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O ENSINO DA ARTE E A ESTÉTICA DO COTIDIANO A PARTIR DA OBRA · 1 O ENSINO DA ARTE E A ESTÉTICA DO COTIDIANO A PARTIR DA OBRA DE HÉLIO LEITES: UMA EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO DOCENTE

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O ENSINO DA ARTE E A ESTÉTICA DO COTIDIANO A PARTIR DA OBRA

DE HÉLIO LEITES: UMA EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO DOCENTE

SASSALA, Ana Maria (Autora) 1

BUCHMANN, Luciano Parreira (Orientador) 2

RESUMO

O artigo a seguir tem a finalidade de apresentar o relato sobre o projeto de intervenção pedagógica A Obra de Hélio Leites: Reflexões sobre o Ensino da Arte e a Estética do Cotidiano desenvolvido no segundo semestre de 2011, com professoras e professores da disciplina de Arte do Ensino Médio na cidade de Curitiba. A intervenção pedagógica foi uma das atividades desenvolvidas dentro do Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE - uma proposta de formação continuada de professores da rede pública de ensino do Paraná, resultante da parceria entre a Secretaria Estadual de Educação e a Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Além da intervenção pedagógica também foi elaborado o material didático, Transtornar Embalagens e Ideias: a Obra de Hélio Leites, no qual foi apresentada a poética do artista paranaense residente em Curitiba adensada por questões relativas aos campos da arte e seu ensino.

Palavras- chave: interculturalidade, estética do cotidiano, arte e cultura.

INTRODUÇÃO

No ano de 1987 me formei pela Universidade Estadual de Londrina

(UEL), em Licenciatura em Artes Plásticas. O curso era composto por dois

anos de disciplinas que contemplavam as quatro áreas (artes plásticas, música,

teatro e dança), chamada de licenciatura curta, mais dois anos de estudos na

1 Ana Maria Sassala é formada em Licenciatura em Artes Plásticas pela Universidade Estadual de Londrina e pós-graduada em Fundamentos Estéticos para Arte-Educação pela Faculdade de Artes do Paraná. Atua no Colégio Estadual Ângelo Gusso e na Escola Estadual Ernani Vidal, Curitiba. Pr.2Luciano Parreira Buchmann é mestre em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC) e professor da Faculdade de Artes do Paraná (FAP). É orientador no Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE) da SEED- PR.

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área de artes plásticas, chamada de licenciatura plena. Os concluintes da

licenciatura curta recebiam a habilitação geral em Educação Artística de 1º

Grau. Continuei a estudar por mais dois anos e concluí a licenciatura plena em

Educação Artística com Habilitação em Artes Plásticas. Minha turma foi a

última que teve a oportunidade de escolha entre as duas modalidades.

Nas disciplinas que estudei, principalmente em História da Arte, o que

recordo em termos de conteúdo foi a predominância do estudo da arte

europeia. Ainda na licenciatura curta, ao estudar a história da música e depois

a história do teatro, me recordo que grande parte das informações era sobre

artistas europeus consagrados. As fontes de informação disponíveis – livros,

revistas, jornais, em sua maioria, traziam mais dados sobre artistas

consagrados universalmente do que sobre artistas brasileiros. Mesmo

publicações mais populares encontradas nas bancas de revista, como a

coleção Gênios da Pintura, por exemplo, apresentava os grandes mestres da

arte universal do Ocidente, desde Giotto até os artistas das primeiras décadas

do século XX. Acabei por colecionar os fascículos a fim de ter material de apoio

para a sala de aula, como outros profissionais do ensino de arte fizeram.

Também estudei a História da Arte do Brasil, porém não a arte

paranaense. Em termos de materiais o que encontrava referia-se a artistas

consagrados como, por exemplo, Tarsila do Amaral e Candido Portinari. Se o

material sobre arte brasileira era mais escasso, no caso da arte paranaense

era quase inexistente. Foram poucas as oportunidades que estudei artistas

locais, como Letícia Faria, que tive a oportunidade de entrevistar.

Quando comecei a lecionar escolhi como referência para o planejamento

das aulas os conhecimentos e o material de artistas que tinha visto na

universidade, adequando o conteúdo aos alunos. Ao trocar experiências com

outros colegas de área percebi que também usavam como referência o mesmo

tipo de informações e imagens de obras de artistas consagrados, ou seja,

assim como eu, estavam reproduzindo o que haviam aprendido.

Olhando para minha história e a de tantos de nós, cabe aqui a reflexão

acerca da formação que de algum modo sempre esteve aparente e esta

contido na palavra: forma-ação. Temos as palavras fôrma e forma, sendo que a

segunda é resultante da primeira quando seu emprego é o de molde, assim

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como o pão tem a sua forma dada pela fôrma. E é exatamente o que vejo em

minha história e na história de muitos (as) colegas: em minha forma de ensinar

aparece a fôrma do meu aprendizado.

Segundo Richter (2003, p.41):

...ao estudarmos mais detidamente as tendências do ensino da arte no século XX, podemos constatar que a busca do universal foi perseguida pelo ensino que priorizou a assim chamada corrente “essencialista” da arte moderna.

E é exatamente isso o que se pode perceber em minha história.

Comecei a lecionar em Curitiba e acredito que segui o mesmo caminho de

muitos dos meus colegas. O conteúdo que vim a transmitir em sala de aula foi

aquele que havia aprendido na universidade, o mais acessível naquele

momento. De certo modo, acabei como reprodutivista da fôrma: eu ensinava da

mesma forma como havia aprendido, inclusive, reproduzia os conteúdos que

recebi de meus (minhas) professores (as) e as experiências de sala de aula

compartilhadas com outras (os) professoras (es). Naquele momento eu não

tinha a crítica que o tempo e a pesquisa me deram e hoje consigo perceber

este modelo presente na educação, ao privilegiarmos em nossas escolhas,

conteúdos que representam os valores culturais de uma classe social. No livro

A Reprodução, Bourdieu e Passeron, afirmam que, embora na sociedade

existam classes com diferenças culturais a escola reproduz, tanto na teoria

como na prática, os valores das classes dominantes e acabam sendo

favorecidos neste sistema aqueles que possuem o capital cultural que esta de

acordo com esses valores. (STIVAL e FORTUNATO, 2012)

Bordieu e Passeron desenvolveram a teoria de que toda a ação

pedagógica é marcada pela violência simbólica que, diferente da violência

física, ocorre através da imposição cultural da classe dominante, dissimulada

em cultura universal, incorporada e adotada pelos dominados como legítima.

