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O ESPLENDOR DO IMPÉRIO MARIO DRUMOND MDEditor

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O ESPLENDOR DO IMPÉRIOMARIO DRUMOND

MDEditor

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Copyright©2009 Mario Drumond

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O esplendor do Império

Mario Drumond

Escrito entre 11 de setembro e 30 de dezembro de 2008.

Belo Horizonte – Brasil

Revisão Frederico de Oliveira

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Novela em forma de emeio (Suplemento Literário da Gazeta em forma de emeio) O esplendor do Império Mario Drumond 33 capítulos publicados ao ritmo de um capítulo por dia, todos os dias. Da série “Escritos anti-imperialistas” Escrita entre 11 de setembro e 30 de dezembro de 2008. Belo Horizonte – Brasil Revisão: Frederico de Oliveira

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Capítulo 1 Enquanto se ajeitava na poltrona, Taquinho não conseguia se conter de tanta felicidade e ria à toa consigo mesmo. Era a primeira vez que viajava de avião, fato que ampliava a emoção daquela viagem e coroava de sucesso cinco anos de batalhas e ralações. Fazia 23 anos justamente nesse dia que acabava de eleger como o mais feliz de sua vida, ao afivelar e apertar o cinto de segurança. Taquinho dera de presente a si mesmo a realização de um grande sonho: ele decolava de Brasília em vôo direto para Nova York, cidade que para ele era a capital do paraíso na Terra. De lá não pretendia retornar tão cedo, tinha tudo planejado. É verdade que o sonho começara a ser acalentado bem antes; desde criança Taquinho alimentava sua admiração pelo país do hambúrguer e do hot dog, e nunca lhe faltou estímulo para isso, desde as primeiras revistas em quadrinhos, brinquedos, desenhos animados e jogos eletrônicos até as inúmeras mídias atuais, impressas e eletrônicas. Mas a data inicial de sua concretização ele atribuía ao dia em que completou 18 anos. A partir de então, se tornou o dono de seu nariz e não precisava mais da assinatura dos pais para tomar decisões. De imediato, transferiu-se para o horário noturno de uma escola pública onde completou o curso secundário sem o menor esforço e decidiu que, se um dia ingressasse numa universidade, isto se daria nos EUA. Assim, o dinheiro que o pai enviava para pagar a escola particular ele guardava numa conta de poupança para o seu grande projeto. E tinha o dia inteiro disponível para ralar de bicicleta, fazendo entregas e serviços de office-boy, com o que apurava um bom dinheiro que também ia para a mesma conta. Taquinho chegou a evitar namoradas para não gastar o dinheiro que economizava e não comprometer o futuro de seu projeto. Quase não gastava de suas economias, e tinha de se conter para ir uma só vez por semana ao McDonald’s, sempre aos sábados à noite, e devorar o seu sanduíche predileto, o “quarteirão-com-queijo”, acompanhado de meio litro de Coca Cola. No mais, valia-se da comidinha caseira de dona Lourdes, sua mãe, costureira afamada pelo talento em tudo o que dizia respeito a agulha, linha e tesoura, com o que tirava o suficiente para sustentar uma vida modesta mas digna, para ela e o filho. Moravam na casa que fora do pai dela, o avô Pedro, falecido há pouco mais de seis anos (do embarque de Taquinho) e que também fora mestre dos mesmos dons que a filha herdou, e deixou fama de melhor alfaiate da região. O avô Pedro fora para Taquinho um pai e um amigo, porque o marido de dona Lourdes, seu Eustáquio, oficial mecânico da Vale do Rio Doce, era um pai ausente na vida dele; um zero à esquerda que, quando muito, aparecia uma vez por mês, num fim-de-semana, e só garantia o mencionado dinheiro para pagar a escola e uma muito irregular ajuda à esposa para o pagamento das contas da casa. A casa era a mesma em que nascera dona Lourdes, logo quando o pai dela a adquirira, no início dos anos 50; uma casa pequena de três quartos, um tanto envelhecida, mas conservada com carinho e asseio, e que ocupava um terreno relativamente grande, rodeada de quintal, varandinha e jardim. Ficava na paróquia da Igreja de N. S. Lourdes, a santa que deu o nome e tornou-se padroeira da mãe de Taquinho, e da qual ela manteve-se devota, como Filha de Maria e voluntária do Lar das Crianças, entidade beneficente mantida pela casa paroquial. Sua mãe, dona Laila, morrera do parto, no mesmo dia em que lhe dera à luz, e seu Pedro não mais se

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casou, dedicando-se somente ao ofício e à filha única, com a valiosa ajuda da velha negra Honória, empregada da casa, babá e mãe substituta da menina até se despedir da vida, pouco depois de Lourdes completar quinze anos. Na época da aquisição da casa, era ali um subúrbio pobre. Hoje é o Bairro de Lourdes, bairro quase central e de classe média próspera da cidade de Governador Valadares, em Minas Gerais. Dali, Taquinho saía de bicicleta todas as manhãs, de segunda a sexta, fizesse sol ou chuva, voltava para almoçar com a mãe, fazia uma breve sesta, e de novo ia pedalar cidade afora até às cinco ou seis da tarde. Nem todas as noites ele ia à escola, só quando necessário para não perder o ano. Assistia ao jornal e a um ou outro capítulo de novela na televisão com sua mãe, conversavam um pouco e depois ia para o seu quarto burilar o plano de viagem. Dona Lourdes não era contra, mas também não era entusiasta dos planos do filho. Às vezes, ela citava o pai, que vivera as agruras da emigração em vários países, inclusive os Estados Unidos, onde vivera, criança, no início dos anos 30, e lá comera o “pão que o diabo amassou”: “se tem um paraíso na Terra” – dizia seu Pedro – “ele está bem aqui, no Brasil”. Taquinho retrucava que os tempos eram outros e que agora, se tivesse nascido nos EUA, ele poderia até ser um astronauta da NASA. – “Que futuro tenho aqui, nessa merda de cidade?” – questionava Taquinho, embaraçando a desconfiada mãe. Mas os planos de Taquinho não eram como os de muitos de seus concidadãos e colegas de entusiasmo com a metrópole. Não, não era o caso dele o modelo de Mozart (pronunciavam Mozár), um exemplo célebre na cidade, que fora com a mão na frente e a outra atrás e se deu bem trabalhando no setor de mudanças no interior do país, onde agora vive numa cidadezinha ostentando casa cafonérrima com piscina, mulher loura e filharada gorda. De lá, fica enviando fotos que circulam na cidade toda, como se para fazer inveja. Até levou os pais, que não se adaptaram e acabaram voltando para Valadares. Os planos de Taquinho eram ambiciosos. Foram minuciosamente detalhados ao longo de três anos, junto com um funcionário de uma agência de turismo que era experiente no negócio e até ficou seu amigo, tendo lhe dado dicas muito boas. Taquinho queria chegar pela porta da frente, no aeroporto John F. Kennedy, em Nova York, onde pretendia fixar residência e só voltar ao Brasil vez ou outra, curtindo umas férias. Pensava também em levar a sua mãe algum tempo depois de lá se estabelecer, e tirá-la de uma vez por todas da vidinha provinciana em que a via, desperdiçando talento de costureira. E ia com uma grana razoável, não chegaria lá na pindaíba, dependendo de favores. Comprara um big pacote turístico de seis mil dólares e levava mais quatro mil para os gastos iniciais. Calculara tudo como se fosse um investimento, era esperto e inteligente. O pacote era para três meses de permanência (para mais que isto não conseguiria visto) e incluía curso intensivo de inglês (o amigo tinha lhe dado a dica: aprender inglês lá e não gastar com cursinhos mixurucas daqui, que não adiantam nada: “Você chega lá e nem sabe dar bom dia”). O curso duraria um mês inteiro e era em Orlando, na Flórida, onde ficava a Disneyworld (conhecê-la era sonho que ele cultivava desde que se entendia por gente), também incluída no pacote, com dois fins-de-semana de hospedagem em hotel da própria Disney, ingressos para atrações pré-escolhidas e

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direito a acompanhante na primeira estadia (ele convidara um amigo que morava em Nova York, o qual se oferecera para ser o seu guia introdutor na metrópole). Ao fim do curso, calhava exatamente a realização de outro sonho há muito acalentado: um show ao vivo de Madonna, que estava agendado em Washington, DC, onde encontraria de novo o amigo e depois iriam juntos para Nova York, de trem. Tudo já no pacote, o curso, as passagens, os hotéis, a alimentação, os ingressos do show, etc. Ao fim de um mês, se nada mais desse certo, ele teria realizado a metade do seu grande sonho: conhecer a Disney, aprender inglês e ver Madonna. E teria ainda quatro mil dólares e dois meses para realizar a outra metade: ser cidadão da “América” (que era como ele e os “colegas” valadarenses chamavam os EUA). O maior problema seria o de conseguir o visto, mas deu tudo certo. Ele dera sorte, pois tinha nascido em Belo Horizonte, onde os pais, logo após se casarem, vieram residir para que seu Eustáquio fizesse o treinamento na Vale, e aqui pensavam estabelecer-se em definitivo. A agência de turismo tinha seus macetes, e conseguiu um atestado de residência “laranja” para ele em BH. Governador Valadares, para o consulado, todo mundo sabia, era nome “mais sujo do que pau de galinheiro” e não podia constar do pedido, ou o visto não saía. Resolvido isto, para Taquinho havia outro risco, pequeno, segundo o agente - o seu próprio nome: José Eustáquio Raghid Varela. O Raghid materno poderia dar galho, por isto só ia por extenso onde não podia estar de outra forma; no mais, era José Eustáquio R. Varela. Taquinho passou dois dias acampado na fila que se formava na porta do consulado dos EUA, no Rio de Janeiro, debaixo de um calor de 40 graus e tremendo de medo. Mas, outra vez, deu sorte. Foi atendido por um brasileiro substituto e relapso que mal conferiu a documentação, lhe fez umas três perguntas cujas respostas Taquinho tinha ensaiadas e na ponta da língua, e concedeu-lhe o almejado visto. Taquinho relaxou enquanto sentia a força da aeronave decolando, o ar fluido se tornando sólido e o poder dos motores distanciando-o do solo que ele observava pela janelinha, sem desgrudar, vendo as coisas diminuindo de tamanho, as pessoas virando formiguinhas... eis então as primeiras nuvens passando, e ele sobre o imenso colchão branco banhado de sol. Pôs os óculos escuros, recostou-se na poltrona e começou a repassar os planos: chegaria numa terça de madrugada e teria até o amanhecer para se desvencilhar da alfândega. Tomaria um táxi até o endereço do amigo cicerone, cuja chave do apartamento lhe seria deixada com uma amiga que trabalhava na caixa de uma lanchonete, ao lado da entrada do prédio. Descansaria até o fim da tarde, e, quando o amigo chegasse do trabalho, decidiriam o que fazer na primeira noite. Nos dias seguintes, junto com o amigo (que providenciara uma licença no serviço), compras de roupas, agasalhos, tênis, etc, e o laptop que seria, enfim, o seu primeiro e ansiado PC (Taquinho às vezes usava o computador da agência de turismo e tinha algum traquejo na máquina). Na sexta, ônibus para Orlando e a Disneyworld. Na segunda, o amigo retornaria a NY e ele começaria o curso de inglês na Universidade da Flórida, onde ficaria hospedado. Ao fim do curso, ônibus para Washington, reencontraria com o amigo, iriam ver Madonna e, depois, trem para Nova York e a alvorada da sua vida! Num determinado momento, quando sobrevoavam o imenso mar verde da Amazônia, foi anunciada uma inesperada escala em Manaus para checagem da aeronave. Os passageiros demonstraram temores, mas, para Taquinho, que não tinha nenhum medo de avião, o maior problema era o desacerto de seus planos que um

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atraso maior poderia causar. “Essas empresas brasileiras” – pensou atazanado – “bem que eu queria uma empresa americana; mas o preço do pacote subiria quase mil dólares!” De fato, não deu outra. Em Manaus, depois de interminável espera, foram avisados que a aeronave não poderia prosseguir. Outra aeronave seria alocada para o vôo e só estaria disponível no dia seguinte de manhã. “A empresa se encarregaria da hospedagem e alimentação dos passageiros até o novo embarque” – disse uma funcionária aos passageiros. Porém, Taquinho, astuto, durante a espera reparou que um vôo da American Airlines decolaria de Manaus para Nova York ainda naquela noite, e deu uma sapeada no balcão da empresa, levando uma conversa com o seu pessoal. Lá ficou sabendo que ainda havia lugares e, se a empresa dele autorizasse, ele embarcaria. Taquinho tinha boa lábia e levou um lero com o gerente da empresa brasileira convencendo-o de que era melhor negócio embarcá-lo do que bancar a sua estadia em Manaus. O gerente topou, o negócio foi feito, foram providenciados os papéis, a bagagem foi trocada de avião, e Taquinho embarcou. Foi um vôo perfeito que pousou no aeroporto John F. Kennedy, de Nova York, exatamente às 08h45 (hora local) do dia 11 de setembro de 2001. Capítulo 2 Para estranheza dos passageiros, a maioria deles brasileiros com experiência na viagem, a aeronave taxiava para longe da estação de desembarque. Um aviso da cabine explicou que se tratava de uma “inspeção de rotina” a ser realizada num dos hangares da companhia, depois do que a aeronave prosseguiria para o desembarque. Estacionados dentro do imenso hangar, os passageiros viram entrar no avião seis homens vestidos de macacões brancos (tipo de proteção contra epidemias) como se fossem bizarros astronautas, cada um com sua “bomba de flit” com que borrifavam todo o ambiente interno da cabine de passageiros, incluindo os próprios, criando uma névoa de spray mal cheiroso. Ninguém dava um pio, e Taquinho, considerando natural a “medida de segurança”, só se preocupava com mais esse atraso. A moça da lanchonete era brasileira e largava o serviço às 15h. Estava combinado que, se houvesse atraso, ela deixaria a chave do apartamento com a dona da lanchonete. Mas Taquinho torcia para encontrar a brasileira com quem se comunicaria à vontade, e ela tinha se comprometido em levá-lo até o apartamento. Isso evitaria problemas com portarias e outras chateações. E até, dependendo do jeitão dela, talvez uma boa trepada inaugurando a sua entrada no paraíso. O amigo tinha enviado um e-mail para a agência de turismo explicando tudo e incluiu um texto em inglês para ser exibido no caso de desencontro com a brasileira. Porém, Taquinho queria mesmo era o plano A. Enquanto meditava em tais opções, percebeu que um dos “astronautas”, já pela segunda vez, parara diante dele, que ocupava poltrona de corredor neste vôo, e o observara detidamente. Terminada a “inspeção”, surgiram dois policiais uniformizados que foram diretamente à poltrona de Taquinho, um dos quais falou com ele em inglês num tom ríspido e autoritário. O passageiro vizinho, sabendo que

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Taquinho não o entenderia, disse a ele que o policial lhe ordenava para que o acompanhasse e aconselhou-o a não se preocupar, se estivesse, é claro, com os documentos em ordem e sem “sujeira” nas bagagens, pois aquilo às vezes ocorria. Taquinho pegou sua sacola, saiu com os policiais até o carro de polícia estacionado perto do avião, quando este começava a ser rebocado para fora do hangar. Ali, com gestos bruscos e palavras ininteligíveis para Taquinho, revistaram-no, pegaram-lhe a bagagem de mão, a carteira, o cinto onde escondia os 300 dólares que levara em dinheiro, o ticket de bagagem, e o fizeram entrar no banco de trás do carro. Bastante desconcertado e sem dar uma palavra, ele foi levado a um edifício anexo à estação principal. Lá chegando, seguiu os policiais em passos apressados por labirínticos corredores até uma espécie de sala de espera, de paredes nuas e sem nenhuma janela, onde o deixaram sozinho. Minutos depois apareceu um funcionário na sala imediatamente ao lado, separada da dele por uma divisória de vidro através do qual Taquinho observou-o entregando o ticket a outro homem – que entrou e saiu apressado – e revirando sobre uma comprida bancada a sua sacola de mão e o conteúdo da carteira, os documentos pessoais, o dinheiro trocado. Sem pressa, o homem examinou o passaporte e falou com alguém no telefone portátil. Depois, passou a examinar os demais documentos, a papelada e a bagulhada que Taquinho trazia na sacola. Só restava a Taquinho sentar e esperar... e dar adeus a seus planos A, B, C e etc para aquele dia. Passaram-se horas, o homem há muito tinha saído da sala deixando as coisas dele espalhadas sobre a bancada, quando Taquinho viu o que pegara o seu ticket chegar com sua mala de viagem e deixá-la sob a bancada. Um tempo depois (Taquinho não tinha relógio) outros policiais introduziram na sala de espera um grupo de quatro jovens árabes, usando turbantes e túnicas coloridas, aparentemente estudantes em excursão. Eles entraram e sentaram-se, humildes, bem comportados. Foi observando-os que Taquinho começou a perceber por que estava ali. Não pela descendência da mãe, neta de libaneses emigrados (o avô Pedro nascera na França), mas pela do pai, brasileiro quase mulato, era extraordinária a semelhança que Taquinho constatava entre si e aqueles jovens árabes. De fato, Taquinho tinha traços bem mouros na sua constituição física e na cor morena de sua pele. Se lhe pusessem uma túnica e um turbante, passaria por um autêntico mustafá. Uma espera infinita se passou para a pequena platéia que assistia, muda, a tudo o que ocorria no outro cômodo. Observaram o funcionário revirar a mala de Taquinho, pondo abaixo a caprichosa arrumação de dona Lourdes e espalhando roupas, cuecas, sapatos, meias e agasalhos desordenadamente sobre a bancada, da qual rolaram as duas latas de feijoada e da qual caíram com estardalhaço as duas de goiabada. Viram o entra e sai de homens e mulheres trazendo as bagagens dos companheiros de revista e outros e outras levarem e trazerem as coisas de Taquinho (as latas não retornaram, ele reparou). Eis que, de repente, saíram todos de lá, a porta da sala de espera se abriu e um novo homem, de terno, entrou e se dirigiu a Taquinho num péssimo português com sotaque de gringo: - “Você, ir aqui!” Taquinho foi até a outra sala, aliviado por enfim ter alguém que falasse ainda que muito mal a sua língua, e ao entrar o homem foi disparando: “Estar todo no ordem parra você. Pegar seus cosas o quanto rápido pôrque eles mais ir revistar e non ter

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sala mais. Estar todo full! Hoje dia hard, você saber...” Taquinho não vacilou, e jogou tudo para dentro da mala e da sacola de qualquer jeito, desprezando toda a estratégia de arrumação de bagagem que vinha com a assessoria do seu amigo da agência de viagens e o amor de dona Lourdes. Pôs as miudezas, os documentos, o cinto com o dinheiro, os cheques de viagem, a carteira, os papéis e os babilaques na sacola, e as roupas, sapatos, agasalhos, etc, na mala, forçando-as para fechá-las o mais rápido que podia. Enquanto isso o homem ia falando: “Os lata de comer non dexarro entrar. Os papel and documento eles tirar cópia e você non sair do itinerrárrio que declarrô, você entender? Agorra, ir comigo, eu indicar você o saguon do aerroporto.” Taquinho seguiu o homem levando a sacola e puxando a mala com rodilhas pelos labirintos do edifício até que o homem abriu uma porta larga e disse-lhe: “Welcome, descurpe, bienvenido, você estar nos Estados Unidos de Amérrica! Bye and good luck!” Ufa!!! Era uma sensação de alívio entrar finalmente com as bagagens no saguão do aeroporto John F. Kennedy, livre para ir onde quisesse. Um grande relógio digital mostrava 11h40 p.m. Santo Deus! – pensou Taquinho, ao perceber o tempo perdido e a hora imprópria para se chegar em qualquer lugar. Teve a idéia de procurar um balcão de empresa brasileira para ter com quem falar e reorganizar os planos com alguma orientação local, e depois comer algo, pois estava mais que faminto; na alfândega pôde apenas tomar água num bebedouro de corredor. Observou uns logotipos conhecidos no lado oposto do saguão e se dirigiu para lá. Foi quando se deu conta da atmosfera esquisita que o cercava, algo de tenso no ar, algo que notara também na longa espera da revista. Parecia que o aeroporto estava parado, um movimento anormal, com pessoas nervosas andando de um lado para o outro, homens uniformizados, policiais, soldados do exército e muitos funcionários de segurança, ao que lhe parecia. Quase ninguém com pinta de turista ou de passageiro em trânsito, mendigos e vagabundos aqui e acolá, e sirenes zunindo, inúmeras, do lado de fora. Neste momento viu num telão uma cena de aviões se chocando com as Torres Gêmeas de Nova York e imaginou que fosse um novo filme catástrofe em lançamento. A cena se repetia com insistência e quando ele, distraído por ela, decidiu parar para observá-la melhor, um pivete de bonezinho invertido de cor verde (foi só o que ele pôde ver) veio por detrás e garfou-lhe a sacola de mão, saindo em disparada no saguão. Taquinho ficou pálido de susto e, sem titubear, largou a mala e correu atrás do garoto pensando no desastre que seria se ele ficasse ali sem documentos e sem um tostão furado! O garoto ia como um corisco driblando as pessoas e ele disparado na cola do pivete. De repente, sentiu como se o teto tivesse desabado sobre seu corpo; quatro policiais enormes caíram em cima de Taquinho e, aos berros, o deitaram no chão com brutalidade para então o algemarem. A partir daí, ele só se lembra de ser jogado num camburão onde três outros homens mal encarados se encontravam agrilhoados. – Que enrascada! – pensou, sentindo no corpo as dores das cacetadas que tomou até chegar ali, exausto e bufando. Uma seqüência de eventos tenebrosos tomou conta da vida de Taquinho desde então, difíceis de pôr em ordem numa memória lógica. Ele não se lembrava, por exemplo, se os três homens tinham sido retirados do camburão antes ou depois dele. Lembrava-se, numa nuvem de fumo, estar numa sala hermeticamente fechada, na qual não se ouvia um só ruído externo, sob uma lâmpada quente e forte, rodeado de

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homens que ao mesmo tempo o espancavam e o observavam, comparando-o com uma foto impressa num papel. Marcou-o, como num pesadelo, um deles, ao que parecia o chefe da gangue, por ter aberto sua boca para ver seus dentes e por ter sido o que balançou a cabeça afirmativamente ao compará-lo ao retrato. Sem a menor idéia de quanto tempo depois, Taquinho acordou com um gosto horrível na boca, tremendo de frio, deitado e algemado a um catre em local escuro duma embarcação, a qual percebia pelo ruído do motor e o balanço nas águas. Por uma escotilha bem alta, às vezes penetravam flashes de luzes fortes, como as dos raios de uma tempestade, que lhe possibilitavam ver-se num porão de um barco, entre outros catres com pessoas deitadas e igualmente algemadas. Sua lucidez só retornaria plena quando fora obrigado a deixar a embarcação, acorrentado a oito companheiros de infortúnio, entre os quais um dos estudantes árabes que encontrara na alfândega. No amanhecer iluminado de um pequeno porto para ele desconhecido, a luz fazia doer-lhe a visão. Custou a acostumar seus olhos, e quando isto se deu, Taquinho enxergou uma placa escrita em inglês, na qual uma das palavras ele sabia muito bem o que significava. Só que sempre mantivera esse conhecimento o mais distante possível da sua consciência, eis por que a palavra agora aflorava de dentro dele e tomava de assalto toda ela e todo o seu ser com tal força e violência que transbordou nas lágrimas do pranto convulso que nele desatou: GUANTÂNAMO. Capítulo 3 Dona Lourdes e suas três novas amigas, conhecidas na cidade como “as quatro viúvas”, acabaram o almoço que semanalmente faziam em rodízio na casa de cada uma (desta vez, não era na casa dela) e, como de costume, viam o jornal da TV. A passagem de ano 2004/2005 havia sido há três dias e as notícias ainda eram os fogos de artifício por todo o país, com destaque para os de Copacabana. Depois, veio o bloco das “internacionais”, que dona Lourdes achava o mais aborrecido porque sempre lhe provocava a lembrança do desaparecimento de Taquinho. Surge a vinheta da Guerra no Iraque, e dona Lourdes via as imagens que a seguiam como se fossem sempre as mesmas, todos os dias: soldados super-equipados e armados até os dentes correndo para um lado, homens encapuzados e maltrapilhos armados de espingardas correndo para o outro, ruínas em cenários muito semelhantes aos dos bairros periféricos de sua cidade. Desta feita, algo de especial acontecera, a julgar pelo destaque das chamadas e a ênfase do locutor: um terrível “ataque terrorista suicida” ao restaurante de uma base importante dos EUA, em Bagdá, causara grande número de mortos entre oficiais das “tropas aliadas” – mais de 20 mortos já confirmados e centenas de feridos, informava, visivelmente consternado, o locutor. Terminado o jornal, as amigas deram início ao convescote de fofocas, conversa fiada e comentários sobre a situação delas, que às vezes iam até o escurecer nestas últimas reuniões em que o baixo astral que rondava as anteriores (não entre elas) havia sido em boa parte superado, pois curado pelo tempo e pelo arrefecimento das dores e dissabores que, de um momento para o outro, assolaram as vidas das pobres mulheres. Para dona Lourdes tudo isso era novo, ela nunca tivera amigas, sempre tivera freguesas, que eram amigas também, mas era diferente. Fazia pouco mais de

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um ano que se conheciam, pois ficaram viúvas no mesmo dia em que seus maridos morreram vítimas do desabamento de uma mina de ouro no interior da Bahia. O acidente fora tão brutal que não foi possível recuperar os corpos dos doze homens que vitimou: mais de 40 metros de terra os cobriam em local de tão difícil quanto perigoso acesso por causa de deslizamentos e novos desabamentos que continuaram a suceder. Toda a equipe de seu Eustáquio, que ali fazia manutenção de equipamentos, ficou lá, sepultada para sempre, incluindo ele e os maridos das três amigas. Porém, elas só vieram a se conhecer alguns dias depois do acidente, num escritório de contabilidade. Foi a contadora-chefe do escritório que, depois de lamentar o falecimento dos maridos e de ler uma curta mensagem de pêsames em nome do diretor e de todo o pessoal do escritório, deu às viúvas a inusitada notícia de que seus maridos não eram empregados da Vale do Rio Doce desde 1999. Eram “terceirizados”. A contadora teve de explicar o que isto significava: apesar de todos terem sido antigos funcionários da Vale, ela havia sido “privatizada” (outro termo que requereu uma breve explicação) e dispensou os funcionários de salários mais altos, indenizando-os por acordo e induzindo-os a que formassem empresas próprias, as quais foram em seguida contratadas pela Vale. Percebendo que as explicações pouco adiantavam, a contadora passou às questões mais práticas e palpáveis para as viúvas: elas não teriam direito à pensão que acreditavam ter, e eram herdeiras da empresa na mesma proporção acionária estabelecida na sua constituição: seu Eustáquio, o mais antigo e a mais alta retirada, possuía 40%, os demais, 20% cada um. Mas a última notícia não significava boa notícia – continuou a contadora, visivelmente embaraçada ao dar tantas más novas às pobres senhoras: seus maridos não tinham experiência empresarial e não fizeram uma administração competente da empresa que constituíram. Isto queria dizer que não cumpriam corretamente com as obrigações estatutárias, legais e fiscais. Para resumir: a empresa estava seriamente endividada com quase todas as receitas públicas, alguns bancos, fornecedores e outros credores. Além disso, a cada vez mais desconfortável portadora das más novas informou que os falecidos mantinham relações “informais” e duradouras com mulheres da região onde ficava a mina, uma das quais já se manifestara por telefone, dizendo que falava em nome das demais, pedindo informações e sugerindo disposição para reivindicar eventuais direitos, inclusive falando de filhos. O diretor do escritório determinou que nenhuma informação fosse dada sem autorização dos novos sócios da empresa ou sem ordem judicial. Finalmente, ela comunicou às viúvas que os papéis da empresa que herdaram estavam até aquele momento sob custódia do escritório, incluindo as correspondências, pois a sede da empresa era em sala alugada no mesmo prédio, e, como os sócios poucas vezes iam lá, o escritório dela era autorizado a recolher e abrir as correspondências comerciais. Avisou-lhes também que o escritório estabelecera o prazo de um mês para solucionar a questão da continuidade de seus serviços e, caso decidissem interrompê-los, não seriam cobrados os honorários em atraso. O mesmo era oferecido para o contrato de locação da sala ocupada pela

