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ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Maio/2013
http://portalanda.org.br/index.php/anais 1
O DISCURSO MODALIZADOR DA TELEVISÃO COM A DANÇA
JOUBERT DE ALBUQUERQUE ARRAIS (PUCSP)
RESUMO Em 2010, o jovem dançarino de rua John Lennon da Silva “surpreendeu” o júri do concurso de novos talentos Se Ela Dança, Eu Danço (canal SBT, 2011, Brasil), quando, na audição para este programa, para o qual foi “convocado”, dançou uma versão de dança de rua para uma peça de balé. O sucesso foi imenso, principalmente na Internet. Nesta situação comunicacional, que opera na lógica do contrato e da competição, evidenciam-se discursos modalizadores (desejos, vontades, etc) que revelam graus distintos de engajamento. Nela a dança mediatizada passar a ser engenhada não apenas pela espetacularização, mas, sim, pela lógica das convocações, onde a dança passa a fazer parte de uma biopolítica da mídia: um saber/poder dançar. PALAVRAS-CHAVE: Dança na Tevê, Reality Competition Show, Se Ela Dança Eu Danço, Discurso Modalizador.
THE MODALIZER DISCOURSE OF THE TELEVISION WITH THE DANCE
ABSTRACT In 2010, the young street dancer John Lennon da Silva "surprised" the jury of the competition for new talent Se ela dança, eu danço (channel SBT, 2011, Brazil), when in listening to this program, for which was " summoned ", danced a version of street dance for a piece of ballet. The success was tremendous, especially on the Internet. In this situation communication, which operates on the logic of contract and competition, show up modalizers discourses (desires etc) which show different degrees of engagement, in where the dance now be engineered mediated not only by the spectacle but, rather, by the logic of the convocations, in which the dance become part of a biopolitics of media: a knowledge/power to dance. kEYWORDS : Dance on TV , Reality Competition Show, Se Ela Dança Eu Danço, Modalizer Discourse.
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Introdução
Um pergunta vem me acompanhando, quando se trata de falar sobre o
comitê temático Produção de Discurso Crítico sobre Dança: se somos
produtores de discursos sobre dança, em que sentido e possibilidade tem esse
discurso de se tornar crítico? Tal inquietação se desdobra quando pensamos
nos outros comitês, que também tratam de discursos sobre dança, quer seja na
história, na educação, nos processos de criação etc. Então, qual seria nossa
especificidade, referindo-me ao comitê em questão?
Desse modo, esse artigo nasce de um desejo/vontade de partilhar o
assunto da tese de doutorado que desenvolvo na PUCSP, percebendo uma
recorrência que pede uma reflexão crítica urgente: a “presença” da dança na
televisão. Especificamente, interessa-nos a relação da televisão com a dança,
em termos da produção de um discurso do “corpo competente”, sendo a dança
tratada como um produto midiático que vem se popularizando na relação corpo
que dança, marketing publicitário e índices de audiência.
Certos programas de TV vem colocando a dança no limiar da
espetacularização, mas que, contraditoriamente, vem gerando sociabilidade, ou
seja, as pessoas vem dançando e falando mais de dança quando esta aparece
na televisão, eis o paradoxo que nos mobiliza nessa crítica de/da TV.
Ressalto que durante os trabalhos do comitê em questão, no encontro
2013 da Anda, apenas uma proposta de artigo elencou esse tema, trazendo em
seu titulo sua pretensão investigativa de pesquisa, em nível mestrado: O que o
artista faz com o que a TV faz da arte?, de Bruno Freire (PUC/SP). O diálogo
desse artigo com o que aqui partilho é uma proposta de interlocução, sendo a
escolha feito sob o critério do assunto em comum.
Os outros tinham questões transversais que, felizmente, convergiram e
convergem para, inclusive, repensarmos a ementa deste comitê, como
começamos a fazer durante os dois dias de encontro na Escola de Dança da
Universidade Federal da Bahia (UFBA) em Salvador.
