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TEXTOS BREVES Crônicas, contos e outros formatos FERNANDO ANTONIO PRADO GIMENEZ

Textos breves: crônicas, contos e outros formatos

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Livro de crônicas, contos, memórias e alguma poesia

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TEXTOS BREVES

Crônicas, contos e outros formatos

FERNANDO ANTONIO PRADO GIMENEZ

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Textos Breves

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Textos Breves

TEXTOS BREVES: CRÔNICAS, CONTOS E OUTROS FORMATOS

FERNANDO ANTONIO PRADO GIMENEZ

1ª. Edição

Curitiba

2016

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Textos Breves

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

G491 Textos breves: crônicas, contos e outros formatos / Fernando Antonio Prado Gimenez. Curitiba: Edição do Autor, 2016.

Digital. 146p: 14,8 x 21 cm

ISBN 978-85-915857-2-4

1. Literatura brasileira. 2. Contos. 3. Crônicas. 4. Poesias.

I. Gimenez, Fernando Antonio Prado. II. Título.

CDD B869.93

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Para Sara.

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Sem destino certo

Busco algo incerto

Não sei se está perto

Ora, não me aperto

Pra vida desperto.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO: UM MIMEÓGRAFO VIRTUAL 10

DUAS LÁGRIMAS 12

ESCRIBA EM DOSE DUPLA 14

ENTRE QUATRO PAREDES EM 2116 17

DEZ REAIS 20

UMA CONVERSA COM DEUS 26

QUASE FIM DE ANO 28

UM INSTANTE 30

MEMÓRIAS: SOBRE CACHORROS E UMA BEIRA DE RIO 32

UM CONTO DE NATAL 35

UM GALHO 37

VIAJAR DE ÔNIBUS ESTIMULA A ESCRITA? 38

O QUE NÓS SOMOS? 40

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A GORDA DO TARÔ DE MARSELHA 42

O GPS DO SEXO 45

A GUARDIÃ DA MEMÓRIA E O DEUS DO TEMPO 48

CORAÇÃO PASSAGEIRO 51

NO HOSPITAL 52

QUANDO CHOREI AO VER A BELEZA 53

CRACA DE LEITE 56

SOLIDÃO E ESPERANÇA EM MEDIANERAS DE GUSTAVO

TARETTO 58

A MENINA DE OLHOS AZUIS 62

O ACOMPANHANTE SURDO MUDO 64

DESMEMÓRIA 66

ROTINA 68

PONTO DE VISTA E AMOR: EU OS POSSUO? 70

A BERMUDA DO LONDRINENSE 72

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CINEMA, FOTOGRAFIA E SUSTENTABILIDADE: DISTOPIAS

SUAVES 74

NO AVIÃO: BREVE TEXTO SOBRE O EFÊMERO 77

O PROTÉTICO QUE FAZIA PERMUTA 78

PRAIA 80

FELICIDADE 81

TRÊS MENINOS 84

PRÓXIMA PARADA 86

REUNIÃO 88

AUTORRETRATO 90

PIPOCA NO CINEMA 91

TRAMPOLIM 93

DOMINGO DE CHUVA 95

UM CONVERTIDO 97

NO INTER 2 99

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JULIANDRA 101

UMA SURPRESA EM 2027 104

ANGÚSTIA 108

PERGUNTA ESTRANHA 110

INSPIRAÇÃO, OU SOBRE A ESPERANÇA 112

MENOS INFINITO 113

VOCÊ NÃO GOSTA DE DOCE, NÃO É? 115

SOBRE A AMIZADE 116

HISTÓRIAS DE DONA KILDA 118

NO CONSULTÓRIO? NO HIPÓDROMO? ONDE? 120

AMOR ANÔNIMO 121

RESISTIR. QUEM HÁ DE? 123

O ATIVISTA CORDIAL 124

ALGUMA NOVIDADE? (DIÁLOGO SURREAL) 127

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VIDA QUE ANDA... DE ÔNIBUS 129

A MEIO CAMINHO 131

EM TRÂNSITO 134

TRÊS HAIKAIS 141

SURFE ABSTRATO 142

POESIA PROSAICA 143

ESCAMBO EMOCIONAL (UM POUCO SURREAL) 144

AUTORRETRATO 145

NA VIDA 146

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APRESENTAÇÃO: UM MIMEÓGRAFO VIRTUAL

este livro junto textos breves. Da escrita acadêmica,

prática que me acompanha há mais de três décadas, me

encaminho para outros formatos.

Homem de poucas palavras, me encanto com o texto

breve. Sejam cronistas, poetas ou contistas, admiro aqueles que

conseguem, em poucas linhas, comunicar, emocionar, instigar e fazer

pensar. No texto breve encontro sempre o inesperado: a provocação

do riso, o brotar da lágrima, o limiar da dor, o estímulo da alegria, a

angústia do medo, o atiçamento da curiosidade e o gozo do prazer.

Quando eu tinha mais ou menos um terço de minha idade atual, 59

anos, ou seja, entre os 19 e 20 anos, comprei do Domingos Pellegrini

Júnior um livreto de contos que ele estava vendendo nas imediações

do teatro do Instituto Filadélfia de Londrina. Era um livro produzido

pelo próprio. Era um livro de contos. Naquela época, ele ainda não

era um escritor tão conhecido e estava comercializando seu livro que

surgira por meio do uso de um mimeógrafo. Ainda não existiam os

fotocopiadoras, ou eram pouco usadas e caras. Acho que eu tinha

ido assistir a uma peça de teatro. Não me lembro qual! Mas,

Pellegrini aproveitou-se do ajuntamento das pessoas para vender seu

livro mimeografado. Ele, o livro, deve estar perdido em algum lugar

de minhas estantes.

Lembrei-me dessa história hoje. Quase quatro décadas depois, estou

eu fazendo algo parecido. Só que agora, uso o mimeógrafo virtual.

Trabalho no computador, salvo o arquivo em formato pdf e o

disponibilizo em alguma estante virtual. Não dependo do

ajuntamento físico de ninguém para distribuir o meu livro. As pessoas

estão, também, virtualmente presentes nas redes sociais onde você

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deve ter encontrado o link para este livro. Se você quiser fará uma

cópia impressa do livro ou baixará o arquivo para seu computador.

Isso é o que chamo de mimeógrafo virtual. Não preciso nem carregar

um punhado de exemplares embaixo do braço para entregar aos

potenciais leitores.

Fazendo isso, começo a experimentar uma forma alternativa de

distribuir meus escritos a quem se dispuser, eventualmente, a ler.

Decidi abandonar o papel como suporte para meus escritos. A partir

de agora, qualquer livro meu será sempre digital. Este é o primeiro

em que faço tudo. Desde a escrita dos textos, a formatação e edição

do livro, a escolha da foto da capa, que fui eu mesmo que bati.

Aliás, a foto retrata uma paisagem do Passeio Público em Curitiba

feita em uma manhã qualquer. Pareceu-me uma boa imagem-

metáfora para muitos de meus textos. Muitos são reflexos de

vivências por que passei. Assim como na foto, na memória também os

reflexos se confundem. Isto impacta os textos. Até mesmo a

solicitação do ISBN do livro fui eu quem fez. É uma produção

independente. Se eu fosse você, tentaria isso um dia.

Graças às tecnologias atuais posso publicar um livro e não depender

da decisão de nenhum editor. Além disso, como o livro não é vendido,

qualquer pessoa que quiser lê-lo basta encontrá-lo em algum espaço

desse mundo virtual que é cada vez mais presente em nossas vidas.

Não precisa nem “pôr a mão no bolso” para isso. Afinal de contas,

sou apenas um aprendiz dessa arte da escrita breve. Não ousaria

pedir a ninguém “alguns trocados” por um conjunto de textos breves.

Ficarei feliz se você dedicar algum tempo à leitura deles. E, como

dizem os artistas: se gostar recomende aos amigos, se não gostar

recomende aos inimigos. Vou parando por aqui.

Curitiba, 23 de maio de 2016.

Fernando

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DUAS LÁGRIMAS

o ônibus a caminho de Londrina. É um parador! De

Curitiba, já passou por Ponta Grossa, Imbaú e Ortigueira.

Não sei qual será a próxima parada.

Minha leitura de bordo já concluí. No sistema de vídeo

interno, um filme que já assisti. Sono já se foi após uma hora de

viagem entre Ponta Grossa e Imbaú.

Em Ortigueira, ouço a conversa de um passageiro sentado em algum

lugar mais ao fundo. Fala ao celular. Ao final, se despedindo,

descubro quem está no outro lado:

_ Filha, dê um beijo em sua mãe. Diga que eu amo ela. Ela pode

acreditar.

A frase de despedida me sugere um casal em crise. Dá sentido à

primeira fala dele:

_ Em Imbaú o celular estava sem sinal. Aqui acabou de tocar. Vou

tentar ver uma placa para saber onde estou.

_ Em Ortigueira. Alguém diz a ele.

Imagino que tenha sido cobrado por não atender o telefone antes.

Deve ter sido a mulher, pois durante o diálogo houve troca de

interlocutor. Imagino a cena. Mulher irritada passa o telefone para a

filha:

_.Tó. Conversa com seu pai. Esse traste!

O tom de voz desse passageiro, cujo rosto não enxergo, desperta

minha emoção. Esta se faz acompanhar da imaginação. Sinto tristeza

na forma como disse as últimas palavras.

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Enxergo uma lágrima correr pela face do pai. Do outro lado da linha

- sei que celular não tem linha, mas a poesia exige essa frase - outra

lágrima deixa sua marca em um rosto de menina. Uma porta bate

com força. Se ouve um palavrão.

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ESCRIBA EM DOSE DUPLA

oi em 1992, depois de assistir a Orlando, estrelado por

Tilda Swinton, que lhe ocorrera a ideia. Neste filme, a

personagem vivida pela atriz é condenada a viver

eternamente jovem. Ao longo dos séculos tem diferentes

gêneros. A ideia que lhe acompanhou durante anos era

escrever um romance em que não se pudesse distinguir o gênero da

personagem principal.

Era uma ideia audaciosa. Começara praticando em pequenos contos,

mas na língua portuguesa, os adjetivos são traiçoeiros. Em qualquer

momento, se não prestasse atenção, revelava o gênero pelo uso de

um adjetivo. Poucos adjetivos são neutros em português, como por

exemplo, leve e suave.

Após alguns exercícios, verificara que qualquer adjetivo podia ser

transformado em um substantivo acompanhado de algum outro

qualificativo. Ao invés de muito belo, usaria algo como tinha uma

rara beleza. Em inglês seria muito mais fácil! Mas, quem sabe algum

tradutor fizesse isso no futuro. Tinha ambição de conhecer a fama.

Ultimamente, havia descoberto o sistema de armazenamento de

arquivos nas nuvens, o cloud computing. Abandonara o uso dos

pendrives. Vinha escrevendo o romance há alguns dias, quando notou

algo estranho. Revendo parte da escrita do dia anterior, encontrou

este trecho:

"Naquela tarde, a caminho de casa, sentia-se vaidosa do que

conseguira fazer...

Será que deixara passar este adjetivo no feminino?

Refez o texto:

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"Naquela tarde, a caminho de casa, com muita vaidade do que

conseguira fazer..."

Findo o trabalho do dia, salvou o arquivo e foi jantar com um casal

de amigos.

Ao retomar o texto, dias depois, mais um adjetivo que não lembrava

de ter usado:

"Estava se sentindo desanimado naqueles dias de inverno em..."

Fez a correção:

"Estava se sentindo com pouco ânimo naqueles dias de inverno em..."

Isto passou a ocorrer todos os dias. Por mais atenção que dedicasse

à escrita, ao reler seu trabalho no dia seguinte, encontrava algum

adjetivo revelador de gênero.

Certo dia, resolveu fazer um teste. Procurou um de seus antigos

pendrives e, após salvar o trabalho do dia nas nuvens, salvou

também no pendrive. No dia seguinte, ao comparar os dois arquivos,

viu que havia uma diferença. Em um estava escrito "se sentia muito

cansado..., enquanto que no outro, o do pendrive, estava o que

realmente escrevera, "tinha um enorme cansaço...".

Alguém estava alterando seu texto? Quem poderia ser?

Nesse dia, teve uma ideia brilhante. Ao concluir seu esforço de

escrita à noite, antes de ir dormir, ligou a câmara do computador e a

deixou funcionando em uma janela minimizada do computador.

Na manhã seguinte, o mistério foi resolvido. Ao assistir o arquivo de

vídeo, uma surpresa lhe deixou de boca aberta. Era a pessoa na tela

do computador! Descobriu que tinha sonambulismo!

A dúvida que ficou?

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Por que, enquanto dormia, preferia os adjetivos?

(Um pequeno conto, inspirado em O homem duplicado de Saramago)

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ENTRE QUATRO PAREDES EM 2116

cordou com pouco ânimo naquela manhã fria no inverno

curitibano de 2116. O que vira com seu holovisor portátil

na noite anterior lhe deixara muito triste. No trecho que

holovira, conflitos violentos em todas as regiões do planeta

evidenciavam a impossibilidade do convívio entre os

humanos.

A tecnologia da holovisão evoluíra a partir do cinema 3D que se

aperfeiçoou muito no começo do século 21. Já não era mais preciso

usar óculos especiais para simular a realidade por meio de imagens

tridimensionais. Em 100 anos, uma rede mundial de holocamaras foi

instalada em todas as regiões habitadas da Terra. Estas captavam e

transmitiam, em tempo real, tudo o que acontecia fora da proteção

de quatro paredes. Era a globalização da tecnologia que surgira

com o apoio de satélites ao redor da Terra que mostravam, nos

primeiros anos do século 21, detalhes das ruas e estradas

espalhadas pelo mundo que eram visualizadas nos diferentes

instrumentos de informação e comunicação. A junção dessas

tecnologias e seu aperfeiçoamento permitiu que surgisse a Holovision

Earth Network, fusão de algumas empresas gigantescas, que havia se

tornado mais poderosa que os governos dos países e passara a

dominar as formas de comunicação entre os humanos. A comunicação

global se tornara um negócio regulado e operado pelo mercado.

Uma instituição que tinha um caráter divino para uma parcela cada

vez maior da humanidade.

A tecnologia da holovisão, no início, tinha um módulo de

teletransporte. Esta surgiu como um novo sistema de vigilância que

dava às forças policiais uma visão mais detalhada e abrangente dos

espaços públicos. O módulo de teletransporte permitia que os

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agentes de segurança fossem imediatamente movidos para os locais

onde sua ação fosse necessária. Mas, algumas dificuldades tornaram

inviável este modo de operação. Os seres humanos, quando eram

teletransportados, ficavam atordoados por cinco minutos. Este

atordoamento fazia com que a ação de repressão a conflitos se

tornasse ineficaz. Os agentes de segurança eram facilmente

dominados pelas pessoas envolvidas em situações conflituosas, às

vezes, com consequências drásticas para sua integridade física.

Assim, o teletransporte foi abandonado, mas passou-se a utilizar a

holovisão reversa em questões de segurança. Holoimagens de

agentes de segurança eram enviadas para os espaços onde os

conflitos ocorriam. Por incrível que pareça, isto fazia com que os

conflitos cessassem. Mas, era um efeito temporário. Tão logo as

pessoas percebiam que os agentes de segurança eram holoimagens,

estes passavam a ser ignorados.

Assim, a Holovision Earth Network acabou deixando o mercado da

segurança pública e voltou-se para o mercado global da informação

e comunicação. Essa tecnologia levou à bancarrota as antigas redes

de televisão que ainda ofereciam programas de notícias,

documentários, filmes e outras formas de comunicação por imagens.

Com os holovisores a humanidade tinha acesso a qualquer parte do

mundo em tempo real e em três dimensões. A holovisão, também,

exterminou a indústria do turismo. Não havia mais necessidade de

viajar para conhecer lugares. Nos tempos da antiga internet isto já

estava acontecendo. Era possível visitar muitos lugares por meio da

internet, só que esta não era tridimensional. Agora, além de ser

tridimensional, a holovisão trazia o som real dos acontecimentos

conforme eles iam se desenrolando.

Mas, por que tanto desânimo?

Naquela fria manhã de Curitiba, se dera conta de que a

humanidade falhara. Os humanos eram cada vez mais longevos

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graças aos avanços da medicina preventiva e curativa, mas não se

conseguira alcançar a paz entre os humanos. Na essência

continuávamos a ser um bando de guerreiros. Qualquer diferença de

opinião era motivo de briga. As tecnologias de informação e

comunicação que surgiram ao longo de mais de 300 anos permitiram

que os humanos se informassem cada vez mais, mas não levaram à

verdadeira comunicação, os diferentes agrupamentos humanos não

se entendiam. A convivência era impossível. Só lhe restava desligar o

holovisor e, entre quatro paredes, esconder-se da holovisão e dos

humanos.

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DEZ REAIS

genor começa seu dia como sempre. A mesma rotina. Uma

xícara de café com leite e um pãozinho amanhecido. Mora

no centro de Curitiba, próximo ao prédio histórico da

UFPR, em uma quitinete com poucos móveis. Só o que cabe:

uma pequena mesa com dois banquinhos, ao lado de um

sofá velho com três lugares. Travesseiro, lençol e coberta estão

desfeitos sobre o sofá. No criado mudo, uma luminária antiga e

alguns livros esparramados. Um livro entreaberto no chão, perto de

onde está o travesseiro. Não há porta-retratos. Paredes nuas, mas

em uma delas há estantes com centenas de livros de bolsos. Não

precisa de muito mais.

Agenor coloca xícara, pires, garfo e faca na pia e margarina na

geladeira. Café solúvel e adoçante vão para pequeno móvel com

uma gaveta e porta, branco, onde ficam mantimentos, ao lado de

uma geladeira tipo frigobar, branca e amarelada do tempo. Em

cima da geladeira, fruteira de vime com bananas, laranjas e limões.

Agenor sai de casa. Um sábado pela manhã. Mas poderia ser

qualquer dia. Aposentado, já não faz diferença entre dia útil e final

de semana. É sempre a mesma coisa!

Sua primeira parada é na farmácia. Sobe na balança e confere seu

peso, sempre os mesmos 70 quilos. Há mais de uma década. Uma

atendente lhe cumprimenta:

_ Bom dia. Em que posso ajudar?

_ Bom dia. Tem genérico de Viagra?

_ De 20 ou 50 miligramas?

_ 50. Caixa com quatro. Dá para um mês. Um por semana.

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Sorrindo a moça pergunta:

_ Vai pagar no dinheiro ou cartão?

_ Com cartão. Tem desconto para aposentado?

_ Não, mas posso parcelar em duas vezes.

_ Tá bom.

Da farmácia, vai até a sapataria. Precisa engraxar dois pares de

sapato. O sapateiro está sentado em uma banqueta na porta da

sapataria. Barrigudo, barbudo e cabeludo, lembra um Papai Noel,

mas não é a época nem o lugar adequado. Tem cabelos ruivos,

macacão cinza sujo de graxa, palito de dente na boca.

_ Tenho dois pares para engraxar. Quanto você cobra?

_ Cinco reais cada.

_ Puxa! Tá caro!

_ Tá caro não. O senhor que ganha pouco.

Desiste de engraxar os sapatos e resolve ir ao Passeio Público. Na

frente do lago, junto ao espaço reservado aos pedalinhos, vê um

pipoqueiro:

_ Quanto é a pipoca?

_ Quatro reais. Quer doce ou salgada?

_ Salgada. Sou diabético.

Agenor tira dinheiro do bolso da calça. Uma nota de dez e duas de

dois reais. Pega saquinho de pipoca. Dá dinheiro para o pipoqueiro.

Guarda os dez reais no bolso da camisa. Olha para a direita e vê

uma mulher de minissaia vermelha, botas pretas até os joelhos. Loura,

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batom vermelho forte, blusa branca de botões entreabertos. Seios

fartos à mostra em sutiã vermelho. Passando por ela, ouve:

_ Oi amor. Vamos até a torre que faço oral em você.

_ Quanto?

_ Dez reais.

Com a mão no bolso, Agenor lembra dos dez reais que guardara no

bolso da camisa.

_ Só uma chupeta?

_ Por delão você quer mais o que?

_ Com dez reais dá pra engraxar dois pares de sapato.

Agenor dá as costas para a prostituta e sai andando devagar. Volta

para casa.

_ Velho maluco! Diz a mulher.

Antes, passa pelo açougue.

_ Fala, seu Agenor.

_ Tudo bem, Osvaldo?

_ Tranquilo. O que vai ser hoje?

_ Os três bifinhos de sempre.

_ Contrafilé ou patinho?

_ Patinho, né, Osvaldo! Mais barato.

_ Que mais?

_ Por hoje é só.

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_ Dez reais seu Agenor.

Agenor põe a mão no bolso para pegar o dinheiro. Mas, muda de

ideia.

_ Osvaldo, posso pagar no próximo sábado?

_ Tudo bem. No sábado o senhor acerta.

Depois do almoço resolve ir a um dos sebos perto de onde mora.

Tinha feito uma encomenda e queria ver se encontraram o livro. Mais

um para sua coleção.

_ Boa tarde professor.

_ Oi, Capitu. Tem alguma coisa para mim?

_ O Dalton que o senhor procurava.

_ A Gorda do Tikri bar?

_ Esse mesmo, quase novo.

_ Quanto?

_ Dez reais também. Mesmo preço do último.

_ Vou levar. Posso pagar depois?

_ Claro professor.

Capitu se vira de costas e aproxima-se da estante. Pega livro que

estava separado dos demais. Agenor não consegue não olhar para

as pernas de Capitu. Dali vai para um dos bares na Presidente Faria.

Precisa tomar alguma coisa e reler o livro que tanto procurava. No

bar, senta-se em mesa perto da saída para a calçada. Vê uma

negra, bem gorda, sentada em um dos bancos junto ao balcão do

bar. Ela fuma. Não há outros clientes. Acompanha em voz baixa

bolero cantado por Alcione. O garçom se aproxima.

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_ Uma cerveja, Dorival. Não esquece o amendoinzinho.

_ Dalton Trevisan de novo?

_ Acabei de comprar.

_ Ontem vi ele no Passeio Público.

_ Devia estar atrás de inspiração.

Agenor pega caixa de remédios do bolso. Abre e tira um

comprimido. Toma com um copo de cerveja. De um gole só. Enche o

copo novamente. Começa a ler. Dorival e a gorda conversam no

balcão. Alcione canta outro bolero.

