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O ENCOBERTO DA VILA DO PRÍNCIPE (1744-1756): MILENARISMO-MESSIANISMO E ENSAIO DE REVOLTA CONTRA BRANCOS EM MINAS GERAIS* Luiz Carlos Villalta ** Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG [email protected] RESUMO: Este artigo propõe-se a apresentar a trajetória e as idéias de João Lourenço ou Antônio da Silva, eremita e milenarista que circulou pela Vila do Príncipe (atual Serro), Capitania de Minas Gerais, nos idos de 1744, dizendo-se o Encoberto e propondo-se a realizar uma sedição de índios, pardos e negros, cativos e forros. Baseia-se fundamentalmente em fontes inquisitoriais, primeiramente encontradas pela historiadora portuguesa Ana Margarida Santos Pereira. PALAVRAS-CHAVE: Milenarismo – Messianismo – Serro – Sedição – Minas Colonial ABSTRACT: This article presents the ideas and the paths of João Lourenço or Antônio da Silva, a millenarian hermit who circulated in Vila do Príncipe (nowadays Serro), Captaincy of Minas Gerais, close by 1744. This man said he was the Encoberto (a kind of Vice-Christ in the Earth, who about the Bible says) and tried to make a rebellion of Indians, Mulattos and Blacks, slaves and freed-people. This essay is supported by Inquisition sources that Ana Margarida Santos Pereira, a Portuguese historian, had found it before me. KEYWORDS: Millenarism – Messianism – Serro – Sedition – Colonial Minas Em 1744, apareceu na Vila do Príncipe (atual Serro), Minas Gerais, um eremita. Para alguns, apresentou-se como Antônio da Silva e, para outros, como João Lourenço. Nessa vila mineira e imediações, o eremita agiu como um autêntico mediador cultural. Ensinou rapazes a ler, circulou entre escravos, forros e livres, homens e mulheres, e, ainda, esteve com três padres, figuras de certa reputação na localidade, discutindo com todas essas pessoas, sobretudo, a respeito de religião (mas não só). * Uma primeira versão deste ensaio foi apresentada no GT de História Cultural, coordenado por Sandra Pesavento, Antônio Herculano e Mônica Veloso, atividade integrante do XXIV Simpósio Internacional da ANPUH – História e Multidisciplinaridade: territórios e deslocamentos, realizado em 2007, em São Leopoldo, RS. A pesquisa que o subsidiou foi realizada em estágio pós-doutoral financiado pela CAPES, em janeiro e fevereiro de 2005, em Lisboa. ** Professor Adjunto do Departamento de História da UFMG, bolsista de produtividade do CNPq, nível 2.

o Encoberto Da Vila Do Principe (1744-1756 - Luiz Carlos Villalta

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  • O ENCOBERTO DA VILA DO PRNCIPE (1744-1756):

    MILENARISMO-MESSIANISMO E ENSAIO DE REVOLTA CONTRA BRANCOS EM MINAS GERAIS*

    Luiz Carlos Villalta**

    Universidade Federal de Minas Gerais UFMG [email protected]

    RESUMO: Este artigo prope-se a apresentar a trajetria e as idias de Joo Loureno ou Antnio da Silva, eremita e milenarista que circulou pela Vila do Prncipe (atual Serro), Capitania de Minas Gerais, nos idos de 1744, dizendo-se o Encoberto e propondo-se a realizar uma sedio de ndios, pardos e negros, cativos e forros. Baseia-se fundamentalmente em fontes inquisitoriais, primeiramente encontradas pela historiadora portuguesa Ana Margarida Santos Pereira. PALAVRAS-CHAVE: Milenarismo Messianismo Serro Sedio Minas Colonial ABSTRACT: This article presents the ideas and the paths of Joo Loureno or Antnio da Silva, a millenarian hermit who circulated in Vila do Prncipe (nowadays Serro), Captaincy of Minas Gerais, close by 1744. This man said he was the Encoberto (a kind of Vice-Christ in the Earth, who about the Bible says) and tried to make a rebellion of Indians, Mulattos and Blacks, slaves and freed-people. This essay is supported by Inquisition sources that Ana Margarida Santos Pereira, a Portuguese historian, had found it before me. KEYWORDS: Millenarism Messianism Serro Sedition Colonial Minas

    Em 1744, apareceu na Vila do Prncipe (atual Serro), Minas Gerais, um

    eremita. Para alguns, apresentou-se como Antnio da Silva e, para outros, como Joo

    Loureno. Nessa vila mineira e imediaes, o eremita agiu como um autntico mediador

    cultural. Ensinou rapazes a ler, circulou entre escravos, forros e livres, homens e

    mulheres, e, ainda, esteve com trs padres, figuras de certa reputao na localidade,

    discutindo com todas essas pessoas, sobretudo, a respeito de religio (mas no s).

    * Uma primeira verso deste ensaio foi apresentada no GT de Histria Cultural, coordenado por Sandra

    Pesavento, Antnio Herculano e Mnica Veloso, atividade integrante do XXIV Simpsio Internacional da ANPUH Histria e Multidisciplinaridade: territrios e deslocamentos, realizado em 2007, em So Leopoldo, RS. A pesquisa que o subsidiou foi realizada em estgio ps-doutoral financiado pela CAPES, em janeiro e fevereiro de 2005, em Lisboa.

    ** Professor Adjunto do Departamento de Histria da UFMG, bolsista de produtividade do CNPq, nvel 2.

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    Disseminou idias messinico-milenaristas, dizendo-se o Encoberto, filho do

    Rei Dom Joo V e irmo do Prncipe Dom Jos, e afirmando que vinha Restaurar os

    pretos e mulatos dos captiveiros e tirallos do poder de seus senhores para hir com elles

    Restaurar a Caza Sancta. Ensaiou, assim, um levante de negros, mulatos e ndios

    contra os brancos.

    Neste artigo, tenho por objetivo narrar a trajetria e apresentar as idias de

    Antnio da Silva. Usarei, para tanto, documentos inquisitoriais primeiramente

    encontrados e analisados pela historiadora portuguesa Ana Margarida Santos Pereira,

    que, com notvel despreendimento, indicou-me essas fontes quando eu procurava por

    editais da Inquisio no Arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa, nos incios de 2005,

    motivo pelo qual lhe rendo aqui os meus sinceros agradecimentos.

    O Bando e o Sonho de Sedio

    No dia primeiro de novembro de 1744, na Capela de Nossa Senhora da

    Conceio, na Vila do Prncipe, Comarca do Serro Frio, Capitania de Minas Gerais, foi

    afixado um papel, similar aos bandos, veculos de divulgao de deliberaes da

    administrao rgia. Tal papel tinha o seguinte contedo:

    Eu Joo Lour. Principe emcuberto, filho do Rey Joo. quinto, e de victoria, Portuguezes, por mandado de Deos, asistente na Cidade, das Minas da Prata, ouro, e diversas pedras perciozas, e diamantes, capela Nossa Senhora da Conceiso. Mando em dia de todos os santos, Primeyro de Novembro, de mil, ste sento, quarenta e quatro, que do dia asima nomeado pelo tempo adiante declarado o Povo Portugues da America, e de todo o Reyno de Portugal seja de todo o trebuto despenssado, e de Justisa, e dizimos Retirado. Psse dou Povo Secular das suas Igrejas, Tito A posse a todos os icleziasticos, s sim poderam uzar de oficios Divinos, dandobe [sic] os secullares suas ofertas proporcionadas, comservando a psse os Seculares, para festeyarem o culto Divino, sua Satisfao. Declro que de Lisboa aqui, por mandado de Deos vim para prezenssiar as necessidades que no Povo vy; e evitar e evitar [sic] tantas treysens. que conbeci [sic]. E todo O Povo Pardo, Indios, e Negros, a mim juntar sem ninguem os poder cativar, para todo o Mourismo, neste tempo desbaratar, e os Lugares Santos a Portuguezes Christos entregar.1

    1 IANTT. Inquisio de Lisboa, Maro 58, p. 288. Fala-se, na documentao, tambm na existncia de

    uma bula, a qual no aparece (Ibid., p. 329.)

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    Joo Loureno, por meio desse bando, dizia-se Prncipe Encoberto, ou seja,

    aquele que, segundo a perspectiva dos milenaristas-messinicos, viria para instalar, em

    nome de Cristo, um Reino, similar ao Quinto Imprio do Mundo de que fala a Escritura

    Sagrada. Apresentava-se como filho de D. Joo V e de sua legtima esposa, dona

    Mariana Vitria dustria, vindo s Minas, terra que caracterizou a partir de suas

    supostas riquezas (prata, ouro e diversas pedras perciosas), em nome de Deus,

    para acudir o povo, povo trado. O povo de que falava era o portugus, do Reino e

    da Amrica, a quem isentava do pagamento de todo tributo e dzimos. Por povo,

    tomava fundamentalmente os pardos, ndios e negros, declarando que todos esses trs

    ltimos elementos no poderiam ser escravizados e estariam a ele unidos contra o

    mourismo, em uma espcie de cruzada que se realizaria para libertar os lugares

    santos e entreg-los aos cristos portugueses. Determinava ainda que a posse das

    igrejas caberia aos seculares (e no mais aos clrigos), restando aos ltimos apenas os

    cuidados com os ofcios divinos, sendo pagos a partir de proporcionadas ofertas dos

    fiis, ou seja, compatveis com as suas posses. Em suma, do bando de Joo Loureno

    deduz-se que ele se propunha a liderar um movimento de cunho milenarista-messinico,

    coadjuvado por negros, ndios e mestios, cujas implicaes seriam a realizao de uma

    sedio que atacava pilares do poder monrquico (a dinastia reinante, a ordem legal e

    tributria) e seu irmo siams, o poder eclesistico (os dzimos e o controle das igrejas

    pelos clrigos), sob a bandeira cruzadista de ataque aos infiis e libertao da Terra

    Santa. Realizando-se na Amrica, no deixaria de incidir sobre o Reino, uma vez que l

    se dariam tambm as isenes aludidas anteriormente, do que se deduz que o povo ao

    qual o Bando se dirigia inclua outros grupos, alm de negros, pardos e ndios, cativos e

    forros.

    Esse ensaio de sedio no vingou. Foi denunciado justia secular, que abriu

    uma devassa para apur-lo, prendendo Joo Loureno (ou Antnio da Silva) e sua scia

    Mariana, uma escrava africana, preta cativa de Manoel Lopo Pereira, moradora no

    Recncavo da Vila do Prncipe, natural da Costa da Mina, de nao xamba e de cerca de

    60 anos de idade.2 Um escrivo da devassa, em funo do que viu como hertico na

    tentativa de sedio e nas aes e palavras de Joo Loureno, denunciou-o ao padre

    Miguel de Carvalho Almeida Matos, vigrio da vara do Serro Frio, ento jurisdicionada

    2 IANTT. Inquisio de Lisboa, Maro 58, p. 276.

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    ao Bispado do Rio de Janeiro,3 uma vez que no havia na localidade um comissrio do

    Santo Ofcio, agente autorizado a enviar denncias Inquisio de Lisboa. Joo

    Loureno, que ultimte. declarou chamarse Anto. da Sylva, foi denunciado em razo

    das mtas. palavras mal soantes e contrarias nossa Sta. Fe que pronunciara, falas essas

    arroladas na devassa feita pela justia secular. O vigrio, ento, aos 20 de julho de 1745,

    mais de sete meses aps a afixao do bando, remeteu uma correspondncia

    Inquisio lisboeta, explicando que o denunciado fora preso pela justia secular da Vila

    do Prncipe por huma sublevaam, que quiz fazer com os Negros, intitulandose

    Prncipe. Na mesma correspondncia, o vigrio explicou que Joo Loureno ou

    Antnio aparecera na Vila do Prncipe em fins de 1744 com trages [sic] de

    mendicantes, e barbas compridas pedindo esmollas, e fazendo suas vias Sacras.