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O Mundo da Dança na Televisão
Constatamos uma presença recorrente da dança na televisão
contemporânea na primeira década do século 21, por meio de
programas/seriados temáticos do tipo reality competition show. Esse subgênero
televisivo, ainda iminente, distingue-se do padrão “reality show”, porque não
opera na lógica espetacularizada que age pelo confinamento e pela reclusão,
mas pela ação de chamar para fazer parte, recrutar, convocar. Trata-se da
cultura midiática de convocação (PRADO, 2010), um desdobramento, ou
mesmo, ramificação e especialização desse padrão:
Os enunciadores das máquinas comunicacionais se dedicam à especialização estética da mercadoria, já que a atividade de leitura, audição, televisão e imersão convoca o receptor a experiências multissensoriais construídas com apoio dos especialistas. Os enunciadores midiáticos, do marketing e da publicidade são sujeitos-supostos-sabedores que fornecem aos enunciatários o saber, na forma de mapas, ou seja, receitas modalizadoras para as ações (PRADO, 2008: 11).
Interessa-nos, nesse processo, os discursos, formados de enunciações,
das pessoas ditas comuns ou artistas aspirantes anônimos. Elas, de modo
geral, participam desses concursos na busca de realizar o sonho de ter uma
carreira artística, de fazer parte do que (re)conhecem como “mundo da dança”;
logo, conquista uma visibilidade midiática por meio da dança. Cada pessoa
inscrita é selecionada para uma primeira apresentação, chamada “audição”,
que faz parte do início do processo seletivo.
Ao dançar na e para tevê, o candidato ou a candidata precisa mostrar
competências que o/a tornem apto/a a concorrer nas etapas eliminatórias
seguintes. Na medida que conseguem boa audiência e publicidade,
prosseguem na competição. Como atesta o depoimento de um candidato John
Lennon da Silva (JLS) para o programa Se ela dança, eu danço, do canal SBT,
conhecido por ter inaugurado, mesmo com o veredito de plágio, o formato
reality show no Brasil, com “A casa dos Artistas”, seguindo com programas de
competição de dança, que foi prometido ser retomado este ano, 2013, o que
não aconteceu. Tal depoimento do dançarino foi dado durante audição seletiva
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para o programa Se ela dança, Eu danço, pelo canal brasileiro de televisão
SBT, que diz:
Nome de artista eu já tenho, a questão é que eu quero sim ser artista, vim aqui propriamente por isso, pra mostrar o que eu sei. A dança na minha vida significa muita coisa. Meu sonho mesmo na dança é viajar pelo mundo, fazer algumas turnês e ser conhecido.
Nesta ação de dançar na tevê para um júri especializado, JLS confessa
ambições e expectativas, nas quais se evidenciam discursos modalizadores
que anunciam um certo “projeto midiático” da tevê para a dança com forte viés
biopolítico e ancorado no que lhe é exterior. Ou seja, nas falas, percebemos
certa modalização do discurso, que é expressa por elementos linguísticos
(verbos modais) que funcionam como indicadores de intenções e atitudes;
certezas e probabilidades; desejos, vontades e empreendimentos; e assim,
'revelam' graus distintos de engajamento.
Este projeto, ao que parece, não é pensado pelo ambiente televisivo,
mas nele e com ele forjado a partir do que acontece fora da tevê. Nos EUA, o
canal norte-americano Fox produz, desde 2005, segundo o padrão das
competições de música, o programa So You Think You Can Dance?, já na
nona edição e com franquias em cerca de 22 países, dentre os quais,
recentemente, estreou uma versão homônima na China. É dele o padrão
seguido pelo canal SBT, com o programa Se ela dança, eu danço, que não fez
tradução literal, porém, manteve o mesmo layout e certa semelhança, com
eliminatórias de apresentações solo e também, de grupo.
Porém, fora da tevê, temos festivais de dança, como, por exemplo no
Brasil, o de Joinville, já há duas décadas sendo realizado com caráter de
competição, que não cumpre uma função a longo prazo, mas imediatista, uma
vez que os critérios não são claros, como afirmou a crítica de dança Helena
Katz, em entrevista realizada há mais dez anos e, comparado às últimas
edições, mostra-nos que este evento de dança avançou muito pouco naquilo
que poderia ser seu diferencial, o caráter educacional, já que se trata de um
empreendimento comercial entre escolas:
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Apenas no dia em que o festival decidir ponderar a respeito do seu formato e de sua responsabilidade com o mesmo profissionalismo com que aplica ao seu planejamento de marketing se poderá falar em avanço ou retrocesso com pertinência. Todo o resto, distanciado desse contexto, só pode ser entendido como teste de mercado - rascunhos de mudanças nascidos das pressões críticas que foram se avolumando nos últimos anos (KATZ, 15/07/2001).