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empresa, de propriedade do diretor do escritório, e quanto aos aluguéis pendentes. Aconselhou-as a procurarem um advogado que as orientasse e se colocou à disposição para fornecer a elas ou a seus prepostos toda informação e colaboração que estivesse ao alcance do escritório. Outra vez, lamentou o falecimento dos maridos e encerrou a reunião. Nem é preciso dizer em que estado ficaram as pobres viúvas com tantas más notícias em cascata. Nenhuma sabia de nada, nada mesmo, sobre tudo aquilo que a contadora lhes relatara. Sequer desconfiavam. Atônitas e desorientadas, logo caiu sobre elas o inferno da civilização e seus conhecidos capetas: visitas inoportunas de cobradores, oficiais de justiça e fiscais de receitas públicas, cartas de cobranças e ameaças, protestos em cartórios, intimações de penhora e arrestos de bens e propriedades, chancelas de entidades e siglas para elas indecifráveis como COFINS, PASEP, PIS, IRRF, ISSQN, INSS, FGTS, SERASA e outras sopas de letras de esfomeadas burocracias públicas, bancárias, do Poder Judiciário, de casas comerciais e de outros negócios particulares de que nunca tinham ouvido falar. Até a polícia apareceu na residência de uma delas por causa de um cheque sem fundos emitido pelo marido em favor de um comerciante da cidade. Livrou-as desse inferno o advogado Benedito Gusmão, que elas apelidaram de “São Benedito”. Dr. Gusmão era considerado a maior autoridade em direito civil da região e era sócio majoritário do mais respeitado escritório de advogados da cidade. Velho getulista de opinião e de coração, espirituoso, raposa afamada das lides forenses, nunca entrara na política, mas vivia cercado de políticos por todos os lados, que lhe pediam a benção... e os conselhos, claro. Diziam que era afilhado de batismo do governador Benedito Valadares, o patrono do município. Sua esposa era uma das melhores freguesas de dona Lourdes e o intimou a entrar no caso. A primeira e única reunião que as viúvas fizeram com a presença dele foi numa mesa imensa do seu luxuoso escritório. Cada viúva levou o homem que tinha no momento para apoiá-la. Uma levou o pai, outra o irmão e a outra o cunhado. Dona Lourdes levou padre Antonio, pároco da Igreja de Lourdes e amigo dela de antiga data, como também de Dr. Gusmão. A contadora levou um auxiliar para ajudá-la com as caixas de papéis. Dr. Gusmão recebeu-as com gentileza, cumprimentou demoradamente a cada uma e as apresentou aos dois advogados que deveriam cuidar do caso. Foi uma longa mas muito profícua reunião, na qual todos os fatos foram minuciosamente bem descritos, detalhados e resgatados graças à competência profissional dos advogados e da contadora. Durante os depoimentos e debates, Dr. Gusmão não deu uma palavra, apenas ouviu. No final de tudo, um dos advogados se dirigiu a ele perguntando sobre a sua opinião. Dr. Gusmão, sem ser teatral nem afetado, foi categórico na resposta: “O que uma pátria vendida é capaz de fazer contra o seu povo trabalhador!” – exclamou, com emoção sincera. E completou: - “Agora é saber o que resta nela de justiça de que possamos nos valer. O caso é nosso e sem ônus para as viúvas; inclusive, as custas serão cobertas pelo escritório. Tentaremos reavê-las e cobrir nossos honorários com as futuras indenizações dos responsáveis por tais ignomínias, se ainda tiver vida legal neste país ao menos uma linha do Direito Civil”. O caso ficou célebre. Enfrentando os mais afamados escritórios de advogados da

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capital, do Rio e de São Paulo, contratados pela Vale, e os das receitas públicas envolvidas, o “escritório de Valadares”, como ficou conhecido em Brasília, conseguiu reverter toda a carga de prepotência, desgraças e injustiças que se produziram covardemente contra as viúvas na degradação política e legislativa em que se havia metido o país. À Vale e aos entes governamentais retornaram, em dobro, as responsabilidades, os deveres e os ônus que, em suas mutretas sórdidas, jogaram sob o lombo, a vida e a morte daqueles trabalhadores. Uma a uma, as liminares iam sendo concedidas, e não havia instância acima, por mais acossada fosse pelas poderosas contra-partes, que as derrubasse. Até o direito das “amantes” estava em vias de ser contemplado. Quando iniciamos este capítulo, as viúvas celebravam a manutenção da última liminar no TSJ, ainda antes das férias forenses do final de 2004. E já se debatia a possibilidade de um bom acordo com a Vale. Desapareceram como “por milagre” (daí o “São Benedito”) todos os capetas que as acossavam, em pessoa e pelos correios, e corria na cidade que as “quatro viúvas” iriam se tornar viúvas ricas. Isto tranqüilizou e ampliou o círculo de solidariedade que em volta delas vinha se formando desde o trágico falecimento dos maridos. Foi tal a solidariedade comunitária, além das ajudas de parentes e amigos e da ajuda mútua que, entre elas, passaram a cultivar, que as permitiu vencer com dignidade as dificuldades morais, materiais e financeiras que a tragédia lhes trouxe, de sopetão. Capítulo 4 Dona Lourdes decidiu ir embora mais cedo (ainda estamos na reunião das viúvas que iniciou o capítulo anterior). Alguma coisa dispersava a sua atenção nas conversas, e ela não parava de pensar em Taquinho. Aproveitou a chegada dos filhos da anfitriã, que vinham trazidos pelos tios, e despediu-se. Como sempre, ela ia a pé para casa. Gostava de caminhar e naquela hora, pois estando o sol já bem inclinado, quase a se pôr, a calorenta cidade refrescava-se um pouco. Ela optou por não passar pelo centro e ir pela margem do rio, subindo o Doce que corria caudaloso e bonito nessa época. Era um caminho quase sem movimento, o que lhe evitaria pessoas que a reconhecessem. Ficara muito conhecida na cidade e não se aborrecia em ser abordada por seus admiradores, sempre amáveis, solidários, mas naquele momento preferia estar só. Com 51 anos, ela era pelo menos dez anos mais velha que as outras viúvas, e fez-se de porta-voz delas no decurso da tragédia. Apesar de a imprensa ter abafado o acidente, a local não pode fazê-lo, pois quatro concidadãos estavam entre as vítimas. Incentivadas por um jornal da cidade, chegaram a promover os enterros simbólicos dos quatro maridos, e dona Lourdes deu entrevistas a jornais, rádios e televisões. Elogiou seu Eustáquio, um bom homem, honesto e trabalhador, 55 anos, nascido em Almenara e órfão desde menino, quando os pais faleceram do mal de Chagas. Veio para Valadares como carregador de uma equipe de geólogos e ali, depois de ser explorado quase como um escravo, conseguiu se livrar de seus “donos” e se estabelecer como garimpeiro autônomo no negócio de pedras, o que lhe valeu os recursos para estudar, passar no concurso da Vale do Rio Doce e realizar seu sonho de casar e ter filho. Era estimado e respeitado na empresa, na qual chegou a oficial mecânico “Classe A”. Ela não entendia como uma empresa podia tratar assim a

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família de um empregado que deu tanto de seu suor e a própria vida por ela. Orientou as outras viúvas para que não descontassem suas decepções nas memórias dos maridos, o que seria negativo para elas e os filhos, ainda crianças, e daria asas às más línguas na cidade. Além disso, somava-se ao seu infortúnio o desaparecimento de Taquinho, outro fato que havia comovido a cidade poucos anos antes. Era comentário geral a firmeza de caráter e a força de espírito com que a infeliz senhora enfrentava tantos sofrimentos. O mês de janeiro ela considerava o mês de férias das costureiras, e eis que dona Lourdes, folgada de costura, ia sem pressa, apreciando a beleza do Rio Doce, recordando a da Ilha dos Araújos antes de ser estragada pela especulação imobiliária e pensando se passava na igreja para rezar por Taquinho. Há muito ela se considerava a única pessoa no mundo a alimentar esperanças de que Taquinho estivesse vivo. Ela acreditava nos sinais e era convicta de que o filho único não deixaria este mundo longe dela sem emitir um sinal forte e bem nítido na sua direção. Recordava as aflições iniciais pela falta de notícias dele desde que se despediram numa madrugada em que ela fora levá-lo, de táxi, até a rodoviária. Ele esbanjava felicidade, e ela disfarçava o mau pressentimento que, então, atribuía a receios bobos de mãe provinciana na primeira vez que o filho ia para longe. Lembrava-se de tudo, nos detalhes. Não dormira no terceiro dia de silêncio do filho e no quarto dia estava cedo na porta da agência de viagens, antes que o primeiro funcionário chegasse para abri-la. Todos só falavam das torres gêmeas e do atentado de Nova York. Suspeitava-se que Taquinho poderia ter sido uma das vítimas, o apartamento onde ficaria hospedado não era muito longe de lá. Mas o amigo da agência tinha certeza que não; o avião em que ele embarcou em Brasília não chegara a Nova York, como previsto. Tivera de pousar em Manaus e, no dia seguinte, pouco depois de seu substituto decolar, os pilotos receberam ordem de retornar por causa do atentado. Porém, Taquinho não se encontrava entre os passageiros que desembarcaram de volta a Brasília. Informações até então não confirmadas davam conta de que ele embarcara, de Manaus, num vôo da American Airlines para NY. Se isto fosse verdade, tal vôo só chegaria lá na hora ou pouco depois das catástrofes, e Taquinho não poderia estar nas imediações das torres. Mais tempo passou e “o pai de Taquinho” (era como dona Lourdes se referia a seu Eustáquio, na intimidade, desde que ela decidira mudar-se de BH para Valadares com o filho) conseguira uma carona para os EUA num avião da Vale, e lá iria se encontrar com os amigos de Taquinho. Estes se cotizaram e contrataram uma investigação particular de um advogado brasileiro em NY, a qual Eustáquio acompanhou em parte. A “Lei Patriota” já estava em vigor, o que, segundo o advogado, prejudicava muito a exaustividade da investigação; alguns setores do governo estavam desobrigados de dar informações “em nome da segurança nacional”. Ficou provado que Taquinho chegara bem a Nova York e recebera tratamento especial da alfândega, que checou com rigor a sua documentação e bagagens. Eustáquio esteve com um funcionário gringo que falava mal o Português e lhe disse ter sido ele, pessoalmente, que acompanhara Taquinho até o saguão do aeroporto. A

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alfândega forneceu ao advogado cópias das cópias que tirara dos documentos dele para facilitar as buscas. A polícia de NY informou que eram nulas as chances dele ter sido preso, nada constava nos registros. Naquele dia muito conturbado, a ordem era de só deter os não documentados. Sabiam que a alfândega trabalhava em alerta vermelho desde cedo, de modo que um carimbo dela, de mesma data, funcionava como salvo conduto em NY. Os policiais eram instruídos a liberar de imediato e sem mais perguntas todo estrangeiro que o exibisse. Mas o fato é que não havia sequer um vestígio do rapaz depois que ele entrou no saguão do aeroporto. Nenhum funcionário presente naquela noite o reconheceu pelas fotos. Não esteve em balcões de companhias aéreas, em lanchonetes, bancas de revistas, etc. Taxistas e choferes de ônibus não o viram. O metrô estava fechado. Taquinho desapareceu com suas bagagens e documentos, sem deixar pistas. Nenhum hotel, pensão ou albergue o teria registrado. Hospitais, clínicas, cadeias e até necrotérios, idem. Seus cheques de viagem ficaram intactos, não retirou um centavo. Entre as especulações mais aceitas como prováveis estava a de ele ter sido seqüestrado por assaltantes ao deixar o aeroporto e, por ter resistido, foi assassinado e seu corpo jogado em algum lugar ainda não descoberto. Passado um ano, o banco emitente dos cheques de viagem autorizou a devolução do dinheiro aos pais de Taquinho. A agência também devolveria o saldo não utilizado do pacote turístico, deduzidos os impostos pagos e os valores não estornáveis, e o amigo da agência procurou dona Lourdes para a tramitação. Ela estabeleceu que o dinheiro, ao todo cerca de seis mil dólares, fosse convertido em reais e colocado na conta de poupança do filho, e que só a assinatura dela ou do filho poderiam, independentemente, movimentar a conta. Ela queria que o dinheiro ficasse rendendo até que o filho retornasse, “pois poderia precisar dele”. E, mesmo tendo atravessado as agruras financeiras pelas quais passou dois anos depois, dona Lourdes não tirou nem um centavo daquela conta. Ao chegar à igreja, viu que estava fechada e lembrou-se de que era uma terça-feira do mês de janeiro, mês em que, de segunda a quarta, a igreja só abria de manhã. Em seguida, ao dobrar a esquina da rua da igreja com a sua, ela viu, a uma distância de quase duas quadras, um automóvel estacionando diante de sua casa. Dele desceu o homem que o dirigia e colocou alguma coisa na caixa de correio. Não conhecia o homem, nem ele a ela. Puderam ver-se um ao outro, de perto, quando dona Lourdes atravessou a rua bem na frente do carro dele parado num sinal fechado. Era bem vestido, bigodudo, de traços mouros, e dirigia carro alugado com adesivo da locadora do aeroporto de Valadares. Apressou o passo, aflita, tentando não pensar mas pensando que aquilo teria a ver com Taquinho. Não sabia bem porque pensava assim, talvez por não ser o homem do tipo dos que a procuravam em conseqüência das confusões do “pai de Taquinho”. Depois de pegar o espesso envelope pardo na caixa de correio, as mãos de dona Lourdes tremiam tanto que o seu molhe de chaves caiu duas vezes ao chão antes que lograsse enfiar a chave na fechadura para abrir a porta da casa. Tinha reconhecido, no endereçamento do envelope, a letra bonita e inconfundível de Taquinho.

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Capítulo 5 O envelope era de papel resistente, vinha muito bem lacrado e não trazia nome e endereço do remetente. Era subscrito a “Lourdes Raghid Varela”. No outro lado do envelope vinha o seu endereço. Tudo em letras grandes e grossas, escritas com “pincel atômico” preto. Dona Lourdes sentou-se afobada na mesa de jantar para abri-lo e teve de se concentrar para cortar bem rente, com tesoura, a aresta superior do envelope, de forma a não ferir nem um mínimo o conteúdo. Suas mãos ainda tremiam, e ela nem se permitiu trocar a roupa e os sapatos como em geral fazia ao chegar da rua. Sabia que as notícias não eram boas, estas muito raramente chegam através de estranhos. Mas só a perspectiva real e imediata da retomada de contato com o filho, qualquer que fosse a situação, era para ela o fim de um doloroso suplício; ainda que pudesse significar o começo de outro. De dentro do envelope ela retirou todo o conteúdo de uma vez: duas folhas de papel ofício comum, desses de copiadoras, manuscritas por Taquinho nos dois lados do papel e um outro envelope um pouco menor em tamanho, mas muito mais pesado e recheado, que vinha subscrito pelo filho a seu pai, “Eustáquio Marcondes Varela”. Nas duas primeiras linhas depois do “Querida mamãe”, ela teve de se valer de um lenço para enxugar as lágrimas que lhe embaçavam a visão. Nelas, Taquinho avisava que se ela as estivesse lendo era porque ele já tinha partido dessa vida para a outra que ela sabia melhor que ele qual era. O que vinha a seguir surpreendeu dona Lourdes a cada palavra, cada linha. Todos que conheciam Taquinho sabiam que ele levava jeito para escrever. Era bom de composição desde o grupo escolar. Não foram um nem dois professores que o aconselharam a praticar mais e a informaram do talento promissor do filho, um talento espontâneo e digno de ser estimulado. Mas o filho nunca deu bola aos elogios, não cultivava o dom, nem acreditava nele como algo de valor, que se devesse levar a sério. Porém, tinha facilidade; aos doze anos já ajudava dona Lourdes na redação de folhetos, mensagens e textos para o Lar das Crianças, e, pouco mais tarde, até nos discursos que ela fazia em certos eventos e festas da instituição. Mas o fazia, deixava bem claro, só para ajudá-la. Fora disso, não pegava na pena para nada, e ainda pedia à mãe que não falasse a ninguém sobre isso, muito menos a seus amigos. Padre Antonio atribuía tal falta de interesse de Taquinho às deficiências absurdas das atuais escolas secundárias particulares e públicas e à alienação em que mergulhara a geração dele na insensatez do consumismo e na obsessão pelos Estados Unidos que, “especialmente em Valadares”, segundo ele, “há causado mais estragos do que qualquer uma das sete pragas do Egito”. Mas aquelas duas folhas não estavam preenchidas pelo menino que ela conhecia, o que se recusava à leitura de livros mais profundos, debochava da dedicação aos estudos e se dizia indiferente aos jornais, à cultura, à religião e à política; o jovem que, em fases mais recentes, parecia fazer questão de se exibir com banalidades, insensibilidade, ausência de idéias e de visão de mundo. “Justiça seja feita”, pensava dona Lourdes, nunca vira Taquinho se rebaixar à grosseria. Na opinião dela, isto se tornara comum entre os jovens. Expressões chulas, obscenidades, xingamentos gratuitos entre outras degenerações de linguagem, ela notava cada dia mais freqüentes na vida social, na juventude e até na televisão.

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Em sua carta, Taquinho se desculpava por não ter levado em consideração as opiniões e os conselhos da mãe, que ali adjetivava de “sábios”. Já nos parágrafos iniciais da carta, para espanto da religiosa mãe, ele escreve: “Conheci, enfim, o que é a misericórdia”, e pede a ela que, apesar de tudo o que tenha ocorrido a ele, mesmo que aos olhos dela possa parecer injusto, “jamais duvide da misericórdia de Deus”. Fazia considerações sobre os equívocos e as enganações de que se tornou “vítima fácil pela soberba do jovem alienado e egoísta que me permiti ser em Valadares” (...) “Só fiz criar ilusões para mim mesmo: onde pensava ser o paraíso, encontrei o inferno”. É quase toda a carta um mea culpa, um ato de contrição e de humildade, sincero e emotivo, que levava dona Lourdes a prantos sucessivos ao mesmo tempo em que se enchia de orgulho do filho por vê-lo capaz de se expressar com tal nobreza de linguagem. Taquinho falando de amor!? “Foi onde presenciei grande sofrimento humano que senti, de verdade, o amor ao próximo e do próximo; ali pude ver a luz, mas a alegria era impossível. Vovô Pedro tinha razão, o paraíso, se existir, estará aí, em nosso país. Nós, brasileiros, é que nunca soubemos desfrutá-lo e valorizá-lo”. Há momentos de especulações filosóficas, ideológicas e teológicas. O garoto se atrevia a propor considerações ousadas quanto ao sentimento humano do tempo e do espaço que, para ele, eram percebidos “mais por seus valores quantitativos que qualitativos”. Atribuía tal equívoco ao predomínio do que ele chamava “a sociedade do ter” sobre “a sociedade do ser”. Dizia também que todas as religiões sinceras são na verdade respostas a uma mesma e única divindade por parte de culturas e civilizações distintas. Coisas que, no contexto do discurso e das análises do missivista, dona Lourdes não alcançava por inteiro, o que a levou a pensar num posterior concurso de padre Antonio para ajudá-la a decifrar. A parte final era uma delicada e carinhosa despedida, um novo pedido de perdão e um pedido enfático (quase ameaçador) de que ela entregasse o outro envelope a seu pai sem abri-lo. Assinava-a assim: “De algum lugar do Planeta Terra, em 24 de dezembro de 2004, José Eustáquio Raghid Varela, seu filho”. Esta era a primeira vez que ela via o Raghid por extenso na assinatura de Taquinho, desde que ele começara a assinar por si mesmo o nome completo. “Infelizmente, meu filho, e, com certeza, para mim mesma” – pensou dona Lourdes – “quem agora abre os envelopes endereçados a seu pai, é a sua mãe”. As mãos dela já não eram trêmulas, ao deslacrar o segundo envelope da mesma maneira que o primeiro. Dele puxou uma folha de papel manuscrita dos dois lados e um terceiro envelope, pesado de tão cheio, igualmente bem lacrado como os anteriores, assim subscrito: “A quem interessar possa”. “A meu pai, Eustáquio” o filho se dirigia num tom mais frio e menos emotivo, mas também revelador de um novo Taquinho. Sem julgar nem condenar o pai, o filho o advertia “da falta de diálogo e da grande distância que o tempo realizou entre nós, afastando-nos um do outro, paulatinamente, sem que nada fizéssemos em contrário”. A si o missivista, sim, se culpava “pela indiferença com que sempre encarei tudo o que vinha de você”. Porém, declarava que nunca deixara de amá-lo e respeitá-lo, ainda que não tivesse aprendido ou aceitado a tempo de poder manifestar pessoalmente tais sentimentos. Como o fez também na carta da mãe, cita momentos

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íntimos ou particulares que lhe foram marcantes, os quais não caberiam neste resumo. No final, pede perdão, despede-se e dá as instruções sobre o terceiro envelope, que autorizava o pai a abrir “se achasse que devia, desde que não expusesse o conteúdo à minha mãe ou, caso ache que deva expô-lo, que encontre meios de fazê-lo com um mínimo de sofrimento para ela”. Explicava que era o relato de tudo o que ele viveu desde a sua chegada nos EUA, feito com supervisão jurídica e dentro de normas forenses para ser apresentado como prova perante tribunais internacionais que haviam se instalado em alguns lugares do mundo para julgar violações a direitos humanos. Segundo os que supervisionaram a redação, o documento teria mais chances de aceitação e credibilidade se fosse encaminhado a partir de seus pais, os maiores prejudicados, depois dele próprio, pelos fatos que denuncia, e, portanto, os mais legítimos demandantes. O pai deveria encontrar alguém de confiança (Taquinho sugeria padre Antonio) que pudesse fazê-lo tramitar nesses tribunais, com segurança legal e proteção para os demandantes, preservando-lhes sigilo processual e de identidade. Assinava a carta da mesma forma e com a mesma data da outra. Dona Lourdes levantou-se da mesa com o envelope nas mãos e sentou-se na poltrona em que costumava assistir jornais e novelas na televisão. Não chorava, mas tinha no rosto tenso e enrugado a expressão do medo de tomar ela própria uma decisão que o filho encarregara ao falecido marido. Olhava para aquele terceiro e último envelope, endereçado “a quem interessar possa”, e via nele o maior dilema de toda a sua vida. Capítulo 6 A pobre senhora não sabia o que fazer. Não estava acostumada e nem gostava de tomar decisões importantes. Lembrou-se de que a última decisão importante que tomara em sua vida foi a de deixar Belo Horizonte com Taquinho para voltar a morar com o pai em Valadares. E demorou quase dois anos para tomá-la desde que pensou nela pela primeira vez. Quando o fez, o marido estava de viagem, e ela comunicou-lhe por telefone. Disse a ele que não estava se separando, mas voltando para a sua cidade, onde tinha trabalho e a companhia do pai. O marido retrucou que ficaria mais difícil encontrarem-se, porque naquela época não havia vôos de carreira para Valadares, e isto complicava as coisas para ele no emprego. Mesmo assim, ela fez as malas, pegou Taquinho e foi para a casa do pai. Foi uma decisão acertada, pensava ela. Desde o nascimento de Taquinho, suas relações com o marido foram se atenuando, e só não se separaram por não ter havido motivos que chegassem ao seu conhecimento, nem necessidade de rompimento. Parecia-lhes que a vinda do filho como que cumprira as metas existenciais de ambos e deviam então se deixar livres para que cada um pudesse seguir o próprio caminho. Isso não queria dizer que o amor que os uniu não era verdadeiro: dona Lourdes pôde aferir isto pela dor que sentiu pela morte dele. Talvez significasse que a vida em comum, para eles, não se tornara necessária mais.

