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A grade antiga era alvo de vá- rias críticas, seja pela demora em iniciar o estudo das disciplinas dogmáticas, prejudicando alu- nos que estudam para concursos públicos e provas de estágio, seja por parte dos alunos do turno noturno em relação ao tempo de duração do curso, de 6 anos, 1 a mais que o diurno, dentre outras críticas pontuais. Desse modo, a iniciativa para alterar a matriz da grade curricular visa moder- nizar o curso, a partir de uma nova perspectiva de organização. Tal iniciativa teve origem no segundo semestre de 2017, com um abaixo-assinado dos alunos do noturno, cuja finalidade era se formarem em 5 anos. TERESINA - PIAUÍ ANO DE 2018 18ª EDIÇÃO UFPI O Dossiê de Lula Trajetória do ex-presidente Lula no caso do tríplex do Guarujá O que escondem o amor e o ódio pelo ex-presidente? Que não acreditemos com veemência em imparcialidade do Judiciário e da Mídia P ÁGINAS 6,7 E 8 Alterações na matriz curricular do Curso P ÁGINA 3 É de consenso geral entre os mais diversos intelectuais que os seres humanos são, em grande parte, his- tórico-culturais: herdam coisas do passado e, depois, legam-nas para as gerações futuras. Não à toa, a as- cendente opressão contra minorias sociais é, percebida por meio do ma- chismo, da LGBTfobia e do racismo, histórica e sistemática. A professora Andreia Marreiro, enquanto forte defensora dos direitos humanos, vai de encontro a essa es- trutura perversa que vigora no meio social. “Reconhecer-me mulher ne- gra foi um ato de libertação”, diz ela. #CampanhaEsperançar P ÁGINAS 14, 15 E 16 São milenares os registros da utilização da maconha pela huma- nidade para tratar os mais diversos males físicos e psíquicos. Entre os seus princípios ativos mais co- nhecidos (em realidade, existem centenas) destacam-se o THC (tetraidrocanabinol), responsável pelo efeito psicotrópico, e o CBD (canabidiol), comumente asso- ciado às propriedades medicinais da planta. Nesse sentido, as aplica- ções farmacêuticas atuais dos dois compostos químicos citados são inúmeras: de dor de cabeça, cólicas menstruais, inflamações, e doenças psicológicas como transtorno de ansiedade e depressão, até o trata- mento de epilepsia. Além disso, a cannabis também pode ser utili- zada com a finalidade de aumen- tar a qualidade de vida durante o tratamento de enfermidades como câncer e AIDS. Contraponto: A questão dos conflitos que acontecem na Síria P ÁGINAS 17 E 18 Um pouco da Lei Pelé O ordenamento que influencia dentro do campo P ÁGINA 9 A maconha como erva de uso medicinal P ÁGINA 10 Violência obstétrica O lado invisível do parto P ÁGINA 13 3ª EDIÇÃO ONLINE

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A grade antiga era alvo de vá-rias críticas, seja pela demora em iniciar o estudo das disciplinas dogmáticas, prejudicando alu-nos que estudam para concursos públicos e provas de estágio, seja por parte dos alunos do turno noturno em relação ao tempo de duração do curso, de 6 anos, 1 a mais que o diurno, dentre outras

críticas pontuais. Desse modo, a iniciativa para alterar a matriz da grade curricular visa moder-nizar o curso, a partir de uma nova perspectiva de organização.

Tal inic iat iva teve or igem no segundo semestre de 2017, com um abaixo-ass inado dos a lunos do noturno, cuja f ina l idade era se formarem em 5 anos .

Teresina - Piauí

ano de 201818ª edição

uFPi

O Dossiê de LulaTrajetória do ex-presidente Lula no caso do tríplex do Guarujá

O que escondem o amor e o ódio pelo ex-presidente?Que não acreditemos com veemência em imparcialidade do

Judiciário e da Mídia Páginas 6,7 e 8

Alterações na matriz curricular do Curso

Página 3

É de consenso geral entre os mais diversos intelectuais que os seres humanos são, em grande parte, his-tórico-culturais: herdam coisas do passado e, depois, legam-nas para as gerações futuras. Não à toa, a as-cendente opressão contra minorias sociais é, percebida por meio do ma-

chismo, da LGBTfobia e do racismo, histórica e sistemática.

A professora Andreia Marreiro, enquanto forte defensora dos direitos humanos, vai de encontro a essa es-trutura perversa que vigora no meio social. “Reconhecer-me mulher ne-gra foi um ato de libertação”, diz ela.

#CampanhaEsperançar

Páginas 14, 15 e 16

São milenares os registros da utilização da maconha pela huma-nidade para tratar os mais diversos males físicos e psíquicos. Entre os seus princípios ativos mais co-nhecidos (em realidade, existem centenas) destacam-se o THC (tetraidrocanabinol), responsável pelo efeito psicotrópico, e o CBD (canabidiol), comumente asso-ciado às propriedades medicinais da planta. Nesse sentido, as aplica-

ções farmacêuticas atuais dos dois compostos químicos citados são inúmeras: de dor de cabeça, cólicas menstruais, inflamações, e doenças psicológicas como transtorno de ansiedade e depressão, até o trata-mento de epilepsia. Além disso, a cannabis também pode ser utili-zada com a finalidade de aumen-tar a qualidade de vida durante o tratamento de enfermidades como câncer e AIDS.

Contraponto: A questão dos conflitos que acontecem na Síria

Páginas 17 e 18

Um poucoda Lei PeléO ordenamento que influencia dentro do campo

Página 9

A maconha como erva de uso medicinal

Página 10

Violência obstétricaO lado invisível do parto

Página 13

3ª edição

online

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O Libertas - UFPIJulho de 2018

2Centro Acadêmico Cromwell de Carvalho

Editorial

Desde o Golpe de 2016, ou talvez até antes disso, temos vivido tempos inquietantes.

Alguns insistem em pregar sobre uma suposta polarização da sociedade, como se houvessem apenas dois lados distintos incapazes de diálogo e incitadores de conflitos.

Os acontecimentos do começo de 2018 apontam para algo diferente: não são dois lados, é só um. É uma única voz ensurdecedora que grita, uma ordem hegemônica que impera, e nós estamos aqui quase como espectadores daquilo que conosco acontece.

Temos uma Guerra Civil na Síria que se passa desde 2011, porém só agora,

ocasionalmente, nos preocupamos com isso, talvez porque um grupo de países resolveu intervir. Temos o racismo, a lgbtfobia e o machismo perpetuados em nosso mundo, fazendo vítimas diariamente, sejam elas moradores de comunidades carentes, sujeitos à extrema violência, ou pessoas trans que tiverem a coragem necessária para ser quem são, ou mulheres em situação de extrema vulnerabilidade, quando um momento de amor torna-se aterrorizante, ou vereadoras inspiradoras que ousaram ir além. Temos princípios mercadológicos sendo aplicadas diretamente a vidas humanas, considerado-as frações a serem dividas.

Temos diversas decisões de âmbito local sendo tomadas com o mínimo, ou sequer algum, diálogo entre os empreendedores de mudanças e aqueles que serão os principais afetados. Mais do que isso, temos uma mídia que mascara a realidade diária de brasileiros. Vivenciamos ainda crises políticas, sendo talvez a pior delas o fato de que não nos identificamos com aqueles que “elegemos”.

As semelhanças entre a realidade e distopia são cada vez mais ostensivas, e num cenário que muitas vezes parece desesperador, como uma névoa de incertezas embaçando nosso futuro, ter fé na Democracia parece cada vez mais difícil. É nesse sentido que manter um

jornal e amplificar as nossas vozes, não apenas de estudantes, mas de membros de uma comunidade, é um trabalho urgente e imprescindível.

A presente edição retoma ainda matérias de 2017, porém tão atuais, para mostrar que são inúmeras as vozes da Democracia. São também discordantes, por vezes incoerentes, podem ser vozes duras e rudes, mas podem ser doces sopros de esperança. É nosso dever, enquanto seres humanos que experienciam uma Democracia recente como a brasileira, ousar entoar nossas próprias vozes, bem como ter o carinho necessário para escutar com atenção as vozes alheias.

Boa leitura!

Quantas são as vozes da Democracia?Da Equipe

Conheça o Conselho Editorial e o que temos escutado

Editora ChefeLiza Tajra Nery

Baby doll de nylon - Robertinho do Recife

SecretáriaLuzia Eduarda Bezerra Valadares

Bullet and a Target - Citizen Cope

OuvidoraMaísa Mendes de Carvalho Dias

The Death of Emmet Till - Bob Dylan

Revisoras e revisores

Allana Ferreira Alves da SilvaThis is America - Childish Gambino

Danley Dênis da Silva Purple Rain - Prince

Fábio Elcy Lopes da SilvaA fumaça já subiu pra cuca - Bezerra da Silva

Jaina K Morais Chaves Todos os olhos em noiz - Emicida e Karol Conka

Letícia Moura Soares MacêdoFall in line - Christina Aguilera ft. Demi Lovato

Diagramação: Francicleiton Cardoso [email protected]

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O Libertas - UFPIJulho de 2018

3 Centro Acadêmico Cromwell de Carvalho

Atualmente, a grade curri-cular do Direito UFPI pas-sa por um processo de re-

formulação da sua matriz, assunto que vem sendo pauta recorren-te entre os discentes, suscitando manifestações provenientes da pluralidade de opiniões entre os alunos .

A grade antiga era alvo de vá-rias críticas, seja pela demora em iniciar o estudo das disciplinas dogmáticas, prejudicando alu-nos que estudam para concursos públicos e provas de estágio, seja por parte dos alunos do turno noturno em relação ao tempo de duração do curso, de 6 anos, 1 a mais que o diurno, dentre outras críticas pontuais. Desse modo, a iniciativa para alterar a matriz da grade curricular visa moder-nizar o curso, a partir de uma nova perspectiva de organização.

Tal iniciativa teve origem no segundo semestre de 2017, com um abaixo-assinado dos alunos do noturno, cuja f inalidade era se formarem em 5 anos, em con-dições equivalentes às do diurno. A partir de então, a Coordena-ção formulou uma proposta de alteração que pudesse atender a essas e outras demandas discen-tes. A mesma foi apresentada ao Colegiado, em dezembro, com

a presença de todos os membros docentes, a representante estu-dantil do Colegiado e um membro convidado da Diretoria do Centro Acadêmico Cromwell de Carvalho (Gestão Mandacaru). A proposta procurou solucionar a disparida-de de currículos entre as turmas do noturno e diurno. Discutida e aprovada por unanimidade na-quele certame, o passo seguinte foi a Coordenado-ria de Currículos da UFPI, que re-comendou alguns reparos técnicos. Após os ajustes, ocorreu a aprova-ção pelo Conselho de Ensino, Pesqui-sa e Extensão.

Vale ressaltar que, para os alu-nos já ingressos no curso, a mudança é facultativa e necessita de con-cordância explícita, do contrário o aluno seguirá a grade atual. Dessa maneira, a mudança ocor-rerá em dois cernes: um que afeta os alunos, apenas do turno notur-no, que ingressaram em 2015, 2016 e 2017, e outro que concerne os alu-nos de ambos os turnos que entra-rem a partir de 2018. Para os alunos do noturno, ingressos até 2017, não

haverá alteração no rol de discipli-nas a serem cursadas, apenas a mu-dança do regime de bloco para o de crédito, e a pretensão de ofertar dis-ciplinas optativas e aquelas perten-centes ao sexto ano do curso, para realocá-las possibilitando a conclu-são em 5 anos. Já quanto aos ingres-sos em 2018, estudantes de ambos os turnos poderão migrar para a nova matriz curricular unificada, a

qual será obrigatória a partir de 2019.

No novo currículo unificado, além da mudança para regi-me de crédito, há o acréscimo de novas disciplinas obriga-tórias, como Lógica Jurídica, Direito do Consumidor e Direi-to do Agronegócio, além da retirada de outras matérias do rol

de obrigatórias, passando a serem optativas, como Introdução às Ci-ências Sociais.

Nessa perspectiva, vários aspec-tos da alteração foram criticados por estudantes, que fomentaram e organizaram uma Assembleia Estu-dantil para estimular o debate sobre determinados pontos da nova ma-triz, e desaprovando a pouca par-ticipação discente, uma vez que só

2 estudantes estavam presentes na reunião do colegiado e não houve uma assembleia, como defendem alguns alunos. No encontro foram discutidos temas como o processo histórico da construção de grades flexíveis e os currículos de cria-ção criativa. Foram ressaltadas demandas como a antecipação das disciplinas de processo civil e di-reito administrativo. A flexibili-dade da nova grade foi questiona-da, bem como a necessidade das disciplinas de 90 horas e a compi-lação dos eixos de formação.

Então, para sanar esses e outros pontos obscuros, foi proposta e aceita, a formação de um Fórum Discente com 1 representante de cada turma para dialogar e fazer repasses para ampliar as discus-sões. Ainda assim, será ajuizada uma ação no Ministério Públi-co Federal para que seja execu-tado acordo judicial oriundo da ocupação da reitoria em 2016, que determina a realização de simpósios sobre alterações em grades curriculares. A guisa de conclusão, é notório que a ma-triz curricular é objeto de inte-resse de todos os estudantes , e é necessár io que se ja levada em consideração a divers idade dos pontos de v ista daqueles que vão v iver o currículo.

Alterações na matriz curricularCaio Galvão Castelo Branco e Camila Petersen Lustosa de Melo

A Galeria Histórica da Faculdade de Direito do Piauí

Luzia Eduarda Bezerra Valadares

Como mulher, tenho uma perspectiva diferente da masculina. Não posso fa-

lar verdadeiramente de outra forma, senão da minha. Na situ-ação de mulher, então, t ive im-pressões próprias sobre os rostos emoldurados nessa sala do De-partamento de Ciências Jurídi-cas.

Tal como ar t istas vêm e vão, músicas são esquecidas , ins-trumentos perdem a ut i lidade, tudo e todos tornam-se, em algum momento, obsoletos. No dia 09 de agosto de 2017 foi inaugurada a Galeria Histórica da Faculdade de Direito do Piauí, com o intuito de eternizar aqueles que fizeram e fazem parte do processo de cons-trução do nosso curso.

Não deixa de ser interessante olhar para trás e ver quem já pas-sou por onde estamos passando agora. Ver quem viveu a mesma experiência de formação jurídica piauiense e ver o que se tornaram após a universidade. Notar que vivenciamos o mesmo curso, mas um curso tão diferente.

A Galeria, para mim, é um regis-tro daquilo que passou, mas, para além disso, também de como todos deixam sua marca e são marcados por onde passam. Do meu lugar de

fala, é ainda um lembrete da falta que alguns fizeram na trajetória ju-rídica piauiense.

Ao olhar a história numa pers-pectiva geral, e ao olhar a galeria histórica do curso de Direito da UFPI especificamente, é impossível ignorar tudo o que nos é contado. Para muito além de mostrar apenas o passado, a Galeria Histórica fala também sobre o presente.

Ela fala até mesmo no silên-cio. Conquanto mostra rostos que participaram da construção do nosso curso, fala também so-bre quem não está lá. É inevitá-

vel observar o número de mulhe-res e negros que, em consonância ao que ocorreu no mundo intei-ro, não tiveram espaço em uma área machista e elit izada como o Direito.

O olhar que temos na Galeria não é estático, vemos através dos anos. Através desses anos perce-bemos, em passos curtos, a pre-sença de mulheres nesse cenário. A Galeria também não nos deixa esquecer o quão reduzido per-manece sendo esse número.

Talvez seja nessa percepção que se encontre a importância

desse local. Na possibilidade de observar que o presente é diferente do passado, mas que ainda estamos longe de um futuro no qual todos possam identificar-se nos rostos ali expostos.

Se tudo e todos tendem a tor-nar-se obsoletos, e se essa sala no Espaço Integrado tem como esco-po evitar esse processo e eternizar personalidades, ela não se resume a isso. Na verdade, seu papel é muito maior, porque ela coloca à públi-co – quase que sistematicamente – aquilo que é negligenciado.

Olhamos para o passado, mui-tas vezes, na tentativa de enxer-gar o que podemos ser no futuro. Naqueles rostos emoldurados e no peso que carregam aqueles nomes, vemos no que se tornaram os que passaram por essa mesma Acade-mia, e então imaginamos também as nossas possibilidades para mais à frente.

Quando você transforma a his-tória em uma forma de olhar criti-camente para o tempo, em especial para o presente e para o futuro, então você tem ali algo de valor. A Galeria me fez ver não apenas os que lá estão presentes, mas tam-bém quem não está e o que isso significa em uma perspectiva parti-cular e social.

Foto: direito.ufpi.br/blogs

A iniciativa para alterar

a matriz da grade

curricular visa

modernizar o curso.

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O Libertas - UFPIJulho de 2018

4Centro Acadêmico Cromwell de Carvalho

A dita intervenção militar no Rio de Janeiro, a luz dos ter-mos jurídicos, é entendida

como intervenção federal, na qual é compreendida como um instrumen-to constitucional disponível ao Pre-sidente da República, em tempos de desordens nacionais, para a garantia dos cenários fáticos compatíveis com a Constituição Federal. Sendo assim, pela primeira vez de sua aplicação, esse ato jurídico torna-se um fato inédito que merece ser discutido nos ambientes acadêmicos, mas também, que é capaz de revelar as deficiências comuns entre os Estados brasileiros e a ineficiência de outros instrumentos jurídicos até então utilizados pelo go-vernador do Rio para a contenção do caos na Segurança Pública, o que vai ao encontro da caracterização dessa inter-venção como uma medida paliativa.

A intervenção federal que está em vigor no Rio de Janeiro é a primeira aplicação do dispositivo constitucio-nal contido no artigo 34, inciso III da Cf./88, o qual traz as hipóteses de exce-ções à regra de autonomia dos Estados perante a União, dentre elas o grave cometimento da ordem pública. Nes-se sentido, no uso das suas atribuições constitucionais, com base no artigo 84, caput, inciso X dessa mesma Car-ta Constitucional, e por solicitação do então governador do Rio, o Presiden-te Temer, através do decreto de núm. 9.288/18, proclamou a intervenção fe-deral no RJ na área da Segurança Pú-blica. Elegendo, para tanto, para o car-go de interventor, de natureza militar, o General de Exército Walter Souza Braga Netto.

A despeito da necessidade de uma decisão institucional mais efetiva na segurança pública do Rio, 30 anos de-pois da transição democrática que teve como marco inicial a Constituição de 1988 de teor humanística, cidadã, de-mocrática e social, a presença de qual-quer decisão política que não tenha le-gitimidade e não seja deliberativa, mas que perpassa pelo espectro da legalida-de provoca enjoos na sociedade brasi-leira. Haja vista que as decisões institu-cionais que perpassam pelos vícios de ilegalidade, nos fazem reviver também as deficiências que estiveram presentes na transição política entre os regimes e a ineficácia das ações políticas voltadas para a memória e verdade da história do Brasil, que seriam capazes de extir-par a ditadura dos nossos cotidianos.

Essa reflexão é para investigar cui-dadosamente o processo de decisão da intervenção federal no RJ, visto que ela adveio de um ato unilateral do Presi-dente Temer que lidera o índice histó-rico de reprovação do seu governo, e analisar a gravidade do seu principal efeito que é: permitir a gestão de um cargo político à um interventor que

ocupa um cargo de natureza militar.Nesse sentido, analisando de forma

dedutiva a questão, a intervenção fede-ral no Rio de Janeiro se torna preocu-pante para o sistema jurídico brasileiro. Primeiramente, porque ele decorre de um governo ilegítimo. Segundamente, a despeito de ser um fato inédito, ela representa mais uma medida paliativa que não é suficiente para resolver um problema estrutural.