Não por acaso, os programas que constituem o segmento
comunicacional dos seriados televisivos de competição de dança, podem ser
chamados também de reality competition dance show, transformam-se, eles
mesmos, em mídias dos valores fundamentais do neoliberalismo: o mercado
controla a produção, o indivíduo tem mais importância que a sociedade e a
competição gera inovação. Diz respeito ao 'discurso competente' desses
concursos televisivos, enquanto ação no mundo, e que esse discurso vai sendo
institucionalizado enquanto 'discurso do corpo competente'. Assim, constitui-se,
ele mesmo, em corpomídia dos valores fundamentais do neoliberalismo,
construído com enorme visibilidade em programas de tevê que associam
entretenimento e competição às políticas do corpo.
Não se trata, portanto, de uma dança midiatizada apenas (veiculada),
mas de uma dança mediada, ou seja, de um corpo dançante que se constrói
por processos contaminatórios de mediação cultural (KATZ & GREINER,
2001). Em uma sociedade de mercado, e não mais industrial, corpos tornam-
se mercadorias e, no caso da dança, corpos dançantes passam a fazer parte
de uma pedagogização da mídia que fortalece estereótipos, dita formulas,
defende manuais etc, tudo isso em prol de como se deve dançar, ou melhor, de
quem sabe/pode dançar.
A dança na mídia televisual tem sido, assim, um tema recorrente na
primeira década do novo século, sendo a televisão o meio onde esse
movimento se faz mais evidente. Eis uma recorrência (ou mesmo, ocorrência),
que se configura não tanto mais como ação coadjuvante, mas como ação
protagonista, uma vez que a dança e, mais especificamente, o corpo dançante
vem sendo o foco temático de muitos programas seriados.
Inclusive, com alguns exemplos de telenovelas. Ainda no século
passado, no final dos anos 70, fez grande sucesso a telenovela Dancin'Days,
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claramente influenciado pelo movimento disco. Já na primeira década do
século 21, tivemos a telenovela Dance Dance Dance (Record), como também a
participação da bailarina celebridade Ana Botafogo, vivendo uma professora de
balé (ou seja, ela mesma) em novela Global. Vale ressaltar que foi nesta
década que começou a reverberar no Brasil os programas seriados do tipo
reality show, sendo seu precursor o programa “A casa dos Artistas” (SBT).
Não há, pois, como desconsiderar que existência de uma produção de
imagens televisuais que relacionam, rotineiramente, a dança com uma
competição agônica, e não tanto de especialização; e, por conseguinte, esta
competição gera um tipo específico de competência que interessa mais ao jogo
midiático neoliberal (FREIRE FILHO; COELHO, 2012). São imagens não
apenas televisionadas, mas sim televisivas no sentido de uma hiperprodução
semiótica (DURÃO, 2008), que passaram a ser difundidas em outras lógicas de
tempo e espaço.
No capitalismo pós-moderno, o subsistema dos media e da publicidade não mostra os sintomas da pós-modernidade que acompanham a implantação econômico-cultural dos programas de indeterminação e de vida flexível ou líquida. Com o fim de universalizar o consumo advindo com a sociedade não-repressiva, tal subsistema constrói regimes de visibilidade e de interação, em que se apresenta somente o lado glamoroso da arte de se equilibrar num chão movediço, que brilha nos corpos soltos, bonitos, jovens, rejuvenescidos e turbinados, preocupados em cuidar da qualidade de vida, da beleza, da saúde e do prazer efêmeros, ou que se incorpora nas personalidades discursivizadas a partir de significantes do sucesso e da riqueza e em seus emblemas. Entre as radicais transformações culturais e mercadológicas implantadas na passagem da modernidade para o período que muitos qualificaram de pós-modernidade, estão a diferença de vivência do tempo e do espaço e dos modos de construir a própria individualidade (PRADO, 2008: 90).
Nesse contexto maior, interessa-nos o enfoque nos concursos de dança
na televisão enquanto dispositivos midiáticos que modalizam o discurso, a
partir de uma audição pré-seletiva para o programa Se ela dança, Eu danço,
até o momento, com apenas uma edição produzida pelo canal SBT. Como
também, refletirmos a respeito da descartabilidade do sujeito, segundo Bauman
(2008), este sujeito “líquido” e individualizado que se diferencia
homogeneizando-se, um “indivíduo sitiado” (idem, 26), e que pode ser
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encontrado nos programas competitivos de tevê de dança, que seguem o
formato reality show.
