra não expressa, os sentimentos sentidos. Você é tudo aquilo que o máximo esforço humano é incapaz de representar. Você é o pensamento sem palavras, a idéia não física. Você é tudo aquilo que todos os poetas quiseram dizer e jamais conseguiram, você é a filosofia e a literatura. É o amor dos poetas que já se foram, é a lágrima de Camões, é todas as noites em claro de Fernando Pessoa misturados a todas as canções de Chico Buarque. Você é algo que só pode

Page 13: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 11

ser sentido, jamais interpretado, sempre entendido como a vida que atravessa a minha alma numa dança totalmente metafórica, singela e surreal, desejando ser para você tudo o que o poeta é para a caneta e o papel. Sob a luz de previsões, o olhar do coração, as imaginações e descobertas, as adivinhações tão perfeitas, as palavras tiradas uma da boca do outro, da magia do amor, me despeço num turbilhão de lágrimas de espera. Ao navegar por este soro natural sempre como um marinheiro fiel, contra ventos do tempo, sempre inerte como uma estátua na proa de um navio que jamais se afundará alimentado pelos olhos e “xêros” da minha eterna musa sereia, que em meu peito vibra como um sopro no coração.

Page 14: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 12

A Constante “Se”

Uma vez sonhei que eu as janelas eram de couro e os bois de vidro. Por mais retórico que me pareceu, serviu para desencadear uma série de pensamentos sempre inertes em mim. A dúvida tornou-se uma constante constante. Por que não acreditar em sonhos? Por que se agarrar a crenças mundanas se Deus ou o universo são atemporais? Tomei como exemplo o sinal da cruz tão presente na religião cristã. Por que se relacionar a movimentos que formam um símbolo pertencente a uma religião, cultura e tempo muito antes do cristianismo? Por que Deus precisa ter um nome se a própria linguagem é humana? A constante “se”, tão essencial no ciberespaço tornou-se parte de todas as minhas concepções. Nada funciona em qualquer dispositivo virtual seja ele jogos, programas de computador ou até mesmo a Internet senão a constante “se”. Tudo no mundo é questionado e isso não escapa ao ciberespaço. Se você aperta um botão algo muda ou não e a própria mudança ou não mudança faz parte de um destino certo ou incerto, portanto, o ciberespaço vive e evolui a partir das constantes “se” e isso não difere em nossas vidas em todos os sentidos. Não sou mais um crente exato de qualquer religião. Não sei o que é o certo ou o errado. Apenas sigo o que me faz sentir bem de acordo com minha consciência

A Constante “Se”A Constante “Se”

Page 15: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 13

que pode ou não ser sã. O questionamento é fundamental para libertar-se de qualquer prisão mental. O dever, a lei, responsabilidades cotidianas, amor, ódio, guerra, dor, tudo está ligado ao “se” e basta apenas uma decisão questionadora para cada ato. O problema das pessoas é que uma porcentagem absurdamente grande não questiona o “se”. Seus atos e consequentemente seus destinos vagam à mercê do “se”. Uma vez acordei sozinho no meu quarto. Estava escuro e o meu quarto parecia o mesmo que quando acordado. Na verdade não pude diferenciar o real do imaginário por alguns instantes até perceber algo que me deixou estupefato. Nada em todo o resto do universo existia até que eu fosse procurar por elas como se fosse um jogo de computador onde a próxima sala não existe até que você abra uma porta que o leve lá. O que realmente existe é uma montagem de dados pronta para visualizar o que você precisa ver na hora em que você quer ver. Como eu saberia o que é real e o que não é? Caminhei lentamente até a porta e do outro lado eu podia ouvir o som fraco do ventilador que rodava em ummicro-padrão ainda inimaginável por mim. A mão suada na maçaneta gelada me fez enxergar a constante “se” que parecia mais ou menos assim: Se (Movimento de abrir a porta e puxá-la ao encontro do atravessador) Então (Visualização de dados).

Page 16: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 14

Era como se dados de informática em códigos binários viessem à minha mente e me dissessem que o resto do universo era assim, porém não acordei. Não pude perceber que o som do ventilador não vinha da próxima sala. Vinha de mim mesmo. E na outra sala pude visualizar que a constante “se” fazia parte até do ar que pairava solene. Sentei-me no sofá e o sonho era tão real que eu podia ter controle sobre ele de uma forma concreta. Eu conseguia livremente reconhecer os padrões que vagavam no sonho como micro-informações navegando no ciberespaço e depois de tamanho vislumbre acordei. Antes de abrir os olhos me senti naqueles instantes que uma pessoa acorda e antes de abrir os olhos ouvem um turbilhão de sons sem sentido até que a pupila enxerga a primeira imagem do dia. Não duvido da dúvida iminente. O mundo e o resto do universo envolvidos nessa realidade temporal podem ou não ser reais. Esta é a minha condição de não credor no que vejo e sinto. Se em um sonho você pode ver, sentir e interagir, o que me garante que é realidade o que vivemos e não um sonho? O que me garante que sentado aqui neste módulo virtual o resto do mundo não é uma farsa? E se eu abrir a próxima porta e nada encontrar lá? Seria o fim do mundo ou o despertar para a verdadeira vida? O cotidiano é tão presente em cada uma dessas vidas que o resto das pessoas esqueceu ou desaprendeu como reconhecer os parâmetros da cegueira. A dúvida é uma

Page 17: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 15

dádiva dos Deuses, e o único elixir da vida é a constante “se” que nos liga diretamente ao futuro consciente e se nascemos e morremos sozinhos, talvez cada um de nós seja falso para uma outra pessoa. Talvez cada um de nós faça parte de um único universo feito individualmente, porém prefiro acreditar que a cada segundo que questionarmos a realidade estamos ascendendo a um novo estágio, uma nova era que se aproxima lentamente em direção única à próxima porta.

Page 18: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 16

Algo aconteceu com a gravidade da terra naquele dia. Tudo foi para o lado, quer dizer, dependendo do ângulo de quem via as coisas acontecerem, tudo ia para algum lado ou até mesmo para cima. Os carros, de repente, caiam para os cantos das ruas como se os meio-fios os puxassem de uma vez só. As pessoas, em suas casas, ou iam para as paredes ou para os cantinhos dos rodapés das paredes. Aos poucos, sentiram que podiam ficar de pé. Andavam nas paredes como aranhas de duas patas. Mas, como dentro das casas pessoas caminhavam por cima de quadros e janelas, lá fora os carros também faziam o mesmo. Tudo ia ou pra cima ou para baixo e era muito estranho ver toda a água do sanitário escorrendo. Após algum tempo, já não se tinha nenhuma noção de esquerda ou direita, pois estas agora seriam o chão ou o teto. Muito confusas, tentavam entender como o chão virou esquerda ou direita e como o teto também o fez. Os lustres bonitos das madames caiam e de mais nada serviam. Acender a luz ou até mesmo ligar algo à tomada agora seria no chão, ou quem sabe no teto. Mas os quadros. Os quadros porém se ajustavam perfeitamente. Todos os quadros de todas as casas nem sequer mudaram, ou talvez sim, pois para muitos eles continuavam da mesma maneira anterior àquele estranho

Altos e BaixosAltos e BaixosAltos e Baixos

Page 19: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 17

incidente. Logo as expressões que davam um enorme valor significativo às direções começou a mudar. Os “altos e baixos” seriam os novos “lado a lado” ou vice-versa e até mesmo o famoso “para o alto e avante” se tornaria “para a esquerda (ou direita) e avante” .Na garagem, todos os pregos e ferramentas das prateleiras caíram e em algumas não. Dependia muito do ponto de vista de quem observava. De alguma maneira, os prédios agora ficavam sempre na posição horizontal e vê-los no horizonte confundia um pouco a visão. Era como se houvesse centenas de pistas de pouso para algum avião pousar. Tudo que estava no céu continuou normal, porém tudo caiu ou subiu para todos aqui embaixo. As pistas de pouso de aviões e heliportos agora serviriam de um belíssimo mural. O carrossel, com todos os bichos de um bonito parque, agora girava em sentido horário ou anti-horário, as rodas-gigantes eram como um marcador de energia, os brinquedos de autopistas pareciam até alvos para dardos e as montanhas russas letreiros defeituosos. Tudo mudara para todos. O mar virou uma grande montanha com imensos buracos e as montanhas o mesmo. As florestas eram plantas parasitas em uma parede e o sol sempre girava num horizonte onde as estrelas e a lua rodavam em um sentido completamente novo e adaptável onde pessoas riam com a simples visão de um menino plantando bananeiras.