    Informou, ainda, que tomara providncias relativas ao caso, prendendo Antonio e sua

    comparsa Mariana, mulher negra, alm de inquirir testemunhas; nos prprios termos do

    vigrio: mandey recommendar na prizam ao do. Anto. da Sylva, e a huma Negra por

    nome Mariana tambem preza por ser sua parcial; e num dey a mais tempo conta Vas.

    Senhorias, por andar fazendo a dilliga. por humas testemunhas referidas, que se

    absentaram pa. ptes. incertas, e juntamte. por nam haver occaziam de proprios seguros

    nestes Longes [sic].4 Tais providncias, na verdade, ultrapassavam sua jurisdio de

    vigrio da Vara (e isso seria depois admitido por ele), sendo cabveis apenas a um

    comissrio, se para tanto o mesmo recebesse ordens da Inquisio.

    O Promotor do Santo Ofcio em Lisboa, a partir do recebimento da denncia,

    solicitou que a Mesa do tribunal ordenasse a realizao das investigaes necessrias. A

    Mesa acolheu o pedido e determinou que se fizessem as diligncias para apurar os fatos

    e tambm averiguar com toda a exzao [sic] a capaidade do dellato, tudo isso em

    primeiro de maio de 1746. Para melhor compreender as idias, as estratgias e a

    trajetria de Antnio da Silva-Joo Loureno, a seguir, avaliarei primeiramente a

    histria das manifestaes messinicas e milenaristas, para melhor situar sua presena

    em Portugal e na Amrica lusitana. Depois, farei uma anlise pormenorizada do

    Sumrio da Inquisio de Lisboa referente a Antnio da Silva, bem como da concluso

    que o referido tribunal lisboeta chegou sobre o mesmo.

    3 Segundo o Guarda-mor Antnio Camello Alcoforado: O escrivo da devassa Francisco Jos

    Coutinho dera parte ao vigrio da vara sobre o ocorrido (IANTT. Inquisio de Lisboa, Maro 58, p. 323.)

    4 Ibid., p. 288.

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    Milenarismos e messianismos cristos

    Os milenarismos aparecem entre povos cujas religies aceitam a existncia de

    uma idade primeira, perfeita, uma idade do ouro desaparecida, manifestando-se tanto

    em religies que vem a histria como um vetor (por exemplo, judasmo, cristianismo e

    islamismo), quanto entre aquelas que admitem uma renovao cclica do universo (por

    exemplo, a religio dos guaranis do sculo XVI).5

    Os milenarismos no se confundem com os messianismos. certo que ambos

    tm em comum a espera de um tempo de felicidade, de um reino geralmente terrestre.

    Mas os messianismos envolvem a espera de um messias, que pode ou no ter vindo

    anteriormente como, por exemplo, acontece entre os judeus , sem definir uma

    durao para essa espera e para o reino do messias. Os milenarismos, por sua vez, no

    comportam necessariamente a crena na vinda de um messias. Os milenarismos

    cristos, especificamente, se distinguem por conceberem que o advento do reino

    reatualiza as condies anteriores Queda e, alm disso, por entenderem que o

    Redentor j veio e que se aguarda o seu retorno. So nucleares nos milenarismos

    cristos, ainda, trs elementos: primeiro, a crena num reino terrestre vindouro de

    Cristo e de seus eleitos, com a durao de mil anos, literais ou simblicos; segundo, a

    idia de que o advento do milnio situa-se entre a ressurreio dos mortos j eleitos e

    uma segunda ressurreio, que ocorrer na ocasio do julgamento dos demais homens;

    e, em terceiro lugar, a concepo de um milnio demarcado por dois momentos de

    provao (o reino do Anticristo, ao que se seguir a instalao do reino de paz; e,

    depois, [...] uma nova liberao das foras demonacas, que sero vencidas num ltimo

    combate).6

    O milenarismo cristo surgiu nos primeiros sculos da nossa Era com a seita de

    mesmo nome. Os milenaristas ou quiliastas, como se chamavam os membros da seita,

    aguardavam a inaugurao do Reino de Cristo na Terra, prognosticando-o para um

    futuro prximo.7 As primeiras comunidades crists da sia abraaram crenas

    milenaristas vindas de meios judaicos, entre os quais circulavam promessas de um

    5 DELUMEAU, Jean. Mil anos de felicidade: uma histria do paraso. So Paulo: Cia. das Letras,

    1997, p. 17-18. 6 Ibid., p. 18-19.

    7 BESSELAAR, Jos van den. O sebastianismo: histria sumria. Lisboa: Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa/ Ministrio da Educao e Cultura, 1987, p. 14-16.

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    futuro de felicidade, encontradas em textos do Velho Testamento, como os dos profetas

    cannicos Isaas e Daniel. Dessas comunidades teve origem o Apocalipse de So Joo

    (20, 1-15), que fixa a durao de mil anos para o Reinado de Cristo.8

    No sculo XII, os milenarismos foram reforados pelo pensamento de Joaquim

    de Fiore, monge cisterciense calabrs. Fiore abandonou sua ordem por julgar-se

    insuficientemente fiel ao ideal monstico e fez crticas s ordens religiosas e Igreja,

    contudo, jamais refutou a ortodoxia, manifestando, pelo contrrio, vontade de

    conformar suas idias ao ensinamento dos papas.9 Para ele, ao longo da histria haveria

    trs idades: o tempo da lei natural e mosaica anterior a Cristo, o tempo definido pela

    vinda de Jesus e o tempo futuro em que triunfaria a inteligncia espiritual. Ele

    estabelecia uma correspondncia entre estas trs idades e o Antigo e Novo Testamento,

    entre os quais Fiore via uma concordncia, de tal sorte que as idades sucederiam uma

    outra, reproduzindo-se, numa escala de progressiva perfeio, elementos do Antigo no

    Novo Testamento e, por conseguinte, tambm no tempo da inteligncia espiritual.

    Falava tambm num perodo de repouso na terra, mediao entre o tempo das agruras de

    histria e o incio da eternidade posterior ao juzo final. Por fim, distinguia dois tempos

    de provao (antes da instaurao do reinado do esprito e, depois, entre o trmino deste

    e o juzo final) e de dois Anti-Cristos.10 Ele, no entanto, no prognosticou nem a vinda

    de um Messias, nem um Reino com durao de mil anos, no podendo, por conseguinte,

    ser considerado messinico ou milenarista.11 Os franciscanos e os dominicanos

    contriburam para a difuso do joaquiminismo, tendo alguns letrados divisados, nos

    frades menores, os espirituais que renovariam a Igreja e a governariam em seu ltimo

    perodo, proposio condenada pelo papa Alexandre IV em 1255. Ganhando o mundo

    dos leigos, o joaquiminismo, radicalizado e simplificado, deu origem a movimentos

    profticos na Itlia nos sculos XIII e XIV e difundiu-se pela Frana, Alemanha e

    Pases Baixos nesse mesmo perodo, levando ao surgimento da heresia do livre esprito,

    que reunia a promessa de um reino messinico, a vontade de destruir as riquezas do

    mundo pecador e a proposio segundo a qual todos os bens possudos por outrem

    pertenciam aos espirituais e que nada seria pecado para os mesmos, desencadeando

    8 Cf. DELUMEAU, Jean. Mil anos de felicidade: uma histria do paraso. So Paulo: Cia. das Letras,

    1997, p. 22. 9 Cf. Ibid. p. 40-47. 10 Cf. Ibid., p. 42-44. 11 Cf. Ibid., p. 43.

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    roubos e excessos erticos.12 Esses seguidores de Joaquim de Fiore, com o radicalismo

    e a violncia que suscitaram, traram as idias deste ltimo e trouxeram elementos no

    contidos originalmente no pensamento do mesmo: a crena na existncia de um

    imperador leigo, reinando sobre a cristandade regenerada e aplicando castigos severos

    Igreja por suas faltas e torpezas, e a espera de um papa anglico, graas ao qual

    haveria um s rebanho e um s pastor. Ao mesmo tempo, insistiram num ponto no

    privilegiado por Fiore: as provaes que marcariam o incio do reinado do Imperador.13

    Nos sculos XV e XVI, idias milenaristas prosperaram na Alemanha, na

    Frana e na Itlia, sendo identificados como o imperador dos ltimos dias soberanos

    alemes e franceses de nome Frederico e Carlos, aureolados pela ascendncia comum

    de Carlos Magno.14 Ao mesmo tempo, nos pases tchecos e na Bomia, no sculo XV;

    na Alemanha, no sculo XVI; e na Inglaterra, no sculo XVII, aconteceram insurreies

    de tendncias milenaristas.15 A Inglaterra foi o pas do Ocidente europeu que, entre o

    final do sculo XVI e 1660, debateu com maior paixo o milnio. A espera do milnio

    difundiu-se entre os telogos, ganhando, portanto, os meios eruditos, e contagiou

    tambm ativistas religiosos, alcanando extremo radicalismo.

    As idias milenaristas chegaram Amrica Inglesa, estabelecendo-se uma

    circulao mtua entre a Inglaterra e suas possesses Norte-Americanas, sendo as

    pessoas de John Cotton (1584-1652) e John Elliot (1604-1690) exemplos de eruditos

    que influenciaram os dois lados do Atlntico.16 Na Amrica Inglesa, os milenaristas

    aliavam a apreenso da nova terra como paraso crena de que os ndios ou eram

    pagos a serem convertidos antes dos ltimos tempos, ou seriam descendentes das dez

    tribos perdidas de Israel. Compreendiam tambm que a Santa Igreja seria transferida

    para o outro lado do Atlntico. Para alguns emigrados, no entanto, a Amrica seria um

    deserto, um lugar selvagem no atingido pela corrupo, constituindo-se por isto mesmo

    como um espao mais apropriado para a edificao da nova Igreja e instalao por Deus

    de seu Reino terrestre.

    Nos sculos XIII e XIV, a Espanha foi atingida pelas idias milenaristas,

    especialmente de inspirao joaquimita e franciscana, exercendo particular influncia os

    12 Cf. DELUMEAU, Jean. Mil anos de felicidade: uma histria do paraso. So Paulo: Cia. das Letras,

    1997, p. 57-63. 13 Cf. Ibid., p. 49; 66;80. 14 Cf. Ibid., p. 66-75. 15 Cf. Ibid., p. 92; 95-97; 108-110; 123;128-147. 16 Cf. Ibid., p. 13, 116 e 223-225.