Pensar os concursos de dança na televisão nos remete aos regimes de
visibilidade midiática da televisão, que dizem respeito à modalização dos
discursos. Nas falas e atitudes das pessoas que compõe o juri, as
discordâncias seguem o papel publicitário da comunicação televisiva e de um
tipo de dança que sirva às metas dessa mídia, uma dança que ultrapasse os
limites do corpo e que impressione o telespectador comum. Os candidatos
destes concursos fazem todo o esforço para se adequar às ditas expectativas
técnicas e o júri elimina os que não conseguiram atingir essa meta.
As audições, essas prévias do grande show, mostram-se como
eficientes dispositivos midiáticos, selecionam quem está apto, por enquanto, e
descarta quem não está; ou mesmo, descarta momentaneamente, pois há a
meta da reciclagem, outro aspecto que nos ajuda a avançar nessa discussão,
no sentido do empreendedorismo de si mesmo, essa “dança s/a” que temos
como assunto/hipótese.
Os enunciadores das máquinas comunicacionais se dedicam à especialização estética da mercadoria, já que a atividade de leitura, audição, televisão e imersão convoca o receptor a experiências multissensoriais construídas com apoio dos especialistas. Os enunciadores midiáticos, do marketing e da publicidade são sujeitos-supostos-sabedores que fornecem aos enunciatários o saber, na forma de mapas, ou seja, receitas modalizadoras para as ações (PRADO: 2008: 97).
Por intermédio da mobilização de emoções, valores e histórias
exemplares, e contando com a participação de especialistas, estes concursos
produzem uma ação nefasta, criando opções e responsabilidades éticas e
comunicacionais que precisam ser problematizadas, uma vez que afastam o
telespectador comum de um engajamento crítico coletivo. Tal postura acarreta
um poder avassalador na compreensão das pessoas, contribuindo para uma
percepção de mundo acrítica, e que já há algum tempo existe na televisão e,
aos poucos, vem se consolidando como um 'jeito televisivo' de lidar com a
dança e o corpo que quer dançar 'profissionalmente'.
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Nestas audições enquanto seleção de elenco, a influência da tevê, em
termos de estandardização, pode ser percebida como dispositivo de poder,
quando os veredictos enaltecem os aptos porque 'têm uma boa técnica e bom
corpo', os vocacionados porque 'têm o dom e o talento' e os esforçados porque
'podem mas precisam trabalhar mais'; e, ainda, os desajeitados porque 'não
nasceram para dançar'. A audição passa a ser um procedimento de escolha em
termos de políticas do e sobre o corpo, quando o candidato, ganhador ou
perdedor, é capturado pela máquina midiática da televisão, em termos de
estratégias de audiência, como também é testado em suas competências e
habilidades. “Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo,
investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica”
(FOUCAULT: 1994: 80).
A importância dos modelos de corpo que esse discurso televisivo vai
montando com suas imagens midiatizadas da dança merece bastante atenção
investigativa, em termos ideológicos e cognitivos, no âmbito da Comunicação.
Os júris “especializados” ditam o que é competência e o que não é
competência a partir de uma prática imposta pelo mercado. Nessa operação,
pessoas, corpos e danças transformam-se em mercadorias, em que tais
modelos vêm certificando identidades fixas ou estilos de vida idealizados; e que
são problemáticos quando reforçam uma ideia de corpo fabricável, moldável,
incutindo a competição no corpo quando este precisa ser mantido, a todo
custo, dentro dos padrões corporais ideais de mercado.
Trata-se, assim, na sociedade de controle do capitalismo globalizado, de fornecer programas midiáticos, regados pelo imaginário da publicidade e do marketing, para guiar os indivíduos aos seus objetos de desejo. Tais programas constroem regimes discursivos de visibilidade, fortemente sensorializados, em que certos itens são tornados positivos e podem vir às cenas midiáticas com seus modos de usar e suas receitas de vida boa, enquanto outros são disforizados e relegados ao ostracismo (PRADO: 2008: 98-99).
A promulgação da competência pela competição vai na direção das
relações neoliberais que hoje nos governam. “O controle da sociedade sobre
os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia,
mas começa no corpo, com o corpo”, diz Foucault (1994: 80). Pois, se é no
corpo que estão os subsídios para pensar processos de produção,
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armazenamento e transmissão da informação, por contaminação e por redes
de conexão, “o próprio corpo resulta de contínuas negociações de informações
com o ambiente e carrega esse seu modo de existir para outras instâncias de
seu funcionamento” (KATZ & GREINER: 2001: 72).