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Mas, naquele momento em que tinha em mãos o terceiro envelope enviado pelo filho, o primeiro pensamento dela foi para a falta que lhe fazia o marido. Desde a gravidez e o parto, ela nunca sentira tanto a falta dele como agora. Teria ela forças suficientes para suportar o que lhe trazia o conteúdo? Como ela gostaria de simplesmente obedecer às instruções do filho, passar ao marido o segundo envelope e sequer ter sabido da existência do terceiro, a não ser que o marido achasse conveniente. Estava claro que o filho a conhecia bem e sabia que ela faria isso sem pestanejar, dona Lourdes não era bisbilhoteira e era respeitosa com os segredos alheios, incluindo os do filho e do marido. A carta que veio endereçada a ela a satisfizera. Apesar de trazer-lhe a imensurável dor ao informar-lhe da morte do filho e não dar pistas do paradeiro dele; era plena de amor e nobreza. E isto, diante da impossibilidade de reavê-lo entre seus braços, era-lhe reconfortante, afagava o seu coração de mãe e, de certa forma, a consolava. Mas, o que fazer agora? Era claro que José Eustáquio (ela não sabia por que, mas começou a pensar no filho pelo nome próprio, e não pelo apelido, desde uma das enésimas leituras da carta dirigida a ela) conhecia pouco o pai, por pensar que havia possibilidade de que ele recebesse o terceiro envelope e o passasse a outras pessoas sem tomar conhecimento do conteúdo. Nem era por bisbilhotice ou por ser curioso; Eustáquio jamais entregaria a alguém qualquer coisa sem saber exatamente o que estaria entregando, muito menos um envelope cujo conteúdo era de autoria do filho, há tanto tempo desaparecido. Era o que ele costumava chamar de “procedimento”, palavra que usava muito, em diversas ocasiões e nas mais diferentes situações, mas que dona Lourdes sabia que tinha a ver com o ofício dele, pois apareceu no seu vocabulário na época do curso na Vale, em Belo Horizonte. Ela sabia exatamente qual seria o “procedimento” do marido: – “não tenho vocação de carteiro”, costumava ele dizer se alguém lhe pedisse para levar algo sem, contudo, informá-lo do que se tratava. Ela agora se perguntava se teria obrigação de fazer o mesmo. De acordo com os advogados, ela teria essa obrigação, mas não se sentia ali diante de um problema jurídico, e, sim, de um problema de consciência. O filho não queria que ela tivesse acesso àquele conteúdo, e ela desejava muito obedecê-lo. Por outro lado, amava e era inelutavelmente vinculada aos destinos de ambos, filho e marido, e se via obrigada a assumi-los. Foi assim depois da morte de Eustáquio, quando teve de conhecer pessoalmente a própria rival e o que se passara entre ela e seu marido; e pensava se deveria ser assim agora, com o passado do filho, José Eustáquio. Imersa na surpresa desde que abrira o primeiro envelope e, depois, no dilema que lhe trazia, dona Lourdes nem percebeu o passar das horas. Era mais de meia noite e ela tinha tomado dois comprimidos de calmante no momento em que leu pela primeira vez as duas linhas iniciais da carta do filho, com as mãos trêmulas e o coração disparado. O efeito das pílulas e o cansaço de um dia agitado somaram-se para fazê-la dormir sem que percebesse, mesmo com toda aquela excitação e contra sua vontade. Despertou com a campainha tocando forte. Levantou-se assustada, um pouco desorientada e foi até a porta, da qual abriu a escotilha. Era seu Jaime, o padeiro, que todos os dias deixava o leite e o pão na varandinha, bem à sua porta: - Desculpe se a incomodei, dona Lourdes, mas vi a luz acesa, a janela aberta e estranhei. Tomei a liberdade de espiar pela janela e vi a senhora na poltrona, vestida

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com roupa de sair e calçando sapatos de salto. Aí me assustei, a senhora parecia estar desmaiada, por isso achei melhor tocar. A senhora está bem? Dona Lourdes retrucou agradecendo a atenção dele, e tranqüilizou-o: - É só cansaço, seu Jaime, devo estar ficando velha! Que horas são? - Quase cinco. De fato, a senhora me parece cansada, espero que esteja bem e se recupere. Ela agradeceu mais uma vez, abriu a porta, pegou o leite e o pão, e, por delicadeza, esperou seu Jaime se afastar em sua bicicleta, despedindo-se pela troca de acenos. Ao fechar a porta, reparou no péssimo estado em que estava, toda amarrotada e despenteada. Resolveu trocar a roupa, lavar o rosto e tomar o café da manhã para se recuperar. Neste meio tempo decidira-se: ia abrir o envelope e ler tudo o que havia nele, linha por linha. Capítulo 7 Um maço de 22 folhas de papel perfuradas e amarradas com barbante, encapado com cartolina parda como nos processos judiciais, foi retirado do temível envelope pela mãe do jovem missivista. Na capa, em caneta hidrocor vermelha com a letra do autor, vinha o título do documento: “Declaração, feita de memória e próprio punho pelo brasileiro José Eustáquio Raghid Varela, do que lhe ocorreu no período de 11 de setembro de 2001 até a presente data”. A seguir, o mesmo título parecia a dona Lourdes vir repetido em inglês e em árabe por outra caligrafia que não a do filho. Mas ela arregalou os olhos e levou uma das mãos à boca, estupefata, quando leu, em português, igualmente seguido pelos dois outros idiomas, o local e data do escrito: “Bagdá, 24 de dezembro de 2004.” “Santos Deus!” – exclamou em voz alta, sem ser capaz de se conter por tamanha surpresa. Para o leitor, que conheceu o resumo de parte do relato nos dois primeiros capítulos desta história, a surpresa não deve ter sido tão grande. Sabemos do vínculo macabro que há entre aquele pedaço usurpado à ilha de Cuba e a infeliz cidade referida naquela datação, inclusive por ela abrigar uma prisão tão terrivelmente célebre como Abu Ghraib. Porém, para a pobre mãe... nem se diga! Ela se preparara da melhor maneira que lhe fora possível. Tomara um bom banho, café da manhã reforçado com frutas e fora à missa das seis rezar pela alma do filho e pedir forças a Deus para suportar o desafio. Sabia que naquela hora a missa não seria de padre Antonio e não encontraria conhecidos que lhe fizessem desconcentrar-se da missão que havia imposto a si mesma. Só ao retornar - sentada na mesma cadeira da mesa de jantar em que abrira os outros envelopes é que, munida de tesoura, uma caixa de lenços de papel que trouxera da drogaria e com os óculos bem limpos e ajustados -, abriu o envelope.

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Das 22 folhas, 19 estavam completamente preenchidas nos dois lados pelo texto principal, feito em letra miúda e com um mínimo de espaço entre linhas, mas no capricho, com caneta esferográfica de cor verde (os anteriores eram com o mesmo tipo de caneta de cor azul). Eram numeradas por folha, na parte direita superior da página de frente de cada uma, sempre com os respectivos números colocados dentro de um pequeno círculo. O texto começava pela identificação do declarante, a mais completa que lhe fora possível fazer de memória: “Eu, José Eustáquio Raghid Varela, brasileiro, solteiro, etc... declaro, a quem interessar possa, o seguinte:”. Seguia-se o texto corrido, parágrafo por parágrafo, assinalados por uma pequena entrada na primeira linha, sem mais cesuras nem divisões destacadas. O conteúdo, rigorosamente composto em ordem cronológica e, ao que parece, com supervisão ou assessoramento de quem possuía domínio de normas jurídicas, inclusive com a menção de datas e horas certas ou prováveis em alguns dos parágrafos, poderia ser dividido em três grandes partes fundamentais, como a seguir veremos. As três últimas folhas eram de anexos ao texto principal, sobre os quais saberemos mais à frente. A primeira parte continha o relato detalhado desde a saída de Brasília até a chegada na prisão de Guantânamo, sobre o qual já sabemos o suficiente para seguirmos em nossa história. Ocupava quase quatro folhas inteiras (sete páginas e três quartos). A segunda parte, a mais volumosa, ocupando quase oito folhas (15 páginas e tanto), continha o relato detalhado da estadia do desventurado autor naquele inferno sem poesia. Um inferno em que o maior castigo, segundo ele, era o de não poder morrer nem ficar louco. Avançada tecnologia médica, farmacêutica e hospitalar era aplicada aos prisioneiros para que as torturas obtivessem o máximo de sofrimento possível sem que a vítima ultrapassasse os dois limites. Se isto ocorresse seria, para os algozes, uma falha tão grave quanto a fuga do prisioneiro. Devemos saltar toda essa parte. Deixemos linhas como tais para os processos que haverão de correr nos tribunais existentes e futuros e que, com os auspícios de uma outra realidade mais favorável à vida humana nesta Terra, farão punir com Justiça esses criminosos desalmados e colocar os responsáveis diretos e indiretos por tamanhas atrocidades em seus devidos lugares (ou infernos). A terceira e última parte era o relato de Taquinho (dona Lourdes voltou a lembrar-se dele pelo apelido, tão logo começou a leitura) a partir do momento em que acordou com o mesmo gosto ruim na boca e quase tão desorientado quando se descobriu numa lancha militar indo para Guantânamo. Desta outra vez, a sensação era a de estar na poltrona muito reclinada de uma aeronave, em pleno vôo, que o levava para longe do inferno no qual, calculara depois, perdera quase três anos de sua jovem existência. Esta parte contém o que poderia o autor relatar da história que vamos descrever a partir do próximo capítulo, pois, neste, ainda temos de dar espaço aos anexos e um tempo para dona Lourdes, que demorou mais de vinte horas seguidas para ler tudo o que ali havia para ser lido em nosso idioma. A caixa de lenços de papel lhe fora suficiente só para as três primeiras horas de leitura e, antes da metade da segunda parte, com certeza a mais difícil para ela, já se valera de todos os lenços de pano que possuía, os quais havia disposto ao seu lado, numa cestinha de costura, quando se acabaram os de papel.

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Deixemos só a pobre senhora em seu pranto imerecido, com a nossa solidariedade e pesar, e continuemos, pois devemos também preparar-nos para a penosa travessia, ainda que nunca tão difícil para nós quanto o fora para ela. No primeiro anexo havia uma luminosa reflexão ao mesmo tempo filosófica e confessional do próprio Taquinho, quase poética, a respeito de tudo o que se passara com ele e sobre a decisão que havia tomado para o futuro imediato. Nele, consumiu a página de frente e dois terços do verso da folha que lhe coube. O segundo era um depoimento do preceptor de Taquinho na sua conversão, ou melhor, sua iniciação na religião muçulmana, de corte sunita. Apesar do batismo e a cultura cristã de origem, o novo discípulo do Islã confessara ao preceptor que jamais se iniciara ou praticara no credo cristão, exceto quando criança e por indução de sua mãe, considerando-se, mesmo, um completo ignorante de quase tudo a respeito. Vinha escrito em perfeito Português, quase castiço, com encômios sinceros ao discípulo, pois não disfarçavam a admiração do preceptor pelas virtudes que encontrara no espírito e na vida interior do iniciado. Assinava com o codinome Shakir (grato, agradecido) e codinominava seu discípulo de Faraj (cura, melhoria), significados estes que informou também entre parênteses ao mencioná-los pela primeira vez no corpo do texto. Conciso e preciso, o texto é de autoria de quem domina plenamente a linguagem escrita e ocupava, bem diagramado, quase toda a página de frente com letras boas, de calígrafo, e linhas bem espaçadas O terceiro trazia os atestados de próprio punho de duas testemunhas que ouviram todo o texto lido pelo próprio declarante e traduzido, simultaneamente, para o árabe por seu preceptor, bem como o viram escrevendo o documento em diversas ocasiões. Um deles era escrito em árabe e o outro em bom Português-Brasileiro; ambos vertidos para o inglês. Por razões de segurança, as testemunhas não se identificavam, exceto por rubricas ilegíveis, mas se comprometiam a fazê-lo diante de tribunais e mediante compromisso de sigilo judicial. Os atestados, e respectivas versões para o inglês, vinham escritos em letras miúdas e apertadas entrelinhas, ocupando só a página de frente da folha. Os anexos foram escritos em caneta esferográfica de cor verde, exceto o do que se codinominava Shakir, que era escrito também na cor verde, mas a caneta tinteiro, no pleno domínio de seu manuseio, o que se podia perceber pelo sofisticado traçado das letras, das serifas e do uso dos traços finos e grossos de requintado calígrafo. Capítulo 8 Taquinho sentiu o impacto forte do pouso mal feito da aeronave, sem saber o que havia do lado de fora, nem se era noite ou dia, pois todas as janelas estavam fechadas e a penumbra de poucas luzes internas dominava o ambiente. Pouco depois da aterrissagem, mais luzes internas se acenderam e ele pôde ver outras poltronas como a dele à sua frente, algumas ocupadas. Percebeu-se vestido com uma só túnica de tecido vulgar que ia até seus pés sobre o corpo nu. Calçava umas sandálias velhas de couro cru, podia vê-las e senti-las. Passou-se algum tempo com a aeronave parada no solo quando, enfim, ele escutou vozes e a movimentação de pessoas. Um dos

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carcereiros do setor onde ficara em Guantânamo se aproximou e, rude como sempre fora com ele, tirou as algemas que lhe prendiam na poltrona e ordenou-lhe que o acompanhasse. Para surpresa de Taquinho, não lhe foram recolocadas as algemas. Durante o tempo na prisão, aprendera inglês apenas o suficiente para saber que ordens lhe estavam sendo dadas e como cumpri-las. Praticamente não podia abrir a boca para falar enquanto esteve lá, pois sempre que tentara fazê-lo, apanhara como um cachorro. Seguindo o carcereiro, desceu pela porta traseira da aeronave e se viu dentro de um hangar com carros estacionados. Obrigaram-no a entrar e a se sentar no banco do meio de uma velha Kombi com dois homens no banco de trás e o motorista ao volante, todos em trajes civis. Nada de algemas. A Kombi arrancou para fora do hangar e só então Taquinho viu o céu de um amanhecer um pouco nublado sobre a paisagem das adjacências de um aeroporto. Por cerca de meia hora, o veículo percorreu ruas e estradas de terra, quase desabitadas, de uma região arenosa e desértica, até que, em determinado ponto, estacionou. Os dois homens que iam atrás abriram a porta lateral da Kombi, e empurraram-no para fora. E foram embora. “Enfim, estou autorizado a morrer”, pensou o jovem ao se ver só naquela paisagem desolada. A certa distância, longe da estrada, viu uma construção com muitos urubus pousados no telhado. Um cenário que, apesar do fundo desértico, lembrou-lhe o do matadouro na sua cidade de Governador Valadares. Constatou que de fato aquilo era um matadouro e que fora desovado num lixão de grande cidade. Apesar de estar quase desmaiando de fome, de sede, das dores em todo o seu corpo, em contraponto com uma sensação anestésica que lhe dificultava o tato e a percepção da textura de sua própria pele, além de exausto e quase completamente exaurido do instinto de sobrevivência, ele decidiu andar para longe dali até onde pudesse resistir para não deixar seu corpo a disposição dos abutres. Andou, não sabe quanto e por quanto tempo, até que avistou ao longe um perfil urbano difuso na quase opacidade das nuvens de poeira que o vento alçava sob um sol escaldante que já ia alto. Reuniu todo o resto de forças que porventura lhe restavam e praticamente se arrastou pela estrada naquela direção. Começaram a surgir os primeiros transeuntes, em geral pessoas maltrapilhas, algumas também vestindo túnicas como a dele, umas poucas usando turbantes. Numa encruzilhada, ele pensou tomar a via mais populosa a sua esquerda, mas viu nela alguns cachorros soltos. Tinha tomado horror a cachorros, os torturadores os usaram para aterrorizá-lo, por isso mudou o rumo e foi pela outra via. Ninguém dava a mínima para ele em seu estado lamentável, empoeirado e suarento, claudicante, quase se arrastando. Por duas vezes, tombou ao solo e em ambas pensou em desistir. Porém, seguiu, entrou na cidade, num bairro periférico paupérrimo, com muita gente movimentando-se para todos os lados, carros e ônibus velhos, placas e sinalizações em caracteres estranhos e para ele absolutamente indecifráveis. Num certo momento, ele viu a abóbada de um edifício alto e se dirigiu na direção dela. Ao se ver de frente para a majestosa fachada do edifício chegou a pensar que estava delirando e andou até as escadarias que levavam à sua porta principal. Nos primeiros degraus deixou-se cair e pensou: “Aqui mesmo fico, adeus mundo sórdido!” Deitado ali em desajeitada posição, ele nem ligava ao que estava à sua volta e olhava

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para o céu cinzento azulado, tentando relaxar-se para falecer com alguma paz interior em sua inusitada solidão. Foi então que seus ouvidos captaram os sons do diálogo de um casal que passava por ali. Falavam a sua língua e, à medida que se aproximavam, os entendia com perfeição. Estavam cada vez mais perto dele, e Taquinho, a ponto de desmaiar e vendo tudo escurecer, nunca soube explicar para si mesmo por que, tão desejoso como estava de desaparecer da face do planeta, reuniu suas últimas energias, em penosíssimo esforço, para gritar com o que lhe restava de força nos pulmões: “Ajudem-me, por favor!” Quando abriu os olhos, se viu deitado num leito de enfermaria de um movimentado hospital. A seu lado, sentado numa cadeira, um homem lhe dirigiu a palavra e ele não só recordou a voz masculina que ouvira antes de desmaiar como entendeu perfeitamente o que lhe estava sendo dito em sua própria língua pátria, coisa que há muito tempo, muito mesmo, quase uma eternidade para ele, não lhe ocorria. - Quem é você? – perguntou ele a Taquinho – Como chegou até aqui? Você fala português? Taquinho custou a estabelecer um diálogo inteligível com ele. Pensou que era um médico e se apavorou, pois tinha tomado pavor de médicos. Tinha dificuldade de controlar a voz, às vezes não lograva emiti-la, outras falava muito alto por nervosismo e excitação. Mas o homem foi gentil, acalmou-o e, pela primeira vez desde que deixara o Brasil, Taquinho sentiu um ser humano amistoso diante de si. Aos poucos foram conseguindo comunicação. Taquinho ficou sabendo que estava num hospital de Amã, capital da Jordânia. Tinha sido examinado detidamente e recebera vários medicamentos, soros e vitaminas. Disse o homem que seu corpo trazia muitos sinais de ter sido torturado barbaramente e o corpo médico do hospital estava aguardando que se reanimasse para interrogá-lo, antes de qualquer outra providência. Taquinho então falou em Guantânamo. Ao ouvir essa palavra, o homem pediu que não falasse mais nada e fingisse que permanecia desacordado. Iria buscar-lhe roupas para tirá-lo imediatamente dali. Praticamente ordenou-lhe que o aguardasse retornar e que não falasse com ninguém. Ia saindo quando Taquinho perguntou-lhe: - Que dia do ano é hoje? - 15 de agosto. - De que ano? - 2004! Taquinho chorou.

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Capítulo 9 No seu texto, Taquinho diz não poder identificar nem dar detalhes do amigo que o salvou de falecer na porta de uma mesquita em Amã para não comprometê-lo em suas atividades. Nós podemos saber que era um membro importante da resistência iraquiana e ex-oficial da Inteligência de Sadham Husseim, que teve uma longa estadia no Brasil na época em que os dois países tinham boas e muitas relações comerciais. Para facilitar a narração do papel dele em seu relato, Taquinho deu-lhe o nome fictício de Fadil, o qual, segundo aprendera com o seu preceptor, significa “generoso”. Valemo-nos do mesmo nome para batizar esta personagem da nossa história. Quando encontrou Taquinho, Fadil ciceroneava uma velha amiga brasileira, que passava por Amã em missão de trabalho e estudos sobre mesquitas no Oriente Médio. Os dois ouviram-no pedir ajuda em língua portuguesa e decidiram levá-lo ao hospital. Mas Fadil ficou curioso e, como estava hospedado perto do hospital, decidiu acompanhar o caso. Tendo percebido a situação de Taquinho pelas cicatrizes que os grilhões lhe deixaram nos pulsos e nas canelas – o que abria a possibilidade de que fosse membro da resistência iraquiana -, para evitar polícia e procedimentos legais destinados a não documentados, suspeitos e indigentes, declarou-se amigo da família do paciente e forneceu ao hospital dados falsos que identificavam Taquinho como cidadão iraquiano. Os médicos, ao examinarem-no, puderam diagnosticar o seu sofrido passado e queriam informar as autoridades. Fadil convenceu-os de esperar o paciente voltar a si antes de fazê-lo, e eles concordaram. Por sorte, Fadil estava ao seu lado, com um notebook, tentando identificá-lo em fotos de membros da resistência desaparecidos, quando Taquinho despertou depois de quase dois dias em que ficara desacordado. Naquele momento, a movimentação no hospital era atípica e nervosa, por causa de um acidente de ônibus nas proximidades, de que muitos feridos foram levados para lá. Fadil aproveitou-a para escapar com Taquinho. Comprou ali por perto roupas ocidentais, um par de tênis e um turbante, e os levou numa sacola até o leito dele. Ajudado por Fadil, Taquinho saiu do hospital em meio ao tumulto do acidente, sem que ninguém os abordasse. Tomaram um táxi, passaram no hotel para Fadil apanhar a sua bagagem e foram até a rodoviária, onde tomaram um ônibus para Bagdá. Taquinho foi instruído para fingir-se de surdo-mudo na parada de identificação que, decerto, fariam na fronteira entre os dois países. Fadil apresentaria os documentos de ambos, diria que Taquinho era deficiente físico e que respondia por ele. O ônibus estava quase vazio e eles sentaram-se distante dos demais passageiros para conversarem sem ser ouvidos. Fadil era experiente em tais situações, além de muito cuidadoso com os detalhes. - Em Bagdá – disse-lhe Fadil – você estará mais seguro do que em Amã, que é uma cidade totalmente controlada pela CIA. De lá, será mais fácil para nós repatriá-lo com segurança. Taquinho, porém, colocou objeções a este último projeto. Não queria retornar, sabia-se mutilado física e espiritualmente, para sempre, e já tinha tomado a decisão irrevogável de deixar-se morrer, ou, se possível, matar-se.

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O amigo tentou demovê-lo da idéia e, para convencê-lo, decidiu revelar ao jovem o que ouvira dos médicos que o examinaram. Disse a ele que lhe restava pouco tempo de vida, no máximo um ano, e isto se se mantivesse sob cuidados médicos e hospitalares de boa qualidade. Por que Taquinho não aproveitava esse pouco tempo e não o compartilhava com seus entes queridos? Taquinho agradeceu o apoio, mas desanimou-o contra-argumentando que só levaria mais sofrimento e tristeza a tais pessoas. Além disso, sentia-se profundamente humilhado e absolutamente incapaz de encarar qualquer uma delas. Contou o que lhe passou desde que saíra do Brasil e, muitas vezes aos prantos, as torturas de que fora vítima inocente. No fim, pediu encarecidamente ao novo amigo que não lhe poupasse nada do que soubera no hospital, queria saber de tudo, nos detalhes. Ao ouvir atentamente todo o relato, Fadil surpreendeu-se pelo fato de Taquinho nada conhecer dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001, nem da guerra dos EUA contra o Iraque e o Afeganistão (Taquinho mal sabia da existência de tal país), fatos estes sobre os quais dissertou longamente como um auto-atentado pré-concebido pelo governo norte-americano para que desatassem as duas guerras e outras mais. Especulou que a prisão de Taquinho fora uma das primeiras conseqüências daqueles fatos e que possivelmente ocorrera por engano. Uma vez que ele se tornara um perigo para os propósitos dos que o prenderam, usaram-no como cobaia de experimentos médicos avançados e de tortura científica. Disse-lhe que não era o primeiro caso que lhe chegara ao conhecimento, mas que estava ao lado do primeiro sobrevivente, de que tinha notícia, de tamanha barbárie. Atendendo ao pedido de Taquinho, Fadil fez-lhe um resumo do que fora informado no hospital. Seus aparelhos digestivo e respiratório estavam indo irreversivelmente ao colapso. Um dos pulmões estava praticamente inutilizado e o outro, muito lesado. O rim esquerdo lhe fora extraído (possivelmente para transplante) e o direito não apresentava bons sintomas. Assim também o fígado, o estômago e os intestinos grosso e delgado. Exames de sangue, de urina e outros revelaram que ele fora submetido, por longos e vários períodos, a altas doses de drogas de toda espécie, algumas capazes de lesar em definitivo certas funções do organismo. Quando foi encontrado, estava à beira do escorbuto, doença fatal que é causada por pelo menos três meses de falta total de nutrição de vitamina C. Fadil especulou que tal desnutrição lhe parecia proposital, talvez uma tática de Guantânamo; ao liberar suas vítimas preparava-as para a morte rápida e longe de suas responsabilidades. Via também como outra tática daquela prisão de alta tecnologia o fato de apesar de violentarem um corpo por todas as maneiras possíveis, o esqueleto permanecer não atingido e intacto. Nenhuma lesão grave, trinca ou fratura fora encontrada no de Taquinho. Assim, uma futura exumação de cadáveres dos torturados não apresentaria provas contra os torturadores. Já tinham passado a fronteira, sem problemas, quando Taquinho perguntou ao amigo se a resistência iraquiana se valia de ataques suicidas contra os inimigos. Em caso positivo, ele gostaria de se apresentar como voluntário. Fadil calou-se por um tempo, antes de responder. - Tal honra, se é que eu tenha entendido onde realmente você quer chegar - disse ao jovem - é exclusiva de um verdadeiro Mujahid. Muito diferente do que divulgam no Ocidente, o Jihad não é

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Guerra Santa, longe disso. Não há tradução possível numa só palavra ou expressão de línguas ocidentais para o seu significado completo. Trata-se de um direito legítimo de defesa que os muçulmanos se outorgam em dois campos distintos: internamente, em si mesmos, contra a perversão da própria alma, e externamente, em defesa da pessoa e da nação islâmicas. Há regras precisas para o segundo caso. Só pode ser usado in extremis e não pode vitimar crianças, velhos e mulheres inocentes. Tem de ser a conseqüência do amor ao Islã, e não do ódio ao inimigo. Não se trata de um instrumento legal de ataque, como pensam os ocidentais, mas de uma cultura de defesa das nossas tradições. Para a religião islâmica, ao se dar a vida pelo Islã, não há o suicídio, mas, sim, a purificação pelo martírio. Usado de acordo com as regras, haverá para o mártir a absolvição de todos os seus pecados. Ele encaminha a sua alma diretamente a Alá. - E como eu faço para me tornar um Mujahid? – perguntou Taquinho. - Não sou eu quem pode lhe dizer – respondeu Fadil. Capítulo 10 Taquinho abriu os olhos depois da meia hora de cochilo a que se acostumou aos fins de tarde, logo depois de administrados os seus medicamentos de rotina. Deitado na confortável cama do quarto arejado e bem iluminado em que se hospedava, ele às vezes se beliscava para certificar-se de que não estava sonhando. Desta vez, não precisou, estava bem acordado... e feliz, chegava a sorrir consigo mesmo. Mas não era a felicidade do tipo daquela em que o vimos ao se aconchegar na poltrona do avião, no início da nossa história. Não, de forma alguma! Era um outro tipo de felicidade, tão infinitamente distante daquela, que, em suas meditações, Taquinho a imaginava como as do tipo que devem iluminar os grandes descobridores e inventores diante dos grandes achados históricos; no caso dele, a descoberta maravilhosa da sua própria consciência, ou do seu próprio ser. Zahirah, a luminosa, entrou trazendo o lanche da sua dieta numa bandeja, alegre como sempre. Era linda a filha de Shakir, além de ser uma bailarina magnífica. Taquinho via nela traços de sua mãe; imaginava-a, na mesma idade, com a graça, a cor clara da pele, o arredondado do rosto e os olhos castanhos amendoados muito semelhantes aos de Zahirah. Trocaram sorrisos, e ela se foi, silenciosa e brejeira, fechando a porta com cuidado. Era um anjo! Taquinho e ela cultivavam um amor fraternal, pois outro ele não podia mais - a tortura o despojara das funções sexuais; mas isto agora não lhe importava nem um pouco. Estava a dois dias da cerimônia da Chahada, que o converteria em muçulmano e, depois, se os clérigos lhe concedessem a honra, em Mujahid. Taquinho considerava esses últimos quase quatro meses como equivalentes a toda uma vida que valesse a pena ter sido vivida. Daí aqueles conceitos que expressou em seus escritos, a respeito dos valores qualitativos e quantitativos do tempo. De memória, ia repassando os acontecimentos desde que Fadil o deixou no esconderijo em Bagdá, no porão de uma casa onde passou dois dias com uma garrafa d’água e um pão para se alimentar. O porão pareceu-lhe uma mansão perto das celas de Guantânamo, e a comida um manjar, embora não pudesse desfrutar-lhe o sabor