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    escritos de Arnauld de Villeneuve, que denominava Novo Davi o imperador dos

    tempos de felicidade, e Jean de Roquetaillade.17 No sculo XIV, o joaquimismo parece

    ter entrado em Portugal e, nos sculos XVI, XVII e XVIII, se constituiu neste pas um

    vasto repertrio de crenas proftico-messinicas e, de resto, milenaristas, em torno

    da idia de um Quinto Imprio controlado pelos portugueses.18 Os portugueses talvez

    tenham sido os nicos europeus a se apropriarem, por sculos, do mito do Encoberto, a

    realimentarem-no.19 Constituram o nico povo em que os milenarismos e messianismos

    tiveram como ncleo original formulaes tecidas por um arteso o sapateiro Gonalo

    Annes Bandarra, ele prprio um mediador cultural e difundidas entre pessoas de

    amplos segmentos sociais, atingindo de forma decisiva letrados, alguns de renome

    internacional, como o padre Antnio Vieira. Naquilo que se refere s bases scio-

    econmicas, enquanto na Inglaterra os milenarismos desenvolviam-se em meio

    corroso do feudalismo e s transformaes de cunho capitalista; enquanto na

    Alemanha, eram reaes segunda servido; na Pennsula Ibrica tratava-se de

    formulaes elaboradas sob o impacto dos descobrimentos, em meio presena forte da

    cultura judaica e ao colonialismo (fator que talvez tenha infludo de forma equiparvel o

    milenarismo ingls).20 A etnia judaica fazia-se presente em Portugal e na Espanha desde

    o perodo romano. Em Portugal, se os judeus foram perseguidos violentamente no

    sculo XII e convertidos ou expulsos no final do sculo XV, viveram nesse intervalo

    sem maiores restries, cultivando uma mstica escatolgica.21 Ao final do sculo XV e

    XVI, alguns judeus ou elementos de origem judaica apresentaram formulaes

    messinicas e/ou milenaristas: Isaac Abravanel, judeu convicto, compreendia que o

    sofrimento do povo judeu em Portugal de fins do sculo XV indicava o advento do

    Messias, prevendo-o para o ano de 1503 ou para o intervalo 1490-1573; em Trs-os-

    Montes, dois rabinos, Diogo de Leo de Costanilha e Antnio de Valena,

    17 Cf. DELUMEAU, Jean. Mil anos de felicidade: uma histria do paraso. So Paulo: Cia. das Letras,

    1997, p. 191. 18 Cf. ROMEIRO, Adriana. Um visionrio na corte de D. Joo V: revolta e milenarismo em Minas

    Gerais. Campinas: 1996. Tese (Doutorado) Universidade de Campinas, Campinas, 1996, f. 79. Besselaar afirma que os sculos mencionados assistiram ao apogeu dos profetismos em terras lusitanas (BESSELAAR, Jos van den. O sebastianismo: histria sumria. Lisboa: Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa/ Ministrio da Educao e Cultura, 1987, p. 17, 25; 33.)

    19 Cf. HERMANN, Jacqueline. No Reino do Desejado: a construo do sebastianismo em Portugal (sculos XVI e XVII). So Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 61-62.

    20 Jacqueline Hermann prope esses elementos como especficos dos messianismos ibricos a autora, neste ponto, portanto, no usa o termo milenarismo (Ibid., p. 37 e 234).

    21 Cf. Ibid., p. 35-36.

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    prognosticavam a vinda de um messias judeu; e o prprio D. Joo III, para justificar a

    instalao do Santo Ofcio diante do Papa, mencionou o levantamento de um messias

    entre os cristos-novos.22 Todavia, embora mais forte na Ibria, o milenarismo judaico

    desenvolveu-se tambm em outras partes da Europa. Na segunda metade do sculo

    XVII, por exemplo, viu-se, para alm das fronteiras portuguesas e espanholas, a difuso

    do sabatainismo: o rabino Sabatai Tzvi se anunciava como o messias esperado para o

    ano de 1666, o nmero da besta, ganhando a adeso da maioria dos rabinos, exceo

    da Polnia, deflagrando uma onda de fervor entre judeus e no judeus.23

    Gonalo Anes Bandarra, o sapateiro j mencionado, referncia para as crenas

    messinico-milenaristas surgidas em Portugal, nasceu em Trancoso por volta de 1500.

    Outra personagem que gozou de influncia nesses termos, embora muito inferior ao

    sapateiro de Trancoso, foi Simo Gomes, o Sapateiro Santo, membro da Companhia de

    Jesus, lendrio personagem que teria exercido influncia na Corte de D. Joo III e de D.

    Sebastio.24 Bandarra entendia que algumas maldades afligiam o Reino Luso o uso da

    simonia pelo clero, a venalidade dos juzes, a ostentao de ttulos comprados pelos

    fidalgos, a leviandade e frivolidade das mulheres e a falta de coragem das autoridades

    para agir e reagir.25 E, a partir da leitura da Bblia, de profecias atribudas a santo

    Isidoro e das Coplas do castelhano Pedro Frias e de outros versejadores espanhis,

    convenceu-se de que viria um Rei Encoberto, predestinado a destruir o Imprio

    Otomano e a estabelecer a Monarquia Mundial, expressando tais profecias em trovas.26

    As trovas do sapateiro difundiram-se no pas a partir da dcada de 1530, apesar de

    proibidas pela Inquisio j em 1541 e de serem editadas pela primeira vez apenas em

    1603, em Paris.27 Circulando oralmente e em cpias manuscritas, causaram alvoroo e

    foram interpretadas diferentemente conforme a conjuntura e os grupos culturais em

    questo.28 Bandarra, ento, [...] andou tanto nas bocas de grandes e pequenos, sendo

    22 Cf. HERMANN, Jacqueline. No Reino do Desejado: a construo do sebastianismo em Portugal

    (sculos XVI e XVII). So Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 39. 23 Cf. ROMEIRO, Adriana. Um visionrio na corte de D. Joo V: revolta e milenarismo em Minas

    Gerais. Campinas: 1996. Tese (Doutorado) Universidade de Campinas, Campinas, 1996, f. 163. 24 Cf. CIDADE, Hernni. Antnio Vieira. Lisboa: Editorial Presena, 1985, p. 25; HERMANN, 1998,

    op. cit., p. 193. 25 Cf. BESSELAAR, Jos van den. O sebastianismo: histria sumria. Lisboa: Instituto de Cultura e

    Lngua Portuguesa/ Ministrio da Educao e Cultura, 1987, p. 54. 26 Cf. Ibid., p. 49-51. 27 Cf. Ibid., p. 52-53. 28 Cf. Ibid., p. 56 e ROMEIRO, 1996, op. cit., f. 80-81.

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    canonizado pelos mesmos que o proibiram.29 Os cristos-novos leram-no em sentido

    judaico, vendo no Rei Encoberto o messias prometido aos povos de Israel; sentidos os

    mais diversos foram atribudos por outros grupos s palavras do sapateiro de Trancoso.

    Em Portugal difundiu-se tambm a tradio celta centrada no rei Arthur. Ainda

    no sculo XIII, surgiu a Demanda do Santo Graal, em que se cristianizavam as lendas

    que tinham por protagonista o rei cavaleiro, figura que juntava bravura e imortalidade e

    que teria se refugiado numa ilha Afortunada em que se tinha uma sobrevivncia eterna.

    Em 1567, o novelista e comedigrafo Jorge Ferreira de Vasconcelos, publicou uma

    releitura da obra supracitada: o Memorial das proezas da segunda Tvola Redonda,

    livro no qual narra os feitos do neto do rei Arthur, Sagramor. Essas obras atestam a

    circulao de lendas do ciclo arturiano em Portugal.30 Com a morte de El-Rei Dom

    Sebastio em Alccer Quibir, em 1578 (sem que seu cadver fosse encontrado e com

    impostores fazendo-se passar por ele, at mesmo com xito entre letrados), em meio ao

    clima de fervor portugus extremado surgido sob a dominao espanhola, recebendo

    influncias da tradio celta centrada na figura do rei Artur e do messianismo judaico,

    muitos letrados e populares passaram a identificar o monarca morto ao Encoberto.

    Surgiu, ento, no pas uma nova verso milenarista e/ ou messinica: os

    sebastianismos.31 Populares e letrados sebastianistas, a partir das trovas de Bandarra, de

    passagens da Sagrada Escritura, da interpretao milagrosa e proftica de alguns

    acontecimentos, da lenda do Milagre de Ourique (Cristo teria aparecido a D. Afonso

    Henriques, s vsperas da Batalha de Ourique contra os mouros, fundando em pessoa o

    Reino de Portugal, em 1139), da conjugao de certos astros32 e, at mesmo, da

    29 CARTAS. Lisboa: Editores J. M. C. Seabra & T. Q. Antunes, 1854-5, tomo 4, p. 117. 30 Tais livros influenciaram as formulaes milenaristas de mulheres pertencentes s camadas populares,

    presas pelo Santo Ofcio em meados do sculo XVII, no parecendo ter a mesma repercusso entre os letrados; sobre isso, veja: HERMANN, Jacqueline. No Reino do Desejado: a construo do sebastianismo em Portugal (sculos XVI e XVII). So Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 185-186; 275; e SOUZA, Laura de Mello e. Inferno atlntico: demonologia e colonizao (sculos XV e XVII). So Paulo: Cia. das Letras, 1993, p. 117-121.

    31 HERMANN, 1998, op. cit., p. 181; 186. Optou-se pela classificao milenarista e/ ou messinico porque nem sempre entre os sebastianistas fica clara a idia de que o rei-messias instauraria um milnio. Usam-se sebastianismos, no plural, devido heterogeneidade observada nas formulaes sebastianistas, acompanhando s anlises de Jacqueline Hermann (Ibid., p. 187.) e Adriana Romeiro (ROMEIRO, Adriana. Um visionrio na corte de D. Joo V: revolta e milenarismo em Minas Gerais. Campinas: 1996. Tese (Doutorado) Universidade de Campinas, Campinas, 1996, f. 80-81.)

    32 Os prognsticos sobre o devir assentados na observao do movimento de cometas e astros eram comuns no apenas em Portugal. Bacon no rejeitava inteiramente a astrologia, embora a censurasse e postulasse a necessidade de depur-la (HOLANDA, Srgio Buarque de. Viso do Paraso: os motivos ednicos no descobrimento e colonizao do Brasil. 3. ed. So Paulo: Ed. Nacional: Secretaria de Cultura, Cincia e Tecnologia, 1977, p. 4.) No mundo luso-brasileiro, o padre jesuta morvio

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    interpretao cabalstica33 dos nmeros que constituam certas datas, concluam que os

    portugueses eram o segundo povo escolhido de Deus.34

    D Joo de Castro, nobre de formao jesutica, quando da disputa travada pelo

    trono portugus entre Felipe II, Dona Catarina de Bragana e o Prior do Crato,

    engrossou as fileiras dos partidrios deste ltimo. D. Joo de Castro teve publicados

    dois escritos, ao que se sabe: o Discvrso da uida do sempre bem vindo et apparecido

    Rey Dom Sebastio, editado em Paris em 1602, primeiro texto explicitamente

    messinico referente a D. Sebastio,35 e Parapharase et concordania de alguas

    Prophecias de Bdarra, apateiro de Trancoso, editado em 1603, obra que constitui a

    primeira edio das Trovas do sapateiro Bandarra e que revela a importncia que Castro

    lhes dava, demonstrando a circularidade existente entre eruditos e populares. Manuel

    Bocarro Francs, cristo-novo, mdico formado em Alcal e Montpellier, publicou em

    1634 o poema Anacephaleosis da monarquia lusitana, vtima de severa reprovao por

    parte da censura filipina, em que se procura, dentre outras coisas, demonstrar a partir da

    astrologia que Portugal haveria de ser a ltima e mais poderosa monarquia.36 O mais

    renomado de todos os eruditos milenaristas portugueses, contudo, foi o Padre Antnio

    Vieira. Para ele, Deus teria eleito a nao e o Estado portugueses, que seriam uma

    mesma substncia. No seu entendimento, nos tempos modernos, Portugal ocupava o

    lugar que fora perdido por Israel com a crucificao de Cristo; a aliana definitiva entre

    Deus e a nao portuguesa encontrava-se no j citado milagre de Ourique, em que

    Cristo selou ao rei Afonso Henriques a promessa de sucesso dinstica, com o que o

    Valentim Estancel, ex-mestre de matemtica (esfera) no colgio de Santo Anto, com passagem pela Amrica Portuguesa, era useiro da astrologia: nos idos de 1665, num famoso papel sobre os dois cometas, cheios de metforas e enigmas de nomes gregos, Estancel inferia que os cometas anunciavam mudanas dos tempos e das coisas, e todos para bem, e bem de todos (VIEIRA, Padre Antnio. Cartas. Lisboa: Editores J. M. C. Seabra & T. Q. Antunes, 1854-5, tomo 2, p. 36). Na correspondncia do padre Antnio Vieira, v-se recorrentemente a feitura de prognsticos do gnero (Ibid., tom. 3, p. 28; e ROMEIRO, Adriana. Um visionrio na corte de D. Joo V: revolta e milenarismo em Minas Gerais. Campinas: 1996. Tese (Doutorado) Universidade de Campinas, Campinas, 1996, f. 171, 177 e 180); a astrologia, alm disso, sempre comparece nas alegorias construdas pelo mesmo nos seus Sermes (CIDADE, Hernni. Antnio Vieira. Lisboa: Editorial Presena, 1985, p. 19).

