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O ESCAFANDRISTA E A BAILARINA Antonio Caetano

o Escafandrista e a Bailarina

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Um texto teatral de Antonio Caetano (www.cafeimpresso.com.br). Leitura livre.

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O ESCAFANDRISTAE A BAILARINA

Antonio Caetano

"O homem só tem duas missões importantes: amar e escrever à máquina.Escrever com dois dedos e amar com a vida inteira".Antonio Maria

Um palco. Escuridão e silêncio.

À esquerda, ao fundo, duas escadas em espiral sobem entrelaçadas.

No lado oposto, uma tela de cinema corta, oblíqua, o palco.

Em primeiro plano, à esquerda, uma cama de casal - branca, hospitalar, de ferro batido.

No centro, uma escrivaninha e sua cadeira. Há ainda uma bergère alta, um cabideiro de

roupas, livros, papéis, a máquina de escrever. Fora do palco, no ângulo oposto à tela, um

projetor de cinema cuja luz passará sobre a cama. Uma rampa estreita acompanha a

trajetória da luz até a tela.

A luz do projetor se acende e exibe na tela o corpo nu de uma mulher que dança para os

olhos de uma câmera atenta, minuciosa, apaixonada. Na cama, dois corpos estão

inteiramente cobertos por lençóis. Ouve-se o som de uma caixinha de música.

Um dos corpos se ergue. É um homem, e ele olha a tela com encanto. Vê a luz e quer

tocá-la. Ao fazê-lo, seus dedos se projetam sobre a tela e, de tão grandes, quase tomam

a imagem da mulher que dança. Ele deixa-se ficar assim, acariciando a imagem com a

sombra imensa de seus dedos.

Um coro de vozes repete duas ou três vezes: "Ela é a luz, você não vê?". Mas ele parece

não ouvir.

Então, ele se levanta e caminha pela rampa em direção à imagem. Ele está nu e a

sombra de seu corpo quase toma a tela. Mas, à medida que avança, sua sombra diminui

até sumir, quando ele se encosta à tela, esfregando seu corpo contra a imagem da mulher

imensa. Os movimentos, sensuais de início, vão se tornando mais nervosos, angustiados,

até que de repente ele se volta para a luz num movimento súbito e imediatamente cobre

os olhos com o braço.

O coro de vozes grita duas ou três vezes, em sincronia com seu gesto:

− Cego!

Em seguida, a luz do projetor se apaga e, na escuridão, ouve-se tocar um despertador e o

outro corpo se põe sentado sobre a cama, desperto. É um homem e acaricia a cama onde

antes havia o outro corpo.

Então, finalmente, Ele se levanta. Veste apenas uma calça de pijama branca listrada de

azul. Espreguiça-se. Caminha até o limiar dos bastidores e pára. Outro homem o encara,

vestido com um dândi. Os dois se olham com interesse, mas apenas Ele, o do pijama, faz

os gestos característicos de alguém que se prepara no espelho de manhã.

Imóvel, o Outro, o dândi, declama:

− “Ele - sempre elE

Sob a máscara do espelho.

Rever - dia-a-dia, reveR

Esse estranho essE,

Feito de sonho,

Que só meus olhos não vêem"

O dândi volta-se e diz, depois de uma pausa teatral:

− Os versos são d'Ele e Esse sou eu...

Mas Eu sou Ele e Ele sou Eu.

Só que eu, vivo solto no tempo e ele, confinado no espaço.

É dessa confusão que falam os versos...

Mas na verdade somos um.

Mesmo que só às vezes a gente coincida,

E quase sempre se interrogue com estranheza.

Ele, o do pijama, encerrou a mímica mecânica de todo dia e caminha pela casa, roendo

um pão, beliscando um biscoito, enquanto lê uns papéis que pegou na escrivaninha. Os

dois, Ele e o Outro, se cruzam, às vezes.

Então o Outro fala:

− Nunca antes estivemos tão distantes... Mágoa de amor, ele diz. Ressentimento, ele

pensa. Mas, no fundo, é aquela dor, a genuína e incomunicável dor, sem causa nem

ofício, e que encontrou n'Ela objeto e pretexto. E assim, a dor se adia, na ilusão de que só

a vingança a aliviaria. E, de adiar-se, na vingança vive a dor, feito uma azia, mal-estar que

se atribui à boêmia. Dessa tolice também são feitos versos. Genuínos versos

insabidamente falsos. E é desses que ele espera mais sucesso. O sucesso que ele

imagina ser a melhor vingança.