Estas situações de dança configuram-se como imagens televisivas
bastante difundidas na Internet, muitas delas conhecidas a partir deste meio, o
que faz a tevê criar uma comunicabilidade de clichês onde o corpo opera
segundo parâmetros publicitários de um mercado sedento por produtos
diferenciados e/ou casos de sucesso e fracasso.
Nestas audições a serem investigadas, evidenciam-se as expectativas
dos profissionais que avaliam e escolhem; e dos(as) dançarinos(as) que
aceitam serem mensurados em suas habilidades “artísticas”. As regras e
parâmetros são “estritamente técnicos”, entendidos como o desempenho físico
do corpo sem intuitos autorais, comprometido apenas com as exigências
motoras do corpo para o júri. No ambiente da televisão, ganha presença
espetacularizada, uma vez que se trata do estereótipo e senso comum do que
vem a ser um bom bailarino/dançarino ou boa bailarina/dançarina.
Logo, esse estritamente técnico televisivo já nos é espetacularizado e
que dizem respeito às competências do corpo para dançar em situação de
avaliação: corpos atléticos, tecnicamente aptos; e, quando não, os corpos
expressivos de “caras e bocas”.
Como, na passagem de uma cultura de massa para uma cultura das
mídias (PRADO, 2008), transformamos nosso jeito de nos relacionarmos,
cognitivamente, com aquilo que nos é posto pela televisão contemporânea,
reconfigurada com o advento da internet, como um jeito de viver midiatizado?
Investigar o discurso do corpo competente/competitivo é, assim, falar de
regimes de visibilidade nos media, o que implica considerar temas biopolíticos
que estabelecem tipos específicos de contrato forjados pelos enunciadores
midiáticos, em torno do sucesso, saúde, riqueza e felicidade. “Os contratos
comunicacionais são construídos para que a mídia funcione de modo
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performativo, ou seja, o dizer do enunciador todo-sabedor faz fazer nesse
campo discursivo” (PRADO, 2008: 98).
A noticia abaixo é um tanto inquietante, se atentarmos para o fato de
que a dança na tevê, a partir de concursos de novos talentos, é um assunto
ainda pouco discutido. Refere-se à audição do jovem dançarino John Lennon
da Silva (JLS) para o programa “Se ela dança, eu danço”, foi um sucesso em
2010. Contudo, constatamos a construção e difusão de “certa imagem de
dança” na televisão contemporânea enquanto arte da competição. Uma notícia
online, publicada no site do jornal Correio Braziliense sobre esse dançarino,
que nos ajuda a contextualizar nossa discussão.
O solo A morte do cisne criado em 1905 pelo russo Mikhail Fokine e a música de Camille Saint-Saens retratam o último voo de um cisne, antes de ele morrer. Na versão original, a bailarina, com figurino impecavelmente branco e na ponta dos pés, interpreta toda a agonia da ave se debatendo até desfalecer. No fim do ano passado, um rapaz de 20 anos, morador do bairro de São Mateus, na Zona Leste de São Paulo, elaborou um novo jeito de dançar a coreografia imortalizada pela bailarina Anna Pavlova. No lugar de um colã e das sapatilhas; calça jeans, camiseta e tênis. Em vez de balé, street dance. O autor da façanha tem nome de gênio da música, mas quer trilhar a carreira na dança: John Lennon da Silva. Sua apresentação inovadora de A morte do cisne, que foi ao ar no programa Se ela dança, eu danço, do SBT, no fim de fevereiro, virou hit no YouTube. Em entrevista por telefone, John conta que a coreografia, que foi capaz de emocionar os três jurados que participam da atração, foi concebida em outubro do ano passado no projeto vocacional de dança que participa (BRANT, 13/03/2001).
Muitos dos programas produzidos nesse ambiente midiático, segundo
recorte histórico da primeira década do novo século, tem a presença da dança
como sinônimo de boa audiência, gerando retornos publicitários consideráveis.
Vem atraindo não apenas os ditos profissionais, mas também pessoas ditas
comuns que almejam o estrelato nas “telinhas”, uma chance quase imperdível
de fazer parte do glamourizado mundo midiatizado da dança. Tratam-se de
ações modalizadoras, na sociedade, da mídia televisiva quando esta populariza
a dança como arte de(a) competição.