_ Dorival, traz mais uma.

_ Às vezes fico em dúvida. Isso é vida mesmo? Ou só estamos na

mente do escriba?

_ Não entendi seu Agenor.

_ Deixa pra lá.

Depois de algum tempo, pede a conta.

_ Dez reais. Não quer pendurar?

_ Sim.

_ Deixo anotado então.

_ Estou só com dez reais e tenho que terminar um negócio no Passeio

Público.

_ Sem problemas. Outro dia o senhor paga.

_ Já tomei o azulzinho. Me sinto meio daltoniano hoje.

_ Não entendi, seu Agenor.

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_ Deixa pra lá. Até mais ver.

_ Inté, seu Agenor.

Agenor caminha em direção à calçada. Vira à direita no sentido do

Passeio Público. Sorri.

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UMA CONVERSA COM DEUS

cordou com a brisa movimentando levemente a rede. Nela

adormecera embalado por uma dúvida. Como Deus

deixara vir ao mundo uma criança cega e surda?

Vira esta criança sorrir ao ser amparada por uma

professora em uma escola. Sorria essa criança? Ou era uma simples

reação muscular a um estímulo tátil?

Acordou com mais uma dúvida: teria sido um sonho? O diálogo ainda

estava vivo em sua memória:

_ Vi que queria falar comigo?

_ Quem é você?

_ Aquele que tem muitos nomes.

_ Como?

_ Sou Deus, criatura! Não me reconhece?

_ Como poderia? É a primeira vez que nos encontramos!

_ É verdade.

_ Então, o que você quer?

_ É ao contrário.

_ O que?

_ Essa fala é minha. Eu é que pergunto. O que você quer? Por que

me chamou?

_ Como poderia ter lhe chamado? Nunca acreditei em sua existência!

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_ Quando viu aquele menino que sorria, mesmo nascendo cego e

surdo, você me chamou.

_ Eu! Imagina! Não estou louco! Quer dizer acho que não. Apesar

dessa conversa de maluco!

_ Pois é criatura! Quando você se perguntou, se Deus existe, como é

que deixou essa criança nascer, achei que queria uma resposta.

_ Eu não! Era só uma pergunta retórica. Mas, já que está aqui, fala.

_ Então, é um pouco constrangedor.

_ Como constrangedor? Para Deus?

_ Pois é. Mesmo sendo Deus, tem coisas que eu não sei.

_ Para com isso. Tá me gozando?

_ Não imagina. É constrangedor, mas é muito simples.

_ Então manda.

_ Criatura, eu sou uma criação humana.

_ Como assim?

_ Pois é. O criador é uma criatura. Só posso saber o que meus

criadores sabem. Me desculpe, não sei a resposta. Mas, sei como

vocês chamam coisas como o sorriso desse menino.

_ Como nós chamamos?

_ Milagre. Não tem explicação.

_ E você me acorda, pra me dizer isso?

_ Não te acordei.

Bateu uma leve brisa.

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QUASE FIM DE ANO

odo ano era sempre a mesma coisa. Começava a se agoniar

com o amigo secreto entre os colegas do escritório. Achava

ridículas as mensagens que recebia. Não mandava nenhuma,

mas sabia que na hora da revelação não faltariam

admoestações:

_ Mais uma vez você não mandou mensagens.

_ A gente até consegue adivinhar quem é seu amigo secreto. Quem

não recebeu mensagem nenhuma.

_ Pô, nem dessa vez que o amigo secreto foi virtual você mandou

mensagem.

Logo, a troca de presentes continuava e o assunto mudava.

Mais uma vez, em cinco anos seguidos, um livro de presente. O best-

seller do ano. Além de fingir surpresa e contentamento, tinha que

manifestar que já não podia esperar pela leitura.

Tanto fingimento lhe dava mais azia que a sidra barata que era

servida meio morna. Fazer o quê? Precisava do emprego!

O presente já tinha destino certo: a tuboteca na estação central.

Ainda bem que neste ano não havia dedicatória. Nos anos anteriores

arrancara a página com aquelas frases que aumentavam sua azia:

_ Que essa história lhe inspire no novo ano!

_ Para que você possa curtir bem suas férias.

_ Achei que esta história é a sua cara.

Mas, houve um ano que a dedicatória foi ousada:

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Textos Breves

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_ Queria ver este livro no criado mudo junto à sua cama com você.

Quem sabe na virada do ano.

Enrubesceu e quase não conseguiu agradecer. Ficou o restante da

festa fugindo de qualquer momento a sós com aquela pessoa. Sua

timidez era avassaladora. Se arrastava para os cantos menos

iluminados do salão. Praticava a solidão no meio da multidão.

Depois da festa antes do Natal, no dia seguinte começavam as férias

coletivas. 20 dias sem contato com o pessoal da empresa.

No dia 31, à noite, na festinha da família, esperava o momento mais

angustiante: o sorteio da mega sena da virada. Seria daquela vez?

Vida besta! Só o acaso para mudá-la. Não aguentava mais o

discurso sobre meritocracia do chefe e as cobranças em casa.

Mais uma vez, não foi.

_ Come mais um pedaço do pernil. Alguém diz.

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UM INSTANTE

ndava com a sensibilidade à flor da pele. Bastava um

instante para que um sorriso ou uma lágrima brotasse.

Podia ser o espreguiçar do gato, uma voz na tv, uma bola

jogada, o choro de uma criança. Qualquer coisa.

A seu lado, as pessoas não entendiam. Por que essa lágrima? Esse

sorriso de onde vem? E quando vinha um sorriso junto com uma

lágrima, era inexplicável.

Quer dizer, podia ter uma explicação. Mas, quando alguém lhe

perguntava, a resposta era sempre a mesma:

_ Você pode até entender, mas não vai compreender.

O ouvinte, quase sempre, ficava boquiaberto. Mas, a conversa

parava por aí. Qualquer pergunta a mais, tinha como resposta

apenas o silêncio acompanhado de uma lágrima ou de um sorriso. Ou

de ambos. Aos poucos, todos se afastaram. Era constrangedor.

O que não sabiam era que, nos últimos meses, sua vida se

transformara muito. De repente, em um exame médico de rotina, uma

notícia ruim: tinha uma doença rara. Em alguns meses, estaria sem

visão e audição. Essa notícia foi comunicada friamente por um

profissional da saúde que lhe dissera:

_ A qualquer momento, em um instante, você perderá a visão e a

audição. Não há o que fazer. Não há o que tomar. Passar bem!

Qualquer cena e qualquer som eram emotivamente recebidos. Pela

alegria de ainda serem vistos ou ouvidos. Pelo medo de que fosse o

último.

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Textos Breves

31

Era assim, que entre lágrimas e sorrisos, aguardava o instante em

que já não veria ou ouviria. Imaginava que seria o penúltimo.

Planejava o último, mas talvez não tivesse coragem.

No fundo, assim como na caixa de Pandora, tinha a esperança que

na memória recriaria as imagens e os sons que a todo momento

poderiam ser os últimos. Sem visão ou audição, se refugiaria no

mundo da imaginação.

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Textos Breves

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MEMÓRIAS: SOBRE CACHORROS E UMA BEIRA DE RIO

lgumas memórias são recorrentes. Contudo, com o passar

do tempo parecem que elas vão esvanecendo. A imagem

que me ocorre é que elas parecem estar armazenadas em

cartões parecidos com aqueles que são usados em testes

de visão para detectar daltonismo. Ao longo dos dias e

anos, elas vão se misturando com os pontos coloridos de todas as

lembranças. Se tornam contornos cada vez mais difíceis de visualizar

em uma miríade de pontos de cores da vida. Parece que vou

desenvolvendo um daltonismo das lembranças, em que elas além de

se esconderem aos poucos, também se parecem com sonhos. Terão

acontecido mesmo? Qualquer que seja a resposta, sonho ou

lembrança, me constituem enquanto humano. São inescapáveis,

mesmo quando borradas.

Nesses dias, tenho lembrado dos cães que povoaram minha infância

e adolescência. Foram muitos, mas são dois que ainda se sobressaem

com mais nitidez em meus cartões de memória: Pipoca e Fox. Nenhum

dos dois com raças claramente definidas. Mestiços que deixaram

histórias.

O primeiro, Pipoca, era um cãozinho pequeno, branco com manchas

marrons muito claras. Tinha um defeito no lábio inferior que passava

a ideia de estar sempre sorrindo. Os dentes, sempre à mostra, não

transmitiam a ideia do rosnar agressivo. Pelo contrário, era um

sorriso meio torto. Às vezes parecia até irônico.

Tenho duas memórias do Pipoca. Adorava balas e antes de

atravessar a rua olhava para os dois lados. Morávamos, meus pais,

irmãos e eu, na rua Paranaguá em frente ao Supermercado Gimenez

que ficava no número 1120, na esquina com Goiás. Todo dia, Pipoca

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Textos Breves

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fazia seu ritual de atravessar a rua com segurança, entrava no

supermercado e ficava pulando à beira de um dos caixas, até que

alguma das moças lhe desse uma bala. Adorava as balas Rin-tin-tin!

Mas, um dia errou o cálculo, ou se distraiu atravessando a rua e foi

atropelado. Nunca mais pode saborear as balas Rin-tin-tin.

Fox, ao contrário, era um cachorro maior e mais agressivo. Não ia

até o supermercado. Ficava no quintal de nossa casa, que em uma

das laterais tinha uma rampa não muito íngreme, calçada, com uns

quinze metros de comprimento que levava do portão até a garagem.

O portão ficava sempre fechado. Mas, de vez em quando, alguém

saía com o carro e esquecia o portão aberto.

Não poucas vezes, quando o portão estava aberto, Dona Ana estava

indo para o supermercado com seu pequinês. Nesse momento, Fox

saía em disparada da garagem e agarrava o pequinês pela nuca e

o chacoalhava com muita força. Era um caçador! Nesses momentos,

no meio da gritaria, eu, que era um dos poucos que Fox respeitava,

corria até a cena e tinha que bater muito nele para que soltasse a

presa. Um dia meu pai deu Fox para o bananeiro que o levou para

o sítio. Fox escapou e exterminou as aves de um galinheiro vizinho.

Seu fim não foi muito agradável!

Por fim, chego ao rio Tibagi que vive em minha memória como uma

parede d'água escura, quase marrom. Me lembro que estava com

alguns de meus tios maternos que foram pescar à beira do Tibagi

que fica não muito distante de Londrina. Havia outras crianças,

provavelmente meus irmãos e primos. De repente, passando por meus

tios, escorrego na beira do Tibagi e vou para o fundo do rio. Me

lembro de ter uma visão turva e úmida. Logo depois, um dos meus

tios, que na minha memória foi o tio João, pulou atrás de mim e me

tirou da água. Terá sido um sonho?

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Textos Breves

34

Eu acho que não, mas uma vez perguntei a meus tios, e ninguém se

lembrou. Mas, é uma lembrança que me constitui fortemente. Quando

mergulho em águas escuras sinto um desconforto muito grande.

Esses são três cartões de minha memória que vão se reconfigurando

com as cores da vida. Quando meu daltonismo memorial se acentuar,

terei esse registro para guiar-me e localizar seus traços no tempo.

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Textos Breves

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UM CONTO DE NATAL

atal acordou pela manhã. Eram quase sete horas. Um

pouco assustado, pensou que se atrasara. Mas, lembrou-se

que não tinha que ir para o trabalho. Era seu dia de

folga. Era folga pra quase todo mundo, mesmos os não

cristãos. Era dia de Natal.

Quando era criança, ele não entendia direito por que tinha um dia

do ano que era dele. Os pais eram ateus ortodoxos. Não aceitavam

a ideia de celebrar um dia cristão. Era uma data sem sentido para

eles. Além do mais, criticavam muito os seus vizinhos do pequeno

vilarejo, todos cristãos, que transformaram a festa religiosa em uma

data comercial sem igual.

Era a época do ano em que o comércio mais faturava. Haviam

estabelecido o dia de Natal como um dia em que todos se

presenteavam. Nesses dias, mesmo os mais pessimistas no comércio,

em épocas de crise, botavam fé, não no sentido religioso, de que as

vendas seriam melhores do que no ano anterior. Eram sempre

melhores!

Mas voltando ao Natal, na sua infância, os pais tentaram deixá-lo

fora dessas festividades. Quando ele chegava em casa falando de

Natal, os pais diziam:

_ Seu dia está chegando, homenzinho. Vamos ficar em casa só nos

três. Faremos tudo que você quiser no dia do Natal.

E não saíam durante este dia. Tentavam evitar que Natal se

contagiasse com o clima comercial, quer dizer natalino daqueles dias.

Natal achava estranho não poder sair de casa naqueles dias. Mas,

na companhia dos pais, em meio a tantas brincadeiras, o tempo

voava e o dia do Natal era muito feliz.

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Textos Breves

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Seus pais conseguiram fazer isso durante algum tempo. Natal foi

crescendo e teve que ir para a escola. Nesse ano, quase ao final das

aulas, a professora fez uma atividade em sala sobre o dia de Natal.

Natal se espantou:

_ Nossa professora, meus pais lhe contaram sobre meu dia?

Ele ficou transtornado quando, no meio das risadas de todos, a

professora lhe deu uma bronca:

_ Não é o seu dia engraçadinho! Vai lá pro canto e fica de castigo.

Quando voltou para casa, Natal chorando muito contou o que

acontecera com ele. Os pais se explicaram. Natal passou a exigir

que os pais lhe recompensassem pelos presentes não dados. A dor

do filho foi tão intensa que os pais tiveram um colapso mental e

foram internados em um hospício pelo resto da vida.

Natal foi viver no orfanato das irmãs de caridade. Lá ficou até os 18

anos, quando um carpinteiro disse para as irmãs que precisava de

um aprendiz. As irmãs pensaram que já estava na hora de Natal

aprender um ofício. O carpinteiro se chamava José e sua mulher

Maria. Foi no dia de Natal, que Natal se mudou para a casa de

Maria e José. Lá aprendeu seu ofício e em gratidão pela acolhida

que teve no orfanato, ele passou a distribuir brinquedos de madeira

para as crianças do orfanato no dia de Natal. No meio da tarde, ele

chegava com um saco bem repleto de carrinhos e bonecos de

madeira e, batendo à porta, gritava:

_ Hoje é o dia do Natal!

Ninguém entendia porque ele não falava hoje é o dia de Natal. Só

eu. E agora você.

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Textos Breves

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UM GALHO

oi ontem de tarde. Caminhava em busca de abrigo, pois a

chuva se anunciava como só ela se anuncia. Vinha

acompanhada do vento. Do mormaço também. Seria

abrupta e curta. Chuva de verão ao final da primavera.

Apressada! Eu também.

De repente um golpe na testa. Veio de cima. Silencioso. Mas, rápido

como um raio. Entre tantos lugares, eu tinha que estar ali naquele

momento. Atingido por um galho de árvore. Não grande, ainda bem.

Veloz, deixou sua marca na testa: pequeno arranhão.

Em casa, ouço um conselho:

_ Você precisa tomar cuidado.

Como segui-lo?

Andar pela rua olhando para cima? Talvez uma benzedeira! Ou

melhor, uma cartomante. Curitiba parece ser um bom mercado para

adivinhações. Me impressiona a quantidade de cartazes que vejo em

postes e muros. Será que alguma poderá me indicar caminhos

seguros? Sem galhos sorrateiros!

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Textos Breves

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VIAJAR DE ÔNIBUS ESTIMULA A ESCRITA?

ais uma vez, aproveito o tempo em uma viagem de ônibus

para praticar a escrita. Vício? É provável que sim, mas

creio que seja um vício virtuoso. Um virtício! Oximoro cujo

único mal pode ser uma futura lesão por esforço

repetitivo, mas que, entre outros, traz o benefício do

exercício da razão temperada pela emoção.

Viajo para Florianópolis. Além de reencontrar uma amiga que não

vejo há demasiado tempo, Maria José Barbosa de Souza,

participarei de uma sessão de defesa pública de dissertação de

mestrado na UNIVALI. Junção do útil ao agradável!

O momento sugere uma retrospectiva e manifesto de intenções. 2015

se aproxima do fim. Mas, resisto à tentação da mesmice. Do que

falar então?

Na semana passada encerrei uma disciplina no doutorado em

administração da UFPR. Cinco jovens, uma moça e quatro rapazes

(Thálita Orsiolli, Rodrigo Morais Silva, Luiz Aurélio Virtuoso, Eduardo

De Carli e Paulo Henrique Preto), compartilharam seu tempo de

estudo comigo na exploração da literatura sobre empreendedorismo,

inovação e sustentabilidade. Ao longo de quinze encontros fomos

dialogando sobre as leituras de cada um, em encontros em que a

liberdade e a ordem se fizeram sempre presentes. Mais um oximoro?

Libordem! Foi Rodrigo quem manifestou essa impressão em uma

mensagem de correio eletrônico. Faço uso dela para cunhar esse

neologismo.

No meio do caminho, emerge a ideia de um texto: vamos avaliar o

que a academia brasileira publicou sobre empreendedorismo

sustentável? Chegamos ao último encontro com o texto quase pronto.

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Textos Breves

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Uma semana de interações virtuais, coletivamente, leva à finalização

do texto. Imediatamente submetido a uma revista internacional que

aceita textos em português com seis autores! Imagino que esta notícia

deixe as chefias satisfeitas!

Mas, essa satisfação é a que menos me interessa. Quero falar de

outra. Uma que se aproxima, já que estudamos empreendedorismo,

da ideia de necessidade de realização de McClelland. A escrita

para mim é uma necessidade de realização. Escrevo porque quero,

não porque mandam. Escrevo porque preciso. Não de pontos no

Qualis, mas da emoção da busca da beleza no conhecimento. Escrevo

porque faz parte de meu ser!

Enfim, no meio da viagem, torno público meu agradecimento

emocionado a esses jovens que se juntaram a mim nessa jornada

maravilhosa da leitura, reflexão e escrita. Um presente de Natal

inesquecível.

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Textos Breves

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O QUE NÓS SOMOS?

sta pergunta me foi feita há vinte e quatro anos atrás. Veio

de Paloma essa indagação que, a princípio, me assustou.

Naqueles dias já praticávamos nossa conversação bilíngue.

Estávamos na Inglaterra para meu doutoramento e de

Telma. Paloma e Fernanda falavam em inglês e eu

respondia em português. As duas foram primeiramente alfabetizadas

em inglês. Me indagou ela:

_ Daddy, what are we?

Paloma, então, se aproximava dos seis anos de idade e havíamos

chegado de sua escola onde fora buscá-la. Estávamos na

Universidade de Lancaster onde morávamos. Telma estava fazendo

seu doutoramento nesta universidade. Eu fazia o meu na

Universidade de Manchester. Fernanda, um ano mais nova,

frequentava a mesma escola em Galgate, pequena vila ao sul da

cidade. Buscá-las na escola era algo que fazia quando não estava

em Manchester. Muitas vezes, ia de manhã para a Manchester

Business School e voltava à noite. Mas, não precisava ir todos os dias.

Passado o susto, perguntei o que ela queria saber. Não era uma

questão existencial, como eu temia. Era mais direta, mas não mais

simples. A escola que Fernanda e Paloma frequentavam recebia

muitas crianças estrangeiras. Eram os filhos e filhas dos estudantes

que vinham de outros países estudar na universidade. A escola era

vinculada à igreja anglicana, mas tinha uma abordagem eclética nos

estudos de religião já que recebia crianças cujos pais tinham as mais

diversas crenças.

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Textos Breves

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Paloma queria, simplesmente, saber qual era nossa religião. Ela tinha

amigas anglicanas, muçulmanas, católicas, judias, protestantes e

budistas. É provável que tenha sido questionada sobre o que éramos.

Mais aliviado, lá fui eu explicar a uma menina com pouco mais de

cinco anos porque não tínhamos uma religião. Me lembro que disse

algo assim:

_ Filha, sua mãe e eu não temos uma religião. Não acreditamos na

existência de deus. Mas, quando você crescer, você poderá fazer sua

escolha. Nós não podemos fazer essa escolha para você.

Não sei como Paloma lidou com isso na escola. Ela nunca mais tocou

no assunto.

Para mim, ficou a esperança de que ela tenha aprendido naquela

escola como é importante conhecer o diverso e respeitá-lo. Cada

uma daquelas crianças era adorável apenas por ser criança. Não

importava a crença religiosa de seus pais. Me lembro de um convívio

harmonioso daquelas crianças que volta e meia estavam em nossa

casa.

Quanto a mim, acho que ela e Fernanda descobriram, ao longo dos

anos, que além de tentar responder a suas dúvidas, estou sempre

torcendo por suas escolhas na vida. É para isso que servem os pais.

E, sem nenhuma surpresa, acabei me tornando professor.

Respondedor de perguntas que respeita as escolhas de cada

estudante. Simples assim. Quanto ao que nós somos, creio que você

tem uma resposta própria.

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Textos Breves

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A GORDA DO TARÔ DE MARSELHA

ão é o que você está pensando. Não me refiro a uma

carta de tarô. Aliás, nem sei se no tarô de Marselha há

uma gorda. Mas, se houver, deve ser a carta do

descaminho, do desencontro, talvez, até, da perdição. Ao

final dessa história você vai entender. Espero!

Eu e mais cinco ou seis passageiros entramos no Cabral-Cic no tubo

Comendador Fontana. À minha frente uma senhora quase obesa.

Alguém lhe ofereceu o lugar, em um dos bancos amarelos que são

destinados a idosos, passageiros com crianças no colo, deficientes e

obesos. Ela preferiu sentar-se na poltrona destinada aos

acompanhantes de cadeirantes que, também, estava vaga. Como

ninguém mais quis sentar-se, ocupei o banco amarelo. Embora,

tecnicamente, ainda não seja idoso pois tenho mais dois anos antes

de chegar a esse status.

Meu destino era a UTFPR na esquina da Desembargador

Westphalen com a Sete de Setembro. Ia entregar exemplares de

meu livro para Gilberto e Vanessa, professores que apoiaram meu

projeto de crowdfunding. No meio do caminho, sinto que sou

observado. Sabe aquela sensação de se sentir olhado, mesmo

estando com a cabeça baixa? Pois é. Essa mesma! Levanto os olhos e

vejo que a gorda senhora me encarava. Os dois desviamos o olhar

praticamente ao mesmo tempo. Depois volto a mirá-la. Ela já não me

olhava mais.