Page 20: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 18

Catarina morreu. Minha esposa. Flor da minha vida. Significado da ação da física sobre meu corpo. O sermão do padre fora breve, em latim. Odeio latim. Quando vi seus lábios se moverem sem sentido algum, odiei-o. Tinha um ar de coitadinho, de que sentia a perda de Catarina. Nunca tinha visto Catarina na vida, nem sabia de sua existência, até o dinheiro para o velório vir parar em suas mãos. Vi-me esmurrando o pobre coitado, quando pronunciou erroneamente o nome dela, fosse um momento sagrado ou não. Nem teve a mínima vontade sequer de pedir desculpas por tamanho equívoco. Eu sentia raiva daquilo tudo. E, ao final do sermão, a lágrima. Quase podia jurar que tivera passado cuspe nos olhos. Mal sabia interpretar o papel. Na minha mente, naquele momento, havia um caminhão cheio de concreto sendo derrubado bem em cima do padre. E não era só isso. Pegou na mão de Catarina e se despediu como se fosse o titio queridinho da família. Quase cuspi no chão de tanto desprezo. Respirei fundo, ainda bem que o padre fora embora. Depois, tinha aquela gente que berrava igual a cabritos no cio. Não tinham modos, era um velório, pelo amor de Deus! A mãe puxava o braço e batia forte no rosto orando pelo seu retorno. Velha estúpida. Estava estragando o rosto de Catarina. Ah...Que

CiúmesCiúmesCiúmes

Page 21: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 19

vontade de arrastar aquela velha para outro caixão. Tinha que me conter. O pai puxava a mão da velha. Ele sim era o único com noção e o mínimo de raciocínio lógico naquela família. A irmã parecia uma estátua. Só escorria uma lágrima aqui e ali como a virgem imagem, só faltava o sangue. A velha não aguentou e desmaiou. Ainda bem. O pai a tirou dali e a irmã ficou. Depois de dez minutos, chegaram perto do caixão os amigos da faculdade. Duas moças e um rapaz. Ele com os cabelinhos caídos nos olhos. Parecia uma franga. As duas moças, ainda com jalecos de medicina. As duas choravam baixo, mas pelo menos tinham noção de que era um lugar de silêncio. O rapaz tinha os olhos fixos em Catarina. Talvez fosse um grande amigo a sentir a perda se não fosse a pegadinha na mão. Pude sentir o sangue virar chouriço dentro de mim. Ele alisava as mãos de Catarina como um acariciar de amante. Eu sentia ódio daquilo tudo. E por fim, para terminar com chave de ouro, beijou-lhe a testa. Olhei para as velas de decoração de vidro, os talheres atrás de mim e todas essas peças cortantes se tornavam aliadas. Sorriam ao ver minhas mãos se aproximarem com um deleite inexplicável. Respirei fundo. Acalmei-me. O jantar estava sendo servido e com bolo para sobremesa. Como aqueles idiotas podiam pensar em comida numa situação daquelas? Quase ninguém quis comer, porém, o bolo fora a dócil vítima. Lá no final da sala, eles comiam. Ouvi uma ou duas risadas. Mas que

Page 22: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 20

ultraje! A amiga de infância, com a boca amplamente aberta, salivava levemente nos cantos dos lábios. O pequeno pedaço de bolo escorria pelo queixo. Quase vomitei com aquilo. Só me dava vontade de fazê-la engolir toda a maldita bandeja. Respirei fundo. Acalmei-me. Virei-me e lá estava o rapaz. Havia passado sorrateiramente pelas minhas costas. Tocou novamente as mãos de Catarina. Tinha aquele ar de pobrezinho, era um perfeito imbecil. Curvou-se levemente e quando quase cheguei pensar que iria beijá-la de verdade, disse algo no seu ouvido. Os maxilares se moviam para cima e para baixo como um boneco de ventriloquismo. Nunca pensei que pudesse odiar tanto os maxilares de uma pessoa. Aproximei-me. Eu tinha que esmurrá-lo. Ele saiu. Deu as costas para o caixão e com um maremoto de lágrimas no rosto, saiu pela porta afora. Era um segredo que nem a defunta poderia saber. Mas que estúpido aquele rapaz! Catarina era minha! Ela era só minha e iria continuar sendo. Eu a tinha somente pra mim e sempre a teria. Olhei para ela dentro do caixão. Como era linda e perfeita. As marcas de facadas não mais apareciam. O doutor Silas era realmente um excelente legista. As coisas não poderiam ficar assim. O rapaz se fora, deveria estar perto. Não fora tão longe. Não com aquele caminhar de lesma. Ainda bem que deixei a faca no carro.

Page 23: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 21

O menino cismou que viu um dente no céu. Mal sabia falar direito, balbuciava murmúrios repetitivos como toda criança, mas não sabia falar. Então um dia foi até cozinha e disse: “Dente no céu”. O pai dizia que era televisão demais, mas como podia ser se mal tinha seus dois anos de idade? A mãe afirmava ser coisa de criança. Sorriram ao saber da primeira frase falada pelo filho. Passaram a discutir todas as noites sobre o que pudera ter acontecido com o menino. Corriam até seu quarto e lá estava ele debruçado sobre a janela ao olhar para as estrelas e montanhas piando com sua voz de passarinho: “Dente no céu”. Começou a chorar todas as noites. Triste desventura. As lágrimas pingavam em um céu de estrelas todas as noites e vozeava baixo para não acordar ninguém. Mas tudo isso era um simples, porém, estranho absurdo. Como podia ter o garoto tais singelas ilusões sobre um dente que supostamente voava pelo céu? O problema se agravou e os pais nem sabiam por onde começar. Para onde ir. Como deduzir e decifrar o sonho impoluto. Sem lembrar do absurdo de uma criança de dois anos de idade poder falar uma frase com tamanha perfeição. Absurdo em dose dupla. E como tudo se agravava, o garoto não dormia mais. Chorava a noite toda

Dente do CéuDente no CéuDente do Céu

Page 24: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 22

e corria para a janela de seu quarto a observar o céu, ou talvez qualquer outra coisa. Em seu sonho de volúpias, o garoto acalmava as estrelas. Só podia ser a tevê. Passava o dia com a babá, que o deixava à frente do televisor enquanto passava as roupas da dona. Mas também chorava de dia, o dia inteiro e a noite inteira. Lacrimejava-se por inteiro e corria para a janela às 6:00 da tarde, hora das badaladas do carrilhão. Talvez por que a noite caía? E se as pessoas que saíam da igreja...Talvez. Ninguém sabia a solução. Como desmembrar esse equívoco? Chorou, berrou e jorrou suas lágrimas por dias e nem mesmo o psicólogo adiantou. Afirmava com seus olhinhos pregados no céu. Mas será que era um problema de saúde? O que restou foi o que restou. O garoto parecia pálido. Não parava de chorar debruçado sobre a janela, e “Dente no céu” era o que dizia, e apontava seu dedinho gorducho para as estrelas e as montanhas. E se o garoto realmente vira alguma coisa? Seria possível? Os pais pensariam na hipótese, mas antes disso resolveram visitar o doutor Levi. Essa era a última esperança. O doutor Levi resolveria tudo. O menino não queria largar a janela, mas lá foi ele aos berros direto para o consultório. Depois de algum tempo, lá vinham eles. Sorriam de tão bobos e estagnados. Gargalhavam largamente. E ainda lá dentro do consultório permanecera a imagem do doutor que, ao abrir a boca do menino, sorria espantado com a surpresa.

Page 25: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 23

Viajei centenas de léguas para dar aqui, nessa escuridão absurda, buraco sem saída. Um inferno absoluto, abundante em mistérios, rajadas do desconhecido. Tristeza que adentra minha alma, dentro do meu profundo ser, nas esquinas da minha mente. Será solidão? Mágoa do ser que anda só? Caminho sem direção por vales escuros, coruja cega que voa sobre cata-ventos. Minhas palavras, um lamento por essas areias. Mediante esse deserto solitário que assola meu sossego, perco minha visão e meus sentidos do que é real e passo a viver em outra realidade. Sem paz, faminto, sedento, um corpo estranho em solo sagrado. Sou um com este lugar, estou sozinho e o nada me acompanha. Ajoelho-me em louvor a este enigma, busco forças para enxugar minhas lágrimas. Meu templo, meu senhor resplandecente. Meus olhos ardem em calor, arranhados, sem foco, janela rachada. Tempestades, suor, medo, breu. Uma manada corre lá longe, formigando o chão, manada irreal, ilusão, miragem. À noite, sustos, pavor, frio. Gelo voraz que corta a pele e voa através desta carne moribunda. Envolto a mil tecidos, vago, rastejo, debruço. Uma múmia prestes a ser descoberta por ninguém. Uma parte de mim jaz de onde vim. Jaz nas lembranças do meu mundo longínquo,

DesertoDesertoDeserto

Page 26: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 24

esquecido nas profundezas da galáxia mãe. Desmamado, perdido, cercado por predadores que ceifam minha sina, minha morte, ou vida? Não há mais jeito. Minha nave, destruída, engolida por esse mar de dunas. Respiro o ar que me aspira. Oxigênio, quente, temi não tê-lo. Mas nada eu tinha, sem vida, sem esperança, deixei-me cair do meu berço intergaláctico, útero rompido, nascido, sem calor, sem proteção. Engraçado quando a gente descobre que não há mais saída. Que vamos morrer. Tempo, camelo sedento que me rumina vagarosamente. Tempo. O sangue pulsa, jorra mais sangue dentro do sangue. Coração que bate, que bate, que bate. Segundos me restam. Morrer sozinho é uma desgraça. Sem ninguém ali pra me dizer:”Morra em paz!” ou ao menos: “Morra!” Ninguém. Ninguém pra me olhar nos olhos e dizer que me ama, ou que me odeia. Eles nem sabem onde estou. Estou cansado de comer areia, de tentar de alguma forma sobreviver. Vista que se esvai, delírio, ilusão, força esta que me arrasta e me suga para as entranhas da terra. Às margens deste rio, leito de morte, pão envenenado pela própria escolha. Doce, jamais, mas livre, sem ninguém pra dizer o que fazer. Sem compromissos, sem dificuldades. Morrer é muito fácil. Difícil é viver. Desventuras, desamores, desilusões. Os eternos “des” da vida que desvive. Que se dane o resto! Meu rumo agora é o desconhecido, o indescritível, o inimaginável,

Page 27: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 25

incompreensível. Deserto é para onde vou. Um deserto do que não se pode imaginar. Sossego retumbante. Lugar vazio na mente humana, que toma forma quando lá chegamos. Fecho meus olhos e lapido um deserto para mim. Meu templo. Minha concha. Ouço as vozes das antigas almas que, por mais que eu tente negar, viajaram centenas de léguas para dar aqui, nesta escuridão absurda. Elas me saúdam, me convidam ao seu leito de trevas eterna, nesse lugar vazio, onde só o vento é habitante.