Neste momento, entram em cena as Fantasias. Lassas e marciais, sumárias na nudez,

expressivas como clichês. Elas o cercam e seduzem, vestindo-o de chapéu-coco, bengala

e charuto, enquanto outras o adulam com papéis e contratos que ele rejeita com gestos

de desdém. E então Ela surge. Vem quase nua, sob o vestido de seda esvoaçante.

Ela corre para os braços d'Ele, mas esbarra no imóvel desprezo que a aguarda. Então

como que desfalece indefesa e só não cai porque Ele a toma pela cintura e a ergue de

volta num abraço que é já o primeiro passo de uma dança, valsa clássica que se dissolve

num tango um tanto erótico, um tanto ingênuo. Mas quando chega a hora do beijo, Ele a

empurra e Ela cai nos braços das Fantasias que a arrastam para fora.

O Outro retoma sua fala:

- Seria ridículo, se não fosse tão humano... Seria mais humano, se não fosse tão

mesquinho. Mas prestem atenção, apesar de tudo, é o Amor que o move. O Amor e

todos os sentimentos que dele emanam e nele se embaraçam.

O Outro dá de ombros e senta-se na bergère para assistir Ele, o do pijama, já envolvido

em seu trabalho diário de escrever. De novo fala à platéia:

− Ele é um delirante. E ainda que vocês o vejam como personagem e lhe exijam apenas

um pouco dessa ficção chamada realismo, não lhes custará reconhecer que na intimidade

somos todos um pouco loucos. Isso quando não o tramamos em silêncio. Ele agora se

dedica a escrever um especial para TV, baseado num conto de Machado de Assis. A

história é ótima: um maestro de subúrbio quer compor uma música em memória da

esposa morta ainda nova. O projeto era mais ambicioso, mas se reduziu com o tempo a

uma música, uma única música, que ele vai dedilhando no piano ao longo da vida,

sempre inacabada. Até que um dia, a negra lavadeira do vizinho a assovia, pronta, inteira!

"Era o que eu queria", ele pensa, mais com inveja do que com surpresa. Meses depois, o

maestro morre. "O homem não reconhece o dado", seria essa a filosofia?

Quanto a Ele, já lhe bastaria saber contar essa história ou qualquer outra. Mas quando

Ele se senta nesta máquina de costurar sonhos, o que lhe saem são poemas em vez de

histórias.

O Outro se levanta, pega na escrivaninha uma folha e lê:

− “Duas vezes decaído,

Primeiro como anjo,

Depois como demônio,

Ele já não diz mais: "Eu me recuso",

Mas apenas: "Eu não mereço".

"O que pode haver para além das trevas?"

Ele se interroga.

"A origem do fogo?"

"O céu de novo?"

(Pois, apesar de tudo, ele ainda ousa...)”

Ele acaba de ler, coloca o papel no lugar e diz:

− Não acho ruim...

Ele responde:

− Pois eu preferiria contar histórias grandiosas, tramas cheias de meandros, e não

apenas fazer versos que se alongam às vezes só pelo prazer de se esticar...

− E daí?

− Essa pergunta só podia vir da alma...

Ele levanta-se e se serve de uma bebida. Depois, vira-se para a platéia e diz:

− Devo alertá-los de que se trata de uma tentativa de diálogo entre um bêbado e sua

alma. Friso o bêbado apenas para marcar o caráter alegórico do diálogo, que talvez, em

condições normais, se daria sozinho no banheiro ou num transe desses que a gente vive

quando está no trânsito, entre a casa e o escritório. Portanto, trata-se de um diálogo

realista, no sentido que poderia acontecer a qualquer um a partir de certo grau de solidão,

de devaneio ou de uísque, acessíveis todos a qualquer cidadão que se disponha a tanto,

seja pelo amor profundo à verdade, seja pelo gozo irreprimível da experiência de estar um

pouco doido. Obviamente um médico classificaria tal diálogo como delírio. Impossível

negá-lo. Mas repito, friso, destaco, assinalo: acessível a qualquer um. E tendo feito esta

ressalva, retorno ao diálogo, ou melhor, monólogo, com a minha alma.

A luz se apaga e o projetor se acende. Lá está o homem nu, de olhos cobertos pelo

braço. O coro fala em nome dele:

− Com meus dedos de sombra, pensei acariciar o sonho.