    33 A cabala envolve uma interpretao mstica da Bblia, que estabelece uma relao entre letras, algarismos e sentido da Escritura.

    34 TORGAL, Lus Reis. Ideologia poltica e teoria do Estado na restaurao. Coimbra: Biblioteca da Universidade, 1982, p. 302-303. v. 1.

    35 Cf. HERMANN, Jacqueline. No Reino do Desejado: a construo do sebastianismo em Portugal (sculos XVI e XVII). So Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 189-191.

    36 Cf. Ibid., p. 199, 204-206 e 209-216.

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    poder transitou-se diretamente de Deus ao rei.37 Dentro dessa viso mais ampla, Vieira

    concebia o Encoberto como aquele predestinado que conduziria a histria do homem a

    um ajuste com a verdade que Deus designa para ela.38

    A identidade do Encoberto foi algo controverso entre os milenaristas

    portugueses. Ele foi identificado a personagens diferentes, acompanhando as alteraes

    da conjuntura poltica ou os interesses dos diversos grupos culturais. Para os judeus,

    tratava-se do Messias prometido aos povos de Israel; havia mesmo quem se auto-

    proclamasse o prprio Encoberto das trovas do Bandarra ou da tradio bblica-

    proftica. Os sebastianistas acreditavam que o Encoberto era o rei D. Sebastio,

    desaparecido em Alccer-Quibir;39 esta crena foi depois substituda, entre outros

    milenaristas, pela idia de que haveria o regresso de um rei geralmente identificado

    em termos vagos como o Encoberto que salvaria Portugal, tornando-lhe a conceder-

    lhe a independncia e a dignidade. O padre Antnio Vieira entrou nessa controvrsia

    sobre o Encoberto quando ainda estava no Brasil e, no transcorrer dos anos, veio a

    formular vrias hipteses sobre sua identidade. Um ms aps a Restaurao, num

    sermo pronunciado em louvor a Felipe IV, tratava como quimera o regresso de Dom

    Sebastio; anos antes, em 1634, no Sermo de S. Sebastio, rebatera esta mesma

    proposio.40 Depois, anteviu o Encoberto em mais de um prncipe lusitano: veio a

    identific-lo sucessivamente em D. Joo IV, D. Afonso VI, D. Pedro II e D. Teodsio.41

    As diferentes hipteses que Vieira formulou a respeito da identidade do Encoberto

    embasaram-se no modo pelo qual ele construa suas interpretaes da histria, o que,

    por sua vez, esteve ligado estreitamente sua hermenutica bblica. Segundo Vieira, o

    Encoberto no seria Cristo, mas um Vice-Cristo.42 Seu reino duraria 1000 anos, durante

    os quais desapareceriam o pecado e as guerras. Encerrado o milnio, apareceria o

    37 Cf. Ibid., p. 218, 224 e 238-239. 38 HERMANN, Jacqueline. No Reino do Desejado: a construo do sebastianismo em Portugal (sculos

    XVI e XVII). So Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 249. 39 Cf. ROMEIRO, Adriana. Um visionrio na corte de D. Joo V: revolta e milenarismo em Minas

    Gerais. Campinas: 1996. Tese (Doutorado) Universidade de Campinas, Campinas, 1996, f. 81. 40 Cf. AZEVEDO, J. Lcio de. Histria de Antnio Vieira. 2. ed. Lisboa: Livraria Clssica Editora,

    1931, p. 54. v. 1; e SARAIVA, Antnio J. Padre Antnio Vieira. DICIONRIO da Histria de Portugal. Porto: Inic. Edit., 1970, p. 301. v. 6.

    41 Cf. HANSEN, Joo Adolfo. Prefcio. In: PCORA, Alcir. Teatro do Sacramento: a unidade teolgico-retrico-poltica dos sermes de Antnio Vieira. So Paulo: Edusp: Campinas: UNICAMP, 1994, p. 29.

    42 Cf. PCORA, Alcir. Teatro do Sacramento: a unidade teolgico-retrico-poltica dos sermes de Antnio Vieira. So Paulo: Edusp: Campinas: UNICAMP, 1994, p. 234.

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    Anticristo, haveria uma Batalha Final, e depois, ocorreria o Dia do Juzo.43 O Quinto

    Imprio teria sido profetizado por Daniel e Ezequiel, sucedendo ao Quarto, o Imprio

    romano, ento sobrevivente com a Casa de ustria. Possuiria um carter

    simultaneamente temporal e espiritual e, diferentemente dos imprios que o precederam,

    gozaria de uma maior graa divina. Nele, haveria o encontro e a incorporao das Doze

    Tribos perdidas de Israel, assim como de todos os hereges, judeus e pagos,44 os quais

    seriam convertidos graas ao poder espiritual do Pontfice, Primeira Pessoa da

    Trindade, Virgem Maria, virtude dos Pregadores, ao Esprito Santo e, ainda, ao uso

    da fora pelo Imperador.45 Esta temporalidade do Quinto Imprio tinha evidente

    proximidade com o que advogavam os judeus e o prprio Vieira o admitia, pois

    afirmava t-la aceito em conversa com o rabino Manasss Ben Israel, com quem ele se

    encontrara em Amsterd46 e mereceu o pronto repdio da Inquisio, quando a mesma

    processou o famoso orador.

    As idias messinico-milenaristas alcanaram a Amrica espanhola nos

    princpios da colonizao, misturando-se aos topoi ednicos projetados nas vises

    construdas sobre o Novo Mundo e suas gentes: os primeiros frades franciscanos que

    desembarcaram no Mxico, em 1524, eram tributrios de concepes escatolgicas,

    misturando frmulas joaquimitas (a crena numa ltima idade do mundo, em que

    haveria paz, reconciliao e converso geral ao cristianismo, precedendo isto tudo ao

    fim da histria; e a converso pobreza, que assinalaria a passagem aos tempos

    escatolgicos).47 No Peru, o dominicano Francisco de La Cruz, queimado pela

    Inquisio em 1578, defendia proposies que transpiram influncias de vrias

    correntes milenaristas: dividia a histria em trs perodos, nos moldes de Joaquim de

    Fiore; esperava a vinda de um rei salvador e de um papa anglico, como se postulava

    nas sibilas; na esteira dos franciscanos, entendia que os turcos destruiriam Roma e a

    cristandade europia, que a Igreja seria transportada para Lima e, por fim, certamente

    sob a influncia do encubiertismo, dizia que ele prprio seria ao mesmo tempo papa e

    Rei do Novo Mundo, qualificando-se a si mesmo como o terceiro Davi, cujo antecessor

    43 Cf. Ibid., p. 236-237 e 257. 44 Cf. CIDADE, Hernni. Antnio Vieira. Lisboa: Editorial Presena, 1985, p. 79. 45 Cf. Ibid., p. 84. 46 Cf. Ibid., p. 80. 47 Cf. Ibid., p. 201-205.

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    teria sido Jesus Cristo.48 No sculo XVII, tambm no Peru, viveu outro seguidor de

    idias milenaristas: o franciscano Gonzalo Tenorio. Este, guiando-se pelo esquema

    joaquimita das trs idades, achava que a descoberta da Amrica no anunciava o fim

    dos tempos, mas, pelo contrrio, assinalava a implantao da monarquia crist, sendo as

    ndias o ponto de partida para a expanso do reinado universal de Cristo, para a derrota

    do Anti-Cristo e incio, enfim, do perodo escatolgico. Caberia monarquia espanhola

    unir os prncipes cristos, levar o Evangelho a todas as partes do mundo e firmar o

    dogma da Imaculada Conceio; o encubierto descenderia dos reis de Espanha, mas

    poderia vir da Amrica; o Papa teria que deixar Roma, refugiando-se no Peru. Todos

    esses milenaristas da Amrica, enfim, mostram que havia uma tendncia a enaltecer a

    Amrica em detrimento da Europa.49

    O portugus Pedro Rates Henequim (1680-1744), semelhana do proposto

    por milenaristas na Amrica espanhola, atribua ao Novo Mundo um papel central na

    edificao do milnio. Filho bastardo de um cnsul holands calvinista e de uma

    humilde catlica portuguesa, depois de rfo ficou sob a tutela de um dominicano e veio

    a estudar em Colgio da Companhia de Jesus. Viveu nas Minas Gerais nas duas

    primeiras dcadas do sculo XVIII: em Sabar (no perodo de 1714-1715), no Serro

    Frio, em Vila Rica, no Ribeiro do Carmo (Mariana), tendo se tornado escrivo ad hoc

    da Superintendncia do Rio das Velhas, entre 1709 e 1710, sob as ordens de Jos

    Correia de Miranda, seu antigo colega de infncia, executando diligncias de priso e

    confisco de ouro e de mercadorias entradas ilicitamente na Capitania.50 Henequim fez-

    se passar por frei Simo de Santa Tereza, carmelita baiano residente em Minas desde

    1706, para escapar da imposio de casamento e conseguiu sustentar a impostura por

    um tempo, tendo enganado at mesmo o prior do convento do Carmo51 Em 1722,

    regressou a Portugal. Sentia-se perseguido e injustiado por no ter sido devidamente

    premiado pelas riquezas que desenterrara dos sertes da Amrica. Em 1741, foi preso

    pela Inquisio de Lisboa e, em 1744, por ela condenado e queimado como herege.

    Ele acreditava que o Paraso Terreal, em que Ado foi creado, est na

    Amrica debaxo da Linha Equinocial e perpendicular ao lugar em q Deos tem o Seu

    Trono no Ceo, vendo como prova disto o fato de nesta nova terra se achar tudo o

    48 Cf. Ibid., p. 211-213. 49 Cf. CIDADE, Hernni. Antnio Vieira. Lisboa: Editorial Presena, 1985, p. 214-215. 50 Cf. Ibid., p. 212-213 e p. 220-222. 51 Cf. Ibid., p. 218.