Assim que o instituto entrou em vigor, não se tinha nenhum plano es-tratégico para a intervenção federal. No entanto, ao passo em que o Presi-dente resolve intervir na autonomia de ente federativo delegando os seus poderes a um interventor militar, ao menos o que se espera é a apresenta-ção de um plano de gestão para essa intervenção. A fim de que ela se torne uma medida transparente, com efei-tos legais previsíveis. Afinal a inter-venção federal é uma atuação consti-tucional excepcional que paralisa as principais atividades legislativas.

O decreto da intervenção, no en-tanto, não se mostrou transparente. As atribuições do governador do Rio, descritas na Constituição Estadual, foram transferidas à figura do in-terventor. Ficando este subordinado apenas ao Presidente da República, de modo que “não está sujeito às nor-mas estaduais que conflitarem com as medidas necessárias à execução da intervenção” (Brasil, 2018). Portanto, não ficaram evidentes os limites im-postos ao interventor, de modo que o decreto o instituiu impõem mais dúvidas do que certezas à sociedade. Qual seria o teor dessas medidas ne-cessárias? É o necessário para man-ter a moral e os bons costumes? Um militar pode assumir um cargo civil? Como um militar lida com o Poder inerente ao cargo político?

A adoção de uma medida grave com pouca informação pode gerar ainda mais instabilidade. Além dos termos genéricos em questão, o decreto diz, no parágrafo único do artigo 1º, “o cargo de interventor é de natureza mi-litar”. Isso implica que as ações do in-terventor estão integradas e condizen-tes com o regime das forças armadas, bem como a jurisdição militar para os “eventuais” crimes cometidos durante a vigência da intervenção. Em miúdos, o governo federal está transferindo a sua responsabilidade para os militares.

Além disso, conforme a Carta Mag-na de 1988, o processo legislativo de reforma da Constituição também fica afetado. Não é possível emendá-la na “vigência da intervenção federal, de es-tado de defesa ou estado de sítio”. Essa foi uma estratégia encontrada pelo Constituinte para preservar os prin-cípios sensíveis constitucionais, em momentos de turbulências da ordem

pública que beiram a inconstituciona-lidade. Assim, uma série de demandas urgentes, como a reforma da previdên-cia, fica(ra)m barradas, resultado do plano de governo em um ano eleitoral.

Sendo essa a principal crítica da aplicação do instituto da intervenção. Haja vista que permanecem em estado crítico, nas realidades mais longínquas do país, outros problemas na seguran-ça pública. Recentemente o sistema prisional brasileiro foi declarado pelo Supremo Tribunal Federal, através da ADPF 347, como um estado de coisa inconstitucional, em alusão à decisão paradigmática da Corte Colombiana T - 025. Diante das graves violações de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falências de políti-cas públicas, a Suprema Corte enten-deu que para ser alterado esse quadro inconstitucional deveriam ser tomadas medidas abrangentes de natureza nor-mativa, administrativa e orçamentária.

Nesse sentido, considerando que um dos grandes problemas da se-gurança pública é a crise do sistema penitenciário, visto que a ressociali-zação da pena é deficitária, os índices de reincidência são altíssimos e os presídios se encontram superlotados e sucateados, sem condições para re-ceber novos apenados. A calamidade da ordem pública é uma realidade em quase todos os Estados brasileiros. Os índices de criminalidade que com-prometem a eficácia das ações acerca da segurança pública são altos, mui-tas polícias estão precárias pela falta de investimento e as milícias se fazem presentes. Situação semelhante ao con-texto carioca que justificou, a priori, o decreto da intervenção federal.

Todavia, a solução para o proble-ma da segurança nacional depende de ações abrangentes e duradouras, e não curtas e pontuais como as que veem sendo decididas pelo Executivo. Tor-na-se premente a elaboração de um programa de gestão nacional, incluin-do a segurança pública como pauta principal (uma das, na verdade, por-que existem outras chagas nacionais a serem tratadas). Contudo, essa é uma saída inviável, visto que teria um custo político muito grande para um gover-no ilegítimo. Por isso, a preferência em adotar paliativos.

Antes da vigência da intervenção, as forças armadas já detinham, provi-soriamente, o poder de polícia no Rio de Janeiro. Por ordem do Presidente da República, e regulamentadas pela Constituição Federal, em seu artigo 142, pela Lei Complementar 97, de 1999, e pelo Decreto 3897, de 2001, as operações da Garantia da Lei e da Ordem (GLO) consistem no emprego de tropas militares para missões de pacifi-cações, com o “objetivo de preservar a or-dem pública, a integridade da população

e garantir o regular funcionamento das instituições”. Mesmo assim, a presença dos militares no Estado não foi capaz de intimidar o crime organizado, cres-cendo exponencialmente as mortes de policiais, da sociedade civil, e a taxa de crimes organizados.

Quando o Presidente assinou o de-creto da intervenção, ele encontrou este quadro caótico: policiais desmo-tivados, polícias sucateadas, assaltos e arrastões no carnaval. Porém, após 60 dias da vigência da intervenção, o quadro pouco mudou. A ação militar se pautou nos primeiros dias, na troca de chefia das instituições de segurança. E os novos gestores da segurança ainda contam com a promessa de novos re-cursos orçamentários do Gabinete de Intervenção Federal (GIF).

Apesar disso, o que não muda é a sensação de insegurança na popula-ção carioca. Fora dos gabinetes insti-tucionais, ainda permanecem a prá-tica de crimes os quais colocam em xeque a ordem pública e a eficácia da intervenção federal. Dentre as cente-nas de homicídios e roubos que acon-tecem em todas as regiões do Estado, é forçoso mencionar a execução bru-tal da Vereadora do município do Rio de Janeiro, Marielle Franco (PSOL) e de seu motorista, Anderson Gomes, na zona norte da cidade, em 14 de março de 2018.

Marielle Franco, mais conhecida como a cria da Maré, exercia um im-portante trabalho político de mili-tância tanto na câmara municipal, com apresentação de centenas de projetos de leis úteis à cidade, quan-to na sociedade carioca, denuncian-do ativamente as arbitrariedades dos militares e dos policiais contra as comunidades do Rio de Janeiro. Antes de ser executada, Marielle vinha denunciando as constantes opressões que aconteciam no 49º Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro, que fica na comunidade de Acari. Além disso, a parlamen-tar era contra as ações dos militares no Estado, visto que elas geram um custo muito grande para os mora-dores das comunidades.

As causas da sua morte ainda es-tão muito incertas. Porém, é certeza que a execução de uma vereadora em tempos democráticos é muito preo-cupante, porque ela decorre de uma escalada da violência que foi capaz de atingir uma parlamentar, uma das representantes políticas mais votadas no país. No entanto, diante das proporções que esse caso ganhou, a intervenção federal no Rio de Janeiro tem o dever de respeitar, de forma transparente, as normas constitucio-nais e, mais ainda, a importante mis-são de responder ao seguinte suplício: quem matou Marielle Franco?

A Intervenção Militar no Rio de Janeiro à luz da Constituição de 1988A primeira aplicação do dispositivo constitucional que permite a intervenção federal, no contexto da

ilegitimidade do Presidente Temer e da escalada da violência com a qual culminou com a morte da par-lamentar Marielle Franco, têm sido alvo de questionamentos acerca da sua eficácia

Manoel Dias de Medeiros Neto

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O Libertas - UFPIJulho de 2018

5 Centro Acadêmico Cromwell de Carvalho

Foro Privilegiado e Crise de Representatividade

A nação brasileira atraves-sa um momento de gran-de dif iculdade econô-

mica, com regresso de famílias à pobreza, baixa competitivida-de internacional, instabilidade das instituições Estatais. A lis-ta segue em frente com tantos outros problemas a se solucio-nar. Entretanto, nossa socieda-de pode estar vendo uma luz no meio da escuridão, que consiste nas investigações e até prisões de alguns dos maiores políticos do país, que até há pouco eram considerados “intocáveis” pela população. O cenário político brasileiro está sendo destaque na mídia nacional e internacional continuamente com escândalos de corrupção, malas de dinheiro, diálogos de autoridades que in-sinuam atrapalhar investigações, políticos tornando-se réus, en-tre outras situações. Assistindo a tudo isso, o povo já não sabe mais em quem confiar. Em suma, o país se encontra numa crise de legitimidade de tais proporções ainda não vistas por nossa socie-dade. Para compreender como o Brasil chegou a tal situação, em que a população não consegue mais acreditar que políticos de fato representem seus desejos e anseios, deve-se analisar por qual motivo, desde o princípio, a classe política brasileira sem-pre aparentou estar acima das leis. Isto porque vários de seus membros, mesmo com processos em seu encalço, nunca foram jul-gados e condenados. A pergunta, então, que merece uma resposta f irme é: por que é tão dif ícil pu-nir políticos corruptos?

A Constituição brasileira de 1988 adotou o foro por prerro-gativa de função, segundo a qual a pessoa em posse de certos car-gos públicos usufrui de algumas imunidades devido à função que exerce. Com base em Newton Ta-vares Filho, “o foro é o reconhe-cimento da especial relevância de uma função exercida por uma autoridade pública e a designa-ção de um órgão mais elevado na hierarquia institucional do Estado para processá-lo e julgá--lo”. No entanto, a problemática resultante do foro surge por dois fatores: a quantidade exorbitan-te de autoridades que possuem o direito ao foro e a distorção da ideia inicial do dispositivo, a qual objetivava proteger apenas ao cargo.

Tratando-se do primeiro fator, nenhum ordenamento jurídico no mundo abarcou tantos cargos e funções como o brasileiro. A lista de autoridades com foro é abundante com o Presidente da República e o Vice, Ministros de

Estado, Comandantes das Forças Armadas, Diplomatas, membros do Congresso Nacional, mem-bros do Judiciário, membros do Ministério Público, membros dos Tribunais de Contas, Prefeitos, Governadores, Deputados Esta-duais, Secretários, dentre outros. Dessa maneira, segundo estudo da Consultoria Legislativa do Se-nado, atualmente há 54.990 au-toridades com foro privilegiado no Brasil. Só no Estado do Piauí, temos 2.773 autoridades benefi-ciadas diretamente, conforme a tabela.

O segundo fator citado é que tal prerrogativa, essencialmen-te de proteção ao cargo culmina em tornar o sujeito inalcançável para as “garras” do Estado. Con-tudo, o objetivo não é blindar a pessoa, pois, ela é sim passível de julgamento por qualquer cri-me (comum ou de responsabili-dade), por instâncias superio-res, mas o que ocorre de fato é a grande demora do caso em ser apreciado pelo tribunal compe-tente. Conforme afirma Luís Ro-berto Barroso, “o sistema é feito para não funcionar” com rela-ção ao sistema do foro privile-giado e sucessivas mudanças de autoridades competentes a jul-gar. Continuando, Barroso diz que “há problemas associados à morosidade, à impunidade e à impropriedade de uma Suprema Corte que ocupa-se como na pri-meira instância de centenas de processos criminais” alertando para uma necessidade de revi-são do sistema. Recentemente, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) restringiu o en-tendimento do foro para crimes cometidos durante o cargo e que tenha relação com ele. Com isso, os parlamentares que não se en-caixam na regra acima, vão para a primeira instância. Com essa medida, espera-se que os proces-sos quase nunca julgados, agora ganhem celeridade em seus des-fechos, diminuindo assim a sen-sação de impunidade que impe-rava até então.

A insatisfação e o choque que são cada vez mais comuns entre as pessoas que acompanham o cenário político brasileiro, prin-cipalmente quando se fala na sensação de impunidade, é pos-sível notar uma mudança nos horizontes. A população que ob-servava ou i lusoriamente assen-tia de modo devoto, parece não mais se identif icar com aqueles que supostamente deveriam re-presentá-los, e isso pode se ex-plicar em três conjunturas: A primeira delas é que a cultura, o hábito e o pensamento de um povo são f luidos, mutáveis, e se

os políticos e os partidos não se adaptam ao novo pensamento social, sua compatibilidade com a comunidade se direciona à de-cadência; a segunda situação é a falta de interesse dos políticos, que apenas surgem de maneira cínica durante as eleições com sorrisos, tapinhas nas costas e falsas promessas, nessa f luidez de pensamento. A terceira é a falta de credibilidade que o Esta-do tem aos olhos dos indivíduos comuns que o integram.

Contudo, essa inegável incom-patibilidade de ideias não é novi-dade. Desde os anos 60 em muitos países (como os da Europa Oci-dental e EUA) é comum pôr em cheque a legitimidade dos gover-nantes, quando estes insistem em prezar por seus próprios interes-ses e não pelo interesse daqueles que lhes conferem poder. Como o próprio cientista político Ber-nard Manin argumenta que “por muito tempo, não num passado muito distante, a representação parecia baseada numa poderosa e estável relação de confiança en-tre eleitores e partidos políticos, com uma vasta maioria de votan-tes identif icados e f iéis a alguns partidos”. Logo, pode-se afirmar que mudanças profundas ocorre-ram, principalmente a fragmen-tação política brasileira, com 35 partidos registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Acerca disso, cientista política Débora Gomes Galvão afirma que “hoje, nota-se que os partidos pou-co se diferenciam no jogo polí-tico e ideológico, descumprem suas promessas ao ingressarem no poder, se utilizando do mo-

delo representativo como forma de ingresso no parlamento, mas sem comprometimento com os anseios da população”.

Tendo visto o exposto, é possí-vel constatar que alguns elemen-tos dif icultam (mas não tornam impossível) a ocorrência das mu-danças que os membros popula-res da sociedade tanto almejam. O mais notável atualmente é a intensa polaridade de opiniões. O fervor causado pelo rugir de ideias já formadas (normalmente as ideias já formadas que apoiam o pensamento particular) torna a dicotomia mais intensa, enu-blando a visão e tornando mui-to penosa a união ou mesmo um consenso entre as pessoas que se sentem representadas por cada lado. Todos esses aspectos aca-bavam por nutr ir um s istema complexo de manutenção do poder e tornar ainda mais r ís-pidas as re lações sociais . Fe-l izmente a sociedade bras i le ira deu iníc io a ruptura do meca-nismo corrupt ivo que v igorava até então, com atuações mais f i rmes das inst ituições Estatais , o poder judic iár io mais atuante e a base de tudo, o povo, que não aguenta mais ser deixado como coadjuvante, mas agora , quer retornar ao seu protago-nismo, conf igurando-se como o detentor da soberania nacional . Um grande passo já foi dado pelo STF ao restr ingir o foro, por tanto f icar de olho é funda-menta l para o sucesso de medi-das tão importantes para nos-sa nação e que outras venham e deixem um legado p o s i t ivo p ar a o s n o s s o s f i l h o s .

Por Emanuel Victor Salazar e João Gabriel Lopes

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O Libertas - UFPIJulho de 2018

6Centro Acadêmico Cromwell de Carvalho

No dia 4 de março de 2016, a operação Lava Jato chegou à 24ª fase, denominada de

Aletheia (“busca da verdade”). De acordo com o Ministério Público Fe-deral (MPF), a ação foi deflagrada para aprofundar a investigação de possíveis crimes de corrupção e lava-gem de dinheiro oriundo de desvios da Petrobras, praticados por meio de pagamentos dissimulados, feitos por José Carlos Bumlai e pelas construto-ras OAS e Odebrecht ao ex-presiden-te Lula e pessoas associadas.

Essa operação ocorreu na casa do ex-presidente em São Bernardo do Campo, e em outras cidades de São Paulo, do Rio de Janeiro e da Bahia. Foram expedidos 44 mandados, sen-do 33 de busca e apreensão e 11 de condução coercitiva. A Polícia Fede-ral cumpriu os mandados de busca e apreensão na casa de Lula, na casa e na empresa dos filhos dele, e no sítio em Atibaia Além disso, neste mesmo dia, Lula foi alvo de condução coerci-tiva, depondo dentro do aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Para o Ins-tituto Lula, essa ação foi arbitrária e ile-gal.

Cinco dias depois, o Ministério Público de São Paulo denunciou, no contexto de uma operação estadual, o ex-presidente Lula e mais 15 pessoas, dentre elas, Marisa Letícia, ex - primei-ra dama, e Léo Pinheiro, ex-presidente da OAS. No entanto, a Justiça de São Paulo encaminhou no dia 14 de março de 2016, a denúncia contra Lula ao juiz Sérgio Moro, responsável pela Opera-ção Lava Jato em primeira instância no Paraná, afirmando que os crimes atri-buídos a ele na denúncia – falsidade ideológica e lavagem de dinheiro - per-tenceriam à esfera federal.

Em setembro de 2016, o Mi-nistério Público Federal também denunciou o ex-presidente Lula por corrupção passiva e lavagem de di-nheiro. No dia 20 de setembro de 2016, o juiz Sérgio Moro aceitou essa denúncia do MPF e tornou Luís Iná-cio réu. Oito meses depois, o proces-so chegou a sua fase final, sendo Lula o último réu a ser interrogado no processo, afirmando não existir ne-nhuma prova ou registro documental que ratificasse a posse do triplex.

No dia 12 de julho de 2017, o juiz Sérgio Moro condenou Lula a nove anos e seis meses de prisão no caso do triplex. O magistrado afir-ma que o condenado “faltou com a verdade”, pois existiriam provas do-

cumentais e testemunhais contra o político. Foi a primeira vez que um ex-presidente da República sofreu condenação por crime comum. Na sentença de 218 páginas, o juiz Moro resumiu as acusações que pesavam contra Lula, relatou os argumentos da defesa e analisou as provas docu-mentais, periciais e testemunhais. O magistrado afirmou que houve con-dutas inapropriadas por parte da de-fesa de Lula que revelam tentativa de intimidação da Justiça e, por isso, até caberia decretar a prisão preventiva do ex-presidente. Porém, decidiu não mandar prendê-lo por “prudência”. O réu decidiu recorrer da decisão no Tribunal Regional Federal da 4ª Re-gião (TRF-4).

Seis meses depois, em janei-ro de 2018, ocorreu o julgamento de Lula no TRF-4. Por unanimidade, os três desembargadores do colegiado, João Pedro Gebran Neto, Leandro Paulsen e Victor dos Santos Laus mantiveram a condenação e aumen-taram a pena para 12 anos e 1 mês, com início em regime fechado. Para tentar evitar a prisão, a defesa de Lula solicitou um habeas corpus ao STJ.

O julgamento do habeas corpus de Lula ao STJ foi realizado em 06 de março de 2018 e, por unanimidade (5 votos a 0), a Quinta Turma do Supe-rior Tribunal de Justiça (STJ) negou a concessão do habeas corpus preven-tivo pedido pela defesa, o qual visava evitar a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O objetivo do julgamento foi de-cidir se o petista poderia começar a cumprir a pena de 12 anos e 1 mês de prisão determinada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região depois de esgotados os recursos ao próprio TRF-4. Lula ainda tinha recursos pendentes no TRF-4 e no STF e foi condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do tri-plex no Guarujá (SP). Após proferir a sentença condenatória, os desembar-gadores do TRF-4 determinaram que a prisão fosse decretada logo após a conclusão da tramitação – no próprio tribunal – dos recursos da defesa. A decisão teve por base entendimento do STF, no HC 126.292, de outubro de 2016, segundo o qual a pena pode começar a ser cumprida após a con-denação em segunda instância da Jus-tiça (caso do TRF). O habeas corpus preventivo impetrado pela defesa de Lula tinha por objetivo evitar essa prisão. A defesa decidiu re-

correr da decisão ao STF, solicitando um habeas corpus preventivo.