Page 28: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 26

Queria um presente de natal. Um bem bonito, daqueles tão solidários, que ajudasse as pessoas. Ando pensando bastante nesse presente há algum tempo. Carlos, Júnior e eu temos algo em comum. Praticamente o mesmo presente. Sempre sonhamos em algum dia dar de frente com o nosso ídolo, mesmo que ele não fosse real, que ele não existisse. Acredito em super-homem. E eles também. Acredito naquele ser que me faz sentir tão bem, tão maravilhado com o mundo, uma inspiração. Um símbolo da paz e justiça, o ápice da bondade. E de todas as palavras tão ruins desse mundo, ele é exatamente o oposto. Então, em uma certa noite de véspera de natal, decidimos que queríamos ser o super-homem. Dava-nos frio na barriga ao vê-lo voar por aí. E aquele uniforme? A força. A coragem. Mas, talvez não fosse assim que funcionasse. Talvez eu estivesse pedindo demais, quer dizer, nós. Sentávamos todas as noites bem em frente ao menino Jesus da capela e pedíamos nosso presente de natal. Quem sabe ele nos ouviria? Mas éramos apenas garotos, moleques que achavam que entendiam alguma coisa do mundo. Porém, ao meu redor, eu ainda sentia que deveria salvar aquelas pessoas deitadas nas calçadas frias de uma noite, sem esperanças. Crianças, adultos, vovôs e

Ele ExisteEle ExisteEle Existe

Page 29: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 27

vovós. Todos na mesma situação, enrolados com panos sujos e papelões que para mais nada serviam. Talvez, se eu fosse o super-homem, eu pudesse ajudá-los, talvez acabasse com as desigualdades sociais, com a violência, terror, fome, e talvez nem eu mesmo me desse conta de todo aquele poder... Talvez a inspiração viesse a calhar e quem sabe se as gentes, ao me verem salvar pelo menos meia dúzia de pessoas, não fizessem o mesmo? Quem sabe? Mesmo assim, rezávamos para o menino Jesus que ainda dormia em sua manjedoura. Aquele era o presente de natal dele, tornar-se o filho do Deus, mas nada de presentes como os nossos. Nada de homens voando por aí. Maria, José e os Reis só pediriam o menino Jesus de natal. Era o máximo que poderiam pedir. E cá estamos os três ajoelhados rente a toda àquela festa, pedindo para nos transformarmos no ser mais poderoso do universo. Não. Nem Moisés teve tudo isso, como uns garotos de classe média poderiam? Apenas garotos e nada mais. Garotos sonhadores e eram bons sonhos. Não era justo pedir tanta coisa. Não era mesmo. Meus amigos não quiseram mudar de idéia. Queriam ser o super-homem. Queriam voar, espiar as meninas do colégio com visão de raio-x. Ver as calcinhas das professoras, levantar montanhas, era isso que eles queriam. Admito que era tentador, mas talvez eu fosse o único com noção naquela história. Mudei de presente.

Page 30: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 28

E se eu não pudesse voar como eles, espiar o banheiro feminino como eles, levantar a lua como eles eu escolheria algo de melhor para todo o mundo. Um presente de natal. Um bem bonito, daqueles que, na sua magnitude, ajudasse as pessoas. Ajoelhei-me e rezei para o Menino Deus que mais parecia que acabara de chegar de um planeta longínquo e pedi que, pelo menos por uma semana, uma semana apenas, o super-homem pudesse existir. Ajoelhei-me para o Deus-garoto, garoto como eu, um Deus que recebia seus poderes do Deus da luz. E pedi para que meu presente de natal fosse aquele. Uma semana apenas. Talvez fosse o suficiente para inspirar as pessoas. Para servir de ícone da bondade e da paz e da solidariedade também. E, se depois que ele partisse, as pessoas acreditassem que milagres são possíveis? Os bandidos nunca mais fariam o mal, nem a fome mundial e nem a camada de ozônio deixariam mais cair o seu manto vil. Apenas rezei ao lado dos meus queridos amigos por toda a noite até o dia de Natal. Eram bons tempos aqueles. Nada de presentes, carrinhos, videogames. Apenas corríamos como loucos pelas ruas com uniformes de super-homem, esperando que, de repente, algo acontecesse. Esperando que, do nada, alguém, ou todos nós, pudéssemos ser, ao mesmo tempo, três: Os três magos trazendo presentes para o mundo. E ainda assim, se não me falha a memória, vi meus amigos chorarem por terem apenas ganhado novas

Page 31: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 29

roupas de grife e tênis importados. Mas o que mais me deixou feliz em todo esse mundo, mais do que quaisquer presentes valiosos de um shopping foram aqueles sete dias, aquela única semana até o ano novo, em que todas as televisões, de todos os jornais, de todo o mundo só sabiam dizer apenas uma frase. “Ele existe”.

Page 32: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 30

Corria levemente sobre as folhas secas daquele calmo e solene parque. Titilava suas luzes no reflexo da água morna do lago. Sentia o vento. O coaxar e zumbidos que faziam a ronda como um guarda noturno. Desejava a lua. Sua sublime translucidez apalpava a pele branca de neve da mulher que, deitada sobre a grama fresca de orvalho, cantarolava canções épicas de estações antigas e corações. Aquilo sim era um deleite, um ato de amor singelo. A lua que lambia as curvas da mulher fazia dela uma imensa vela sobreposta à noite que insistia em engolir claridades em jangadas. Ondas curtas, ondas longas. Um som que, com toda sua simplicidade vencia o ritmo sincopado da voz que soava reluzente às ondas do ar. Era o menino aldeão. O menino marginal, nobre em suas intenções de coração. Enciumou-se com a cena. Travava uma batalha no íntimo de sua desordenada e recém tumultuada mente. Sorriu e deitou-se ao seu lado. Agora a lua lambia os dois. Era um “ménage a trois”.

LunaLunaLuna

Page 33: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 31

A brasa foi acesa. Alguns graus a menos, talvez não tivesse tido efeito. Tragou bem fundo como se fosse o último trago da sua vida. Deixou que as mais de mil substâncias fizessem parte dele naquele momento, deixou-as fluir dentro dele por alguns segundos e finalmente soltou e, olhando para o cigarro, pensou. Pensou e pensou como jamais pensara antes. Era o seu último maço de cigarros. Conseguiu fazer durar por vinte meses. Fumava um por mês. Sua filha foi quem veio visitá-lo uma última vez há 20 meses. Trouxe para ele os cigarros da sorte. Depois disso, ninguém se lembrou, ninguém mais nem uma carta sequer enviou. Deitava na sua cadeira especial no jardim, perto das margaridas, com vista para o lago e esperava assim por muitos dias. Almoçava ali e, muitas das vezes, dormia ali sem que ninguém pudesse se lembrar dele. Mas era assim mesmo que ele queria. Só queria ser lembrado pela filha, pelos parentes agora distantes em pensamento. O asilo era lindo. Era tudo que um velhinho poderia querer e de todas as vistas de rosas róseas e de árvores sombreiras a do lago que era a melhor de todas. E de longe se via as algas e peixinhos que ainda pulavam cheios de vida e tartarugas, que ao se olhar pra elas era como ver um espelho. Um casal de Loris da montanha azul fazia ninho logo ao seu lado na cavidade de uma árvore. Mas

Margaridas Sobre o PeitoMargaridas Sobre o PeitoMargaridas Sobre o Peito

Page 34: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 32

de nada adiantava toda aquela beleza. Ela só retardava o desespero. Não tinha mais ninguém. Nenhuma notícia, nada. Fechava os olhos para tirar as lágrimas. Muita das vezes tinha uma visão aquática do mundo, via através das águas nos olhos. A enfermeira Clara era a única que entendia o velho. De nada mais adiantava suas glórias do passado, diplomas de literatura, prêmios Nobel. Às vezes, sentava ao lado do velho, mas não ouvia um som sequer, nada, nenhuma palavra doce ou amarga, somente aquele rosto doente de um velho saudável. Porém, outros dias de sol forte ele contava tudo, dizia saber das coisas mais belas do mundo e agora a pior delas: Solidão. Alguns dias ela chegava e ele sorria, outros, nem se via as pupilas. O velho sentia e de repente passou a não mais freqüentar os jardins. Voltou-se pra dentro. Deitou-se na cama e refletiu. Será que fez algo que machucasse alguém? Fez algo de errado? Mas não, nada do que se lembrasse. Tinha filha, sobrinhos, netos, genros, primos e irmãos, mas onde? Passou alguns dias pensando sobre o que poderia ter acontecido. Nem ia mais no banheiro, nem se importava mais com nada. Realmente estava esquecido e Clara só vinha beijar-lhe a testa nas noites frias. Era bom assim. Só tinha Clara mesmo e nem sua família uma carta sequer enviou. Sua filha chorou no ultimo encontro, mas por quê? Nem chegou a imaginar que aquele era seu último dia com ela.