Como descreve Chartier (2011, p.104) “há de se instaurar um mecanismo mais

sutil que é o da incorporação da legitimidade pelos dominados da desigualdade

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ou da dominação”. Trazendo para minha experiência percebo hoje que uma

boa parte daquilo que aprendi e que procurei transmitir a meus alunos eram os

valores culturais da classe dominante, principalmente. Isso não aconteceu de

forma consciente, pois como Chartier declarou, a incorporação da cultura

universal torna-se legítima de maneira muito sutil: a ideologia da cultura

dominante esta presente sem ser considerada como o valor de outra cultura.

Faz lembrar a frase de Ronaldo Brito: “o patrimônio do colonizado é a memória

do colonizador.” (BUCHMANN, 2004). Voltando à minha situação de indivíduo

que sofreu a violência, no cotidiano escolar acabei por privilegiar os

conhecimentos e imagens sobre obras da arte universal, tanto pelo que aprendi

como pela maior facilidade de acesso em livros, revistas e jornais, pois eram

estes materiais que serviam de apoio para minhas aulas.

Com o passar dos anos as mudanças midiáticas possibilitaram uma

forma mais acessível a materiais sobre arte, porém a maior quantidade de

informações ainda era sobre obras e artistas europeus consagrados já

falecidos. Encontrava também mais materiais sobre a arte brasileira,

principalmente sobre artistas consagrados nacionalmente. Imagens e

informações sobre artistas paranaenses e contemporâneos eram difíceis de

serem encontradas. Mesmo ao fazer a pós-graduação em Curitiba e já

familiarizada com a arte paranaense (dos artistas consagrados) ainda havia

uma defasagem de conhecimento para romper o reprodutivismo que ainda

marcava o conteúdo dos planejamentos e ter com os temas de estudo artistas

que, mesmo estando próximos fisicamente, não faziam parte do currículo.

Sentia necessidade de levar para meus alunos o conhecimento sobre artistas

locais, mostrando que a arte não estava dentro apenas de museus, mas

também estava em locais acessíveis e se manifestava de muitas formas.

Essas reflexões acerca do saber arte e saber sobre arte requerem

constante inquietação com o estabelecido, o confortável. Ser professora exige

nominar-se e escolher que caminho tomar, que escolhas fazer para ensinar.

Requer a visitação de exposições, leituras ou, simplesmente, manter um olhar

investigador ao mundo e à grande aventura da visualidade pela cultura, como

em uma feira de artesanato. O angustiante nessa questão é, justamente, o

tempo para a pesquisa. Como conciliar as tarefas diárias com um espaço para

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coletar dados, fazer levantamentos, checar informações sobre algum novo

tema para levar aos alunos? E como fazer isso não de uma forma superficial,

mas refletindo sobre a importância do tema para a prática pedagógica?

As palavras de Paulo Freire (1992, p.83) remetem a esta questão:

Um professor que não leva a sério sua prática docente, que, por isso mesmo, não estuda e ensina mal o que mal sabe, que não luta para que disponha de condições materiais indispensáveis à sua prática docente, se proíbe de concorrer para a formação da imprescindível disciplina intelectual dos estudantes. Se anula, pois, como professor.

Serve em muito para pensar nossa condição e a possibilidade que o

PDE nos traz, como faço nesse momento.

É importante trazer à educação as questões referentes aos contextos de

produção e circulação da obra de arte na cultura bem como expandir o elenco

de obras e poéticas por esse viés, para que professores e alunos percebam

que a arte esta próxima das pessoas em locais como uma feira de artesanato e

não somente em museus e galerias de arte e ainda, que a entrada e saída dos

atores do circuito artístico, está imersa em uma série de questões hegemônicas

questionadas na pós-modernidade. Como escreve Freire (1992, p.85):

“subestimar a sabedoria que resulta necessariamente da experiência sócio-

cultural é, ao mesmo tempo, um erro científico e a expressão inequívoca da

presença de uma ideologia elitista”.

O que percebi com desdobramento deste trabalho foi a diferença entre

a formação acadêmica que recebi cuja base foi o paradigma de arte universal e

o que hoje na contemporaneidade vem se considerando: a compreensão da

arte ser fruto da cultura que a produz. Conforme Hernández (2000) afirma, o

conhecimento em arte vai além do conhecimento formal, conceitual e prático,

mas esta vinculado com a cultura visual de vários povos e sociedades. Esta

forma de compreensão oferece oportunidade de levar a “autoconsciência da

própria experiência em relação às obras, aos artefatos, aos temas o aos

problemas que trabalham na sala de aula (e fora dela).” (HERNÁNDEZ, 2000,

p.50)

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Segundo Wilson citado por Richter (2003, p.41) as mudanças ocorridas

no campo artístico também estão presentes no ensino, pois muitos

”professores de arte reproduzem as mesmas concepções de realidade que são

encontradas também no mundo da arte.” É o que Efland (2003) mostra ao

analisar os aspectos entre dois momentos da arte, a Modernidade e a Pós-

modernidade, cujos aspectos estão presentes também na arte-educação. Para

o autor, a modernidade estabeleceu a arte como fenômeno único, cujos objetos

específicos oferecem uma experiência estética desinteressada. Há um

progresso linear na história da arte marcado por uma elite cultural. O estilo

realista dá lugar aos estilos abstratos e não-representacionais. Há um conjunto

universal de elementos e princípios que abarca toda a variação estética.

Já na Pós-modernidade a arte é um produto das culturas que deve ser

visto dentro de seu contexto. Não há um progresso, mas trocas onde há perdas

e ganhos. Questionam-se os valores da elite cultural e o realismo é retomado

no estudo da sociedade e da cultura. O ecletismo esta presente e possibilita

várias leituras e interpretações. (EFLAND, 2003).

O que é importante ressaltar, como afirmam Richter (2003) e Schlichta

(2009), é a postura do (a) professor (a) como colaborador (a) na construção de

um olhar crítico sobre a arte, a forma como se apresenta na vida das pessoas,

as relações de poder presentes no capital cultural que reproduz as

desigualdades sociais ao estabelecer diferenças entre o erudito e o popular.