Os ministros do Supremo Tribunal Federal decidiram adiar para o dia 4 de abril a conclusão do julgamento do habeas corpus preventivo de Luiz Inácio Lula da Silva, impetrado pela defesa com o objetivo de evitar a pri-são do ex-presidente. Por 7 votos a 4, foi admitido o julgamento do HC. Mas, quando essa decisão foi tomada, às 18h30, já havia transcorrido mais de quatro horas da sessão, sendo ne-cessário realizar seu adiamento.

Diante da decisão, o advogado José Roberto Batochio, integrante da defe-sa de Lula, pediu a concessão de uma liminar (decisão provisória) para que o ex-presidente não fosse preso antes da conclusão do julgamento, no dia 4 de abril. A presidente Cármen Lúcia submeteu então o pedido aos demais ministros e, por 6 votos a 5, a limi-nar foi concedida. Votaram em favor de impedir a prisão de Lula antes do dia 4 os ministros Rosa Weber, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gil-mar Mendes, Marco Aurélio Mello e Celso de Mello. Em favor de permi-tir, votaram ministros Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Cármen Lúcia.

Entretanto, no dia 04 de abril, o STF decidiu, por 6 votos a 5, negar o pedido de habeas corpus preventivo solicitado pela defesa de Lula. Vota-ram no sentido de negá-lo: Fachin, Moraes, Barroso, Weber, Fux e Lú-cia. Votaram a favor da ordem: Men-des, Lewandowski, Aurélio, Toffolli e Mello. A decisão suscitou novamente a questão da possibilidade de início de cumprimento da pena a partir da condenação em segunda instân-cia, negada pelo tribunal em 2009 e permitida desde 2016. Argumentos contrários reverenciam o ar-tigo 5º da CF-88, inci-so LVII (princípio da presunção de inocência). Argu-mentos a favor afirmam que, como os tribu-nais superiores não analisam mais as provas, ou seja, só jul-

gam o teor constitucional e proces-sual penal do processo, a presunção de inocência já estaria em ruínas ao chegar nessas cortes, além do perigo de impunidade, no sentido de que a maioria dos crimes prescrevem antes de chegar ao STJ e STF.

Um dia após o STF negar o habeas corpus de Lula, o TRF-4 enviou ofí-cio ao juiz Sérgio Moro, autorizando a prisão do petista, gerando bastan-tes críticas em relação à celeridade da execução da pena e também a disso-nância com os trâmites regulares dos processos que se arrastam no tempo. Contudo, a prisão só ocorreu dia 07 de abril, após comício realizado por Lula em São Paulo, entregando-se após 26 horas da determinação de Sérgio Moro.

A defesa de Lula recorreu ao STJ e ao STF para impedir a execução da pena antes que se esgotasse a compe-tência do TRF-4 para julgar os embargos dos embargos de declaração, sendo negado no STJ e submetido a plenário virtual da se-gunda turma do STF. Entretanto, no dia 24 de abril de 2018, a 2ª Turma do STF reti-rou da competência do juiz Sérgio Moro as delações da Ode-brecht, transferin-do-as para a Jus-tiça de São Paulo e abrindo pre-cedentes para mais recursos da defesa do ex--presi-dente.

Por Jailson de Sousa Oliveira, Maísa Mendes de Carvalho Dias, Wilton Gutemberg da

Cruz Pires

Trajetória do ex-presidente Lula no caso do triplex do

Guarujá

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O Libertas - UFPIJulho de 2018

7 Centro Acadêmico Cromwell de Carvalho

Sob a esperança da mudan-ça, em 2002, o car ismát ico Lula é e le ito com 61 ,27%

dos votos e ree le ito em 2006, com 60 ,83%. Em seus oito anos de governo, o Bras i l v iveu um dos seus ap ogeus econômicos , um cresc imento s igni f icat ivo e um a m e l h o r a d o p a d r ã o d e v i d a d a p o p u l a ç ã o , p r o p o r -c i o n a d o p e l o b o m m o m e n t o d a s c o m m o d i t i e s b r a s i l e i r a s e p e l a p o l í t i c a e c o n ô m i c a a d o t a d a p e l a d u p l a P a l o c c i -- M e i r e l l e s a t é 2 0 0 8 , s i m p á t i -c a à o r t o d o x i a .

M a r c a d o l u l o p e t i s m o , p r o g r a m a s s o c i a i s - d e n t r e o s q u a i s o B o l s a - F a m í l i a - s e r i a m c o n d i c i o n a d o s p e l o b o m m o m e n t o e c o n ô m i c o . O n o m e d e L u l a e d o P a r t i d o

d o s Tr a b a l h a d ore s é , p or t a nt o, v i n c u -

l a d o, a l é m d a p r o s p e r i d a -

d e e c on ô -m i c a , a o

a s s i s t e n -c i a l i s m o à s c a m a -d a s m a i s v u l n e -r á v e i s . G r a n d e

p a r t e d a p o -p u l a -

ç ã o s e re n d e a o c a r i s m a e a o c a r át e r p at e r n a l i s t a d o e x - m e -t a lú r g i c o, a l ç a n d o - o a p o p u -l a r i d a d e c om í n d i c e s d e 8 7 % a o f i m d o g ov e r n o. A or i g e m s i n d i c a l i s t a d o Pa r t i d o d o s Tr a b a l h a d ore s e s e u i nv e j á -v e l h i s t ór i c o c om o o p o s i ç ã o, pr i n c ip a l m e nt e , à é p o c a d o g ov e r n o d e Fe r n a n d o C o l l or, g a r a nt i r a m u m c or p o d e m i l i -t â n c i a p a r t i d á r i a q u e s e e s t e n -d e u e m c e r t o g r au à s u n i v e r-s i d a d e s p ú b l i c a s br a s i l e i r a s , a nt ro d a i nt e l i g ê n c i a n a c i o -n a l .

Lu i s In á c i o Lu l a d a S i l -v a f i r m av a - s e n o i m a g i n á r i o p o p u l a r d o s b r a s i l e i r o s c o m o a q u e l e q u e e n c a b e ç a r a u m d o s m a i s b e m - s u c e d i d o s g o -v e r n o s d a h i s t ó r i a r e c e n t e d o B r a s i l .

E i s q u e n o s a n o s a n t e -c e d e n t e s à r e e l e i ç ã o d e D i l m a R o u s s e f f , a p a d r i n h a d a p o l í -t i c a d e L u l a , u m a n o v a f a c e d a p o s i ç ã o p o l í t i c a b r a s i l e i -r a c o m e ç a a s e r e v e l a r, d a n d o f o r m a a o q u e m u i t o s c h a m a -r i a m d e p o l a r i z a ç ã o p o l í t i c a e q u e s e s e d i m e n t a r i a n o s a n o s s e g u i n t e s .

O i n í c i o d a O p e r a ç ã o L a -v a - J a t o t o r n a v a p ú b l i c o s g r a v e s e s q u e m as de corr up-ção envolvendo o Par t ido dos Traba lhadores , empreite i ras e a Petrobrás , re levando o que

o The Guardian v ir ia cons i-derar um dos maiores es-

quemas de corr up ção da his tór ia . Em 2014, logo ap ós a ap er tada ree le ição da então pre-

s idente Di lma R o u s s e -

f f ,

a cr ise econômica devorava o capita l das famí l ias , como consequência d ire ta da Nova Matr iz Econômica implantada ainda p or Lula em 2008. Os ín-dices de p obreza voltam a cres-cer, a economia bras i le i ra sof re graves e sucess ivas recessõ es e o Bras i l como p otência econô-mica “em um par de dezenas de anos’’, como profet izado p ela Is toÉ em 2010, nunca se con-cret izou.

Para piorar, o avanço das in-vest igaçõ es v inculadas à Op e-ração L ava-Jato prossegue, che-garam à Lula , com o Ministér io Públ ico a acusá- lo de cr imes de corr up ção pass iva , l avagem de dinheiro e outras denúncias . O ex-pres idente é ap ontado como o dir igente do esquema de cor-r up ção montado na Petrobras , tendo auxi l iado no desv io de 87 mi lhõ es dos cof res da esta-ta l .

S e Lu la e o Par t ido dos Tra-ba lhadores er ig iram-se um dia sobre a esp erança de mudança e a defesa d a é t i c a n a p o l í t i -c a , a s d e n ú n c i a s d e c o r r u p -ç ã o d e m o n s t r a r a m p a r a u m a g r a n d e p a r c e l a d o s a d m i r a -d o r e s d o l u l o p e t i s m o u m a f a c e e s c u s a e i n d e f e n s á v e l . A q u e l e s q u e s e p e n s a v a q u e e r a m s a n t o s , n ã o s ã o . O s e n -t i m e n t o d e q u e f o r a m e n g a -n a d o s , p a s s a d o u m p e r í o d o d e d e s o r i e n t a ç ã o , t r a n s f o r -m a a p a i x ã o e m r e v o l t a . P a r a m u i t o s , a c o n f i a n ç a d e u m p o v o f o i d e s o n r a d a , d a n d o o r i g e m a u m ó d i o q u e s ó p o -d e r i a s e r p r e c e d i d o p o r u m s e n t i m e n t o d e s i m p a t i a t ã o e x t r e m a d o q u a n t o .

A d e m a i s , a d e s i l u s ã o d o s q u e h o j e p r o c l a m a m a v e r s ã o a o l u l o p e t i s m o é a g r e g a d a a i n d a a o s e n t i m e n t o d o p e n -s a m e n t o c o n t r a - h e g e m ô n i c o , q u e f o m e n t a a i n d a m a i s a s u a r e v o l t a . R e - v o l -t a - l h e s p e r c e b e r q u e a

m a i o r i a , a r e v e - l i a d a s e v i d ê n c i a s , p e r d u r a n a i l u -s ã o . S e n t e m , d e s s e m o d o , a

n e c e s s i d a d e d e m o s t r a r à m a i o r i a v e n d a d a a v e r -

d a d e q u e e n c o n t r a -r a m , f o r ç a d a m e n t e

j o g a r - l h e s a m e s -m a l u z q u e

o s d e s i l u d i u m a s q u e o s r e v e -l o u o q u e j u l g a m s e r o m u n -d o r e a l , r e t i r á - l o s d a c a v e r -n a p l a t ô n i c a e f a z e r c o m q u e v e j a m m a i s d o q u e s o m b r a s . “ N ã o v ê e m ? O B r a s i l q u a s e v i r o u C u b a ! ’ ’, d i r ã o .

P a r a o s a p o i a d o r e s d e L u l a , e n t r e t a n t o , o s o i t o a n o s d e g o v e r n o d o e x - m e t a l ú r g i -c o e s t ã o l o n g e d e p a r e c e r e m s o m b r a s . R e c o r d a m - s e d a p r o s p e r i d a d e e c o n ô m i c a e s o c i a l , r e c o n h e c e m n o g o -v e r n o l u l o p e t i s t a u m g o -v e r n o p a r a o s p o b r e s , o g o -v e r n o d o s q u e p r e c i s a m . E e i s a q u i u m f a t o r i m p o r -t a n t e n e s s a p e r s p e c t i v a : a i m p l a n t a ç ã o i d e o l ó g i c a d o m a n i q u e í s m o n a p o l í t i -c a , c o m u m e n t e a a s s u m i r a f o r m a d a l u t a d e c l a s s e s . H á o b e m e o m a l , h á o s r i c o s c o n t r a p o b r e s , e L u l a p r o t e -g e u o s p o b r e s . A q u e l e s q u e s e o p õ e a o l u l o p e t i s m o s ã o o s r i c o s i n s e n s í v e i s a q u e m f a l t a h u m a n i s m o , d e s e j o -s o s e m e x p l o r a r a n o s s a f o r ç a d e t r a b a l h o e m p r o l d o g r a n d e c a p i t a l f i n a n c e i -r o e , c o m o d i r i a M a r i l e n a C h a u í , d a a t u a ç ã o i m p e r i a -l i s t a a m e r i c a n a . “ É t u d o u m p l a n o d a R e d e G l o b o ”, d i r ã o .

E m f a c e d e a m b o s o s e x -t r e m o s , p o d e m o s e n x e r -g a r , e n t r e t a n t o , u m a o r i -g e m c o m u m q u e c a r a c t e r i z a u m p e r i g o s o a s p e c t o d o s e r b r a s i l e i r o .

P o s s u í m o s , n o í n t i m o d o s s o n h o s p o l í t i c o s , u m a c e r t a or f a n d a d e . S o m o s ó r -f ã o s p o i s c l a m a m o s p o r n ã o a p e n a s u m l í d e r , m a s u m p a i . A l g u é m q u e p o s s a m o s c o n f i a r i n c o n d i c i o n a l m e n -t e , a l g u é m c a p a z d e s a l v a r a p á t r i a , a l g u é m q u e n o s c a r r e g u e n o s b r a ç o s a t r a -v é s d a h i s t ó r i a .

T a l e x p e c t a t i v a , a o s u -b e s t i m a r m o s o u a b d i c a r -m o s d a s n o s s a s p r ó p r i a s p e r n a s q u e n o s c o n e c t a m a o c h ã o , t o r n a - n o s c e g o s : t a l v e z p e l o ó d i o p r o v o c a d o p e l a d e s i l u s ã o c o m o p r e -t e n s o p a i , t a l v e z p e l a p a i -x ã o q u a s e r e l i g i o s a p o r e l e c o n q u i s t a d a .

Lula preso: O que escondem o amor e o ódio

pelo ex-presidente?

Por Jailson de Sousa Oliveira, Maísa Mendes de Carvalho Dias, Wilton Gutemberg da

Cruz Pires

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O Libertas - UFPIJulho de 2018

8Centro Acadêmico Cromwell de Carvalho

N ão há como negar que Lula sempre foi uma f igura marcada para a

mídia . Durante toda a t rajetó-r ia do pet ista , muito dist inta da histór ia pol ít ica daqueles que chegaram ao posto de Pre-s idente da Repúbl ica , o ex-pre-s idente recheou as capas e man-chetes dos grandes jornais do país . De operár io, s indica l ista e cr iador do Par t ido dos Tra-ba lhadores , Luís Inácio Lula da Si lva chegou à pre s i d ê n c i a e m 2 0 0 2 , s e n d o u m a f i g u r a m ar-c a d a p e l o e x t re m i s m o d e s e n -t i m e nt o s p or p ar t e d a p opu l a -ç ã o – ou o am am , ou o o d e i am . E s s e f e n ôm e n o n ã o é p or a c a -s o, j á qu e , a s u a c ar re i r a p o l í -t i c a fo i m arc a d a p e l o d e s a f i o d o s t atu s qu o e p or u m a lu t a d e c l a s s e s , a i n d a qu e à m o d a br a s i l e i r a . Lu l a fo i , s e m dúv i -d a s , u m pre s i d e nt e p opu l ar.

Nã o s e r i a d i fe re nt e a g r an d e c o b e r tu r a e m re l a ç ã o à s i tu a ç ã o d o e x - pre s i d e nt e n o s ú l t i m o s d oi s an o s , i nt e r v a l o d e t e mp o e m qu e fo i ju l g a d o e , n o d i a 8 d e abr i l , pre s o, ap ó s o c é l e re d e c re t o d o ju i z S é rg i o Moro. E m m e n o s d e 1 8 h or a s ap ó s o Supre m o Tr i bu n a l Fe -d e r a l t e r n e g a d o o p e d i d o d e h ab e a s c or pu s d o e x - pre s i d e n -t e , S e rg i o Moro s u r pre e n d e u a t o d o s , i n c lu s ive o s a dvo g a d o s d e Lu l a , a o e m it i r a ord e m d e pr i s ã o d o p e t i s t a . O ju i z c u r i -t i b an o, a o s e r n ot i f i c a d o p e l o Tr i bu n a l R e g i on a l Fe d e r a l d a 4 ª re g i ã o qu e n ã o h av i a m ai s ó bi c e l e g a l qu e i mp e d i s s e a pr i s ã o d e Lu l a , e m it iu o m an -d at o e m ap e n a s 1 9 m i nut o s e e m m e n o s d e 3 l au d a s . A l é m d i s s o, a d e c i s ã o fo i e x p e d i -d a ant e s m e s m o qu e a d e fe s a apre s e nt a s s e , à s e g u n d a i ns -t ân c i a , o s ú l t i m o s re c u r s o s – o s c h am a d o s “e mb argo s d o s e mb argo s”. Par a e s p e c i a l i s -t a s , a pr i s ã o d e Lu l a é i n c omp at íve l c om a g ar ant i a d a pre -s u n ç ã o d a i n o -c ê n c i a . Por e s s e m ot ivo, o pro -c esso de Lula se tornou mais rápido do que a média ; e por um conjunto de ou-tras razões , ju-

r istas af irmam que o processo do ex-pres idente é munido de exceções e caracter íst icas at ípi-cas . Nos outros 8 casos em que Moro determinou a pr isão de réus que respondiam em l iber-dade, os processos duraram em torno de 18 a 30 meses . Já no caso do ex-pres idente pet ista , o processo se a longou por apenas 8 meses .

Mesmo que os chamados “embargos dos embargos” não tenham previsão na le i , estes são uma tradição jur ídica res-peitada nos t r ibunais , o que tor-na a decisão de Moro e do TRF-4 não, necessar iamente, i lega l , mas s im inusitada. S egundo o própr io juiz cur it ibano, os em-bargos dos embargos devem ser e l iminados do mundo jur ídico porque são prejudic iais à Just i -ça por ter e fe itos protelatór ios . Outros jur istas af irmam que o recurso é per t inente a depender do caso t ratado. De toda manei-ra , a pr isão de Lula se mostra-va ser um fato inevitável , mas a celer idade do processo foi , in-quest ionavelmente, incomum.

Tanto S erg io Moro como os ministros do STF, têm res-sa ltado que Lula não deve ter t r a t a -m e n t o d i feren-c i a d o s o b a sua c o n -d iç ão d e r é u . N o e n -t a n -t o ,

ao anal isar o caso, nota-se um tratamento excepcional em re-lação ao ex-pres idente – t ra-tamento este que não costuma ser exercido a outros réus . Os protocolos comuns não têm decisões tão rápidas e tão de-ta lhadas como as do processo de Lula . Um dos argumentos cuja sustentação conf irma a af irmação é a qu e s t ã o d o h a -b e a s c or pu s d o e x - pre s i d e n -t e s e r ju l g a d o e m p l e n ár i o, e n ã o n a s a ç õ e s d e c l ar at ór i a s d e c ons t i tu c i on a l i d a d e ( A D C ) . Um out ro e xe mpl o é o própr i o pro c e s s o d e Lu l a s e r p a s s a d o a f re nt e d e out r a s p aut a s n o T R F- 4 .

Nã o s e t r at a , n e c e s s ar i a -m e nt e , d e a f i r m ar s o bre a i n o -c ê n c i a ou c u lp abi l i d a d e d o e x -- pre s i d e nt e s o b a s u a c on d i ç ã o d e ré u , m a s d e p e rc e b e r a s d i -ve r s a s nu an c e s qu e o pro c e s -s o e a c on d e n a ç ã o c ar re g am . A ju d i c i a l i z a ç ã o n a p o l í t i c a p o d e t r a z e r a i d e i a d e q u e e s s a c o n d e n a ç ã o e m p r i m e i -r o g r a u e e m s e g u n d o g r a u d e L u l a s ã o p a u t a d a s e m s e l e t i -v i d a d e p o l í t i c a e s e l e t i v i d a -

d e d e p r o v a s . Vi s t o i s s o , o s p r i n c í p i o s q u e p e r -

m e i a m u m p r o -c e s s o j u s t o n ã o s ã o d o t a d o s d e p l e n a o b s e r -v â n c i a .