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por causa dos problemas no paladar e no aparelho digestivo. Molhava o pão na água para comê-lo sem se engasgar. Fadil retornou com dois homens, cada um carregando, com grande esforço, duas belas poltronas estofadas (Taquinho nunca vira poltronas como aquelas) e disse-lhe que um sufi viria avaliá-lo quanto à possibilidade da conversão. Explicou-lhe que o sufi tinha sido cônsul em Portugal por muito tempo, falava e escrevia bem em português, e o sobrenome Raghid o convencera a vir visitá-lo (“É a primeira vez que o Raghid me valeu para algo”, pensara, então, Taquinho). Disse-lhe que a audiência poderia ser demorada, em geral levava horas e até dias, e o aconselhou a ser sincero, não mentir, não distorcer fatos nem tentar ludibriar o sufi. Orientou-o para que o aguardasse de pé, respeitoso, só fizesse o que ele lhe ordenasse, e que não falasse uma palavra sem que lhe fosse solicitada. Fadil saiu com os homens e logo os três retornaram acompanhando Shakir, que vinha elegantemente trajado, com um terno muito bem cortado (“Digno do meu avô”, recordou Taquinho) e um turbante alvo no qual vinha preso, ao centro, um grande rubi que combinava com a cor da gravata. Shakir olhou bem o garoto dos pés à cabeça, trocou algumas palavras em árabe com os três homens, e se foi. Taquinho baixou a cabeça, derrotado, mas, para sua surpresa, Fadil o cumprimentou, parabenizando-o, pois ele fora brilhantemente aprovado. Disse que receberam ordens para levá-lo à residência do sufi, o qual assumiria, ele mesmo, a tarefa de iniciá-lo. Além do mais, Taquinho seria recebido como hóspede do sufi até a sua conversão. Ambas as decisões do sufi eram consideradas honras extremas. No mesmo dia ele foi levado até o belo, grande e rico palacete do sufi, com vários empregados e serviçais, e foi instalado naquele apartamento (quarto com banho privativo) cuja grande janela dava para um jardim interno belíssimo que era cuidado por dois jardineiros supervisionados pelo bom gosto de Zahirah. Lá o esperavam dois médicos e um enfermeiro que, acompanhados por Fadil para facilitar a comunicação e a confiança do paciente, durante uma semana o examinaram, o medicaram e converteram o quarto num pequeno hospital, cheio de produtos de uma outra farmácia que ele não conhecia, a islâmica, além de alguns produtos, equipamentos e acessórios hospitalares convencionais. Tais expedientes trouxeram um enorme conforto para ele, e o livraram dos desmaios e falta de ar de que vinha sendo vítima desde o segundo ano em Guantânamo. Os médicos prescreveram-lhe dieta à base de alimentos líquidos, cremosos e gelatinosos e uma série de poções, remédios e vitaminas que deveria ingerir rotineiramente. Depois, veio-lhe um enxoval de roupas ocidentais de boa qualidade que serviam nele como se feitas sob medida, e quase encheram o armário amplo que equipava o quarto. Vieram também os livros, todos em português e que Fadil ia passando para ele com orientações sobre cada um. O mais importante naquele momento era um manual de iniciação no islamismo para os povos de língua portuguesa, escrito pelo próprio sufi, que foi o primeiro a ser lido e veio a ser o de cabeceira do iniciante. Começou a ler muito; pela primeira vez na vida deixou-se levar pela leitura de livros e saboreá-los com atenção interessada. Tinha facilidade; desde cedo, quase criança, percebera isso, mas, em Valadares, procurava escondê-lo dos colegas de escola e dos amigos, pois todos detestavam ler livros, e ele fingia que detestava também. Além de ler com rapidez – em poucas horas podia ler volumes que tomariam dias ou semanas de leitores normais -, tinha o dom de apreender tudo logo na primeira leitura e ainda

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ser capaz de citar trechos e até parágrafos inteiros, de memória. Antes, ele procurava fugir dos livros para manter longe da consciência pensamentos que julgava desagradáveis ou perturbadores; envergonhava-se de ter facilidade para ler e escrever como se tais virtudes fossem defeitos execráveis. Valia-se de obnubiladores da consciência que buscava em banalidades fáceis, a fim de se parecer igual aos amigos e colegas – coisa em que nem sempre era bem sucedido. Agora, via-se dedicando aos livros de oito a dez horas por dia, às vezes até mais, devorando-os, como se a tentar recuperar o tempo perdido. Sua saúde e os traumas psíquicos não lhe permitiam dormir bem nem ter sonos longos, e ele cobria insônias, mal-estares, dores e febres com a leitura de livros que, além de lhe proporcionarem as maravilhas do conhecimento e abrirem as janelas da sua consciência, traziam-lhe também alívio físico, distraindo-o desses problemas. No primeiro domingo do mês de setembro, Fadil chegou cedo acompanhado de um barbeiro que lhe fez o cabelo e a barba com extremo capricho, deixando bem desenhados o cavanhaque e o bigode, ao estilo árabe. Ficou combinado que o barbeiro viria aos domingos pela manhã. Depois, o amigo pediu-lhe que se vestisse com a melhor roupa, porque teriam o primeiro encontro com o sufi, após o qual Fadil se despediria, pois tinha de voltar a Amã. Taquinho estava outro, quase renascido. Fadil e ele foram recebidos na esplêndida biblioteca do sufi, que os acomodou bem à vontade em grandes almofadões dispostos sobre um tapete persa magnífico, ao lado de uma grande vidraça que dava também para o jardim interno, mas em sua parte mais rica em paisagismo. Estava acompanhado de Zahirah, e foi quando Taquinho conheceu vez o rosto dela, pois antes já a vira cuidando do jardim, porém, usando véu e roupas discretas. Ali, ela estava lindamente vestida e sem o véu, olhando sorridente para ele, e cumprimentando-o em português de Portugal. Estabeleceu-se nesta primeira e rápida reunião que Taquinho começaria o processo de sua iniciação no dia seguinte. Todos os dias ele deveria acordar antes do nascer do sol, ir para a biblioteca e fazer a leitura de uma surata do Alcorão escolhida pelo mestre. Depois fariam o desjejum para em seguida começarem as aulas, os exercícios espirituais e a iniciação nos chamados “cinco pilares do Islã”. A dificuldade que Taquinho teve ali com o português de Portugal, que era falado pelo sufi e a filha, foi superada por ele em menos de uma semana. Taquinho demonstrou disciplina, humildade e vivacidade desde este primeiro encontro; encantou o mestre e a filha. No final daquela mesma semana, o sufi deu ao discípulo uma folha de papel e uma caneta esferográfica pedindo para que escrevesse reflexões sobre a sua vida interior, usando apenas um lado da folha. Advertiu-o de que o papel em Bagdá era difícil e racionado e de que não o desperdiçasse. Disse-lhe para ocupar uma das mesas perto da estante mais ampla e, quando acabasse, deixasse ali mesmo o escrito. Em seguida, saiu, deixando-o só na biblioteca. Capítulo 11 “Fui um idólatra! “Desprezei os valores do saber, da fé e da humildade e reverenciei ídolos de matéria

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plástica e elétrons coloridos, vazios de essência e substância. Deixei-me ser escravizado e fui presa fácil de armadilhas criadas para alimentar a ganância insaciável de falsos deuses. Porém, e não poderia ser de outra forma, meu espírito vivia em permanente estado de insatisfação, o que me impelia mais e mais ao servilismo e à vileza. “Em busca de algo que eu não sabia o que era, viajei em vão por continentes e mares. No início, por minha própria e equivocada vontade, e, depois, preso e indefeso nas garras de algozes poderosos. Lentamente, eles me sugarem todas as esperanças e forças vitais, e, enfim, me descartaram. Fiquei só, física e espiritualmente, no meio do deserto. “Somente agora, depois da primeira experiência pessoal com a benevolência dos justos, que dali me retiraram e trouxeram-me a esta nobre casa, é que tomei consciência: o que eu ansiosamente procurava alhures sempre esteve bem aqui, comigo, como um facho de luz no interior do meu próprio ser e que a cegueira da alienação não me permitia enxergar. “Que as poucas linhas restantes daquelas que porventura me foram dedicadas no Grande Livro descrevam o meu encontro com o esplendor dessa luz. Por mais insignificante eu a tenha tornado com o peso de meus pecados, por resgatá-la tudo farei e, tendo êxito, me sentirei recompensado na eternidade. “É o que, com fé e humildade, peço a Deus, se acaso posso ser digno da Sua misericórdia e do Seu perdão para que me julgue merecedor de tamanha glória. “Raghid” Shakir era um místico e um sábio respeitado em todo o mundo islâmico. Gozava de grande prestígio também em altas rodas ocidentais. Seu verdadeiro nome é Hamid al-Basri (mas nós continuaremos a chamá-lo pelo pseudônimo que deu a si mesmo como preceptor de Faraj-Taquinho), cuja ascendência, sempre por linha paterna, alguns experts em genealogia afirmam que vai aos primórdios do sufismo e da cultura islâmica depois da Hégira, lá pelos séculos VII e VIII d.C. (a Hégira corresponde ao ano de 622 da era cristã). Pertencente a uma dinastia de místicos de longa tradição (a percepção espiritual na religião islâmica é uma graça de Deus e não uma faculdade que possa ser adquirida pela vontade humana), diplomata de formação e erudito, é também doutor autodidata em Filosofia e Matemática, com reconhecimento honoris causa em afamadas universidades islâmicas e ocidentais, e autor de várias obras publicadas e muito citadas em todos esses ramos do conhecimento. Estava organizando o consulado do Iraque em Coimbra, Portugal, país onde residia com a filha havia quase dez anos, não só como diplomata, mas, também, como pesquisador da história e do pensamento islâmicos no período de ocupação da Península Ibérica. Ao final do ano 2000, com a eleição fraudulenta de George W. Bush, entendeu que a segunda invasão ao seu país se tornara uma ameaça real e decidiu por retornar a Bagdá. Ali, assumiu seu posto na alta cúpula da resistência, organizando-a e preparando-a para invasão, depois da qual passou a atuar em duas frentes distintas.

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Por seu completo domínio da língua inglesa, atuava política e diplomaticamente perante os invasores, buscando a atenuação das catástrofes que causavam em seu país, ao mesmo tempo em que comandava pessoalmente a luta armada, como membro do alto comando da guerrilha de resistência. Fazia isto com relativa facilidade, uma vez que os oficiais e políticos norte-americanos envolvidos no front não dominavam o árabe, e menos ainda a cultura e os costumes islâmicos. Tinham de se valer de intérpretes, os quais eram, quase todos, membros da resistência infiltrados, quando não era o próprio Shakir a exercer o papel. Os poucos invasores que tinham algum domínio do árabe não tinham a menor percepção das sutilezas de linguagem, cultura e hábitos muçulmanos, e eis que era facílimo confundi-los, driblá-los e enganá-los. Muitas vezes, Shakir despachava com membros da resistência bem diante deles, que pensavam estar tratando com políticos, chefes de tribos ou de comunidades locais. E os pouquíssimos norte-americanos ou seus aliados europeus que alcançavam um entendimento mais sofisticado sobre onde estavam se metendo, acabavam por aliarem-se à resistência, haja vista os descalabros que seus compatriotas cometiam contra algo que tanto admiravam. Não raro, recebiam informações privilegiadas de dentro do próprio Pentágono, especialmente depois da destruição e saqueio dos preciosos Museu e Biblioteca de Bagdá. A reflexão de Raghid surpreendeu-o, ainda que desde a primeira vez que o viu percebera a força espiritual que havia latente naquele jovem torturado. O conteúdo sensível, a beleza da caligrafia, a composição sem remendos, rasuras nem correções, posta com limpeza e senso de proporção na folha de papel, sem que fosse necessário rascunhá-la, eram virtudes de redação pouco comuns atualmente, mesmo nos países islâmicos. O jovem iniciando demonstrava ter talento, apesar do estilo tipicamente ocidental e um tanto rebuscado, com traços fortes e originais, mesmo quando afetados de inspirações orientais, e, às vezes, excessivamente vigorosos para o gosto árabe. Lembrava algo do que Shakir observara no chamado barroco brasileiro em relação à arquitetura e à pintura, sacras e profanas, quando visitou a cidade de Diamantina, no interior do Brasil. Uma postura criativa de altivez desinteressada e irreverente, o fazer com alegria e liberdade, muitas vezes à beira do deboche, características que o encantaram na produção artística brasileira em geral. Postura esta que perturbava e até irritava a carrancuda e interesseira Europa, em particular os anglo-saxões. Entre os latinos, desde os portugueses e espanhóis até os franceses e italianos, Shakir desconfiava que havia uma ponta de inveja pela liberdade criadora dos latino-americanos. O escrito do jovem não deixava margem de dúvidas sobre sua disposição em ir direto aos objetivos que se propôs, mesmo que tenha se valido de sutilezas para dizê-lo. Pelo informe dos médicos, quanto mais próximo no tempo se desse a autorização para que agisse, mais possibilidades de êxito haveria, pois, apesar de apresentar recuperação inequívoca em certos sintomas graves e de demonstrar inesperada vitalidade, a tendência do paciente era a de um gradual enfraquecimento em direção à invalidez e ao falecimento, sem descarte de um possível colapso súbito de um ou outro de seus órgãos vitais mais atingidos. Mas Shakir não abria mão da ética islâmica e dos rigorosos preceitos religiosos que

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envolviam aquela decisão, e acreditava que precisaria de uns oito ou nove meses para assegurar-se de que não os estaria infringindo. Ao ler o texto, reconsiderou, convencido de que o garoto se colocaria hábil para se postular um Mujahid em tempo bem menor. Era notável o progresso demonstrado em pouco mais de uma semana de acesso à literatura básica e à paz interior necessárias para que penetrasse no processo de autoconhecimento. Assim, mandou chamar Fadil e o instruiu para que comunicasse ao comando que tal expectativa fora alterada para dezembro próximo ou janeiro do ano seguinte. E, no dia posterior ao da redação do texto, depois do desjejum, sentou-se com o discípulo na mesma mesa em que lhe deixara o escrito, e disse-lhe: - Vejo que você tem talento de escritor e creio que não devo ter sido o primeiro a identificá-lo. Isto o torna um caso mais raro ainda do que inicialmente imaginávamos. Você é talvez o único sobrevivente de tão difícil passagem, que, além do mais, é capaz de relatá-la por escrito de forma convincente e precisa. Sei que é difícil o pedido que vou lhe fazer e deixo a você decidir se o atende ou não sem que tal decisão se reflita no nosso relacionamento. Muito seria útil à Humanidade um relato seu de tudo o que se passou com você e digo-lhe que tribunais existentes ou em formação em alguns países ocidentais poderiam se valer dele para atuarem com eficácia, a fim de por um termo nessas atrocidades. Você o faria? - Posso tentar - respondeu prontamente Taquinho - mas vou precisar de papel, talvez, muitas folhas, porque haverá de ser longo e detalhado um relato que satisfaça tais propósitos, não? E, se for possível, gostaria de fazê-lo com certa privacidade, pois creio que assim vou ter mais chances de chegar a bom termo. Naquele mesmo dia, o quarto de Taquinho ganhou uma escrivaninha, canetas e materiais para escrever e um pacote com 500 folhas brancas de papel ofício. Capítulo 12 Voltamos àquele momento em que encontramos Taquinho deitado em seu leito, rememorando os fatos que lhe passaram depois de Guantânamo. Relembrava agora o dia 10 de setembro, dia em que comemorou 26 anos, quando, logo após o desjejum, recebeu de Zahirah uma linda túnica bordada, de corte apropriado a iniciandos, e um belo turbante, ambos feitos por suas delicadas mãos. O broche a ser colocado no turbante foi prometido pelo sufi para a cerimônia da Chahada. Era uma sexta-feira e, à noite, o sufi homenageou o aniversariante com uma reunião íntima, na biblioteca. Vieram Fadil e a esposa, e dois membros da cúpula da resistência que Shakir convocara para a assessoria jurídica da redação do memorial de seu discípulo. Serviram comes e bebes, inclusive os especiais para Taquinho, que estreava a túnica e o turbante, ainda um pouco desajeitado no uso de ambos. Zahirah e Bahija, esposa de Fadil, prepararam o narguilé de seis bocas e dançaram para eles. Ao fumar pela primeira vez o haxixe, orientado pela angelical Zahirah, e, sob o efeito mágico e delicioso das baforadas, vê-las dançando ao som lindo do bouzouk (um tipo de alaúde) tocado por Fadil, Taquinho se sentiu fisicamente transportado para o

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sortilégio dos sonhos mais belos e felizes que a vida possa conceder a um mortal. A partir de então, todas as noites das sextas-feiras, logo após a oração de depois do pôr-do-sol, Zahirah preparava para ele um narguilé exclusivo, em seu quarto, e ambos brincavam de “Mil e uma noites”. Ela fazia a Sherazade e ele o sultão. Sempre vestido com a túnica e o turbante e sob o efeito inebriante do haxixe, ele ouvia a leitura de uma das histórias, com sotaque português, na voz aveludada de sua Sherazade. No final da leitura, ambos repetiam o mesmo diálogo que finaliza todas as histórias daquele livro mágico. Em seguida, faziam a última oração do dia e se despediam com beijos fraternais. Nos sábados ou domingos, os dois usavam essas mesmas horas para ver os jornais da televisão ou para navegar na internet no boudoir (sala de costura) dela. Ela traduzia para ele as notícias da TV e depois conversavam muito. Ambos desprezavam a televisão, concordavam que era sempre a mesma porcaria em qualquer país e que era feita para gente burra e mal educada. Além do mais, as notícias são dadas de forma falaciosa, como se para cooptar o espectador e desinformá-lo. Bastava-lhes conferi-las na internet em determinados sites sérios e bem escritos para conhecer a informação correta. Por sua vez, Taquinho aproveitava a internet, nessas ocasiões, para ter alguma informação atualizada do Brasil, mas não registrou e-mail, correspondeu-se com alguém ou interagiu com sites ou blogs. Não porque tivesse dificuldades em operar na nova linguagem, mas porque achava que isto tomava muito do tempo precioso dele e o afastava de seus objetivos. Preferia usar o seu tempo escasso, nesses dias, para conversar com Zahirah. Zahirah contou-lhe que era a única filha do sufi, e a mais nova (completara 21 anos em abril) dos nove irmãos, cada um com uma diferente esposa do pai. Um deles é Fadil, o mais velho, e todos atuavam na resistência. Dois haviam perdido a vida e outro estava desaparecido desde os bombardeios de Fallujah, onde era a sua base. A mãe dela morava na Arábia Saudita, em Medina; o sufi tinha providenciado a mudança de suas esposas para lá, desde o início da invasão. Queria que Zahirah fosse também, mas ela se recusou e não abriu mão de ficar perto do pai. Não tinha medo, os invasores respeitavam os sufis e sabiam o quanto lhes custava agredi-los. Evitavam bombardeios em locais habitados por religiosos célebres, eis porque as bombas sempre caíam longe dali. Mesmo assim, os jardins daquela casa eram famosos por serem povoados de belos pássaros cantores que desapareceram de Bagdá com o advento dos bombardeios. Bagdá tornara-se uma cidade sem pássaros, e o quanto isto entristecia seus habitantes e o olhar de Zahirah! Eram refinamentos assim, em certos detalhes que em outras plagas sequer eram percebidos, que faziam Taquinho, a cada momento em que ia conhecendo mais, um entusiasmado admirador da arte, da religião, da cultura e do povo que o hospedava em meio à barbárie de que era vítima. O cristianismo a que ele estava habituado no Brasil – meditava –, era de pura hipocrisia. Parecia-lhe que em todo o Ocidente pregava-se uma coisa e praticava-se outra, totalmente oposta. Guantânamo e o 11 de Setembro, suas causas e conseqüências, eram demonstrações contundentes. Sua mãe era exceção, na sua opinião. A reforçavam Zahirah e o sufi ao comentarem sobre os cristãos daquela região, dos quais dona Lourdes era descendente. Tanto muçulmanos como cristãos e

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demais crentes nos países do Oriente, dizia o sufi, são admirados pela fidelidade aos cânones de seus respectivos credos e não ao contrário, como ocorre no Ocidente. E entre todas as religiões, ensinava-lhe o mestre, é a islâmica a mais tolerante e a menos sectária na relação com as demais. Mas nem tudo foram flores para Taquinho nesse período. Nos dois primeiros meses, passou por momentos de profunda depressão e desânimo, com crises de choro pelas más lembranças e por sentir-se culpado de ter se tornado motivo de sofrimento para os seus, em particular, a sua mãe. Curou-o Shakir, ao perceber que o jovem estava com “saudades” da sua terra e de si mesmo, e deu a ele um ensaio que escrevera na década de 1950 – quando conheceu o Brasil e aquela palavra –, cujo tema era o pensamento filosófico nativo em nosso país. O discípulo não só assimilou o remédio como passou a seguir a trilha nele assinalada. Começou a entremear os estudos filosóficos e religiosos com os textos da brasilidade e, com o concurso da boa brasiliana que o sufi mantinha em sua biblioteca, seguiu o roteiro do mestre, lendo os grandes brasileiros por ele citados, a começar dos mais recentes. Leu Guimarães Rosa, Graciliano Ramos e Oswald de Andrade, contemporâneos ao escrito, degustando especialmente os ensaios filosóficos do último e concordando com Shakir serem “maravilhosamente bem escritos”. Em uma sentada, traçou Os Sertões, de Euclides da Cunha, e, a seguir, continuou o percurso retroativo na nossa literatura pelas obras de Machado de Assis, José de Alencar, Gregório de Matos, Antonio Vieira, até chegar em Anchieta e Manuel da Nóbrega. Ouviu Villa-Lobos, a partir de uma coleção de vinis do sufi. Quanta vida perdi em futilidades e idiotices, e com plena saúde! – refletia Taquinho ao retomar as lembranças desses meses intensos de estudos e meditações, em meio às atribulações de saúde, em que não lhe faltaram dores, insônias, pesadelos e febres. Mesmo assim, pensava que tudo lhe estava vindo como uma benção. Revia o quanto eram mesquinhos os desejos juvenis de que se mal alimentara, desde as bobagens da Disney até o fanatismo por Madonna, para ficar só nos dois. Como ficavam reles os tão propagados “valores ocidentais” perto dos que agora conhecia! Além disso, desfrutava os clássicos da cultura islâmica e ocidental: Avicena, Al Khwarazmi, Ibn Battuta, Saadi, Omar Khayam, Averrois, Al Jahez, ao lado de Camões, Shakespeare, Cervantes, Dante e tantos outros. Aprofundava-se no Alcorão pelas leituras das suratas e ayats (versículos) e os comentários eruditos de um mestre da magnitude de Shakir. Sentia-se imensamente grato a Fadil, ao sufi e à filha, e se via como sendo recompensado pelas desditas de que fora vítima. Aprendeu que os muçulmanos consideravam também, como palavras de Deus transmitidas aos homens, o Evangelho de Jesus Cristo, os Salmos de Davi, a Torá de Moisés e o chamado livro perdido de Abraão (Ibrahim para eles). A arrogância cristã ocidental insistia, porém, em tachá-los de sectários - que injustiça! Vivera a sua juventude indiferente à leitura do Evangelho, apesar dos apelos de sua mãe, porque as mensagens divinas são desprezadas no ambiente antiespiritual que é imposto à sociedade e ao povo de seu país, em particular à sua geração. Este, sim, é sectário. Prova disso é que, até chegar à casa do sufi, ele só sabia da existência do Evangelho e do Alcorão, e, deste, só por causa das origens de sua família. Sobre os demais nunca tinha ouvido falar. Agora, tinha-os consigo e sempre que os abria, no recolhimento daquele retiro a que fora levado pelo destino, era como se mergulhasse

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em oceanos de sabedoria. Naquele ano, o Ramadã começou em 15 de outubro. Sua saúde não permitia que fosse a Meca acompanhando o sufi e a filha. Por segurança, a resistência tinha decidido que ele não poderia ser conhecido por mais ninguém, exceto pelos membros da cúpula, e não deveria sair da casa do sufi. Assim, o quinto pilar do Islã, a peregrinação a Meca (Haj), ficara a ele impedido. Mas vinha cumprindo com muita fé, entusiasmo e disciplina, sempre sob a orientação do mestre e de Zahirah, o Salat, as cinco orações de cada dia, o Zakat, as dádivas rituais, que ele pagava com trabalhos leves de jardinagem e de bibliotecário que eram possíveis ao seu estado de saúde, e não lhe era difícil o Saum, o jejum durante o Ramadã, pois ele praticamente o observava o tempo todo. O primeiro, a Chahada, ele já a recitava e a aceitava de plena fé, sem, contudo, ainda ter sido autorizado pelo sufi a fazê-lo diante das testemunhas que oficializariam a sua conversão. Como as orações eram feitas obrigatoriamente em árabe – e ele possuía bom ouvido –, acabou assimilando a sonoridade do idioma e até se comunicava razoavelmente nele, pelo menos nas relações cotidianas com o pessoal e os donos da casa. A semana em que o sufi e a filha estiveram fora, aproveitou-a para dar uma boa adiantada no seu relato, quase terminando a parte de Guantânamo, a que, por certo, lhe fora a mais difícil. Um de seus assessores, que era intérprete e tradutor do português para o árabe, não escondia o entusiasmo com as qualidades do jovem escritor e trazia-lhe com freqüência as sugestões do outro assessor, que era juiz formado nos EUA, a quem levava resumos em árabe dos textos que Taquinho ia produzindo. Ao deixar a cama e ir ao banho ritual de purificação para a oração e o encontro daquela noite com o sufi, Taquinho decidiu levar ao mestre, pela primeira vez, a íntegra do que havia escrito até ali. Desde que iniciara o duro trabalho de memória, este sequer fora mencionado nos encontros do discípulo com o mestre. Era hora de apresentá-lo, ainda que por finalizar, e consultar o mestre sobre o que meditara para continuá-lo. Naquela noite, iriam ensaiar novamente a Chahada, cuja cerimônia se daria dentro de dois dias. Depois, ele iria ser submetido à sabatina como postulante a Mujahid. Esta seria conduzida à mercê de Deus, como costumavam dizer, e a honra somente lhe seria concedida pela unanimidade dos presentes. Se bem sucedido, ele passaria a ser membro da elite da resistência e ficaria à disposição do alto comando. Capítulo 13 - O que deve o homem fazer? - O bem. - O que é o bem? - Seja o que for ou onde esteja, isto não é importante. É nosso dever buscá-lo, sempre.