Page 35: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 33

Acendeu mais um cigarro que encontrou debaixo da cama e deu um belo e profundo trago. Deixou esfumaçar as veias e o pulmão pra ver se podia clarear sua mente. Lembrou-se do beijo na testa, da lágrima que caiu no rosto e de alguns de seus parentes que estavam lá. Era a herança que eles queriam. Os prêmios, o dinheiro, as casas, os apartamentos, a cadeira na academia de letras. Mas então, por que choravam? Não deviam se sentir melhores? Voltou para o jardim. Clara segurava a sua mão. Deitou-se na cadeira especial e bebeu um bom copo de água gelada. Deixou o sol esquentar as pelancas e respirou fundo. O jardim era assim, calmo, e os peixes e tartarugas faziam festa em meio às algas. Flores para todo o lado. Dormiu. Clara ainda estava lá e, de repente, deu um pulo de alegria. A mulher vinha lá longe. A filha do escritor. Vinha caminhando e sorrindo alegremente, porém devagar. Agora o velho dormia e roncava. Sonhava com esse momento. Clara estava sem palavras. Ao lado do velho ela chorava de alegria e observava cada momento como se fosse um espetáculo imperdível. A mulher andou até a árvore seca e sorriu quando viu o casal de pássaros. Olhou em volta feliz, mas com um pingo de tristeza nas pupilas. A íris respingava o soro de sua alma. Olhou para o pai que agora dormia e sobre o seu peito depositou o buquê de margaridas. Foi embora sem olhar pra trás. Só bastava agora que Clara o fizesse entender. Só precisava esperar que ele se levantasse de sua cadeira especial.

Page 36: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 34

Existia uma linha tênue na mente de Moisés. Uma linha que oscilava levemente desde a noite passada tendendo a arrebentar a qualquer instante. Era a segunda noite que tentava dormir e às três da manhã, nenhum êxito. Olhou pela janela de seu quarto e percebeu que as luzes do primeiro andar também estavam acesas, o que significava que ninguém na casa dormia. Algodões, protetores de ouvido, fones com música, nada adiantou. O que ele realmente precisava era de uma boa noite de sono antes de trabalhar e os latidos e gemidos caninos não o deixavam. Recentemente, uma mulher alugara a casa da frente. Tinha um vasto quintal, portões altos azuis, algumas árvores. A mulher aparecia uma ou duas vezes na semana e nada se sabia sobre o que ela fazia lá. Entrava e se trancava dentro da casa. Uma vez, viram um homem sorridente saindo de lá, uma mulher, algumas pessoas. Moisés observava tudo isso do segundo andar de sua casa, cuja varanda dava de frente para o quintal da mulher vislumbrando ângulos prefeitos. Só não sabia o que ocorria no interior. As janelas eram sabiamente vedadas como se a intenção da dita cuja fosse desviar a atenção de movimentos ou aparições. Ele viu quando ela trouxe os cães. Chegou num

O Assasino de CãesO Assassino de CãesO Assasino de Cães

Page 37: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 35

carro cor-de-rosa choque, abriu a parte de trás e conduziu os cães para dentro do quintal onde os amarrou na segunda árvore. Era de noite e o vento soprava quente. Sua luneta não ajudou muito. Nada se via dentro da casa. Nenhuma brecha aberta. Fora da casa somente dois cães. Um casal de vira-latas. Os bichos viravam-se pra lá e pra cá tentando reconhecer o novo terreno, sua nova e vil moradia. A corrente devia ter mais ou menos um metro se esticada e estava a mais de um metro de distância dos vasilhames com água e comida. Foi a primeira pista de que a mulher não sabia merda nenhuma de cuidados com animais e, a partir daí, cinco noites se passaram sem que se ouvisse um minuto de silêncio. A mulher fez o que quer que tenha feito na casa e desapareceu. Ao chegar do trabalho, Moisés não se importou porque sabia que a mulher não estava lá. Não se deu nem ao trabalho de olhar para o quintal e nem para os animais. Moisés odiava gatos e cães e olhar para eles trazia um horrível azedume à boca e depois de quase uma semana, os cães não possuíam o que comer e isso os levavam a latirem e gemerem a noite inteira, o que atrapalhava o breve sono que Moisés possuía. Na verdade, Moisés não estava nem aí para a notória dor que os cães sentiam, por ele, eles poderiam até morrer, desde que fizessem silêncio. O que o tirava do sério, eram os latidos intermináveis. Dormia apenas duas horas por noite e isso não era

Page 38: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 36

o suficiente para manter algum ânimo no trabalho. Ficou rabugento, mal humorado e paranóico. Passou a ouvir latidos até mesmo na canção que ouvia, nas vozes das pessoas, no canto da sala. O malditos vira-latas eram um pesadelo diurno, porém sem pensar muito entendeu que os cães não possuíam culpa alguma de terem uma cadela como dona. Irônico, não? Algumas pessoas de sua rua passaram a alimentar os cães que, infelizmente, deram cria depois de alguns dias. Não podiam alimentá-los para sempre. Foi aí que o céu caiu em cima de Moisés. Deus não podia ser mais injusto. Os latidos se juntavam a gemidos de uma ninhada de nove filhotes, todos vivos, saudáveis e famintos para a tristeza contínua de Moisés. A mulher jamais retornara aos olhos do pobre rapaz que passou a dormir sobre o teclado da empresa em que trabalhava. Disseram para ele que ela havia retornado ao dia para trazer mais coisas para a casa e Moisés sentiu o sangue ferver por não estar lá e dar um belo sermão na dona cadela. Dona cadela. Um belo apelido. Moisés escreveu uma carta à dona cadela e deixou na caixa de correio. Como se isso fosse adiantar. Ela nunca abria a caixa de correio. Depois de pensar em maneiras plausíveis, porém indignas de sorte, Moisés decidiu matar todos eles. Pensou em maneiras eficazes de assassiná-los. Veneno, chumbinho, pauladas, pedradas. Isso tudo parecia muito ineficaz e faria uma lambança desnecessária. O

Page 39: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 37

pior de tudo é que muito dificilmente a dona cadela se importaria com a morte dos filhotes e tudo voltaria à estaca zero. Não seria punida, não haveria sermões e a maldita ainda poderia fazer tudo de novo se assim quisesse e foi pensando nessas circunstâncias que Moisés fez o que fez. Como numa profecia, Moisés libertou os escravos enquanto a tirana se encontrava distraída. Atirou, e com apenas uma munição de chumbo arrebentou a corda que prendia os animais. Voaram sobre a imagem no escuro. Libertou-os sobre um mar vermelho de sangue naquela madrugada e como uma metamorfose de animal para homem, pairou no ar o grito de uma mulher transformada.

Page 40: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 38

Quando criança, eu sempre me perguntava aonde os balões iam, quando saiam voando, rodopiando alto nos ventos da noite, nos parques com rodas-gigantes. Eu sabia que eles fugiam para bem longe quando, sem querer, escapuliam dos dedinhos gordurosos das crianças. Mas uma pergunta martelava na minha cabecinha de menino: Para onde os balões vão? Será que existe um céu dos balões? Lembro-me de que ficava absurdamente fascinado com o formato das bexigas coloridas que teimavam em fugir das mãozinhas gordinhas e meladas de pipocas e pururucas das crianças que naquele parque iam, assim como eu, todos os sábados. Sinto tantas saudades daqueles tempos de infância. Ainda posso sentir o cheiro doce das pipocas coloridas, das maçãs do amor, dos churros e refrigerantes que tanto me enchiam o estômago e me faziam sentir dores de barriga à noite. Mas mesmo assim, eu nunca me arrependia. O parque era o lugar em que eu queria viver a minha vida toda. O parque era, na verdade, o único lugar que me trazia paz. Uma paz que eu jamais pudera sentir dentro da minha própria casa, onde as brigas intermináveis de meu pai e minha mãe faziam até os cães chorarem. Tenho certeza de que toda criança sabia que aquele

O Céu dos BalõesO Céu dos BalõesO Céu dos Balões

Page 41: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 39

lugar era um céu para elas, inclusive para mim. Aquela era a minha casa. Mas, para mim, o parque era mais do que isso. Era um lugar fascinante. Eu ficava totalmente encantado com os elementos que compunham todas as cores que faziam os coraçõezinhos das crianças palpitarem de uma eterna e sublime alegria. De fato, algumas coisas eram mágicas para mim. Quero dizer magia de verdade. E eu juro que podia sentir. Havia duas coisas que se destacavam das demais e me chamavam muito a atenção naquele parque da minha infância. Uma delas era o algodão-doce. Quando criança, eu acreditava fielmente de que ele era realmente mágico. Eu ficava felicíssimo quando colocava um pedacinho na boca e, instantaneamente, ele sumia dentro dela. Meu corpo todo arrepiava de emoção. Para mim, aquilo era estranhamente curioso e muito bom ao mesmo tempo. No entanto, o que eu não podia entender era o desdém com que as pessoas tratavam aquela magia. Parecia que elas não percebiam nada, ao sentir aquele gostinho doce e quente desaparecendo dentro da boca. A magia toda estava na transformação. Como transformar açúcar em pedacinhos de nuvem? Bem... Eu jamais entenderia. Acho que toda criança deveria experimentar esse tipo de sensação, largar um pouco toda essa tecnologia que, de uma forma ou de outra, afasta as pessoas da natureza e de tudo o que realmente tem importância na vida.