Assim sendo,

é preciso recusar a hierarquização das expressões culturais e sua articulação em culturas subalternas e culturas dominantes. É necessária outra visão do processo cultural como um todo, mas também da educação e da escola. (SILVA, 2008, p.9).

Nesse sentido, a reflexão de Freire em relação aos conteúdos e o

posicionamento respeitoso do educador frente aos saberes dos educandos

vêm de encontro à postura dos teóricos do ensino da arte pós-modernos e nos

permitem pensar sobre a questão das escolhas do elenco de obras e artistas

presentes em nossos planejamentos. Diz ele:

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creio que fundamental é deixar claro ou ir deixando claro aos educandos esta coisa óbvia: o regional emerge do local tal como o nacional surge de regional e o continental do nacional como o mundial do continental. (FREIRE, 1992, p.87).

Tomando esse caminho apresentei, na unidade didática e na

intervenção pedagógica do PDE as questões locais, a poética de um artista

residente e atuante no cenário artístico de Curitiba, que faz parte do elenco da

arte contemporânea paranaense e que traz discussões sobre elementos

culturais cotidianos reconhecíveis tanto na estrutura local, como na regional ou

na universal. É importante observar que o estudo da cultura local se vincula

também ao universal, pois o objetivo é tornar o campo da arte mais

abrangente, desvinculando a separação entre o erudito e o popular. Por meio

da obra deste artista, HÉLIO LEITES, a unidade didática apresentou o

dadaísmo, a pop arte, artistas como Marcel Duchamp, Andy Warhol e outros

que trouxeram os objetos do cotidiano e as imagens da cultura de massa para

as discussões da arte.

A obra do multiartista Hélio Leites, como foi chamado pela crítica de arte

Adalice Araujo, escolhida como tema da minha pesquisa se deve ao fato de

seu trabalho envolver várias linguagens. Através delas as pessoas descobrem

um mundo de miniaturas e histórias que promovem reflexões sobre o cotidiano.

Também são levadas a perceber outro significado do que parece não ter mais

importância, descobrindo a graça e a beleza contidas nas coisas simples do

dia-a-dia. Como destaca Araujo (2006, p. 153): “não há dúvida de que Hélio

Leites, este anarquiteto do sonho, cria um projeto visual único, dentro do mais

inovador processo de comunicação popular.” (grifo da autora).

Embora Hélio esteja em constante movimento apresentando seu

trabalho dentro e fora do país, de ter publicado dois livros sobre suas obras, ser

reconhecido pelo meio intelectual pela contribuição ao campo da arte e, ao

mesmo tempo, fazer da feira de artesanato o palco para suas performances,

muitas pessoas – quer no campo artístico quer na comunidade, ainda

desconhecem totalmente seu trabalho. Foi uma surpresa descobrir que

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diversas de minhas colegas de área não conheciam o artista. Já se eu tivesse

perguntado sobre Van Gogh...

Não imaginei, no entanto, que um projeto sobre Hélio Leites me levasse

a águas mais profundas, nas quais pude mergulhar com a ajuda do meu

orientador que indicou caminhos para reflexão sobre questões tão presentes e,

ao mesmo tempo quase imperceptíveis na luta diária: as relações de poder, a

estética do cotidiano, a questão da identidade e dos valores culturais, idéias

que são apresentadas por Paulo Freire (1992, p.85) quando aponta que,

“subestimar a sabedoria que resulta necessariamente da experiência sócio-

cultural é, ao mesmo tempo, um erro científico e a expressão inequívoca da

presença de uma ideologia elitista.”

Assim, partindo destas reflexões quanto ao conteúdo transmitido em

sala de aula, junto com a reflexão sobre a importância do conhecimento

universal/local, a dicotomia ainda existente entre erudito e popular, a presença

da arte no cotidiano, a interculturalidade – desenvolvi a temática do meu

trabalho nas várias etapas que fazem parte do PDE – Programa de

Desenvolvimento Educacional.

O PDE faz parte das atividades de formação continuada da Secretaria

de Educação do Estado do Paraná que visa à promoção dos (as) professores

(as) ao III nível dentro do “Plano de carreira do magistério estadual”, conforme

a Lei Complementar nº 130 e a Lei Complementar nº 103. Tem como objetivo

“proporcionar aos professores da rede pública estadual subsídios teórico-

metodológicos para o desenvolvimento de ações educacionais sistematizadas,

e que resultem em redimensionamento de sua prática” (PROGRAMAS E

PROJETOS – PDE, 2012).

Dentro das ações previstas no programa foi elaborado primeiramente o

projeto – A Arte de Hélio Leites, seguido pela construção do material didático

Transtornar Embalagens e Ideias – A Obra de Hélio Leites no Ensino da Arte.

Na sequência ministrei o curso à distância – GTR (Grupo de Trabalho em

Rede) e fiz a implementação do meu projeto através de um curso de extensão

“A Obra de Hélio Leites: Reflexões sobre o Ensino da Arte e a Estética do

Cotidiano”. Para finalizar apresento este artigo cujo objetivo é relatar o

processo de intervenção pedagógica. Neste longo caminho muitos conceitos

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sobre o ensino da arte, que foram a base de minha formação, se modificaram e

espero que possa contribuir na prática dos (as) colegas de área.

DESENVOLVIMENTO DO PROJETO

O primeiro ano no PDE foi um período de estudo e pesquisa. A primeira

sensação que se tem é de estranhamento com o afastamento do ambiente

escolar. O retorno ao mundo acadêmico, agora é fronteiriço, onde estamos

alunas/professoras (professores). Um período de grande efervescência.

Voltada à elaboração do projeto “A Obra de Hélio Leites”, busquei

diversas fontes de informação e a revisão bibliográfica para a sustentação

teórica do projeto sob a supervisão do Prof. Luciano Buchmann. Também

realizei uma primeira entrevista para estabelecer contato com o artista e

ampliar a observação sobre o objeto de estudo e o registro fotográfico de seu

trabalho.

A partir do levantamento de informações desenvolvi, dentro das

atividades previstas do PDE, a produção didático-pedagógica “Transtornar

Embalagens e Ideias: a Obra de Hélio Leites”, material que serviu como

subsídio à intervenção pedagógica junto a professores e professoras do ensino

público em uma das escolas em que trabalho, a Escola Estadual Ernani Vidal,

na cidade de Curitiba. O material traz a fundamentação teórico-metodológica

do tema escolhido, visando fornecer um produto com fins pedagógicos para a

escola pública paranaense.