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- Estará na razão? - A razão serve ao poder dos homens sobre outros homens. Muitas vezes, assinala falsos caminhos. - Na moral? - Se for a que começa pela fé, servirá ao dever e apontará o caminho. Por ele, irei. Assim o jovem discípulo do sufi ia enfrentando a difícil sabatina, respondendo com serenidade às questões colocadas, uma após a outra, pelos que o rodeavam. Era numa reunião secreta numa madraça (universidade) de Bagdá, no seu salão hermético e mais nobre, onde pontificam mestres a outros mestres. O evento fora transferido para lá em vista da curiosidade que a trajetória do jovem discípulo de Shakir despertara nos mais fechados círculos islâmicos, e à sabatina concorrera uma inesperada audiência. Houve quem pedisse um intérprete imparcial, ao que Shakir imediatamente consentiu, e ninguém menos que um ex-embaixador do Iraque no Brasil, então catedrático da Língua Portuguesa na madraça, se dispôs a sê-lo. Para o sabatinado fora um dia inesquecível, que caiu, em nosso calendário, numa quarta-feira, dia oito de dezembro de 2004. Era um dia muito frio, mas ensolarado e bonito. De manhã, na sala de orações da casa do sufi, ele protagonizara a cerimônia da Chahada, que foi simples e discreta, mas rigorosa, tendo Fadil e um clérigo xiita, amigo do sufi, como as testemunhas regulamentares exigidas pelo rito de conversão. Diante delas e do sufi ele pronunciou três vezes, com convicção, o dito sunita: lā 'ilaha 'illāl-lāh an Muhammadur rasūlu llāhi (transliteração; em nossa língua: “Não há outra divindade além de Deus [Allah]; Maomé [Muhammad] é o seu profeta”). Em seguida, fazendo a genuflexão regulamentar direcionada para a esguia palmeira que, da janela frontal da sala de orações, indicava a direção de Meca, todos oraram a surata que fora escolhida pelo novo fiel, a 17ª, “A Viagem Noturna”. Ao final, veio Zahirah trazendo, numa almofada de seda alva, um broche com uma bela esmeralda losangular incrustada em uma moldura de ouro oval; simbólica homenagem à bandeira do país de origem do jovem discípulo. O sufi prendeu o broche no turbante de Faraj, beijou-o nos dois lados da face, olhou-o bem nos olhos e no broche preso ao turbante, e abraçou-o vigorosamente. Depois de um almoço frugal servido no varandão da lateral norte do palacete, o iniciado foi levado pela primeira vez a uma mesquita, próxima à casa do sufi, onde fizeram a oração da tarde. A seguir, foram para a madraça. A sabatina começou após a oração do pôr-do-sol, no mesmo salão do evento, com todos os admitidos naquela reunião secreta, cerca de trinta altas personalidades da resistência e do islamismo de Bagdá, sunita e xiita. Impassível, Shakir acompanhou, orgulhoso, o desempenho do discípulo, que se saiu

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com elegância das armadilhas que aquelas cobras criadas do pensamento islâmico prepararam para ele. Algumas, inclusive, baixas, como a que um outro sufi armou ao perguntar se o sabatinado tinha certeza de ter se despojado dos vícios que a sua origem ocidental lhe impregnara desde o berço. - Confundes a minha origem com o comportamento de alguns devassos que vêm governando a minha nação - respondeu, sereno, o jovem. E emendou: - Permita-me desconsiderar a parte equivocada de vossa pergunta. Orgulho-me da minha origem, pois ela está em meu povo; um povo irmão do vosso e que também sofre a perfídia das elites que o governam. Também somos um país invadido, senão pela violência desatada com que invadem o vosso, mas pela mesma estupidez e prepotência. Não sei se me despojei dos vícios comuns aos mortais – os haverá lá como aqui, penso eu -, mas garanto-vos que tudo faço ao meu alcance para manter em meu ser as virtudes que meu nobre povo teria porventura me consignado desde o berço. Coube a Shakir, que se manteve em silêncio o tempo todo, logo ao perceber a platéia satisfeita e encantada, fazer a última pergunta, depois de quase uma hora de sabatina: - O que esperas encontrar como Mujahid? - O esplendor da luz de Deus! - respondeu prontamente o jovem Faraj. - Faraj Mujahid! Faraj Mujahid! – bradaram todos, reverenciando o iniciado. Taquinho era um Mujahid. Capítulo 14 Ao retornar da sabatina, Zahirah apresentou ao Mujahid o novo apartamento em que ficaria hospedado, com um quarto muito mais amplo, sala de estar, sofisticada sala de banho toda em mármore branco e varandão exclusivo. Ficava no segundo andar da ala sul do palacete, onde se alinhavam vários outros aposentos semelhantes, tal como num hotel de luxo. Tinha uma vista magnífica para a parte mais nobre do jardim que rodeava a bela arquitetura mourisca do edifício e para toda a cidade de Bagdá. Disse-lhe que ele passara a ser hóspede de honra da casa. Ela mesma havia redecorado o espaço, que era da falecida mãe de Fadil e tinha a predominância da cor laranja, a preferida da antiga moradora. Zahirah conhecia o trauma de Taquinho por aquela cor, a mesma dos uniformes dos prisioneiros de Guantânamo, e tratou de substituir cortinas, estofados, roupas de cama e os detalhes de decoração pelos tons de verde, que sabia ser a cor predileta do novo Mujahid. O guarda-roupa, a escrivaninha, os livros, os equipamentos hospitalares que ainda permaneciam para o atendimento médico, e tudo o mais, foram transferidos para lá. Ao guarda-roupa, foram acrescentados um terno cortado pelo alfaiate do sufi em tecido da escolha de Zahirah, e três gravatas, igualmente escolhidas pela bondosa anfitriã. Ela sugeriu que usasse o terno, num belo tom escuro de jade, e uma gravata ocre com motivos gráficos (arabescos) em ouro, no dia seguinte, quando iria receber uma visita do sufi, logo após o almoço. E o ensaiou mais uma vez nos gestos habituais do salam alakum (Deus esteja contigo), a saudação árabe, que, a partir de então e de acordo com a etiqueta muçulmana, ele faria ao encontrar-se com outros muçulmanos.

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No dia seguinte, na hora marcada, Zahirah chegou com o sufi nos novos aposentos do Mujahid. Era a primeira vez que o hóspede/discípulo tinha a honra de receber o anfitrião/mestre em seus aposentos. O sufi, ao ver aquele homem elegante - muito bem vestido, bem barbeado e ostentando o turbante ornado pelo broche de esmeralda -, saudar-lhe no rigor da etiqueta árabe, não pôde evitar compará-lo mentalmente ao trapo humano que ele encontrara num esconderijo da resistência, quando se viram pela primeira vez. E não conteve a satisfação que lhe trouxe aquela transformação. Depois da saudação ritual, sorridente, abraçou fortemente o discípulo. Zahirah se despediu dos dois e saiu, fechando a porta. O sufi sugeriu que fossem conversar no varandão, onde se assentaram nas confortáveis poltronas de vime que o mobiliavam. Nos céus de Bagdá, via-se uma nuvem de fumo negro subindo de um bairro periférico, ao longe, quase do outro lado da cidade. - Outro atentado suicida contra um mercado de um bairro pobre – comentou o sufi – acabou de acontecer e é dos grandes; com mais de cinqüenta vítimas inocentes! - Tenho visto vários na televisão – retrucou o jovem – não podem ser obras de Mujahids, por tudo o que aprendi, sei que não. Dizem que são muçulmanos e Mujahids, falam do Jihad, mas eu não acredito. Quem são os verdadeiros autores dessas atrocidades? - Você os conhece bem, foi hóspede deles por quase três anos. A CIA é a mais poderosa empresa de terrorismo que já existiu na face da Terra. Ainda se vale de velhas táticas ocidentais para denegrir a nossa cultura, como nas Cruzadas e na Inquisição. É o racismo, a intolerância, enfim, o poder do terror: matanças, torturas, genocídio, o amedrontamento das populações indefesas. Registram-se desde o incêndio da Biblioteca de Alexandria, que insistem em atribuir a nós, muçulmanos, os maiores amantes do livro em todas as épocas. Recentemente, no final do século 19 da Era Cristã, acrescentaram-lhes a face macabra e cruel do sionismo. - Ainda não pude estudá-lo a fundo, apesar de vê-lo mencionado em vários textos recentes. É uma religião? - Abdallah I, a quem conheci pessoalmente, que é avô de Hussein, o atual monarca da Jordânia, gostava de ridicularizar a imprensa ocidental quando nos acusava, a nós, árabes, de anti-semitas. Ora, nós, como os judeus, somos também filhos de Sem, o filho de Noé, ou seja, somos semitas. Abdallah afirmava com razão, e meus estudos a respeito confirmam-no, que os judeus sempre foram perseguidos por nações ocidentais e cristãs. Eles mesmos têm de admitir que nunca, desde a Grande Diáspora, desenvolveram-se com tal liberdade e alcançaram tanta importância quanto na Península Ibérica, enquanto esta foi possessão árabe. Com poucas exceções, os judeus viveram durante séculos no Oriente Médio em completa paz e amizade com seus vizinhos árabes. Damasco, Bagdá, Beirute e outros centros árabes sempre incluíram prósperas comunidades judias. Até o início da invasão sionista na Palestina, os judeus receberam de nós um tratamento muito generoso, coisa que jamais ocorrera na Europa cristã. Hoje, pela primeira vez na história, eles começam a sentir os efeitos da resistência árabe ao assalto sionista. A grande maioria está tão ansiosa quanto os árabes para que chegue o fim do conflito. Aqueles que entre nós

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encontraram lar acolhedor ressentem-se, como nós, da chegada de tantos estrangeiros. Como venho afirmando em meus artigos, o sionismo não é mais que uma doutrina forjada para a manutenção, a qualquer custo, do capitalismo em decadência. E, por conseguinte, dos privilégios destes que se julgam os donos do mundo. Não é religião, pois não tem fundamentos na tradição nem na História. Não é ideologia, pois não se sustenta em idéias lógicas ou científicas. Não se pode dizer que seja movimento político ou cultural judáico, ou de parte do povo judeu, pois de nada lhe serve, só o prejudica, nem o integram somente judeus. É, em verdade, uma fraude, que se disfarça no alegado combate ao anti-semitismo, imposta pelos grupos financistas e empresariais transnacionais, em especial os grandes complexos banqueiros e bélicos, para justificar termos como “guerra preventiva”, “terrorismo”, “eixo do mal” e outras criações de propaganda que enganam a opinião pública ocidental e judaica diante da escalada desumana e belicista em que se viu metido o Império norte-americano. Israel se auto proclama “estado judeu”, mas não é propriamente um país; é a maior base militar dos EUA, fora deles. E os EUA não são exatamente uma nação, mas uma sigla emblemática das elites capitalistas que formam o poder central do Império. O sionismo é, assim, a doutrina remanescente da fracassada política externa desse Império, toscamente redigida para ser a mais cruel manifestação anti-semita e anti-humanista jamais registrada na História. Tem evoluído de tal modo que já se pode falar de sionismo cristão e sionismo muçulmano, pois é integrado basicamente por membros das elites poderosas judias, cristãs e até muçulmanas - como as egípcias, jordanianas e sauditas –, e seus agentes civis, militares e mercenários. A totalidade dos atentados terroristas mais letais que são divulgados com estardalhaço na mídia é obra deles e desta mesma mídia que controlam. Têm por objetivo demonizar o Islã perante a opinião pública mundial e justificar a sua ação bélica contra nós. O 11 de setembro de 2001, em Nova York, é o exemplo mais contundente de tal estratégia. - Mas quem seria capaz de matar-se assim, dessa forma e por um motivo tão vil? - Há loucos e desesperados em toda parte. Vendem a alma e a vida com facilidade. E dinheiro é o que não falta ao sionismo, que, hoje, é sinônimo de terrorismo; o verdadeiro terror provocado pela matança, o genocídio e a barbárie que patrocina nos quatro cantos do mundo. Há também os ingênuos e os idealistas. Desde o começo desta guerra, e falo de 1990 para cá, nossos Mujahids não realizaram mais que nove missões estratégicas de martírio, todas dentro de critérios rigorosos e com resultados importantíssimos em favor do Islã. Mas apenas dois deles foram divulgados pelos mais poderosos meios de comunicação, e, mesmo assim, distorcendo completamente os fatos, negando a verdade e minimizando as derrotas militares que sofreram. Shakir fez uma longa pausa, com o seu olhar fixado na nuvem de fumo no céu de Bagdá. Seu rosto estampava uma preocupação grave e uma profunda tristeza interior. Súbito, se reanimou e retornou ao diálogo com Taquinho: - Bem, eu não vim para falar disso; vim por dois motivos: comentar sobre seus escritos e introduzi-lo nos propósitos de sua missão. Li todo o seu trabalho até o ponto em que me entregou e quero dizer-lhe que, além de grato, fiquei orgulhoso da sua coragem e do seu talento. Poucos homens eu conheço capazes de enfrentar o que você enfrentou ao redigir sobre a sua estadia em Guantânamo com tanta riqueza de

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detalhes. Sou um velho que já passou por quase tudo na vida, mas a sua descrição me comoveu a ponto de fazer brotarem lágrimas em meus olhos. Estou certo de que você seria ótimo escritor ou um jornalista excepcional se não lhe tivesse ocorrido o que ocorreu. E fico-lhe muito grato por ter atendido ao meu pedido. Acredito que este documento poderá ser de grande valia para os ocidentais conhecerem um pouco de si mesmos e refletirem mais sobre o que são. Além disso, você retira a máscara de falsidades que foi construída em torno da prisão de Guantânamo desde a data mesma em que os EUA, oficialmente, reconhecem tê-la criado - segundo eles, em janeiro de 2002 -, portanto, meses depois de estar sendo usada secretamente, pelo menos a partir do 11/9. Seu depoimento confirma muitas denúncias bem informadas que vêm se registrando a partir da catástrofe de Nova York até hoje, oferecendo as provas sólidas que lhes faltavam. Confesso-lhe agora que não faço fé nos tribunais nem na capacidade das autoridades ocidentais em rever suas políticas imperialistas. Mas é preciso que acreditemos na História, e ela requer documentos incontestáveis como este seu depoimento. Refletindo mais sobre ele, devo dizer que concordo com todo o seu projeto, e o meu ponto de vista é o de que você deve continuá-lo até o último momento, incluindo nele a informação sobre a sua missão. - Mas isto não poderia comprometer a resistência e não daria margem para que o usassem como prova de que somos nós os terroristas? - É possível que sim, e esteja certo de que eu não proporia isto se não fosse você o autor do documento. Penso que você está plenamente capacitado a tratar a questão moral que envolve os fatos de forma a deixar bem claros a essência deles e o real papel dos protagonistas. Você saberá conduzir este memorial para que ele se torne ainda mais importante, mais revelador e mais contundente. Não devemos omitir a verdade quando somos capazes de expô-la com clareza. E você será capaz disso, eu confio em você. - Quando vou conhecer os detalhes da minha missão? - Este é o segundo motivo da minha visita. Devo introduzi-lo nela agora e, amanhã, faremos aqui em casa uma reunião secreta com alguns membros da cúpula, na qual lhe serão adiantados os detalhes. Os planos estão em fase final, e é uma missão de primeira grandeza. Teríamos outros Mujahids aptos a executá-la, e eles até gozariam de prioridade pela honra de protagonizarem-na, mas a sabatina de ontem fez a cúpula decidir por você. Parece-me que há também outras razões, as quais ainda desconheço, que nos levaram à sua escolha. Eu mesmo fiquei surpreso quando me comunicaram ontem à noite, pois sei tudo sobre a importância dessa missão. - Desculpe-me por não conter a minha ansiedade, mas fiquei curiosíssimo. - O exército dos EUA vem preparando uma força de elite para atuar no front em Bagdá. São 200 oficiais muito bem preparados que passaram três anos na Jordânia internados numa espécie de escola criada exclusivamente para eles, e na qual só se fala o árabe. Lá, nossos costumes, hábitos, cultura e religião foram rigorosamente estudados nos mínimos detalhes, mas com a particularidade de que não foram dirigidos a fazerem-nos iniciados ou adeptos, e sim a torná-los poderosos inimigos do Islã. Terminaram o treinamento no final de novembro, passaram alguns dias com seus familiares nos Estados Unidos e agora estão sendo trazidos para cá. Devem

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iniciar suas missões já no próximo mês de janeiro. Cada oficial vai comandar um batalhão bem treinado e com experiência local, além de estarem equipados com todo o aparato tecnológico e logístico para varrer Bagdá de ponta a ponta, bairro por bairro, casa por casa, com o objetivo de acabar com o comando central da resistência que já sabem, ou suspeitam, estar em Bagdá. Depois se deslocarão para outras cidades, até que se cumpra a “limpeza” de todo o país. A ordem é de só fazer prisioneiros se estes colaborarem com eles. Os que se negarem serão eliminados. Não serão poupados os locais sagrados, as mesquitas, as madraças, as residências de místicos e clérigos. Nem as daqueles que eles pensam ser seus aliados ou colaboradores, como é o meu caso. Estes homens representam uma real e perigosa ameaça à resistência e ao Islã, eis porque, desde que a nossa Inteligência teve conhecimento do projeto, começamos a formular planos para impedi-los. São 200 homens e mulheres bem armados e preparados para uma guerra de extermínio e que trazem em seus destinos um verdadeiro genocídio contra o nosso povo. Eles poderão, de fato, destruir a nossa resistência armada. O Islã, com a graça de Deus e a nossa fé, haverá de fazer com que tais destinos não se cumpram jamais. - E quantos deles tocam a mim? - Por incrível que possa parecer, todos ou quase todos! O excesso de confiança parece tê-los conduzido a um erro grave. O projeto foi realizado sob tal sigilo que eles sequer imaginam que nós tenhamos alguma idéia da sua existência. Por isso, decidiram que a vinda desses oficiais deveria se dar da forma usual para não despertar suspeitas de que algo diferente estaria por vir a Bagdá. Estavam todos aqui ao lado, em Amã, e retornaram aos EUA para depois virem de lá, para Bagdá. Os invasores sabem que acompanhamos todos os seus movimentos, desde que se conduzem para cá e chegam ao país, em qualquer ponto e por qualquer meio de transporte. As tropas frescas que vêm dos EUA chegam normalmente no final de cada ano cristão, de modo a que os substituídos possam passar as festas de Ano Novo com suas famílias. É como uma recompensa aos que lutaram. Em geral, os novos chegam um pouco antes para as trocas de guarda e para estar em condições de assumir efetivamente seus postos logo no início do novo ano. Mas, antes, os novos oficiais e comandantes fazem um almoço de confraternização no restaurante dos oficiais na Zona Verde. O dessa turma já foi marcado para o dia três de janeiro, e os nossos alvos deverão estar todos ou quase todos lá. São militares treinados para agredir o Islã. Lá não estarão crianças, velhos, nem mulheres inocentes. Tais condições nos autorizam ao uso do Jihad. Amanhã, ficaremos cientes de todos os detalhes do plano concebido pela resistência. Capítulo 15 Em seu texto, Taquinho mencionou a Chahada e a sabatina, que culminaram com a sua ordenação como Mujahid, como se tivesse recebido um diploma importantíssimo. Isto para dar uma dimensão de importância aos que o lessem com a ótica de avaliação pequeno burguesa e provinciana, como a de seus conterrâneos. E relatou, como uma reunião secreta, o encontro com “um sufi”, sob a mesma ótica, detalhando sobre as roupas com que se vestira e como se barbeara e se preparara para receber, pela primeira vez, informações confidenciais do alto comando da resistência iraquiana; assim demonstrando a confiança que conquistara.

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Dona Lourdes não acreditava no que estava lendo. Agora, seus olhos já não derramavam lágrimas: ela sentia orgulho do filho. Como gostaria de tê-lo visto de terno, gravata e turbante no encontro com aquele sufi! Imaginava o filho de bigode e cavanhaque, belo e garboso como o avô Pedro na fotografia que ela guardava (bem escondida, por certo) de quando ele era jovem, igualmente de terno, gravata e turbante, mais ou menos na mesma idade que Taquinho teria naquele momento. Mas veio-lhe em seguida o sobressalto: ela havia visto pela televisão, no dia anterior, logo depois do almoço na casa da amiga viúva, o êxito do filho naquela missão que protagonizara como anônimo e principal ator. Isto a alarmava terrivelmente, pois não se sentia preparada para o que ia ler. Ia passar às linhas que descreveriam como se engendrou a missão e como e porque ela deve ter sido realizada. Com certeza, nem os invasores daquele pobre país e nenhuma equipe de televisão saberiam disso. No ocidente, ela era única que tinha acesso àquela informação. o-o-o-o-o-o-o-o-o No dia seguinte, Fadil levou o novo Mujahid a um cômodo secreto, no subsolo do palacete Lá já estavam o sufi, o clérigo xiita que testemunhou a Chahada, dois comandantes da resistência armada e um membro da Inteligência.. Fizeram as saudações de praxe, as orações do meio dia, e, em seguida, o clérigo preparou o narguilé com esmero ritualístico. Antes de entrarem no assunto, todos fumaram o haxixe em silêncio. Esse rito, Taquinho já sabia, sempre precedia a decisões de grande importância. O primeiro a tomar a palavra foi o comandante da resistência. Dirige-se diretamente ao Mujahid, sendo traduzido por Fadil frase por frase: - A importância da missão é de tal ordem que estamos investindo nela praticamente todos os nossos recursos de Inteligência. Estamos dispostos até a abrir mão do nosso mais eficiente agente infiltrado na Zona Verde, cujo codinome é Khalid. O histórico dele, a mesma idade e a semelhança física com você foram fatores decisivos para a escolha do Mujahid. Muhammed, chefe da nossa Inteligência, vai agora lhe informar sobre os detalhes da operação. Tomou a palavra Muhammed: - Além da semelhança física, pode-se dizer que vocês são sósias. Outra condição de Khalid, que Deus Todo Poderoso concedeu a esta operação, é o fato de ele ter sido privado do uso da fala. Sua língua foi cortada na época da primeira invasão porque alguns de sua tribo atribuíram a ele a delação de posições ao inimigo. Expulsaram-no da tribo junto com a mãe, e ambos foram feitos prisioneiros dos invasores. Estes os venderam como escravos a um empresário europeu que mora em Bagdá e presta serviços de alimentação às tropas invasoras. Desde a demarcação da Zona Verde, ele obteve a concessão para explorar ali o restaurante dos oficiais, o qual dirige e gerencia pessoalmente, usando Khalid como serviçal. A mãe é empregada da casa dele, no centro de Bagdá, onde mora com o filho num porão.

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Muhammed continuou a exposição do plano, mostrando papéis, mapas e fotografias que trouxera numa pasta. Daremos a seguir um resumo de sua explicação: Duas ou três vezes por semana, a mãe de Khalid sai de casa com o filho, por volta das 11 da manhã, a fim de fazer compras, e depois o acompanha até os portões da Zona Verde. Parte das compras são, em geral, temperos frescos e típicos, que o filho leva para o restaurante, e a outra parte para o consumo residencial, que ela leva para casa. Numa das mercearias que costumam ir, é feita a troca do aparelho celular onde armazenam as informações que passam à resistência. No dia três de janeiro, que será o “Dia D” da operação, ambos farão compras nesta mercearia e, no banheiro da mesma, Khalid será substituído por Faraj. Quando Khalid entra com compras na portaria da Zona Verde, estas são sempre objeto de atenção e revista, e a identificação dele fica em segundo plano, praticamente restrita à passagem do cartão magnético numa borboleta e à digitação da senha numa porta de vidro com detector de metais. As compras passam na esteira de raios-x, como nos aeroportos, junto com a bolsa a tiracolo em que ele sempre leva uma garrafa térmica com café e uma merenda que a mãe lhe prepara. Ele não precisa de falar nada, pois todos ali o conhecem, sabem que ele se comunica com as mãos e alguns grunhidos que consegue emitir, e só a mãe é capaz de entendê-lo. De forma que ele sempre entra mudo e sai calado, e durante o trabalho só obedece às ordens que lhe são dadas pelo amo, pessoalmente ou pelo celular. O trabalho dele limita-se a deixar as compras na despensa, quando as leva, e ir para a adega, ambos no andar térreo do prédio do restaurante, onde o patrão deixa separadas as garrafas de bebidas que devem subir ao restaurante, no andar logo acima. Ele pega as garrafas de seis em seis, uma em cada mão, e quatro postas numa espécie de suspensório de couro onde se prendem quatro bolsas para este fim. O apetrecho fica pendurado num prego, ao lado da porta da adega. Ele o veste para fazer o transporte, passando-o sobre os ombros e ajustando-o com uma fivela na cintura. É um trabalho de burro de carga. Com a carga, ele sobe a escada estreita que chega ao lado do balcão, no andar de cima, sobre o qual dispõe as garrafas para o barman organizá-las nas prateleiras. Em geral, a operação é repetida oito ou dez vezes, até que subam todas as garrafas, e deve terminar antes de o restaurante abrir as portas aos primeiros clientes, o que ocorre sempre ao meio-dia e meia. Tudo parece pensado para que o serviçal não tenha contato com clientes e funcionários, só com o amo. Às vezes, no decorrer do serviço, este usa o celular para ordenar-lhe que suba com mais garrafas, mas isto muito raramente acontece. Durante a função no andar de cima, Khalid aguarda num depósito anexo à adega, onde come a merenda e ouve música num MP3, até que o amo lhe chame, depois de sair o último cliente, para descer as garrafas que não foram abertas e os cascos das que foram completamente esvaziadas. Feito isto, ele volta ao andar de cima e dá início à limpeza do chão e das mesas, encarregando-se também dos arranjos decorativos que as ornamentam para deixar o salão pronto para o dia seguinte, pois o restaurante, a não ser em ocasiões muito especiais, só abre para o almoço. Nesse período, ele fica sozinho e é capaz de substituir, sem despertar suspeitas - nem mesmo da vigilância por câmeras de segurança -, os micro-gravadores que camufla

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nos arranjos decorativos de certas mesas e que são programados para gravarem as conversas dos oficiais, no almoço seguinte. Antes de deixar o serviço, ele usa o banheiro dos funcionários, onde transfere para o seu celular os arquivos gerados, os quais, não raro, trazem informações preciosas à resistência. O turno se encerra lá pelas quatro da tarde, hora em que ele normalmente volta para casa. A missão de Faraj será rigorosamente ensaiada, nos mínimos detalhes, desde a sua entrada na Zona Verde, disfarçado de Khalid. Este obteve, com o celular, fotos de todo o percurso externo e do interior do restaurante e da adega. A resistência desenhou um mapa do local e conseguiu uma cópia da planta do prédio. No “Dia D”, Faraj deverá cumprir a primeira parte do serviço e irá para o local onde Khalid fica ouvindo música, sentado num banquinho, na área de tanques anexa à adega onde fica também o depósito de cascos vazios, que o amo guarda para vender a falsificadores de vinhos e bebidas raras. Naquele local não há câmeras de segurança. Ali, num bueiro em desuso, Khalid vai esconder cinco garrafas de vinho preparadas, quatro com o primeiro composto do líquido explosivo e uma com o segundo composto. Os compostos serão paulatinamente levados na garrafa térmica de Khalid, misturados com café. As quatro garrafas com o primeiro composto são frascos de um vinho raríssimo, o predileto do comandante-em-chefe das forças invasoras. Só é servido em ocasiões de gala ou quando alguma alta autoridade de governos aliados é recebida por ele no restaurante. Foram escolhidas por causa do formato inconfundível, e porque têm dois rótulos, um de cada lado, um em chinês e outro em português, o que as torna mais fáceis de serem identificadas pelo Mujahid. O nome do vinho é “O Esplendor do Império”, mas o comandante-em-chefe só o chama de “The Power of Empire”. Ao ouvir isto, o sufi pediu um aparte. Disse que sabia a história desse vinho. Era produzido em Macau, na China, desde o século XVI, por jesuítas portugueses que ali plantaram o vinhedo e o fabricaram. O envelhecimento era feito em depósitos flutuantes, mar adentro, o que agregava uma qualidade especial e muito apreciada a seu sabor, por causa do permanente balanço das ondas. Parou de ser produzido há pouco mais de vinte anos devido às condições climáticas na região, que inviabilizaram o vinhedo. Cada garrafa custava hoje uma pequena fortuna. Dele conta-se uma anedota, bem conhecida nos meios da diplomacia portuguesa: o vinho possui dois rótulos e tem este nome porque, quando os jesuítas recebiam chineses, eles o serviam exibindo apenas o lado da garrafa com o rótulo em chinês, em homenagem ao Império local. Quando recebiam portugueses, faziam o mesmo com o outro lado da garrafa. Então, alguém pergunta: e se lhes chegavam as duas delegações ao mesmo tempo? Aí, eles as dispunham numa grande mesa, uma delegação de cada lado, e serviam o vinho exibindo o rótulo certo para cada lado, de forma tal que os portugueses só viam os rótulos em português e os chineses só viam os em chinês. Os portugueses gostam de contá-la para se gabar de suas virtudes diplomáticas, o que, por sinal, disse o sufi, a anedota parece representar muito bem. Mas não era a piada típica de portugueses que os brasileiros costumavam contar, completou, olhando para Faraj, que estava risonho como os demais ouvintes, apesar de tê-la entendido aos pedaços, pois foi contada em árabe; apenas a última frase lhe fora repetida em português.