E m p a r a l e l o à s q u e s t õ e s p o -l í t i c a s e j u -r í d i c a s , v i s -l u m b r a - s e a s o c i a l , p a u -t a d a p e l a

m í d i a . H á q u e m a f i r m e

c o m v e e m ê n -

c i a d e q u e a c o b e r t u r a s o b r e o p r o c e s s o d e L u l a t e m s i d o d e s p r o p o r c i o n a l e d e s e q u i -l i b r a d a , c o m o i n t u i t o d e e n f r a q u e c e r o s p r o j e t o s d a e s q u e r d a e a a t u a l c a n d i d a -t u r a d o e x - p r e s i d e n t e , a l é m d e i n c e n t i v a r a s u a c o n d e n a -ç ã o . E s s a c o n c l u s ã o é c o n f i r -m a d a p e l o C o l e t i v o I n t e r v o -z e s , q u e a t u a p e l a g a r a n t i a d o d i r e i t o à c o m u n i c a ç ã o n o B r a s i l . U m e x e m p l o é o J o r -n a l N a c i o n a l - o d e m a i o r a u d i ê n c i a n o p a í s - q u e t e v e a b o r d a g e m c o n c e n t r a d a e m t r ê s d e s e m b a r g a d o r e s , c u j o s d i s c u r s o s e s t i v e r a m m a i s v o l t a d o s p a r a a a c u s a ç ã o . O c o l e t i v o t a m b é m a n a l i s o u m í d i a s i m p r e s s a s , c o m o a F o l h a d e S ã o P a u l o , E s t a d ã o e O G l o b o e a p o n t a m q u e e s t e s m e s m o s m e i o s s e u t i -l i z a r a m d e a r g u m e n t o s p a r a t e n t a r g e r a r e m p a t i a n a p o -p u l a ç ã o , a f i r m a n d o i d e i a s d e q u e a s d e c i s õ e s d a J u s -t i ç a n ã o s ã o q u e s t i o n á v e i s e d e q u e a p r i s ã o d e L u l a s e r i a e s t r i t a m e n t e n e c e s s á -r i a p a r a e s t a b i l i z a r o B r a s i l e c o n o m i c a m e n t e e p o l i t i c a -m e n t e .

Um d o s m ai ore s e mbu s -t e s d a n o s s a s o c i e d a d e é c re r qu e i ns t i tu i ç õ e s c om o a m í d i a e o Po d e r Ju d i c i ár i o s ã o p l e -n am e nt e i mp arc i a i s . O c a s o d e Lu l a é u m a prov a re c on h e c í -ve l d e que a mídia pode ju lgar antes do judic iár io, e de que o judic iár io pode ter mot ivações pol ít icas . A ideia de imparcia-l idade das inst ituições é uma espécie de convicção incons-ciente que as pessoas carregam, usadas para pautar um ou outro argumento que favoreça o seu posicionamento. Destacar pecu-liaridades e duvidar dos trâmites

que levaram o processo de Lula não é ser a

favor de impu-nidade, mas sim de garan-tir a obser-vância de um j u l g a m e n t o justo e do quanto a mí-dia arqui-teta ideias perigosas à população.

Que não acreditemos com veemência em imparcialidade

do Judiciário e da MídiaPor Jailson de Sousa Oliveira, Maísa Mendes de Carvalho Dias, Wilton Gutemberg da Cruz Pires

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O Libertas - UFPIJulho de 2018

9 Centro Acadêmico Cromwell de Carvalho

Um olhar sobre a lei Pelé: o ordenamento que influi no

campoRennan Oliveira Sousa

Q u e o f ut e b o l m o bi l i -z a n o s s o s o l h are s , n o s e n c ant a du r ant e a s

t ard e s d e d om i ngo, n oi t e s d e qu ar t a s - fe i r a s , e p e r í o d o s d e c op a d o mu n d o, n ã o é n ov i -d a d e a l g u m a . Ma s , e m u m pr i -m e i ro m om e nt o n ã o é n ot áve l a o t e l e s p e c t a d or qu e , p or t r á s d a s “ lu z e s e f u m a ç a s”, e x i s t e u m a e s t r utu r a g i g ant e s c a qu e s u s t e nt a o e s p e t á c u l o f ut e b o -l í s t i c o c om u m s i s t e m a org a -n i z a c i on a l qu e e n f re nt a d ive r-s o s d i l e m a s rot i n e i r am e nt e . As i nú m e r a s c r í t i c a s a C B F, e a s e nt i d a d e s d e s p or t iv a s e s t a -du a i s c om o a Fe r j e F P F n ã o s e r ã o an a l i s a d a s a qu i , m a s , s i m , a l go m ai s í nt i m o d o qu e i s t o, o n o s s o pr i n c ip a l pro du -t o e s v a i n d o - s e d i ant e d e n o s -s o s o l h o s , o s j ove ns t a l e nt o s d e n o s s o pr i n c ip a l e s p or t e m i -g r an d o d o p a í s pre c o c e m e nt e .

O r a , o “ bu s i n e s s d o Fut e -b o l” m ov i m e nt a c i f r a s e xor-b i t ant e s , ve rd a d e i r a s for tu n a s s ã o ge r a d a s , ap l i c a d a s , d a s qu a i s s e e s p e r a u m re t or n o d e i g u a i s prop orç õ e s . O s j ove ns pro d í g i o s d o e s p or t e n a s c e m d e v i d o a u m g r an d e pre p aro d e c ar re i r a qu e s e i n i c i a d e s -d e a s c at e gor i a s d e b a s e , l o c a l d e for m a ç ã o d o s j ove ns f utu -ro s at l e t a s . C i f r a s c ons i d e r á -ve i s ( m i l h õ e s ) s ã o i nve s t i d a s , pr i n c ip a l m e nt e p e l o s g r an d e s c lu b e s , e a t é m e s m o p orqu e g r an d e p ar t e d a re c e i t a d o s c lu b e s d e p e n d e d a ve n d a d e s -t e s j ove ns j o g a d ore s . E m 2 0 1 4 a s ve n d a s d e j o g a d ore s ab a i xo d a f a i x a d e 2 1 an o s a l c an ç a -r am nú m e ro s próx i m o s d e 2 4 0 m i l h õ e s . O s d a d o s m o s t r am qu e a t r ans fe rê n c i a d e at l e t a s é a s e g u n d a font e d e ge r a ç ã o d e re c e i t a m ai s i mp or t ant e p ar a o s c lu b e s , ab arc an d o 1 4 % d a re c e i t a t o t a l , ab a i xo ap e n a s d o s d i re i t o s d e t v c om 5 1 % d e t o d a a re c e i t a .

Que as re lações jur ídicas in-f luem em qualquer t ipo de con-texto em que se estabelecem re-lações não é a novidade. Porém estes mesmos ordenamentos têm s ido mot ivo para a precar i-zação do pr incipa l orgulho es-por t ivo nacional que é o Fute-bol . Em 1998 a Lei Pelé nasceu como meio de l ivrar o jogador futebol íst ico da exploração que

havia entre at le ta e c lube atra-vés da ext inção do passe. An-tes de ta l le i o c lube era mante-nedor do passe do jogador por tempo indeterminado, o qual era obr igado a cumprir com seus deveres de at le ta perante o c lube. Após o f im da le i do passe e a v igência da le i Pelé , cr iou-se dois t ipos de dire itos : os dire itos federat ivos , os quais v inculam o at leta ao clube que atua, e cr iou-se os dire itos econômi-cos , os quais po-dem per tencer ao clube, empresár ios , agentes ou invest i -dores .

C om o s t e r-m o s qu e a L e i Pe l é t rou xe à for m a ç ã o d o s j ove ns at l e t a s f u t e b o l í s t i c o s , o s c lu b e s s e nt e m - s e re fé ns d a i nve s t i d a d e c lu b e s e s t r an -ge i ro s qu e m ant é m u m a e n or m e d i s -p ar i d a d e e c on ôm i -c a c om o s c lu b e s n a c i on a i s . A l g u ns e xe mpl o s f at í d i -c o s s ã o o s j ove ns at l e t a s n e go c i a d o s n a s ú l t i m a j an e l a s : T h i a go Mai a , 2 0 an o s , vo l ant e t i tu l ar d o S ant o s e c amp e ã o o l í mpi c o e m 2 0 1 6 ve n d i d o a o L i l l e d a Fr an ç a ; R i c h ar l i s on , 2 0 an o s , a t a c an -t e d o F lu m i n e ns e t r ans fe r i d o a o Wat ford d a Ing l at e r r a ; Lu í s A r aúj o, 1 8 an o s , d o S ã o Pau -l o a o L i l l e ; D ou g l a s , 1 9 an o s , vo l ant e d o Va s c o ve n d i d o a o Man c h e s t e r C i t y e e mpre s t a -d o a o Gi ron a , f i l i a l d o c lu b e i ng l ê s ; Vi n i c iu s Jr, 1 7 an o s , re ve l a ç ã o d o F l am e ngo n e go -c i a d o a o R e a l Ma d r i d ; O t á -v i o, vo l ant e d o At l é t i c o - P R a o B ord e au x , Vi t or Hu go, 2 3 an o s , z a g u e i ro d o Pa l m e i r a s à F i ore nt i n a , Vi t i n h o, 1 8 an o s , e mpre s t a d o p e l o Pa l m e i r a s a o B arc e l on a B ; Ly an c o, 2 0 an o s , z a g u e i ro d o S ã o Pau l o a o To -r i n o ; D av i d Ne re s , 1 8 an o s , d o S ã o Pau l o p ar a Aj a x ; e Wa l l a -c e , 2 3 an o s , d o Grê m i o p ar a o Hambu rgo. O i nve s t i m e nt o d e c i f r a s m i l i on ár i a s c om o o c a s o d o S ã o Pau l o, qu e e nt re 2 0 1 0 e 2 0 1 5 t o t a l i z ou R $ 1 6 7 , 5 m i -

l h õ e s , é o c e n ár i o qu e d ive r s o s c lu b e s for m a d ore s d e n ovo s j o -g a d ore s e n f re nt am , p ar a qu e m s ab e c ons e g u i r u m re t or n o d e d oi s ou t rê s j ove ns p ot e n c i a i s v a l ore s . D e v i d o a i s s o o s c lu -b e s e nt re g am f at i a s d e s e u s d i -re i t o s e c on ôm i c o s n a s m ã o s d e e mpre s ár i o s e f u n d o s d e i nve s -t i m e nt o, ou out ro s t e rc e i ro s .

A s i tu a ç ã o d e f i c i t ár i a d o s c lu b e s a o ve r s u a s pr i n c ip a i s

e s p e r an ç a s d e re -n ov ar s e u s e l e n -c o s , apr i m or ar s e u s j ove ns pro -d í g i o s p ar a s e re m l an ç a d o s n o c e n á -r i o n a c i on a l , e s -t ab e l e c e r n ovo s í d o l o s i d e nt i f i c a -d o s c om a h i s t ór i a d o c lu b e , s e m f a -l ar n a i mp or t ân -c i a d e e c on om i z ar s e u c api t a l p ar a ap l i c ar e m out r a s pr i or i d a d e s c om o d e p a r t a m e n t o s m ai s m o d e r n o s e e qu ip am e nt o s d e ú l t i m a ge r a ç ã o, é re a l m e nt e pre o c u -p ant e e l a s t i m áve l , m a s pr i n c ip a l m e n -t e d e v i d o à s m á s a d m i n i s t r a ç õ e s

qu e s e p a s s ar am s o bre a s d i re -t or i a s d e t a i s c lu b e s . E é n e s t a qu e s t ã o qu e o c lu b e s a i a i n d a m ai s pre ju d i c a d o. No m om e nt o d e c r i s e , a ve n d a d e u m j ove m v a l or p o d e r i a s e r v i r d e a l ív i o n a s f i n an ç a s d o s c lu b e s , m a s i s t o n ã o a c ont e c e d e v i d o e x a -t am e nt e a s i mpl i c a ç õ e s ju r í d i -c a s qu e a L e i Pe l é t r a z . Vam o s t om ar p or e xe mpl o a ve n d a d o c r a qu e Ne y m ar d o S ant o s p ar a o B arc e l on a e m 2 0 1 3 . Ve n d i d o a o s 2 1 an o s , o B arc e l on a d e -s e mb ol s ou R $ 2 8 4 , 5 m i . D e s t e t o t a l R $ 5 6 , 5 m i . e r am re fe re n -t e s a o s d i re i t o s e c on ôm i c o s e f e d e r at ivo s . E s t a m e s m a qu an -t i a f i c ou d iv i d i d a d a s e g u i nt e for m a : 5 % a i nve s t i d ore s , 4 0 % a out ro s i nve s t i d ore s e 5 5 % a o c lu b e d e for m a ç ã o e qu iv a l e nt e a R $ 3 1 , 5 m i .

C om t a i s f a t ore s e pre ju í -z o s c au s a d o s p e l o f at i am e nt o, a F I FA nu m pr a z o d e qu at ro an o s t om ou m e d i d a s p ar a qu e h aj a m ai s prot e ç ã o c ont r a e s t a

pre c ar i z a ç ã o d o e s p e t á c u l o e s -p or t ivo f ut e b o l í s t i c o. E m 1 º d e m ai o d e 2 0 1 5 , A F i f a pro i b iu qu e t e rc e i ro s ( p e s s o a s f í s i c a s ou ju r í d i c a s ) d e t ive s s e m p ar t i -c ip a ç ã o n o s d i re i t o s e c on ôm i -c o s d e j o g a d ore s d e f ut e b o l . A f i n a l i d a d e d a m e d i d a e r a qu e o s c lu b e s f i c a s s e m , n a m ai o -r i a d o s c a s o s , c om 1 0 0 % d o s d i re i t o s d e s e u s at l e t a s , e c om i s s o c ons e g u i s s e m re c e b e r v a -l ore s m ai ore s n a s t r ans a ç õ e s . No Br a s i l , p e l o m e n o s , i s s o n ã o a c ont e c e u . O s pr i n c ip a i s c lu b e s br a s i l e i ro s a i n d a t ê m a m ai or p ar t e d e s e u s e l e n c o s f at i a d o s . Ma s c om o i s s o a c on -t e c e s e a F i f a n ã o aut or i z a qu e t e rc e i ro s d e t e n h am o s d i re i t o s e c on ôm i c o s ? A fe d e r a ç ã o i n -t e r n a c i on a l pro i b iu qu e pro -c u r a d ore s ou e mpre s a s d e s s e s prof i s s i on a i s p ar t i c ip a s s e m d a f at i a , m a s é p o s s íve l qu e c lu -b e s d iv i d am o s d i re i t o s e c on ô -m i c o s d o s at l e t a s – h á t amb é m c ont r at o s m ai s ant i go s , d e an -t e s d e 3 1 d e d e z e mbro d e 2 0 1 4 , qu e a i n d a v a l e m s o b a re g r a ant e r i or. D e nt re o s 1 2 m ai ore s c lu b e s d o Br a s i l , o i t o apre s e n -t ar am n o s b a l an ç o s f i n an c e i -ro s d e 2 0 1 6 a d iv i s ã o d o s d i -re i t o s e c on ôm i c o s d o s at l e t a s , s om e nt e o B ot a fo go t i n h a , e m d e z e mbro d e 2 0 1 6 , 1 0 0 % d e m ai s d a m e t a d e d o s j o g a d ore s prof i s s i on a i s . Pa l m e i r a s , S ã o Pau l o, S ant o s , F l am e ngo, F lu -m i n e ns e , Grê m i o e C r u z e i ro t i n h am m e n o s d a m e t a d e , a l -g u ns b e m m e n o s , d e 1 0 0 % d o s d i re i t o s e c on ôm i c o s d a qu e l e s s o b c ont r at o.

Os pr incipais pre judicados são os torcedores que pagam pelo espetáculo e esperam ver o melhor que o espor te pode con-ceder, por isso é preciso estar atento: Direito e Futebol tem muito mais a ver do que uma s imples atuação de uma just i -ça despor t iva ou de árbitros de futebol , as impl icações das nor-mas inf luem também em cam-po, quando a norma inf lui na precar ização da qual idade do nosso maior espor te . E nós . . . S ó queremos ter em nossos domin-gos a tardes uma comemoração honesta de um espetáculo bem entregue aos nossos espectado-res , porque af ina l o futebol é a paixão nacional .

O “Business d o Fu tebol” movimenta

cifras exorbitantes, verdadeiras

fortunas são geradas,

aplicadas, das quais se espera

um retorno de iguais

prop orções.

Matéria de 2017

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O Libertas - UFPIJulho de 2018

10Centro Acadêmico Cromwell de Carvalho

Uso Medicinal da Cannabis Fábio Elcy Lopes

É fato que o debate em torno da legalidade da maconha divide opiniões. Há quem diga que

a proibição causa mais problemas sociais e jurídicos do que causaria a planta em si, caso seu uso, cultivo e cadeia de produção fossem legaliza-dos. A título de exemplo, citam-se o fortalecimento do tráfico e a intensi-ficação das problemáticas advindas da chamada “guerra às drogas”, mo-delo ultrapassado de segurança pú-blica. Por outro lado, há quem afir-me que se deva insistir num modelo proibitivo.

À parte disso, parece um tanto menos controversa a possibilidade de permissão legal do uso medicinal da cannabis, embora o assunto ainda en-volva grande polêmica e ainda esteja maculado de muitas inverdades re-petidas através dos anos. Quando se trata de saúde, é provável que a socie-dade esteja um pouco mais suscetível a rever seus conceitos. Isso porque é difícil posicionar-se contra um remé-dio de origem natural, que pode ser feito inclusive em casa, sem custos muito elevados, capaz de sanar vários problemas do corpo humano e tornar mais suportáveis outros tantos, tudo isso aliado à inocorrência de marcan-tes efeitos colaterais.

São milenares os registros da utilização da maconha pela huma-nidade para tratar os mais diversos males físicos e psíquicos. Entre os seus princípios ativos mais conhe-cidos (em realidade, existem cen-tenas) destacam-se o THC (tetrai-drocanabinol), responsável pelo efeito psicotrópico, e o CBD (ca-nabidiol), comumente associado às propriedades medicinais da planta. Nesse sentido, as aplicações farma-cêuticas atuais dos dois compostos químicos citados são inúmeras: de dor de cabeça, cólicas menstruais, inflamações, e doenças psicológicas como transtorno de ansiedade e de-pressão, até o tratamento de epilep-sia. Além disso, a cannabis também

pode ser utilizada com a finalidade de aumentar a qualidade de vida durante o tratamento de enfermi-dades como câncer e AIDS.

Como exemplo, trazemos o caso de Larry, um senhor portador de Mal de Parkinson, registrado em vídeo, no qual os efeitos do uso da canna-bis são demonstrados. O videoclipe a seguir é autoexplicativo, e é capaz de emocionar quem a ele assiste. Abra um aplicativo leitor de QR Code e di-recione à imagem acima.