E por que o título “Transtornar Embalagens e Ideias: A Obra de Hélio

Leites”? Primeiramente a palavra transtornar esta ligada a uma de suas obras

intitulada “O Milagre da Transtornação” na qual o artista mostra segundo suas

palavras, como transforma um simples palito de sorvete em um quilo de pão.

Como ele faz isso? Ao juntar um palito de sorvete jogado no lixo o artista vai,

aos poucos, modificando sua forma e cor. Vale-se da técnica que ao longo dos

anos pode desenvolver e entalha a madeira até encontrar a forma desejada,

uma arara. Depois usando tinta acrílica, pinta o objeto de vermelho e reforça os

detalhes para alcançar o reconhecimento de arara vermelha, que por sua vez

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transforma em broche. O artista sugere à pessoa que compra a arara vermelha

que ela pode ser usada como sinalizador para as mulheres, avisando que não

esta bem (estou uma “arara” hoje, ou seja, muito braba, com TPM, portanto

não chegue muito perto, estou transtornada!). Ao vender o objeto o artista diz

que com o dinheiro pode comprar um quilo de pão, ou seja, transformou o lixo

em alimento.

Segundo o dicionário Michaelis (2012) o verbo transtornar possui vários

significados, tais como: alterar, perturbar a ordem ou a colocação de; pôr

confusão em; fazer mudar de costumes, de opinião, de vida; desorganizar,

perturbar; converter-se, transformar-se. O artista altera, perturba, muda a

ordem, transforma a forma e o conteúdo, reordena: o que já não tem mais valor

passa a ter outro significado. Ele brinca com as palavras e procura, através de

seu trabalho, mudar a percepção das pessoas sobre as coisas comuns e

ordinárias. Este contato com o artista assim como o estudo de Richter, Efland,

Chalmers, Freire, Buchmann, entre outros trouxeram mudanças no meu modo

de ver o ensino da arte e a vontade de contribuir junto aos (às) colegas de área

na ampliação do elenco de artistas refletindo sobre o cotidiano e o saber

artístico.

A produção didático-pedagógica, chamada de unidade didática,

apresentou algumas vertentes da obra de Hélio Leites, como o Museu Casa do

Botão, as miniaturas feitas em caixas de fósforos, o Teatro de Boné e

esculturas-objetos. Todas as obras são apresentadas pelo artista numa

performance: não há como desvincular o objeto do seu autor. E essa talvez

seja a maior categoria de aproximação de sua obra com a cultura e a produção

artística popular. A fusão da cultura erudita e o cotidiano requerem um

ingrediente que as faz transcender, esse ingrediente é a presença do artista.

Não há como estabelecer na poética de Hélio um limite entre as linguagens

artísticas, característica da arte na contemporaneidade. Dada a grande

extensão de seu trabalho, foram citadas fontes bibliográficas e imagéticas

como subsídio para aprofundar o conhecimento sobre sua poética.

A obra de Hélio Leites apresenta uma série de peculiaridades como, por

exemplo, o material utilizado: botões, latas de sardinha, sapatos sem par,

palitos de fósforo, entre outros. Esses objetos são a fonte para criação de

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miniaturas que carregam memórias pessoais ou histórias sobre personagens

que fazem parte do cotidiano.

O artista marca seu trabalho pela forma como se relaciona com o

público, pois através de brincadeiras e trocadilhos envolve as pessoas em sua

poética. Como observa Sans (1995, p.73) “a arte contemporânea manifesta-se

com a mesma força contida nas pinturas das cavernas e os desenhos infantis,

ou seja, ela se caracteriza pelo lúdico e pela expressão.” (grifos do autor).

O trabalho de Hélio rompe com a territorialidade que muitos ainda

tentam manter entre a arte erudita e a arte popular. Se por um lado o artista

possui a formação acadêmica na Escola de Música e Belas Artes do Paraná –

EMBAP 2010, fez diversos cursos com artistas paranaenses consagrados e

possui o reconhecimento oficial de seu trabalho ao receber, várias vezes,

premiações em eventos culturais, por outro lado Hélio se reconhece como

artesão, apresentando suas miniaturas na feira de artesanato do Largo da

Ordem, todos os domingos, em Curitiba.

As criações de Hélio surgem de sua vida, das lembranças, do cotidiano,

dos amigos, do jogo das palavras. Junto com o amigo Humberto de Almeida o

artista afirmou que seu trabalho se baseia em uma “tese nada nova, mas muito

sincera, de que o melhor suporte para a arte não era o papel, mas a vida”

(apud Pires, 2008, p. 141). Este mesmo comprometimento é entendido por

Ivone Richter, em sua pesquisa sobre o ensino:

Precisamos de um ensino de Arte na qual as diferenças culturais sejam vistas como recursos que permitam ao indivíduo desenvolver sue próprio potencial humano e criativo, diminuindo o distanciamento existente entre Arte e Vida. (RICHTER, 2003, P.51)

A proximidade entre arte e vida pode ocorrer no espaço escolar,

dependendo da forma como o professor propõe trazer aos alunos o

conhecimento sobre conceitos modernistas e pós-modernistas, ampliando a

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discussão sobre o campo da arte. Neste intuito foi elaborada a intervenção

pedagógica.

A intervenção foi ofertada como um curso de extensão do Arte na

Escola/FAP. O curso foi intitulado "A Obra de Hélio Leites, o Ensino da Arte e

a Estética do Cotidiano”.

O público alvo eram os professores de arte da rede pública do estado,

mas foi aberto à participação de pessoas de outras áreas devido ao interesse

que despertou nas colegas da escola. Sua divulgação ocorreu pelo setor de

comunicação da FAP, pela mala direta com professores do Estado via e-mail,

por cartazes afixados e contatos pessoais. Participaram quatro professoras e

um professor de Arte, uma professora de Ciências, uma professora de Língua

Portuguesa e uma pedagoga da escola. Também esteve presente ao curso o

filho da professora de Ciências, que acompanhou atentamente todo o curso.