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    que a Scriptura diz dele, como frutas, rios e delcias.52 Para ele, a Amrica seria o

    centro do Quinto Imprio do Mundo, a ser levantado sob a liderana dos portugueses e

    que promoveria a reunio das Dez Tribos de Israel, desterradas da Babilnia. Em seus

    devaneios, usava a cabala judaica (o prprio mundo lhe parecia uma rede de letras e

    algarismos, plenos de mistrios e enigmas a decifrar53), inspirava-se em escritos do

    Padre Antnio Vieira e no universo mitolgico tupi (transformou, por exemplo, o heri

    Sum, associado ento por muitos a So Tom, em Ado e dizia que este ltimo e Eva

    se refugiaram no interior da rvore da Cincia, que seria a bananeira). Lidando com

    elementos de origens culturais to distintas, como diz Adriana Romeiro, [...] cruzava e

    conectava estes elementos, abeberando-se aqui e ali de conceitos mltiplos, retorcendo-

    os tal qual um bricoleur, descobrindo e inventando significaes absolutamente

    novas.54 Em seus sonhos milenaristas, substituiu a redeno de Portugal pela redeno

    dos portugueses que viviam no Brasil.55

    Negociou com o governo espanhol um domnio sobre Minas, em 1740, tendo

    se apresentado a um ministro castelhano como o primeiro descobridor das minas de

    ouro e diamantes do Serro do Frio.56 Fracassada a iniciativa, tentou convencer o infante

    D. Manuel, irmo de D. Joo V, a liderar o movimento. Fosse sob o cetro do Infante,

    fosse sob a Coroa de Castela, na Amrica sonhada por Henequim, [...] os sditos

    deveriam receber a justa paga pelos seus servios.57 Seu propsito de levar o infante D.

    Manuel coroao em Minas mostra, enfim, que se voltava contra o poder de D. Joo V

    e que queria subtrair do domnio deste suas possesses na Amrica.58 Segundo Adriana

    Romeiro, alm da difuso de crenas milenaristas em Minas, a trajetria e as

    proposies de Henequim, somadas a manifestaes, por exemplo, como a Guerra dos

    Emboabas e a Revolta de Vila Rica de 1720, seriam evidncias de que havia na Amrica

    portuguesa uma cultura poltica local, que consagrava a contestao poltica e colonial,

    52 Pedro Rates Henequim apud GOMES, Plnio Freire. Um herege vai ao Paraso: cosmologia de um

    ex-colono condenado pela Inquisio (1640-1744). So Paulo: Cia. das Letras, 1997, p. 111. 53 ROMEIRO, Adriana. Um visionrio na corte de D. Joo V: revolta e milenarismo em Minas Gerais.

    Campinas: 1996. Tese (Doutorado) Universidade de Campinas, Campinas, 1996, f. 130. Para Henequim, era possvel encontrar no alfabeto todos os argumentos do credo. Para Vieira, jamais. Porm, o glorioso padre aproximava-se de Henequim, pois cria que, nas Escrituras Sagradas, no havia palavra, nem slaba, nem ainda uma s letra, que seja suprflua, ou carea de mistrio (Ibid., p. 82); valorizava, ademais, os algarismos dos textos profticos na atividade de interpretao (Ibid.)

    54 Ibid., f. 129. 55 Cf. Ibid., f. 88. 56 Cf. Ibid., f. 221. 57 Ibid., f. 241. 58 Cf. Ibid., f. 267-268.

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    assentando-se na compreenso de que a terra tinha riquezas infindas e, ao mesmo

    tempo, que reinava a injustia, no havendo prmios aos que os mereciam. Em 1732,

    Antnio Rodrigues da Costa, membro do conselho ultramarino, com efeito, apresentou a

    tese de que a prosperidade material da Colnia constitua um fator suficientemente

    capaz de subverter drasticamente o jogo de foras com a Metrpole, pois poderia levar

    ao sentimento de que era a Colnia a verdadeira herdeira daqueles tesouros, a nica

    eleita para triunfar sobre as demais naes.59

    Toda essa exposio sobre os milenarismos e messianismos cristos permite

    construir algumas hipteses. Primeiramente, e o que bastante bvio, Antnio da Silva

    estava claramente vinculado histria dos milenarismos e messianismos, mais

    especificamente s suas manifestaes em Portugal: a atribuio aos portugueses de um

    papel central no Quinto Imprio (ou de um Reino, como dizia o eremita) remete aos

    milenaristas e messinicos em ao no Reino desde o sculo XVI, passando pelo padre

    Antnio Vieira e chegando at Pedro Henequim. O propsito de libertao da Terra

    Santa aos mouros claramente uma tpica milenarista: o sapateiro Bandarra defendia a

    luta contra o Imprio Otomano e o padre Antnio Vieira cria na unio dada pela

    converso de todos ao cristianismo, inclusive sob o uso da fora. A violncia, inerente

    ao propsito de Antnio da Silva de liderar uma sedio de desvalidos no caso,

    escravos, forros, ndios, pardos e negros , somada promessa de um reino messinico

    e o ataque s riquezas do clero ligavam esse suposto filho de D. Joo V, ademais,

    histria do milenarismo e do messianismo na Europa e muito longinquamente at

    mesmo ao joaquimismo (mas no s idias de Joaquim Fiore), defensor da apropriao

    das riquezas alheias pelos espirituais (afinal, a libertao dos cativos proposta por

    Antnio afetava a riqueza dos senhores) e da crena num reino messinico.

    A conexo entre sedio (ou do espectro dela) e milnio, de resto, fez-se

    presente em vrias manifestaes milenaristas e messinicas na Europa. Se Antnio

    fazia menes s traies ao povo, certamente relacionadas ao comportamento das

    autoridades, estas tambm foram objeto de crticas de Bandarra. Isso tambm converge

    com a perspectiva que orientou a ao e as idias de Henequim: da constatao de

    injustias, da falta de prmios ao trabalho que desenvolvera em Minas, o ltimo tirou

    seu anseio sedicioso. A centralidade dada Amrica no projeto milenarista-messinico

    59 ROMEIRO, Adriana. Um visionrio na corte de D. Joo V: revolta e milenarismo em Minas Gerais.

    Campinas: 1996. Tese (Doutorado) Universidade de Campinas, Campinas, 1996, f. 194-195.

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    de Antnio, alm disso, ligava-o s manifestaes de mesmo cunho ocorridas na

    Amrica espanhola e, mais uma vez, a Pedro Henequim. Essas hipteses, baseadas na

    anlise do Bando afixado por Antnio da Silva-Joo Loureno na Vila do Prncipe, no

    incio de novembro de 1744, e no resumo da histria dos milenarismos e messianismos

    cristos que acabo de apresentar, sero examinadas a partir de outras partes do Sumrio

    contra o eremita feito pela Inquisio de Lisboa.

    Proposies, estratgias e parceiros do Encoberto da Vila do Prncipe

    Na passagem de 1744 para 1745, o vigrio da Vara da Vila do Prncipe,

    exorbitando de suas funes, colheu depoimentos sobre o caso antes mesmo de

    denunci-lo Inquisio.60 Depois de 20 de setembro de 1746, fez novas inquiries,

    tendo recibo ordem para tanto do Santo Ofcio.61 O movimento por ele liderado foi

    classificado pelos seus contemporneos como levante, sedio, reforma62 e

    revoluo.63

    Dos depoimentos colhidos pelo vigrio da vara, primeiramente, percebe-se que

    Antnio-Joo era tido como um homem lido, havendo mesmo quem o tomasse por

    clrigo64 e o caracterizasse como algum que faz[ia] letras de diversas qualidades.65

    Para parte dos depoentes, era notria sua condio de natural de Lisboa, pois ele [...]

    dava noticias miudamte. da mesma Cide. dos bayros e de mtas. pessoas que l

    habitavam, embora ele se declarasse natural de Santo Antnio de Tugal e apenas criado

    em Lisboa.66 Alguns depoentes o viam como contraditrio;67 outros, como doido e,

    60 Cf. IANTT. Inquisio de Lisboa, Mao 58, p. 273, v-287. 61 Cf. Ibid., p. 294, v-329. 62 Segundo Antnio Pires Carneiro, homem branco, casado na freguesia e comarca, natural do

    arcebispado de Braga, morador no Recncavo da Vila do Prncipe, que vivia de sua roa, com cerca de 36 anos, tratava-se de uma Reforma (Ibid., p. 284-284v). O mesmo disse Antnio Pires Carneiro, segundo o qual ouvira o delato dizer que havia de haver hu Reforma ou Recurso (Ibidem, p. 323v).

    63 Sebastio Lopes Alfonso, homem branco, solteiro, natural da comarca de Xavier, arcebispado de Braga, morador na Vila do Prncipe, que vive de sua agencia, com cerca de 31 anos, assim o dizia (Ibid., p. 285v.)

    64 Manoel Pinto, homem branco, vivo, natural da Cidade e Patriarcado de Lisboa, que vivia do seu ofcio de sapateiro e carcereiro da Cadeia da Vila do Prncipe, cerca de 48 anos, disse que conversa com quietao, e discurso mostrando que he Lido em forma que elle testemunha [sic] lhe parece que elle no he secular (Ibid., p. 303.)

    65 Ibid., p. 274. 66 Cf. Ibid., p. 303. 67 Segundo Joo Gonalves, solteiro, natural da freguesia do Bispado de Lamego, morador na Vila do

    Prncipe, que vivia do ofcio de ferreiro, 40 anos de idade aproximadamente, de hum dia para outro [o denunciado] se desdizia do que tinha ditto e obrado. (Ibid., p. 274).

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    mesmo, como se faria mais tarde com Tiradentes, como demnio;68 sem contar

    aqueles que o classificavam mais como velhaco69 ou que, inversamente, o viam como

    algum de juzo70 ou ex-estudante.71 Se ele se apresentava como filho legtimo do

    soberano portugus e da rainha, para Mariana de Assuno, a escrava forra que o

    acompanhou em suas aes e idias, ele seria filho natural de D. Joo V, o que parece

    ser corroborado por imprecaes de Antnio contra sua me, que o teria feito com um

    rei e no com um homem qualquer, do que se deduz que ela no seria a Rainha.72

    Antnio-Joo, alm disso, agia como mendicante, pedindo esmolas e fazendo

    vias sacras para as quais convidava gente de diferentes estados (fazendo suas vias

    sacras a que convidava pessoas de diversos estados);73 na Igreja, conversava com

    Nossa Senhora da Purificao; ensinava rapazes a ler. Ao mesmo tempo, ele mostrava

    em suas falas leituras muito particulares e, portanto, herticas da religio catlica. Por

    um lado, fazia interrogaes que traziam um lamento ou dvida a respeito da

    prescincia divina (= por que razam Deos Senhor nosso sendo poderoso nos havia de

    deichar cahir) e, por outro, defendia o concubinato com uma mulher s (hum homem

    ainda que estivesse toda a sua vida amancebado com hu mulher no cometia to grande

    peccado como andando coabitando com muitas mulheres)74 e condenava a mancebia

    com vrias mulheres (tratar illicitamente com muitas mulheres era pecado).75

    Lamentou, por vrias vezes, sua condio; maldisse e blasfemou contra a may que o

    pario, dizendo que malditta fosse pelo fazer com hum Rey, e no com hum homem

    ordinrio.76 Convidou a escrava Mariana para pecar carnalmente, alertando-a que

    68 Joo Batista Santarm, homem branco, solteiro, natural da freguesia de S. Maria da Vila de Santarm,

    patriarcado de Lisboa, morador nos arrabaldes da Vila do Prncipe, que vivia de sua roa, 48 anos, mais ou menos, achava que ele era louco ou tinha o demnio no corpo (Ibid., p. 325v.)