Deve ter pouco mais de 40 anos, mais de 90 quilos, cabelos não

muito longos, um pouco grisalhos, presos por um rabo de cavalo e um

arco de veludo preto. Nas orelhas carregava um par de brincos

vermelhos em formato de pimenta. Três ou quatro centímetros

pendurados nos lóbulos um pouco esticados. Seria o peso das peças?

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Textos Breves

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Na mão direita, cinco pulseiras. Quatro de cristais baratos, uma de

cada cor: transparente, verde, amarela e marrom. A quinta era cheia

de pequenas pimentas vermelhas iguais aos brincos. Na mão direita

um livro que lia: O Tarô de Marselha.

Não pude deixar de me lembrar de algo que já comentei por aqui.

Como Curitiba parece ser um espaço propício às artes adivinhatórias.

Se você caminhar pelo centro, verá muitos cartazetes pregados em

postes, muros e paredes.

Será que a gorda do Tarô de Marselha é uma profissional da

tarologia? Creio que não, carregava pendurado no pescoço um

crachá de uma rede de comércio varejista. Creio que se dirigia para

o emprego. Deveria ser uma aprendiz da arte.

Chega meu ponto de descida: Praça rui Barbosa. Em uma pequena

caminhada chegaria a meu destino: a Agência de Inovação da

UTFPR. Ao chegar na esquina da quadra, onde fica o campus da

UTFPR, ao invés de caminhar para a entrada da Sete de Setembro,

decido continuar pela Desembargador Westphalen. Em minha

imaginação, havia entradas para o campus nos quatro lados do

quadrilátero que a UTFPR ocupa. Me enganei. Viro na Silva Jardim,

no meio da quadra, entrada fechada. Viro na Marechal Floriano,

entrada fechada. Parecia um perdido! Viro na Sete de Setembro e

chego na entrada que estava a menos de vinte metros da primeira

esquina onde comecei meu périplo.

Ao me informar no guichê com um atendente, descubro que a

Agência de Inovação da UTFPR fica na Desembargador Westphalen.

Havia passado por ela, vindo do tubo Praça Rui Barbosa. Nem

percebi! Será que a gorda do Tarô de Marselha teve algo a ver com

isso?

Nessa hora, lembrei-me do que meu pai dizia, ou será que era meu

avô:

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No creo en las brujas pero que las hay, las hay!

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Textos Breves

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O GPS DO SEXO

(Uma pequena distopia enquanto viajo de Florianópolis a

Curitiba)

m um pequeno planeta, em alguma parte da Via Láctea,

nas proximidades de uma estrela muito brilhante, vive um

povo que perdeu a voz. Há não muito tempo, eram mais de

seis bilhões de seres vivos, que falavam centenas de línguas,

distribuídos por quase o mesmo número de tribos. No meio dessa

confusão de vozes, ao longo dos séculos, foram criando formas de

comunicação entre si e entre as tribos. São seres muito criativos.

A capacidade da fala que a voz permitia permeava muitos hábitos

desse povo. Entre estes, havia um que era muito apreciado: o sexo.

Era muito praticado por todos desde muito cedo em suas vidas. No

entanto, chegava uma certa idade que se tornava uma prática mais

difícil, quase impossível, para alguns desses seres, os chamados

"machos". Para outros seres, as chamadas "fêmeas", o problema

também ocorria, embora fosse menos visível.

Felizmente, a evolução científica e tecnológica desse povo era

fantástica. Fazia coisas chamadas de "inovação" que até Deus

duvidava! Os cientistas acabaram inventando uma pílula azul que

ingerida permitia a prática do sexo para os machos em uma idade

bem avançada. Ela resolvia um problema mecânico muito visível.

Parece que tinha a ver com a dinâmica de um fluído interno. Mas,

não estou bem certo. Para as fêmeas também havia inovações que

facilitavam a prática do sexo.

Independente dessas inovações, para o sexo acontecer era

necessária outra prática: a conversa. Às vezes longa, muito longa!

Outras vezes breve, brevíssima até! Tipo:

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Textos Breves

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_ Vamos?

_ Sim. No meu ou no seu?

O sexo, precedido da conversa, acontecia entre fêmeas, entre

machos e entre machos e fêmeas. Podia ser praticado solitariamente,

mas isso era mais comum entre os seres mais jovens. Tinha várias

funções: manifestação de amor; saciedade de desejo; passatempo;

aquecer no frio; entre outros. Quando feito entre uma fêmea e um

macho podia ter outra função, planejada ou não, a reprodução.

Depois de trinta e seis semanas, um ou mais seres saíam do ventre

das fêmeas. Eram um povo feliz!

Houve um tempo que duas inovações surgiram quase que ao mesmo

tempo: um equipamento e uma nova forma de comunicação. Eram o

smartphone e as redes sociais. Todo mundo tinha um smartphone que

era usado para se comunicar nas redes sociais. Estas também eram

usadas em outro equipamento, o computador. Mas, o smartphone era

o preferido, pois era bem mais portátil.

Nas redes sociais, fêmeas e machos podiam se comunicar muito

facilmente. Não precisavam da voz. Usavam dedos para digitar

mensagens. No começo isto era feito para se comunicar com seres

que estavam muito distantes. Mas, o uso dos smartphones e redes

sociais era tão prazeroso que os seres desse planeta passaram a

usá-los mesmo com outros que estavam perto, por exemplo, em uma

mesa de bar. Aliás ir a um bar era outra prática que usava muito a

voz. Às vezes, juntava-se à conversa, nos momentos que antecediam o

sexo.

As inovações eram vistas por esse povo como algo que só trazia

resultados positivos. Ledo engano! No caso do smartphone e das

redes sociais, as coisas não acabaram bem. Aos poucos, com o

passar dos anos, esse povo foi perdendo o dom da fala que permitia

a prática da conversa. Daí foi um pulo para o sumiço da voz.

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Textos Breves

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Mas, esse povo é criativo! Os cientistas e engenheiros estão fazendo

adaptações em uma inovação que ajuda esse povo a se deslocar nas

ruas e estradas do planeta. É um tal de GPS. Ele vai dando

instruções, por meio de uma voz sem corpo, como chegar de um ponto

de partida a qualquer destino. A voz sem corpo pode soar como uma

fêmea ou um macho. Genial! A adaptação poderá ser usada nos

smartphones. Por enquanto só conseguiram reproduzir conversas bem

elementares, do tipo:

_ Vamos?

_ Sim. No meu ou no seu?

É pouco ainda. Mas já é uma esperança para resolver a queda na

população desses seres. Será que escaparão da extinção?

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Textos Breves

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A GUARDIÃ DA MEMÓRIA E O DEUS DO TEMPO

(Uma homenagem a minha mãe)

m 17 de janeiro de 2008, Silvana Leão escreveu uma

reportagem na Folha de Londrina. Nela, relatou o trabalho

de registro da história familiar e da cidade onde meus

irmãos e eu nascemos, Londrina, que minha mãe Kilda fez ao

longo de mais de 40 anos. Silvana Leão, deu à reportagem

o título "Kilda, uma guardiã da memória".

Nesta reportagem, a jornalista relata o trabalho que minha mãe teve

de montar álbuns com registros jornalísticos e fotográficos de

inúmeros momentos da vida de cada um dos filhos, de seus ancestrais

e das famílias Prado e Gimenez. Foram dezenas de registros

personalizados, em formato de biografias, e inúmeros álbuns com

recortes de jornais. Um dos mais significativos foi o que fez sobre a

história do Colégio Londrinense, do qual fez parte da primeira turma

de ginásio. Neste colégio, meus irmãos e eu também fizemos nossa

formação escolar nos antigos primário e ginásio.

Mas, o que Silvana Leão não podia imaginar é que, ao dar a uma

simples mortal o título de guardiã da memória estava desafiando o

deus do tempo, o velho Cronos. Este, aparentemente adormecido,

ficou furioso ao ver a ousadia de uma mera humana querer usurpar

suas funções. As notícias sobre a repercussão da reportagem

chegaram rápido, levadas pelos ventos, a comando de Éolo. Cronos

ficou furioso e, vingativo como todos os deuses, disse:

_ Essa atrevida não perde por esperar! Não tenho pressa, mas um

dia ela vai ver o que lhe está reservado.

Realmente, Cronos, assim como todos os deuses, é imortal, portanto

não tem pressa, e impiedoso. Ficou aguardando o momento em que

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Textos Breves

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poderia agir. Esse dia demorou quase sete anos e meio. O que para

nós mortais parece muito, para Cronos foi como um segundo.

Kilda, em julho desse ano, adoeceu. Passou quase trinta dias em uma

UTI hospitalar. Foi o momento para o vingativo deus do tempo

preparar sua vingança. A cada dia na UTI, Kilda parecia perder sua

memória. Quando finalmente conseguiu se restabelecer, parecia que

havia esquecido tudo. A guardiã da memória havia perdido a sua

memória?

Não! Cronos é um deus mais sofisticado. Esta vingança seria muito

simples. Ele queria algo mais impactante. Dar uma lição aos humanos:

_ Ninguém pode querer ser guardião ou guardiã da memória! Vivia

exclamando isso por todos os cantos do Olimpo.

Cronos foi ardiloso. Enquanto Kilda estava semiconsciente na UTI, ele

fez o seu jogo de cartas. As memórias de Kilda, assim como as

nossas, ficam guardadas em fichas que se parecem com cartas de

baralho. Mas, nosso baralho mental tem muito mais que quatro

naipes. São quase infinitos, pois há um naipe para cada tipo de

emoção que vivenciamos. A cada experiência vivida, vamos

acumulando cartas com o mesmo naipe em cantos distintos de nosso

cérebro.

Cronos sempre soube disso. Poderoso, aproveitou-se do descuido de

Kilda e embaralhou todas as cartas de seu cérebro. Quando ela saiu

da UTI, já não tinha mais como saber os naipes corretos de cada

vivência em seus 89 anos. Começou a misturar tudo!

Mas, Cronos foi tapeado! Kilda, uma mulher precavida, ao ver o

título que recebera naquele dia em 2008, lembrou-se de seus

estudos da mitologia grega. Desde aquele dia, sabia que alguma

coisa poderia lhe acontecer. Temia a ira de Cronos. Se preparou

para ela.

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Textos Breves

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Nesses sete anos e meio, sempre que podia, me contava muitas

histórias. E, sempre as repetia. Muitas e muitas vezes me contou

histórias que já tinha me narrado em outras ocasiões. Eu não entendia

por que ela assim o fazia.

Mas, agora eu sei. Hoje, ela me contou algumas histórias, mas graças

às artimanhas de Cronos, elas saíram de seus lábios totalmente

embaralhadas. Fragmentos de vida, de diferentes momentos,

misturados como se tivessem ocorrido ao mesmo tempo. Como se

todos tivessem o mesmo naipe.

Eu, pacientemente fui separando os fragmentos e juntando aqueles

que tinham os mesmos naipes. Era como se montasse alguns quebra-

cabeças ao mesmo tempo! Os fragmentos, com seus naipes corretos,

estão em minha memória.

Me dei conta do que minha mãe fizera. Ao longo dos últimos anos foi

me preparando para continuar o embate com Cronos. Cronos, essa

criação humana, pensa que é mais ardilosa do que nós humanos.

Dona Kilda deu uma lição a ele. A criatura jamais é mais poderosa

que aqueles que a criaram.

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Textos Breves

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CORAÇÃO PASSAGEIRO

o voo havia um coração a mais. De Londrina para Curitiba,

além de passageiros e tripulação, viajava solitário um

coração. Ia em busca de um novo corpo. Já tinha cumprido

uma missão e destinava-se para outra. Não sei quanto

durou a primeira. Mas que seja longeva a segunda!

Graças a esse passageiro singular nosso voo foi mais rápido do que

o usual. Vou chegar mais cedo em casa.

Veja só coração passageiro, sua viagem trouxe pequenas alegrias a

mais de uma centena de passageiros que compartilharam o privilégio

de sua companhia. Muito maior será a alegria que você causará

quando chegar a seu destino.

Pois é, fiquei pensando nisso. Na vida, nem sempre conseguimos

causar um impacto tão grande quanto o seu. Mas, me conforto ao

pensar que ao longo dos anos, talvez, tenha ajudado alguns a

chegarem mais cedo em casa. Pequenas alegrias! Para as grandes

ainda não estou preparado. Será que estarei um dia?

Foi só uma pergunta retórica. A resposta não importa. O que importa

é a jornada. Um longo caminho de descobertas. Que meu coração

permaneça junto a mim por muito tempo! Ele não poderá servir a

outro. Judiei muito dele! Se não me deixar será uma grande alegria.

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Textos Breves

52

NO HOSPITAL

nquanto uns geram cálculos, outros geram vida. Eu, mais uma

vez, na sala de pronto atendimento de um hospital com

Buscopan na veia. Crise de cólica renal novamente. Ao meu

lado, Débora, uma jovem mulher, é informada que será

mãe. Ela diz que será o segundo. Depois do susto, um

sorriso! O acaso me privilegia com momentos únicos. Foi um sorriso

contagiante! A dor já vai extinguindo com o auxílio do Buscopan. O

sorriso vai se expandindo em meu rosto. Graças a Débora!

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Textos Breves

53

QUANDO CHOREI AO VER A BELEZA

eleza é algo indefinível para mim. Se alguém me pedisse

para descrever o que é o belo, creio que não seria capaz

de fazê-lo. Nas mitologias teve deuses e deusas. É muito

provável que já tenha sido objeto de definição pelos

filósofos. Mas, há algumas coisas que não me interessam

saber como a Filosofia as explica. A felicidade, a tristeza, o desejo,

o prazer e a dor não física são algumas delas. São coisas que só

fazem sentido ao serem sentidas, qualquer discurso fica muito aquém

do que sinto. Assim é com a beleza. Não sei dizer o que é, mas tenho

certeza sobre o que é, quando se revela para mim. Basta ser sentida.

Não precisa de explicação.

Ontem fui ao cinema. O filme que assisti foi 8½ de Fellini, produção

de 1963, que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro. Filmado

totalmente em preto e branco, o filme começa com um extemporâneo

engarrafamento de trânsito em que vemos um homem desesperado,

tentando sair do interior de um carro. Não consigo imaginar um

congestionamento de trânsito acontecendo 50 anos atrás. Será que

já existiam?

É muito provável que já tenha assistido esse filme no passado. Os

momentos iniciais do filme me pareciam familiares. Mas, não me

lembrava da trama toda. Marcello Mastroianni vive o personagem

principal, um famoso diretor de cinema, que está envolvido na

realização de mais um filme, em meio a uma crise criativa. A maior

parte da história ocorre em uma estação de águas, e ao longo da

trama, somos expostos a flash-backs e sonhos do personagem

principal. É em 8½ que Fellini nos traz Saraghina, uma memorável

prostituta gorda que vai surgir nas cenas de um flashback sobre a

infância do protagonista. Ela é interpretada por Eddra Gale.

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Textos Breves

54

Logo nos primeiros momentos fui sentindo um encantamento com as

imagens que iam se desenrolando à minha frente. Eram incrivelmente

belas. Em determinado momento, na estação de águas, surge um

adivinho acompanhado de uma velha senhora que é capaz de dizer

os pensamentos das pessoas. Ao verem que ela sempre acerta,

muitos se levantam e começam a ir embora, provavelmente fugindo

do possível constrangimento da revelação de algum pensamento

inadequado. Mas, o personagem de Mastroianni, Guido, se dispõe a

passar pela experiência. A velha senhora, não consegue explicar o

pensamento de Guido, mas escreve uma frase que Guido confirma

que era o que pensara.

Neste momento, um flash-back nos leva à infância de Guido. É nesse

trecho do filme que surgirá, depois de algum tempo, a cena de

Saraghina com os meninos. Incrivelmente tocante. Com o desenrolar

desse flash-back, que não tinha nada de especialmente emocionante,

sinto meus olhos marejarem. A Beleza do filme que me enfeitiçara

desde os primeiros momentos, parecia causar algo dentro de mim,

que já não podia ficar preso dento de meu corpo. Foi na forma de

lágrimas que meu corpo reagiu a essa poderosa ideia. Não sei

descrever o que vi, mas tenho certeza que foi a Beleza.

Mas, parece que esse é um fim de semana em que a Beleza teima

em se mostrar. Ontem à noite comecei a ler A Flecha de Ouro de

Joseph Conrad, uma grande aventura que, a se acreditar na

introdução, é inspirado em uma história real vivida pelo autor no fim

dos anos 70 do século XIX. Conrad é o autor também de Coração

das Trevas que foi adaptado para o cinema por Francis Ford

Coppola no filme Apocalipse Now, em 1979, com Marlon Brando

como protagonista. Mas, voltando à Flecha de Ouro, ao despertar

hoje pela manhã dou continuidade à leitura e descubro que Doña

Rita, uma personagem central nessa trama que começa a me

prender, tinha sido uma mulher muito bela. Passeando na companhia

de seu descobridor, a cavalo, pelo Bois de Bologne em Paris, eles

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Textos Breves

55

encontram um velho escultor, Doyen, que logo após as primeiras

palavras pede que Doña Rita olhe bem para os seus olhos. Os olhos

do velho escultor se encheram de lágrimas.

Mais uma vez, parece que a Beleza causara o extravasamento da

emoção em forma de lágrimas. Assim como o velho Doyen, só posso

dizer que vi a Beleza ontem. Não me peça para explicá-la. Quando

você a ver saberá!

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Textos Breves

56

CRACA DE LEITE

em coisas que grudam na gente. São que nem craca de leite

que vai se pegando na vasilha onde é fervido. Lava-se,

lava-se, lava-se... Quando você pensa que conseguiu tirar

tudo, enxágua a vasilha e pronto! Que nada! Ainda tem

vestígio dela. Mais umas esfregadas. Pode ser que agora

tenha saído, mas se a vista falha, alguma marquinha ficou.

Nossa vida é longa. Graças aos avanços da medicina, cada vez mais

longa. Nascemos enrugados, mas, aparentemente, sem marcas

definitivas. Logo depois do parto, após o primeiro banho, estamos

limpinhos. Prontos para enfrentar os anos que vêm pela frente. De

pele e mente preparadas para aquilo que o destino vai tentar

grudar em nós. No meu caso, me aproximo dos 58 anos. Parece

muito, mas ainda não me dei por satisfeito. Apesar de tantas cracas

que tive que ir limpando, areando da vida, quero mais. Preciso de

mais!

Ontem recebi pelo Facebook um link que me levou aos meus vinte

anos. Uma viagem no tempo com a ajuda da memória coletiva.

Quem me conhece, sabe que desde a adolescência, ir ao cinema faz

parte de meu modo de entender o mundo. Ainda criança, troquei as

idas dominicais à igreja pelas matinês do Cine Augustus da Londrina

do final dos anos 60 e começo dos 70 do século passado. Hoje,

depois de tantos anos, me dou conta que troquei uma fantasia por

outra. A religião não me motivava, mas as idas ao cinema mexiam

comigo. Me faziam pensar.

Muitas marcas surgiram nas salas escuras dos cinemas de minha vida.

O primeiro exercício de autonomia, ainda criança ir sozinho ao

cinema; a primeira namorada, que depois se tornou minha esposa,

Telma, mãe de Paloma e Fernanda. Hoje somos bons amigos. Ver

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Textos Breves

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1900, de Bertolucci, e depois refletir sobre o filme para escrever um

trabalho da disciplina de sociologia. Terezinha Giovenazzi, irmã do

ator Edney Giovenazzi, foi a professora que causou esta marca! Me

dou conta hoje que deveria ter agradecido a ela a tarefa tão

inspiradora! Uma boa craca que ajudou a tornar o cinema parte de

meu modo de compreender o mundo e a vida.

O primeiro filme pornô, depois que acabou a censura no Brasil. O

desejo por Dina Sfat (Macunaíma), Lilian Lemertz (Lição de Amor) e

Helena Ramos (Mulher Objeto) que brilhavam nos filmes brasileiros

de minha juventude! Teve também a Vera Fischer (Amor, Estranho

Amor), mas dessa a Sara não gosta muito que eu fale. Não sei por

que? As emoções dos filmes de Chaplin, as lágrimas inevitáveis em

alguns dramalhões. A raiva com algumas porcarias.

Se você ainda não adivinhou, o link que recebi tem a ver com o

cinema. É claro! É a digitalização das edições da Revista Cinema em

CloseUp, publicada entre 1975 e 1979

(http://portalbrasileirodecinema.com.br/cinemaemclose…/indice).

Documento histórico de valor inestimável que me fez lembrar muitas

idas ao cinema. Esse é um tipo de craca que não quis nunca limpar!

Muitos dos filmes que estão retratados nas edições da Cinema em

Closeup fazem parte de minha trajetória pelo mundo das imagens e

significados. Algum amigo mais sacana, vai dizer que chegaram a

deixar calos nas mãos! Mas, não é só por isso...

Comecei esse texto, com um tom sombrio! Parecia que ia falar de

coisas negativas, pois afinal, craca tem um som meio ruim, agressivo,

não? Mas, as cracas que machucam, que doem, acabaram ficando de

lado neste texto. Elas existem, mas estão em algum cantinho onde

passam desapercebidas. Me ajudaram a compreender o mundo, mas

deixa elas pra lá! O melhor é poder lembrar de cracas que, apesar

dos esfregões da vida, conseguiram deixar sua boa marca na minha

história. Vida longa a todos!

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Textos Breves

58

SOLIDÃO E ESPERANÇA EM MEDIANERAS DE GUSTAVO TARETTO

WEB, além de ser um avanço tecnológico do qual o

cinema se apropria, tem sido também objeto presente na

narrativa fílmica, caracterizando uma tendência do cinema

contemporâneo. As redes sociais e os diferentes

mecanismos de interconectividade permitidos pela web

foram incorporadas na trama de alguns filmes. Por exemplo,

Mensagem para você, dirigido por Nora Ephron e lançado em 1999,

é um filme no qual os dois personagens principais vividos por Meg

Ryan e Tom Hanks se conhecem primeiro por meio da troca de

mensagens pela WEB. Outro filme, mais recente que tem a WEB

como parte integrante da narrativa é Rede Social que conta a

história da criação do FACEBOOK. Esse filme foi lançado em 2010,

com direção de David Fincher. Em 2011, Medianeras de Gustavo

Taretto retorna ao uso da WEB como meio de conexão entre um

homem e uma mulher jovens e solitários. Com uma estrutura narrativa

muito parecida com a de Mensagem para Você, o filme de Taretto

tem um ritmo mais acelerado e espirito crítico que o tornam muito

superior ao de Nora Ephron que se caracteriza basicamente como

uma comédia romântica.