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- Com certeza - falou o agente da Inteligência, provocando risos – o comandante-em-chefe já estaria pensando num terceiro rótulo para o vinho. A intervenção de Shakir relaxou o ambiente até então um pouco tenso, e a todos aliviou a tranqüilidade e o bom humor do Mujahid. Este sugeriu, tentando se expressar num árabe claudicante, que aquele nome inspirasse o da operação, alterando-o para “O Esplendor do Islã”. Depois de Fadil ter repetido quase tudo em bom árabe para os que não puderam entender o de Faraj, a idéia foi aprovada por unanimidade e todos pronunciaram a expressão, um após o outro: (em árabe), “O Esplendor do Islã”. Capítulo 16 - A quinta garrafa - continuou o chefe da resistência em sua explanação, sempre com a tradução de Fadil - será a de um vinho comum, e terá sobre a boca uma medida de volume e um pequeno funil. Você vai retirar primeiramente do bueiro, uma a uma, as quatro garrafas do primeiro composto e colocá-las dentro do tanque, retirando as rolhas com que Khalid vai tampá-las. Depois, usando o funil e a medida, misturará uma só medida do segundo composto em cada uma. A solução estará pronta para explodir, bastando para isso uma pequena e única fagulha de eletricidade, portanto, a partir daí há que ter cuidado em cada gesto. Ele continuou a explicação, que voltamos a dar em resumo: Faraj vestirá o suspensório, ajustando-o bem, e pendurará no pescoço um cordão com um escapulário cristão que encontrará no escaninho de Khalid, perto do tanque, junto com quatro fios de carregadores de MP3, preparados para serem plugados no escapulário, numa das pontas, e a outra para ser introduzida dentro da garrafa. Ele então colocará as garrafas abertas nas bolsas do suspensório, plugará as pontas amarelas dos fios no escapulário e enfiará a ponta vermelha dentro de cada garrafa até tocar o fundo. Depois, retirará a bateria do MP3, que é pequena, redonda e quase do tamanho de uma moeda, e a encaixará por dentro da tampa do escapulário, mantendo-o aberto na palma da mão. Daí em diante, só terá de andar com calma até a escada, sempre mantendo na palma da mão o escapulário aberto, subir devagar a escada e entrar no restaurante. Isto deverá acontecer exatamente à uma hora da tarde, quando o salão estará completamente lotado. Sem parar um só segundo, mas também sem se apressar nem fazer movimentos bruscos, Faraj seguirá na direção da coluna central do edifício, atento nas pessoas à sua volta. Qualquer movimento que perceber sendo feito na sua direção, o levará a fechar o escapulário, mesmo se não tiver alcançado a coluna central. Ao fazê-lo, a bateria provocará uma fagulha nas quatro garrafas. Será uma explosão arrasadora. Faraj ouviu tudo com atenção e pediu licença para fazer três observações. A primeira era sobre as câmeras de segurança. Elas poderiam detectá-lo no percurso e ele então ser impedido de subir a escada? Neste caso, apesar de lhe parecer óbvio,

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se via obrigado a perguntar: deveria explodir-se ali mesmo, onde estivesse? A resposta, dada pelo chefe da Inteligência, informava-lhe que diante da importância do evento provavelmente haveria um segurança na entrada de serviço do restaurante que dava para a adega, a escada e a dispensa. Desde que ele não demonstrasse insegurança ou motivos de suspeição, nem as câmeras nem o segurança atinariam para algo suspeito. Pensariam que ele levava uma nova requisição de garrafas para cima. Seria bastante que caminhasse naturalmente até o andar de cima. O tempo que gastará em todo o percurso deverá ser em torno de dois a três minutos, até o topo da escada. Ali, sim, sua presença causaria estranheza. Mas ele já teria os alvos bem à sua frente e o sucesso da operação estaria assegurado. Contudo, se ele pudesse chegar até a coluna central, o colapso do edifício era certo, e quem não fosse eliminado pela explosão o seria pela queda do prédio, que possui três andares. No terceiro, funciona o escritório administrativo dos negócios do empresário. A coluna fica localizada a dez metros da saída da escada, à frente do balcão do bar, em linha reta e sem obstáculos, no meio do largo corredor principal que se abre entre as mesas e ao longo do qual estará montado o suntuoso buffet, que naquela hora estará quase sem ninguém ao redor, pois a maioria dos comensais já teria se servido. - De qualquer forma - continuou - após estar com o aparato pronto para explodir, não há volta atrás. Se for interceptado no percurso, onde quer que esteja, não existe outra saída senão provocar a explosão. Segundo os cálculos, mesmo ocorrendo no andar inferior, ela causará danos catastróficos, ainda que não totalmente letais como os que pretendemos produzir. Uma vez alcançado o ponto de gatilho, já podemos considerar a operação um sucesso. O mais difícil e arriscado será chegar a este ponto. A segunda observação dizia respeito à condição do Mujahid para subir a escada oito ou dez vezes na primeira fase da operação. Todos ali sabiam que ele passara por um processo de tortura em câmara frigorífica que quase liquidou com as articulações do seu corpo. Além do mais, seu aparelho respiratório fora muito prejudicado e ele tinha fôlego curto. Reconhecia que vinha melhorando e até se recuperando, mas não saberia dizer, com certeza, se seria fisicamente capaz de executar aquela parte do plano. Desta vez foi Fadil quem lhe respondeu, em português. Seus médicos já haviam sido consultados sobre isto, e a solução foi a de um tratamento prévio com cortisona aplicada diretamente nas articulações. Tomará, também, pouco antes, excitantes farmacêuticos que muito vão ajudá-lo em seu ânimo e em suas forças físicas. Apesar de a cortisona e tais produtos lhe serem proibidos, seus usos não farão diferença, pois os efeitos colaterais só começam a se manifestar entre 12 e 24 horas depois da aplicação ou ingestão. - Contudo - emendou Fadil - esta será a única parte do plano que não podemos arriscar ensaiar e fazer testes completos. Qualquer prejuízo à sua saúde ou à sua condição física inviabilizará a execução do plano. Só saberemos no “Dia D”, mas confiamos em sua força espiritual e na sua capacidade de superar desafios, o que, aliás, já nos demonstrou mais que o suficiente. Se não confiássemos no seu sucesso, não estaríamos aqui. A terceira era sobre as conseqüências do seu ato. Não a respeito de sua própria

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pessoa, isto não lhe importava e nem pedia nada, já conhecia a recompensa e era imensamente grato pelo privilégio. Mas, quais seriam as respostas que esperavam dos invasores depois de tamanha derrota, se o plano fosse bem sucedido? Isto, sim, o preocupava muito, pois conhece bem o inimigo e sabe da sua ferocidade, da sua força brutal e implacável. Foi agora Shakir a dar a resposta, igualmente em português. Esperavam, sim, uma resposta violenta e contundente; a sede de vingança e o ódio a alimentariam. Porém, não seria a primeira vez que enfrentavam tal perigo. Bastava a lembrança do que acontecera em Fallujah e em outras circunstâncias menos conhecidas, inclusive na própria Bagdá. - Quanto aos estragos que nos farão por vingança, nós não somos capazes de avaliar, mas podemos imaginá-los terrivelmente. Ocorre que a ferocidade, a brutalidade, o terror, o ódio e a vingança não são as forças que os fazem temíveis para nós – falou com serenidade o sufi - Somos experientes em enfrentá-las, não só desse inimigo, mas de outros, muitos outros, inclusive os que já vão longe nos tempos históricos. O que os faria temíveis para nós é se alcançassem o conhecimento das nossas forças mais poderosas e desvendassem o maior segredo da nossa resistência – a energia divina do Islã! Nossa resistência só é vitoriosa por esse motivo. Lutamos uma guerra desigual, mas nós conhecemos as forças deles, e eles desconhecem as nossas. É de onde tiramos as diferenças. Consideramos esta nova estratégia do inimigo a mais perfeita que apresentaram, eis porque temos de destruí-la antes que seja posta em prática no campo de batalha. Eles cometeram um erro do qual não podemos deixar de nos valer, e ambos não teremos a segunda chance. Da nossa parte, se perdermos a oportunidade, outra não se apresentará que possa liquidá-los de uma só vez; saberão que temos conhecimento de seus planos e não colocarão todos os ovos novamente numa só cesta. Do lado deles, ao perder esses oficiais, não haverá como formarem novos, e todo o enorme investimento que empenharam em tempo e em recursos humanos, materiais e financeiros lhes terá sido em vão, sem possibilidades de reavê-los. Não nos importa quantos bombardeios terríveis assestem contra nossas cabeças, nem quantas chacinas e crimes possam cometer a mais do que já cometeram. Eles saberão que, perdida essa batalha, terão perdido a guerra. Tal vitória, portanto, é a conquista mais importante para nós neste momento, e é o que motiva a operação “O Esplendor Islã”. Capítulo 17 O leitor já sabe que nossa narrativa não é a mesma do texto de Taquinho, nem é extraída exclusivamente de seus escritos. Neles, o jovem autor concentra-se num relato objetivo dos fatos e de forma a não comprometer a resistência islâmica, os que o ajudaram e com quem colaborou. No que definimos lá atrás como a terceira parte do seu texto, o sufi não existe como tal; é mencionado só pelo codinome como um dos líderes da resistência ou como “meu preceptor”. Assim também, o palacete de Shakir é o “esconderijo da resistência” e Zahirah “uma guerrilheira”. Tudo é descrito e relatado sem detalhes que possam levar a identificação de pessoas, de cenários e localizações precisas, a

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não ser os que não os comprometem e estão relacionados com os propósitos da redação. Tratou José Eustáquio Raghid Varella de redigir um memorial, inclusive para fins de prova judicial, cuja saga pudesse ser cotejada com fatos históricos, notórios e pessoais por onde transitaram suas vicissitudes e aventuras, além de poder ser comprovada em farta documentação paralela, concordante com as informações que ali declara e jura como verdadeiras. Nessa terceira e última parte do documento, por razões óbvias, o autor é o único protagonista identificável. Num anexo ao texto principal, dois coadjuvantes declaram que se identificariam como testemunhas, se a tal fossem chamados por juízo imparcial. Além disso, ele se propôs também a fazer uma defesa da causa e da cultura islâmicas, aplicando a moral e as bases da religião em que fora iniciado na análise dos fatos, na fundamentação das razões e na argumentação crítica. Não economizou citações do Alcorão e de vários eminentes autores islâmicos e ocidentais para sustentar razões, fundamentar opiniões e apoiar argumentos, seja em favor da causa que ali defendia, seja para subsidiar moral e jurisprudência, seja para reivindicar justiça e paz. Por tais motivos, dona Lourdes, a não ser por algumas sutilezas que lograra captar nas entrelinhas, nos achados subliminares de raras passagens ou nas cartas anexadas ao relato documental, não teve acesso à melhor parte da nossa história. Aquela em que Taquinho, vivendo no palacete do sufi, cercado de cordialidade, respeito, admiração e humanidade, passou pela sua segunda metamorfose. A primeira, em Guantânamo, pôde ser relatada por ele nos detalhes, e estes nós optamos por não penetrá-los. Mas, da segunda, aquela que mais confortaria o coração de uma mãe ao se inteirar dos sofrimentos por que passara o seu filho, ela apenas tomara conhecimento que algo de fato importante e positivo ocorrera, mas só na imaginação ela poderia se aproximar um pouco do que exatamente ocorrera, e como. Ela não ficou sabendo do grau de amizade dele com o sufi e com Fadil, da ternura e da dança de Zahirah, do haxixe, das leituras das “Mil e uma noites” e de tantas outras obras primas, dos aposentos onde se hospedara o filho, dos belos jardins que os rodeavam, da nobreza mourisca daquela família e da sua residência, nem de muitos outros pormenores de que pudemos desfrutar naquelas passagens, e ela não. Em raras passagens, Taquinho pode descrever algo mais que um sumário dos fatos, com mais detalhes sobre como exatamente lhe ocorreram, e o leitor se lembrará daquele em que ele estava de terno, gravata e turbante depois de ordenado Mujahid, que tanto a comoveu. Eis porque, a ponto de finalizar a penosa leitura do documento, a pobre mãe se via embaralhada em completa confusão mental. Ela se sabia intelectualmente incapaz de alcançar toda aquela informação, composta com erudição, cultura e conhecimentos muito acima daqueles a que porventura ela tivera acesso em toda a sua vida. Orgulhava-se do filho ter alcançado tal destreza, nunca duvidou de que ele tivera esse talento, mas, mesmo assim, ficou surpresa. Porém, sua formação católica, a moral provinciana e os preconceitos com que construíra sua pobre informação sobre as coisas e o mundo, faziam-na receosa para ousar um julgamento sobre o que lera e sobre o que se passara com o filho.

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Nós vamos deixá-la, por enquanto, em sua amarga solidão, a noite entrando em altas horas, sentada na mesa diante dos papéis do filho, pensativa e atônita ao mesmo tempo, depois de quase 20 horas de dedicação ininterrupta à leitura, repetindo-a muitas vezes nas passagens mais complexas, ou a ela inacessíveis, para tentar buscar-lhes o entendimento pleno, a maioria com pouco ou nenhum êxito. A única luz acesa na modesta casa, a atmosfera densa e silenciosa que lhe envolvia o espírito, a excitação, a angústia e a insônia. Voltemos aos fatos de Bagdá. Capítulo 18 Uma outra preocupação foi colocada pelo Mujahid ainda naquela reunião: os destinos de Khalid e sua mãe. Foi então informado de que ambos seriam transladados para o sul do país, onde integrariam as forças de resistência na região. Antes mesmo de Faraj atingir os objetivos da missão, eles estariam fora de Bagdá. Khalid seria responsabilizado pelo atentado, mas seria dado como morto. Sua mãe com certeza passaria a ser procurada. Mas só o amo e o filho sabiam como era o rosto dela, pois ela não se deixava ver por estranhos sem o véu ou a burka, como era o hábito de seu costume tribal. E o empresário não deverá sobreviver para ajudar a procurá-la. Enfim, discutidos os detalhes e aprovado o plano, estabeleceu-se que a resistência iria providenciar um local secreto para os ensaios e treinamentos e, quando o tivesse pronto, Faraj seria transferido para lá, onde ficaria até a execução final da operação. O prazo estabelecido para esses preparativos foi de 15 dias. Nesse período, ao Mujahid competia cuidar da saúde e preparar-se espiritual, moral e fisicamente para o evento que o tornaria herói nacional, mártir imortalizado pela causa e pelo mundo islâmicos, além de predileto de Deus, que o receberia sem pecados e com as graças eternas. Como cerimônia final, o sufi entoou comovido e longamente o Azan (chamado à oração), como sempre com a voz afinada e impecável. Sob a liderança dele, todos juntos e genuflexos oraram: "Ó humanos, em verdade, Nós vos criamos de macho e fêmea e vos dividimos em povos e tribos para reconhecerdes uns aos outros." (49ª Surata, versículo 13) Terminada a reunião, o sufi levou Faraj até a biblioteca. Bem acomodados nos almofadões, fumaram durante algum tempo, em silêncio, um narguilé que Taquinho, pela primeira vez, preparou para o sufi. Este quebrou o silêncio elogiando a habilidade com que ele se saíra naquele preparo e a qualidade da essência utilizada. Faraj replicou que a essência ele devia a Zahirah e agradeceu o elogio. O sufi disse-lhe que a casa agora era do Mujahid e que, até o último dia em que lá permanecesse, estava à disposição para o que quisesse ou desejasse. O discípulo retrucou que abolira a palavra desejo de seu vocabulário e que nada mais queria além da companhia do sufi e seus filhos nestes últimos dias como hóspede daquela nobre casa, tal como as gozara desde que nela fora admitido. Seu único plano era o de terminar os seus escritos, com a aprovação do sufi, e deixaria para datá-los e lacrá-los em envelopes no último dia de sua estadia ali.

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O sufi então se levantou e pediu a Faraj que o acompanhasse, ia lhe mostrar um segredo. De uma gaveta de sua mesa de trabalho ele retirou um dispositivo de controle remoto, no qual digitou uma senha. Uma das estantes de livros se moveu lateralmente e, por detrás dela a parede sólida deslocou-se em ângulo, abrindo uma passagem. O sufi fez um gesto com a mão convidando Taquinho a transpor a passagem. Ao entrarem no cômodo secreto, o sufi acionou o mecanismo para que se fechasse a passagem. O jovem valadarense não acreditava no que estava diante de seus olhos. Pensava que aquilo só existia na imaginação dos que liam as “Mil e uma noites”. Era o tesouro da tradição familiar do sufi, que vem sendo conservado e ampliado desde tempos muito antigos. Uma das paredes exibia uma belíssima coleção de adagas, umas de ouro, outras de prata, sempre com punhos e bainhas cravejadas de pedras preciosas e com a gravação, em caracteres árabes, do selo da dinastia. Na parede em frente, exibia-se uma outra coleção, esta de escudos, armaduras, brasões europeus e outros troféus de guerra de semelhante riqueza de fatura, materiais e ornamentação. Outra parede ostentava uma vitrine, quase até o teto, com jóias, vasos, lanternas, cetros, narguilés e ricos objetos de épocas diversas, muitos dos quais o abismado visitante nem saberia dizer o que eram ou para que serviriam. No piso, forrado de tapetes indescritíveis, estavam dispostas quatro daquelas emblemáticas arcas cheias de moedas e peças de ouro e de prata, misturadas a gemas magníficas. Na quarta parede, descia, desde o teto, uma portentosa obra de tapeçaria muito antiga, toda tecida em fios de um azul celestial luminoso e sobre o qual era bordado, com fios de ouro, o tema de uma caravana no deserto. Ao seu pé, encostava-se um luxuoso gaveteiro feito em ébano, com umas trinta gavetas de pequena altura e grande largura, onde eram conservadas inúmeras coleções de diamantes de quilates diversos. O sufi abriu algumas gavetas dentro das quais brilhavam dezenas deles sobre o feltro negro, muitos enormes e fulgurantes como estrelas. De uma delas, o sufi colheu certa quantidade de pequenos diamantes, aquilatou-os na minúscula balança de precisão que ficava sobre o tampo do gaveteiro e os colocou num saquinho de couro que guardou no bolso do paletó. - Estes vão para pagar uma remessa de armas e munições – explicou ao jovem. O sufi voltou a acionar o controle remoto e fez abrir uma outra passagem, da mesma forma que a anterior, deslocando a parede em ângulo com a coluna lateral do cômodo. - Agora é que vem o mais importante – falou ao jovem, já transpondo a passagem. Ao penetrar o outro ambiente, bem maior que o primeiro, outra surpresa: uma vasta e superlotada biblioteca com livros, volumens, manuscritos, incunábulos, pergaminhos, papiros, gravuras, pinturas, aquarelas; todo um valiosíssimo acervo de obras raras de incalculável valor, muitas das quais seculares, da Idade de Ouro do Islã, nos primeiros séculos do nosso segundo milênio. - Este é o nosso maior tesouro – falou o sufi: – Muitas dessas obras são propriedade da Biblioteca de Bagdá, que foi barbaramente depredada e incendiada pelos invasores, tal como, no passado, fizeram com a Biblioteca de Alexandria. E sempre

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em nome de Cristo. Usaram lança-chamas pensando que queimavam as obras primas da nossa cultura, mas destruíram apenas as cópias que pusemos lá, no lugar das originais. Taquinho ia seguindo o sufi pelos estreitos corredores que se formavam entre as estantes abarrotadas até que chegaram a uma tribuna de pesada madeira sobre a qual se abria um livro espesso, de grande formato, todo confeccionado em delicado pergaminho. - Este livro contém as crônicas escritas por meus ancestrais, os sufis que me antecederam nesta casa, desde que foi construída no século XII do calendário gregoriano – explicou Shakir – A técnica que usamos para escrever nestas páginas é a da escrita com pincel de um pêlo só e tinta de ouro verdadeiro. Nossa linhagem é de sufis calígrafos, e este é o terceiro volume do nosso livro. Estou escrevendo a crônica do meu tempo, e Fadil já foi aceito como apto para prossegui-la. Mas, antes, eu espero escrever mais algumas páginas; a próxima pretendo dedicá-la a você. O jovem discípulo juntou as palmas das mãos e baixou a cabeça em sinal de gratidão. - Esta casa – continuou o sufi – já foi ocupada por invasores em duas ocasiões no passado, mas, em ambas, eles não penetraram o segredo destes tesouros. Eles são de fundamental importância espiritual e material à nossa sobrevivência. Pela primeira vez, temos motivos para crer que os invasores possam descobri-los e isto significaria um dano irreparável para a causa islâmica. No projeto do inimigo estará a ocupação desta casa e, com as novas tecnologias, é possível que logrem desvendar a sua real configuração arquitetônica, ou seja, o que está por detrás das paredes da biblioteca e também nos porões subterrâneos, onde são mantidos itens estratégicos do arsenal da resistência. Trouxe-o aqui para que conhecesse mais a fundo e com objetividade o que está em jogo na sua missão. Em seguida, o sufi fez o discípulo entrar numa espécie de oratório, construído como se fosse uma grande gaiola de madeira e localizado num canto do cômodo. Na verdade, era um elevador camuflado, e, com o acionar do controle remoto, começou a descer por entre paredes de concreto. A descida foi inesperadamente longa nos cálculos do jovem e, ao chegar no ponto inferior, uma porta se abriu e eles acessaram um mezanino de concreto armado. Dele, se descortinava a visão panorâmica de um complexo subterrâneo, muito bem iluminado, com inúmeros compartimentos abertos em arcos, onde se abrigavam fartos e diversificados arsenais. Esperavam-os, ao lado da porta do elevador, dois homens armados com os quais o sufi trocou breves palavras, entregou a um deles o saquinho com os diamantes e dispensou-os. Muitos homens trabalhavam no local, era intensa a atividade naquele momento; um formigueiro humano. Taquinho viu chegar, sobre trilhos, uma composição ferroviária de vagonetes de transporte que empilhadeiras motorizadas iam enchendo com caixotes de munições, fuzis, obuses e mísseis. O sufi explicou-lhe que um túnel ligava aquele subterrâneo até outro sob um estádio de futebol que está sendo construído a cerca de dois quilômetros dali, por onde se dava vazão às cargas para as frentes de resistência. Eram distribuídas em veículos disfarçados de utilitários civis e por outros túneis que de lá se interligavam à rede de subterrâneos estrategicamente construídos sob toda a cidade e arredores, como um metrô secreto.

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Pelas mesmas vias, em sentido inverso, abastecia-se o arsenal. Estavam ambos, segundo informou o sufi, no principal arsenal e centro de logística da resistência para a região militar da capital do país. Capítulo 19 Os 15 dias foram aproveitados por Taquinho sem ansiedade nem pressa. Não se sentia indo para o final de sua existência, mas ao princípio de outra. Era como se se preparasse para uma viagem sem retorno e, tal como vimos no início desta história, ele o fazia sempre de forma inteligente e bem planejada. Praticamente, ele roteirizou cada hora de cada dia para cumprir rigorosa disciplina religiosa, de saúde física e mental e de desfrute do pequeno paraíso existencial em que se achava, em meio ao inferno da guerra de invasão contra o país que o hospedava. Certa feita, num momento de repouso, deitado em sua cama, houve um bombardeio aéreo sobre a cidade. Sempre que isto acontecia, ele fechava os olhos enquanto ouvia os zunidos das aeronaves, seguidos de explosões que faziam tremer o solo, ainda que a região atingida se situasse bem longe daquela em que estava, como então acontecia. Todos na cidade sabiam que só os bairros pobres eram alvos das bombas. Entre uma explosão e outra, cronometricamente espaçadas, só se ouviam os ruídos dos aviões num silêncio amedrontador. Nesses intervalos, Taquinho sempre meditava mais ou menos a mesma coisa: "da Medicina e a Matemática ao jogo de xadrez, dos hábitos de higiene pessoal à iluminação noturna de logradouros públicos, da ética à etiqueta, das ousadias arquitetônicas ao livro encadernado, entre tantas outras conquistas da civilização de que agora desfrutamos, nós, ocidentais, as devemos em boa parte ao que aqui se cultivou com sabedoria ao longo de milênios. E é assim que pagamos tal dívida histórica: ao invés do reconhecimento agradecido, bombas, bombas e mais bombas!" Depois da longa seqüência, que sempre parecia interminável aos que estavam em terra, as explosões pararam. Após algum tempo, uma voz melodiosa proveniente de algum minarete entoava seguidamente o Azan, em alto e bom som, convidando todos a orar para Deus. Taquinho não se cansava de admirar aquele povo e o empenho da resistência, que combatia o invasor com todos os meios que possuía. Aquela voz deveria parecer aos invasores, depois de castigarem tão brutalmente a indefesa cidade, como de uma irreverência humilhante, quase um deboche ou um escárnio. Nesta última fase de sua hospedagem naquela casa não lhe faltou o apoio terno do anjo Zahirah. Shakir e Fadil também se empenharam nos agrados ao Mujahid. Estavam sempre juntos na última oração ou em torno de um narguilé. Durante o dia, Taquinho se empenhava no andamento de seu projeto, escrevendo, lendo muito, especialmente o Velho Testamento da Bíblia, os textos dos profetas, muitos dos quais elegeu como prediletos, incluindo-os em apoio aos relatos que fazia. Nos fins de tarde, lia em voz alta os novos escritos para Shakir, Fadil e Zahirah, e, às vezes, com a presença do clérigo xiita ou de seus assessores jurídicos.