    69 Francisco Jos Coutinho, solteiro, natural do Bispado do Porto, morador em Vila do Prncipe, que vivia do ofcio de escrivo da Cmara e Almotaaria e Tabelio, com erca de 38 anos, dizia que o denunciado tem mais de velhaco do que de louco. (IANTT. Inquisio de Lisboa, Mao 58, p. 275v). Sebastio Lopes Afonso, homem branco, solteiro, natural da freguesia de Santo Andr de Fies do Rio, arcebispado de Braga, compartilhava da mesma avaliao (Ibid., p. 311.)

    70 O mesmo Francisco Jos Coutinho, homem branco, solteiro, natural do Bispado do Porto, morador na Vila do Prncipe, que vivia do ofcio de escrivo da Cmara, 39-40 anos, j citado, num segundo depoimento, afirmou que: Em todas as vezes que se comunicou com ele, teve a impresso de que era homem de juzo. (Ibid., p. 308-308v).

    71 O guarda-mor Antnio Camello Alcoforado, homem branco, solteiro, natural da Cidade e Bispado do Porto, morador na Vila do Prncipe, de 41 anos: se persuade que elle fora estudante. (Ibid., p. 323v).

    72 Ibid., p. 276v. 73 Ibid., p. 274v. 74 Ibid., p. 273v-274; 274v-275; p. 284-284v. 75 Ibid., p. 275. 76 Ibid., p. 278.

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    isso seno confessava, o que sugere que era um autntico velhaco.77 Outras idias e

    prticas pouco ortodoxas, agora de carter estritamente religioso, defendidas ou

    realizadas por Antnio-Joo, foram:

    a) quando hia na via sacra no ajoelhava direyto para a crus;78

    b) dizer que Deus fazia zombarias com os fiis, pregando-lhe peas, no se

    devendo ter medo dele quando assim fizesse;79

    c) voltar-se contra o livre-arbtrio, tomando-o como um erro de Deus;80

    d) falar contra a existncia do inferno, dizendo que no havia inferno, e que as

    pessoas, quando morrio tornavose a geral nas mulheres, para tornar a

    nascer;81

    e) dar confisso, sem ter ordens para tanto;82

    f) dizer ter um livro que o liberava de assistir missa;83

    g) quando se viu apertado pela possibilidade de ter os negros contra si, diante de

    um iminente fracasso da sedio, voltou-se contra Deus e a natureza divina de

    Cristo, dizendo que Deos no era Deos, e que seno podia adorar que Christo

    senhor nosso no era verdadeyro Deos, que quem era s verdadeyro Deos, era s

    o Deos Padre que este formara o mundo e criara ao Anjo Lusbel, e mandara a

    este formasse aos maiz Anjos, e os formara com hum sopro digo soupro [sic]

    entre os quaiz formara a Christo, no advindo de uma ao do Esprito Santo,

    que no hera homem para emprenhar mulheres, e que se Christo tivesse corpo

    verdadeyro no era possivel poder entrar por qualquer boraquinho a fallar com a

    gente;84

    77 Ibid., p. 327v. 78 IANTT. Inquisio de Lisboa, Mao 58, p. 275v. 79 Isso foi dito a Mariana, a escrava, conforme ela declarou: que quando Deos lhe falasse no tivesse

    medo porquanto Deos depois que tinha perdoado as criaturas era muito amigo de zombar com ella se fazerlhes pessas. (Ibid., p. 276v.)

    80 Segundo deps Antnio Botelho Manso, homem branco, solteiro, natural do Bispado da Guarda, morador na Vila do Prncipe, que vivia do ofcio de sapateiro, com cerca de 40 anos, o denunciado se irritava contra Deos por nos deixar o nosso livre arbitrio na materia de peccados, e que nisso no tinha Deos obrado bem. (Ibid., p. 281v-282).

    81 Ibid., p. 327v. 82 O denunciado, segundo o supracitado denunciante Antnio Botelho, sentado em huns paos na Rua

    direyta que vay da Igreja Matriz para o Arrayal debacho com hu negra como posta aos seus pez de joelhos, a qual tambem elle testemunha vira na mesma postura, indo o ditto passando comprehendera dizer o ditto denunciado estas palavras = foy por pensamento por palavra ou por obra = no que lhe pareceo que o ditto denumciado estar confessando a tal negra, o que sabe elle testemunha por assim o ouvir dizer ao ditto Luiz Coelho. (Ibid., p. 282).

    83 Ibid., p. 283. 84 Ibid., p. 278.

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    h) bater-se contra os clrigos missionrios, dizendo que os Reverendos

    Micionarios que andavo nestas Minas ero magicos que andavo vendo os bens

    desta terra para os entregar aos estrangeiros.85

    Vem-se, portanto, idias e prticas heterodoxas, que entrecruzavam o

    religioso e propsitos sediciosos. Por meio de vias sacras e romarias, Antnio-Joo

    Loureno conseguiu aproximar-se de escravos, propondo-lhes a realizao de uma

    rebelio contra os brancos senhores, usando como pontas de lana, para essa

    aproximao, as escravas Clara e Mariana.86 Segundo Alexandre Correa, preto crioulo

    da Cidade da Bahia, escravo de Joo Cardoso da Silva, Antnio entrou na Vila do

    Prncipe,

    [...] fazendo seus exercicios de vias sacras e Ladainhas, e passos varios tempos, estando elle testemunha na Logea de seu senhor hum sabbado de tarde trabalhando no seu officio de alfayate ahi chegou hu negra por nome Clara escrava de Antonio Ferreyra da Sylva por alcunha oxambada, e dicera a elle testemunha que tinha hum negocio com elle se podia chegar a sua caza, e respondendo elle testemunha que sim com effeyto veyo, e em caza lhe disse a mesma negra se podia chegar com ella a a [sic] rossa de Manoel Lobo Pereyra nos alrebaldes [sic] desta Villa, e indo elle testemunha com a ditta negra no caminho encontraro ao denumciado junto com hum negro por nome Thome escravo de Antonio Francisco, e outro negro por nome Pedro escravo de Domingos da Rocha Gomes e outro escravo de Manoel Nunes [...].87

    Todos, ento, foram athe a sobreditta Rossa aonde s estava hu negra da

    mesma rossa por nome Marianna, tendo o denunciado mandado os presentes se

    sentarem e comeado a falar sobre a sedio.88

    Contudo, Antnio no se limitou aos escravos, estabelecendo contatos com

    homens livres brancos: os mecnicos (Antnio Botelho Manso, sapateiro e Joo

    Gonalves, ferreiro89), donos de roas e/ou mineradores (Manoel Mendes Raso,

    Antnio Pires Carneiro e Joo Batista Santarm90), letrados (os padres Manoel da Rocha

    de Azevedo, Francisco Gonalves e Jos dos Santos91) e mais outras pessoas. Isso se

    85 Ibid., p. 325v. 86 Cf. IANTT. Inquisio de Lisboa, Mao 58, p. 271-271v. 87 Ibid., p. 271-271v. 88 Ibid, p. 271-271v. 89 Ibid., p. 281v e 273v-274, respectivamente. 90 Ibid., p. 282v, 284-284v e 325v. 91 Ibid., p. 329v e 283v.

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    depreende, por exemplo, do depoimento dado por Manoel Mendes Raso, branco,

    solteiro, natural da freguesia de Santa Maria de Macieira, da Cmara e Bispado de

    Coimbra, morador nos arrabaldes da Vila do Prncipe, que vivia de minerar ouro,

    segundo o qual o eremita lhe dissera que o:

    Padre Francisco Gonalves que tinha licena para Ler os exorcismos algum tempo esteve o denunciado com o ditto Padre, mas no sabe elle testemunha o que passaram, outro sim disse elle testemunha ouvira dizer a pessoas de cujos nomes seno lembra, que hum Luiz Coelho official de Sapateyro morador nesta Villa dicera vira em certa occazio ao denumciado confessando a hu negra, como tambem alguas vezes o vio elle testemunha ao mesmo denunciado dizer que no sitio delle mesmo testemunha era o campo de Jozaphaa e que todos os brancos e negros sedo havio de ser tods huns, e que no havia de haver captivos, e a depois que o ditto denumciado veyo para esta villa quiz fazer hum levante de negros contra os brancos, o que sabe elle testemunha pelo ouvir dizer publica e gerarmente [sic] a pessoas de cujos nomes se no lembra, e que tambem se fazia Principe e ao mesmo denumciado ouvio elle testemunha dizer varias vezes, que supposto tinha muitos inimigos que ninguem o conhecia, porem que em fazendo a barba logo o haviam de conhecer [...].92

    Os depoimentos colhidos pelo vigrio geral trazem inmeras informaes que

    atestam a validade de algumas hipteses levantadas a partir da anlise do Bando citado

    no incio deste artigo, ao mesmo tempo em que conduzem a outras. Antnio-Joo

    Loureno, ao fazer a defesa de um levante da Vila do Prncipe, disse que isso lhe

    pertenceria, conforme o Padre Eterno, assim como a Restaurao da Casa Santa.93

    Antnio recorreu a um negro forro, com fama de adivinhador, que morava na roa, para

    saber se El-Rei D. Joo V era morto ou vivo, ouvindo que no o sabia. Disso Antnio

    teria concludo que [...] era Principe e que havia sahir desta Terra com Coroa, e que

    isso mesmo significavo huas Estrellas, que apparecio na madrugada com rabos e

    brassos,94 associando o movimento dos astros e fatos poltico-religiosos, tal como

    fizeram o padre Antnio Vieira e outros milenaristas-messinicos. Em sua auto-

    representao como prncipe, filho de D. Joo V, alm de assemelhar-se aos impostores

    que na Europa se fizeram passar por D. Sebastio, caracterizou-se de uma forma curiosa

    (e, para nossos olhos do sculo XXI, bizarra): disse que possua dois dentes como seus

    pais, os quais teriam sido limados para que no fosse percebida sua condio de infante,

    92 IANTT. Inquisio de Lisboa, Mao 58, p. 283v-4. 93 Isso foi o que ouviu Francisco Jos Coutinho, solteiro, natural do Bispado do Porto, morador na Vila

    do Prncipe, que vivia do ofcio de escrivo da Cmara e Almotaaria e Tabelio, de cerca de 38 anos, em hu conversa que teve com hu Marianna preta captiva de Manoel Lobo Pereyra. (Ibid., p. 275).

    94 Ibid., p. 276.

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    acrescentando que era perseguido por D. Jos.95 Deus e os anjos, alm disso, teriam lhe

    segredado a proposta de realizao de um levante de negros contra os brancos.96

    O contedo anti-escravista do projeto de Antnio, j detectado no Bando por

    ele afixado, ademais, confirma-se nos depoimentos colhidos, alguns deles j citados. Ele

    afirmava que estava na Vila do Prncipe para tirar os escravos de seus senhores, para

    restaurar a Casa Santa, sendo mandado para tanto por Deus e por El-Rei e tinha para

    isso um papel, que iria afixar na Igreja: era hum Principe que vinha a esta terra

    mandado pelo Padre Eterno por elRey seu Pay, a Restaurar os pretos e mulatos dos

    captiveiros e tirallos do poder de seus senhores para hir com elles Restaurar a Caza

    Sancta.97 Os depoimentos so esclarecedores tambm a respeito das relaes entre

    Minas e Portugal, pois ele defendia claramente a separao de ambos, com a liberdade

    dos escravos, afirmando que: havia de haver hum Rey em Portugal, e outro nas Minas

    e que todos os escravos haviam de ficar Livres.98 Outra idia que filia Antnio

    claramente ao milenarismo aquela segundo a qual o stio de Manel Raso (branco,

    solteiro, natural da freguesia de Santa Maria de Macieira, da Cmara e Bispado de

    Coimbra, morador nos arrabaldes da Vila do Prncipe, que vivia de minerar ouro) era o

    campo de Jozaphaa e que todos os brancos e negros sedo havio de ser todos huns, e

    que no havia de haver captivos:99 tem-se aqui mais uma manifestao da unidade

    entre os homens a ser promovida pelo Encoberto. Ao mesmo tempo, Antnio parecia

    querer antecipar-se aos acontecimentos, buscando legitimar possveis malogros futuros.