E, com a avidez do gozo, quis enlaçá-lo.

Ilusão sobre ilusão,

O resultado é a escuridão

Que agora me consome.

Cego (sem ego?) - o que serei:

Édipo ou Prometeu,

Errante ou acorrentado?

Sou luz? Sou pedra?

Falta-me vida

Ou será que tudo se passa aqui, dentro,

No escuro dos olhos, sob a luminosidade dos sonhos?

Uma voz feminina responde:

- Por que a dor, se antes nunca te havias visto?

Não tomes isto por escuro,

Nem ergas um muro onde não há nada.

Fui eu quem te cerrou os olhos,

Para que o Mundo coubesse em tuas mãos,

E o tempo te aparecesse infinito.

O projetor se apaga. Ele está no centro do palco, bêbado.

− Beber... Sonhar... Talvez dormir...

Enfim, que diferença faz, beber ou não beber, se Deus não existir? E mesmo que Ele

exista, a dor será sempre isto: perversa ilusão, gozo inverso de sentidos exaustos do

comum. Falsa dor - e, no entanto, mais genuína do que o amor, porque incomunicável.

Mas, falsa. Falsa sensação que substitui o vazio pela falta - a irremediável nostalgia

líquida do útero - que só na morte encontrará termo. Mas - e se nem na morte? Esse o

temor que me agarra à vida: o temor de tornar eterno não o sofrimento, mas a falta.

Beber... Sonhar... Talvez dormir... Morrer e talvez acordar...

Ele volta para a máquina. Senta-se, de costas para a platéia.

O Outro fala para a platéia:

− O que sucede é que ele pensa ter perdido aquela a quem chamava de “amor”. E não há

solidão ressentida que não tenha um tom patético. Ele pensa que a perdeu e a quer de

novo. Mas, no fundo, sabe que a perderá de novo se não se tornar outro. Se não começar

de novo, do ovo, do zero, Ivo viu a vulva, bê-á-bá do amor. E nem é que saiba, apenas

sente, confusamente, como todo mundo. Só que acontece d’Ele ser escritor e querer

sempre colocar tudo em palavras, coitado. É só isso, e esta minha fala é para pedir muita

paciência para o monólogo que vem a seguir, e que quer certamente mais comover do

que instruir.

Ele está sentado de costas para a platéia. Sua voz ressoa em off:

− Queria poder te falar... Queria te dizer, mas não saberia. Como sempre, eu mergulharia

num fluxo incessante de palavras construindo justificativas que iriam aos poucos se

decompondo em acusações, quando, no fundo, tudo o que eu gostaria de dizer seria

simplesmente: perdão. Mas eu não diria. Porque te ver ou ouvir tua voz me leva de volta

ao vasto deserto onde o desejo se mistura com a dúvida e isso me torna violento em vez

de terno, e isso me devasta e me consome em silêncios que são de pedra em vez de

seda; e então eu te comeria, voraz feito fera que um dia devora o tratador, com o mesmo

vigor redobrado pelo rancor de saber que só a jaula permanece, que só estas grades me

pertencem, e que por mais que eu te foda, seja eu fêmea, seja eu fera, nunca te saberia

sonegar o prazer que está em ti, que sabe se dar, e não em mim, que só sei mentir.

E fingir. E me recontar, tigre de papel e letras, escravo deste tear onde me recrio a selva

que não vi, para esquecer o exíguo espaço do cativeiro em que nasci. Só conheço a jaula,

mas sonho, sonho conquistar o mundo, quando o mundo que vi é cativo destes olhos de

escravo. Derramei sobre o mundo minha miséria: fosse Paris, Nova York, Atenas, fosse

onde fosse, era sempre eu e sempre lá, a jaula. E hoje se me recordo, não sei sequer se

sou este que pensa ou se sou o que sonha. Não distingo. Onde estive, enfim, se nunca

saí de mim? Em ti - mas logo em ti? Talvez você seja outra coisa: meu mais genuíno

enigma. Mão estendida entre as grades, raio de luz que me atravessava a cela. E como te

odiei por isso, por me lembrar que eu era um homem! Não, eu não saberia te dizer nem

perdão nem eu te amo. Porque é tarde já. Porque eu quero sempre que seja tarde.