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Decidiu pela máxima concisão na parte final, onde descrevia a operação “O Esplendor do Islã”, reduzida a uma síntese de seis parágrafos, entremeados de citações do Alcorão e da Bíblia. “Ele foi ferido pelas nossas transgressões e torturado por nossas iniqüidades; o castigo que nos traz a paz caiu sobre Ele, e, em seu martírio, somos curados”. (Isaías, 53:5) Preocupou-se em não comprometer a resistência e os autores intelectuais do plano. O Mujahid assumia a integral responsabilidade de sua execução, “com o apoio da resistência” e não descrevia exatamente como o executara, mas o justificava dos pontos de vista estratégico, bélico e moral. Afirmava que não o fazia por ódio ao inimigo e nem aos que o maltrataram. Aprendera a perdoá-los; tinha plena fé, inclusive, a de estar salvando “as almas pecaminosas dos que comigo irão até Deus, o Misericordioso”. Fazia-o em defesa do Islã, do povo agredido, da sua cultura e tradições, e da fé islâmica. Encerrou o texto com a abertura do Alcorão: Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso. Louvado seja Deus, Senhor do Universo, Clemente, o Misericordioso, Soberano do Dia do Juízo. Só a Ti adoramos e só de Ti imploramos ajuda! Guia-nos à senda reta, À senda dos que agraciaste, não à dos abominados, nem à dos extraviados. Ao acordar no dia 24 de dezembro, mesmo sabendo que aquele seria o seu último dia naquela casa, não pensou em nada de especial para desfrutá-lo. Queria-o como um dia comum, igual em harmonia aos demais; a rotina e a simplicidade do dia-a-dia naquele palacete culto e elegante, mas sem afetações, agradavam-no. Pensou em sua terra natal, em seus pais, e que no Brasil estariam comemorando o Natal, festa que nunca o comovera a não ser quando criança, na expectativa de ganhar presentes quase sempre supérfluos. Aprendera a abominar o consumismo, a praga ocidental que roubava a melhor parte da infância, daquela inocência saudável e alegre, desde ali a excitando para a ambição e desejos corrosivos à vida e à sensibilidade e preparando-a para uma juventude alienada e servil de que ele próprio fora vítima desafortunada. Foi então que escreveu a sua reflexão final, que acrescentou ao relato como um anexo. Depois da primeira oração, Zahirah veio buscá-lo e levou-o à biblioteca onde já estavam o sufi, Fadil e o clérigo xiita, amigo da casa. Sentaram-se na mesa maior e redonda e o sufi presenteou-lhe o depoimento que fizera para que o discípulo incluísse no envelope. Taquinho o leu com muita emoção; algumas lágrimas chegaram a transbordar de seus olhos. Para ele não podia ser maior aquela honra, maior e mais importante que qualquer diploma que porventura tivesse um dia obtido numa universidade, se tivesse logrado o projeto de sua equivocada juventude. Tinha prontas as cartas para a mãe e o pai, as quais leu para os demais, além da sua nova

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reflexão; datou-as e assinou-as, para, em seguida, datar e assinar também o memorial. Fadil e o clérigo assinaram o anexo de testemunho que foi encadernado, junto aos textos de Shakir e de Taquinho, ao fim do memorial. Depois ele colocou cada uma das peças escritas nos respectivos envelopes, conforme o plano que desenvolvera, subscritando-os e lacrando-os com goma arábica. Em seguida, entregou solenemente o espesso envelope ao sufi, que o recebeu com uma mesura silenciosa de agradecimento e o guardou no cofre. Almoçaram juntos, em companhia de dois guerrilheiros da resistência que vieram buscar o Mujahid. Foi um almoço frugal e sem maiores cerimônias. Fizeram a oração do meio-dia, dirigida pelo clérigo, e depois Taquinho despediu-se dele com as reverências de costume, e de Zahirah, com beijos emocionados. Envergando seu belo terno, uma gravata azul marinho e o turbante com o broche de esmeralda, o Mujahid tinha o porte altivo e mostrava-se extremamente agradecido a seus anfitriões. Fadil foi junto com ele e os guerrilheiros, acompanhados pelo sufi, que fez abrir outras passagens secretas para que descessem por um elevador camuflado na arquitetura complexa do palacete até os subterrâneos que Taquinho conhecera. Frente ao elevador, Shakir e ele fizeram a última saudação, o salam alakum, e depois se abraçaram longamente, beijando-se em ambas as faces. Ao chegarem ao subterrâneo, entraram num vagonete de passageiros que os levou pelos trilhos daquele metrô secreto até o subsolo do esconderijo onde seriam feitos os preparativos e o treinamento do Mujahid. Subiram por escadarias em espiral, os três homens carregando Taquinho numa improvisada liteira para que ele não se desgastasse na longa ascensão, até chegarem no interior de um prédio abandonado, um velho cinema-teatro fechado há mais de duas décadas e que servia de posto avançado da resistência em pleno centro de Bagdá, quase vizinho à Zona Verde. Lá, já estavam prontos os novos aposentos do Mujahid, incluindo o equipo médico, e uma simulação do cenário real da operação. Ensaiariam ali, quantas vezes fossem necessárias, cada passo, cada gesto, cada movimento que o Mujahid faria na execução da fase final da operação. Fizeram réplicas de tudo, nos mínimos detalhes, do suspensório, do escapulário, das roupas de Khalid, das garrafas de vinho, além do cenário, em escala natural, que simulava todo o percurso, incluindo a escada e partes do balcão e do salão. No seu notebook Fadil levava vídeos do sósia do Mujahid, com cenas tomadas dele próprio para que servissem de referências na imitação de seus gestos e movimentos. Durante dez dias trabalharam com intensidade e disciplina; o Mujahid sob permanente supervisão dos médicos. No penúltimo dia, veio o barbeiro junto com Khalid e a mãe, esta de véu cobrindo metade do rosto. O objetivo era o de orientar o Mujahid para que ficasse o mais idêntico possível ao sósia, coisa que não foi difícil para o barbeiro, e chegou a impressionar a ambos, olhando-se um ao outro como se se vissem num espelho. Por sua parte, Khalid e a mãe supervisionaram dois ensaios completos, ele fazendo correções e comentários por gestos que a mãe traduzia. Treinaram até as falas das sentinelas, do patrão, de empregados do restaurante e de pessoas que o conheciam na Zona Verde (as falas eram ditas por Fadil e os guerrilheiros), e como devia respondê-las com gestos, mesuras ou cumprimentos. Fotos de pessoas, ainda não repertoriadas, foram incorporadas ao notebook de Fadil

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para que Taquinho as memorizasse. O dia seguinte seria o “Dia D”. Capítulo 20 A contagem regressiva começou na noite anterior, assim que o Mujahid foi posto a dormir pelos médicos. A partir dali, cada minuto estava devidamente roteirizado. Desde Guantânamo, Taquinho não conseguia dormir bem. Por razões diversas, do seu estado de saúde aos traumas psíquicos, ele não lograva mais de três ou quatro horas de sono durante a noite. Mas agora ele iria precisar de todas as suas forças e deveria dormir pelo menos oito horas, logo depois de receber as últimas injeções de cortisona. Foi despertado às seis da manhã, como combinado, para a primeira oração do dia. Depois, fez o desjejum comendo de seu regime alimentar o que melhor o satisfazia. Comeu a sua predileta banana batida com leite e cereais e uma gelatina de amoras, que Zahirah preparava com doçura, só para ele. Tomou sucos naturais e pílulas vitamínicas. Passaram então a aguardar os informes da resistência que deveriam confirmar os eventos externos que precisavam se cumprir para que a operação fosse acionada. O último chegou às 10h30, confirmatório, como os anteriores, de que tudo estava como previsto e o plano poderia prosseguir. O Mujahid despediu-se solenemente de seus companheiros, deixando por último Fadil, a quem deu um abraço forte e demorado. Vestia uma túnica simples e um gorro de malha grosseira. Reverenciado por todos os presentes, que se curvaram à sua passagem, ele seguiu um dos guerrilheiros e deixou o esconderijo por uma porta camuflada que dava para o depósito de um armazém, dentro do qual já os esperava outro homem. Este guiou a dupla por labirínticos corredores internos de uma quadra comercial, até chegarem nos fundos da mercearia onde o Mujahid substituiria seu sósia. Deixado só no lavatório da mercearia, onde tomou as pílulas que lhe foram prescritas, aguardou a chegada do sósia. Minutos se passaram, e ele surgiu. Em silêncio, cumprimentaram-se e trocaram as roupas. Diante do minúsculo espelho que havia ali, Khalid deu os toques finais para ajeitar o “figurino” do sósia, composto de roupas ocidentais vulgares, até ficar satisfeito e sinalizar a sua aprovação. Em seguida, se foi com os dois homens, e Taquinho então saiu do lavatório, sentindo-se como se, finalmente, estivesse entrando em cena. A operação estava iniciada! O olhar da mãe de Khalid, ao vê-lo, foi animador. O dono da mercearia não sabia da operação e fora escolhido para o primeiro teste da substituição. Taquinho deveria se fazer bem visível diante dele, e foi o que fez. O homem despediu-se da mãe de Khalid e brincou com Taquinho como se o conhecesse. Este devolveu a brincadeira com gestos, despedindo-se dele. Pelos sorrisos do homem, percebeu que se saíra bem, e isto lhe deu ânimo ainda maior para prosseguir.

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Saiu de mãos dadas com a mulher pelas ruas centrais de Bagdá, naquela hora repletas de gente por todo lado. Era um dia nublado e frio; mesmo assim o Mujahid teve de se esforçar para acostumar-se com a luz solar, que não via há dez dias. Caminharam por cerca de dez minutos até o portão da Zona Verde. Ela se despediu dele com um beijo na testa, na frente das sentinelas, como fazia com o filho, levantando discretamente o véu com uma das mãos. Naquele dia o patrão não pedira compras para o restaurante, mas isto também fora previsto, e o Mujahid passou sem problemas pela revista e as sentinelas. Penetrou, então, o cenário da operação reconhecendo-o perfeitamente. Muitas pessoas transitavam a pé ou de carro pelo caminho asfaltado em declive que seguiu até a entrada de serviço do restaurante, não muito longe do portão. Alguns acenaram para ele, que retribuiu, mas a maioria nem se deu conta de sua passagem. Sentia-se bem disposto; nas suas condições, poderia mesmo dizer que se sentia “em plena forma”. Ao entrar na adega, surpreendeu-o a grande quantidade de garrafas que deveria subir ao andar de cima. Pelas contas que fez ali mesmo, diante das garrafas, seriam necessárias ao menos doze escaladas. Mas ele estava animado, quase frenético; o “tratamento” que recebera parecia estar fazendo o efeito desejado, e o seu ânimo entrara na fase mais dinâmica. Por isso não titubeou: vestiu o suspensório e começou o serviço. Porém, na quarta ou quinta escalada começou a sentir o esforço, e reduziu a velocidade do trabalho. Na oitava subida, achou que não ia dar conta; o esforço era enorme, talvez ele não aguentasse. Mas o patrão surgiu lá de cima fazendo cara feia e pedindo pressa, e isto funcionou para ele como um estimulante a mais. Passou a fazer as subidas tentando não pensar nas dores nem no cansaço, pedindo a Deus para que não desmaiasse. Finalmente, num esforço tremendo, que não podia deixar visível, logrou a subida em que levava as últimas garrafas ao balcão. Por sorte, os comensais já adentravam o salão e os funcionários estavam muito atribulados para ter tempo de notá-lo, só o barman chegou a fazer uma chacota risonha em inglês, mas ele se fez de desentendido, valendo-se de um gesto que aprendera de Khalid. Quando se assentou no banquinho, ao lado do tanque, viu no relógio do celular que faltavam 22 minutos para o ato final da operação, oito a menos que o previsto nos ensaios e simulações. Mesmo assim, optou por usar cinco desses preciosos minutos para repor as forças, num breve descanso que fez de olhos fechados, como se estivesse ouvindo o MP3. Na verdade, rezava. Não se arrependeu dessa breve pausa, também prevista nos ensaios, se fosse necessária. Ao dar início às tarefas programadas, se sentia com renovada disposição. Abriu a tampa do bueiro com certo esforço, parecia-lhe mais pesada que a dos ensaios; retirou uma por uma as garrafas de “O Esplendor do Império”, cuja forma exótica e os belos rótulos viu pela primeira vez, admirado – aquele fora dos poucos detalhes que a resistência não conseguira reproduzir com exatidão nos ensaios. Teve relativa facilidade para prepará-las com o explosivo, havia ensaiado bem, a diferença agora é que suas mãos tremiam um pouco, não sabia se pelo cansaço ou pela emoção. Mas tudo deu certo. Vestiu o suspensório e o escapulário, testou o funcionamento do dispositivo, ligando cada uma das quatro pontas ao MP3 e fazendo-o funcionar; dispôs as garrafas cuidadosamente nas respectivas sacolas e dentro delas enfiou

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lentamente as pontas dos fios de detonação até senti-las tocar o fundo. Tudo pronto! Olhou para o relógio do celular: faltavam quatro minutos para uma hora. Respirou fundo, pediu ajuda a Deus, e colocou sobre a palma da sua mão direita o escapulário aberto. Ainda orando ao Misericordioso, passou à etapa final da operação, ao iniciar, calmamente, a caminhada em direção a seu alvo. Capítulo 21 Dona Lourdes acabara a dolorosa leitura do relato do filho lá pelas duas da madrugada. Desde que passara a parte de Guantânamo, ela não tivera mais lágrimas para enxugar, nem mesmo no final do relato, onde se anunciava a tragédia que, ela sabia, ocorrera. Uma profunda nostalgia dos tempos de criança, época em que se falava muito sobre a região de onde vieram seus pais e avós, invadia o seu espírito a cada linha escrita pelo filho. Naquela época, os demônios que ameaçavam o ocidente eram os comunistas, não os muçulmanos. E agora, muçulmanos são todos os que têm origem médio-orientais. Não importa que sua família tenha sido, tradicionalmente, cristã e católica; é bastante ter um Raghid no nome para ser considerada muçulmana, isto é, para a imprensa atual, suspeita de ser “terrorista”. Sentia-se, agora, ao final da leitura, muito cansada e ao mesmo tempo atônita. Mas estava insone e queria meditar mais sobre o que lera e relera tantas vezes, sem entender por que tudo aquilo estava acontecendo com ela. Apesar de se saber da mesma origem das vítimas que causava, a guerra no Iraque só a tocara superficialmente, como a todo o seu pequeno mundo provinciano. Para ela, nunca passara de “mais uma notícia” nos jornais e tevês. Jamais imaginara que poderia um dia estar tão dentro dela como agora. E não fazia a menor idéia de como proceder. Resolveu ligar a televisão e, depois de mudar diversos canais, deu com um noticiário “extra” mencionando sucintamente o atentado. Nele se difundia, como notícia de “última hora”, o comunicado da Al Qaeda responsabilizando-se pelo ocorrido. Esta não era a primeira vez que ela experimentava, na própria pele, a irritante sensação provocada por falácias publicadas na imprensa. Na ocasião da morte de seu marido, ficara estarrecida com a capacidade dessa mesma imprensa em mentir descaradamente e distorcer os fatos mais flagrantes. Em seu relato, o filho informava, de fonte segura, que a tal “organização terrorista”, a Al Qaeda, não passava de uma invenção difundida pela imprensa ocidental a serviço dos interesses norte-americanos. Além do mais, a notícia era dada como se o local atingindo estivesse repleto de gente inocente e indefesa. Injuriada, ela desligou o aparelho e resolveu apagar as luzes e fechar as janelas para tentar se relaxar na poltrona e meditar. Estava tensa e não queria ser surpreendida outra vez por seu Jaime, o padeiro. Calculava que metade de Valadares já estaria sabendo daquela primeira vez, e tinha certeza de que a outra metade se inteiraria da “estranheza do comportamento de Dona Lourdes” se acontecesse novamente. Não se espantaria se já estivessem especulando à boca miúda sobre algum “caso” secreto, algum “amante” misterioso, ou qualquer outra bobagem do gênero.

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Passou a concentrar-se no “que fazer”. - E agora, Lourdes? – perguntava-se a si mesma – Você não tem mais ninguém, nem mesmo a esperança de que o filho um dia retorne ao lar. Pensou no padre Antonio. Taquinho sugerira o nome dele, mas tal sugestão ele dera ao falecido pai e não a ela. Se Eustáquio estivesse ali, com certeza seria um bom começo para que fizessem alguma coisa. Mas, sozinha, ela se considerava incapaz de dar um passo, mesmo nesta sensata direção proposta pelo filho. Não se via em condições de enfrentar o que viria depois. Previa a enorme revolta que tomaria padre Antonio. Ele iria mover mundos e fundos e botar a boca no mundo, pedindo justiça. Era um homem digno e admirável, e muito inteligente. Ela o conhecia desde que veio para Valadares, nos anos 60, fugindo da repressão da ditadura militar. Era um padre que gostava de envolver-se na política, nas questões dos direitos humanos, um crítico severo das desigualdades sociais, e um militante ativo das teses da teologia da libertação. Mas eram justamente tais atributos, que alimentavam nela uma grande admiração por padre Antonio, que agora a faziam vacilar. Não por ele, mas por si mesma. Padre Antonio seria capaz de conseguir repercussão para o caso, disso ela não duvidava. Porém, tal repercussão era o que ela mais temia. Como a enfrentaria? Com certeza, ela passaria por uma situação semelhante a que passou com a morte do marido, só que em escala mundial. Por um lado, solidário e confortador, mas, pouco influente na realidade imediata, ela teria a compreensão das pessoas sinceras que saberiam avaliar os fatos com inteligência própria, critério e senso de justiça. Por outro lado, mais poderoso e cruel, ela se veria afrontada por injustiças e humilhações as mais infames. Veria o filho nas páginas dos jornais acusado de “terrorista” e degradado à condição do pior dos mortais. Não vacilariam em atirar lama nas origens orientais dele, dela mesma, seus pais e seus avós. Nunca dariam ouvidos a argumentos de defesa, de razão e de justiça, distorceriam os fatos da forma mais abjeta e irresponsável, perseguiriam os que ousassem ajudá-la. Desta vez, pensava, nem Dr. Benedito se arriscaria a apoiá-la; e ela teria de compreendê-lo. Era possível que as amigas viúvas fossem afetadas; a própria causa delas, em andamento de vitória, acabaria se revertendo em derrota. Perderia todas as freguesas. Apavorava-a o futuro que via diante de si. Não que lhe importassem as desditas que lhe viessem, ela as enfrentaria todas pelo filho – mesmo se sabendo derrotada desde o começo –, se tivesse alguém seu e junto de si para lhe dar as mãos e os ombros e consolá-la. Fora isso, ela mesma se sentia incapaz de compreender o que ocorrera, e nem de avaliar a dimensão da complexa realidade em que o filho se metera. Não se via culta e informada o suficiente. Leu muito mais com o coração de mãe do que como leitora consciente. A maior parte do que lera fora assim; passagens inteiras leu sem captar sequer o sentido e a razão que sabia estarem ali e ela não lograva penetrar. Julgava-se por demais ingênua para defender o filho diante do poderio avassalador de um

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inimigo que se voltaria ferozmente contra ela, contra a memória dele e de tudo o que a ele fosse relacionado. Absorta, no silêncio da madrugada, ela ouviu o portão sendo aberto e os passos do padeiro até à sua varanda. Logo depois, as primeiras luzes da aurora começaram a revelar o interior da sala. Viu os papéis espalhados sobre a mesa e decidiu arrumá-los do mesmo jeito que lhe chegaram, o que fez meticulosamente e com cuidado para não danificar o precioso documento. Tomou café-com-leite bem quente e comeu um pão fresco com manteiga. Esperou o relógio marcar oito horas para ligar e cancelar o único compromisso do dia, com uma de suas freguesas. Estava exausta, confusa e, mesmo contra a vontade, não teve outra alternativa senão vestir uma camisola e ir deitar-se para tentar dormir um pouco. Dormiu abraçada ao envelope. Capítulo 22 O telefone e a campainha tocaram simultaneamente e acordaram dona Lourdes, assustada, no meio de um sonho, quase um pesadelo. Não atendeu a nenhum dos dois, apesar da insistência do telefone, e ficou na cama ainda confusa e sem saber distinguir entre a realidade e o sonho. Nele, seu pai, o “avô Pedro”, insistia em ver o envelope que o neto enviara da “minha terra” e ela se recusava a entregá-lo. Havia momentos em que o avô surgia jovem, a cara do neto, de terno, gravata e turbante, como na foto do casamento que ela guardava na caixa de recordações. Em outros momentos, o próprio Taquinho entrava no sonho pedindo-a que desse o envelope ao avô, e nessas aparições ele era a cara do avô. Ela ficava paralisada nesses momentos, sem conseguir mexer um músculo, em pânico, não sabia o que fazer. Foi num deles que as campainhas do telefone e da porta entraram nos diálogos aflitos do sonho e ela acordou assustada. Custou a se dar conta da realidade e, depois, a reunir forças para se levantar. Ao fazê-lo, pôs a mão na testa: quase se esquecera! O dia seguinte seria seis de janeiro, Dia de Reis, o dia em que falecera seu pai, há nove anos. Desde que o enterrara, todos os anos ela ia nesse dia ao cemitério da Igreja de Lourdes e plantava uma muda de azaléia ao lado do túmulo onde descansavam os restos mortais de seus pais. Prometera a si mesma fazê-lo durante dez anos, tempo em que assumira como o de guarda de luto pela perda do pai. Ele adorava azaléias, em especial as cor-de-rosa, porque davam flores no mês de setembro, quando ele fazia aniversário. Quando o pai de dona Lourdes adquiriu aquela casa, pediu à esposa, Laila, cujas mãos ele considerava iluminadas para a jardinagem, que plantasse um canteiro de azaléias. E ela o plantou bem no centro de um jardim de rosas, também dedicado ao marido, à frente da casa. Depois da morte da esposa, seu Pedro passou a cuidar pessoalmente do jardim com um esmero e um carinho semelhantes aos que a ela dedicara. Quando o jardim está florido, é comum ver transeuntes parados ali admirando as flores e comentando a beleza delas. Desde criança, Lourdes ajudava o pai nesses cuidados e, depois da morte dele, manteve-os com o costumeiro capricho. O jazigo da família consistia numa única e retangular lápide de mármore negro posta

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com ligeira inclinação em declive da cabeça para o pé do túmulo, sobre um rodapé do mesmo mármore, pouco acima do nível do solo. Situava-se na ruela central da pequena área de terra batida e algum gramado esparso, de uns 800 metros quadrados, do modesto cemitério reservado aos Filhos de Maria, nos fundos da Igreja de Lourdes. Sobre a lápide, logo abaixo da cruz de bronze que se constitui no único ornamento da lápide negra, já haviam sido gravados, em jato-de-areia, e com belos e bem desenhados tipos caligráficos, os seguintes dizeres: Laila Al-Mahmoud Raghid *Beirute, 1924 – †G. Valadares, 1953 Pierre Raghid (Pedro Alfaiate) *Paris, 1918 - †G. Valadares, 1995 Eustáquio Marcondes Varela (in memorian) *Almenara, 1948 - †Sobrado, 2003 Oito arbustos de azaléias, quatro de cada lado do jazigo, rigorosamente aparados a 1,20m de altura, constituíam, até aquele momento, o jardim post mortem do casal. Foram plantados pela dedicada filha, um a cada ano depois do falecimento do pai, sempre no seis de janeiro. O plano era o de duas fileiras de cinco arbustos, quando terminasse a guarda de luto. Todo 23 de setembro, dia do nascimento do pai, ela levava uma dúzia de rosas do seu jardim, da mesma cor das floridas azaléias, e as organizava com gosto sobre a lápide. Fazia o mesmo aos nove de maio, aniversário da mãe, mas isto, desde criança, junto com o pai. Também no Dia dos Mortos, dois de novembro, repetindo o costume paterno, ela levava nova dúzia de rosas carmim. Nessas ocasiões, dava uma gratificação a seu Cirineu, zelador da igreja, para que mantivesse as azaléias bem aparadas e irrigadas e a lápide limpa e reluzente. Dona Lourdes fez um café bem forte a fim de ter forças para cuidar de seus mortos. Tinha de preparar uma muda de azaléia para o dia seguinte e pretendia ir bem cedo ao cemitério levando numa sacola de feira os instrumentos de jardinagem e a muda preparada com um pouco de terra e bem umedecida, num saco plástico. Foi tomando o café que decidiu, enfim, o que fazer sobre Taquinho. Decidiu por entregar o caso à justiça divina; não fazia fé na dos homens e não se via capaz de enfrentá-la sozinha. Com sua tesoura precisa, ela recortou os três envelopes no mesmo formato dos papéis e fez o mesmo com a cartolina que encapava o volume do terceiro envelope, retirando também a amarração de barbante que o encadernava. Fez então um só volume de papéis empilhados, respeitando a ordem original com que lhe fora enviado, isto é, o lado subscrito do primeiro envelope como capa do volume, seguido da carta para ela; o mesmo lado do segundo envelope, seguido da carta ao pai; o terceiro envelope antes da capa de cartolina e do texto do relato e seus anexos; para, finalmente, fechar a pilha com o outro lado do primeiro envelope onde fora subscrito o endereço dela. Feito isso, enrolou cuidadosamente a pilha de papéis no menor diâmetro possível e amarrou o rolo com duas fitas de tecido verde (escolheu-as pensando na cor predileta do filho e no significado daquela cor, identificada com a “esperança”), dando-lhes um laço bem apertado.