    Ele entendia que a ao redentora de Cristo tinha sido algo que, contraditoriamente,

    colocara o homem na perdio, uma vez que ele era filho da Galilia e que, ainda,

    certas prticas deixadas por Jesus (penitencias, oraoes, jejunz, e disciplinas)

    95 Segundo Mariana, a escrava, ele falava que era Principe filho natural do nosso Rey, e que quando

    nascera lhe foram sahindo os dentes como tinha dous grandes como seu Pay, e sua May lhos mandara Limar para no ser conhecido por elles, e que seu Pay queria jurar por Principe, porem que o Principe Dom Joseph e seus inimigos o querio matar, por cuja cauza se absentara disfarsado havia quatro annos mandado por Deos e seus Anjos. (Ibid., p. 276v.)

    96 Conforme o depoimento de Mariana, ela lhe teria perguntado: que istoria era aquela e se lhe metia na cabessa que com aquelles negros podia levantarse contra os brancos = ao que respondera o denunciado que ero segredos de Deos, e que Deos e os seus Anjos o tinho mandado, no sabia se para padecer trabalhos e se para que, ao que ella testemunha dicera que tudo ero segredos de Deos: porem que viesse no fossem alguns. (Ibid., p. 277v.)

    97 Isso foi dito pelo depoente Alexandre Correa, preto crioulo da Cidade da Bahia, escravo de Joo Cardoso da Silva, oficial de alfaiate e morador na Vila do Prncipe, de cerca de 31 anos de idade (IANTT. Inquisio de Lisboa, Mao 58, p. 271v).

    98 Ibid., p. 283. 99 Ibid., p. 283v. O mesmo tambm declarou Antnio Pires Carneiro, homem branco, casado, natural do

    arcebispado de Braga, morador no Recncavo da Vila do Prncipe, que vivia de sua roa, com cerca de 36 anos. (Ibid., p. 284-284v).

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    advinham do fato dele ser nosso inimigo.100 Na verdade, o que o eremita atribua a

    Cristo era o que ele prprio estava a fazer com os escravos: Cristo na Galilia, e ele em

    Minas Gerais, sobretudo no que se refere perdio dos homens, parecendo sua fala ser

    uma forma de auto-justificao.

    As escravas Mariana e Clara, assim como o citado negro adivinhador, no

    foram meros fantoches manipulados por Antnio da Silva. De fato, foram coadjuvantes,

    mas atuaram, participando dos devaneios, demonstrando, assim, que as propostas

    sediciosas e milenarista-messinicas tinham acolhida em Minas, encontrando a um solo

    frtil para se desenvolver. Enquanto Antnio buscava saber na vila, saindo da roa de

    Mendes Raso em que se encontrava abrigado, se chegara alguma notcia do Reino, o

    adivinhador j dizia = que estava fazendo [o] que ja era tempo, sem esclarecer que

    tempo era esse e que o soubera por um menino.101 Clara, escrava de Antonio Ferreyra

    da Sylva, oficial de celeiro, por duas vezes dissera a Mariana [...] que estando de noites

    rezando em sua caza lhe apparecera a Senhora Sancta Anna, e lhe dicera pelas ditas

    duas vezes = devota minha dize aquelle Irmo das barbas que he o que esta fazendo que

    espera que ha he tempo [sic].102 Mariana tambm concorreu para o ensaio de revolta,

    pois dizia que o Menino Jesus e SantAna lhe falaram sobre um levante da Vila do

    Prncipe, que este pertenceria a Antnio-Joo Loureno.103 A julgar-se verdadeira a

    informao de Mariana, havia negros mobilizados em armas para realizar um levante,

    sob a liderana do mendicante, sendo perceptvel que o movimento cruzava uma luta

    contra os brancos com idias milenaristas-messinicas, falando-se em Restaurao da

    Casa Santa, assim como em se descobrir as profecias encobertas; nos termos da

    prpria depoente:

    [...] emcontrou no morro da forca dez ou honze negros com alguas armas, e preguntandolhe ella testemunha que ajuntamento era aquelle lhe Respondero = pos voss no sabe o que h e dizendolhe ella

    100 Declarou Alexandre Correa, preto crioulo, que o delatado falou que todos os trabalhos de

    penitencias, oraoes, jejunz, e disciplinas nos tinha deichado Christo crucificado porque era nosso inimigo, que era filho de Galilea, e que tinha botado todaquelle [sic] gente de Galilea a perder. (Ibid., p. 280).

    101 Segundo Mariana, lhe disse que hum negro captivo de hum Antonio Francisco morador nesta villa lhe dicera, que vindo em hu occazio da via sacra lhe apparecera hum menino, e lhe dicera dicesse aquelle seu Camarada das vias sacras o pobre das barbas = que estava fazendo que ja era tempo = (IANTT. Inquisio de Lisboa, Mao 58, p. 277.)

    102 Ibid. 103 Mariana dissera a Francisco Coutinho que tinha suas praticas com o Padre Eterno e que este lhe

    dicera se levantesse com a villa porque lhe pertencia, e que dahi alguns tempos a ditta negra lhe dicera que tambem o Padre Eterno, o Menino Jezus e Sancta Anna lhe tinho fallado, dizendo que era tempo para hir a Restauraam da Caza Sancta. (Ibid.)

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    que no lhe dicero dos dittos Negros, que o pobre das barbas que estava na villa era filho do nosso Rey, e que vinha mandado por Deos a esta terra para se Levantar com os pretos contra os brancos, e ficarem forros os dittos pretos, e irem pela gentilidade pregando e levantando Igrejas Restaurar a Caza Sancta e descobrir as prophecias que estavam incubertas.104

    Mariana, ademais, advertiu o denunciado de que [...] os negros dizio se

    havio de voltarem contra o mesmo denunciado se no tivesse effeyto o que lhe tinha

    promettido, ao que o denumciado respondera que elles no sabia [sic] se elle queria

    fazer Levante verdadeyro, ou falso, por serem segredos de Deos.105 Alexandre Correa,

    preto escravo crioulo, recusou-se a arrebanhar amigos para participar do levante.106

    Mariana, segundo Sebastio Lopes Alfonso, tinha vises quando estava em orao com

    o denunciado e, ao ouvir do mesmo que ele era prncipe e perseguido, deparou-se com a

    figura de um menino, que segundo o denunciado era o Menino Jesus. Ela, ento,

    perguntou ao Menino santo:

    [...] que razo havia sendo aquelle homem Principe desta terra para o andarem preseguindo, e no o conhecerem por senhor della, ao que o menino Respondera no importava andarem com elle aos tombos por q ele tudo havia de venser, e que esta gente desta terra era incredula porquanto tinho vindo a ella os Padres Missionarios a reduzir a gente para irem a restaurao da Casa Sancta ahonde o ditto denunciado era Imperador, e que como no podero fazer couza algu viera o dito denunciado para a reduzillos, e como no querio por bem os havia de obrigar por forsa; e mais no disse [...].107

    Mariana, portanto, mostrou ter se apropriado de figuras da histria sagrada, por

    meio do que se arrogava posio de porta-voz de Nossa Senhora e do Menino Jesus,

    reiterando as palavras de Antnio, concebendo este ltimo como um Imperador que

    levaria a salvao aos escravos da Vila do Prncipe. Mariana, assim, alimentou e

    contribuiu com parte do enredo, sendo juntamente com Antnio uma atriz dessa

    histria.

    A priso e o malogro dos projetos trouxeram grande perturbao ao eremita.

    Ele, que se via como o Encoberto e que j dizia no tempo de suas quimeras que Deus

    no governava bem por deixar-nos cair em tentao, deu mostras de ter passado a

    desacreditar das palavras divinas: o anjo da guarda no o protegia, Deus, por

    conseguinte, tambm no; Deus fora o culpado por seus projetos (segundo se pode 104 Ibid. p. 278. 105 IANTT. Inquisio de Lisboa, Mao 58, p. 278. 106 Ibid., p. 271v. 107 Ibid., p. 286.

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    interpretar de suas palavras), devendo o mesmo ser castigado (e no ele, o Barbaz).

    Nesse processo de desconstruo, ele se voltou contra os mistrios da Criao,

    questionando o fato da serpente ter enganado a Eva: Deus fora quem lhe colocara o

    pomo na boca e, portanto, institura o pecado. Embora perturbado, era lcido a ponto de

    apontar as contradies referentes a Deus que se encontram nos ensinamentos da Igreja

    e na Escritura Sagrada.

    O Vigrio da Vara Miguel de Matos, j na condio de Comissrio do Santo

    Ofcio, em parecer destinado a este Tribunal datado de 02 de novembro de 1746,

    forneceu informaes que o mostram como um autntico mediador cultural e como um

    sujeito capaz de se expressar conforme a condio dos interlocutores. Segundo o

    Comissrio, Antnio-Joo Loureno entrara na Comarca:

    [...] em habitos de mendicante, mas com mta. soberania, e sizudeza no aspecto, como eu o vi algumas vezes, procurando sempre pessoas sinceras com as quais tinha as suas conversas conforme os genios que nellas percebia, e com algumas se fingia Principe encuberto, como foi com o Pe. Manoel da Rocha de Azevedo, sacerdote de boa vida e costumes morador no Arraial da Tapera desta Comca e sinero, a qm. o dilinquente affirmou ser Principe, e que viera fugido pa. esta terra por quererem matallo, e que por hisso andava disfarado, e oculto, o que o mesmo Padre me disse a mim, vendo eu em sua caza huma occaziam, ao tal delinquente, e lhe perguntar, qm. elle era. Como tambem o Pe. Jose dos Santos morador na Villa do Principe, me disse, que o dito delinquente, em conversa que teve com elle, se lhe quise fazer verdadeyro Profeta, rezam por que o julgava falto de juzo.108 (destaques meus)

    Reafirmou, ainda, o bom juzo do denunciado: Falldo com pessoas

    intelligentes mostra ter mta boa capacidade e juizo, e de que tive criaam mto diversa, do

    que declara no seu depoimto. nas perguntas, que lhe fiz, nas quais colhi delle ser

    bastantemte. vagar, e prespectivo, poiz se no contradisse em couza alguma.