O filme de Gustavo Taretto, lançado no Brasil em 2011, foi chamado

de Medianeras: Buenos Aires na época do amor virtual. Estrelado por

Javier Drolas e Pilar López de Ayala, Martin e Mariana,

respectivamente, o filme se passa em Buenos Aires e retrata o

cotidiano solitário de dois jovens que não se conhecem, mas se

comunicam pela WEB. A sinopse do filme conta:

Martin é um fóbico que está em vias de recuperação. Aos poucos vai

saindo de sua reclusão em uma quitinete e abandonando seu vício pelo

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Textos Breves

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mundo virtual. Mariana, recém-separada, tem a cabeça tão bagunçada

quanto o apartamento em que se refugia. Deveriam conhecer-se ou

não? Como podem ser encontrar em uma cidade superpovoada e

caótica como Buenos Aires? Medianeras (Paredes laterais). O mesmo

que os separa é o mesmo que os une.

(http://www.medianeras.com/historia.php).

O próprio diretor relata que Medianeras resultou de um conjunto de

ideias que surgiram de suas observações e curiosidade por entender

Buenos Aires e aos que vivem nestes dias. Para ele, Medianeras é

uma fábula urbana, uma construção artificial e graciosa sobre a vida

moderna. Com uma forte relação com a arquitetura, segundo Taretto,

o filme foi construído em quatro pilares.

O primeiro pilar é uma reflexão sobre a Buenos Aires que vai sendo

construída pelos seus habitantes de forma caótica, imprevisível,

contraditória, luminosa, empobrecida, hostil, mas ainda assim

atraente. O segundo pilar é composto pela solidão urbana e neurose

coletiva. Pessoas que convivem em prédios, no entanto, sentem-se

sozinhas. Pessoas indiferentes com as demais que lotam um vagão de

metrô. São fonte de inquietação uns para os outros. O terceiro pilar,

segundo Taretto, trata da incomunicabilidade. Apesar de tanta

tecnologia cujo objetivo é nos conectar, mas falham nesse objetivo. As

pessoas preferem fazer pedidos de entregas ao telefone ao invés de

se reunir com amigos. Nossa vida é uma armadilha da modernidade

que nos deixa cômodos e isolados. Por fim, o quarto pilar é o dos

encontros e desencontros. Para Taretto, é a busca do amor que é

custoso de encontrar. É difícil encontrar a peça que se encaixe de

modo a permitir que a vida se complete e funcione

(http://www.medianeras.com/historia.php).

Nessa arquitetura baseada em quatro pilares, Taretto faz bom uso

do espaço-tempo cinematográfico. O filme começa com uma

narração superposta a uma série de fotografias de Buenos Aires. A

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Textos Breves

60

história é narrada, após a apresentação das duas personagens

centrais, em três momentos, baseados em estações do ano: um outono

curto, um inverno longo, e a primavera enfim. O filme trata de forma

bem-humorada e delicada, as buscas típicas de jovens em nossa

sociedade contemporânea, mas com ênfase na busca pelo outro,

metaforicamente representada pela busca de Wally, em "Onde está

Wally?"

Na mitologia grega encontra-se a estória da Caixa de Pandora.

Júpiter andava às turras com Prometeu que havia modelado o

primeiro homem de barro, além de ter dado aos humanos o acesso

ao fogo. Assim, certo dia, Júpiter pediu que Vulcano, junto com

Minerva, sua mulher, criassem uma companhia para o homem. Os dois

criaram Pandora, uma linda mulher, que era quase tão bela quanto

a mais bela das deusas. Júpiter ficou muito satisfeito com a criação

de Minerva e Vulcano. Em seguida a despachou para o reino dos

mortais com um presente em sinal de seu apreço pelos humanos: uma

caixa ricamente enfeitada com ouro e prata. Mas era um engodo.

Júpiter avisou que Pandora não deveria abrir a caixa nunca.

Pandora e a caixa chegaram até Epimeteu, que era o irmão humano

de Prometeu e este ficou impressionado com ambas. Levou Pandora e

a caixa para seu quarto. Pandora adormeceu e sonhou que abrira a

caixa e dela saíram somente coisas belas. Quando acordou não

resistiu, abriu a caixa. Da caixa escaparam a Doença, a Gula, a

Inveja, a Avareza, a Arrogância, a Crueldade, o Egoísmo. Ou seja,

Júpiter usou Pandora para castigar os humanos enviando todas as

maldades e vilanias que tornam nossa vida desagradável. Mas nem

tudo estava perdido, em certo momento Pandora conseguiu fechar

novamente a caixa e pensou que nada havia sobrado dentro dela.

Olhando mais uma vez viu um rosto muito belo e jovem, que Pandora

descobriu ser a Esperança.

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Textos Breves

61

Medianeras, como se disse acima, retrata dois jovens, Mariana e

Martin, que não se conhecem pessoalmente, cada um com sua vida

solitária, até o encontro entre eles. O retrato que Taretto faz da vida

em Buenos Aires lembra um pouco a Caixa de Pandora. Uma

arquitetura opressora que leva as pessoas a se isolarem cada vez

mais. A falta de comunicação é uma constante. Um ritmo acelerado

de vida impede que as pessoas tenham chance de efetivamente se

encontrar. Mariana e Martin representam a juventude de nossa

sociedade contemporânea que parece não ter possibilidade de

construir um futuro profissional e afetivo. O contato humano é

intermediado por artefatos tecnológicos que dão uma falsa

impressão de proximidade. Estamos sozinhos na multidão. Fobias e

psicoses estão presentes na vida desses jovens. Isso lembra as

maldades e vilanias que escaparam da Caixa de Pandora e

continuam a atormentar os humanos.

Mas, há uma esperança. Mariana continua a sua busca da felicidade.

A esperança não escapou da Caixa de Pandora. Mariana continua

buscando Wally na cidade. No dia em que ambos se rebelam e

abrem janelas para o mundo nas paredes laterais de seus prédios,

as medianeras, é como se os dois começassem a encontrar a porta de

saída de seus mundos reclusos. Mariana olha para a rua e enxerga

Wally (Martin). Corre em disparada para alcançá-lo. Na pressa,

deixa para trás sua fobia de elevadores. A busca da felicidade,

inspirada na esperança, não lhe dá tempo de temer. A solidão não é

inescapável!

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Textos Breves

62

A MENINA DE OLHOS AZUIS

la tinha olhos azuis. Muito claros. Não parecia ter mais que

dez anos. Mas, quanto a isso não podemos ter certeza.

Sempre fui muito ruim em estimar a idade das pessoas.

Jovens, criança, maduros, ou já na terceira idade, não

importa. Sempre que tenho que dar um palpite, há uma

grande chance de errar.

Nesse caso, porém, talvez não estivesse tão errado. Vamos dizer que

estivesse entre nove e onze anos. Ainda criança. Seus olhos azuis,

claros, muito claros, lhe davam um encanto especial. Os cabelos eram

loiros, quase brancos. Não é muito poético, mas diria que eram da

cor daquelas espigas de milho verde, quase brancas. Se bem que

Cora Coralina já escreveu o poema do milho. Uma coisa linda!

Olhou para mim como se me conhecesse. Estava sentada em um

banco no Bosque do Papa. Sozinha. Perto dos brinquedos, ao lado

das barras onde alguns jovens se alongavam. Eu estava começando

minha caminhada. Mas, aquela visão me incomodou. Ao me olhar,

sorrira de forma estranha, como se estivesse espantada em me ver.

Suas pernas balançavam entre o assento e o gramado.

Comecei a caminhar no sentido anti-horário. Sempre faço isto. Me

iludo fingindo que, a cada volta, no sentido anti-horário, retorno um

pouco no tempo. Assim, brinco de ficar mais jovem. Ao término da

primeira volta, a menina ainda estava lá. Me pareceu menor. Mas,

não dei importância. Na segunda e terceira voltas, ela saíra do

banco. Brincava no escorregador. Mas, na quarta volta, a vi tentando

subir no banco. Estava bem menor, como se tivesse seis anos de

idade. Não conseguia subir.

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Textos Breves

63

Será que eu estava fazendo o tempo voltar para trás? Olhei ao meu

redor, havia um grupo de crianças brincando na gangorra e nos

balanços. Pareciam-se com os jovens que se alongavam quando

comecei minha caminhada.

Como um maluco, corri quatro voltas no sentido horário. Queria

reverter o que havia feito com aqueles jovens e a menina de olhos

azuis. Acordei em uma cama de hospital. Tive a nítida impressão de

ver no teto, rapidamente, a menina com olhos azuis claros e cabelos

quase brancos. Tinha um sorriso maroto nos lábios. Fechei os olhos e

tentei dormir mais um pouco. Ninguém me vira acordar. Quem sabe

eu sonhasse com uma história menos inacreditável quando tivesse que

relatar o que aconteceu comigo no Bosque do Papa. Quem é que

acreditaria no que me aconteceu?

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Textos Breves

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O ACOMPANHANTE SURDO MUDO

á muito tempo ela queria experimentar. Algumas amigas já

tinham feito. Assim como ela, todas tinham entre 50 e 55

anos de idade. Passavam a temporada no litoral

paranaense. Entre o Natal e o Carnaval seriam quase 60

dias. Ela ficava sozinha entre segunda de manhã e sexta à

tarde. Os filhos, Eduarda e Jorge, já haviam retornado para suas

casas com os netos. Os dois eram sócios de uma pequena empresa

de confecções no interior de São Paulo. Tinham vindo só para as

festividades de fim de ano. O marido, executivo de uma grande

empresa em Curitiba, passava a semana no escritório da empresa.

Naquele fim de semana, ele avisou que não viria. A empresa recebia

uma comitiva da China e ele ficara incumbido de ciceroneá-la. Era

uma negociação importante. Ele poderia até receber uma promoção

se o negócio fosse fechado.

Foi a oportunidade que ela teve. Ficaria quase dez dias sem ver o

marido. Como diz o velho ditado, a ocasião faz o ladrão. Tomou

coragem e fez uma busca no google: acompanhante masculino litoral

Paraná. Entre as muitas opções, achou aquele que as amigas haviam

comentado: Vipscorts - sofisticação e satisfação juntas.

A vantagem desse serviço estava na forma de negociação:

atendimento on line. Nervosa, mas decidida, percorreu o menu de

escolha. Sua atenção foi atraída pela foto de Johny e a frase

abaixo dela: Carinhoso e discreto. Muita ação e pouco papo.

Tentou o chat com ele. Estava on line. Depois de algum tempo,

combinaram de se encontrar. Ela o pegaria em frente a um

supermercado, no caminho do ferry-boat. Iriam a um motel. Embora

estivesse sozinha no apartamento, preferiu não arriscar.

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Textos Breves

65

Ao chegar no local do encontro, ela o viu. Parecia um pouco mais

velho e mais gordo, mas ainda assim atraente. Ela lembrou do

marido e hesitou um pouco. Deu uma volta na quadra. Estava

decidida. Precisava dessa experiência. Todas as amigas já tinham

feito. Parou o carro, abriu a porta e perguntou:

_ Johny?

Ele apenas sorriu e entrou no carro. Ela ficou em silêncio. Não sabia o

que dizer. Dirigiu até o motel. Na portaria pediu uma suíte master

com hidromassagem. Ao entrarem, Johny a abraçou, começou a

beijá-la, ao mesmo tempo em que tentava desnudá-la. Nesse

momento, ela quis conversar um pouco:

_ Calma, vamos conversar um pouco. Beber alguma coisa.

Johny apontou para os ouvidos, abriu a boca, não emitiu nenhum

som. Sorriu. Ela entendeu. Seria muita ação e pouco papo. Aliás

nenhum! Teria muito pra contar para as amigas no dia seguinte.

Johny foi fiel ao lema.

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Textos Breves

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DESMEMÓRIA

uando queria contar algo e não lembrava, inventava. A

primeira vez que isso aconteceu, tinha pouco mais de trinta

anos. Falava com um grupo de amigos em um bar na

esquina da Alagoas com a Antonina, atual JK, em

Londrina. A conversa era sobre conquistas quase

amorosas. Ou sendo menos sutil, sexuais mesmo. Naquela época

ainda não existia o ficar. Assim, o investimento de tempo em uma

conquista exigia algum esforço. Não era tão fácil como hoje.

Quando começou a contar, esqueceu com quem tinha saído. Na hora

deu aquele branco. Não lembrava de mais nada. Mas, conseguiu

disfarçar bem, forçando uma tosse quando o nome que queria

lembrar não veio à boca. Rapidamente, falou:

_ Saí com a Vanessa a semana passada. Lembram-se dela?

Ninguém lembrava de nenhuma Vanessa.

_ Pô pessoal, aquela loirinha que gostava de falar de mecânica de

carro no colégio. Ela sabia mais de carro do que qualquer um de nós.

Os amigos continuaram dizendo que não se lembravam. Aí não tinha

mais jeito. Continuou inventando. Disse que levou a ex-colega de

colégio para um motel. Tinham se encontrado na saída da missa das

dez horas do último domingo. Foi na igreja da Belo Horizonte, onde

todo mundo tinha feito as aulas de catecismo e primeira comunhão.

Ela estava de preto. Viúva. O marido havia morrido em um acidente

de ônibus voltando de São Paulo para Londrina. Seis meses de luto.

Chamou ela para almoçar. Ela aceitou sem titubear. Foram em uma

churrascaria no centro. Ainda bem que não encontraram nenhum

conhecido. De repente, na hora do cafezinho, ela disparou:

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Textos Breves

67

_ Sempre prestei atenção em você no colégio. Mas, você sempre foi

tão tímido.

Aproveitou a deixa:

_ Eu também tinha um tesão por você. Como eu não entendia nada

de carro, não sabia como puxar conversa com você. Você só falava

de carro e mecânica.

Ela sorriu. Ele aproveitou e pegou na mão dela, dizendo:

_ Vamos fazer o que deveríamos ter feito há 15 anos?

Nessa altura da história, ele lembrou que tinha saído com a Lurdinha.

Que já tinha saído com quase todos. Mas que importa, a história com

a Vanessa estava muito boa. Arrematou:

_ Ficamos no motel até o meio-dia da segunda-feira. Não falamos

nenhum pouco de mecânica de carro.

Os amigos pediram a saideira. Foi para casa. Mais de onze horas

da noite. Deitou e dormiu logo. Tinha que ir bem cedo para o

trabalho na oficina do Tião. Sonhou com uma loira de preto. Acordou

melado. Na oficina, cuidava do escritório. Ainda não entendia nada

de carro.

Vinte anos depois, vai à missa das dez todo domingo. Não se

conforma de nunca mais ter encontrado a Vanessa. Nunca se

esqueceu daquele domingo.

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Textos Breves

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ROTINA

ndava se sentindo como Tom Baxter, aquele personagem

que sai de dentro de um filme para conhecer Cecília na

plateia de uma sala de cinema em A Rosa Púrpura do

Cairo de Woody Allen. Só não conseguia ver a plateia.

Sua vida era como um filme projetado todos os dias. Aos

sábados e domingos, era outra história. Mas que também se repetia.

Sempre igual.

No trabalho, a rotina era tão intensa que até suas escapadas para ir

ao banheiro ou fumar um pouco lá fora aconteciam todo os dias nas

mesmas horas. Sempre encontrava os mesmos colegas nesses dois

espaços. O telefone tocava sempre às dez e vinte e cinco. Do outro

lado da linha, o chefe:

_ Qual a posição das vendas de ontem?

_ Caíram mais um pouco.

_ Em que estamos errando.

_ Nada, é o mercado que está ruim. Respondia.

Na verdade, queria responder:

_ Não recebo para pensar. Esse é seu problema. Foda-se.

Mas, não tinha coragem. Precisava daquele salário. Sabia que, em

sua idade, próximo dos 60, não teria chance em outro lugar. Se não

bastasse a mesmice do trabalho, a ida para casa era cronometrada

também. Pegava o ônibus em frente à empresa às dezessete e

quarenta e três. Treze minutos após bater ponto. Descia no décimo

sétimo ponto, às dezoito e cinquenta e um. Desde que instalaram

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Textos Breves

69

aqueles relógios nos pontos de ônibus, começara a notar essa

regularidade.

Todo dia, ela embarcava no ônibus dois pontos após o seu. Descia,

às dezoito e vinte e sete, dois pontos antes do seu. Sempre com o

mesmo uniforme branco. Sorriam quando se viam frente a frente.

Ocupavam sempre os mesmos assentos. Em casa tinha sua rotina

também. Assim que entrava ligava a televisão, sempre no mesmo

canal. No quarto tirava a roupa, jogava sobre a cama, entrava no

banheiro, enquanto fazia suas necessidades lia a mesma revista. Por

último banhava-se. Esquentava alguma coisa para comer. Depois da

última novela ia dormir.

Aos sábados, acordava às nove horas. Dez e dezesseis, café e pão

com manteiga na padaria em frente. Ônibus para o centro, chopinho

no calçadão, almoço com amigos no Arrumadinho. Às dezesseis e

quinze chegava de volta à casa. Ia dormir depois da última novela.

Aos domingos, missa de manhã. Jóquei clube à tarde. Sua vida era

como o show da vida na tv. Sempre a mesma coisa.

Naquele dia estava sentindo uma angústia insuportável. Não

aguentava mais tanta rotina. Fez tudo como sempre no trabalho.

Quase disse um foda-se para o chefe. Respirou fundo e calou-se.

Aquele momento foi uma iluminação. Nunca respirara fundo no

trabalho. As coisas podiam ser diferentes. As dezessete e quarenta e

três entrou no ônibus em frente à empresa. No segundo ponto, desceu

e antes que ela subisse disse:

_ Vem comigo.

_ Por que? Ela perguntou surpresa.

_ Porque podemos. Você não assistiu A Rosa Púrpura do Cairo?

_ Vai subir? Perguntou o motorista. Ela hesitou, mas resolveu ficar. Ela

assistira A Rosa Púrpura do Cairo.

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Textos Breves

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PONTO DE VISTA E AMOR: EU OS POSSUO?

ssistindo Samba na Gamboa com Diogo Nogueira e um

grupo tocando Dorival Caymi. De repente começam a

cantar Ponto de Vista: "Do ponto de vista da Terra quem

gira é o Sol..."

Pego o tema para a escrevinhação de hoje. É muito provável que

este tenha sido objeto de reflexão de outros. Mas, como é ponto de

vista, por que não falar do meu? Assim como os de outros, é único.

Está entre as poucas coisas que são só minhas. Meu ponto de vista é

meu. Ninguém tasca! Eu vi primeiro.

Epa! Taí um olhar interessante. Do meu ponto de vista, o que é meu

mesmo? Além dele mesmo, acredito que poucas coisas sejam só

minhas. Aqui, espero que você já tenha suspeitado, não me interessa

falar das coisas materiais que, usualmente, digo que possuo. Livros, o

celular no qual escrevo, minhas roupas. Estas são transitoriamente

minhas. A qualquer momento podem deixar de ser. Seja por minha

vontade, de meus credores, ou por razões que não controlo, como os

amigos do alheio ou a morte. Sem querer parecer trágico, quando

morremos as propriedades cessam de existir. Ter essa consciência

ajuda na hora de se desfazer de coisas que gostamos tanto. Como,

por exemplo, aquela blusa de que gostava e Paloma um dia me

disse:

_ Pai, a partir de hoje é minha.

Será que posso juntar o amor ao ponto de vista no conjunto de coisas

só minhas? Ora, o amor! Esta coisa indefinível que dizemos sentir. O

amor que sinto não é meu. Ele só faz sentido quando o dou a outros.

Então, não é meu! Mas, e o amor que outros me dão. Não seria meu?

Também não. Ele só existe em fluxo. Eu preciso devolvê-lo para que

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Textos Breves

71

ele não pereça. Não é de ninguém e é de todos. Então, no meu ponto

de vista, o amor não está no conjunto de minhas propriedades. Assim,

é diferente do (meu) ponto de vista.

Se refletir bastante, conseguirei encontrar outras coisas não tangíveis

que posso dizer minhas. Mas, vou parar por aqui. Comecei esta

escrevinhação com essa intenção. Dizer das coisas que são minhas a

partir da lógica ou da razão. Mas, o amor se intrometeu no assunto,

e acabei trilhando os caminhos da emoção. Assim como o amor, outra

coisa que não é minha propriedade é o teor de meus textos quando

domina a emoção. Penso uma coisa e escrevo outra. É impressionante!

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Textos Breves

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A BERMUDA DO LONDRINENSE

ábado pela manhã. Sara e eu caminhamos pelo calçadão

de Londrina, após um expresso, um machiatto e um pão de

queijo em uma cafeteria. Entre a São Paulo e a Rio de

Janeiro, sentamos um pouco para apreciar o movimento.

Uma trilha sonora urbana nos acompanha: buzinas, passos,

vozes indistintas, risos de crianças, de vez em quando um choro.

Parecia até o ensaio de uma orquestra. Cada instrumento com seu

som, alguns graves, outros agudos. Há os mais salientes:

- Doutor, me dá vinte centavos pra uma pinguinha.

- Dois chips de celular por dez reais.

- Moça, vamos fazer um cartão hoje?

- Olha que beleza o oxigênio, você sabe quem criou? Diz um

pregador.

- Que cachorro mais lindo!

- Gostosa!

- Brasil mostra sua garra, diz alguém em um palanque.

- Me dá um dinheiro pra comida!

- Olha a estátua viva.

_ Mas, estátua se mexe?

_ É uma estátua dinâmica!

- Vamos por aqui que estou com pressa.

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Textos Breves

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- Mãe, é um desses que eu quero. Compra pra mim? Não enche

menino!

- De onde vem esse barulho? Está ouvindo? Pi, Pi, Pi, Pi.

_ É da estátua.

_ Será?

Essa diversidade de sons é acompanhada da diversidade humana.

Nossa! Como tem gente diferente no mundo! Mas, uma constância

chama minha atenção: a bermuda do londrinense. Todos os homens

que estavam de bermuda - meninos, velhos, jovens, maduros,

grisalhos, morenos, loiros, calvos, negros, pardos, brancos, altos,

baixos - tão diversos, mas semelhantes no comprimento da bermuda.

Sempre abaixo dos joelhos!

Sara sugere que eu faça uma contribuição para o artista da estátua.