O conteúdo programático foi dividido em agrupamentos a serem

ministrados em cinco encontros. Primeiro: apresentação do curso, dos

participantes; levantamento de dados referentes à prática pedagógica dos

professores. Aportes conceituais da obra de Hélio Leites. Segundo: o artista e

sua localização no campo da arte. Terceiro: encontro com o artista. Quarto:

debate sobre o encontro anterior e as possibilidades da inserção do conteúdo

em sala de aula. Quinto: o ensino da arte e a questão da estética do cotidiano;

avaliação do curso.

O curso aconteceu durante o mês de outubro, nas frias noites

curitibanas.

No primeiro encontro pedi, em especial, ao professor e às professoras

da área de Arte, que respondessem a um pequeno questionário sobre os

conteúdos mais presentes em seus planejamentos e que neste momento serve

para estas reflexões3 no que se refere ao campo das artes visuais. Com base

nestas perguntas iniciamos uma discussão sobre nossa formação acadêmica e

se as professoras e o professor estavam reproduzindo com seus alunos o

mesmo conteúdo que haviam aprendido na universidade.

Percebemos que tínhamos alguns pontos em comum em relação ao

ensino da arte universal, ou seja, a base de todos nós tinha sido praticamente a

3 O questionário se encontra em poder da pesquisadora.

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mesma e este conteúdo, principalmente, era o repassado aos alunos. Nas

escolhas de artistas e imagens estudados em sala de aula, concluímos que o

conteúdo estava voltado principalmente para a arte produzida na Europa e a

arte branca norte-americana. Acabamos por reiterar o que Richter (2003, p.24)

já havia apontado: “A tendência do ensino das artes visuais, ainda hoje, é

reproduzir conceitos modernistas de arte largamente aceitos nos meios

acadêmicos.” Contribuímos para a formação de uma cultura onde prevalece a

arte europeia, “o que se conhece é o que se ensina e o que se gosta”

(BUCHMANN, 2004).

Como foi citado anteriormente, ainda contribui para isso o material que

se tem à disposição, publicações cujo conteúdo é principalmente eurocêntrico,

valorizando os elementos culturais representados por artistas consagrados

falecidos, exibidos em grandes museus no continente europeu, enquanto que

há poucos referentes à cultura local, em especial aos que não estão inseridos

no meio acadêmico. Assim descreve Richter (2003 p19):

No que diz respeito à cultura local, pode-se constatar que quase sempre apenas o nível erudito dessa cultura é admitido na escola (Tarsila, Portinari etc.). As culturas de classes sociais economicamente desfavorecidas continuam a ser ignoradas pelas instituições educacionais, mesmo pelos que estão envolvidos na educação dessas classes.

Desta forma a ação pedagógica reproduz, de forma simultânea, valores

culturais e sociais (STIVAL E FORTUNATO, 2012). Acabamos por transmitir o

discurso ideológico da classe dominante em detrimento de uma diversidade

cultural existente em nosso país. Por um lado é importante que o professor leve

ao aluno o conhecimento da arte universal, porém não à custa da cultura local,

pois

as operações de arte tradicionais ou contemporâneas precisam permanecer no ensino da arte, mas não podem ser ensinadas ingenuamente As diferenças precisam ser contrastadas para mostrar que a arte sempre possibilitou a comunicação entre os homens,

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comunicação inclusive dos discursos ideológicos. (BUCHMANN, 2007, p.224).

À medida que cada colega professor (as), aluno (as) do curso, relatava

sua prática pedagógica, várias perguntas eram feitas: o que nossas práticas

significam? Estamos nos questionando sobre o conteúdo apresentado em sala

de aula? Conseguimos perceber como foi nossa formação acadêmica? Afinal

há autonomia na prática educativa, tanto na formação dos professores como na

formação dos educandos? Também trouxemos para a reflexão o contexto no

qual o indivíduo se insere e as influências do meio. Qual o significado cultural

dos objetos de arte? O que é valor estético? Essas perguntas foram o ponto de

partida para a ponderação das professoras e do professor, pois como alega

Paulo Freire (1992, p.79): “qualquer que seja a qualidade da prática educativa,

autoritária ou democrática, ela é sempre diretiva.”

Também neste primeiro encontro iniciei a apresentação de textos e

imagens sobre o material de pesquisa referente a Hélio Leites, conforme

exposto na unidade didática. Cada um (a) relatou se já conhecia ou não o

artista e quem o conhecia citou de que maneira tinham feito esse contato . A

professora de Ciências veio aos encontros acompanhada pelo filho Mateus, de

8 anos. Sua participação foi ativa, pois fazia perguntas sobre os assuntos

apresentados, relatava suas experiências em sala de aula e opinava sobre o

que era apresentado e discutido pelas professoras e professores.

Para apresentar o artista às pessoas que não o conheciam foi exibido

um vídeo intitulado “O Que é Tristeza Para Você”, documentário realizado pelo

Coletivo Centro e Vitrine Filmes4.

Muitas perguntas foram lançadas e esta foi uma característica

metodológica escolhida na orientação para o curso: a mediação pedagógica,

observando a realidade, movendo a reflexão, valorizando as experiências

pessoais e a bagagem cultural de cada indivíduo. Assim, às professoras e ao

professor na medida em que o trabalho de Hélio Leites era apresentado, como

por exemplo, a figura do artista e qual a sua função na sociedade, as questões

4 O vídeo esta disponível em: http://www.oqueetristezapravoce.com.br/

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e a reflexão sobre o que se sabia e o que vinha sendo descoberto era

apresentado ao grupo, gerando novas indagações.

Ao final do primeiro encontro entreguei ao/às participantes cinco textos5

para leitura como atividade extraclasse.

No segundo encontro continuamos a apresentar o trabalho de Hélio e

abordamos sua localização no campo da arte.

Para Hélio Leites sua função é quebrar com os paradigmas vigentes e,

para isso, vai com seus trabalhos onde as pessoas estão apresentando suas

miniaturas e contando suas histórias. Seu objetivo é aproximar, por meio do

lúdico, o pensamento das pessoas, suas reflexões sobre o dia a dia,

resgatando suas memórias de objetos que aparentemente não possuem mais

significado6.

Pela diversidade de materiais e formas que desenvolve sua poética, o

trabalho de Hélio permitiu falar sobre muitos assuntos como, por exemplo,

memória e patrimônio cultural. No Museu Casa do Botão que, na verdade, é

um tipo de roupa (segmenta) onde esta fixada uma coleção de objetos de

diferentes pessoas e classificados pelo artista pela sua “utilidade”, foi possível

questionar sobre o museu, qual a sua finalidade, o que é uma coleção, como

preservamos nossa memória.