Face à proibição da maconha, mui-tas famílias que possuem entre seus membros alguém que precisaria ser tratado com a substância recorrem a meios ilegais para obtê-la. Dessa ma-neira, restam duas opções. Ou paga--se relativamente barato por cannabis em estágio avançado de putrefação, ou paga-se relativamente caro por cannabis em estado natural. Das duas formas, o comércio ilegal de drogas é fortalecido, com o consequente au-mento da violência em âmbito social. Das duas formas, o cidadão sai per-dendo.

Outras famílias que necessitam fa-zer uso medicinal da maconha bus-cam autorização junto à Anvisa para importar remédios à base de THC e CBD, sendo Mevatyl (sativex) o mais conhecido deles. Consiste em uma

solução para algumas pessoas, embo-ra precária. Além da possível demora da chegada do fármaco a solo brasi-leiro, o maior impeditivo dessa opção é o custo: em alguns casos, a despesa mensal pode ultrapassar os cinco mil reais.

Uma das melhores alternativas ainda é socorrer-se do Poder Judi-ciário para obter a autorização para o plantio caseiro da cannabis, com a possibilidade de produção doméstica do remédio. Todavia, o pedido ainda deve passar pelo crivo de um Juiz, que pode negá-lo com base em suas convicções. Em caso de procedência do pedido, ainda resta o decurso do tempo preciso para que o cidadão, autorizado pelo Poder Judiciário, ad-quira os conhecimentos necessários ao domínio do plantio, nutrição e ciclo de vida da cannabis, e estude o método de confecção caseira de um remédio à base da erva. Isso sem con-tar o período que a planta leva para estar pronta, do estágio vegetativo ao pleno desenvolvimento do estágio de floração.

A situação acima delineada tende a mudar ao longo do tempo, embo-ra apenas pudesse mudar completa-mente com a ampla legalização do uso medicinal da maconha no Brasil. No Piauí, o governo estadual passou a fornecer, de forma gratuita, remé-dios à base de cannabis para pacien-tes que necessitavam deles fazer uso. O canabidiol (CBD) era importado dos Estados Unidos e de Israel, o que gerava um custo muito elevado para os cofres públicos. Diante disso, no fim de dezembro de 2017, de forma pioneira, o governo estadual autori-zou pesquisas a fim de possibilitar a produção local de remédio à base da maconha. O investimento inicial, de cerca de um milhão de reais, tem como objetivo obter-se uma fabrica-ção mais barata, de forma que se ga-ranta o direito à saúde a uma parte maior da população local.

As pesquisas estão sendo reali-

zadas, desde o início de 2018, em conjunto pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) e pela Universida-de Estadual do Piauí (UESPI), junto com a Secretaria de Saúde do Piauí (SESAPI), contando com a ajuda da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Piauí (FAPEPI). Busca-se o avanço em pesquisas de medica-mentos à base de canabidiol, o que significa notório progresso para o campo científico local e para a me-dicina nacional. As expectativas das entidades que se aliaram em prol do desenvolvimento de fármacos com CBD, a depender dos resultados, en-volvem a implantação de um centro de pesquisa, inovação e divulgação da substância no Piauí.

Caso a maconha não fosse proibi-da, ou mesmo caso não fosse proibi-do o seu uso medicinal, as pesquisas em torno de seus benefícios e utiliza-ções médicas já estariam muito mais avançadas, e não apenas em fase ini-cial. Inúmeras pessoas passariam a tratar doenças simples e complexas a partir das inúmeras variedades ge-néticas que a planta apresenta, o que forneceria uma melhor qualidade de vida a quem sofre de diversas doen-ças físicas e psicológicas.

Um dos principais motivos da per-manência da proibição da cannabis é o preconceito que circunda o tema. O caso supracitado, da autorização estatal para o desenvolvimento de pesquisas com a maconha no Piauí, é provável que só tenha ocorrido em virtude da experiência pessoal do go-vernador Wellington Dias. É sabido que sua filha, que tem muitas crises de epilepsia, necessita de remédio à base de CBD e teve bastante difi-culdade em ter acesso à substância. Trata-se de um desses casos em que a realidade, ao confirmar os inúmeros benefícios medicinais da maconha, confronta a ignorância, que consiste na ideia generalizada de que a planta só traz malefícios. Como não poderia ser diferente, a realidade subsistiu.

Conjuntura atual e perspectiva de avanço em pesquisas no Piauí

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Meios de comunicação turbi-nados pela tecnologia são mecanismos indispensáveis

à disseminação de informações nos dias atuais. Tais meios sofreram evolu-ções no decorrer dos séculos, de modo a tornarem-se instrumentos de poder dos órgãos governamentais com o in-tuito de amenizar os impactos dentro da sociedade. Tendo isso em vista, o sé-culo XX, marcado por diversas dissen-ções políticas, sociais e econômicas, foi propício à transposição de uma visão utópica para uma visão distópica sobre o futuro, ou seja, as promessas e previ-sões de um futuro perfeito quase irre-alizável são substituídas por uma visão de futuro caracterizado pelo medo e opressão advindos da tecnologia que evoluía consideravelmente em detri-mento da organização social, de modo a dominar, produzir e transformar as relações humanas.

Nesse ínterim, obras literárias como “1984” de George Orwell e “Admirável mundo novo” de Aldous Huxley anali-sam ficcionalmente como os meios de comunicação passam a ser utilizados como mecanismo de controle social ou até mesmo psicológico das massas, com o propósito de influenciar o com-portamento, condicionando-o a agir de acordo com os padrões impostos em uma dada sociedade. Tais livros escri-tos em uma época tão conturbada re-fletem parte da realidade atual de como os veículos de comunicação convertem e disseminam informações que “mas-caram” a realidade em uma visão quase beirando a perfeição.

Em Teresina, não é preciso ir muito longe para constatar tais semelhanças com as obras supracitadas. No dia 17 de março, entrou em funcionamento parte do sistema de integração de ôni-bus de Teresina denominado “Inthe-gra”. Foram inaugurados os terminais de integração do Bela Vista e do Par-que Piauí, bem como o corredor Sul, composto por algumas avenidas que possuem faixa exclusiva para a loco-moção de ônibus, que tem como ob-jetivos principais agilizar a locomoção dos usuários de ônibus e aumentar o conforto dos pontos de ônibus.

Portanto, a redução do tempo de deslocamento ocorreria, teoricamente, devido à descentralização do fluxo de passageiros, que antes era quase que exclusivo no centro da capital, para os terminais implantados em algumas re-giões da cidade. Por sua vez, o aumen-to do conforto se daria pela inserção de novos veículos, com ar condicionado, portas em ambos os lados do ônibus e rampa para acesso de cadeirantes. Além disso, a redução de custos deve-ria ocorrer devido à possibilidade de o passageiro pegar mais de um ônibus pagando apenas o valor de um passe.

Diante desse cenário, a prefeitu-ra não poderia deixar de desenvolver propagandas para informar sobre a novidade. Sendo assim, esta realizou

diversas campanhas publicitárias com o intuito de divulgar o novo sistema de integração, mas infelizmente esquece-ram a questão de que tudo é mais fácil na teoria, de modo que uma propagan-da é muito mais fácil de ser desenvol-vida. Mostrar condições mais perfeitas do que as reais, pode ser uma estratégia para silenciar diversos fatores, como exemplo, a infraestrutura precária da cidade e, consequentemente, a não re-alização de um planejamento eficaz e a longo prazo. Não é difícil de perce-ber a idealização do novo sistema que é disseminado nas redes sociais de tal órgão, as quais elucidam uma Teresi-na onde não há ônibus abarrotados de trabalhadores e estudantes, onde não há ônibus caindo aos pedaços em que o passageiro teme a possibilidade do veículo se desmontar, onde não há en-garrafamento e principalmente onde as pessoas jamais perdem o precioso tem-po de suas vidas em paradas de ônibus sem teto e sem segurança.

A construção dessas informações que visam ser enxergadas como “ver-dades” estão longe de serem digeridas pelos cidadãos que dependem diaria-mente do transporte público para ir trabalhar ou estudar e posteriormente chegar a suas casas no fim do dia sem estresse e em segurança. Mais obsoleto ainda é a importância que a prefeitu-ra transfere para esse instrumento de comunicação, usada para adulterar e converter a “verdade real” para uma “verdade mistificada”. É possível en-xergar alguns traços dessa situação no livro “1984”, em que o aparato gover-namental, por exemplo, é dividido em quatro ministérios, entre eles, o Mi-nistério da Verdade, que é responsável pela adulteração, reescrita, adequação e produção de materiais informativos. O livro conta a história de Winston Smith, que trabalha como editor no ministério supracitado, sendo incum-bido de alterar informações por ordens do governo, produzindo um tipo de jornalismo estatal que visa ratificar as previsões governamentais mesmo que não estejam de acordo com o que real-mente acontece na sociedade, isto é, a repetição e construção de uma mentira que se torna “verdade inquestionável”, exceto se outra informação, que pode até ser mais absurda, a substitua por ser mais conveniente com os interesses go-vernamentais, fator que pode acarretar mais ainda a limitação do pensamento e a visão de mundo de indivíduos dis-persos e desvinculados das necessida-des inexoráveis da população.

Analogamente, a obra “Admirá-vel Mundo Novo” também retrata um futuro distópico, no qual a felicidade geral foi alcançada por meio do con-dicionamento psicológico dos indiví-duos. Tal processo de condicionamen-to ocorre desde que o indivíduo é um feto e permanece ocorrendo durante toda sua vida, por meio da repetição de frases de efeito, pelo uso de psicotró-

picos que amenizam os momentos de-sagradáveis e pela influência da mídia. A atuação da mídia na referida obra ocorre pelo chamado “Cinema Sensí-vel”, órgão responsável por produzir filmes que reproduzem a manipulação psicológica desejada pelo governo e que não despertam o senso crítico da população acerca da realidade proble-mática em que vive.

Enquanto na ficção de Huxley a so-ciedade já alcançou a felicidade geral por meios não tão agradáveis, a so-ciedade teresinense continua na busca por uma vida digna, com direitos bá-sicos garantidos, visto que até mesmo o direito de ir e vir é cerceado devido às péssimas condições do transporte público. A felicidade e o bem-estar dos estudantes, trabalhadores e demais ci-dadãos depende da existência de uma sociedade harmônica, na qual eles pos-sam se locomover com segurança, rapi-dez e conforto para seu local de traba-lho, universidade, escola, entre outros locais. Assim, percebe-se a necessidade de diversas mudanças na situação atual do transporte público de Teresina para que haja uma melhoria na qualidade de vida dos usuários na prática, pois na teoria e na ficção já existe um mundo perfeito, muito distante da realidade.

Diante do exposto, faz-se necessário analisar especialmente os problemas causadas pelo mau funcionamento do Inthegra aos estudantes de Teresina. Inicialmente, o problema que ocorre com mais frequência é a demora dos ônibus, que não possuem horário fixo ou, devido aos transtornos de locomo-ção no trânsito, fazem com que os inte-ressados cheguem atrasados nas aulas, nos estágios e nos empregos, além de perder provas e demais compromissos. Os estudantes das universidades públi-cas são exemplos concretos do descaso municipal com o transporte público, uma vez que linhas como 406 (Vale do Gavião/Satélite/Ininga-UFPI), 623 (Sa-ci-UFPI) e 730 (Centro/Shopping-U-FPI) com destino à Universidade Fe-deral foram extintas, sobrecarregando ainda mais outras linhas, como a 401 (Universidade).

Em razão disso, no dia 11 de abril, os estudantes dos Diretórios Centrais dos Estudantes (DCE’s) das Universida-des Federal e Estadual do Piauí (UFPI e UESPI), juntamente com a Associação Mundial dos Estudantes Secundaristas de Teresina (AMES) e o Sindicato dos Servidores Municipais (SINDSERM), realizaram uma manifestação exigindo mudanças no novo sistema de transpor-te público, por meio de um documento que foi elaborado para ser entregue ao atual prefeito da capital, Firmino Filho. O documento apontava sugestões para a melhoria da situação, de modo que é possível perceber que o problema não é o sistema Inthegra, mas sim a forma como foi implementado. Manifestações como estas são valiosas por ressaltar um meca-nismo contra o condicionamento ressal-

tado por Huxley.Num segundo plano, o medo provo-

cado pela falta de segurança nos pon-tos de ônibus, especialmente durante a noite, ainda é gritante pois há um grande índice de assaltos nessas oca-siões. Ademais, todo esse conjunto in-fluencia o rendimento dos alunos tanto nos estudos quanto nas atividades cor-relatas devido ao cansaço, ao grande tempo perdido à espera de um ônibus e ao estresse provocado pela terrível si-tuação que é pegar um ônibus lotado, praticamente sem espaço para se loco-mover e ainda carregando muito peso na mochila. Por fim, cabe ressaltar que esse conjunto de fatores também oca-siona muitos problemas de saúde física e mental, causando ansiedade, medo, falta de ar e até machucados devido à péssima estrutura física do ônibus e à má condução dos motoristas que, por vezes, causam transtornos com freadas bruscas – fator tal que pode ocasionar acidentes que, infelizmente, ainda são frequentes em Teresina.

Portanto, para que a utopia presente nas propagandas veiculadas pela Pre-feitura se torne o mais próximo possí-vel da realidade, faz-se necessário que sejam implementas algumas medidas a fim de aperfeiçoar o Inthegra. É preciso que sejam inseridos mais veículos, com acessibilidade e conforto nas linhas de ônibus que atualmente circulam su-perlotadas. Outrossim, a Strans deve determinar horários mais específicos para a passagem do ônibus nas paradas e nos terminais de integração, para que não haja um longo intervalo de tem-po entre a passagem de dois ônibus da mesma linha, nem que passem dois ve-ículos ao mesmo tempo, situação que ocorre corriqueiramente em Teresina, a fim de reduzir o tempo de espera do usuário. Ademais, a Prefeitura deve investir mais em segurança na cidade como um todo, pois o medo é um com-panheiro fiel daqueles que passam horas na espera por um ônibus.

Conclui-se, desse modo, que o sis-tema de integração não é o problema em si, mas a forma inadequada que ele foi implementado, desrespeitando o direito básico de ir e vir das pesso-as, ferindo a dignidade dos passagei-ros. Além de tudo, dificulta o acesso à educação pelos estudantes, que en-xergam nela uma forma de escapar dessa realidade degradante, que assola boa parte da população tere-sinense, enquanto os governantes, que vivem praticamente num mun-do utópico, aprovam o sistema de integração de dentro dos seus car-ros de luxo, com máximo conforto e rapidez possível. Logo, espera-se que tais melhorias sejam aplicadas e que a felicidade geral, tão deseja-da pela população, seja na ficção de Orwel e Huxley, seja na vida real, possa ser algo mais próximo da re-alidade para os usuários do trans-porte público de Teresina.

INTHEGRA: propaganda utópica e realidade distópica

Por Agnes Regina Aguiar Passos e Lúcia Raquel

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Depois da criação e recente implementação da taxa de lixo em Teresina, por causa

das fortes reações sociais contrárias a essa decisão, o Executivo municipal decidiu suspender a sua cobrança, garantindo que serão reembolsados os tributos que já foram recolhidos. Dessa vez, o toma lá dá cá da políti-ca teresinense tem dado trabalho ao contribuinte e revelado a ineficiência da administração municipal na ges-tão do interesse públi-co. Enquanto isso, nas mais longínquas rea-lidades da menina do Equador, o descaso e a sujeira continuam sen-do um entrave para o sossego da sociedade.

Antes de tudo, é importante destacar que a cobrança da taxa de lixo domici-liar é protegida pela Constituição brasi-leira de 1988 no seu artigo 145, inciso II, e a jurisprudência dominante já decidiu pela constituciona-lidade desse tributo, podendo/devendo as unidades federativas instituírem essas ta-xas para garantir uti-lização efetiva ou po-tencial dos serviços públicos, que sejam específicos e divisíveis, aos contribuintes, visto que são susce-tíveis de utilização, de modo sepa-rado, por parte de cada usuário. É o sentido clássico para a noção de qualquer tributo: paga-se para se obter uma recompensa positiva, como nesse caso.

Deixando o juridiquês de lado, o fato é que a cobrança da taxa de lixo domiciliar é justa, porque se trata de um serviço que atenderá em específi-co os interesses particulares do con-tribuinte. Diferencia-se, portanto, da taxa de limpeza pública, porque esta reflete diretamente no interesse pú-blico, não sendo conveniente para o gestor utilizar o débito dos usuários como oportunidade para a suspensão deste serviço público. É a possibilida-de de todos terem acesso a uma ci-dade mais limpa! Esse é, inclusive, o entendimento da Jurisprudência do-minante, que expõe que, além disso, essa cobrança já está presente na taxa pública do IPTU.

Neste sentido, o que a cobrança da taxa de lixo representa é uma presen-ça do Estado cada vez maior na pro-

moção das políticas públicas que se preocupam com a destinação correta dos resíduos sólidos. E essa foi a jus-tificação para a criação desse tributo na capital piauiense. Mesmo porque, seguindo a lógica correta, deduz-se, que a outra taxa de limpeza pública já funcione de fato e que os teresinenses já colham seus frutos, usufruindo de uma cidade mais limpa.

Existiram controvérsias, entre-tanto. Foram muitas as mobilizações

sociais contra a ins-talação de mais uma taxa pública. Repre-sentavam essas mobi-lizações um grito de “chega” de uma so-ciedade assoberbada de pagar tributos que não estão sendo uti-lizados devidamente pelo poder público. Pois, ora, na medida em que a limpeza pú-blica que é deduzida do imposto sobre as propriedades urbanas (IPTU) já é um dever que município tem de respeitar, mais uma taxa individual seria o copo d’agua para uma nova impunida-de na grande Teresina que já não sabe o que é saneamento bási-

co. Não dá para inadimplente com a retribuição social dos tributos já existentes se utilizar da destinação incorreta do lixo domiciliar para justificativa da implantação de mais um tributo.

O gestor público, o hipersuficien-te dessa relação, viu-se, então, dian-te desse toma lá dá cá de interesses, onde de um lado figurava o Estado, que precisava de mais caixa para o desenvolvimento dos seus discursos e das suas políticas públicas, e do outro lado, uma sociedade que reagia legi-timamente - porque revela o dissenso democrático - a esses entraves. Mas, ao invés de conciliá-los e mediá-los, para ao menos consertar os desca-sos na limpeza municipal, pediu ar-rego! Decidiu suspender a cobrança dessa taxa de lixo, enquanto os devi-dos cuidados com a limpeza pública persistem descumpridos. Mas, em tempos de lavagem das vicissitudes institucionais, é preciso ter mais se-riedade com a limpeza pública e com a transparência dos serviços presta-dos à sociedade. Senão, fica difícil, seu político acreditarmos na mudan-ça para uma cidade mais limpa!

O Toma lá dá cá da suspensão da taxa de lixo em Teresina

O toma lá dá cá da política

teresinense tem dado

trabalho ao contribuinte e revelado a

ineficiência da administração

municipal na gestão

do interesse público.

Manoel Dias de Medeiros Neto

Matéria de 2017

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O significado do nome Paula está relacionado à delicade-za, mas, ironicamente, foi isso

que faltou em um momento da vida da protagonista dessa história. Paula, mãe de quatro crianças, todas nascidas em hospitais públicos de São Paulo, sofreu violência obstétrica.