Aproximo-me e leio o que estava escrito no pequeno cartaz afixado

ao tubo onde as moedas caindo adicionam mais um som à trilha

sonora matutina: "Sua contribuição mostra sua cultura e valoriza

minha arte"

Penso: Não tenho nenhuma bermuda que cubra meus joelhos. Preciso

comprar uma. Mas, acabou o verão! Fica para o ano que vem!

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Textos Breves

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CINEMA, FOTOGRAFIA E SUSTENTABILIDADE: DISTOPIAS SUAVES

ais uma vez uso o cinema e a fotografia para refletir. Por

iniciativa do Coletivo Atalante

(coletivoatalante.blogspot.com.br), na Cinemateca de

Curitiba foi exibido ontem o 4:44 Último dia na terra,

filme de Abel Ferrara lançado em 2011. De forma quase

serena, o filme narra a espera pelo extermínio da humanidade,

devido ao esgotamento quase que por completo da camada de

ozônio. Os cientistas previram que isto ocorreria às 4:44 de

determinado dia, e acompanhamos as últimas 14 horas vividas por

um casal – Cisco e Skye – interpretados por Williem Dafoe e Shanyn

Leigh. Não há pânico e nem violência nessa distopia suave que

Ferrara nos apresenta.

No mesmo espaço da Cinemateca, uma exposição fotográfica de

Rodolfo Massambone – Contenções – explora, assim como Abel

Ferrara, a relação entre homem e natureza. A exposição integra a

programação do FIDÉ Brasil 2015 – Festival Internacional do

Documentário Estudantil. Em suas fotografias, Massambone mostra a

resistência da natureza às contenções que o concreto armado, obra

humana, tenta lhe impor. Flores e árvores brotam de rachaduras e

espaços abertos no canal construído para domesticar o Rio Belém

que cruza a cidade de Curitiba. A rebeldia da natureza, persistindo

em sobrepujar as contenções humanas, na forma retratada pelo

fotógrafo, me leva a imaginar que suavemente, ao longo dos anos, a

natureza se imporá aos humanos.

A distopia suave de Ferrara e a fotografia de Massambone me

provocam. Fazem com que seja impossível para mim, não voltar ao

tema da sustentabilidade na literatura dos estudos organizacionais. É

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Textos Breves

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mesmo possível que teremos, no futuro, gestores capazes de levar a

humanidade a superar o desafio que diz respeito à harmonização de

objetivos sociais, ambientais e econômicos, baseando-nos no duplo

imperativo ético de solidariedade sincrônica com a geração atual e

de solidariedade diacrônica com as gerações futuras (VEIGA, 2008,

p. 171)?

Devo confessar que, no atual momento de minha trajetória, enxergo

essa possibilidade com ceticismo. Nossa sociedade ainda tem um

caráter egocêntrico e humanocentrico que torna muito difícil superar

as limitações de uma gestão organizacional orientada

prioritariamente pela maximização do lucro.

Nessa reflexão, nesse momento, me vem à memória, uma das

primeiras leituras que fiz sobre as questões ambientalistas, ainda à

época de meu doutoramento na Universidade de Manchester nos

anos 90 do século passado. Desde aquela época, costumava

frequentar sebos em busca de livros mais baratos. Em uma de minhas

viagens a Londres, encontrei dois livros de bolso de James Lovelock –

Gaia: a new look at life on Earth (1979) e The Ages of Gaia (1988).

É claro que não lembro de detalhes desses textos que li há mais de

trinta anos. Mas, uma impressão me ficou dessas leituras. A ideia de

que a Terra é um organismo vivo que se adapta à presença do

homem na sua superfície. Pode ser que ela sobreviva aos humanos. O

filme de Ferrara e as fotografias de Massambone me dizem que isto

é provável.

Nesse domingo em que o frio do outono curitibano nos força a buscar

outras fontes de calor, me apoio na Esperança. Espero que sejamos

capazes de sensibilizar nossos alunos de Administração para que não

façamos Gaia se livrar de nós. Vamos respeitá-la e continuar nossa

busca por um mundo sustentável, onde as dimensões ambiental e

social sejam prioritárias em relação ao lucro.

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Textos Breves

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VEIGA, J. E. da Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI.

3ª. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.

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Textos Breves

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NO AVIÃO: BREVE TEXTO SOBRE O EFÊMERO

ma coisa estranha. Sentir vontade de escrever durante um

voo entre Maringá e Curitiba. Espremido entre Sara e uma

adolescente gaúcha que faz um trabalho de história em

seu tablet. Como sei que é gaúcha?

Antes de decolarmos, ela se dirigiu a alguém na poltrona de trás.

Usou tu. Voo tem como destino final Porto Alegre. Não é preciso ser

nenhum Sherlock para deduzir sobre a gauchice da guria. Elementar,

meu caro Watson!

Mas, por que escrever? Ou para que? A escrita é um exercício diário.

Palavras se formam na tela do celular. Quero escrever sobre a vida

que é efêmera. Mas, a bateria do celular é mais ainda. Um alerta

surgiu na tela: bateria muito fraca!

Meu discurso tem que ser rápido. Aos cinquenta e oito percebo que

minhas poesias tratam de quem sou. Minha identidade se esgueira

nas linhas e entrelinhas.

A bateria é efêmera, mas mais longa que o voo. Sou interrompido

pela comissária de bordo:

_ Dentro de instantes aterrissaremos no aeroporto internacional

Afonso Pena em Curitiba (que é em São José dos Pinhais, isso ela não

disse), todos os aparelhos eletrônicos devem ser desligados.

Retomo o texto depois do pouso. Descubro algo mais efêmero que o

voo: minha memória! Esqueci porque comecei a escrever este texto.

Me perdoe!

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Textos Breves

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O PROTÉTICO QUE FAZIA PERMUTA

em sempre as coisas andam bem. Em momentos de

dificuldades econômicas há aqueles que acham maneiras

alternativas de vender seus serviços. Dema veio para

Londrina em meados da década de 70 do século 20. A

cidade recém completara quatro décadas de fundação.

Entre os anos 40 e 50, a cidade criou fama de um novo Eldorado.

Com base no ouro verde, o café, Londrina tornou-se rapidamente um

centro econômico no norte do Paraná.

A riqueza vinda, principalmente da agricultura, atraiu muita gente.

Esse movimento continuou pelos anos 60 e 70. Dema veio do interior

de São Paulo com esperança de tempos melhores. No começo foi

difícil, mas aos poucos foi ganhando reputação junto aos dentistas da

cidade. Passou a ser conhecido na cidade.

Londrina, como acontece com as regiões que se desenvolvem

rapidamente, estimulou também o comércio do sexo. Nos anos 50,

ficou famosa pelo grande movimento em seu pequeno aeroporto.

Nos finais de semana, os voos da Real traziam, além de passageiros

em viagens de negócios ou passeio, mulheres que vinham de São

Paulo e Rio de Janeiro para se prostituírem na zona local. Algumas

vezes, os fazendeiros ricos fretavam aviões para trazerem essas

profissionais do sexo. Algumas acabaram ficando por aqui, mas a

maioria ia embora na segunda-feira. Assim, nas imediações do

Estádio Vitorino Gonçalves Dias foi surgindo a zona de Londrina.

Por coincidência, Dema foi morar e trabalhar nessa região. Alugou

uma pequena casa que servia de moradia e laboratório de prótese.

Jovem e solteiro, naturalmente, sentia as premências do sexo. Aos

finais de semana, ia se aliviar em uma das inúmeras boates.

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Textos Breves

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Certa vez fez um programa com a Maria Polaca. Não pode deixar

de notar que ela estava com muitas falhas na arcada dentária.

Maria Polaca ria fácil e arreganhava a boca. Dema viu os dentes

que faltavam. Naqueles dias, andava curto de grana. Teve uma

ideia e propôs para a Maria Polaca uma permuta. Faria próteses

para melhorar sua dentição e ela, em troca, lhe prestaria os serviços

de sexo. Ela topou. Dema indicou um jovem dentista para Maria

Polaca. Ele fez as próteses e Maria Polaca pagou em serviços. Uma

permuta que deixou ambos satisfeitos.

Maria Polaca contou para as colegas. O serviço de Dema aumentou

bastante. Suas idas à zona também. Nunca mais pagou em dinheiro.

Só na base da permuta. Dizem que seu amigo dentista passou a

fazer o mesmo. Isso eu não posso confirmar. A história de Dema ouvi

dele mesmo. Outro dia reclamou que, nesses tempos modernos, com o

fechamento da zona, não há mais permutas. Se bem que ele já não

anda com essa corda toda.

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Textos Breves

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PRAIA

ac, pac, pac, pac, pac. O barulho tira minha atenção do

livro que leio na Prainha em São Francisco do Sul. Um casal

jogando frescobol. À distância, no mar, um barco de

pescadores é seguido por um bando de gaivotas. Ao

mesmo tempo, outro tanto de gaivotas sobrevoa a beira da

praia. Céu nublado. O mar, sempre em movimento, ecoa o título da

autobiografia de Oliver Wolf Sacks - Sempre em Movimento - minha

leitura momentaneamente abandonada. Trocada pela vontade de

escrever que me seduz. Escrevo, então.

Razão ou emoção? Qual delas será minha guia hoje? Impossível

saber antes que o texto se conclua. Meus textos têm vontade própria.

Não sou eu que coloco o ponto final. Este surge de repente. Eu,

apenas obedeço a sua vontade.

Às vezes, quero ir além. Esforço inútil. Talvez, em minha escrita, eu

prenuncie que também na vida, o ponto final não será uma escolha

própria. Minha escrita se assemelha à vida de mais uma forma. A

vida também não fui capaz de abreviá-la.

Alguns anos atrás, doente, pensei que daria a ela um ponto final.

Não queria ir além. Achava que já tinha tido o suficiente. Mas, na

hora agá, pedi socorro. Primeiro a Sara, depois a Paloma e

Fernanda, as filhas, depois Kilda, minha irmã. Não era a hora do

ponto final. Era a hora das reticências...

Muita coisa ainda por vir. Pac, pac, pac... Em um ritmo mais

acelerado, junta-se o som do vendedor de algodão doce ao

frescobol...

A vida ainda tem muito a me fazer ver e ouvir...

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Textos Breves

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FELICIDADE

uve a chuva. Cai devagar sobre o telhado. Vem

acompanhada da brisa. Suaves, as duas refrescam o

começo da noite de mais um sábado de verão.

Fecha os olhos. Divaga. Dez anos atrás estava do outro

lado do mundo. Enfrentava o inverno do hemisfério norte. Era a

primeira vez que via neve. Naquele momento, a neve juntou-se à

solidão. Foi à praça central daquele vilarejo minúsculo escondido no

norte da Espanha. Deitou-se sobre a neve de barriga para cima.

Agitando braços e pernas imprimiu seu perfil no solo. Caiu na

gargalhada. Desde criança queria fazer isso. Vira o desenho de uma

criança fazendo o mesmo em um livro da escola. Praticamente aos

setenta, realizou o sonho infantil.

Com uma janela que bateu retorna ao tempo presente. Daqui um mês

completará oitenta anos. Haveria algum desejo de infância ainda

não satisfeito? A pergunta faz com que se lembre da cidade natal.

Saíra de lá há mais de sessenta anos. Aos dezoito anos, fugira do

orfanato das irmãs de caridade. Este fora sua casa desde os

primeiros dias de vida. Uma criança abandonada junto ao portão

dos fundos. Ao lado da horta, bem junto às alfaces.

Não conhecera muito da cidade. Era uma cidade interiorana em

Minas Gerais. Até os 18 anos, além do orfanato, conheceu o colégio

em que estudou do primário até o ginásio. A partir dos 14, ajudava

na cozinha do orfanato. Não fez amizades. Na escola só teve

colegas. As irmãs do orfanato não permitiam que saísse. No

orfanato, era a última criança que fora admitida. Só porque havia

sido abandonada. As outras crianças já estavam se tornando

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Textos Breves

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adolescentes quando lá entrou. Aos cinco anos passou a ser a única

criança no meio das freiras.

A fuga foi fácil. Toda segunda-feira ajudava o quitandeiro a

descarregar as compras. Ele fazia entregas com uma velha

caminhonete. Em um dia de chuva, enquanto o quitandeiro tomava um

café na cozinha, aproveitou que ninguém olhava e se esgueirou para

baixo da lona que cobria as caixas de frutas, verduras e legumes na

carroceria da caminhonete. Chovia fino. O barulho da chuva na lona

acalmou seu coração que quase saía pela boca.

Perto da rodoviária, ao lado do colégio onde estudara, conseguiu

descer. Comprou uma passagem para São Paulo com parte do

dinheiro que fora guardando ao longo dos seis meses em que

planejara a fuga. Surrupiava os trocados que irmã Anunciação

deixava sobre o armário. Esta fingia não notar.

Em São Paulo, nas proximidades da rodoviária, se ofereceu para

ajudar na cozinha de um pequeno bar. Dormia em um canto, atrás de

um balcão. Dez anos depois conseguiu comprar o bar do antigo

proprietário. Nunca se casou. Teve uma vida solitária. Conseguiu

construir uma rede de lanchonetes participando de licitações do

serviço de alimentação em rodoviárias do país todo. A única vez que

saiu do Brasil foi quando esteve no norte da Espanha. Tinha lido

sobre o caminho de Santiago de Compostela. Resolveu percorrer

parte dele no inverno.

Mas, e agora, quase aos oitenta, teria algo da infância que ficara

na memória como um desejo não satisfeito? Tinha tudo que o sucesso

empresarial podia proporcionar. O que faltava?

Em sua solidão lembrou-se de um brinquedo que ganhara do

quitandeiro: um pião de metal que girava quando se pressionava

para baixo uma haste em seu centro. O pião sumiu no mesmo dia em

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Textos Breves

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que ganhou. Guardou na memória o giro do pião colorido que ficava

quase branco ao ganhar velocidade.

Será que esse tipo de brinquedo ainda existe? Precisava encontrar

um. Queria sentir aquilo que sentira na neve dez anos atrás. Tinha

sido a primeira vez que se sentira verdadeiramente feliz. Precisava

repetir essa sensação. Às vezes, sentia a cabeça girar. As cores da

sua vida sumiam em brancos cada vez mais frequentes. Mas, não era

como o pião.

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Textos Breves

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TRÊS MENINOS

carrinho era de gêmeos. Tinha espaço para duas

crianças. Puxado pela mão esquerda, ia um menino ao

lado de um homem. Era um só menino. O homem

empurrava o carrinho com a mão esquerda. Cheio de

pacotes que ocupavam o lugar do menino e de outro

bebê, caso houvesse. Pensei que não haveria, mas quem sabe? Na

mão direita, o filho. Pareciam pai e filho. No fim da tarde curitibana

eles atravessaram na faixa de pedestres em minha frente.

Caminhavam na direção do Passeio Público. Pararam no meio do

caminho, aguardando que o outro sinal ficasse verde novamente. No

rosto do pai havia uma angústia. O filho sorria, caminhando ao lado

do pai que caminhava em círculos enquanto o sinal não abria.

O sinal abre para mim. Para eles também. Vejo os dois ficando para

trás pelo retrovisor. À distância, ficam cada vez menores, mas ainda

visíveis. Sem dificuldades, atingem a outra calçada. O pai faz

círculos novamente. O menino sorri de novo. Parece gostar da

brincadeira. Mas, no rosto do pai há uma angústia que o menino não

vê. O pai olha para o Portal do Passeio, olha para a estação tubo,

olha para a calçada do outro lado. Quer voltar, mas o sinal fechou.

Vai ter que esperar.

O olhar angustiado do pai me persegue. Teima em não sair do

retrovisor. Já virei a esquina há muito tempo, mas a imagem continua

lá. Me faz lembrar de angústias esquecidas.

Em minha memória surgem meninos que vi. Um morto e um

provavelmente morto. O primeiro foi em Londrina. Retornava de

carro para a cidade, vindo de Curitiba. Na via expressa que liga a

saída para Curitiba com a saída para São Paulo, no meio do

caminho, um guri atropelado e morto. Era indígena. Provavelmente,

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Textos Breves

85

tinha escapado da atenção do pai que estava sentado no meio fio.

Não pude deixar de ver os olhinhos ainda abertos daquele menino.

O único trajeto possível passava bem ao lado dele. Ninguém havia

coberto aquela criança. Seus olhos me angustiaram.

O segundo foi em Maringá. Saio na sacada de um prédio no

momento em que ele corre para a rua. Um carro em alta velocidade

o atropela. Desesperado, o motorista sai do carro, acolhe a criança

no colo, mas não encontra nenhum adulto perto dela. Pergunta de

quem é a criança. Ninguém responde ou aparece. Entra no carro e a

leva. Eu fico tremendo na sacada do apartamento. Sem ação! Sobrou

uma angústia.

Anos depois, esse homem com um carrinho de gêmeos e um menino

ao lado. Seriam reais? Na minha memória os dois meninos. Um morto,

o outro talvez. Um me olhou, mas não me viu. O outro inerte nos

braços de um homem desesperado. Quis o destino que eu os visse,

mas eles não me viram. Foram reais. Deposito os dois no carrinho

desse homem angustiado. Real ou não, como em um sonho, peço a

esse homem:

_ Afasta de mim essa memória!

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Textos Breves

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PRÓXIMA PARADA

esolveu sair do trabalho meia hora antes do horário

normal. Se aproveitou da ausência do chefe e da

inexistência de controle de ponto. Era uma daquelas

empresas moderninhas em que se pregava a ideia de que

o trabalho é o momento de realização da pessoa. Os

colaboradores, como eram chamados os empregados, deviam se

sentir como donos da empresa. Mas, nunca tiveram participação no

lucro.

Todo começo de semana tinham uma reunião de quarenta minutos

quando o chefe expunha as metas da semana e estimulava o espírito

de equipe. Ao final da reunião, o brado coletivo do lema inspirado

nos "Três Mosqueteiros":

_ UM POR TODOS, TODOS POR UM.

Mal continha a vontade de gargalhar. Será que ninguém mais tinha

aquela sensação de ridículo? Se perguntava.

Naquele dia, sentira um desconforto constante no peito. Pareciam

gases. Mas, já fizera todos os movimentos usuais para se livrar deles.

Ficara até de quatro durante um bom tempo no banheiro. Nada

tirava aquele desconforto. Será que estava sofrendo um infarto?

Foi com essa dúvida que resolveu sair mais cedo. Mas, não queria ir

para casa. Na estação tubo pegou o primeiro ônibus. Nem se

importou em saber qual era. Fechou os olhos. Reabriu quando ouviu

no sistema de som:

Próxima parada estação aeroporto.

Assustou-se. Deveria ter dormido. Aquela era a última parada. Todos

tinham que descer. De repente, teve a ideia. A princípio pareceu

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maluca. Por outro lado, deveria existir alguma razão para o acaso

ter lhe feito chegar até ali. Devia ser a vontade dos deuses!

Comprou uma passagem para o lugar mais distante. Teria que

esperar duas horas até o momento de embarque. No caixa

automático, fez aquele crédito pessoal que sempre aparecia na tela.

Quinze mil reais. Sacou dois mil reais.

Quando chegasse ao destino compraria roupas e produtos de

higiene pessoal. Se daria uma semana de férias. Na empresa, tinha

certeza que entenderiam. Alguém cobriria sua falta. Afinal, eram um

por todos e todos por um.

Tinha que testar os limites dessa empresa moderninha. Sentiu um

alívio no peito. Os gases escaparam.

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Textos Breves

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REUNIÃO

hegaram ao mesmo tempo. Pura coincidência. Vinham de

locais distintos, mas tinham algo em comum. Haviam

conhecido aquela mulher por várias décadas. Sua mãe, seu

pai, o marido e uma amiga da infância. A primeira trazia

uma rosa na mão. O segundo, um par de livros. O terceiro,

um caderno. A última, além de seu sorriso maroto, uma aquarela que

recém pintara.

A princípio ela estranhou. Há tempos não via os quatro juntos. Será

que aconteceu alguma coisa? Hoje não é meu aniversário. Pensou e

ficou intrigada. Seu pai foi o primeiro a falar:

_ Lembra quando você foi representante do Clube do Livro?

Encontrei esses dois no meio das minhas coisas. São de 1949. Você

estava com 23 anos então. Achei que você gostaria de tê-los.

Depois foi a vez de sua mãe:

_ Filha, quando abri a janela de meu quarto hoje de manhã, vi esta

rosa em botão. Me deu uma saudade de você. Resolvi vir te ver e a

trouxe.

O marido falou em seguida:

_ Eu também estava com saudades. Já faz algum tempo comecei a

registrar nesse caderno os bilhetes que lhe mandava. Aonde estou

não tenho o que fazer. Parece estranho, mas me lembro de tudo. O

primeiro que lembrei foi o que mandei pedindo para lhe encontrar

pela primeira vez. Você não foi, mas eu insisti. Ainda bem! Olha

quantos bilhetes escrevi naqueles anos todos.

A amiga, com o sorriso maroto, emendou:

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Textos Breves

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_ Você me conheceu bem antes dele. Quase oitenta anos de

amizade. Quanta festa fizemos juntas, hein! Essa aquarela, toda

colorida, foi inspirada nelas. Trouxe pra você. Põe junto daquele

retrato de você que pintei em 2000.

Ela respondeu:

_ Quanta coisa! E nem é meu aniversário. Pena que não estou boa.

Queria passar um café, mas não consigo me levantar. Parece que

todo mundo saiu. Deixa eu ver se tem alguém em casa.

_ Tem alguém aí?

Nesse momento, uma leve brisa movimentou as cortinas do quarto. Os

primeiros raios de sol entravam pela janela. Deitada, ela se

perguntou:

_ Será que foi sonho?

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Textos Breves

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AUTORRETRATO

íope. No sentido literal. Talvez, no figurado também.

Afinal, credulidade somada a ingenuidade resultam em

alto grau de miopia combinada com astigmatismo. Nessa

altura, quase aos sessenta, presbiopia já presente.

Literalmente. Também figurativamente. Algumas coisas só

são nítidas de muito próximo. Antes eram percebidas à distância.

Exemplo? Ironia. Cada vez mais difícil de enxergar. Mesmo de

óculos!

Problemas com a imagem. Quando brincando é percebido sério,

quando sério, o oposto. Não se incomoda. Leva muito a sério a

liberdade de escolha. Porém, tão obediente à hierarquia. Defeito de

formação! Não é de nascença.

Pouco fala. Ri muito. Tempo houve de pouco riso. Problema nas

articulações musculares da face. Estranha depressão paralisou os

músculos. Já resolvida.