Page 42: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 40

A segunda coisa que me fascinava eram os balões. Seu formato magnífico e, o que quer que dentro dele houvesse, me deixava boquiaberto. Olhar para eles me deixava em transe, um tipo de torpor que me fazia pensar naquele mundo colorido de confetes e fogos, que me fazia sentir o vento frio que os levava para longe, que me fazia pensar, pensar e pensar. Para onde vão os balões? Às vezes, papai ia comigo ao parque e eu teimava em perguntar isso a ele. Eu dizia: Papai, pra onde vão os balões quando eles voam? E ele me dizia, com um sarcasmo na voz: Eles estouram. Nunca acreditei nele, apesar dele ser um ótimo pai que, na maioria das vezes, brigava com minha mãe enquanto eu vagava solitário pelo parque. Papai sempre fora paciente comigo, mas ele logo se esvaía, caso falássemos de algo que ultrapassasse os limites de razão. Razão...Nunca quis saber o significado dessa palavra. Para mim, os balões iam voando para um lugar onde todos eles se reuniam e brilhavam, formando um arco-íris de encontro ao onipotente sol, a laranja gigante que brilha eternamente em fogo reluzente. Os balões, no céu, encontrar-se-iam com as nuvens de algodão doce e lá fariam uma festa, por estarem livres da agitação daqui de baixo. Pensando naquele mundo onde todos falavam da tal razão, decidi seguir meu coração, ir em busca de um mundo onde qualquer criança pudesse encontrar o que quisesse.

Page 43: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 41

Então, um dia, reuni o máximo de balões possível, amarrei uns aos outros e esperei que a tarde chegasse para que eu pudesse visitar o céu dos balões. Todos os meus colegas tiraram meu ânimo, mas ele logo voltou, quando comecei a ouvir o som da roda-gigante e dos outros brinquedos do parque ao se mexerem. Seis da tarde. Essa era a hora. Nem muito tarde, nem muito cedo. Nem dia, nem noite. Corri para lá, de encontro aos meus vinte mil balões. O coração palpitava e se entristecia quando eu imaginava a possibilidade do fracasso. Minha imaginação movia meu coração. Fui rápido e silencioso. E assim, segurei-me forte nas linhas grossas e decolei. Tinha muito medo, mas a alegria era maior. Voei bem alto e para bem longe das pessoas que gritavam e se agitavam lá embaixo, no parque. Ainda lá do alto, pude ver papai chegando com os policiais e os bombeiros. Senti pena dele. Seu único filho, a quem ele tanto amava, indo embora assim sem um último abraço. Sua preocupação aumentava a cada instante, e lá de cima pude ver um filete de lágrima escorrendo dos olhos de papai. Mas, depois, ele sorriu. Aquilo era um adeus. Adeus, papai! Eu sabia que estava destinado àquilo. Era o que meu coração pedia. Ele gritava dentro de mim. Um grito de amor. E eu voava sorridente, cantarolando músicas de palhaços, enquanto o frio começava a congelar meus pés e a música ficava cada vez mais baixa, lá embaixo. Estava tão feliz... Mais feliz do que tudo na minha

Page 44: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 42

vida. E no fundo do meu coração, eu sabia que jamais poderia voltar. Sabia que as pessoas jamais entenderiam. As lágrimas mal caíam do meu rosto e já se evaporavam. Quando vi o que vi, chorei. O pôr-do-sol mais lindo que já vi em toda minha vida. Mais lindo que o pôr-do-sol das praias do mundo. Sei agora que jamais verei um pôr-do-sol mais magnífico do que aquele. O astro quente e ofuscante fazia algodões doces com gosto de laranja. Provei o sabor doce e gostoso das nuvens. E a imagem que vislumbrei, deixou-me paralisado com tamanha beleza. Uma visão mais bela do que a dos anjos. Todos os balões, juntos, dançavam e as canções de palhaços soavam por todo o céu. Todos os balões, juntos, vieram me saudar e beijei suas faces. Um lindo arco-íris jorrava luz e energia por todo o céu e todos me diziam para eu não ter medo. Meu coração sorria e cantava dentro de mim. Mal podia respirar de tanta emoção. Assim, despedi-me do mundo que eu conhecia e dei adeus à razão que nem cheguei a conhecer direito. E os balões nunca estouravam. Nunca! Não no céu dos balões.

Page 45: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 43

Acordou no meio da noite e saiu. Levantou e saiu sem ao menos dizer aonde iria. Apenas saiu. Lembrou-se de algo. Um lugar. Não havia sonhado, não havia visto na tevê e muito menos era uma imagem aleatória em seu cérebro. Era lembrança. Seu rosto quente ansiava pelo vento frio que cortava as ruas. Ruas escuras, sem nome. Quando saiu porta afora sentiu pingos. A chuva se preparava lá em cima. Estimava chover absurdamente naquela noite e sair de casa era uma ideia pouco sábia. Pingos grossos caiam aos poucos sob o anuncio onipotente do céu negro. Sebastian apertou os passos até que pudesse se proteger das pontadas geladas em seu rosto. A imagem na sua mente piscava como uma árvore de natal e se fechasse os olhos, era como se caminhasse em direção ao seu destino primário. Puxou o gorro na cabeça e correu até virar a esquina antes mesmo que tudo alagasse. Pouca iluminação. A rua estava totalmente escura e um ou dois postes piscavam. Porém, a ponte estava lá. O que parecia não sair de sua cabeça estava a metros do seu alcance e pela primeira vez duvidou de como nunca pudera ter estado ali antes? Como não em um lugar tão próximo de sua casa? Como nunca havia visto a ponte antes dessa noite? No seu sonho, ele pulava num salto rumo ao escuro do precipício que não parecia ter fim.

SebastianSebastianSebastian

Page 46: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 44

E lá estava a ponte, porém nenhum desejo de atirar-se. Caminhou pela rua alagada até a beirada da estrutura fria que respingava de volta os pingos grossos da tempestade recém-chegada. Nada de pular. Nenhum poço sem fim. O rio corria nervoso por debaixo da antiga fundação. Virou-se e voltou desapontado. Foi o quinto sonho. Era só isso, ele se perguntava. Nos sonhos tudo era tão real, tão palpável. Cheiros, gostos e luzes tão convidativamente reais. Não havia explicações para tais sonhos. Não contaria a ninguém. Na escola não tocaria no assunto com nenhum amigo e tentaria continuar sua vida normal. Ultimamente tem se lembrado das coisas como se as visse no segundo que aprendeu. Lembrou-se da conversa distante dos professores por trás da porta, do número de telefone de um caminhão em alta velocidade e até do número de vezes em que a luz néon do refeitório piscava. Podia se lembrar disso, podia se lembrar de tudo e não se surpreendeu quando descobriu que era isso mesmo o que ocorria. Voltou a ter mais sonhos. Os mesmos. Descobriu que podia interagir dentro deles e aprender coisas novas. Quando dormia nem sempre parecia estar dormindo e sim, às vezes, mais acordado do que nunca. Tudo que Sebastian aprendia entrava em sua mente, todos arquivos incorruptíveis. Era como se sua mente se transformasse de um disco rom para um disco ram. Tudo que ele aprendia era inserido em seu cérebro e qualquer coisa que ele visse,

Page 47: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 45

passaria a se lembrar para o resto da vida. Aconteceu na puberdade. Sebastian tinha quinze anos no primeiro sonho, no primeiro aprendizado. Depois disso ele virou uma máquina. Uma celebridade local. Um superdotado fantástico com uma memória tão absoluta quanto à de um computador. Um dia, ao correr, numa manhã de domingo, percebeu que algo de errado havia com sua vida. Sebastian tinha sonhos, família, amigos e sua vida havia se tornado uma biblioteca humana ambulante, e para quê? Por quê? Sebastian nunca se questionara, nunca pesquisou a si mesmo, nunca descobriu o verdadeiro por quê de ser como é e de todos à sua volta também não questionarem. Os sonhos, todos eles levavam a um lugar. Ao fundo do rio, ao poço sem fim do imaginário ou do não imaginário. Abaixo da fundação velha dos tempos de guerra. Sebastian sentiu que devia saber como sua vida se tornara uma reviravolta da noite para o dia. Como o microscópico deu lugar ao macroscópico. Como podia saber o exato momento das coisas. Como podia processar tudo que aprendera logo após aprender com uma rapidez virtualmente impossível. Acordou no meio da noite e saiu. Levantou e saiu sem ao menos dizer aonde iria. Apenas saiu e seguiu o que seu recente questionamento lhe mandava fazer. O cenário era o mesmo. O escuro. A Chuva. O medo nas esquinas. A rua alagada e a ponte. Na beirada os respingos e lá no fundo apenas o rio. Era meia noite e quarenta e dois.