Importa-nos o que emerge como discurso nesse momento de
enfrentamento entre dança, candidato e juri, com atenção a peça A morte do
cisne, interpretada ou reinterpretado por JLS, como ele mesmo diz, e que
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causou emoção e surpresa. Levando em conta a dinâmica espetacular do
ambiente midiático da tevê, interessa-nos perceber o que engendra tais
discursos para além desse simulacro espetacular, uma vez que a tevê, mesmo
direcionada ao consumo e à audiência, mobiliza pessoas em suas alteridades,
constrói sociabilidades.
Ao dançar a “sua” morte do cisne, JLS midiatiza no e pelo corpo (e não
simplesmente através de) uma coreografia de balé numa roupagem
contemporânea e, nesse movimento estetizante, dá ao telespectador-internauta
(no caso, mais o internauta) a oportunidade de conhecer a peça de balé na
interpretação ao estilo street dance. Midiatiza e faz-se midiatizar no ambiente
competitivo de uma audição televisiva de dança de uma reality show. Essa
ordem modalizante, seguindo com Prado (2008, 2006), é também discutida por
Sodré (2002), quando este nomeia a cultura midiática de bios midiático, uma
nova forma de vida; ou mesmo Debord (apud PRADO, 2012), se entendermos
espetáculo como um dispositivo naturalizador.
A dança de JLS configura-se como um corpo masculino que “executa”
uma coreografia historicamente dançada por corpos femininos, bailarinas. Faz
jus ao que nome dado ao programa, Se ela dança, Eu danço, inspirado no
refrão de uma música de um funk e não com o nome do programa original que
copia, sendo uma replicação não autorizada do original So you think you can
dance?, para o canal de TV SBT se livrar da obrigatoriedade de pagar direitos
de uso, como é rotina desse canal, que no Brasil inaugurou o formato reality
show com A casa dos Artistas, no ano de 2003, e que depois foi processado
pela TV Globo por plágio.
Ao assistir a essa audição de dança, nota-se o forte apelo emotivo e
motivante, que vem da “história” contada na coreografia original, como define o
jurado João Wladimir, que ora da tevê, João Wladimir é um dos diretores
artísticos do Festival de Dança de Joinville, hoje, o grande evento competitivo
de dança do Brasil, desde 1992. Ele interroga, coçando o queixo, se JLS
conhecia a versão original da Morte do Cisne:“Você sabe que um cisne se
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debatendo até a morte e é feito por uma bailarina nas pontas, toda de branco, a
versão original é essa...”.
Trata-se do modo característico de operar da televisão, que mobiliza
emoções e sentimentos em quem vê tevê no aparelho de tevê ou na tela do
computador, ou mesmo no celular. Ao se utilizar desta estratégia de
convencimento e surpresa, diante do juri e de uma situação de avaliação, JLS
dança para causar “boa impressão” (diga-se satisfazer as expectativas), tanto
que o jurado João Wladimir emociona-se e sai do palco, enquanto ele sai com
um sorriso de vitorioso, pois se o juri gostou, principalmente o jurado mais
exigente, é porque sou competente para dançar.
A imagem de dança que permanece na tevê, a partir dessa audição e de
seus enunciadores midiáticos, é construída a partir de situações de
entretenimento e de uma competência vinculada a uma competição. Porém, tal
competição não é instaurada pela televisão, pois “a tevê não inaugura
processos”, como afirma o jornalista e crítico de televisão e cinema Eugênio
Bucci no texto “Crítica de Televisão” (1999). Segundo este autor, aquilo que se
vê na televisão já vem de uma demanda fora dela que, no caso da dança
podemos identificar com esse viés competitivo e, mais especificamente, sobre
o discurso do corpo competente pela competição. Nas palavras desse autor,
[…] aquilo que o telespectador vê na tela emerge não da tela em sim,
mas também de algo que ele, o telespectador [e hoje o telespectador-
internauta], já estava demandando antes. Muita mistificação vem
sendo cometida pela inobservância ingênua dessa cautela – ou desse
dado (BUCCI: 1999: 102).