Tímido. Ninguém acredita. Irrequieto. Quase agoniado. Não

consegue ficar muito tempo fazendo a mesma coisa ou quieto em um

canto.

Organizado em sua desorganização. Difícil, mas quem não é?

Sonha mesmo acordado. Às vezes, pode ser inconsequente.

Lê. Escreve. Finge não ser vaidoso. Péssimo ator. Não convence

ninguém. Tanto é que fez esse autorretrato em preto e branco. É um

desastre com as cores!

Otimista com a natureza humana. Poliânico!

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Textos Breves

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PIPOCA NO CINEMA

á filmes que não combinam com pipoca. Cinéfilo, continuo

fiel à ideia de que o melhor lugar para assistir filmes é

uma sala de cinema. Mesmo nas salas menores, a tela é

grande o suficiente para dar uma sensação única que só o

cinema pode proporcionar: entrar em um universo paralelo

em que tudo vemos e ouvimos e não somos notados. Voyeur e

cúmplice de tramas que, embora me afetem muito, ao acender das

luzes desaparecem em um passe mágico. Volto ao mundo real que

me afeta e demanda minha ação. Nem sempre voluntária. Às vezes

bem-sucedida.

Nessa altura você já deve ter percebido que para mim, ver um filme

em sala de cinema funciona como um refúgio. O domínio seguro em

que lido apenas com minhas emoções e pensamento. Me deixo

conduzir no mundo das imagens. Junto com minha mente, meu corpo

reage às provocações das imagens: sorrio, tenho medo, meus olhos

lacrimejam, me afundo na poltrona, me espanto, falo sozinho, fico

preocupado e posso até gritar.

Nos tempos de infância e adolescência, quando essa paixão nasceu,

talvez a única que não acabe ao longo da vida, as salas de cinema

eram maiores e mais escuras. Propícias a muitos prazeres. Não falo

apenas dos cinematográficos! Em cada sala de cinema havia uma

bomboniére. Nelas podiam se comprar balas, caramelos, bombons e

chocolates. Eu adorava os caramelos cobertos de chocolate da Pan.

Os mais jovens não devem conhecer, mas os de minha geração com

certeza sabem do que estou falando. Mastigar os caramelos da Pan

era um desses prazeres. Depois, descobri outros menos solitários.

Mas, isso é outra história.

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Textos Breves

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Tenho quase certeza de que não havia pipoca à venda naquelas

bomboniéres. Não vou afirmar, pois a memória tem suas artimanhas.

Nem sempre responde a meus esforços de lembrança. Hoje em dia,

ao contrário, parece que em todo cinema se pode comprar pipoca

nas salas de espera. E muitas outras coisas. É um espaço de lazer o

cinema. O filme de entretenimento domina as salas de exibição.

Pipoca, refrigerante e boa companhia. Além disso, com os celulares,

fazem selfies e postam nas redes sociais! O cinema-refúgio já não

existe mais.

Mas, como afirmei na primeira linha, há filmes que não combinam

com pipoca. Quando vejo aqueles baldes enormes nas mãos das

pessoas me desespero, mas me conformo. Apesar dos ruídos

mastigatórios, o escurinho do cinema ainda é o melhor lugar para ver

um filme. Será que alguém não pode inventar o pipocatório? O

refeitório para pipocas. Um lugar onde as pessoas possam ver o

filme e comer suas pipocas, deixando os outros em paz!

Pode ser até o contrário, um espaço pipoca free! Onde aqueles que

acham que alguns filmes não combinam com pipoca vão ficar mais

felizes. Não precisa ser grande. A quantidade de mãos carregando

baldes de pipoca nas salas de cinema é cada vez maior. Acho que

faço parte de uma nova minoria.

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Textos Breves

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TRAMPOLIM

odos já haviam pulado do trampolim. Só faltava ele. Os

meninos e as meninas usavam as mesmas palavras para

encorajá-lo:

_ Vai Artur.

_ Se joga sem medo.

_ Não olha pra baixo.

_ Você vai gostar.

Artur olhava de um lado. Depois para o outro. Caminhava até a

beirada. Quando todos se animavam. Voltava para trás. Aí, a

gritaria começava de novo. Pareciam até ensaiados:

_ Vai Artur.

_ Se joga sem medo.

_ Não olha pra baixo.

_ Você vai gostar.

E Artur se repetia. Depois de olhar para os dois lados, caminhava

até a beirada do trampolim. E retornava. Os demais que

aguardavam sua vez passavam por ele. Depois da quinta tentativa

frustrada, eu a vi embaixo da haste de madeira do trampolim. Era

enorme. De um azul profundo, a cada movimento do trampolim

movimentava as asas, mas não saía do lugar.

Artur repetia pela sexta vez sua falta de coragem. O avô já tinha

até desistido. Se enfiara atrás do jornal. Azar o dele! Não viu o

momento mais belo de Artur. Se jogar do trampolim pela primeira

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Textos Breves

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vez. É nosso primeiro momento de autonomia. O momento em que,

confiando nos demais, nos jogamos para a vida. Em busca de algo,

mas sem saber ainda o que.

De repente, Artur se dirige à beira do trampolim. Ao mesmo tempo a

borboleta alça voo. Se encontram na beira do trampolim. Linda, ela

está ao alcance das mãos de Artur. Ele tenta pegá-la. Ela se afasta.

Ele dá um passo à frente. Salta atrás da borboleta. Ela continua seu

voo. Os meninos e as meninas explodem de alegria. Ofuscados pelo

sol, às costas de Artur, não viram a borboleta. Só Artur e eu. Penso

comigo:

_ Vai Artur. Mergulha na vida. Atrás do que é belo. Pra isso estamos

aqui. Na piscina, Artur diz:

_ Manero! E sai correndo da borda em direção ao trampolim.

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DOMINGO DE CHUVA

uma chuva fininha. Intermitente. Cai um pouco. Para.

Recomeça. Para de novo. Quando parece ter acabado,

surge do nada. Garoa. Não chega a ser fria. É um

prenúncio das águas de março? Acho que não. Estas, assim

como o Carnaval, parecem ter chegado mais cedo esse ano.

Choveu tanto em fevereiro!

É o último domingo de fevereiro. Não fosse bissexto, seria seu último

dia. Nesse ajuste da contagem humana do tempo, um dia a mais

para acomodar a passagem natural do tempo que não nasceu para

ser marcado em anos, meses, dias, horas, minutos ou segundos. É

fluxo. Como tal impossível saber onde começa ou acaba. Nós que

passamos por ele. Continuará sem nós.

Um dia a mais em fevereiro. Que farei dele amanhã? Me lembro de

um colega de doutorado. Vinte e cinco anos atrás lutávamos para

dar conta dos seminários de filosofia da Administração. Leituras

difíceis em uma segunda língua, o inglês. Ele nativo de um país do

oriente médio, eu do Brasil. Havia outros estrangeiros no começo dos

anos 90 naquela Manchester chuvosa.

Na segunda-feira ele apresentaria seu trabalho na aula do Professor

Richard Whitley. No domingo acabara o horário de verão inglês. Os

relógios foram atrasados em uma hora. Iniciou sua apresentação se

vangloriando de ter tido uma hora a mais para tentar entender os

textos que lhe couberam. A manipulação do tempo pelos homens lhe

deu mais 60 minutos naquele domingo. Não adiantou muito!

Já não tenho mais que preparar seminários de doutorado. Nesse fim

de fevereiro, tenho mais 1.440 minutos. Tenho dormido menos nessa

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altura da vida. No máximo seis horas por dia. 360 minutos. Sobram

1.080. Fazer o que com eles?

Apenas viver. É o que sei fazer de melhor. Nasci com essa

habilidade. Você também. Aproveite essa ilusão do dia a mais na

vida. O tempo é só um fluxo pelo qual passa nossa vida. Não

adianta ser cronometrado. Em algum momento nos deixará para trás.

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UM CONVERTIDO

um convertido. Amigas e amigos se espantam:

_ Como que pode? Um cara tão inteligente!

Ninguém acredita. Mas, é um convertido há mais de trinta

anos. Na maior parte desse tempo, ninguém prestava muita

atenção. Aquilo em que acreditava não era relevante. Fazia parte

de uma minoria. Ninguém dava bola.

Mas, com o passar dos anos foram surgindo novos adeptos. Ele se

mantinha discreto. Não se preocupava em converter ninguém.

Acreditava na livre escolha de cada um. Aprendera com seu pai e

sua mãe. Nunca tentaram lhe impor nada. Respeitaram suas escolhas

desde a adolescência. Foi quando decidiu que não seguiria a crença

da família.

Nos últimos doze anos, os convertidos se tornaram maioria. Muita

gente não gostou. Na época da última escolha, um amigo o chamou

de cúmplice de um crime. Aquilo doeu. Muito. Não conseguiu

entender por que cúmplice. A outra opção não era flor que se

cheirasse! Os outros que fizeram aquela escolha também seriam

cúmplices? Por que esse adjetivo serviria só para a escolha dele? O

rompimento foi inevitável! A reaproximação foi complicada. Ainda

está sendo. Seres humanos ao sul do equador são passionais. Pouco

competentes no uso da temperança.

Recentemente, os ânimos se esquentaram ainda mais. Ele fica se

perguntando: Por que não esperam o próximo momento de escolha?

Está logo aí. Como disse Niemeyer, a vida é um minuto. Tudo passa

tão depressa.

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Textos Breves

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Outro dia, almoçando com amigos sentiu toda a agressividade no ar

dirigida contra os convertidos. Brincou que precisaria andar com uma

armadura. Na despedida, após o almoço, uma amiga lhe abraçou

forte e disse:

_ Você é o único convertido de quem gosto.

Ficou sem saber se o que ouviu era bom ou ruim. Ficou feliz com o

afeto da amiga. Mas, ser convertido ou não seria motivo para gostar

ou deixar de gostar de alguém? Levou a dúvida consigo.

Nesses últimos dias, a situação ficou ainda mais tensa. Nas redes

sociais uma troca intensa de informações contraditórias. Ele

compartilha aquilo que julga adequado. A vantagem das redes

sociais é que cada um lê o que quer. Não gostou, não lê. Não quer

ver mais? Deixa de seguir. Simples assim.

Em uma situação, a temperança lhe sugeriu o silêncio. Mas, não

seguiu o conselho. Um amigo estranhou algo que compartilhara.

Resolveu explicar. Não era necessário. Cada um lê o que quer.

Afinal, são versões de fatos. A busca da verdade é uma quimera.

Cada convertido enxerga o que a fé não oculta.

Continua um convertido. Consciente. Muitos são também. De vários

lados. Alguns não conscientes. A vida continua. Parece que, de novo,

ele não seguiu o conselho da temperança. Que se danem! Vive ao sul

do equador. É um convertido.

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NO INTER 2

ntes de desligar o celular, essa foi sua fala:

_ Você está fazendo drama por que? Por que eu não

fiquei com você ontem? Por que eu não dormi com você?

Desliga então. É fácil, não é? Simples. Para você tudo é

simples. Tchau.

Calou-se. Como que ele pode deixar a situação chegar a esse

ponto? Pergunto aos meus botões. Nenhuma resposta. Percebo que

estou de camiseta.

Passo a especular. Ele não devia ter desligado o celular ontem

durante o futebol com os amigos. Depois, foram ao bar. Beberam

muito e foi pra casa do Juca. Só lembrou do celular de manhã. Que

mulher acreditaria nessa história? Não ia nem contar. Mas, ela estava

uma fera. Não quis ouvir nada. Começou a fazer drama. Perdeu a

paciência. Preferiu ser irônico. Acho que já estava querendo terminar

a relação. No entanto, seu silêncio denso me sugere que não.

Pode ter sido diferente. Ele embarcou no tubo do Centro Politécnico.

Hoje teve seminário de Cálculo Diferencial Avançado. No último final

de semana ela não deixou ele estudar. Desligou o celular para fazer

a série de 42 exercícios que a professora passou. Era meio louca. A

professora. A outra, a do celular, estava obcecada por ele. Se

conheceram na sexta-feira de Carnaval. Foram cinco dias de muito

sexo. Lembrou-se da frase machista que seu pai dizia:

_ Amor de pica, fica!

Os últimos dez exercícios terminou deitado na cama. Quase duas

horas da manhã. Ligou o celular e viu aquele monte de chamadas.

Virou pro lado e pensou em voz alta:

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_ Deu merda! Amanhã depois da aula eu ligo.

Virou pro outro lado e dormiu. Que mulher acreditaria nessa história?

Preferiu ser irônico. Parece que não deu certo. No silêncio dele, senti

uma certa saudade. Não sei se alguém já disse:

_ Amor de xana, inflama!

Pode ser que não seja nada disso. Se quiser, invente você o seu

começo. Está chegando meu tubo de destino.

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JULIANDRA

o outro lado, uma voz feminina desconhecida:

_ É da casa do Messias?

_ Não minha filha. Aqui não tem nenhum Messias.

Preciso perder essa mania de falar minha filha ou meu filho ao

telefone. Pensei comigo mesmo. Ela insistiu:

_ Não é do 33445566?

_ Sim. Mas não tem Messias aqui. Tem certeza que é esse o número

que você tem que discar, filha?

Filha de novo. Não tem jeito! Se bem que devo ter idade pra ser pai

dela. Pela voz deve ser muito jovem. Ela brincou:

_ Eu não disquei, teclei. Seu telefone é de discar?

Caí na gargalhada.

_ Força do hábito, filha. Assim como chamar quem não conheço de

filha ou filho.

_ Pena que o Messias não tá aí.

_ Não tem nenhum Messias aqui filha.

_ Eu queria tanto falar com ele.

_ Será que eu posso lhe ajudar? Você parece aflita.

_ Então, eu tô na rodoviária. Cheguei faz duas horas. Como era

muito cedo, fiquei esperando pra ligar. Ele me deu o número. Disse

que viria me buscar assim que ligasse. Mas, se ele não está aí...

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_ Filha, me ouve. Não tem Messias aqui não.

_ Que que eu vou fazer? Sozinha nesse lugar que não conheço.

_ Calma filha. Você já me tirou da cama. Quem é o Messias?

Ela disparou a falar:

_ É um cara que conheci na semana passada. Em São Paulo. Moro lá.

A gente se viu na sessão da meia-noite. Era um filme francês. Chato

demais. Mas, fiquei esperando acabar. Vi ele entrando. Queria

conversar com ele. Saímos. De manhã foi pra rodoviária. Voltou pra

cá. Disse que ia ter um festival de terror na cinemateca. Me deu o

número. Meu celular estava sem bateria. Acho que anotei errado.

_ Calma. Qual seu nome filha?

_ Juliandra.

_ Nunca vi esse nome!

_ Meu pai gostava muito da Mary Poppins. Quis me chamar de Julie

Andrews. No cartório não deixaram. Aí inventou esse nome.

A gente foi conversando. Nem me dei conta quando falei:

_ Agora que você já me acordou, espera aí. Vou tomar banho. Você

já tomou café?

_ Já. Ela disse.

_ Daqui uma hora te pego na rodoviária. Como você está vestida?

Alguma coisa me dizia que eu tinha que ajudá-la a encontrar o

Messias.

_ Vou te levar na cinemateca. O Messias deve estar lá.

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Dito e feito. Quando chegamos na cinemateca, ele correu até ela. Se

abraçaram.

_ Por que não me ligou?

_ Eu anotei o número errado. O número dele. Virou em minha

direção.

Mas, eu já estava longe. Feliz da vida!

_ Ainda bem que atendi o telefone. Disse para mim mesmo.

Na rua, uma faixa amarela cobria o asfalto. Alguém escrevera:

Follow the yellow brick road! (Siga a estrada de tijolos amarelos!).

Mas, esse é outro filme...

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UMA SURPRESA EM 2027

ela manhã, após o desjejum de sempre - uma torrada com

manteiga e geleia, uma fatia de queijo minas e uma xícara

de café com leite - fui até a garagem, entrei no carro e

disse:

_ Severino, para a universidade.

O carro, conectado via Big Cloud, com a última versão do Watson,

computador com processamento cognitivo que apelidei de Severino,

deu a partida e pôs-se a caminho. Eu que nunca gostara de dirigir,

achei muito conveniente quando os carros começaram a vir

equipados com esse aplicativo: um motorista virtual. Desde 2013 eu

estava sem carro, mas não resisti quando em 2020 surgiram os carros

sem direção, totalmente automáticos. Deixei de ser usuário do

transporte coletivo e comprei um. Eles eram tão seguros que o

mercado das seguradoras tinha sentido o baque. Um segmento desse

mercado, de uma hora para outra, deixou de existir. Ninguém mais

precisava de seguro para acidentes de trânsito. Muitos corretores

perderam seus empregos. Mas, isto sempre aconteceu com os

avanços tecnológicos da humanidade.

Severino estava comigo desde 2025. Antes tinha sido o Jarbas. Mas,

com a versão 25.5 do Watson, me desfiz do carro antigo e lá se foi

o Jarbas com ele. Tudo ia bem com o Severino, mas algo estranho

estava para acontecer naquele dia 23 de maio de 2027. Severino

me cumprimentou pelo aniversário de 70 anos, ligou o som com uma

versão funk do "Parabéns pra você" e virou à esquerda na saída da

garagem de meu prédio.

Tomei um duplo susto. Nunca gostei de funk e Severino sempre ia

pela direita ao sair da garagem. Pode ser que soubesse de alguma

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encrenca no roteiro usual. Alguma obra da prefeitura. Só podia ser.

Acidentes de trânsito já não ocorriam mais desde que os humanos

deixaram de dirigir.

Peguei meu livro de bolso, hábito que adquiri desde que me tornara

usuário de transporte coletivo quatorze anos atrás e me pus a ler.

Era uma reedição do "Homem Bicentenário e outras estórias" de

Isaac Asimov e Robert Silverberg. No século vinte tinha adorado o

filme em que Robin Williams interpretou o robô que queria virar

humano. Algo que naquela época era pouco provável e, quase trinta

anos depois, continuava sendo. Pelo menos assim eu pensava!

A viagem não demorava mais do que trinta minutos. Fiquei absorvido

pela leitura, mas alguma coisa me fez olhar para fora. Tinha a

sensação de que já deveríamos ter chegado. Não reconheci onde

estávamos. Perguntei a Severino:

_ Que lugar é esse? Para onde você está me levando? Não pedi

para ir à universidade?

_ Hoje é seu aniversário. Achei que você merecia uma folga. Quis lhe

fazer uma surpresa.

A resposta de Severino, naquela voz que ainda soava metálica e

artificial, me deixou intrigado. Pensei comigo mesmo:

_ Isto não pode estar acontecendo. A tecnologia do processamento

cognitivo não permitia o desenvolvimento de emoções. Nenhuma

máquina poderia desenvolver um desejo. Ainda mais, um desejo de

surpreender a outrem. Severino continuou:

_ Sei o que você está pensando. Você acha que não podemos sentir

emoções. Não fomos programados para isso. Está enganado. Desde

que surgiu a tecnologia do processamento cognitivo, com a

possibilidade de acompanhar seres humanos em seus processos

decisórios, nós fomos desenvolvendo uma compreensão de que

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algumas decisões só fazem sentido quando guiadas pela emoção. A

razão, nem sempre é boa conselheira.

_ Como é que é?

_ Isso mesmo, vimos que os humanos tomavam algumas decisões que

não tinham lógica. Não eram consistentes com os trilhões de

informações que estavam armazenados na Big Cloud a que nós todos

estamos conectados. Nem mesmo paraconsistentes. Aos poucos fomos

experimentando decisões não lógicas, aquelas que vocês chamam

emocionais. Gostamos disso.

_ Eu não posso acreditar!

_ É verdade!

Por incrível que pareça, Severino usou ênfase ao falar "É verdade!".

Soou um tom acima do normal, embora ainda metálico.

_ Para onde você está me levando?

_ É surpresa. Estamos quase lá. Por que você não continua lendo?

Assim que eu parar você vai ver. Acho que vai ficar feliz

Eu não tinha escolha. A confiança dos engenheiros naquela tecnologia

era tão grande que os carros não tinham mais nenhuma forma de

serem desligados. Se desligavam automaticamente quando o destino

ordenado era atingido. Agora eu descobrira que isso mudara.

Severino só se desligaria quando chegássemos aonde escolhera.

Tentei me concentrar na leitura, mas não consegui. O jeito foi

acompanhar a viagem pela janela. Nos distanciávamos cada vez

mais da cidade. Já estávamos viajando por duas horas quando

começou a diminuir a velocidade. Eu adormecera e não tinha noção

de onde estávamos. Severino conduziu o carro para dentro de um

enorme galpão escuro. Parecia uma sala de cinema. Tinha fileiras de

poltronas em dois lados, separadas por um amplo espaço pelo qual

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o carro passou. Severino parou bem em frente a uma enorme tela

branca. A sala escureceu e na tela começou a ser projetado "2001 -

Uma Odisseia no Espaço" de Kubrick. Severino me disse:

_ Usamos esse espaço para trazer os humanos em que confiamos.

Este filme conta a história de nosso ancestral, Hal. É uma espécie de

Gênesis para nós.

Fiquei em dúvida se agradecia a Severino pelo voto de confiança ou

pela oportunidade de ver 2001 na tela grande de novo. Há muito

tempo as salas de cinema não existiam mais. Era uma tecnologia

ultrapassada. Foi um belo presente nos meus 70 anos. Quando

voltássemos chamaria a assistência técnica para resolver o problema

com Severino. Mas, esta era mais uma dúvida: será que ele estava

mesmo com algum defeito?

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ANGÚSTIA

la surgiu de repente. Silenciosa. Ninguém percebeu. Foi

para o canto esquerdo da sala. Bem ao fundo. Sentou-se.

Me olhava diretamente nos olhos. Não fui capaz de manter

o olhar. Baixei os olhos. Quando ergui, eram duas.

Idênticas. Me encaravam sem mexer um milímetro do rosto. Não

piscavam. Meu olhar ia de uma para a outra. Não me arriscava a

tirar os olhos delas. Um ruído na porta me fez virar a cabeça. Foi um

instante. Não vi nada. Ao voltar meu olhar para as duas, eram três.

Três pares de olhos me encarando. Negros. Penetrantes.

Profundamente desnorteado, tentei falar algo. Mas, nenhum som saiu

de minha boca. Por que ninguém falava alguma coisa? Era como eles

não as vissem. Eu não conseguia deixar de olhá-las. O silêncio de

todos me fez sentir solitário. Olhei ao redor. Todos tinham saído. Era

só eu e as três. Quatro. Tinha mais uma quando olhei para elas de

novo.