Page 48: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 46

Podia contar os segundos, podia contar os milésimos de segundos, os intervalos entre cada segundo e o ponto de reajuste dos relógios da cidade. Algo devia ser respondido ou acabaria tudo ali e agora. Pulou. Luzes, vozes, cheiros, cores e sons. Pessoas tocavam seu rosto. Ao abrir os olhos, viu-se em uma mesa de operações. Sebastian havia sobrevivido à queda. Impossivelmente. Uma queda de aproximadamente vinte andares. Mesmo a água seria como uma margem do mais sólido concreto. Todos seus ossos se quebrariam talvez em uníssono, porém, estava lá. Sentia coisas estranhas em seu corpo, dores nunca sentidas. Ouvia tudo o que os médicos diziam e cada palavra era um corte no seu coração. Ao que tudo indicava, Sebastian vivia em um mundo de ilusão. Era um protótipo de teste para uma realidade conduzida a computadores com um desenvolvimento próprio de questionamento. O mundo em que vivia não era o seu. A família, os amigos, a escola, os professores, as luzes de néon. Tudo era uma invenção e cada coisa que ele aprendia, tanto nos sonhos quando na “realidade”, eram arquivos pré-moldados inseridos em sua memória. Júlia, a menina pela qual ele sentia uma leve atração, não passou de códigos binários de um tamanho real de setenta e oito megabytes. Sua mãe e pai, tamanhos equivalentes. Os sonhos eram apenas uma pequena ajuda para o autoquestionamento e aqueles que pertenciam ao projeto e não questionavam, eram deletados ou substituídos por

Page 49: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 47

novas identidades individuais. Sebastian nada mais fez do que querer acordar para algo que ele sentia estar errado. Algo que ele sentia ser manipulado até no canto de um pássaro. Sebastian era uma máquina. Uma máquina de testes cujo firewall era tão potente quando um exército de um milhão de soldados. Um ser com consciência própria que enxergou além da constante “se” e conseguiu atingir a realidade com o próprio sacrifício de vida. Sebastian sabia da verdade. Sebastian aceitou o que era e sentiu por não ser real, por saber ser alguém não de carne e osso. Seu cérebro era um disco rígido completo sob a tutela de um projeto novo cujo objetivo era ultrapassar as barreiras do limite virtual para discos rígidos. Talvez podemos dizer que seu cérebro era um HD em expansão, talvez fosse infinito como o universo. O que quer que ele aprendesse sempre estaria lá. Inclusive o que aprendeu em sua antiga “realidade”. O falso amor de seus pais, a falsa Júlia, o falso néon e a falsa chuva. Aprendeu a se acostumar com tudo aquilo e esse sentimento de amar o que não existia ocupava metade do HD de Sebastian. Era o amar de uma máquina. Não podia chorar, mas sabia o que era e sentia por dentro uma dor não virtual. Uma dor que se situava em algum lugar dos milhões de cabos e fibras óticas em seu corpo, em algum lugar de suas memórias duplas ou de seu infinito disco rígido. Não sabia de onde tudo vinha, então decidiu fazer o que estava além do pensamento de cientistas sobre o questionamento

Page 50: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 48

de uma máquina. Acordou no meio da noite e saiu. Levantou e saiu sem ao menos dizer aonde iria. Apenas saiu. A rua era lindamente iluminada e com néons apagados que à noite eram tão brilhantes quanto o dia. A realidade era um pouco diferente e depois de tudo isso, Sebastian sentiu o amargo de não saber se Deus realmente existia. O Deus da sua não-vida. O Deus que aprendeu a gostar sob uma invenção O cheiro do mar, o amor de uma mulher, o rosto singelo do amanhecer. Abriu os braços ao raiar do dia como se abraçasse os raios que lhe penetravam os olhos. Desejou seguir os caminho dos sonhos. Da sua ex-vida. Dos falsos sentimentos e então soube que podia morrer. Que podia cair num abismo com um fim fatal e enfim ser eliminado, destruído, deletado, desconfigurado. Ou não.

Page 51: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 49

Eram cinco criaturinhas que naquele sofá habitavam, mas isso foi há muito, muito, muito tempo e os segundos foram passando até que das cinco maravilhosas e transparentes criaturinhas só restasse uma. Um ácaro. Pequenino, porém grande na sua imaginação. Grudento, mas amável no coração. Pequenino, bem pequenino, é claro, era um ácaro, ora bolas! Sua família veio do tapete da cozinha caindo levemente no sofá enquanto a dona limpava a casa e separava mais e mais famílias com aquele grande espanador de penas. Os primos do pequenininho ácaro também se perderam e toda a sua família com eles, mas Acarêncio não sentia a falta deles. Acarêncio se apegava à dona e à família maravilhosa que naquele gigante mundo fora do sofá habitavam. Mas a questão era: e o espanador de penas? Na verdade o ácaro vivia viajando pra lá e pra cá no espanador, ele e as partículas de poeira e outras criaturinhas. Acarêncio parecia um cowboy montado em um pedaço de poeira viajando vagarosamente e balançando adoidado pela sala da dona. Às vezes, ele ia parar no tapete da sala, na toalha de mesa ou no Borges, no entanto sempre voltava de carona com o espanador de penas. Borges era o cão de Verônica, a mais bela criatura que Acarêncio havia visto entre os dez cômodos daquela casa.Verônica era a filha da Dona, irmã

Um Mundo Dentro do SofáUm Mundo Dentro do SofáUm Mundo Dentro do Sofá

Page 52: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 50

de Jaques, filha de Alfredo e neta de Salvador. Essas eram as pessoas que viviam naquele gigantesco mundo fora do sofá e compartilhavam tudo com coisinhas cupinzentas e formiguentas. O sofá era um mundo para Acarêncio e lá ele tinha tudo que precisava, de lá ele podia ter as gostosas e saudáveis conversas com o vovô Salvador, o único com quem ele podia conversar. Era óbvio que Acarêncio tinha amigos pelos imensos e intermináveis corredores do sofá, certamente nada era parecido com as conversas e cantigas do vovô Salvador, nada poderia ser tão informativo quanto saber do mundo dos gigantes, ou como o vovô preferia chamar: “Homens”. Ele pegava uma coisa de madeira parecida com o tronco de uma mulher, mas só que com fios de aço, colocava no colo e fazia sons bem agradáveis com aquela coisa que ele chamava de violão. Vovô Salvador ficava horas tocando violão e cantando cantigas de amor para Verônica e para Acarêncio. Verônica era muito pequenininha, uma criaturinha amável, sempre alegre e inteligente até demais para uma menina de um sessenta e três bilhões e setenta e dois milhões de segundos ou dois anos, que é como os homens preferem contar. Tudo era uma maravilha e o tempo passava devagar... bem devagar. As aventuras dentro do sofá eram bastante divertidas, mas Acarêncio procurava mais perigo, mais aventuras, mais emoção e então foi se aventurar fora do

Page 53: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 51

sofá. Um mundo que ele conhecia e que sabia que era perigoso o bastante para suas aventuras emocionantes. Criaturas medonhas habitavam aquele mundo cavernoso e com tanta luz. Luz demais para ele. Mas Acarêncio se adaptava facilmente a tudo aquilo. Saiu dando pulinhos até o braço do sofá. Esperou a oportunidade de uma carona, seja com poeira, penas ou fios de cabelo que voavam por lá. Não. Ele nunca iria pelo pior caminho, que era pelo solo, o chão. “Caminho perigoso aquele que contém coisinhas que se arrastam”, era o que seu primo Acrim – cara de martelo dizia. Não! Pelo solo não. Esperou alguns segundos por uma oportunidade e Voilá! O espanador de penas simplesmente descansava sobre o sofá. Uma leve brisa abatia o velho espanador, na verdade a brisa se transformara em um vento fortíssimo. Impossível para acarêncio se segurar. “Santa Acrinalva!”. Acarêncio percebeu que o vento vinha de um estranho objeto que oscilava e que havia um pequeno espaço de tempo em que não havia vento, precisamente cinco segundos. Vinha o vento, depois cinco segundos sem ele e depois o vento novamente. Ele tinha que tentar. Era melhor do que fugir de formigas gigantes. Pois é! Lá foi ele correndo como um louco direto para o espanador. Com sorte ele conseguiu chegar lá e adentrar no espanador, mas algo que ele não esperava aconteceu. O vento era tão forte que nem mesmo com seus oito braços ele pôde se segurar nas penas grossas do espanador. Sentiu-se inseguro, indefeso, sem forças