Porque eu quero sempre que o que reste seja isso: a vastidão do sonho em que me

engendro sombrias selvas, mas, sozinho, sempre. Porque prefiro a punheta ao amor. Ou

o simulacro das noites únicas: "Never more", crocita o corvo que vive em mim como um

segundo corpo. Não, nosso diálogo seria exatamente isso: eu te ludibriando com

palavras, te enganando com sonoridades que eu mesmo creio tão sinceras, pra ver brilhar

esses teus olhos, verdes de tão meus, e te fazer esquecer que “baby, te amo, nem sei se

te amo”. Não, eu não saberia te dizer. Prefiro te invocar mais uma vez, “Evoé, Eva”. Mais

uma vez te materializar com minha voz, te fazer da mesma matéria de que são feitos os

sonhos, para te trazer quase ao alcance da minha boca e te dizer. ”Não”. Te invocar e

mais uma vez travar com tua imagem a irresoluta batalha das explicações, justificativas,

promessas, juras, seduções e recusas que antes só querem dizer "perdão”. O perdão que

eu secretamente te dava quando te imaginava puta em meus ciúmes, em minha inveja de

ti tão livre quanto é a vida longe da jaula. "Os culpados perdoam. Os inocentes se

vingam". Ouvi isso num filme e nunca esqueci. Mas como suportar o peso de tua

inocência se o gozo imaginário da humilhação me persegue ainda e até quando?

Imaginar que de perdão em perdão, você se tornaria minha, só minha - que você anularia

em face da óbvia gratidão. Mas logo cedo você percebeu minhas mãos de ferro sob as

luvas de pelica. Você viu a face da fraqueza sob o disfarce da bondade. E nem por isso

foi embora. Era outra coisa que prendia você a mim. Era alguma coisa de bom. Eu não

sabia dizer o quê. E tive medo.

Ele começa a bater à máquina e a voz dele em off prossegue:

− É possível escrever no escuro. Eu gosto. Sei onde estão as teclas, mesmo quando me

faltam palavras. E os vizinhos não podem reclamar. Tecnicamente eu estou dormindo.

Escrever no escuro ou de olhos fechados. Escrever no escuro e de olhos fechados.

Escuridão sobre escuridão onde eu sempre espero encontrar minha alma. E então, de

súbito, se me abstraio do barulho desta máquina, é como se fôssemos uma coisa só,

usina de sonhos que avançam num fluxo líquido e avassalador sem o conflito das letras

ferindo o branco da página, sem a insegurança do sentido, essa prisão - só a

espontaneidade mecânica da alma-máquina recortando delicadamente o silêncio até que

o tempo e o espaço sejam abolidos e então finalmente enfim possa ser de novo Ela - tão

fresca quanto no primeiro dia. Eva invocada pelo verbo, não divino, mas viril. E aí tu vens:

toda luz e voz tornada carne... Tu vens e eu sou feliz... Entre nuvens de chuva e trovões,

vinda do ventre da Natureza, Tu vens...

Ouve-se o som de uma tempestade de verão. E então. Ela entra.Com a capa de chuva e

o chapéu de Humphrey Bogart, sem as calcinhas de Sharon Stone.

- Você!? Como foi que você entrou?

- Eu ainda tenho as chaves...

- Faz quase um ano...

- Passa depressa...

- Passa?

- Sei lá... Às vezes, parece sonho, de tão longe... Outras, parece ontem...

- Comigo também é assim...

- Mas como é que você chega assim, sem avisar?

- É que eu nem pensava em vir... Na verdade, eu estava em São Paulo, tomei um avião e

vim... Mas fiquei com medo de avisar e você dizer não... Aí eu vim, sem pensar...

- É a sua especialidade...

- Você sonha comigo?

- Acordado ou dormindo?

- Tanto faz. Porque tem vezes que eu tenho a certeza que você está pensando a mesma

coisa que eu naquele momento, do outro lado do mundo. Você também sente isso, não

sente?

- Sei lá...

- Fala... Preciso saber.

- Verdade ou falsidade... É esse o jogo? Pois é, quando eu digo que não sei, eu quero

dizer que sim, que sinto; e que não, não creio... Que o falso e o verdadeiro se misturam

toda vez que penso em você... Que às vezes eu ainda acordo e acaricio a cama

pensando que você está ali, logo ao lado, e por segundos muito longos meus dedos

sentem teu corpo no vazio...

- Você ainda sonha...

Ele gira novamente a cadeira, se voltando para a máquina e se pondo de costas para Ela.

Ela se aproxima por detrás da cadeira. Ele pega o pequeno espelho que tem sobre a

mesa. Olha para ela através do espelho. Ela diz:

- Fantasmas não aparecem nos espelhos...