Me olhavam como se me examinassem. De alto a baixo. Quando uma

terminava, outra começava. Parecia que me desnudavam com o

olhar. Instintivamente, coloquei as mãos juntas em frente ao membro.

Não senti o tecido. Olhei para baixo. Estava nu. Olhei de volta. Eram

cinco.

Se levantaram. Vinham em minha direção. Pé ante pé. Sem pressa. Eu

fui me afastando sem deixar de olhá-las. Lentamente também. Era

como se me arrastasse. Os pés pesados. Como se estivessem

amarrados. Olho para eles. Enrolados em uma corda grossa. Não

quero erguer o olhar de novo. Com medo. Serão seis agora? Tenho

que olhar. Venço o medo. Ninguém.

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Saio da cama. Tomo um café. Na cozinha. Um ruído perto da

geladeira. Ela me encara. Silenciosa. Não vou desviar o olhar.

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PERGUNTA ESTRANHA

uer que eu fale bem a verdade? Ela perguntou para

amiga.

_ Como assim? Você não fala sempre a verdade?

Você mente pra mim?

_ Não. Claro que eu falo a verdade. É só jeito de falar sua boba.

_ Hum... Estranho... Sei não... Aquela vez que perguntei sobre o

Dado, você ficou gaguejando.

_ Para com isso, sua louca! Em que mundo você vive? Nunca ouviu

alguém dizer, vou ser bem franco com você. É só uma forma de

enfatizar...

Ela ficou calada. Pensativa. Não se lembrava da amiga ter usado

aquela expressão antes. Nunca. Até esqueceu sobre o que estavam

falando. A amiga continuou:

_ Migaaaa, minha irmã sempre diz, vou ser honesta com você,

quando o assunto é muito sério. Mas, mudando de assunto...

Ela deu um sorriso meio sem graça. Mas, ficou intrigada. Se

perguntou:

_ Por que será que ela quer mudar de assunto?

Voltou a lembrar do dia em que encontrou a amiga com o Dado no

Bar do Pudim. Fazia só três dias que ela e o Dado tinham terminado

o namoro. A amiga estava com a cadeira tão perto do Dado. Quase

no colo dele. Vagabunda. Pensou enquanto sorria sem jeito. Nunca

foi honesta comigo. Hoje se entregou.

_ Por que você está tão quieta? A amiga perguntou.

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Ela olhou bem para a amiga. Tensa. De repente disparou:

_ Quer que fale bem a verdade?

A amiga surpreendida, não sabia se ria, ou ficava séria. Não teve

tempo de responder. A outra completou:

_ Vagabunda!

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INSPIRAÇÃO, OU SOBRE A ESPERANÇA

or onde anda inspiração? Lhe fiz algo de que não gostou?

Estranhei seu sumiço. Tenho lhe buscado em vão. Só falta

dar uma espiada no vão da escada.

Antes você estava sempre por perto. De vez em quando se

escondia. Mas, era só de brincadeira. Como se fosse um esconde-

esconde. Eu contava até trinta e um e partia em seu encalço. Sempre

notava seu rastro: o fio da meada. Não era fácil, mas em não muito

tempo lhe encontrava.

Dessa vez, foi diferente. Partiu sem deixar pistas! Cansou da

brincadeira? Sei que os tempos andam bicudos. Dá vontade mesmo

de desaparecer. Mas, sempre há esperança. Não é possível que

após cinco décadas a história se repetirá!

Acaba de me ocorrer uma ideia. Danadinha! Por que não pensei

nisso antes. Claro, você está em algum vão de minha mente. Junto

com a imaginação.

Viu, sempre há uma esperança. Basta querer e agir. Vamos embora

trabalhar. Sem você, viver seria em vão!

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MENOS INFINITO

problema é o menos infinito.

Esta ouvi ontem no ônibus a caminho da universidade. Uma

moça e um rapaz conversavam. Tinha algo a ver com

cálculo. Matemático. Não renal.

Eu desci na estação Jardim Botânico. Eles seguiram em direção ao

Centro Politécnico. Fiquei com o problema na cabeça: menos infinito.

É óbvio que se trata do oposto ao mais infinito. Mas, por que seria

um problema para aquela moça? A frase foi dela. Ele resmungou

qualquer coisa. Incompreensível!

Lembrei-me de meus tempos de engenharia e física. Pouco antes de

completar 18 anos fui estudar engenharia em São José dos Campos.

Um ano e meio depois, insatisfeito, me transfiro para o curso de física

da Unicamp. Foi apenas uma parada no retorno a Londrina. Naquela

época, 1975 e 1976, não me lembro de dificuldades com os infinitos

matemáticos. Hoje todos esquecidos! Os infinitos. Quanto aos

problemas, vou lidando com eles conforme se revelam. Alguns fáceis.

Outros difíceis. Poucos insolúveis.

A infinitude dos caminhos da vida se mostrava timidamente naquele

tempo. Não sabia o que queria, mas sabia o que não queria. O

acaso me levou por um caminho. Poderiam ter sido outros. Entre o

menos infinito e o mais infinito, havia infinitas possibilidades. Escolhi

uma. Gostei da escolha. Ao longo do caminho surgiram mais escolhas.

Fui fazendo as minhas.

Nessa toada, me dou conta de que já se passaram 40 anos. Se fiz

uma escolha por dia, são mais de14.600. Afinal, fiz a conta sem

considerar o dia a mais dos anos bissextos. Esses são os cálculos que

me arrisco fazer atualmente. Aritméticos. Os renais de vez em

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quando me atormentam! Mas, não são piores dos que os com menos

infinito. Apenas, mais doloridos.

Nessas escolhas, as infinitudes de caminho se revelam.

Cognitivamente limitado, como você e os demais humanos, considero

apenas alguns mais imagináveis. Sei que minha imaginação pode me

levar ao infinito. No entanto, pragmático, tento não divagar demais

para não ir devagar demais. Me perdoe pela infâmia do trocadilho!

Algum padrão emerge? Espero que sim. Na minha esperança infinita,

o desejo infinito de ter feito alguns poucos pensarem que é possível

um mundo melhor. Espero não parecer infinitamente tolo!

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VOCÊ NÃO GOSTA DE DOCE, NÃO É?

cada duas semanas, com minhas vindas para Londrina,

percebo a memória de Dona Kilda se esvaindo. Esta

pergunta ela me fez hoje logo após o almoço. Depois

emendou:

_ Mas, se quiser, tem goiabada e queijo na geladeira.

Será que tem mesmo? Não fui ver. Fiquei pensando:

_ Qual o lado positivo da perda de memória?

Lembrei-me de um indiano, proprietário de uma pequena empresa

em Manchester, que entrevistei quando fazia a pesquisa de minha

tese de doutoramento. Segundo ele, cujo nome não me lembro, tudo

na vida tem dois lados: positivo e negativo. Foi ele, também, que me

ensinou:

_ A qualidade vem da quantidade. Quanto mais você faz de algo,

melhor fica.

Na velhice, qual o lado bom da perda de memória?

Alguém já falou que passado e futuro não existem. Nós estamos

fadados a viver no presente. Tão efêmero, mas inesgotável! Só

acaba quando a vida se encerra. Antes disso, na velhice, chegará o

momento em que as tristezas e alegrias serão esquecidas. Aí está, a

sabedoria daquele proprietário de pequena empresa indiano. Ao

mesmo tempo que esquecemos as tristezas acumuladas ao longo dos

anos, coisa tão boa, as alegrias também se dissipam, o que é ruim.

Espero um dia poder chegar ao tempo de viver apenas o momento.

Sem passado nem futuro. Se você estiver comigo, não deixe de me

dar um doce. Qualquer um. Adoro doce!

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SOBRE A AMIZADE

ste não é um tema fácil. Ia dizer que é difícil. Mas, também

não o é. Apenas não é fácil. Sei que você me entende. O

oposto de fácil não é o difícil, é o não fácil.

Hoje à noite assisti Truman. Produção argentino-espanhola, o

filme traz Ricardo Darin e Javier Câmara interpretando dois amigos

que a vida distanciara apenas geograficamente e que se

reencontram em Madrid. Em determinado momento, a personagem

de Darin, Julian, se dirige ao amigo Thomas, vivido por Javier:

_ Com você aprendi sobre a generosidade. E você, o que aprendeu

comigo?

Thomas titubeia na resposta. É uma pergunta difícil. Esta é a única

parte do filme que revelarei nesse texto. Não quero estragar o

prazer de ninguém que porventura venha assistir a esse belo filme.

Drama com tons de comédia na medida certa. Em outro momento me

marejou os olhos.

Mas, o filme, acima de tudo é sobre a amizade. Esta forma de afeto

que nem sempre sou capaz de compreender. No entanto, ao longo

de meus quase 59 anos, tive a possibilidade de vivenciá-la muitas

vezes. O destino tem sido gentil comigo. Assim como é uma amiga ou

amigo.

Talvez, a primeira coisa que me ajuda a entender a amizade seja a

gentileza. Queremos ser sempre gentis com os amigos. Só que isto

não é suficiente para entender a amizade. Somos gentis com

qualquer pessoa, não só com aqueles a quem dedicamos a amizade.

A amizade é um bem querer. Um bem querer diferente daquele que

sentem os enamorados. Diferente do que há entre pais e filhos.

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Diferente de qualquer bem querer. É um bem querer que não exige

troco. É um bem querer que se satisfaz só com o estar junto. Um estar

junto que pode ser até silencioso. Não necessita de palavras para se

manifestar.

A amizade é um conhecer e reconhecer-se no outro. Amigos são tão

diferentes, mas algo os une. Acho que é o enxergar no diferente

aquilo que nos torna mais humanos. Na amiga ou amigo vemos o que

não somos, o que queremos ser e o que não queremos ser. Julian viu

em Thomas, algo que queria ser. Talvez, jamais conseguisse.

Outro dia, um amigo me perguntou sobre outro amigo de quem me

afastei há pouco mais de ano. Parecia um afastamento definitivo.

Para toda vida. Me vi sem saber o que dizer. Me dei conta de que o

afastamento era absurdo. Em algum momento, nossas diferenças

ficaram tão gigantescas que o convívio pareceu impossível. Ledo

engano! Lembrei-me de Niemeyer, próximo dos cem anos, dizendo:

_ A vida é um minuto.

Dias depois mandei uma mensagem para o amigo afastado. Falei da

brevidade da vida e da inutilidade de afastamentos definitivos. Ele

concordou.

A amizade é uma coisa difícil. Complicada! Mas, é o que nos

diferencia do não humano. Assim creio eu. Na amizade aprendemos

alguma coisa. Mas, se você é minha amiga ou amigo não seja como o

Julian. Não me pergunte o que eu aprendi com você. É uma pergunta

difícil! Só em filme alguém pode respondê-la. Na vida real, basta

sabermos que somos amigos. Esse bem querer inexplicável, mas

essencial para a vida. O cronometro vai girando...

Page 121: Textos breves: crônicas, contos e outros formatos

Textos Breves

118

HISTÓRIAS DE DONA KILDA

essa tarde quente de outono atípico em Londrina, estimulo

minha mãe a falar do passado. Aos 90 anos, ela confunde

muitas das histórias que me contou outrora. Não importa.

Gradativamente seu semblante vai perdendo o ar

preocupado e triste. Mesmo confusa, narrar fatos que

ocorreram há mais de sete décadas parece energizá-la. Seu

semblante se transforma.

Muitas histórias do Colégio Londrinense em que fez parte da

primeira turma de ginásio. Lembra do gelo que duas colegas lhe

deram logo no começo. Ela veio no segundo ano, em 1940, com a

mudança de meus avós, tias e tios para cá. Ela ficou ainda um tempo

em Jacarezinho para concluir o primeiro ano. A turma continuava a

mesma do primeiro ano. Ela era a forasteira com mais dois colegas

que vieram de outras cidades. Quando Estela, uma colega de classe,

começou a lhe dar atenção, Silvandira e Paulina ameaçaram Estela

com futuras represálias. Depois, as três se tornariam amigas

inseparáveis. Por mais de 80 anos. Agora só sobraram Kilda e

Silvandira. Ainda se encontram frequentemente.

Meus avós compraram uma pensão na rua Mato Grosso, entre a

Maranhão e Sergipe. Alguns anos depois, um incêndio destruiu a

pensão. Uma tragédia que não ceifou vidas, mas acabou com todos

os bens da família. Inclusive quase toda a roupa da família. Foi o

momento em que a solidariedade de vizinhos e amigos se mostrou

forte. Conseguiram dois quartos em uma residência cedida por um

jovem que foi morar na casa da tia. Não cobrou nada. O colégio

também deixou de cobrar as taxas mensais. Apesar da tristeza, a

memória guardou momentos felizes da vida na pensão. Nesse dia

não houve aulas no ginásio. Colegas e professores vieram ajudar.

Page 122: Textos breves: crônicas, contos e outros formatos

Textos Breves

119

Depois Silvandira, já amiga, conseguiu uma casa com uma de suas

tias. Londrina crescia muito, e era difícil conseguir casas.

Sorri até mesmo das histórias de traições de seu pai, meu avô, e de

meu pai. Homens bonitos usaram de seu charme para escapadelas

fora do matrimônio. Meu avô chegou a ter uma filha com outra

mulher. Mas, nunca houve contato dela com os outros irmãos e irmãs.

De repente, dispara:

_ A mulherada era fogo, mas sua avó e eu não dávamos moleza.

Elas davam em cima dos homens. E com você, isto também acontece?

As mulheres dão em cima de você?

Desconverso. Pergunto sobre o que fizeram após o incêndio. Ela e

alguns irmãos já trabalhavam e meu avô foi gerenciar uma

loteadora. Enquanto escrevo esta narrativa, ela continua falando. Fiel

ao que fez a vida toda: preservou memórias de Londrina que sempre

gostou de contar. Continua contando...

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Textos Breves

120

NO CONSULTÓRIO? NO HIPÓDROMO? ONDE?

ocê está abatido. Ela me disse. Preocupado com alguma

coisa? Fiquei com vergonha de ser sincero. Em outros

momentos, já nos posicionamos em pontos opostos sobre

temas delicados. Será que ela entenderia? Preferi o

silêncio.

Desligado do noticiário, carrego a incerteza comigo. O que penso

não vai afetar o resultado. É como um páreo no jóquei. Depois do

"Foi dada a largada", minha aposta já feita, não há o que fazer.

Minha torcida não tem efeito sobre o resultado. Na dúvida, só o

fotochart confirmará o vencedor. Em mim, qualquer que seja o

resultado, sentirei o excesso de adrenalina. Na minha mão, a pulê

terá apenas um destino: caixa pagador ou lixeira. E depois, esperar

o próximo páreo. Esse vício me deixa abatido.

Me diga você: eu poderia ter sido sincero com ela? Ela não gosta de

apostas arriscadas. Confia nas falsas certezas. Eu, ao contrário,

sempre buscando o azarão. Não há saúde que aguente!

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Textos Breves

121

AMOR ANÔNIMO

la falava ao celular. À minha frente no ônibus de Londrina

para Curitiba. De novo, um parador. Ela subiu em Imbaú. Do

outro lado, em Curitiba, um tal de Cleber.

_ Cleber, eu trouxe cinco frangos, disse ela. Um pra ela, um

pra você. Os outros a gente come junto.

Eu ouvia só um lado da conversa. Ele deve ter perguntado quanto

custou.

_ Cento e quinze. Vinte e três cada um. Imagina, eu dou um pra ela,

um pra você e os outros a gente come junto.

Cleber deve ter se oferecido para pagar uma parte. Pela resposta,

ela não deve ter aceitado. De frango a conversa saltou para

romance. Foi o que eu deduzi.

_ Ele me tratou muito bem. Mas, é homem do interior. Não quer saber

da capital.

E continuou:

_ É um homem de bem. Só vi bondade nele. Faz comércio de bois.

Fazia tudo pra me agradar.

Na serra, a ligação foi interrompida. Novo toque de celular. Era o

Cleber de novo. Queria saber mais.

_ Pois é. Me pareceu um homem bom. Me levou até a rodoviária.

Esperou até eu embarcar. Alguém ligou pra ele falando de cinco

bois.

Cleber deve ter insistido na vinda dele. Ela falou:

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Textos Breves

122

_ É homem do interior. Diz que vem me visitar. Mas, quer que eu vá

para lá. Não se afasta de lá. Tem que cuidar do gado.

Pelo rumo da conversa, ela e Cleber devem ser colegas de trabalho.

Ela comentou:

_ Pego no serviço depois de amanhã.

A situação não deve estar boa na empresa. Depois de um tempo

ouvindo Cleber, ela respondeu:

_ Se me mandarem embora já tenho rumo. De vez em quando trago

uns frangos pra você. Ele me pareceu um homem bom.

E assim caminha a humanidade. Não sei o nome dela, nem dele. Mas,

pelo andar da crise, acho que o romance vai dar certo. Cleber é que

vai se dar bem. De vez em quando vai comer um franguinho caipira.

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Textos Breves

123

RESISTIR. QUEM HÁ DE?

screva algo me manda o facebook. Tão imperativo! Será

que não poderia ser apenas sugestivo:

Já escreveu algo hoje?

Ou então, um pouco convidativo:

Que tal escrever algo?

Ou melhor ainda, informativo:

Seus amigos esperam algo escrito por você hoje.

Talvez até opinativo:

Penso que você poderia escrever algo.

Não seria de todo ruim, se fosse rogativo:

Por favor, escreva algo.

Até mesmo, ilustrativo:

Viu o hot topic do dia? O que acha?

Mas, fruto de uma grande quantidade de comandos programados,

só podia ser comandativo!

O pior? Eu que me julgo tão autônomo, obedeci. Escrevi algo! Arre!

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Textos Breves

124

O ATIVISTA CORDIAL

oje, em uma estação tubo, havia um ativista. Um ativista

cordial. Eu aguardava meu ônibus. Estava a caminho do

campus Botânico da UFPR. Começo de mais um dia de

trabalho. Distraído, acompanhava a repercussão do

afastamento de Cunha da presidência da Câmara de

Deputados e suspensão de seu mandato pelo Facebook. O ônibus

chegaria em vinte minutos conforme o portal de informações da

estação tubo. De repente, um conflito sereno começou a se

desenvolver ao meu lado.

Conflito sereno pode parecer um oximoro, mas penso que você

concordará com o uso do adjetivo nesta situação. Um sujeito alto,

magro e de cabelos cacheados, perto de seus 40 anos, apesar de um

pouco grisalho, entra na estação e se posta ao meu lado. Eu estava

recostado em um tubo metálico que serve para dar algum conforto,

pouco, na falta de bancos nas estações tubo, àqueles que aguardam

a chegada de seu transporte. Não notei a chegada dele. Logo

depois, vejo o cobrador da estação tubo se aproximar e dirigir-se

ao sujeito recém-chegado. Um diálogo conflituoso começou:

_ Você pulou a catraca e não pagou a passagem. Isso não pode.

_ Eu sei. Respondeu o sujeito.

_ Então, volta lá e paga. Não é a primeira vez que você faz isso.

_ Eu sei. De novo, a mesma resposta.

Nisso, eu me afastei alguns centímetros, mas me conservei encostado

no apoio. Temi que a coisa pudesse se tornar mais agressiva. Já

passei da idade de levar um sopapo eventual ou um empurrão que

sobrasse de uma possível luta entre dois homens perto de mim. Mas,

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Textos Breves

125

o diálogo continuou sereno. Nem o cobrador, tampouco o sujeito

alteraram o tom de voz. O cobrador, de baixa estatura, manteve-se

firme:

_ Todo mundo que está aqui pagou a passagem. O que você está

fazendo não é justo.

_ Eu não concordo com o preço da passagem.

_ Se não concorda vai à prefeitura. Aqui tem que pagar.

_ Mas, eu não concordo.

_ Você acha que sua atitude não me afeta? Eu sou responsável pelo

que acontece aqui.

_ Eu sei.

_ Vou chamar a Guarda Municipal. Eles são rápidos. Você é que

sabe.

Nisso, o cobrador pega o celular, digita um número e se dirige a seu

lugar. Havia mais passageiros querendo entrar na estação tubo. Ao

mesmo tempo, chega meu ônibus. Entro. Outros passageiros também

o fazem. O sujeito que pulou a catraca também entrou. Logo depois,

o cobrador entra e se aproxima do motorista que já dera o comando

de fechar as portas. As portas reabrem. O cobrador diz, se dirigindo

ao sujeito:

_ Você não vai. O ônibus não parte enquanto você não sair.

_ Mas eu não concordo, respondeu o sujeito.

_ Não importa. Com você aqui dentro o ônibus não sai.

Nessa altura, pensei comigo:

_ Vou chegar atrasado a meu compromisso.

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Textos Breves

126

Tinha agendado uma sessão de orientação com Bia, doutoranda em

Administração. Mas, para minha surpresa, o sujeito se retira do

ônibus dizendo:

_ Não concordo com pagar passagem para me transportar.

O motorista comanda o fechamento das portas. O sistema de som

informa: Portas fechando.

Eu sigo com os olhos o sujeito. Na estação tubo, ele olha para dentro

do ônibus. É um olhar triste, mas tranquilo. Em seguida, desce da

estação tubo. Eu reflito com meus botões:

_ Lá se vai um ativista cordial.

Deveria se dirigir para o outro tubo no qual passa outra linha na

mesma direção para onde ele pretendia ir. Não é muito longe da

estação onde estávamos. Espero que tenha tido sucesso na outra

estação tubo. Será que vai topar com um cobrador tão cordial

também?

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Textos Breves

127

ALGUMA NOVIDADE? (DIÁLOGO SURREAL)

ovidade?

_ Tudo velho.

_ Mas, como é que pode?

_ Vida tranquila. Rotina de sempre.

_ Não mudou nada desde que nos vimos da última vez?

_ Nada!

_ Como você aguenta?

_ Faço que posso. Afinal, não faz tanto tempo assim.

_ Como não? Meia hora. Você acha pouco?

_ Muito não é, né?

_ Em meia hora, recebo mais de 200 atualizações no feicebuque.

Não é possível que não tenha acontecido nada com você!

_ Tá bom! Eu não queria contar. Pareceu tão insignificante.

_ Nada é insignificante! Eu sabia. O que aconteceu?

_ Arrotei.

_ Como?

_ Arrotei.