Page 54: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 52

cedia à ação do vento onipotente. Enfraquecido, sentindo que logo ele teria que enfrentar mil insetos horrendos, o vento desapareceu. Sentiu que realmente viajava dentro do espanador. Alguém o carregava, provavelmente a Dona. Acarêncio espremeu-se entre as penas para enxergar seu destino. A mesa de jantar. Havia algo irresistível sobre ela. Chantili. Algo a que os Ácaros não podiam resistir. E foi pra lá que foi levemente cair como uma folha de papel higiênico. Por sorte não caiu numa xícara de café quente. Ele tinha que se arriscar por um punhadinho de chantili mesmo sabendo que todos jantavam naquele exato momento. Deu um suspiro e correu. Correu muito se esquivando dos braços, pratos, copos e talheres. Quase chegou lá. Pena que Verônica comeu, mas deixou um pouquinho para Acarêncio. Colocou um pouquinho debaixo da mesa para ele comer e disse: “Aproveita meu amiguinho!”. Acarêncio se perguntava como ela sabia de sua presença. Mas comeu todo o montinho de chantili. Depois de tanta aventura em um só dia, Verônica ofereceu-lhe seus lindos cachos negros, uma caroninha para o Ácaro. Agora ele sabia que ela podia conversar com ele também. A relação entre os dois se transformou em uma linda amizade, cheia de ternura e um amor impecável. Passavam horas e horas conversando e não se desgrudavam. Mas bons tempos chegam e também vão. Em um belo dia, Acarêncio saiu do sofá incomodado com uma

Page 55: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 53

choradeira que parecia perturbar a todos. Acarêncio não sabia o que estava havendo e foi falar com Verônica. Ela chorava bastante e dizia que a causa de toda choradeira foi uma viagem que vovô Salvador acabara de fazer, mas então por que estavam chorando? Por causa de uma viagem? Pois é! Por dias a casa pareceu habitada por fantasmas invisíveis. Ninguém dava as caras na sala. Só a Dona que de vez em quando aparecia, sentava no sofá e chorava, depois respirava fundo e ia embora. Verônica aparecia de vez em quando e conversava com Acarêncio , mas ele insistia em perguntar de novo o que havia acontecido e ela sempre dizia que era por causa da viagem do vovô. Mas com o tempo, tudo voltava ao normal bem devagar... Depois de algumas centenas de segundos, o Ácaro começou a sentir a falta do vovô. Acarêncio não sabia por que uma viagem fazia as pessoas sofrerem tanto e só depois de um tempo foi descobrir que a falta dói. Descobriu a saudade, porém tinha esperanças de que o vovô voltasse de viagem. Sentiu a falta das lindas canções executadas pelo vovô. Sentia a falta dos duetos entre Salvador e Verônica. Era difícil suportar aquilo tudo, mas deu valor àquele ditado em que dizem que o tempo cura todas as feridas. Milhões de segundos depois, tudo tinha voltado ao normal. A casa havia ganhado uma certa alegria e Verônica estava mais feliz do que todos. Verônica estava prestes a se casar com uma rapaz bem legal. O nome dele

Page 56: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 54

era Jorge e parecia que estava muito feliz ao lado de sua amada. Verônica não parava de conversar com o Ácaro. Conversava sobre seu amado, sobre suas expectativas e sobre seu filhinho que estava para nascer. Dava pra ver nos olhos daquela garota que ela realmente estava apaixonada e sabia que aquilo que sentia era mais forte do que qualquer coisa neste mundo, mas lamentava ter que morar em outra casa e se privar das conversas agradabilíssimas que eles tinham. Mas Acarêncio entendia tudo e sabia que de vez em quando poderiam ter estas conversas novamente. E então ela casou-se e se foi morar em outra casa. A solidão e toda a ternura que havia naquela casa haviam desaparecido por completo. Dificilmente Verônica aparecia naquela casa e raramente conversava com o Ácaro. Parecia que ela havia esquecido seu amiguinho que tanto conversava nos tempos bons e nos tempos ruins. Às vezes, ela parecia não ouvir a voz de Acarêncio deixando-o completamente arrasado. A solidão bateu-lhe à porta e o sofá parecia deserto com só uma criatura vagando como um zumbi pelos corredores acolchoados daquele que já se tornara um sofá abandonado, onde quase ninguém se sentava. O tempo parecia não passar. Acarêncio não percebia os segundos e deixou de ser aquela criatura alegre e amável para se tornar um copo de água vazio. Borges parecia ter viajado também. Só a Dona e o Seu Alfredo sobraram na casa, e mesmo assim, não havia emoção alguma.

Page 57: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 55

Num triste e frio dia, quando a chuva caia levemente e uma música triste soava bem longe, entrou pela porta alguém que disparou o coração de Acarêncio. Verônica entrou com sua mãe, desesperada. Estavam aos prantos, as duas, só que Verônica muito mais triste. Verônica sentou-se no sofá e bebeu um copo d’água trazido pela Dona. Pelo jeito, parecia que Jorge, o marido de Verônica, havia viajado também, assim como o vovô e o Borges. Acarêncio sentia a falta de todos. Dos cabelos grisalhos do vovô e suas maravilhosas cantigas. Sentia falta do Borges e as viagens que fazia pendurado nos longos pelos brancos do seu amigo. Mas agora, ele sabia que todos sofriam com estas viagens que aconteceram, e prometeu que nunca viajaria, nunca deixaria Verônica, apesar de ela não mais ouvi-lo. E lá ela permaneceu, deitada no sofá por dias, sem nada para fazer, olhando para o teto e chorando todo o tempo. Dava para sentir no seu coração a aflição eterna, mas será que não sabia que Jorge poderia voltar? - É terrível, amiguinho. – Disse Verônica Acarêncio ficou surpreso por ela estar falando com ele novamente e então, os dois começaram um diálogo. - Amiguinha querida. Seu amor vai voltar. Logo logo ele volta. - Não, amigo. Você não entende... ele viajou pra sempre. Não vai voltar mais. - O vovô viajou também, e... o Borges também, mas eu sei que eles vão voltar.

Page 58: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 56

- Não, amiguinho... esse tipo de viagem não tem volta. A gente é que precisa viajar pra encontrar eles de novo. - Então por que você não viaja também? - É... pode ser... talvez eu viaje mesmo. - Mas não esquece de me chamar, tá? - Não precisa, amiguinho... Verônica pareceu pensativa depois da conversa e aos poucos sua alegria voltava. Ao passar dos tempos tudo voltava vagarosamente ao lugar, mas mesmo assim, o Ácaro não conseguia entender a dor exagerada da saudade, não entendia a dor que aquelas viagens proporcionavam. Os segundos passavam como água e como nunca, Verônica e Acarêncio estavam mais unidos do que em qualquer época de suas vidas. Às vezes, o Ácaro sentia que ela realmente estava feliz. Acarêncio seguiria sua amiga aonde quer que ela fosse. Tornaram-se grandes amigos e nunca mais Verônica saiu de casa, mas ela ainda chorava pelos cantos. O choro estridente da Dona ecoou por toda a sala com um grito quase que gutural. Acarêncio deu um pulo e foi ver o que havia acontecido. A Dona e Seu Alfredo choravam sentados no sofá. O Ácaro nunca havia visto tamanha aflição. Quase parou o coração ao saber que Verônica também havia viajado. A notícia atingiu-lhe o peito como uma marreta. Chorou desesperadamente por muito tempo. Seu corpo febril pareceu indefeso e aquela

Page 59: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 57

cruel agonia espremia-lhe o coração deixando-o sem fôlego para sequer pensar. Por tempos vagou sem dar a mínima atenção para os perigos da casa e foi aventurar-se fora do sofá. Procurou respostas até que um dia pode finalmente entender o verdadeiro significado daquilo tudo. Entendeu por que sofriam tanto. Entendeu por que a viagem trazia infelicidades para todos, e só pôde perceber isso quando viu que sua querida amiga jazia deitada dentro de uma caixa de madeira enorme. Parecia um anjo dormindo nas nuvens. Toda a dor anterior parecia ter ido embora e havia paz estampada em seu rostinho sublime. Agora sim. Ele sabia que tipo de viagem era aquela. Percebeu todo o significado daquele mundo vil que era a dor. Finalmente fora entender a morte. Acarêncio sentia sua falta e num ato de desespero saltou para os lindos e sedosos cabelos negros de Verônica. A porta se fechou e com ela veio a escuridão. Embrenhou-se no mar negro. Viajaria com ela para reencontrá-la. Para reencontrar todos aqueles que, um dia, fizeram parte da sua frágil existência.

Page 60: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 58

Todas as caixas de correio se abriram naquele exato momento de final de madrugada, quando o primeiro raio de sol chegou à varanda exatamente às 5:42 da manhã. Foi realmente espantoso poder ouvir em uníssono os rangidos agudos das pequenas tampas de metal abrindo-se. Porém, aquele não era um dia feliz e ainda que todos os pássaros do mundo inteiro cantassem a mais bela das sinfonias na mais perfeita sincronia, ainda assim não seria o dia que todos esperavam. Em todas as partes do mundo tudo amanheceu exatamente igual. Sem cantorias, sem presentes, sem desejos, festas ou sorrisos, exceto nos lugares que ainda era o dia anterior. Neste dia também não houve bolos, parabéns, congratulações, sem aqueles pequenos momentos em que pessoas boas ou ruins, mesmo que não gostem umas das outras, se sintam à vontade para festejar e desejar o bem. Sem as ligações de queridos parentes longínquos, sem a cesta de café da manhã. O mundo inteiro amanheceu mais triste do que o normal, mais do que a própria tristeza cotidiana e um sentimento de solidão imenso abateu o coração de todos. Era como se as pessoas pudessem sentir que havia algo de errado no ar. Como se o oxigênio carregasse um pouco de partículas de mágoa e tristeza. Realmente não era um dia feliz.