Em 2015, quando de sua interna-ção para o parto, em meio à dor e sem acompanhamento – embora este direi-to esteja assegurado na lei – Paula caiu da maca com a barriga voltada para o chão e, mesmo assim, os profissionais responsáveis não verificaram nem a ela nem ao bebê. Além disso, para acelerar o procedimento, já que ela não estava contribuindo para o parto “andar logo”, como ouviu de alguém dentro do quar-to, uma enfermeira subiu sobre sua barriga para pressionar a saída do bebê – manobra conhecida como Kristeller e desaconselhada pelo Ministério da Saúde. A criança nasceu sem sequelas, porém, o mesmo não pode ser dito da mãe, abalada emocionalmente diante de uma situação traumática e da falta de humanização.

Em agosto do ano passado, Paula, grávida novamente, por medo de reviver tal situa-ção e por ter o pedi-do por um parto ce-sariano negado, leva uma arma ao hospi-tal, com a intenção de exigir uma cesárea. O plano é descoberto e a polícia é acionada. A parturiente realiza, assim, uma cesárea de emergência e é presa por porte ilegal de arma três dias após dar à luz. Passa 21 dias no Centro de Deten-ção Provisória Feminino, em São Paulo, afastada de seu fi-lho recém-nascido e só consegue conhecê-lo ao obter o direito de responder ao processo em liberdade, mesmo sendo definido pela Consti-tuição que devem ser asseguradas às presidiárias condições para que per-maneçam com seus filhos durante a amamentação.

Foi apenas após sua absolvição e com o contato com autoridades que Paula foi informada ter sido vítima de violência obstétrica e, também, que poderia denunciar o caso ao Mi-nistério Público. Entretanto, mani-festou que não possuía esse desejo, já que o processo seria desgastante e demandaria tempo, e que não dese-java mais um trauma. Infelizmente, Paula não é a única mulher a sofrer este tipo de violência, também não é a única a não saber que a sofreu e nem tampouco a única a preferir não

denunciar.No mesmo ano, a decoradora Mi-

chele Navega escolheu denunciar, e relatou, em seu canal do YouTube, a violência e os traumas sofridos devi-do à realização de uma episiotomia (corte no períneo) sem consentimento durante seu parto. Michele precisa de tratamento psiquiátrico, fisioterapia no períneo e medicamentos, mesmo dez meses após o acontecimento. O proce-dimento, recomendado pela Organiza-ção Mundial da Saúde em apenas al-guns casos, é visto como regra no Brasil e aumenta a dor na mulher, provocan-do dor no sexo pós-parto e fa-cilitando infecções. Muitas vezes ainda é r e -

a l i -zado o “ponto do ma-rido”, que serve para preservar o prazer masculino, dei-xando a vagina mais “apertada”, com consequentes dores e infecções para mulher. Prática extremamente abusi-va, que reflete a visão, ainda tão pre-sente na sociedade, de domínio sobre o corpo feminino.

Casos como estes são cada vez mais comuns no Brasil. Uma em cada quatro brasileiras que reali-zam parto normal, tanto da rede pública quanto privada, sofre vio-lência obstétrica, e a situação não se limita apenas a este tipo de par-

to. Ser mulher sempre foi um ato de coragem e a luta por respeito e dignidade é incessante. O momento da gravidez, uma situação de extre-ma vulnerabilidade, não deveria ser acompanhado pelo risco de trauma e situação degradante para ela e para seu filho.

A violência obstétrica revela uma cultura de poder do médico sobre a pa-ciente, que, frente à necessidade de cui-dar da sua saúde e do bebê, é submissa à situação, não questionando a autori-dade dos responsáveis pelo atendimen-to; além de deixar marcas que podem

ficar eternizadas na paciente, que terá que con-

viver diaria-m e n t e

com as lem-

branças trau-máticas dessa vio-

lência. Atos cruéis são vistos com certa tolerância, não apenas pelos pro-fissionais como também pelas vítimas, que, só a partir do momento que per-cebem que o parto poderia ser feito de outra forma, compreendem a situação.

A dignidade da pessoa humana, o bem-estar e a garantia de que ninguém será submetido a tratamento desuma-no são todos direitos garantidos na Constituição. Com o maior enfoque na violência obstétrica no Brasil, os abusos, maus-tratos e violação de di-reitos fundamentais da mãe e do seu

filho, passam a ser reconhecidos como situações que vão contra a Constitui-ção e contra os direitos fundamentais, assim, a autonomia da parturiente passa a ter maior valor. Entretanto, para cum-prirem-se as leis que já existem, é preciso haver luta, sororidade e conscientização entre as mulheres.

Quantas Paulas devem existir, que aterrorizadas pela situação, optam por não denunciar? Quantas Micheles são colocadas em foco após a situação de violência? Quantas mulheres carregarão marcas eternas por conta disso? E quan-tas ainda precisarão existir para que essa realidade seja modificada?! É imprescin-dível perceber que as denúncias preci-sam ser realizadas para que o problema tenha visibilidade!

Nessa luta, nos últimos anos, as redes sociais vêm desempenhando importante papel, ao fazer com que as instituições

de saúde se pronunciem sobre esta questão problemática, fortalecendo

a demanda das vítimas. Também as entidades vêm contribuindo,

como a ONG Artemis, que, por exemplo, organizou um

mapa colaborativo para que as brasileiras regis-trem casos de desrespeito e, desde 2012, ocorrem marchas anuais pela luta para humanização dos partos. Em outros países, como Vene-zuela e Argentina, a violência obstétrica é tida como crime com expresso tratamento legal. Por fim, além

da atuação externa, é preciso a atuação do

próprio Estado, com a criação de novas leis e

programas para assegurar a ocorrência de partos mais

humanizados. Simultanea-mente, faz-se necessária uma

melhor capacitação dos profis-sionais de saúde, por meio de uma

formação mais social, que foque no bem-estar das pacientes.

A partir de iniciativas, de ONGs, do Estado e da própria população, é possível o fortale-cimento e surgimento de novos projetos e campanhas, para maior apoio às mulheres e conhecimen-to sobre seus direitos. Violência, maus-tratos e abusos são comuns no dia-a-dia, com vulneráveis, a situação se expande. No entan-to, é fato também que a revolta f rente a tais s ituações não está presente somente nas v ít imas , mas também em toda a socie-dade! Os nossos dire itos não podem ser esquecidos e a luta por mudança, com maior união, pode, enf im, ser a lcançada.

O Lado Invisível do Parto

Allana Ferreira e Caren Rocha

Matéria de 2017

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14Centro Acadêmico Cromwell de Carvalho

#CampanhaEsperançar

Luana Escocio

Entrevista com Andreia Marreiro BarbosaProfessora e advogada teresinense defende que os Direitos Humanos não são feitos apenas de

legislação, mas de pessoas e da resistência de grupos historicamente silenciados.

É de consenso geral entre os mais diversos intelectuais que os se-res humanos são, em grande

parte, histórico-culturais: herdam coisas do passado e, depois, legam--nas para as gerações futuras. Não à toa, a ascendente opressão contra mi-norias sociais é, percebida por meio do machismo, da LGBTfobia e do ra-cismo, histórica e sistemática.

A professora Andreia Marreiro, enquanto forte defensora dos direitos humanos, vai de encontro a essa es-trutura perversa que vigora no meio social. “Reconhecer-me mulher ne-gra foi um ato de libertação”, diz ela.

Bacharela em Direito pela Univer-sidade Estadual do Piauí (UESPI), campus Torquato Neto, turma “Ar-tesãos de um Novo Direito”; Mestra em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade de Brasília (UnB), Coordenadora da Pós-Graduação em Direitos Humanos “Esperança Gar-cia”, na Faculdade Adelmar Rosado, Professora Substituta no Curso de Direito da Universidade Estadual do Piauí (UESPI), Vice-Presidenta da Comissão sobre a Verdade da Escra-vidão Negra e Membra da Comissão de Direitos Difusos e Coletivos da OAB/PI, ela conversa com o jornal O Libertas sobre as implicações do ma-chismo, do racismo e da LGBTfobia nos âmbitos social e acadêmico, bem como representatividade e resistên-cia do povo negro vistas sob a pers-pectiva da Campanha Esperançar e dos Direitos Humanos.

***

O Libertas: Quando você se per-cebeu envolvida com a causa negra e com a necessidade de lutar pela igual-dade racial e de gênero?

Andreia Marreiro: Na universida-

de, participei do processo de criação do Corpo de Assessoria Jurídica Es-tudantil, o CORAJE, um projeto de Assessoria Jurídica Universitária Po-pular, que tinha como objetivo pro-mover a educação em direitos huma-nos. No CORAJE, então, dentro das discussões de direitos humanos, eu tive o primeiro acesso às reflexões so-bre racismo e machismo. Mas naque-le momento, as reflexões eram sobre os outros. Não conseguia enxergar a princípio os atravessamentos dessas estruturas em minha vida. Eu senti o racismo e o machismo mais for-temente e conscientemente na pele quando sai de Teresina para Brasília para fazer o mestrado. Associo ao fato de que aqui eu tinha “donos”: de um lado, a figura do pai, de outro, a do namorado. Na infância e ado-lescência, eu sempre era vista como a filha do Seu Nonato Barbosa e, na universidade, como a namorada do Glauco Ventura. Foi quando eu che-guei sozinha em Brasília, que eu me senti uma carne fresca no pedaço, sem donos. E eu senti que isso era, inclusive, mais forte por ser mulher negra, que historicamente, desde o período da escravidão, é vista como objeto sexual. Foi nesse contexto, que eu conheci mulheres feministas, que lutavam por direitos, e grupos com trabalhos muito importantes como o Projeto Promotoras Legais Popu-lares, na UnB. Foi aí que eu passei a estudar, discutir e me envolver com mais afinco com as lutas pela igual-dade de gênero e raça. Ao voltar para Teresina, trabalhando na Faculdade Adelmar Rosado, em que o corpo discente é formado majoritariamente por mulheres negras, me vi interpela-da a continuar os estudos e atuações de forma sistemática, ao ouvir de muitas mulheres relatos de violência. Foi a realidade latente e próxima que

me envolveu. São as lutas históricas de mulheres e do povo negro e as len-tes teóricas que me dão forças para continuar lutando por igualdade.

O Libertas: Esperança Garcia, es-cravizada no interior do Piauí em me-ados do século XVIII, foi considerada a primeira mulher a exercer a advo-cacia no Piauí somente 200 anos mais tarde. Qual o grande problema dessa lenta concessão de reconhecimento à mulher negra?

Andreia: O problema é que as mu-lheres negras continuam na base da pirâmide social, sendo as que mais sofrem violências e as que estão nos trabalhos mais desvalorizados. O problema é a ausência, não por aca-so, dessas mulheres nos espaços de poder. O problema é o processo de invisibilidade das intelectuais negras. Eu vou falar de mulheres como Lé-lia Gonzalez, Sueli Carneiro, Beatriz Nascimento e Jurema Werneck, e as pessoas vão perguntar “quem?!”. Mas essas mulheres estão pensando e pro-duzindo há muitos anos. Lélia Gon-zalez fala, em meados da década de setenta, sobre racismo e sexismo e isso é simplesmente ignorado. Con-ceição Evaristo, escritora negra, em “Becos da Memória” vai lembrar os vinte anos de espera para publica-ção do livro e vai dizer que é preciso questionar as regras que a fizeram ser reconhecida apenas aos 71 anos de idade. Isso quer dizer que há um pro-blema imenso no reconhecimento à mulher negra porque parece que elas não pensam, não contribuem para a formação intelectual do país ou como se elas não existissem. Por isso, vejo a importância de uma palestra dada pela autora nigeriana Chimamanda Adichie, em que ela diz que histórias importam, muitas histórias impor-

tam. O problema é que se eu só es-cuto a história do povo negro ligada à escravidão, eu só vou ver esse povo como sofrido e que não tem poten-cialidade. Reduzir a história do povo negro à escravidão é profundamente desumanizador.

O Libertas: Se a mulher é, por si só, historicamente inferiorizada, como esse processo se intensifica para a mu-lher negra?

Andreia: A narrativa oficial da luta das mulheres começa a ser con-tada por mulheres brancas. É o fe-minismo em que as mulheres vão sair às ruas reivindicando o direito de votar e de ter liberdade sexual. A partir disso, surge um processo em que as mulheres negras começam a dizer “minhas queridas, nós somos mulheres, mas não somos mulheres como vocês”. Como diz Sueli Carnei-ro, no texto “Enegrecer o feminismo”, é preciso perguntar de que mulheres estamos falando. Sojourner Truth, ativista norte-americana, retrata isso quando fala ‘’vocês dizem que somos sexo frágil, mas nunca um homem pegou minha mão para me ajudar a descer de uma carruagem. Nenhum homem pegou minha mão para me ajudar a pular uma poça de lama. Ne-nhum homem me via como frágil e, por isso, eu trabalhei, como eles, em lavouras”. Enquanto a mulher branca lutava pelo direito ao aborto, a mu-lher negra dizia não à esterilização e lutava pelo direito de ser mãe de fi-lhos vivos e de vê-los crescer com ela, pois quando eles não eram tirados ainda pequenos, eram mortos na ju-ventude como acontece até hoje com o genocídio de jovens negros nas periferias das grandes cidades desse país. Então, de que mulher estavam falando? Não existe só uma forma

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de ser mulher. E quando eu falo de mulheres negras, as dificuldades e entraves pra acessar seus direitos são maiores, uma vez que elas se depa-ram com dois fatores de opressão: o machismo e o racismo. Não à toa, se-gundo o Mapa da Violência de 2016, o assassinato de mulheres negras au-mentou 54% enquanto o de brancas diminuiu 9,8%. É preciso, portanto, um olhar interseccional, como diz a intelectual negra Kimberlé Crenshaw. O que é isso? É entender que as pes-soas sofrem opressões diferentes se elas têm marcadores sociais distin-tos. Mulheres negras, por exemplo, são mais silenciadas, discriminadas e violentadas, como Marielle, assassi-nada brutalmente.

O Libertas: Não raramente, é per-ceptível a negação da negritude pela própria pessoa negra, bem como a propagação de práticas racistas. Por que isso ocorre?

Andreia: O racismo é uma estru-tura, logo, ele organiza nossas formas de vida, nossas formas de nos relacio-nar, ele dita nossas ações conscientes e inconscientes, como diz o profes-sor Silvio Almeida. O tempo inteiro, nos mais diversos lugares, o racismo está presente. Na mídia, por exem-plo, há ausência de pessoas negras nos espaços de poder. Temos dados de uma pesquisa que aponta menos de 5% apresentadores de TV negros. Por outro lado, quando há a presença do negro na mídia, é de uma forma estereotipada: os homens como ban-didos e as mulheres como objetos sexuais ou em trabalhos subalterni-zados. Além disso, quem são as mu-lheres que aparecem nas revistas de beleza? Qual a cor dessas mulheres? A própria linguagem diz que o ne-gro é ruim: a inveja que não é ruim é a inveja branca. Se a coisa tá ruim, a coisa tá preta. Se eu quero ofender alguém, eu vou denegrir. Então, as pessoas negras vão reproduzir isso por estarem inseridas nessa estrutura perversa. Foi assim que elas aprende-ram. É importante ressaltar que mui-tas pessoas dirão que o Brasil é tão racista que os próprios negros são racistas. Porém, não podemos colo-car isso numa mesma balança porque são eles que mais sofrem. O embran-quecimento e a negação da negritu-de é, para muitas mulheres negras, um processo de sobrevivência. Elas vão prender o nariz pra tentar dei-

xá-lo mais fino, vão passar base e pó mais claros no rosto para parecerem brancas, vão alisar seus cabelos, vão dizer que são morenas, vão fazer isso para parecerem que são e puderem ser aceitas, amadas, sofrerem menos violência.

O Libertas: Você acredita que há uma tentativa, sobretudo dos âmbitos mais conservadores do País, de legiti-mar ou justificar, como no caso de Ma-rielle, o homicídio de pessoas negras?

Andreia: Sim. Devido a uma cons-trução histórica neste País de negar o racismo. Inclusive, um dos nossos maiores desafios é nomear o racis-mo no Brasil porque se formou, por meio de um saber acadêmico, a ideia de que vivemos numa democracia ra-cial. Nós vamos falar de um genocí-dio da população negra e as pessoas vão justificar dizendo que não tem nada a ver com ela ser negra. Vão di-zer que isso é mimimi e que só há ra-cismo nos Estados Unidos porque lá era legalizado. Mas é justamente pelo racismo ser negado e silencioso no Brasil que ele se torna mais forte. A melhor forma encontrada por eles de não combater o racismo é não reco-nhecê-lo. Afinal, se não existe, o que vou combater?

O Libertas: É visível a inócua re-presentatividade com que negros e ne-gras se deparam no espaço acadêmico, tanto perante o corpo docente, quanto o discente. À vista disso, o que você pensa sobre a ausência, especialmente nas universidades públicas de ensino, de grupos que debatam as questões ét-nico-raciais e conscientize toda a aca-demia?

Andreia: Nos últimos anos, vimos um processo extremamente impor-tante no Brasil com a cotas raciais na graduação e timidamente iniciado na pós-graduação. Eu vi o crescimento de pessoas negras na universidade. Ser professora do curso de Direito da UFPI entre 2015 e 2016 me mostrou a diferença porque há 10 anos eu esta-va entrando na universidade e os cur-sos, principalmente de elite, Medici-na e Direito, eram brancos. Ser negro era sempre a exceção que confirmava a regra: a universidade não era espa-ço possível para o negro. Hoje, apesar de existir um maior acesso de pesso-as negras ao espaço acadêmico, não foram criadas políticas de permanên-

cia, como afirma a professora Maria Sueli Rodrigues de Sousa. E por isso ouviremos falar de evasão estudantil, quando, na verdade, é uma expulsão. Há, inclusive, nos cursos de elite, um menor acolhimento e um discurso de que os cotistas baixam o nível das au-las, não acompanham as aulas porque são incapazes, porque não estuda-ram nas melhores escolas. De novo, portanto, a estrutura diz “esse lugar não é para vocês”. Enquanto, dados de pesquisa nos mostram que o de-sempenho acadêmico de estudantes negros é muitas vezes superior ao de estudantes brancos. Penso que essa é uma questão que precisa ser enfren-tada institucionalmente. Quanto aos grupos estudantis, em 2015, na UFPI, nasceu uma importante iniciativa co-ordenada pela professora Maria Sueli Rodrigues de Sousa junto a estudan-tes que foi o Atitude Preta.

O Libertas: Como surge a Cam-panha Esperançar? Por que a criação desse verbo?

Andreia: A campanha esperançar surgiu da dor que foi o assassinato brutal de Marielle Franco. Em um primeiro momento eu pensei: eu pre-ciso ler autoras negras pra conseguir sobreviver à barbárie do racismo e do machismo cotidianos. O assassi-nato de Marielle foi um dos momen-tos mais tristes da minha vida. Foi o recado de que não importa o quanto nós façamos e lutamos, sempre so-mos corpos matáveis e receberemos quatro tiros na cabeça para termos nossos rostos desfigurados e encer-radas as nossas lutas. E não bastasse isso, vão querer destruir a nossa his-tória, nossa imagem, nossas narrati-vas, nosso trabalho, como vimos com as fake news voltadas à Marielle. En-tão, a finalidade da Campanha, ini-cialmente, foi uma súplica de sobre-vivência, mas que logo se torna uma inspiração de vivência-resistência. Marielle assim como outras autoras negras nos inspira a viver e resistir com alegria e altivez, tudo que nos é negado pelas estruturas racistas e machistas. Assim, veio em paralelo o desejo de autocuidado e autoamor, fundamental para mulheres negras que são ao longo da história prete-ridas e não cuidadas, são sempre as cuidadoras dos outros. Aqui veio o desejo de cultivar esse autoamor através da leitura de autoras negras através das quais eu pudesse me reco-

nhecer, me fortalecer e me encorajar. A Bell Hooks, intelectual negra nor-te-americana, alimenta em mim esse sentimento de acreditar que o amor cura. Quanto ao verbo, a gente come-çou a usá-lo na pós-graduação de Di-reitos Humanos “Esperança Garcia”. Esperança Garcia é protagonista na história e nos inspira a agir. A nossa Esperança não é esperança que espe-ra, mas que luta e não silencia fren-te às injustiças. E que, inclusive, não faz isso em nome próprio, mas pelas companheiras e pelos filhos. Por isso, Esperançar é um verbo a ser conjuga-do no plural. Nesse reconhecimento, criamos a hashtag #campanhaespe-rançar e convidamos a todas as pes-soas a também a refletir sobre a per-gunta “Quantas autoras negras você já leu?” e a indicarem as vozes de mulheres negras também. Acabamos criando uma rede linda de encontros amorosos e encorajadores.