Além deste tema outras indagações foram abordadas, tais como a

miniaturização, os materiais utilizados, a estética do cotidiano, os símbolos

paranistas, qual a percepção que temos da arte que esta à nossa volta, as

brincadeiras com as palavras, os campos da arte, a arte contemporânea.

5 Os textos são os seguintes: BARBOSA, Ana Mae. A Multiculturalidade na educação estética. Caderno Temático de Formação. Leitura do mundo, letramento e alfabetização: diversidade cultural, etnia, gênero e sexualidade. São Paulo, Secretaria Municipal da Educação, 2003. DELL VECCHIO, Annalice. Significador de insignificâncias. Jornal Gazeta do Povo. Curitiba. Publicado em 27/04/2011. Disponível em: <HTTP://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/. Acesso em 03-05-2011. GEERTZ, Cliford. O Saber Social. 7 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. p.142 a 181. RICHTER, Ivone Mendes. A Pluralidade Cultural e o ensino de arte. In: CORRÊA, Ayrton Dutra (org.). Ensino de artes: múltiplos olhares. Ijuí, RS: Ed. Unijuí,2004. P. 141 a 169. RIVITTI, Thaís. A Erudição do popular. Revista Raiz. Erudito x Popular. São Paulo, v.6,. Set/Out. 2006. p. 28 a 31.6 No dia da apresentação do artista aos (às) professores (as) /alunos (as) do curso em discussão neste artigo, filmado pela pesquisadora/professora PDE, Hélio mencionou que seu serviço é consertar o mundo construindo pontes mentais entre as pessoas. O vídeo se encontra em posse da pesquisadora.

16

Para compreender melhor as mudanças ocorridas no campo da arte e

como o trabalho do artista se insere na contemporaneidade foi feito um breve

retrospecto sobre as modificações que aconteceram no final do século XIX e

início do século XX.

Como algumas professoras não estavam familiarizadas com o conteúdo

específico em artes visuais e este conhecimento sempre é expressão de

pertença de certo grupo, fiz um breve retrospecto sobre a arte acadêmica e a

ruptura ocorrida a partir do movimento impressionista.

Entre os movimentos artísticos foram apresentados com maior ênfase o

Dadaísmo e a Pop Art.

O objetivo ao rever alguns movimentos da história da arte era discutir os

limites do campo da arte e perceber que a polêmica esta presente no incio do

sédulo XX no movimento dadaísta. A discussão, no entanto, ainda não se

extinguiu como também se faz presente no ensino da arte, como visto

anteriormente.

Ao final deste encontro pedi às professoras e ao professor para que

convidassem alunos e amigos para a próxima reunião, pois Hélio Leites viria

realizar uma performance. Convidei também por meio da Internet e fixei

cartazes na escola.

Na noite do terceiro encontro havia cerca de vinte pessoas, entre

professores (as) e seus familiares, alunos de outra escola e colegas de área.

Ocupamos uma das salas de aula da escola.

Hélio chegou com sua maleta e começou a preparar-se. Colocou no

quadro negro um painel de tecido feito por uma amiga, um retrato em

homenagem ao artista. Foi dispondo pelo quadro negro e em na mesa suas

obras. As cadeiras estavam em semicírculo. Hélio esperou as pessoas se

acomodarem para iniciar a performance. Iniciou contando sua história, como

começou a fazer as miniaturas. Para cada obra uma história ou uma história

para cada obra. O artista sempre mostra seu trabalho de uma forma inusitada,

brincando com as palavras, fazendo trocadilhos. Impossível não se divertir com

ele. As miniaturas estão em suas mãos e para que as pessoas percebam os

detalhes Hélio se aproxima do público. Enquanto Hélio se apresentava

17

Mateus, muito atento, fazia perguntas desconcertantes ao artista, tornando a

performance ainda mais instigante. Impossível não se encantar com seu

trabalho. Ali ficamos, por mais de uma hora, envolvidos (as) com suas criações.

Foi um momento único, principalmente para as pessoas que ainda não

conheciam seu trabalho. Ao final Hélio atendeu pacientemente a todos,

mostrando os detalhes de cada peça. Essa situação poderia ser comparada ao

da presença das Musas no Museion, onde memoravam as historias de seu pai,

Zeus aos assistentes (SHAER, 2002), momentos de aprendizado e prazer:

porque não dizer que todos nos divertimos enquanto recebíamos o trabalho do

artista?

No quarto encontro professor e professoras comentaram sobre a

apresentação de Hélio. As docentes que não o conheciam ficaram surpresas

com a riqueza de detalhes, as histórias, a performance. Foi uma descoberta

sobre a poética (e uma redescoberta para aqueles (as) que o conheciam). No

relato das professoras que não eram da área de Arte ficou perceptível como o

encontro com o artista foi significativo, pois ao terem o contato, aconteceu a

interação entre público, obra e artista, sendo permitido o manuseio, a

descoberta de um brinquedo. Para as professoras que conheciam arte e Hélio

Leites, o encontro teve a virtude de revisão de conceitos também pela emoção.

Também relembramos o segundo encontro ao retomar o estudo dos

pressupostos históricos, em especial sobre a arte brasileira e o momento em

que surgiu Hélio Leites no circuito paranaense, na década de 80. As

professoras e o professor de arte teciam comentários e relatavam experiências

em sala de aula. Mas quem mais participava com relatos era Mateus contando,

a partir de sua percepção ingênua e tão bonita sobre a arte e as experiências

que viveu na escola . Para o último encontro propus ao/às colegas que

trouxessem material de alguma atividade realizada com alunos ou

compartilhassem um relato sobre um momento que marcou sua prática.

No último encontro retornamos à discussão inicial, relembrando o que

havíamos discutido: formação acadêmica, conteúdos aprendidos, práticas de

sala de aula, questões ideológicas e o cotidiano escolar. E perguntei: o que são

nossas escolas, em especial a escola pública? Como são nossos alunos?

Essas indagações geraram muita discussão entre o grupo. Cada um (a) relatou

18

sua percepção da realidade e o desafio da convivência respeitando as

diferenças dentro do ambiente escolar. Refletimos sobre a afirmação de Ana

Mae (2003, p.21): “na escola pública, se inter-relacionam indivíduos de

diferentes grupos culturais que terão sempre que lidar com outros indivíduos

também de diferentes culturas e subculturas”.