Ele responde para os olhos dela no espelho.

- Eu quero ver meus olhos te olhando. Eu quero ver o que meus olhos vêem quando

vêem os teus olhos. Eu quero ver para que nenhuma lágrima corra, nem minha voz

estremeça.

- Ah, isso você não pode ver...

O Outro entra em cena e fala à platéia:

− "Ela é a luz, você não vê." Quantas inflexões é possível dar a essa frase? Tantas... De

aviso, de interrogação, de lamento. Mas a ênfase deve ser sempre esta: a de que algo

sempre te escapará, dos olhos e das palavras, mas sempre estará lá, sensível, no fundo

de tudo que é motivo de êxtase ou de dor, de tudo que for flor arrancada do caos. Do

caos, única forma concebível de Deus, infinitamente livre.

Ela passa a mão no rosto dele e diz:

- Saudade de você...

- Eu posso imaginar.

Ele pega um cartão sobre a mesa e o lê:

- "Por que recorri novamente à escritura? Não é preciso, querido, fazer pergunta tão

evidente. Porque, na verdade, nada tenho para te dizer; entretanto, tuas mãos queridas

receberão este papel".

Ela sorri e diz:

- Isso é Goethe...

Ele retruca:

- E isto é você: "Nada tenho pra te dizer, a não ser que esse nada é pra você que eu digo.

Tenho tantas saudades de falar com você pelo menos pelo telefone... I love you...".

Ela avança sobre ele, querendo pegar o cartão:

- Você ainda sente raiva.

- Calma...

Ele se levanta e se serve de bebida. Ela pergunta:

- O que você está escrevendo?

- Uma adaptação para a TV das fantasias de um idiota que se imaginava genial. Alguém

que não se contenta com a felicidade de estar vivo...

- Você faz questão de parecer amargo...

- Quando você vai embora?

- Depois de amanhã... Isso é ridículo, sabia?

- Depois de amanhã?

- É. Vou para Tóquio...

- Tóquio...

- A gente não tem muito tempo...

Ela se encosta na escrivaninha. Ele pega uns papéis.

- Eu escrevi pra você uma história. “O Escafandrista e a Bailarina".

- Lê pra mim...

Ele senta se na bergère. Ela o segue e se ajeita entre as pernas dele.

Entra o Outro que fala para a platéia enquanto a luz vai e um foco se acende sobre os

dois:

- Preste atenção. Olhe bem e deixe que a imagem se fixe na memória. Essa imagem, da

Escuta debruçada sobre a Fala, resume o que é o Homem. É o sim que abraça a recusa

como se fosse irmã e amansa seu rancor. Sim que não é cegueira, mas compaixão, pois

não há amor que não seja também esquecimento.

As luzes se apagam e se ouvem passos, pesados e lentos. A luz vai reacendendo aos

poucos. O escafandrista entra no palco. Ela avança até o centro e diz:

- Venho de um profundo mergulho na alma humana. E lá no fundo, tudo que encontrei foi

lama. Lama e escuridão. Há navios que são como catedrais imensas. E tesouros.

Riquíssimos tesouros. Mas irresgatáveis. Perdidos para sempre na lama e na escuridão.

Ninguém nunca antes lá estivera, tão fundo, tão baixo. Salvou-me esta couraça, falso

corpo feito para não sentir, que agora se confunde com meu corpo.

Ouve-se uma valsa. Entra no palco a Bailarina. Ela diz:

- Não fique triste, escafandrista. A alma é lama quando o corpo é porco. Mas sensual é

também o porco em sua entrega à lama. Símbolo máximo do apaziguamento. O êxtase

da exaustão, vazio exato onde nada falta, se prestares atenção. Vem, despe essa

couraça, e dança. Só alcança a luz aquele que fracassa e deixa de ser de si caçador e

caça.

O Escafandrista responde:

- Tenho os pés de chumbo da couraça que carrego.

A Bailarina retruca:

- Dança, para que ela se desfaça. O corpo para a alma deve sê-la, e não cela. Só quando

a alma ganha o corpo, o corpo ganha calma.

O Escafandrista insiste:

- Eu não sei dançar. Me acostumei à lama, alma encantada de si mesma. E sentiria falta

da indiferença que a couraça me confere. Tua luz me fere, Bailarina, e quase chega a ser

amor a inveja que sinto da leveza dos teus passos.