O Libertas: É visível que a litera-tura brasileira, de uma forma geral, retrata a mulher negra sob os estereó-tipos de empregada doméstica, mesti-ça sensual, vítima de violência ou com papéis secundários e coadjuvantes, ra-ros de protagonista. Como as leituras idealizadas pela campanha esperan-çar vão de encontro a tais visões en-raizadas no ideário social?

Andreia: Esse é um aspecto ma-ravilhoso porque a Campanha Espe-rançar vai absolutamente de encontro a esses estereótipos. Ela vai visibilizar as mulheres intelectuais negras que artesanam coisas lindas: poesias, ro-mances, teses, livros, filmes, músicas, e tantas outras maravilhas. Mulheres que estão como sujeitas de suas pró-prias histórias, como protagonistas. Esta é a grande questão: pensar numa perspectiva que reconheça nossa hu-manidade, nossa potência, que nos fortaleça. O subtítulo da Campanha foi: “vidas negras importam e mulhe-res negras precisam ser escutadas”.

O Libertas: A palavra advogado significa “advocatus, vocatus ad”, ou seja: advogado é aquele chamado a socorrer. Dentre outras carreiras, o curso de Direito, no seu entendimento, pode conceder voz à parcela margina-lizada pela sociedade, como os negros, os indígenas, as mulheres, a comuni-dade LGBT, os idosos e os deficientes físicos?

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Andreia: Quando se fala em Direi-to, muitas vezes parece que estamos falando de abstração, de um mundo frio, automático; quando, na verdade, estamos falando de gente, de pessoas, de conflitos, de demandas humanas e de relações sociais. O Direito não é feito apenas do Vade Mecum ou da legislação, mas também da resistência histórica de grupos historicamente oprimidos. Então, eu acho que o Di-reito tem, sim, um poder muito forte na luta por dignidade. E não penso que isso seja romantismo, como já me foi dito, mas compromisso. Ago-ra, tem que tomar partido! É preciso muito estudo, muita pesquisa e mui-ta competência pra conseguir utilizar essa ferramenta que historicamente serve para confirmar as relações de opressão e de poder a favor de grupos violados de seus direitos. Acrescento que no processo de luta por direitos para grupos historicamente silencia-dos através do direito, é preciso reco-nhecer que ninguém concede a voz a ninguém. Todo mundo tem voz. O que alguns grupos não tem é condi-ções para que suas vozes sejam escu-tadas. Penso que o papel de juristas e defensores de direitos humanos, nes-se sentido, é de atuarem como caixas amplificadoras dessas vozes.

O Libertas: O ano é 2018. São 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. No entanto, nem todos e nem todas comemoram essa data. De onde vem a concepção de que os Direitos Humanos só protegem al-gumas pessoas?

Andreia: O que ocorre é que há um esvaziamento dos Direitos Humanos de um lado, através do senso comum midiático compartilhado por setores conservadores da sociedade, de que apenas algumas pessoas (bandidos) usufruem dos direitos humanos e, de outro lado, do senso comum teórico dos juristas, categoria desenvolvida pelo jurista Luis Alberto Warat, com-partilhado dentro das escolas de Di-reito e instituições que esvazia o sen-tido dos Direitos Humanos em duas perspectivas: a primeira é que reduz--se os direitos humanos aos Direitos Fundamentais que estão positivados na Constituição Federal de 1988 e, a segunda, é quando reduz os Direitos Humanos a um Direito Internacio-nal, às convenções e aos tratados. Penso que a tarefa é enfrentar esses dois sensos comuns e, como propõe o jurista espanhol Joaquín Herre-ra Flores, (re) inventar os direitos humanos, entendendo-os como processos de lutas institucionais e sociais para garantir dignidade hu-mana.

O Libertas: Marielle Franco, polí-tica, feminista e assídua militante dos direitos humanos, foi assassinada no mesmo dia em que Carolina Maria de Jesus, uma das maiores escritoras ne-gras do Brasil, completaria 104 anos. O que você pensa sobre a tentativa ascendente de calar vozes insurgentes por direitos?

Andreia: Se há tentativas de silen-ciar, a qualquer custo, essas vozes, é

porque elas estão ecoando, conquis-tando espaços e movendo estruturas. A execução brutal de Marielle ocor-reu porque as pautas que ela discutia estavam ganhando visibilidade e for-ça. É porque o povo preto pobre está saindo da favela e dizendo “eu quero ocupar os lugares de poder. Eu quero pensar política pro meu povo.” Foi o que ela fez. E é por isso que é extre-mamente importante investigar e dar uma resposta a este crime. Para não permitir e alimentar essa tentativa de calar vozes insurgentes por direitos. Para dizermos: nossos passos vêm de longe e não vamos retroceder na con-quista de direitos.

O Libertas: Recentemente, Tiago Leifert, apresentador do programa Big Brother Brasil 2018, emitiu a opinião de que representatividade não leva a nada. O que você pensa sobre isso?

Andreia: O discurso dele é de um homem branco que nunca sofreu ra-cismo e que não escuta a dor de quem sofre. Representatividade importa, sim! Quando conheci Esperança Gar-cia, outro mundo surgiu pra mim. Co-nhecer a história de uma mulher ne-gra piauiense que ousou, através das ferramentas do colonizador, a escrita e o Direito, para lutar pela dignidade de muitas pessoas, me deu um sen-timento enorme de: “eu posso fazer como essa mulher fez”. O reconheci-mento de Esperança como a primeira advogada piauiense é também para dizer às mulheres negras advogadas piauienses e defensoras dos Direitos Humanos que elas estão representa-das. E que aquele lugar não é ape-nas de homens brancos ricos, como historicamente é o espaço da advo-cacia no Brasil. Além disso, vendo minha posição enquanto pessoa que sente a força da representatividade e que conhece a importância desta para termos coragem, eu ref lito sobre minha vivência em sala de aula como professora, inclusi-ve no curso de Direito da UFPI. Não foram raras as vezes que eu comecei uma disciplina e vi que ao longo do curso as estudan-tes assumirem seus cachos, pas-sarem por processo de transição, Big Chop. Eu escutei muitas ve-zes: “Professora, eu olho pra você e eu me inspiro, eu me encorajo e eu penso que se ela pode, eu posso”. E isso é lindo, é incrível, é potente, é revolucionário, me emociona! Por isso, vamos continuar repetindo: re-presentatividade importa, sim!

O Libertas: Quais suas perspecti-vas para o futuro do Brasil a respeito das questões tratadas aqui?

Andreia: Vivemos um momento muito delicado de retirada de direitos após o golpe de 2016. Concomitante a isso, uma crescente reação de gru-pos conservadores às conquistas do movimento negro, das mulheres e da classe trabalhadora. Essas reações são violentas porque querem nos silen-ciar. Ao mesmo tempo, eu vejo com esperança, no sentido de estarmos abrindo essas chagas: os problemas do Brasil desde a colonização. Temos visibilizado o racismo, o machismo,

Andreia recomenda vozes de juristas negras essenciais para entender as relações entre direito e questões raciais, entre elas: Dora Lúcia Bertúlio, pioneira na discussão no Brasil, autora da dissertação “Direito e relações raciais: uma introdução crítica ao racismo”; Maria Sueli Rodrigues, professora da UFPI, presidenta da Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra na OAB/PI, organizadora do “Dossiê Esperança Garcia: símbolo de resistência na luta pelo Direito”; Ana Luiza Flauzina, professora da UFBA, autora da obra “Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do estado brasileiro; Gabriela Sá, professora da UNEB, autora da dissertação “O crime de reduzir pessoa livre à escravidão nas casas de morada da justiça no Rio Grande do Sul (1835-1874)” e Thula Pires, professora da PUC/RJ, autora da obra “Criminalização do racismo: entre política de reconhecimento e meio de legitimação do controle social sobre os negros”.

a LGBTfobia, o genocídio das comu-nidades indígenas. Eu penso que es-sas são questões muito importantes para que possamos alimentar nos-sas esperanças, nos organizar e per-manecer na luta para vivermos com dignidade.

O Libertas: Por fim, quais leitu-ras ou autoras negras você indica?

Andreia: Entre as 30 autoras negras comentadas em l ive s n o instagram durante a Campanha Es-

perançar, eu indico para O Libertas, os romances de esperança de Conceição Evaristo e Chimamanda Adichie, as poesias de Elisa Lucinda, Cristia-ne Sobral, Livia Natalia e Rupi Kaur, as ref lexões das professoras e intelectuais brasileiras, Dja-mi la Ribeiro, Giovana Xavier e Jaqueline Gomes de Jesus, além das intelectuais norte-americanas Ângela Davis, bell hooks, Audre Lorde, Maya Angelou e Kimbe r l é C r e n s h aw.

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A questão da SíriaAna Carolina Coelho Fontes

Contraponto

Torna-se notável, por meio de uma breve análise his-tórica, o enraizamento

de conceitos dualistas na cons-ciência coletiva humana, desde os primórdios da formulação do pensamento racional: o ser e o ente, o corpo e alma, o bem e o mal. Com a construção da con-temporaneidade, intensifica-se essa dicotomia na tríade políti-ca-econômica-social e o indiví-duo é pressionado a se adaptar à caixa ideológica de sua esco-lha, moldar-se aos valores nela contidos e tolher a formulação própria do pensamento. Assim, marca e mutila o século a opo-sição entre o egocentrismo e a inibição do raciocínio subjetivo.

A partir desse panorama, pode-se avaliar as tensões que passam a afligir a comunida-de internacional, em especial a questão síria. No contexto da guerra civil, decorrente de le-vantes opositores ao regime e da subsequente reação violenta do Estado, a situação alcançou im-portância mundial e, sobretudo após alegações sobre uso de ar-mas químicas contra civis, in-tensificou-se em magnitude. Em vista disso, os Estados Unidos, a França e a Inglaterra estabele-ceram uma coalizão para que, em resposta ao ataque realizado pelo governo de Bashar Al-As-sad, lançassem mísseis contra o país, o que polarizou a opinião pública.

Dessa maneira, consolida--se a noção de caixa ideológica, uma vez que aqueles que optam por corresponder ao referencial de defensores dos direitos hu-manos, em geral, serão coagidos a se posicionarem contra a in-tervenção ocidental na Síria, de forma que seja a eles imposta, acriticamente, a ideia de que a

interferência na nação é antide-mocrática. Com efeito, é possí-vel fundamentar-se no parado-xo da tolerância, proposto pelo filósofo Karl Popper, para afir-mar o contrário: segundo o au-tor, “tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos tolerância ili-mitada até mesmo para aqueles que são intolerantes, se não esti-vermos preparados para defen-der a sociedade tolerante contra a investida dos intolerantes, en-tão os tolerantes serão destruí-dos, e a tolerância junto destes”. Estipulada a condição de que os agressores primeiros sejam uma ameaça não apenas às teorias, mas à paz e à dignidade huma-na, o uso da força seria justifi-cável, desde que alicerçado em argumentos racionais.

Além disso, o professor de fi-losofia política John Rawls emi-te um juízo similar, em que, ain-da que exclua a coerção violenta de seu princípio da tolerância, declara que o direito de auto-preservação deve ser prioritário em relação à doutrina. Citan-do-o, “ao passo que uma seita intolerante não possui pretexto para reclamar de intolerância, sua liberdade deve ser restrin-gida somente quanto os toleran-tes, sinceramente e com razão, acreditam que sua própria se-gurança, e daquelas instituições de liberdade, estão em perigo”. Haja vista o pensamento de am-bos, associa-se seus preceitos ao cenário discorrido, dado que a intervenção militar foi desenca-deada por um atentado, que se caracteriza também como crime de guerra, performado pelo po-der público sírio contra a inte-gridade de seus cidadãos.

Destaca-se também a legiti-midade da mediação ocidental

no país sob uma perspectiva jurídica. Aliam-se as declara-ções do jurista Rudolf Von Ihe-ring, que proclama o Direito como uma constante luta con-tra a injustiça, sustenta que a balança sem a espada se reduz à impotência, define o comba-te em defesa própria ou de seus semelhantes como não apenas um direito, mas também um de-ver, e estabelece que norma sem sanção é fogo que não queima; e o explicitado pela Carta das Nações Unidas, documento res-ponsável pela criação da Orga-nização das Nações Unidas, que permite que países usem a força para proteção de povos amea-çados de extermínio pelos Esta-dos dos quais estão sob tutela, e para objetivos que se refiram, de modo mais abrangente, à segu-rança internacional. Logo, a fim de se alcançar o Bem Comum, salvaguardar a humanidade das populações, e, de acordo com o conceito aristotélico de Justi-ça, “dar a cada um o que lhe é devido”, é imprescindível a ação externa sobre a Síria.

Urge, portanto, pela mais rápida e pacífica possível reso-lução do conflito, que não será o ocorrido caso seja permitido o massacre do povo, a liberda-de para oprimir do regime, e a movimentação nociva do Esta-do islâmico. De forma análo-ga à entrada estadunidense na Segunda Guerra Mundial, que muito contribuiu para a queda do regime nazista, é preciso que se intervenha na Síria para apa-ziguar o conflito que a destroça – e é fundamental também que, no âmbito individual, possam ser permitidas a reflexão e a gê-nese de pensamentos de forma única, e tão livre quanto se é concebível ser.

A FAVOR!

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Contraponto

A história repetidaVitória Bucar Matos Pinheiro

A história se repete. Essa é uma frase frequentemente ouvida ou pronunciada por aque-

les que acompanham, mesmo que de longe, o curso dos acontecimentos recentes em várias partes do mundo. Ao se analisar a Síria, particularmente – uma nação que desde o século XIX sofre com a diáspora de seu povo, que buscava construir novas vidas em lu-gares como o Brasil devido às mais diversas perseguições - a afirmação faz ainda mais sentido. A história se repete, de fato. Mas, por quê?

A grande questão Síria é a de um povo que nunca teve autonomia total sobre seu destino. Correspondendo ao seu atual território há apenas cerca de 100 anos, com metade desse período sendo governado pela ditadura ferre-nha da família Al-Assad, o povo sírio, não surpreendentemente, foi às ruas durante a Primavera Árabe de 2011 para protestar por liberdade. Infeliz-mente para a maioria da população, a consequência dessa insurreição não foi a derrubada do regime autoritá-rio, como havia acontecido em outros países, e sim uma repressão violenta que culminou numa guerra civil. Nin-guém em sã consciência seria capaz de negar que Bashar Al-Assad é um ditador sanguinário que foi e ainda é capaz de atacar seu próprio povo para se manter no poder. Entretanto, a problemática central trata de algo di-ferente: se é preciso tirá-lo do poder, é preciso também colocar alguém em seu lugar, e é aí que entram os interes-ses escusos de outros grupos e nações.

A complexidade do problema se dá justamente por quem espera tomar o poder com a queda de Al-Assad. Em uma das frentes, os rebeldes – coorde-nados principalmente por um grupo extremista e intolerante às minorias cristãs do país - noutra, a população curda, que há anos luta por um ter-ritório próprio e poderia colocar seus interesses acima do já tão castigado povo sírio, caso dada a chance; e, fi-

nalmente, o tão temido Estado Islâ-mico, que não esconde seu desejo de possuir domínios físicos e tem sido, durante esses sete anos de guerra, veementemente combatido pelo regi-me sírio (com considerável sucesso, a quem possa interessar).

À luz da recente investida arti-culada pela coalizão entre Estados Unidos, França e Reino Unido – in-titulada pelos próprios como uma represália ao ataque com armas quí-micas supostamente promovido pelo governo sírio contra civis - é neces-sário fazer questionamentos: o que o Ocidente pretende, de fato, com essas atitudes? Quais são os interesses que regem tais ofensivas? A guerra civil no país, como anteriormente observado, já dura sete anos, tempo no qual inú-meros civis foram mortos ou feridos. Onde estavam essas potências então? A resposta é simples: armando grupos contrários (e contribuindo para, as-sim, dar mais poder aos radicais e ex-tremistas que tanto dizem temer) na esperança de vê-los depor o governo, visando à liberação do território sírio de sua duradoura aliança com a Rússia e abrindo, dessa forma, uma rota pre-ciosa para transporte de petróleo e gás para o mar mediterrâneo e além. Ao perceberem que as forças do regime resistem às investidas de todos os la-dos (uma vez que não existe oposição unificada) e, mais do que isso, vencem e conseguem recuperar diversos terri-tórios por eles dominados, surge de repente a intensa preocupação com os civis covardemente atacados.

Bashar Al-Assad é, de fato, um di-tador autoritário. Não obstante, tam-bém se mostrou ser - ao longo de seus dezoito anos de governo - um excelente estrategista. Não havia mo-tivo algum para promover tal ataque a essa altura do campeonato. Suas tropas vêm vencendo a guerra, e aos poucos reconquistando os últimos re-dutos de domínio rebelde. Por que ele arriscaria sua relativa estabilidade se

expondo dessa maneira à comunida-de internacional? Não faz sentido, e considerando o controverso histórico norte-americano - que reconhecida-mente já levou falsas evidências rela-tivas a armamentos ilegais ao Conse-lho de Segurança da ONU à época da invasão ao Iraque - a nobre motivação de proteção aos civis cai, portanto, por terra.

É claro como o dia que aos Estados Unidos e seus aliados – potências ine-gavelmente imperialistas – interessam apenas seus próprios ganhos políticos e econômicos. Se a preocupação fosse mesmo com a população que tanto so-fre, não haveria um banimento em vi-gência nos Estados Unidos impedin-do qualquer cidadão sírio de entrar no país. Se essa fosse sua verdadeira motivação, o Reino Unido não teria investido tanto em sua saída da União Europeia, justamente para se livrar de suas políticas de imigração e acolhi-mento aos refugiados. Se priorizam tanto a população síria, por que não começam, então, por abrir suas por-tas para acolhê-la quando parte dela, desesperada e desamparada, pede por proteção em seus territórios? Não o fazem justamente porque, para estas nações, o povo árabe não passa de uma peça em seu jogo de interesses, ora usado como vítima, ora como vi-lão. Ser contra esse tipo de ataque não se trata de conivência com a ditadu-ra em vigor, e sim de admitir que não cabe a governos estrangeiros hipócri-tas e igualmente sedentos por poder continuar interferindo no destino dos povos e dos países do Oriente Médio. Prova disso surge ao se analisar o passado e perceber que interferên-cias semelhantes foram a causa da maioria das instabilidades hoje ali presentes. A velha história da im-potência de uma nação sobre seus próprios rumos não pode se repetir, e isto é algo que precisa ser reconhe-cido antes que seja, mais uma vez, tarde demais.