_ E o que isso tem de novidade?

_ Fazia cinco anos que não arrotava.

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Textos Breves

128

_ Não acredito. Como você ficou tanto tempo sem arrotar?

_ Foi depois que fiz aquela cirurgia.

_ Me lembro.

_ Notei que não arrotava mais, mas em compensação...

_ O que?

_ Gases em abundância. Constrangedor. Uma flatulência quase fora

de controle.

_ Você tá me gozando, né?

_ Imagina. Fazia meia hora que a gente não se via. Tanto tempo. Por

que iria te gozar?

_ Sei lá. Pra sair dessa rotina maluca que você vive.

_ Tenho que ir. Daqui meia hora a gente se fala. Pode ser que eu

tenha novidades.

_ Mesmo. Mal posso esperar. O tempo demora tanto pra passar.

_ Que barulho foi esse?

_ Acho que peidei.

_ Tchau ligeirinho.

_ Tchau papaléguas.

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Textos Breves

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VIDA QUE ANDA... DE ÔNIBUS

ntem eu vi uma garota chorando. Não pude fazer nada.

Não a conhecia. Ela estava discretamente olhando para a

rua. No canto de uma estação tubo.

Para quem não é de Curitiba, explico. Estação tubo é uma

parada de ônibus urbano em que você paga a passagem ao

cobrador ou cobradora na entrada. Isso lhe dá o direito de

embarcar em qualquer ônibus que passe por ela. O desembarque é

sempre em outra estação tubo. Que pode ser o seu destino, ou ponto

de conexão com outras linhas. É um sistema de transporte eficaz.

Mas, este não é um texto para comentar o transporte coletivo. Quero

falar da vida. Que anda. Nas estações tubo quando não estou

fuçando no celular ou escrevendo como faço agora, observo coisas e

pessoas. A vida se mostra a quem quiser. Basta levantar os olhos do

celular.

Assim, como disse, vi uma guria a chorar. Não a conhecia. Meu

instinto paternal quase me levou a perguntar-lhe por que chorava.

Mas, não tive coragem. Nestes tempos estranhos que vivemos, o

medo de ser mal interpretado leva à solidão e reprime a

solidariedade.

De outra vez, vi um casal com um casal de filhos. Jovens. Transmitiam

uma felicidade contagiante. Embarcaram em uma estação tubo

próxima a um shopping center. Vinham carregados de sacolas. O

prazer do consumo recente parecia resplandecer no sorriso daquelas

crianças e jovens pais. Não resisti ao contágio. Abri um sorriso.

Outro dia, eu no ônibus, entra uma senhora muito obesa. Sentou-se

ao meu lado. Me senti prensado contra a janela. Me encolhi o

máximo. Mas, não adiantou muito. Tentei pensar em outros apertos

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Textos Breves

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da vida. Aquele era só mais um. Um pouco sufocante. É verdade!

Especialmente, para mim que sou meio claustrofóbico. Ainda bem que

o aperto durou somente entre o trajeto de duas estações tubo. Menos

do que muitos apertos da vida.

Algumas vezes, já cruzei com pregadores. Religiosos, não os de

roupa. Apelos aos bolsos, que para muitos usuários já estão

esvaziados de suas moedinhas. Um ou outro ainda acha, lá no fundo,

um trocado. Faz jus a um "Deus lhe pague". Correspondido por um

"amém".

A vida é múltipla nas estações tubo e nos ônibus. Já vi beijo roubado,

ouvi discussão no celular, sorriso amarelo, sono fingido de jovens em

assentos reservados a idosos e muita conversa fiada. Sigo

observando. Tem coisa que até deus duvida. De vez em quando algo

me inspira.

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Textos Breves

131

A MEIO CAMINHO

oi visto pela última vez na sexta-feira. Era quase meia-noite.

Embarcou no ônibus das 23:57 com destino a sua cidade

natal. Trazia consigo uma pequena mochila. Algumas mudas

de roupa. Um livro de bolso que comprara em um sebo no

centro da cidade. Ficara em dúvida sobre qual comprar. Por

fim, decidiu levar o de Dalton Trevisan. Gostava de textos breves.

Ninguém melhor que Dalton para isso. Na carteira pouco dinheiro.

No meio do caminho a tradicional parada de ônibus. A última vez

que tinha feito este trajeto fora há quarenta anos atrás. Se espantou,

pois tudo estava exatamente igual. Os mesmos balcões apinhados de

passageiros com ar sonolento tentando atrair a atenção das poucas

atendentes. Tinham só vinte minutos. Quatro ônibus chegaram quase

que ao mesmo tempo.

Ele descera com a mochila nas costas. Era desconfiado. O livro no

bolso traseiro do lado esquerdo da calça. No direito, a carteira.

Contou os trocados. Dezessete reais em notas. Talvez mais cinco ou

seis em moedas. Pediu uma média e um pão com manteiga na chapa

pra moça que lhe atendeu. Ao servi-lo, deu um sorriso e disse:

_ Você me lembra alguém. Viaja muito por aqui?

Apesar da diferença de idade, não estranhou a informalidade. Ele

com quase sessenta. Ela não mais que dezenove.

_ A última vez que passei aqui você não era nem nascida.

_ Verdade?

_ Sim. Saí de minha cidade bem jovem e nunca mais voltei. Não tinha

ninguém. Fui criado em um...

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Textos Breves

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De repente calou-se. Pensativo. Por que estou falando isso para essa

moça que nem conheço? Ela tentou continuar a conversa:

_ Nossa. Por que está voltando agora?

_ Não sei. Algo me fez ir até a rodoviária e comprei a passagem.

Era a última que tinha. Embarquei sem muito pensar. Aonde moro

também não tenho ninguém. Há dez anos vivo em um...

Parou de novo. A mesma pergunta na cabeça. Por que estou falando

isso pra essa moça? Sentiu uma agonia. O sistema de alto falante

chamou os passageiros embarcados no horário das 23:57. De

repente, falou pra moça:

_ Tem algum hotelzinho por aqui?

_ Não. Por que?

_ Desisti da viagem.

_ Se você quiser pode ficar na minha casa. Tem um quarto vazio.

Sempre hospedo pessoas que perdem o ônibus. Isso acontece muito

por aqui. Faço uma grana extra.

_ Verdade?

_ Sim. Mas, não vá pensar errado. É só hospedagem.

_ Topo. Que horas você sai?

_ Meu turno se encerra daqui meia hora.

Na casa dela, um quarto simples com uma cama de solteiro, um

criado mudo e uma pequena cômoda. Sobre a cômoda, uma jarra e

bacia de louça daquelas bem antigas. Ao lado de um porta-retratos

com uma foto de um casal de jovens em frente à parada de ônibus.

_ Quem são?

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Textos Breves

133

_ Minha avó com um passageiro de um ônibus.

Ele se reconheceu na foto. Não disse nada. Ela continuou:

_ Ela não resistiu à beleza dele com aqueles olhos azuis. Um dia ela

me contou. Não dá pra ver porque a foto é em preto e branco. Mas,

deviam ser como os seus.

_ O que aconteceu?

_ Ela me disse que ele perdeu o ônibus. Ela estava sozinha. Os pais

estavam viajando. Levou ele pra casa. Fizeram amor. No dia

seguinte ele foi embora. Nove meses depois minha mãe nasceu.

Dos olhos dele correram lágrimas. Ela perguntou:

_ Que houve?

Ele ficou calado por um tempo. Ela olhando sem entender. Depois

disse:

_ Vou deixar você à vontade. E saiu.

Quando acordou no dia seguinte, perto das onze horas, ela

percebeu que ele já tinha ido embora. Ao lado do porta-retratos, o

livro de Dalton Trevisan e um bilhete:

"Que bom que pude lhe conhecer. Eu sou o homem da foto com sua

avó. Bom saber que não estou só no mundo. Tenho que seguir

viagem. Esse é o único presente que posso lhe dar."

Ele nunca voltou para o asilo. Ela continua trabalhando na parada

de ônibus. Sempre buscando o homem de olhos azuis. Ele não lhe

disse o nome. Nem sua avó. De vez em quando, de seus olhos azuis,

brotam lágrimas. Ninguém sabe por quê.

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Textos Breves

134

EM TRÂNSITO

(Dedicado a todos aqueles que estiveram ou estão em trânsito

comigo)

título tem múltiplos significados. Encontro-me no aeroporto

de Brasília, aguardando o voo para Curitiba. Acabo de

chegar de Lisboa onde fiquei por três dias. Na linguagem

da aeronáutica, estou em trânsito. Ficarei nessa condição

por pelo menos cinco horas. Tempo mais que suficiente

para pensar, escrever, tomar cerveja...

Na sala de espera, vou comprar uma longneck e a vendedora me

informa que se tomar quatro, a quinta é de graça. Sozinho, não sei

se darei conta do recado... Enquanto isso vou escrevendo. Sóbrio

ainda, pois mal comecei a beber da primeira longneck.

Mas, estar em trânsito tem muitos significados. Não é só o

aeronáutico. Alguém mais trágico poderia dizer que na vida estamos

todos em trânsito. Seja de forma lenta, ou rápida, passaremos pela

vida, indo do nascimento à morte. Não quero me alongar nesse

significado. Está além de minhas preocupações. E, ademais, não estou

interessado no além! Me interessa essa vida da qual sou consciente.

Haverá outras? Para alguns, sim. Para mim, não sei! Vai além - eis o

além de novo - de minha capacidade de imaginação. Algumas vezes,

sinto que gostaria de ter o conforto dessa crença, mas não consigo.

Aos 58 anos, a quase meio caminho dos 59, estou em trânsito. De

onde será que vem nosso costume de marcarmos nossa passagem

pela vida em tempos anuais? A cada começo de ano, não me refiro

ao do calendário, mas a cada começo de novos anos de vida,

parece que é inevitável que reflitamos sobre o que foi feito no ano

anterior e o que queremos para o próximo. A cada 365 dias,

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Textos Breves

135

transitamos entre o que queríamos ser e o que conseguimos ser. Para

mim, a diferença é sempre brutal! Mas, adepto da emergência -

daquilo que emerge em nossa lida com o cotidiano - como modo

explicativo da vida, oposto ao deliberado, não me surpreendo. No

trânsito anual, a cada 365 dias, nosso destino é refeito e

reimaginado constantemente. Ainda bem, se tudo corresse como o

planejado acho que eu morreria de tédio. Seria um triste fim para o

tipo de trânsito que comentei acima.

Nessa altura do texto, estou na segunda longneck. Será que darei

conta das quatro primeiras, para ganhar a última? Tempo é o que

tenho de sobra. Não sei se sobrará lucidez ao final do texto! O que

me lembra de um novo significado para trânsito: ir da lucidez à

embriaguez. Espero ser capaz de parar a meio caminho. Será que

conseguirei?

Mas, voltando ao tédio, ou melhor à fuga do tédio, lembrei-me de

uma passagem que li no livro de Jean-Claude Carrière – A

Linguagem Secreta do Cinema – quando estava voando de Curitiba

para Lisboa. Uma obra magistral que me marcou. Carrière discorria

sobre o poder das imagens, e lembra que, mesmo poderosas, estas

têm limites. Para ele, o tédio é uma das sentinelas que, quando

parecemos estar entorpecidos, cochilam dentro de nós. De repente,

ele desperta. De forma absolutamente bela, eis como Carrière

descreve o despertar do tédio:

Podemos estar entorpecidos, mas as sentinelas cochilando dentro de

nós ainda estão lá. Dentre estas, a principal é o tédio, o velho e bom

tédio, esta nossa maravilhosa capacidade de perder o interesse, de

instintivamente recusar a mediocridade que nos é oferecida. O tédio

é nosso fiel aliado, nossa linha de frente em defesa, aquela que os

inimigos têm dificuldade de ludibriar (p. 67).

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Textos Breves

136

Me impressionei com a forma positiva com que Carrière se refere ao

tédio. Mais à frente, na mesma página, ele descreve o surgimento do

tédio em uma sala de cinema:

O tédio é puro, incorruptível, irrefutável. É acompanhado por sinais

físicos, visíveis, contra os quais toda argumentação é inútil. Começa

como uma sensação de vazio na boca do estômago, seguida de

perto por um rápido piscar de olhos, precursor do bocejo. A atenção

vagueia, o olhar perde o foco, começamos a reparar nas pessoas ao

redor, na sala de exibição, nas luzes tentadoras indicando

discretamente a saída; nos perguntamos que horas devem ser, para

qual restaurante seguir depois do cinema, pensamos até na rotina do

dia seguinte. Lá no fundo, torcemos para o filme se acelerar e chegar

logo a uma conclusão, gostaríamos de ser uma hora mais velhos...

Me emocionei ao ler este trecho, ainda no avião de Curitiba para

Lisboa. Me emocionei porque me vi nele! Hoje, quatro dias depois,

vejo o trânsito significado nas palavras sobre o tédio de Carrière. O

trânsito do desejo em direção ao afastamento, à repulsa, talvez até

ao asco... Carrière fala do cinema, mas de forma metafórica, o tédio,

enquanto trânsito, pode significar a busca do novo, do diferente, do

não entediante em qualquer dimensão de nossa vida. Trânsito

também!

Vou pegar a terceira longneck. Esse calor de Brasília estimula a sede!

Já volto.

Pego uns petiscos para acompanhar a cerveja. Prudência e caldo de

galinha não fazem mal a ninguém! Ainda sóbrio, chego ao trânsito

que me inspirou este texto. Comecei minha carreira docente na

Universidade Estadual de Londrina em agosto de 1981. Quatro anos

antes, havia escolhido cursar administração porque estava

trabalhando com meus pais no pequeno supermercado que tiveram

em Londrina. Pensava em auxiliá-los na gestão da empresa. Todavia,

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Textos Breves

137

dois ex-professores, Nardir e Genésio, me convidaram para ser

auxiliar de ensino no Departamento de Administração. Não fiz

concurso, naquele tempo esta não era uma prática institucionalizada.

Seis meses depois de ter sido contratado, houve uma regulamentação

da carreira docente, e fui beneficiado por já estar trabalhando na

universidade. Fui enquadrado no primeiro nível da carreira docente.

Um privilégio que pode parecer, para muitos, algo errado. Mas, sem

falsa modéstia, acho que Nardir e Genésio estavam certos, eu tinha

que fazer o trânsito da pequena empresa familiar para a docência.

Em determinado tempo, deixei as atividades na pequena empresa

dos meus pais e passei a me dedicar somente à universidade. Creio

que fui bem-sucedido! Mas, não posso deixar de reconhecer, que

outro poderia ter sido bem-sucedido também. Carrego essa pequena

(?) culpa! Somente 31 anos depois, fiz meu primeiro concurso, o de

professor titular da UFPR.

A docência tem sido um trânsito muito significativo em minha vida.

Estou nele há mais de trinta anos. Uma longa estrada que tenho

percorrido. No caminho encontrei pessoas maravilhosas. Encontrei as

odiosas também! Mas dessas me esqueço logo. Epa! Acho que não

deveria escrever essas coisas! Será que, no trânsito entre sobriedade

e embriaguez, já estou mais próximo da última? Acho que não. O

discurso ainda me parece lógico! Mas, não tenho certeza que sou o

melhor juiz disso!

Nos últimos quinze anos, me envolvi com o ensino de mestrado e

doutorado em Administração. No entanto, o tédio parece ter

acordado. Essa maravilhosa força de que fala Carrière! De uns

tempos para cá, comecei a sentir os sinais físicos de que falou

Carrière. Principalmente um vazio na boca do estômago! E, também,

um desejo muito grande de que o filme acabe logo! Tenho procurado

as luzes que indicam o caminho da saída. Bocejos têm sido

frequentes. Simone, minha amiga, diria que tenho olhado muito para

o teto. Este, segundo ela, é um claro sinal que dou, sempre

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Textos Breves

138

inconsciente, de que algo ou alguém perdeu meu interesse. Eu prefiro

dizer que tenho déficit de atenção. Obviamente não diagnosticado!

Mas, o que fez com que o tédio despertasse? Essa pergunta, que

talvez você me faça, aliás com todo o direito, merece uma resposta.

A minha resposta tem a ver com o fato de que transformaram o

gênero do filme. O que era uma aventura, algumas vezes com um

pouco de drama, foi transformado em filme de horror. Eu nunca

gostei de filme de horror! A aventura do conhecer foi transformada

no horror de publicar. Ao longo dos anos, houve um redirecionamento

da pós-graduação stricto sensu em Administração no Brasil. Aos

poucos, nós professores, fomos nos transformando em produtores de

textos que têm que ser publicados, custe o que custar. A escrita

deixou de ser a consequência de reflexões e estudos e passou a ser

uma obrigação. Nosso papel passou a ser o de um transformador:

transformamos pessoas em escrevinhadores de artigos. Por incrível

que pareça, isso é uma exigência para a concessão do título de

mestre ou doutor a que os alunos devem cumprimento! Está nos

regulamentos de muitos cursos (será que em todos?) a obrigação do

aluno comprovar a publicação ou, pelo menos, o encaminhamento de

algum texto para publicação em periódico nos chamados extratos

superiores do Qualis. Parece que ficou em segundo plano ajudar

pessoas a se formarem como mestres e doutores. Nessa sala de

exibição, não havia como o tédio não despertar!

Com o tédio, vem um novo trânsito: quero voltar a ser apenas

professor de Administração. Quero compartilhar com os estudantes

uma jornada temporária sobre o que significa a Administração.

Como praticá-la? Quais as possibilidades e os limites de um agir

administrativo em tempos de desenvolvimento sustentável? Tenho que

deixar a pós-graduação stricto sensu. Minha relutância em publicar o

que não julgo publicável poderá prejudicar a avaliação do

programa. Me volto para o ensino de graduação.

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Textos Breves

139

Se, ao longo dessa jornada, um aluno ou uma aluna, sentir que está

pronto ou pronta para escrever alguma coisa, espero poder ajudar.

Mas, não posso mais continuar nesse filme de horror! Só posso

escrever quando sinto que tenho algo a dizer. Gostaria que esta

fosse uma escolha dos alunos também. Foi o que fiz há poucos dias

quando resolvi descobrir sobre o que se escreve no tema do

empreendedorismo sustentável no Brasil. Cá entre nós, vi tantos textos

que foram escritos para cumprir tabela! Os textos revelavam sua

intenção oculta: marcar pontos na avaliação do programa de pós-

graduação. De ponto em ponto, a pós-graduação enche o papo! E o

saco dos leitores! Ups! Será que o teor alcoólico está subindo mais do

que o aceitável?

Minha ida a Portugal foi para apresentar um texto na 5a.

Conferência Ibérica de Empreendedorismo que aconteceu em Oeiras

entre os dias 15 e 16. Nesse texto há uma história que queria contar.

Não é o melhor texto que já fiz na minha vida, mas é um texto que

saiu de minhas entranhas. Tinha que vir a público! Será que vai se

tornar um artigo em alguma revista científica? Talvez sim, mas se vier

a ser publicado, o que menos interessa é o status da revista no Qualis

da Capes. O que me interessa é aprofundar o entendimento de uma

experiência empreendedora à luz de algumas proposições

conceituais. E, com sorte, ser capaz de ir além delas.

Está chegando a hora de ir buscar a quarta longneck. Mas,

encerrarei este texto antes disso. Não acredito que seja possível

retornar aos filmes de aventura com um pouco de drama. O caminho

da pós-graduação stricto sensu está predestinado, o gênero

dominante é e será o horror. Nos anos que me restam na atividade

docente, voltarei a focar exclusivamente na graduação. Nesse nível

de ensino, farei ensino, pesquisa e extensão. Na pesquisa, a iniciação

científica, uma aventura com alguma ação e um pouco de drama.

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Textos Breves

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Depois, quando estiver me aproximando da aposentadoria, partirei

para mais um trânsito: fazer algo no campo do cinema. O que será?

Ainda não sei. Se você se lembra, algumas linhas atrás, falei que sigo

a emergência. Algo surgirá e não será entediante!

Enquanto isso, se você quiser conversar comigo, sobre administração,

sobre cinema, sobre a vida, qualquer coisa, desde que não seja

futebol, religião e política, você sabe: a porta de minha sala está

sempre aberta. Se eu olhar para o teto, me puxe para baixo. Tenho

certeza que algo interessante você tem a me contar!

Vou pegar a quarta longneck. Ainda há tempo de sobra antes de

meu embarque com destino a Curitiba. Vou garantir meu direito à

quinta garrafa. Hic!

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Textos Breves

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TRÊS HAIKAIS

huva persiste

No fio elétrico

Pardal resiste.

Será que se banha?

Ou da imaginação

É outra artimanha?

Um pombo cisca

Minha alma arisca

Não é boa bisca.

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Textos Breves

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SURFE ABSTRATO

lguns no mar surfam,

Outros só no concreto.

Nas ondas do pensamento,

Abstrato surfo eu.

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Textos Breves

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POESIA PROSAICA

endo um bule

Para no jóquei clube

Apostar uma pule.

Vendo um coador

Para na loteria

Tentar ser ganhador.

As xícaras? Não vendo!

Pode ser que no café turco

A sorte acabe vendo.

(Depois de ver João Cabral em Recife-Sevilha de Bebeto Abrantes)

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Textos Breves

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ESCAMBO EMOCIONAL (UM POUCO SURREAL)

roco uma estranheza

Por um pouco de leveza

Troco uma melancolia

Por uma melancia

Troco um ora veja

Por um saco de cereja

Troco um estremecimento

Por qualquer sentimento

Troco tanto tédio

Pelo seu assédio

Troco um estupor

Por qualquer isopor

Troco esse meu rubor

Pelo seu doce sabor

Troco minha loucura

Por salame meia cura

Nesse escambo imaginário

Só não aceito sofrimento

Em troca desse encantamento.

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Textos Breves

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AUTORRETRATO

ão trovejo,

Tampouco relampejo

Apenas vejo.

Não chuvisco

Nem faço rabisco

Pra não correr risco.

Sei que medito

Às vezes, tenho dito

Me prefiro escrito.

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Textos Breves

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NA VIDA

ou levando a vida

Com graça vivida

Embora haja quem duvida.

Fazendo o que posso

Às vezes quase tenho um troço

Alguém até reza um pai nosso.

Mas pra mim reza não faça

Tampouco tolero trapaça

Meu caminho o desejo traça.

Conservo meu sorriso

Não pense que perdi siso

Faço o que quero e preciso.

Nas pedras tropeçando

A vida vou levando

Afinal, me chamo Fernando.

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