As Fantasias avançam sobre o palco. O Outro declama:

- "Falai Fantasias. Falai!

De quem sois?

De mim?

De nós dois?

De nenhum de nós?

Como, enfim, o ciúme se faz?

E o prazer - de onde se extrai?

Afinal, quem quer o quê e o que é querer?

Falai, Fantasias, falai: o que não se sabe dizer quer mostrar-se."

As luzes se apagam. Escuridão e silêncio. Música.

Acende-se uma luz que ilumina Ele brincando no chão com um carrinho. Do alto das

escadas entrelaçadas, descem um Homem e uma Mulher. Ela se aproxima do Menino,

afaga sua cabeça, e põe-se a trabalhar num tear. O homem, também de pijama, senta-se

na bergère e abre um jornal. A mulher tece, o homem lê, o menino brinca.

A música vai degenerando em atonalidade e dissonância. Os movimentos da mulher vão

se tornando desconexos. As Fantasias giram pelo palco. Então a mulher leva as mãos à

cabeça e cai. As Fantasias a tomam nos braços e jogam com ela como um boneco, ante

o olhar atônito d’Ele menino. Finalmente, ela é levada numa maca por homens

mascarados e vestidos de açougueiros. O menino cobre os olhos para não ver.

Aparentemente, o Homem não viu a cena. Ele continua lendo por detrás do jornal. O

menino gesticula uma súplica de cinema mudo, mas o homem permanece imóvel. O

menino então abaixa o jornal. Mas, por detrás do jornal não há ninguém! As luzes se

apagam num corte bruto. Escuridão.

As luzes se acendem de novo. A mesma cena se repete: Ele brinca no meio do palco, o

Homem lê por detrás do jornal, a Mulher fia em seu tear. Tudo parece ter voltado ao

normal. Enfim, ele engatinha até o tear, toma a ponta do fio, o amarra no tornozelo e vai

para a cama. Ele deita. As luzes quase se apagam, com se Ele dormisse. Então do alto

desce um balão com o mapa do Mundo desenhado. Ele se põe de pé na cama e começa

a fazer uma caricatura desengonçada da coreografia de Charles Chaplin em “O Grande

Ditador”, porque o fio amarrado ao tornozelo não é comprido o bastante e muitas vezes o

derruba, cortando seu movimento. De repente, despertador toca, o Mundo sobe de volta,

fugindo de suas mãos. Ao mesmo tempo, Ele salta da cama e o fio do tornozelo se

rompe. Só então ele percebe que era o mesmo o mesmo fio que o tinha numa ponta e o

Mundo na outra.

Mais uma vez as Fantasias o tomam e o vão vestindo de capa de chuva, chapéu, guarda-

chuva e uma mala que ele tem de empurrar com muito esforço por uma espécie gangorra

acima. Só que ao atingir a metade dela, ela cai para o outro lado e ele volta ao chão,

tendo de recomeçar o seu trabalho de Sísifo. Essa cena se repetira duas ou três vezes

até que Ele senta-se exausto sobre a mala e chora, o rosto mergulhado nas mãos.

Entra então o Outro, só que agora provido de asas angelicais. Senta-se ao lado d’Ele e o

abraça, consolando-o até que ele durma. Então o Outro o toma nos braços, o carrega até

a cama e o põe para dormir.

Cai a luz. Silêncio e escuridão. A luz do projetor se acende. Ela desce nua lá da tela, e

deita-se ao lado dele, velando o seu sono. Ele acorda. Ela diz:

- Eu tenho de ir...

- Ainda é cedo...

- Está amanhecendo...

- Não... É a noite, não é o dia...

- É o dia...

- Espera! Quem sabe o sol não se alucina e salta de volta para a China?

- Não... Até o sol tem sua sina...

- Mas podemos iludir o sol com um movimento de cortina...

- Bobo... Se você quer, eu fico...

- Tá, vai... O que tem força o tempo não elimina.

- Eu vou. E já é outra luz a nos ilumina.

O Outro entra em cena e fala para a platéia:

- Enfim, pela primeira vez, o Escafandrista soube enfrentar a dor incomunicável que jaz lá

no fundo, guardiã mesquinha de nossos tesouros. E, desta vez, Ele a venceu. E sua única

arma foi o amor - de seu corpo e de seu silêncio. E ao subir de volta, já não era mais um

fantasma reclamando luto, nem um menino chorando a perda, mas um homem em face

da sua solidão.

FIM