O tema gerou uma reflexão sobre a contemporaneidade e o

entendimento da arte na cultura, pois sendo a primeira um produto da segunda,

a arte deve ser vista dentro de um contexto, compreendendo que os (as)

alunos (as) trazem valores culturais que compõe o pluralismo presente na

escola. Cabe ao (às) professores (as) realizarem a intermediação entre a

herança cultural dos (as) alunos (as) e o conhecimento universal propondo uma

leitura crítica que amplie o campo da arte, pois, numa sociedade que apresenta

expressões de múltiplas culturas, é importante “que os jovens tenham o

conhecimento, atitudes e habilidades de pesquisa e interpretação que lhes

permitam de forma eficiente encontrar seu próprio caminho em meio a tanta

diversidade.” (Chalmers, 2003, p.15)

Para refletir sobre a diversidade cultural apresentei algumas

ponderações de Ivone Richter, autora do livro Interculturalidade e Estética do

Cotidiano no Ensino das Artes Visuais, presente na biblioteca do professor em

todo o estado do Paraná e desconhecido pela grande maioria dos colegas. A

estética do cotidiano esta presente na relação que o sujeito estabelece com os

objetos do dia-a-dia, apropriando-os e transformando-os (RICHTER, 2003). A

pesquisadora levou para a escola o trabalho de familiares das alunas que

desenvolviam um “fazer especial”, ou seja, um trabalho com intenção estética.

A partir desses fazeres Richter desenvolveu com os (as) alunos (as) debates e

atividades relacionadas com a estética do cotidiano e a arte. Para a autora

“trabalhar com a estética do cotidiano no ensino das artes visuais supõe

ampliar o conceito de arte, de um sentido mais restrito e excludente, para um

sentido mais amplo, de experiência estética” (idem, p.24).

As professoras e o professor fizeram relatos sobre a diversidade que se

encontra em sala de aula em termos de questões culturais e estéticas, como,

por exemplo, a preferência por este ou aquele gênero de música ou outros

tipos de manifestação artística Este é sem dúvida um grande desafio do (a)

19

professor (a) em como lidar com situações. Questões que abrangem a

subjetividade, as histórias de vida e formações, que são evitadas pelos

docentes pelo desconforto que podem gerar com as discussões pessoais e

paralelas, sem chegar a um denominador comum e fugindo muitas vezes dos

temas propostos. Coisa como falar de grupos e chegar às torcidas de futebol e

consequentemente, às rixas.

Como tinha pedido no encontro anterior, uma das professoras trouxe

para mostrar ao grupo uma atividade realizada com estudantes do ensino

médio: a proposta consistiu no registro da história pessoal de cada um dos

alunos realizando uma colagem. Foram utilizados fios e linhas coloridas junto a

imagens e textos com os quais cada um expressou momentos que marcaram

suas vidas. Cada linha referia-se a um tema (família, escola, amigos, entre

outros), sendo que junto à linha eram coladas imagens e/ou textos de

momentos importantes formando, preferencialmente, uma espiral para dar a

idéia de historia. A proposta despertou o interesse das professoras e professor

pela possibilidade do (a) aluno (a) contar e compartilhar momentos de sua vida

com colegas e professor (a). Como podemos ver, trata-se da expressão de

memórias, sentimentos e ideias que esta além das palavras e diretamente

ligada à vida dos (as) educandos (as), coisa que raramente é possível

acontecer no espaço escolar mas que, na disciplina arte tem um sentido

diferenciado pelo ingrediente subjetivo.

Para finalizar a apresentação trouxe ao (às) professor (as) uma reflexão

de Eisner (2008):

“[...] as diferentes formas de pensar, precisas para criar trabalhos manuais artísticos, não são apenas relevantes para o que os estudantes fazem. Eles são virtualmente relevantes para todos os aspectos que fazemos, desde o projecto do currículo, à prática de ensinar, às características em que os estudantes e os professores vivem.”

Muitas vezes, na correria das atividades escolares, esquecemos que a

arte não é importante apenas para o (a) educando (a), mas para o (a) professor

20

(a) também. Preterimos, em muitos momentos, os ensinamentos da vida

acadêmica que nos habilitou como professoras e professores de arte para

valorizar o sensível, o poético, aquilo que infelizmente, a prática pedagógica

nos retira, o ser artista/professora(r). Também não prestamos atenção às lições

que aprendemos com os (as) alunos (as). É no questionamento e na

inquietação, na busca de outro olhar que podemos descobrir novas formas

para um ensino da arte que seja comprometido com a melhoria de qualidade

da escola pública.

Para encerrar pedi às colegas e ao colega que fizessem uma avaliação

do curso, quais os pontos positivos e negativos e possibilidades de

transformação de suas práticas, como disse Hélio, uma transtornação de seus

planejamentos a partir do que havíamos estudado o que foi relatado por

escrito7 e oralmente. Os comentários foram positivos, tanto por parte das

professoras e professor de arte como pelas colegas de outras áreas. As

sugestões apresentadas contribuíram para realizar ajustes necessários ao

trabalho.

GRUPO DE TRABALHO EM REDE – GTR

Outra atividade obrigatória do PDE é o GTR – Grupo de Trabalho em

Rede, na qual o (a) professor (a) PDE socializa sua produção com os (as)

colegas da Rede de Ensino Estadual. Através de uma plataforma no ambiente

virtual ministrei o curso, A Obra de Hélio Leites, que aconteceu no mês de

outubro. Inscreveram-se para o curso 15 professoras, sendo que 14 concluíram

o mesmo.

O objetivo do curso foi o debate e a reflexão e sobre o material didático

elaborado para a intervenção pedagógica, avaliando quais os pontos positivos

e negativos do mesmo, o potencial pedagógico e relatos de experiências em

sala de aula.

As atividades eram divididas entre individuais e coletivas, sendo que,

como tutora, fazia a mediação das atividades propostas e dos debates.