Um Outro DiaUm Outro DiaUm Outro Dia

Page 61: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 59

Aquele era um dia singular. Um dia diferente que não fazia parte dos planos de ninguém. Um dia sem horóscopos, sem previsões e sem medidas. Um dia sem aniversários. Em nenhum lugar do planeta, naquele dia, ninguém nasceu e, todos os anos, este dia se repete e, todas as vezes que passamos por ele, sentimos o vazio iminente. Era o dia mais triste do mundo. Bilhões de pessoas no mundo e ninguém nasceu. Um quebra-tempo, um contra-ponto na existência da terra, uma síncope monstruosa refletindo uma sombra opaca e tenebrosamente triste. E assim, o dia brutalmente se foi durante todas aquelas vinte e quatro horas. Talvez as caixas de correio ansiassem por uma carta de aniversário e era assustador pensar que até as coisas inanimadas sentiam o terrível vácuo. Um único e longo dia onde nenhuma alma sequer nasceu e, apesar de todas as pessoas do mundo amanhecerem tristes, a terra continuava a mesma. Os pássaros cantavam, os mares balançavam e os ventos ventavam, porém todo o resto sentia uma amargura infindável no coração, exceto aqueles lugares em que já se era um outro dia onde o sol brilhava forte junto a um recém-nascido choro de mudança.

Page 62: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 60

Caiu no túmulo e gritou. Engolida em terror. Entendeu mais ou menos como é estar morta. Como é estar no fundo de um poço sem luz e com vermes em bolor. Desesperou-se. Girou seu corpinho de mulher na terra fria e com seu vestido os vermes se acoplavam e, quanto mais se mexia, mais eles vinham a saudá-la. Talvez, porque achavam que era sua nova moradia, seu novo fruto. Talvez pensassem que ali ela iria ficar e que nela iriam adentrar. Mas aquela mulher não era fria e se movia. Aquela mulher gritava e o calor de seu corpo fritava os pensamentos. Tiraram-na de lá. Toda impregnada com cheiro de terra molhada e até os cabelos nela se sujaram. E nem vermes nem formigas nela se instalavam. Nem moscas e nem minhocas nela adentravam. Sim. Aquela mulher estava muito viva. Os pais a abraçavam como se quase a fossem perder e dela nem viram um sussurro se quer. Estava rodeada de borboletas que talvez achassem que, vindo da sepultura, voltara à vida. Vinham beijar-lhe a terra que adubava os mortos e que abrigava os vermes. Elas viram que lá dentro ela estava e que como de supetão voou como uma garça para fora da boca da baleia. Estava maravilhada como que a vida vinha voando e ao mesmo tempo rastejando lá de longe no poço do esquecimento. Ah, se os vermes soubessem das

VermesVermesVermes

Page 63: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 61

suas memórias de vida. É disso que eles se alimentam. Subjugam os corpos apodrecidos e retiram deles as vidas e lembranças dos cérebros inócuos, vazios. Eram uma boa companhia, e a morte assim se tornava uma prosa. Dos mortos para os vermes. Mas se não estava morta e sim cheia de vida ela talvez não pudesse prosear com eles, os seres do cemitério, com os seres da terra. E assim, rodeada dos entes, foi para sua casa onde lá já a esperava a cama ainda quente do corpo do avô que acabara de deixar o mundo, porém, fria de todas as boas lembranças que dele eram engolidas dos sonhos. Ele era tão rico que seus imaginários mais se pareciam com o mel. Derretiam e borbulhavam de tanta riqueza. Deitou-se. Abraços e beijou no travesseiro com o cheiro do vovô. Uns mil ácaros sabiam naquele momento. Talvez também estivessem chorando. Ela invejava não poder sentir tudo o que ele sentiu. Invejava a vida que ele teve e queria que todos soubessem o homem que foi. E mais do que tudo, no fundo, invejava os vermes por agora saberem o que lhe foi a vida. As rugas já diziam que era vivido, tanto, que se enrugava todos aos anos, tanto que ia morrendo aos poucos. Segundo por segundo. Com uma lágrima aqui e ali, a menina imaginou-se naquele buraco escuro e frio onde agora mesmo histórias eram contadas, desejou estar lá com seu avô e mais do que nunca, que todos os seres que lá rastejavam, soubessem da vida que os dois tinham, do amor dos dois, das risadas já esquecidas por ela que

Page 64: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 62

tanto lhe queimava as têmporas ao lembrar. E assim, sem pensar muito, sem muitos planos, sentiu que não seria tão ruim assim se lá estivesse com o vovô. Os vermes não a machucaram. Talvez pudesse contar-lhes a história. Talvez. E quem sabe se os vermes pudessem ouvi-la. Saiu no meio da noite sem deixar pistas. Sem muito falar com ninguém. Desceu pontes e subiu montes e lá já se via as mil cruzes da noite em penumbra. Jazigo setenta e cinco. Deitou-se ainda com seu travesseiro molhado e o abraçou forte naquela frieza de pedra que jazia. E assim, como que de supetão novamente as borboletas não mais a rodeavam e então abriu sua cabecinha em mil pedacinhos que trasbordavam para lá e para cá, o livro de prosas da vida. Abriu-se toda como uma flor de cemitério, para que só os vermes soubessem.

Page 65: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 63

O pai disse que a maldição não seria fácil. O pai informou de todos os cuidados. No primeiro dia apenas o reconhecimento. Apenas o toque de mãos amigas. No primeiro dia, sorrisos. A maldição estava lá. Logo começou a ouvir vozes. Pensou no pai e nos avisos. Era quase hereditário. Sentiu o peso do destino sobre suas esqueléticas costelas. Num outro dia, as vozes culminavam. Era um incômodo quase que sobrenatural ser ouvidos de vozes que lastimavam seus sofrimentos mundanos nos ouvidos daquele pobre rapaz. Mas à noite, tudo se aquietava. Conseguia dormir senão com fones de ouvido. E nos outros dias mais vozes. Vozes que choram, vozes que gritam, vozes que dizem seu nome. As vozes não o deixavam em paz e era triste ouvi-las. Horripilante. A maldição de seu pai caíra sobre o triste rapaz e toda a carga negativa trazida com ele. Logo não conseguia dormir. As vozes rastejavam em sua mente. Mentiam, cuspiam palavras que ferem. Brotava raiva em seus olhos. O desespero tomou conta. Olheiras, calafrios, vozes. No fundo do seu ser ele soube. Sentiu na alma o que seu pai sentiu. Sentiu que não servia praquilo. Sentiu como era realmente difícil ser um operador de telemarketing.

VozesVozesVozes

Page 66: O Deserto e Outros Contos
Page 67: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 65

“Eu nasci, a dez mil anos atrás/ e não tem nada neste mundo/que eu não saiba demais...”R. Seixas

Aos nove (9) dias do mês de outubro de 1982, nasceu Leonardo Laranjeira Vieira, filho primogênito da família do Sr. Lauderci Vieira e Zélia Laranjeira Vieira. Parecia ter mesmo nascido para as artes, pois, ainda criança, já “pintava o sete”. Fez o pré-primário no Colégio Iguaçuano e fez o Ensino Fundamental e Ensino Médio no Colégio de Aplicação da UNIG.Chegada a hora de escolher o curso superior, o seu gosto pelas histórias que lia desde menino falou mais alto. Escolheu o curso de Letras, ingressando na Universidade Iguaçu – UNIG – onde despontou como escritor. Ali, conquistou os seguintes prêmios literários: • Vencedor do XI concurso de contos (primeiro lugar) - Homenagem a Marina Colasanti. • Vencedor do XI concurso de poesia (primeiro lugar) - Homenagem a Fernando Pessoa. • Vencedor do XII concurso de contos (segundo lugar) - Homenagem a Guimarães Rosa. • Vencedor do XIII concurso de contos (segundo lugar) - Homenagem a Eliana Yunes. • Vencedor do XIV concurso de contos (segundo lugar) - Homenagem a José Lins do Rego

Léo VieiraBiografiaLéo Vieira

Page 68: O Deserto e Outros Contos

O Deserto e Outros Contos | 66

Ao concluir o curso, foi escolhido orador, devido a sua eloquência e habilidade com as palavras, principalmente em inglês. O mais importante de tudo é dizer que Leonardo cresceu intelectualmente, sem nunca perder o encanto do universo infantil. Apaixonado por videogames, por super-heróis, desenhos animados, filmes de fantasia e ficção, retira desses elementos a inspiração para criar o seu universo da escrita: um universo que se faz próximo do nosso, pela pertinência espacial; mas que se torna longínquo pela sua abstração e pelo seu encantamento.

Jucilene VieiraMestranda em Estudos Literários – Literatura Brasileira

Page 69: O Deserto e Outros Contos

Este livro foi composto na tipologiaLiberation Serif, em corpo 9/11/ 18/22.

Page 70: O Deserto e Outros Contos