Diante dessa situação, torna-se imprescindível aprofundar o
conhecimento do meio televisivo e seu poder biopolítico de normatização dos
corpos. Percebemos que as possibilidades da produção desta ambiência
midiática são minimizadas, na mesma escala, de outros sensos comuns, como
propõe Sousa Santos (2007) na discussão sobre regulação e emancipação na
sociedade dita pós-moderna. Se entendemos que artefatos televisivos
funcionam menos como emancipadores e mais como reguladores de uma certa
concepção de corpo e de arte, podemos, então, concluir, provisoriamente, que
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tais programas ativam expectativas de sucesso meteórico e culpas vindas da
humilhação, que afetam, mesmo em níveis distintos, todos os sujeitos que com
eles se envolvem.
O que permanece estável como imagem de dança é justamente esse
lugar que a competência ocupa no fazer dança atravessada por uma lógica de
competição contra o outro, regulada pela lógica neoliberal de uma ação
competitiva que tem o outro como ameaça e que opera na agonia. O próprio
JLS tem dificuldade de se situar no contexto da coreografia da morte do cisne,
ao ser indagado por um dos jurados, na hora preliminar das perguntinhas.
Tanto que após a audição, já fora do estúdio, quando questionado pelo repórter
que o esperava lá fora, diz assim:
Ele (o jurado João Wladimir) viu minha potencialidade e simplesmente... ele pensou que ia ser normal quando eu percebi pelo rosto dele, pela face dele... mas quando ele viu eu terminando a coreografia ele disse você é um artista!
A dança de JLS nos chamou atenção pelo sucesso meteórico alcançado
pela audiência da Internet, medida pelo número de acessos, ou seja, uma
imagem televisiva que repercutiu no ambiente da Internet, mas não produzida
para esta mídia televisual. Estamos interessados em como a mídia televisiva,
por meio de programas competitivos, evidencia o corpo dançante como uma
construção onde dinâmicas tecnológicas, entendidas como estratégias do atual
estágio do capitalismo, atuam e são reproduzidas, desafiando e interrogando a
competência do corpo na ação de dançar, por meio das suas audições, onde
um juri de “especialistas” decide quem está apto a fazer parte da competição
principal.
Como esse padrão vem se replicando privilegia as mediações e as
relações de impacto entre ambientes midiáticoculturais e a organização da vida
cotidiana e do corpo. Sobre isso, Muniz Sodré esclarece:
É preciso inicialmente considerar que, mesmo pertencendo a um bios específico, a tevê não é um ator social isolado, está sempre inserida em contextualizações de ordem sócio-histórica. Colocada dentro de uma tradição sócio-cultural patrimonialista, como a brasileira, a tevê, apesar do transnacionalismo de sua forma, produz efeitos específicos, regionais (SODRÉ: 2002: 31).
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No discurso televisivo, a competência pela competição consolida-se
como uma de suas especificidades, por alguns axiomas produzidos pela
globalização, em termos de mercado e consumo, como “concorrência gera
soluções” e “competitividade gera inovação”, que enfraquecem fundamentos
importantes no que tange às sociabilidades, como os princípios de cooperação
e igualdade. Paradoxalmente, uma sociabilidade evidencia-se na audiência
quando as pessoas passam a falar mais de dança e a experimentar dança para
melhoria de vida na sociedade, sentir-se melhor e feliz, espécies de sublimação
pela dança.
Assim, as conexões que os programas de televisão estabelecem,
eventualmente, entre posturas individuais e o bem-estar coletivo vão
alicerçando, pelo poder da mídia, uma “sociabilidade dançante global”. O
discurso televisivo torna-se um operador cognitivo de sociabilidades. Fora da
televisão, esses discursos mostram uma sociabilidade da arte pela dança,
mesmo se relacionados com o bem-estar.
Buscamos perceber, com as reflexões aqui apresentadas, o que
engendra tal situação de sociabilidade pela competição e qual o papel da
dança na produção desse discurso da competência. É o que defendemos como
socialmente relevante, já que mobiliza pessoas em suas alteridades, criam
expectativas e frustrações em quem sonha e deseja ser dançarino, dançarina,
bailarino e bailarina profissionais.
Referências
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Joubert de Albuquerque Arrais Artista-pesquisador, crítico de dança e jornalista cultural. Professor Assistente do bacharelado e da licenciatura em Dança da FAP/Unespar. Doutorando em Comunicação e Semiótica (PUC-SP, Capes), mestre em Dança (UFBA, 2008) e bacharel em Comunicação Social / Jornalismo (UFC, 2003), com formação artística pelo centro em movimento – c.e.m (Lisboa/Portugal, 2009/11). Escreve no <www.enquantodancas.net >. E-mail: [email protected]