7 Os relatos escritos estão com a pesquisadora.

21

A participação das professoras foi positiva, fazendo críticas construtivas,

apresentando sugestões, debatendo nos fóruns e compartilhando

planejamentos de suas aulas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não pensei que seria tão difícil terminar este artigo. Não pelo trabalho

que exige, mas pela saudade que me toma conta de tudo que vivi durante

estes dois anos: o retorno ao meio acadêmico, o estudo e a pesquisa, as trocas

entre as (os) colegas, os debates, a participação do grupo de estudos do Arte

na Escola, os encontros de orientação, a construção do conhecimento unindo

teoria e prática, da minha prática, o dia-a-dia da escola, da minha escola. Iniciei

tendo uma idéia sobre meu tema de estudo e, no transcorrer da caminhada foi

notando que mudanças estavam acontecendo.

Ouvi muitas (os) colegas desta jornada do PDE dizerem no último

encontro: “que bom, esta terminado” e eu respondi: que pena, não quero que

acabe. Não quero que acabe este entusiasmo, esta descoberta, esta

reflexão,este compartilhar de ideias, estas trocas tão produtivas, essa busca

por novos conhecimentos, esta outra forma de perceber minha formação e de

como estou agora.

Levo desta jornada muitas lições. Pude olhar para minha formação

acadêmica e avaliar de que forma ela ocorreu e o que havia em comum com

meus colegas: o predomínio do conhecimento da arte universal e a

reprodutibilidade de conteúdos que levei para a prática em sala de aula.

Foi o correto e o possível naquele momento, pois era o conhecimento

acadêmico validado e o mais acessível. Ao desenvolver meu projeto sobre o

trabalho de um artista local, Hélio Leites, pude refletir sobre este fato e como,

sem perceber, acabei por reiterar os valores da classe dominante, os quais se

tornam legítimos e naturais por parte dos dominados, como afirmado por

Chartier (2011).

Também foi importante refletir sobre divisão no campo da arte entre

erudito e popular. Apesar das discussões sobre este tema na pós-

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modernidade, o recorte se encontra presente tanto no campo da arte como do

ensino, pois envolve relações de poder. Essas relações devem ser

constantemente refletidas nas escolhas do conteúdo apresentado em sala de

aula, pois a arte não deve servir para reforçar o marco divisório entre classes

sociais. O ensino da arte deve promover uma ampliação do conceito da arte

para uma visão mais ampla da experiência estética (RICHTER, 2003). A arte

não se restringe ao espaço de museus e galerias, mas esta intimamente

conectada com a vida e deve estar ao alcance da sociedade para seu

aprimoramento, reflexão e sensibilização.

A conexão entre arte e vida é discutida por Ivone Richter num trabalho

de reflexão e pesquisa sobre a estética feminina. A autora relata sua

“experiência de educação intercultural no ensino das artes visuais” (Richter,

2003).

Seu trabalho fez com que refletisse sobre o meu objeto de estudo – a

obra de Hélio Leites como meio para a discussão sobre a cultura local e seu

contexto possibilitando o questionamento sobre a diversidade dos valores

estéticos e culturais presentes na escola.

Além desta leitura também revi conceitos a partir de Hernández, Efland,

Bordieu, Chartier, Freire, Buchmann, Barbosa, Schlichta, entre outros que

proporcionaram questionamentos sobre o ensino da arte e cultura.

Todas estas reflexões compartilhei no curso de extensão e no GTR,

trocando informações e experiências, debatendo com colegas da área de arte e

de outras disciplinas. Foi muito positivo. As observações das (dos) professoras

(es) foram importantes para verificar os objetivos atingidos. Os relatos

demonstraram, muitas vezes, angústias vividas e como cada um (a) buscou

soluções para as dificuldades em sala de aula. Um momento de encontro de

profissionais da mesma área nos faz sentir menos sós em meio a tantas

barreiras e mostra que existem formas diversas para superar os problemas do

cotidiano escolar.

Em relação á implementação esperava que mais professoras e

professores participassem do curso, mas acredito que o fato de não acontecer

em uma escola central dificultou o acesso para muitas (os) interessados. Outro

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fator seria a época do ano – outubro, reta final do ano letivo, momento de muito

trabalho e muitos têm outros compromissos assumidos anteriormente. Tirando

estes fatores acredito que os objetivos foram alcançados. Foi gratificante e

desafiador ministrar um curso para docentes.

Tenho que destacar a participação de Mateus, presente nos encontros e

que participava de forma muito dinâmica contanto suas experiências nas aulas

de arte, fazendo perguntas, dando sua opinião, enfim, trazendo o olhar, o

pensamento e a pura emoção de criança para nossas discussões.

Outro fato positivo foi a participação no curso da pedagoga da escola e

das professoras de outras áreas. No último encontro Neusa Stremel afirmou

que a partir do curso passou a ter outra percepção sobre a arte e de sua

importância no currículo escolar diferenciada.

Quanto às colegas e ao colega da área de arte recebi comentários muito

positivos e que o tema trouxe contribuições para refletir sobre a prática, assim

como ampliar o conceito de arte e uma melhor percepção sobre a diversidade

cultural presente na escola.

Devo salientar a presença do meu orientador, professor Luciano

Buchmann, que auxiliou constantemente em todas as etapas da formação

continuada, sempre disponível, valorizando cada objetivo alcançado. Sua

dedicação, cuidado e respeito demonstram o verdadeiro significado desta

profissão ainda tão desprestigiada neste país.

Para mim foi um grande desafio todo o percurso e, embora soubesse

das etapas do programa a serem cumpridas, foi muito gratificante o que vim a

desvelar em meu caminho. O conteúdo já estava em mente, a preocupação em

levar o conhecimento da cultura local já existia, mas o aporte teórico trouxe a

certeza do caminho a ser seguido. O estudo de vários autores que discutem as

questões do ensino da arte e da cultura na contemporaneidade permitiu a

reflexão sobre temas como a diversidade, a estética do cotidiano e a

responsabilidade em produzir um ensino comprometido com a transformação

do ser humano.

Essa transformação, porém, não começa no outro, mas em nós

mesmos, no questionamento das práticas, no modo de ver a arte, na

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percepção dos nossos preconceitos, nas reflexões que nos surgem em

momentos de lazer, como por exemplo, numa feira de artesanato, em pleno

domingo: como posso apresentar a meus alunos toda essa riqueza cultural?

Como fazê-los descobrir a obra de Hélio Leites?

E não se trata apenas de uma transformação, mas de uma

transtornação, tomando o título de meu artigo da palavra que Hélio usa em seu

trabalho, pois perturba, altera, reordena forma e conteúdo, muda a forma de

pensar sobre o ensino da arte, a arte e a vida.

Referências

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