    Acrescentou que no havia informaes de que pedisse esmollas, aceytava sim o que

    lhe davam pa. seu sustentto, mostrandose sempre inteyro, e independente, com mto. bom

    modo nos lugares sagrados, e nos pblicos. Explicou que sua priso dera-se por ter

    [...] feyto sequito de Negros, e de mulatos, a quem affirmava, que era seu Principe, e que vinha mandado por Deos a livrallos do captiveyro em que estavam, pois todos eram Livres, e devassandosse disto pello juizo secular foi prezo, e logo que esteve na Cadea se foram publicando as preposies, que elle dice, delatando cada hum, o que lhe tinha ouvido; sendo que me no consta em publico os deffendesse, ou affirmasse, mais do que na forma, que declaram as Testemunhas,

    108 IANTT. Inquisio de Lisboa, Mao 58, p. 325-325v.

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    por onde me parece se faz mais sospeytosa a sua sagacidade. E me persuado, q tem tem suas allucinaes do Demonio; pellas quais se deixou cahir naquelles absurdos.109

    Deciso da Inquisio: Antnio, loucura e libertao; Comissrio,

    repreenso

    A Mesa da Inquisio, em comisso datada de 09 de maro de 1753,

    comunicou ao Comissrio sua avaliao do Sumrio por este ltimo encaminhado.

    Entenderam os juzes, por unanimidade, que se provava bastantemte. que o delato [isto

    , Antnio da Silva] padecia Loucura. Por este motivo, o Tribunal ordenou que fosse

    colocado em liberdade, caso ainda estivesse preso, e tambm que se lhe restitussem

    seus bens. A Mesa, alm disso, considerou o Comissrio sem autoridade para fazer a

    priso do denunciado, afirmando que se estranhar severamte. o embargo que fez do do.

    prezo sem para isso ter ordem deste Tribunal110 e admoestando-o nos seguintes termos,

    aos 23 de maio de 1753:

    Nesta Meza foy preze. q. VM. excedendo as ords q lhe foro cometidas respective ao prezo Anto. da Sylva alis Joo Loureno, q se acha na Cadea publica da Va. do Principe, o mandara embargar na mesma prizo da pte. do Santo Officio, sem pa. isso ter Mandado nosso; plo. q estranhamos mt. a VM este excesso, q. praticou com notorio gravame do do. prezo, e lhe advertimos qsocedendolhe outra semilhante, procederemos como nos parecer justo, e de como VM recebeo esta nos responder a marge desta.111

    margem do documento, com efeito, h uma anotao feita pelo Comissrio,

    data de 22 de setembro de 1753, pela qual ele se explica e se desculpa. Atribuiu ao seu

    Catholico zelo as providncias que tomara, dentre elas a ordem dada ao carcereiro

    para que no soltassse o tal prezo, de forma que o mesmo prezo, vendosse na sua

    Liberde. nam continuasse em mayores erros, entre estes povos Rsticos.112

    Reconheceu, por fim, sua falta de autoridade para ter dado a ordem supracitada ao

    carcereiro, acrescentando: se nisto errey conffesso a culpa, e humildemente recebo a

    reprehenssam, que essa Santa mensa [sic] me d, e protesto firmete. a emmenda.113

    109 Ibid., p. 325v. 110 IANTT. Inquisio de Lisboa, Mao 58, p. 327. 111 Ibid., loc. cit. 112 Ibid., p. 328. 113 Ibid., p. 328v.

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    As testemunhas ouvidas e o comissrio, enfim, apresentaram uma interessante

    situao de circulao cultural protagonizada pelo mendicante Antnio-Joo Loureno,

    um lisboeta, conhecedor da capital do Imprio lusitano e que falava a lngua portuguesa

    como tal114. Nela se conjugaram a linguagem oral e os livros; clrigos, proprietrios de

    terra, mecnicos e escravos, cativos e forros; brancos, pardos e negros; crioulos e

    africanos, sob a mediao e liderana do mendicante. Esse homem conectou pessoas de

    maior e menor qualidade; o rural e o urbano; idias ortodoxas e heterodoxas dos pontos

    de vista poltico, moral e religioso. Se Antnio-Joo Loureno foi o mediador cultural,

    se ele esteve por trs da articulao de todos esses elementos e atores socioculturais, se

    ele foi o protagonista dos acontecimentos, houve, importante declarar, coadjuvao:

    clrigos renomados na Vila o receberam e com ele dialogaram, sem o tomar como

    louco; outros elementos livres, assim como tambm forros e cativos, com ele estiveram,

    tendo alguns o visto como doido e outros, no s respeitado suas idias, como

    participado ativamente na sua divulgao e mesmo composio. As idias de Antnio-

    Joo Loureno expressam uma apropriao inventiva de elementos culturais de origens

    distintas; os coadjuvantes (participantes e denunciantes-detratores) da tentativa de

    sedio liderada pelo mendicante tambm se caracterizaram pela inventividade e, de

    fato, deram sua colaborao, acrescentando idias e agindo concretamente.

    Concluso

    A trajetria e as idias de Antnio da Silva so dotadas de singularidade.

    Chamando-se tambm Joo Loureno, o lder do ensaio de revoluo era um reinol que

    demonstrava conhecimento literrio, desenvoltura verbal, capacidade de ajustar sua

    conversao ao estado dos interlocutores, um falar tipicamente do Reino. Homem

    branco, ele se dizia filho de D. Joo V e da rainha Vitria (embora alguns o tenham

    classificado como filho natural do soberano, a partir de suas prprias declaraes) e,

    ainda, estar em Minas por ser perseguido em Portugal.

    114 Segundo Joo Gonalves, homem branco, solteiro, reinol, natural do bispado de Lamego, morador na Vila do Prncipe, que vivia do ofcio de ferreiro, Antnio pello modo, e pella falla parece ser natural do Reino (Ibid., p. 299v). J o depoente Manoel Pinto, um lisboeta, declarou que: Antnio Jos he Lido em forma que elle testemunha [sic] lhe parece que elle no he secular e em certa ocazio fallando elle testemunha com o dito prezo em Lisboa vendo q~ elle lhe dava noticias miudamte. da mesma Cide. dos bayros e de mtas. Pessoas lhe perguntou elle testemunha se era filho de Lisboa, ao que o dito prezo respondera q no era q era natural de S. Antonio do Togal, e se tinha criado em Lisboa (Ibid., p. 303-303v).

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    Esse mendicante teve ampla circulao social na Vila do Prncipe. Foi

    reconhecido por todos como homem familiarizado com as letras e natural do Reino,

    tendo ensinado alguns rapazes a ler. Teve conhecimento com dois padres, circulando,

    portanto, no apenas com as ovelhas do Serro, mas tambm com os pastores, e, se um

    deles achou-o louco, o outro nada disse a esse respeito, parecendo mesmo ter acreditado

    que ele era Prncipe Encoberto. Ambos os pastores no o denunciaram Inquisio e

    no parecem ter feito nada contra ele. Antnio foi protagonista de um ensaio de

    rebelio, que tinha como suportes almejados os negros, mulatos e ndios, todos eles

    alvos de promessas de serem libertos do cativeiro, libertao esta que se associava

    conquista dos Lugares Santos e luta contra os mouros. O eremita em tela, portanto,

    fazia a associao entre milenarismo-messianismo e rebelio escrava, qualificada

    diferentemente: revoluo, levantamento e, ainda, reforma. Alguns escravos, de fato,

    pegaram em armas em nome da luta por sua libertao do cativeiro, ainda que no as

    tenham colocado em ao. Mais do que isso, foram capazes de ameaar o eremita caso

    se mostrassem quimeras seus planos.

    A ampla circulao de Antnio, insisto, ademais, mostra sua sagacidade,

    esperteza e habilidade. Sua sapincia foi reconhecida pelo comissrio, malgrado os seus

    delrios (expresses, segundo a mesma autoridade, de seu lado demonaco). Logo, a

    conduta do eremita foi, no mnimo, considerada aceitvel em termos dos parmetros

    culturais e sociais, mesmo para o primeiro padre. O comissrio do Santo Ofcio, deduz-

    se, era conhecedor destes fatos e s tomou providncias quando se abriu a devassa na

    justia secular e soube sobre seu contedo. A atuao das escravas Mariana e Clara,

    bem como a do negro forro adivinhador, inclusive no que se referia s profecias

    relativas Terra Santa e ascenso ao trono de Antnio, comprovam que suas idias

    milenaristas-messinicas encontraram acolhida, tendo os mesmos elementos condies

    de dialogar com o eremita, acompanhando-o e trazendo-lhe contribuies nos

    devaneios. Isso permite supor que o milenarismo estava enraizado em Minas, atingindo

    no apenas os crculos clericais e letrados, como tambm os rsticos, at mesmo cativos

    e forros.

    O eremita Antnio no possua uma cosmologia ou uma viso coerente a

    respeito da religio, mas elementos da f catlica foram por ele apropriados e

    organizados dentro de uma chave que legitimava a insurgncia. Toda a digresso sobre

    aspectos da religio revela que o eremita apropriava-se de idias ortodoxas e populares,

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    articulando-as (at mesmo na excluso) de um modo muito prprio, mantendo distncia

    da ortodoxia e dos heterodoxos mais comuns. Assim fazia a respeito da natureza de

    Cristo; assim fazia tambm sobre a fornicao, no defendendo a fornicao simples,

    mas a mancebia com uma mulher s. Se no lera escritos do padre Antnio Vieira, teve,

    ao que parece, acesso a idias do renomado jesuta, pois, ainda que no tenha falado

    propriamente em Quinto Imprio, o Reino por ele concebido tinha caractersticas ao

    Imprio mencionado nas Escrituras e pelo grande sermonista luso-brasileiro (a unio

    pela converso de todos e a recuperao dos Lugares Santos); a correlao entre

    movimento dos astros e fatos poltico-religiosos era outro aspecto que unia a ambos.

    Como outros milenaristas-messinicos, conjugava milnio, violncia e sedio,

    conectando-se, por isso, longinquamente ao joaquimismo. Como todo milenarista,

    parece ter desculpado seus erros de previso a partir da considerao de que os

    acontecimentos seriam segredos de Deus. O mendicante no demonstrava ter ambio

    material, mas apenas poltico-religiosa. Dirigia-se aos oprimidos, envolvendo tambm

    os ndios.

    Sua auto-representao como filho de D. Joo e irmo legtimo ou bastardo de

    D. Jos, sua compreenso de que nas Minas Gerais havia explorao (extrao da

    riqueza, promovida por clrigos regulares e a servio do estrangeiro), sua atuao no

    Serro Frio, suas identidades e nomes distintos, sua apreenso da Amrica como o centro

    de um Reino (ele, de fato, no usava a expresso Quinto Imprio) separado de Portugal,

    por seu turno, remetem ao tambm milenarista-messinico Pedro Rates Henequim. Este

    tambm recorreu a embustes, falava sobre a riqueza de Minas, tinha projetos sediciosos

    (que passaram pela tentativa de fazer o infante D. Manoel o Imperador da Amrica,

    contra o irmo, El-Rei D. Joo V), queria fazer justia e, por fim, concebia a Amrica

    como o centro do Quinto Imprio do Mundo. Essa centralidade da Amrica, nos

    pensamentos de Antnio e de Henequim, ademais, irmanava-os a milenaristas e/ou

    messinicos que atuaram nas Amricas Espanhola e Inglesa.

    A defesa da reencarnao e da proposio segundo a qual no havia Inferno, a

    crtica prescincia divina, divindade de Cristo, intercesso do Esprito Santo na

    concepo do ltimo pela Virgem Maria, seu questionamento posterior do fato da

    serpente ter enganado Eva (Deus, na verdade, teria colocado o pomo na boca desta e,

    portanto, institura o pecado), bem como suas blasfmias e desacatos, mostram, por sua

    vez, conexo com outros propositores herticos, em sua maioria, grande parte afastados

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    do catolicismo e a