CONTRA!

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O Libertas - UFPIJulho de 2018

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Sente-se, pois o Big Brother Orwelliano da internet começou

Camila Campelo e Luzia Ribeiro

O mundo passou por transfor-mações ocasionadas pelas novas formas de comunica-

ção, isso possibilitou aos indivídu-os interagirem em âmbito global. É como se todos tivessem tirado um cochilo e ao acordar percebessem o quanto suas vidas mudaram devido as novas formas de interação. Nas pala-vras de Thomas L. Friedman, “aden-tramos uma nova era, a Globalização 3.0”, uma era em que o acesso a es-sas tecnologias possibilita um conta-to extremamente rápido, não sendo mais a distância entre os indivíduos um empecilho. Um lado incrível, sem dúvidas, mas que se tornou um pesa-delo devido o quão vulnerável se tor-na o indivíduo quando fornece seus dados para plataformas tecnológicas. Os seus rastros virtuais viraram ouro.

Nessa perspectiva de possiblidades de acesso, armazenamento e compar-tilhamento de informações, as redes sociais se tornaram um grande negó-cio de vendas e compras, tendo tanto o usuário quanto o empresário uma dupla-função de comprador e vende-dor. Especificando ainda mais, vê-se aquele que utiliza tais redes “ven-dendo” suas informações privadas enquanto “compra” uma nova forma de entretenimento a ser paga pelo tempo gasto na web; em contrapar-tida, têm-se empresas “comprando” esses dados - que deveriam ser su-postamente privados – enquanto são vendidos produtos, matérias e infor-mações para esses mesmos usuários. Vê-se, dessa forma, que os empresá-rios encontraram, enfim, o pote de ouro no fim do arco-íris.

Conclui-se então que essas pla-taformas tecnológicas “estão de olho em você”. Por exemplo, serviços de geolocalização, como afirma Dani-lo Doneta no seu artigo “Reflexões sobre proteção de dados pessoais em redes sociais”, podem permitir mapear as áreas de circulação e os interesses rotineiros de uma pessoa por determinados serviços, gerando dados possíveis de serem utilizados por serviços de publicidade com-portamental. Ademais, diversas pla-taformas possuem cookies, que são códigos que fazem parte dos navega-dores para registrar sites visitados na internet. As curtidas no Facebook e as mensagens publicadas no Twitter também podem dizer muito sobre o indivíduo. Percebe-se, assim, que, o presente virou uma era em que a vi-gilância se tornou generalizada.

Como se pode perceber, as redes sociais deixam seus usuários vul-neráveis, pois poucos conhecem os efeitos do compartilhamento de suas informações. Tal questão tornou-se notória recentemente devido revela-ções sobre o manejo de informações de mais de 87 milhões de usuários do

Facebook, sem consentimento des-tes pela empresa americana Cambri-dge Analytica, com o intuito de fazer propaganda política. A empresa teve acesso aos dados devido um aplicati-vo de teste psicológico lançado na rede social.

Um ex-funcionário da empresa, Christopher Wylie, revelou ainda que o esquema começou em 2014. As infor-mações foram coletadas por meio de um aplicativo chamado thisisyourdi-gitallife. O aplicativo foi desenvolvido por Aleksandr Kogan, pesquisador da Universidade de Cambridge. A Cam-bridge Analytica teria comprado os dados coletados por ele. Vale lembrar que o Facebook permite o uso de apli-cativos externos à coleta de dados, des-de que esses dados sejam usados para melhorar a experiência do próprio usuário no aplicativo e que é vedada a possibilidade de que esses dados sejam vendidos ou usados para propaganda, segundo a política divulgada pelo site. Wylie complementou dizendo que os dados vendidos à Cambridge Analytica teriam sido utilizados para catalogar o perfil das pessoas e direcionar de for-ma mais bem personalizada matérias a favor de Trump e mensagens contra sua concorrente Hillary Clinton, mas, seria quase impossível saber quantas pessoas viram os posts e quantas foram influenciadas pelas notícias manipula-das.

Saindo um pouco do manuseio di-reto de informações privadas, pode-se deparar ainda com outra técnica de manipulação de informações: “o com-portamento de manada”. Podendo ser vulgarmente traduzido por “Maria vai com as outras”, esse tipo de com-portamento consiste basicamente no alinhamento de uma opinião pessoal, sem amplas reflexões, com a opinião da grande massa, ou a de um influen-ciador.

Na prática, e tomando por base a sé-rie de reportagens realizadas pela BBC Brasil, em dezembro de 2017, Demo-cracia Ciborgue, adentra-se novamen-te em um campo minado, ou melhor dizendo, em um cenário político cheio de opiniões e informações manipula-das.

Segundo os entrevistados, ex-fun-cionários da empresa Facemedia (RJ), o proprietário, Eduardo Trevisan, em 2012, teria iniciado uma mobilização de perfis falsos que deveriam ser con-trolados pelos contratados (separar por ponto e começar nova oração ou pon-to e vírgula) de modo que estes deve-riam mesclar, no Facebook ou Twitter, a simulação de uma vida cotidiana com atuação política, apoiando ou critican-do candidatos, divulgando notícias fal-sas e até mesmo incitando debates en-tre usuários ou militâncias.

Ainda sob os depoimentos do ex--funcionários, estima-se que ao me-

nos 13 políticos foram beneficiados com os fakes da empresa, dentre eles, o senador Aécio Neves durante os de-bates presidenciais contra sua opo-sitora Dilma Rousseff, na campanha de 2014. Segundo uma pesquisa fei-ta pelo Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cultura (Labic), ao analisar o debate presidencial ocorrido no dia 28/09/2014, realizado pela rede Re-cord, foi possível perceber, por meio do rastreamento das hashtags #Deba-teNaRecord e #SouAecioVoto45, que em um período de 15 minutos, as men-ções referentes ao Aécio, no Facebook, triplicaram. O estudo concluiu que tal situação contaria, sim, com a presença de bots e fakes. O senador, por meio de sua assessoria, disse à BBC Brasil que não conhece a empresa em questão.

Mas, onde entraria então o suposto “comportamento de manada” anterior-mente citado? Bom, ainda tomando como base o clima político, essa aglo-meração de perfis falsos, por ter força suficiente para manobrar as discussões de governo de acordo com o interesse colocado em pauta, acaba por orientar a opinião de usuários reais na medida em que o volume de posts, seja de apoio ou crítica, influenciam diretamente na conclusão final do ponto de vista.

Isso acontece por diversos fatores: a simulação de que a conta é real, por exemplo, tendo atividades de interação com outros usuários (como dar para-béns para as pessoas aniversariantes, curtir fotos e outros tipos de entrete-nimento em geral) desperta a – falsa – sensação de proximidade e simila-ridade na medida em que se pensa que aquela outra conta, que divide o mesmo espaço na discussão po-lítica, é, de fato, uma pessoa como qualquer outra, além disso, a emis-são de opinião feita por ela, por não ser de um grupo, marca ou políti-co, mas ‘individual’, de ‘argumentos próprios’, traz um pressentimento de maior seriedade e digna de cre-dibilidade para aquele que a lê, uma vez que tanto o perfil falso, emissor do pensamento, quanto o usuário real, estão ‘em pé de igualdade’ por serem pessoas ‘normais’. Dessa for-ma, o usuário real se sente mais livre

e inclinado a apoiar, inclusive seguir, tais pontos de vistas maquiados, não tendo nenhuma dúvida sobre a ori-gem manipuladora daquelas infor-mações.

Em relação a essa problemática, o futuro presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), o ministro do Su-premo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux, afirma que será realizada uma força-tarefa efetivada pela Justiça Eleitoral em conjunto com o Minis-tério da Defesa e da Agência Brasi-leira de Inteligência (Abin), durante a campanha eleitoral de 2018, a fim de combater quaisquer irregularidades que possam comprometer o curso normal das eleições e afetar a demo-cracia.

Em síntese, é possível perceber que infelizmente o problema da manipu-lação de dados e informações vem de todos os lados, tanto do segmento coletivo quanto do segmento indi-vidual, e os artifícios normalmente utilizados para tornar a internet um ambiente de navegação segura têm se tornado cada vez mais obsoletos. Dessa forma, vê-se com urgência a ampliação de debates, incitados por empresas e usuários ordinários das redes, sobre o tema, uma vez que o problema afeta não só a esfera pri-vada, mas também a esfera pública, principalmente referente ao meio político, seja no Brasil ou em um outro país.

Assim, como no mundo utópi-co do livro 1984, no qual um líder simbólico o grande irmão ( Big Brother) controla a tudo e todos, a realidade atual não se encontra tão distante da obra, pois o comparti-lhamento de dados nas plataformas tecnológicas tornam os indivíduos vulneráveis. E você? Se sente segu-ro sobre o seu compartilhamento de dados nas redes em que utiliza? Tem consciência do grau de atrela-mento de suas opiniões ao conte-údo das redes?

Um verdadeiro Big Brother Orwelliano começou no século XXI; a vigilância tornou-se gene-ralizada. Cuidado, podem estar de olho em você.

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Agora a Pabllo Vittar foi longe demaisAna Lívia Carvalho Ribeiro e Letícia de Melo Batista

Em 2014, a dona de casa Fabia-ne Maria de Jesus morreu após ser brutalmente espancada por

um grupo de populares no bairro do Guarujá, município da região litorâ-nea de São Paulo. A barbárie pública foi motivada pela divulgação da foto de uma mulher fisicamente mui-to parecida com a vítima, na página do Facebook “Guarujá Alerta”, com a acusação de que a dita mulher se-questrava crianças para a prática de magia negra.

Em 2016, nos Estados Unidos, Donald Trump vencia uma acirrada disputa eleitoral contra a candida-ta Hilary Clinton. Análises políticas posteriores mostraram que a campa-nha de Trump contou com a ajuda da divulgação de uma série de notícias falsas para atrapalhar a campanha da oposição, inclusive fazendo menção ao possível assassinato de um agen-te político que investigaria Clinton, fato esse desmentido posteriormente. Mas o que tais eventos, distantes, de uma certa forma, no tempo, no espa-ço e no contexto político possuem em comum? Seu viés de conexão encon-tra-se no universo denso, complexo e perigoso das fake news.

O uso da língua inglesa na des-crição do termo não é à toa. As fake news referem-se a um fenômeno que tomou proporções globais, influen-ciando decisões políticas, relações econômicas, carreiras de personali-dades importantes, visões sociocul-turais sem, contudo, perder sua capa-cidade de intervir nas situações mais simples e domésticas, como a dinâ-mica de uma vizinhança no Guarujá e um grupo familiar no Whatsapp.

No entanto, se pararmos para ana-lisar bem, sua essência não contém nada de novo. Espalhar boatos é um comportamento que está há muito presente na comunicação humana; as grandes queimas de bruxas nas fogueiras medievais, baseadas em denúncias arbitrárias que eram diri-

gidas à viúvas curandeiras e a políti-ca antissemita propagada no regime nazista são bons exemplos disso. A boataria ainda rendeu centenas de contribuições ao mundo cultural, em especial ao mundo pop, inspirando filmes como Meninas Malvadas e A Mentira e produzindo conteúdo para um episódio marcante do sitcom americano The Big Bang Theory, no qual os cientistas Amy e Sheldom de-senvolvem um modelo matemático para monitorar a velocidade com que um boato se espalha. Nesses termos, o que proporcionou então o boom das fake news vivenciado no contex-to atual, onde a figura do boato ga-nhou tanto poder e força, podendo até influenciar no resultado de uma eleição?

Pensando como Amy e Sheldon, poderíamos associar: em uma cul-tura de bactérias, a velocidade de crescimento desses seres depende de suas condições de vivência: alimento, meio, presença de ar. Assim também são as fake news; sua velocidade de crescimento e de espalhamento to-mou proporções mundiais em vir-tude da maior atenção dada às suas condições de vivência. O meio em que elas se propagam, a internet, pas-sa por um processo frenético de cres-cimento, com a popularização dos smartphones e de outros aparelhos eletrônicos, hospedeiros das tam-bém crescentes redes sociais. Famí-lias, setores de empresas, turmas da faculdade e vizinhanças estão, agora, intrinsecamente conectadas. Assim, ampliaram-se os momentos de con-versa. A propagação de boatos não depende mais exclusivamente das es-porádicas reuniões familiares e nem dos cochichos na hora do cafezinho; toda hora é hora de mandar alguma notícia bombástica no grupo do fa-mília e assim, os boatos se espalham em uma “velocidade quase que viru-lenta”.

A internet traz consigo um se-

gundo elemento crucial para o alto índice de espalhamento de notícias falsas. A sociedade moderna viven-cia uma sobrecarga de informações, que, se por um lado repele o mono-pólio de determinados meios de co-municação sobre o acesso a informa-ção, por outro inviabiliza a filtragem adequada entre notícias provenientes de fontes confiáveis e meras especu-lações que não representam a realida-de, o que torna-se danoso.

Além disso, uma outra condição de vivência que ganhou um foco es-pecial em meio a todo esse boom das fake news foi o seu próprio conteúdo. A prática da boataria passou a cen-trar-se em questões extremamente caras aos indivíduos e a determina-dos grupos sociais. Assim, corrup-ção, operações judiciais, preferên-cias políticas, religião, sexualidade e até descobertas científicas passaram a render pautas ao sistema de fake news. Nesse sentido, isso pode estar relacionado ao crescimento da noção e prática da ideia de liberdade de ex-pressão.

Assim, unem-se dois fatores que consolidam a nocividade das fake news. Em primeiro lugar, a impossi-bilidade de uma filtragem adequada de informações. Em segundo lugar, a tendência dos indivíduos lerem ape-nas notícias que condizem com suas crenças particulares, especialmente em temas de caráter mais sensível. Como a credibilidade é um elemento essencial para maior divulgação dos textos, há uma maior predisposição a compartilhar-se publicações cujo conteúdo equivale às convicções in-dividuais, ainda que estas não impli-quem obrigatoriamente na realidade. Nesse sentido, a veiculação de notí-cias torna-se uma questão de fé, fenô-meno denominado de “pós-verdade”, que, segundo o Dicionário Oxford, consiste em “relativo a ou que denota circunstâncias nas quais fatos obje-tivos são menos influenciadores na

formação da opinião pública do que apelos à emoção ou crenças pessoais.” O termo foi eleito palavra do ano pelo Dicionário Oxford em 2016, após sua popularização no contexto da eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos e da saída do Reino Unido da União Europeia, eventos esses intrinsecamente inseridos den-tro do contexto das fake news.

Por fim, cabe aqui ressaltar como fator de propagação das fake news uma corrente percepção quanto ao aspecto jurídico desse fenômeno. O ato de propagação de notícias falsas inclui em si uma série de condutas, que vão desde a confecção da notícia até um mero compartilhamento ingê-nuo num grupo de Whatsapp. Nesse interim, o desconhecimento por uma parte da população da existência e abrangência de uma legislação que tu-tela os comportamentos no meio vir-tual – o Marco Civil da Internet, de 2014 - e até do próprio caráter crimi-noso de algumas condutas (como o próprio compartilhamento) faz com que muita gente divulgue notícias falsas sem entender a real dimensão jurídica de seu ato.

Em suma, o advento da “era das fake news” configura-se na realida-de como um sintoma da conjuntura de desconfiança pública em relação a instituições previamente renomadas, como Empresas, Governo e Mídia. Em sistemas assolados pela crise e pela corrupção, como o Brasil, adi-cionando-se a alta polarização po-lítica decorrente desse ceticismo e o fluxo informacional excessivo que impedem a filtragem efetiva de infor-mações de qualidade, a divulgação das “notícias” torna-se ainda mais sedutora para os leitores que compartilham de suas ideologias em uma comprovação clássica de como a pós-verdade não exige a comprovação de dados, ao pas-so que a mera afirmação dos mesmos é suficiente para estabelecê-los como indiscutíveis.

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Direito e Arte José Pedro Lemos Barbosa Silva

A pena de morte pode ser con-siderada uma punição viável para solucionar certos cri-

mes? De acordo com Krzysztof Kies-lowski, diretor do filme “Não mata-rás” (1988), ela pode ser encarada como uma saída muito truculenta e, por vezes, precipitada, diante das condições as quais cada réu está sujei-to. A obra cinematográfica foi produ-zida a partir de uma série chamada “Dekalog”, que trabalha com uma perspectiva dos dez mandamentos bíblicos adaptados para a realidade polonesa, país de origem do autor.

A história se reduz a três per-sonagens: Waldemar, na figura do taxista, Piotr, o qual estava inician-do a carreira na advocacia e Jacek, um rebelde que saiu do campo para a cidade de Varsóvia. A partir daí, seus caminhos se cruzam no momen-to em que Jacek assassina Waldemar e, cerca de um tempo depois, o homi-cídio é descoberto; por conseguinte, Piotr se torna o advogado responsá-vel por livrar o jovem da sentença de-terminada pelo juiz, a pena de morte. O diretor trabalha toda a perspectiva do assassinato de forma muito crua, utilizando-se de filtros para reforçar um aspecto sombrio e decadente ao redor da cidade, além da ausência de diálogos em grande parte das cenas, o que provoca o espectador a observar o acontecimento com maior atenção.

Além disso, Kieslowski também deixa bem clara sua visão contrária ao sistema judiciário da sua nação, pois ele expõe que nem todos os atos cri-minosos estão fundados somente na má-fé dos indivíduos. Jacek, exemplo escolhido pelo diretor, não tem pers-pectivas de vida e se mostra como um adolescente revoltado com a sua rea-lidade. Durante o diálogo final entre ele e seu advogado, o personagem re-vela um dos fatores que influenciou suas mudanças comportamentais, a morte da sua pequena irmã por um amigo bêbado que a atropelou. Ape-sar desse acontecimento não justificar

a atitude truculenta tomada por Ja-cek, ainda se percebe que a resolução tomada para ela também não pode ser enxergada como a mais sensata. Diante disso, pode-se realizar uma alusão ao princípio da lei de Talião – “olho por olho, dente por dente.” – ou seja, quando o rebelde retirou a vida do taxista, ele também “perdeu” seu direito de viver.

Atualmente, de acordo com a vi-são de muitos brasileiros, prevalece--se esse princípio, em uma expressão mais direta e autoexplicativa: “bandi-do bom é bandido morto”. De qual-quer maneira, a pena de morte não deve ser encarada como a única so-lução possível dentro do ambiente jurídico, tendo em vista que existem diversos fatores que expõe a sua falibi-lidade. No próprio filme, o advogado polonês cita uma frase do sociólogo Karl Marx, a qual afirma que existem as estatísticas e a História para pro-var que, desde Caim, essa punição não contribuiu e sequer amedrontou quaisquer indivíduos acusados por cometer delitos bárbaros. Ademais, não se pode analisar essas situações sem se atentar para a história de fun-do a qual provoca a sua realização, pois o direito à vida é algo que deve ser compreendido como universal.

Na atualidade, vemos vários casos de injustiça, nos quais o réu é inocen-tado após anos de prisão, ou também recebe sanções descomedidas, sem que antes ocorra, no mínimo, uma chance de ressocialização, frente às circunstâncias de cada crime. Logo, a ratificação desse tipo de sentença é bastante radical e pode resultar em enormes desigualdades sobre aqueles em que ela é aplicada, além de estar retirando de alguém o que pode ser entendido como o seu maior direi-to. Por isso, “Não matarás” pode ser visto como um dos inúmeros filmes recomendados para reflexão acerca do tema, uma vez que ele apresenta uma visão verossímil e atual da hu-manidade.