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Da caixa de recordações retirou tudo o que havia dentro para ver se o rolo poderia caber em seu interior. De fato, coube apertado, disposto em diagonal, e necessitando-se de uma pequena pressão no fechamento da tampa para travar o delicado fecho da caixa. Era um estojo de madeira, manufaturado em requintado artesanato médio-oriental para guardar um precioso colar que pertencera à sua bisavó. Segundo a tradição familiar, ela fora odalisca e a esposa predileta de um sultão da Turquia, o qual a presenteara com a valiosa jóia. A avó de dona Lourdes se desfizera da jóia em Beirute, antes de emigrar com a família para o Brasil, mas conservara o estojo, que, depois de pertencer a Laila, restou com Lourdes. Não era uma caixa qualquer. Era obra de sofisticada marchetaria oriental, feita em marfim e madeiras nobres de vários tons e cores, compondo primorosas vinhetas e xadrezes em toda a tampa e nas laterais. No centro da tampa, vinham, incrustadas, duas gemas da mesma pedra vermelha cortadas na forma do crescente e da estrela, compondo assim o conhecido símbolo usado na bandeira da Turquia e de outros países islâmicos. Internamente, fora-lhe retirado o amparo do colar e recebera forração levemente almofadada de seda pérola para a sua nova utilidade como caixa de recordações. O fecho e as dobradiças eram externos, grandes e bem desenhados, confeccionados em ouro puro. No fecho, havia uma inscrição em árabe que, dizia-se, seriam as iniciais do nome do sultão, perdido na noite dos tempos já na época em que dona Laila casou-se com seu Pedro. Travava-se automaticamente num mecanismo de molas internas que, ao fechar-se a caixa, prendiam a lâmina fixada na tampa quando esta se introduzia toda no receptáculo da parte inferior. Para abri-la, destravava-se o mecanismo pressionando-se para dentro duas teclas laterais móveis, simultaneamente com o polegar e o indicador. Não dispunha de dispositivos de segredo, chave ou cadeado. Terminado esse trabalho ela fez uma pausa para se alimentar. Não comeu todo o frugal prato de banana amassada com aveia que preparou. Ao comer, acabou perdendo a concentração e mergulhou numa crise de choro convulsivo que durou várias horas. Só logrou interrompê-la quando voltou a lembrar-se do preparo da muda, e isto ia lá pelo fim da tarde. Durante a crise, o telefone tocara duas vezes, insistente, mas ignorado. No jardim, enquanto de joelhos retirava a muda de azaléia, foi interpelada por um vizinho lhe desejando “Feliz Ano Novo, dona Lourdes”. Duplicou a dose costumeira do tranqüilizante a que se viciara para dormir, desde o desaparecimento de Taquinho. Praticamente desmaiou sobre o seu leito, com o rosto banhado de lágrimas, depois de ajustar o despertador para acordá-la às cinco da manhã. Às seis do dia seguinte ela já estava ajoelhada, no cemitério da Igreja de Lourdes, ao pé do jazigo, cavando um buraco bem largo e fundo na terra. Era verão, fazia muito calor, e ela suava na execução da tarefa. E tinha pressa. Desejava terminar tudo antes da chegada de seu Cirineu, que pegava o trabalho às sete; não queria se encontrar com ninguém e nem que alguém visse o que estava fazendo. Por várias vezes, mediu o tamanho da cova com a caixa dos “restos mortais de Taquinho”, bem embrulhada num saco plástico. Ao fim, o embrulho coube horizontalmente no fundo da cova,

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como ela desejava. Cobriu-o com terra e sobre ela plantou a muda de azaléia. Limpou e alisou a terra em torno da muda com uma vassoura de mão e regou-a com a água de uma garrafa de plástico que levara na sacola. Foi embora antes da chegada de seu Cirineu. Capítulo 23 “De fato” – pensava padre Antonio, meditabundo e muito aborrecido –, “para morrer, basta estar vivo!” Quem poderia imaginar dona Lourdes, que há pouco mais de três meses demonstrava tanta saúde e vitalidade nas festas de Natal e fim-de-ano, hoje morta e enterrada? Ela que fora a maior responsável pelos recordes do Lar da Criança, de arrecadação, repercussão e presenças, desde as barraquinhas da Igreja até os eventos e solenidades que coroaram de êxito a instituição no ano passado, agora premiada e reconhecida por uma respeitada fundação paulista entre as mais eficientes instituições beneficentes do país? Uma ponta de despeito, o bom despeito, cutucava o ego do velho padre, apesar de sinceramente comovido pela perda daquela que fora grande companheira, amiga, auxiliar, voluntária e, principalmente, filha e devota de Nossa Senhora de Lourdes. Desde que viera definitivamente para Valadares, em 1968, ele não testemunhara um enterro tão concorrido, e isto não se reduzia apenas à sua igreja, da qual era o pároco há quase 30 anos. Só não foi feriado municipal porque não houve tempo de decretá-lo. Mesmo assim, o prefeito decretou ponto facultativo para os funcionários municipais. Muitas escolas públicas e privadas suspenderam as aulas em homenagem à humilde senhora que fora a responsável pela criação dos uniformes de quase todas elas. Suspeitava padre Antonio que o enterro dele próprio não chegasse sequer à metade do comparecimento ao dela. Tivera como certo que ele iria bem antes dela, e contava com ela na coordenação das cerimônias fúnebres e das homenagens póstumas. Deu-se o contrário: “Deus sabe o que faz!” – diria a mesma Lourdes. Ele estava indo para os 80 anos e fumava desbragadamente, vício que nunca pensou em largar, pois adorava o tabaco - de todas as espécies, exceto o de cachimbo. Ademais, não era dado a médicos, a exames e a essas paranóias de saúde que impregnam o mundo hoje em dia. Nem a planos de saúde aderira. Dr. Leandro vivia alertando-o para a necessidade de exames regulares, consultas, etc, mas ele só o chamava ou ia até ele e fazia exames quando algo lhe apertava de fato. Ninguém pudera imaginar a popularidade da boa senhora, ninguém! Foi um corre-corre na Igreja, desde o dia do enterro até a missa de sétimo dia, que caiu numa quarta-feira, e, depois, ele ainda deu ordens de que ela permanecesse sendo homenageada nos sermões de todas as missas celebradas até o outro domingo, além do seguinte, com agradecimentos aos que compareceram. O velório fora na casa dela, e enormes filas formaram-se na rua para o entra e sai de despedida. Não se conseguiam vagas para os carros que se engarrafavam ali e nos arredores. Vieram o prefeito, as autoridades municipais, políticos, gente rica, a classe média, e, em massa, o povo de Valadares. E crianças, milhares de crianças. Para

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tanto, nem precisou de jornal ou televisão. Por si mesma, a cidade inteira se mobilizou para homenagear aquela que, na pureza e humildade de um quase anonimato e de fiel devoção a sua Santa, era, em verdade, uma das pessoas mais queridas da região. Falecera de parada cardíaca na madrugada do dia 31 de março, data que, para padre Antonio, era de má memória desde 1964. A rua e o cemitério foram pequenos para o cortejo e o ritual fúnebre. Populares disputavam com autoridades e políticos a honra de pegar a alça do caixão, ao menos por alguns segundos. As azaléias ficaram ofuscadas pela quantidade de coroas de flores, que tiveram de ser distribuídas por todo o cemitério, desde o lado de fora, na entrada, no átrio, por dentro do portão, ao longo das ruelas que levavam até o túmulo e nas escadarias e nas naves da igreja. O enterro fora marcado para cinco da tarde, logo após a missa de encomenda da sua alma, para a qual se fez necessário que a prefeitura montasse um equipamento de som nas imediações da igreja abarrotada, mas, às sete, ainda havia gente discursando no cemitério cheio de gente. As coroas de flores iam sendo permutadas até a missa de sétimo dia – que outra vez superlotou o templo não tão pequeno, mesmo que não fosse dos grandes –, para atender a peregrinação que faziam até aquele túmulo os que não puderam ir ao enterro. Era a manhã de segunda-feira, 10 de abril, e, ainda recolhido em seus aposentos no andar de cima da casa paroquial, único lugar que nos últimos tempos lhe era permitido fumar em paz, padre Antonio via, pela janela, Cirineu, o filho dele, as empregadas da paróquia e alguns garis da prefeitura promovendo nova limpeza do caos de flores envelhecidas, além de lixo e resíduos vários, em que se tornara o cemitério ao longo das homenagens à saudosa senhora. Dali mesmo ele a vira, no dia seis de janeiro, bem de manhãzinha, plantando a última de suas azaléias. Lembrou-se de que estranhara a localização que ela dera àquela, pois sabia-se que planejara o plantio de dez arbustos laterais e, havendo então somente oito, seria normal que plantasse o nono na seqüência de uma das fileiras laterais não terminadas. Porém, ela o fazia ao pé do túmulo, rente à ruela que ali passava, o que despertou sua curiosidade e o fez decidir-se por ir até lá. Demorou-se um pouco a se vestir e, quando lá chegou, ela já havia ido embora. Comentou o fato com Cirineu, que também estranhou, coçou a cabeça e resmungou: - “Do’a Lurde deve de tá pensando em pô a úrtima nas cabeça do jazigo. Se isto fô, pode inté ficá bonito, mas vai me compricá de tirá a lage prus interro. É mió falá cum ela, padre, cumé queu vô tirá essa lage sem rebentá com as pranta em vorta? E’a já se foi?” Ele prometeu falar com ela ainda naquele dia. Se não aparecesse, no dia seguinte era certo. Dia sete de janeiro era o dia de Bernadete, e ela nunca faltava à missa dedicada à santa, às seis da tarde, que começava e terminava com a Ave Maria de Schubert cantada pelo coral que ela mesma organizara no Lar das Crianças. Porém, dona Lourdes não fora àquela missa. Como padre Belizário comentara, durante o almoço, que ela tinha aparecido na das seis da manhã, isto não o preocupou. Naquele mesmo sete de janeiro ele tinha viagem marcada no vôo das nove da noite para BH e, de lá, seguiria para São Paulo, e não teve tempo de

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especular sobre isso. Padre Antonio planejara aquela viagem para ser a última que faria a sua terra natal, a cidade de Santos, no litoral paulista. Seria bem mais longa que as anteriores, talvez, de um mês inteiro. Para ele, as viagens estavam a cada dia mais aborrecidas e cansativas, nem as de avião, que antes tanto gostava, lhe agradavam mais. Os aviões mais se pareciam com ônibus vagabundos do interior de Minas, não se podia fumar em lugar nenhum, atrasos, demoras, falta de educação dos funcionários das linhas aéreas, tudo era uma chateação sem limites. Havia adotado Valadares em definitivo como a sua segunda terra natal e nela pretendia ficar, para sempre. Parentes em Santos só tinha o sobrinho, filho de sua irmã que falecera há mais de dez anos, a esposa dele e a filharada que não sabia a quantas ia naquela data, mas já passara dos seis pimpolhos em escadinha, meninas e meninos, alguns já quase adultos. Em São Paulo, ligaria para saber e compraria presentes. Iria nomear o sobrinho como seu único herdeiro, transferindo a ele os poucos bens que possuía em Santos, por herança dos pais, e os direitos que recuperara desde a anistia, inclusive as indenizações que estava por receber do governo federal. Recuperara seu posto de capelão da Marinha, que perdera em 1966, na patente de tenente, e recentemente fora promovido a capitão da Reserva. Além do que ganhava da Igreja, este soldo e as indenizações lhe dariam folga financeira mais que suficiente para os poucos anos que lhe restavam. Gostava do sobrinho e tinha dele a reciprocidade em afeto e amizade. O “garoto” (que já ia para mais de 40) sempre lhe fora prestativo, honesto e até desnecessariamente rigoroso e pontual ao cuidar dos negócios da família em Santos. Religiosamente, desde o falecimento de sua mãe, ele enviava a Valadares, pelo correio, sempre no dia cinco de cada mês, um envelope com contas, extratos e comprovantes de tudo o que era de interesse do tio, junto com o depósito, feito no mesmo dia em sua conta corrente, do valor que lhe cabia das receitas auferidas com os aluguéis da sala e do apartamento que herdara. E, mesmo sob a insistência do tio, sempre se recusava a tirar para si um centavo sequer por tais favores. Cuidava também, como procurador e advogado, depois que se formara em Direito, das demandas que nos foros de Santos e de Brasília ainda se travavam pela recuperação de seus direitos e patente, desde os fins dos anos 70, com a publicação do decreto da anistia. E se recusava a recolher honorários pelo trabalho, nem os dos êxitos financeiros logrados. A burocracia e a papelada que se fizera necessária para cumprir os objetivos da viagem acabou por prolongá-la até o dia 10 de fevereiro, data que para padre Antonio era limite. No dia 11, se comemoraria em todo o mundo o Dia de Lourdes, e ele nunca perdera a celebração da missa dedicada à padroeira da sua Igreja, desde que dela se tornara o pároco. Nesse tempo em que esteve fora, quase não fez contato com Valadares; uma ou outra vez, entre as poucas decisões que foram tomadas na paróquia naquele período morno do ano, e que precisaram do concurso dele, fizeram-no via telefone ou por e-mail, com a máxima brevidade possível, pois ele não era dado a conversas por telefone (nem celular possuía) e menos ainda por computador.

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Depois de chegar ao aeroporto de Valadares, o primeiro comentário que ouviu do chofer de táxi que o levou até a paróquia, quase meia-noite, foi sobre dona Lourdes. Capítulo 24 Este 11 de fevereiro fora especial e marcante para padre Antonio. Caíra numa sexta-feira, e a festa seria no domingo, motivo pelo qual a paróquia já se agitava nos preparativos. Ainda assim, sempre no próprio dia 11 a missa das seis da tarde era toda especial, com coro e órgão, e grande audiência. Pela primeira vez nos últimos quinze anos, dona Lourdes não estava à frente da organização da missa e da festa de domingo. O leitor não sabe, pois ainda não foi informado, que foi este o dia do nascimento de dona Lourdes. Além de ser o dia consagrado à Virgem dos Pirineus, outros bons motivos levaram o pai dela a batizá-la com o belo nome: em primeiro lugar, homenageava a desditosa esposa Laila, falecida no dia em que deu a luz à filha e fiel adepta da milenar devoção dos cristãos libaneses à Virgem Maria. Homenageava também a França, país em que nascera; a paróquia em que se estabelecera; e o pároco francês que a fundara, o saudoso padre Maurice, de quem gozara uma sincera e quase íntima amizade e fora devedor de muitos e desinteressados obséquios, que ele procurou pagar cortando as batinas dos padres da paróquia sem cobrar pelo serviço. Possivelmente, a extrema-unção de Laila e o batismo de Lourdes foram os últimos sacramentos que padre Maurice, já bem velhinho, celebrou antes de falecer poucos meses depois. Padre Sinfrônio, seu discípulo e sucessor no comando da paróquia, o assistiu em ambos e acreditava ser a recém nascida iluminada pela santa, por isso a tratava como paroquiana e devota predileta. Quando estivera ali pela primeira vez, em maio de 1966, numa breve estadia de contatos com líderes sindicalistas dos garimpeiros da região, padre Antonio viu a coroação da Virgem pela menina Lourdes, a última de seis coroações seguidas que protagonizara, pois desde os sete anos era a escolhida para o importante papel principal dessa celebração festiva. Naquele dia, se conheceram e manifestaram grande simpatia um pelo outro. Desde então, Lourdes e ele cultivaram uma amizade fraternal e um companheirismo que jamais negligenciaram. Mesmo estando bastante cansado da viagem, padre Antonio fez questão de ajustar o despertador para seis da manhã, a tempo de pegar o início do “jornal da paróquia”, que era como os padres, sacristãos, funcionários e empregados chamavam o horário de seis e meia até sete e meia, durante o qual era servido o café da manhã no refeitório da paróquia. Preocupara-se com a conversa do chofer sobre dona Lourdes, mas conhecia bem os exageros daquela gente provinciana. Sua opinião pedia detalhes e exigia informações mais confiáveis para se formar. Foi o primeiro a sentar-se na comprida “mesa do pároco”, e as duas cozinheiras, Luzia e Graça, disputavam entre si a primazia de dar a ele as notícias de dona Lourdes. Teve de pôr ordem nas duas e deu a palavra primeiro à língua menos “afiada” e mais moderada da quarentona Luzia. Como previra, as notícias não eram

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boas. Desde o dia da viagem do padre, dona Lourdes se enfurnara em sua casa e não saía de lá nem para ir à missa. Fazia compras por telefone ou pelo Joãozinho da Bicicleta (que sucedera a Taquinho no ofício e na clientela, valendo-se, inclusive, da mesma bicicleta, que lhe fora cedida por dona Lourdes). A última vez que ela viera na Igreja fora na missa de Bernadete, celebrada por padre Belizário, às seis da manhã daquele sábado. - Na segunda-feira – interrompeu a sexagenária Graça – seu Jaime da padaria, que já desconfiava e me disse “em segredo” sobre a estranheza do comportamento de dona Lourdes, falou que o pão e o leite que tinha entregado no domingo ficaram lá na varanda, do mesmo jeito que deixou. Ficou preocupado e voltou mais tarde para ver se ela estava bem. Ela o atendeu da porta e se desculpou, dizendo que não havia saído de dentro de casa para nada no domingo por estar indisposta, por isso se esqueceu. Neste momento, chegou padre Belizário, que acabara de celebrar a missa das seis, e as duas linguarudas, percebendo que era a vez dele, se despacharam, até porque mais comensais chegavam no cenário delas. Depois de cumprimentarem-se, padre Belizário sentou-se ao lado dele e conversaram quase aos cochichos. Justificou nada ter mencionado durante a ausência do pároco por não ter havido urgência ou alarme a não ser nas especulações dos fofoqueiros de sempre, e nem o que padre Antonio pudesse fazer estando fora. Contou que dona Lourdes enviara pelo Joãozinho da Bicicleta cartas a todas as freguesas comunicando o encerramento de suas atividades de costureira. Duas foram mostradas a padre Belizário. A de Maria, esposa do Dr. Leandro, e a de Antonieta, do Dr. Gusmão. Eram quase idênticas, delicadas e bem educadas: a missivista agradecia as destinatárias pela honra da preferência, manifestava ter sido feliz em servi-las, comunicava a cessação das atividades por decisões de foro íntimo e pedia-lhes compreensão. Para o Lar, ela enviara uma bem escrita carta de renúncia irrevogável junto a um bilhete para padre Belizário pedindo para que não se preocupassem com a ausência dela, que não atrapalhassem a viagem de padre Antonio com aflições sem fundamentos a respeito dela, e que aguardassem a sua chegada, pois a ele se explicaria pessoalmente, quando lhe conviesse ouvi-la. Ambas estavam na gaveta da mesa dele, na sala de administração da paróquia. Maria, do Dr. Leandro, a está substituindo interinamente no Lar até que a paróquia decida o que fazer. Padre Belizário informou também que, em todo esse tempo, dona Lourdes só recebeu pessoalmente, na casa dela, as três viúvas, as quais vieram vê-lo logo em seguida. Estavam seriamente preocupadas. Disseram tê-la encontrado com uma aparência de dez anos mais velha que da última vez que a viram. Não fazia mais rinsagens ou pintura dos cabelos, não se maquiava, nem batom usava mais. Com as roupas ela parecia não estar preocupada, ela que sempre se via bem vestida, com rigor e bom gosto. Viram a casa descuidada para quem era conhecida pelo capricho no lar, até o jardim está carente de trato. Apesar das olheiras fundas que denunciavam insônias, não pareceu a elas que sofria problema grave de saúde. Ela alegou depressão, não revelou nada importante e disse que não mais participaria dos almoços com as amigas, que deixaria a causa a partir de então, e no que diz respeito aos seus próprios

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interesses, inteiramente nas mãos do Dr. Gusmão e delas, no que dissesse respeito aos interesses comuns. As três mulheres foram unânimes em avaliar a situação relacionando-a com alguma novidade sobre o filho que ela não quis informar. Enfim, todo mundo em Valadares está aguardando a chegada de padre Antonio para saber sobre o que está ocorrendo com dona Lourdes. A mesa e o refeitório estavam cheios neste momento e quase não se ouvia uma voz, pois todos aguardavam o fim do diálogo dos dois padres para cumprimentarem padre Antonio e, fingindo que não, tentavam ouvir alguma coisa do que cochichavam. Padre Antonio encerrou o diálogo, cumprimentou a todos com uma saudação geral, pediu licença e subiu aos seus aposentos. Algum tempo depois, retornou envergando batina nova que mandara cortar numa alfaiataria de Santos, o que causou grande surpresa. Há muito ele não era visto de batina. Disse a padre Belizário que só celebraria a missa das seis da tarde e a todos informou que iria ver Lourdes e não tinha hora de retorno. Ordenou que se concentrassem nas atividades do dia e da festa de domingo, que se esquecessem de dona Lourdes e respeitassem o recolhimento a que ela mesma se impôs, e que, até segunda-feira, quando ele pretendia fazer uma reunião sobre o assunto com os interessados, incluindo convidados de fora, não se falasse nela na paróquia. E saiu. Capítulo 25 Eram quase oito da manhã quando padre Antonio saiu da casa paroquial em direção à casa de dona Lourdes. Sua figura esguia, alta e de cabeça branca, todo de preto e, como sempre, carregando a pasta preta de couro, chamava a atenção dos transeuntes. Ele sabia disso, fora um dos que contestaram a desobrigação do uso da batina, lá pelos anos 60. Na época, taxaram-no de conservador e antiprogressista, logo ele que enfrentara, de peito aberto, a ditadura militar e as hostes reacionárias da igreja católica que a apoiaram. Ainda mantinha sua opinião de que a desobrigação do uso da batina constituiu-se numa das maiores fraquezas de sua igreja desde que posta em prática. Abrira as portas para as hordas de “pastores protestantes” – para ele "o mais infame dos tipos sociais que assolam a vida nacional" –, proclamarem-se porta-vozes de Deus perante um povo que não tinha mais no tradicional traje o referencial de respeito e credibilidade a que, mal ou bem, estava habituado. O poder da batina salvara-lhe a vida e as de muitos manifestantes numa passeata dos portuários, em Santos, logo depois do golpe de Estado. Os soldados receberam ordem de disparar contra os manifestantes, mas, ao verem-no de batina à frente da passeata, se recusaram a obedecê-la. O comandante do batalhão veio até ele para tentar retirá-lo da manifestação e ele se negou a deixá-la enquanto não tivesse garantias de que não haveria disparos e agressões aos civis. E a passeata prosseguiu. Agora, ele a vestia para estar à altura de uma das missões que considerava das mais importantes de seu sacerdócio. Iria prestar serviços a uma católica que precisava deles e que, em sua opinião, é modelo do que qualquer igreja poderia almejar para seus fiéis. Certamente não iria ouvir confissão de pecados; dona Lourdes estava entre os pouquíssimos católicos que conhecia que não os cometia. Não era fanática, beata, mártir ou exemplo de sofrimento a ser santificado; era o que deveria ser todo bom católico: obediente aos mandamentos de Deus e fiel seguidora dos ensinamentos

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simples e iluminados de Cristo. Dona Lourdes abriu a porta para ele já exclamando a surpresa pela batina: – Se não fossem os cabelos brancos, padre, eu acharia que estava tendo uma visão do passado! Fui eu quem abriu esta mesma porta para o senhor entrar quando veio pela primeira vez à nossa casa, lembra-se? O senhor me pareceu tão elegante naquele dia como agora, nesta batina bem cortada. Parabéns, o senhor se mantém muito bem conservado. – Como iria esquecer-me, Lourdes? Você era uma linda menina e tinha os olhos tão brilhantes e vivos como estes que estou mirando agora. Vestida num pengnoir leve, de cor bege, e calçando chinelas, ela convidou-o a sentar-se na mesa da sala de jantar e trouxe a bandeja de café, incluindo cinzeiro e um par de xícaras. Perguntou-lhe pela viagem, e ele respondeu que correra bem, mas não viera para falar, e sim para ouvi-la. Antes, devia expressar a solidariedade, dele e da paróquia, ao que estivesse ocorrendo a ela, fosse o que fosse, incluindo a decisão que tomara em relação ao Lar, ainda que infelicitasse a todos lá, que a amavam, e ele incluía nesse universo “até a nossa padroeira”. Dona Lourdes agradeceu sentando-se frente a ele e pondo sobre a mesa uma velha pasta de couro que pertencera a seu pai, cheia de papéis. – Lembra-se, padre, quando lhe falei que só acreditaria na morte de Taquinho se dele recebesse um sinal convincente? Pois o recebi; e com ele o fim das minhas esperanças... – É triste, Lourdes, meus sinceros pêsames. Confesso que faz tempo que perdi as esperanças de vê-lo outra vez nesta vida. Posso saber quando e em que circunstâncias ele morreu? – Decidi que essas informações eu as levarei comigo para o túmulo, padre, perdoe-me, não é desconfiança em relação a ninguém (não conseguiu mais conter as lágrimas). – Lourdes, este direito é todo seu e será respeitado, não se aflija – disse o padre dando-lhe uma das mãos e erguendo-se para enxugar-lhe o rosto delicadamente com o lenço branco e limpo que sempre trazia consigo. – Tentei ser boa filha – respondeu ela soluçando e esforçando-se por conter as lágrimas – e vi no meu pai um exemplo de grande homem. Era honesto, trabalhador e talentoso. Conquistou renome de virtuoso alfaiate ainda quando se assinava Pierre Raghid. Veio então a ditadura militar e a implicância com o Pierre, numas ilusórias ligações com comunistas franceses. Ele percebeu e mudou seu nome para Pedro Raghid. Alguns anos depois, a implicância passou para o Raghid, e outras mais que ilusórias ligações com terroristas muçulmanos. Tornou-se, então, o Pedro Alfaiate, e viu o respeito e a consideração com a sua pessoa, o seu trabalho e a sua profissão se dissolverem até a quase nulidade. Procurava não deixar transparecer, porém ele morreu muito triste e desanimado, eu que o diga.

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– No decorrer desse processo – continuou ela tentando dominar as emoções – encontrei-me com o meu marido e procurei, igualmente, ser uma boa esposa. Creio que consegui sê-lo até que me tornei mãe. No momento em que me tornei mãe, vi-me diante de um dilema. Tive de optar pelo meu filho, sem, contudo, abrir mão da fidelidade a um marido distante, quase ausente do lar. Não deixei de amar meu marido apesar disso, nem de apoiá-lo e admirá-lo por sua bravura e persistência. Um homem que conseguiu reverter perspectivas mais que negativas de um berço infeliz e tornar-se um vitorioso profissional do ofício que abraçou. – Padre Belizário me informou das novidades a respeito da tragédia; que absurdo! – interrompeu-a padre Antonio. – No que diz respeito a mim, padre, sinceramente, eu preferiria não tê-las conhecido. O acidente, como razão de sua morte, me era mais confortável. Doeu-me muito saber que fora vítima de quase um crime, um mau procedimento, como ele falava. Tudo por ganância... – As exportações, as malditas exportações! – exclamou o padre, sem conseguir se conter – Não sei como uma praga dessas pode assolar um país como o nosso sem que encontre a menor resistência de parte alguma, nem mesmo do povo. – Segundo as viúvas me contaram, as investigações do Ministério Público encontraram relatórios do próprio Eustáquio dirigidos à diretoria da Vale em que denunciava com veemência o não cumprimento sistemático de vários procedimentos de segurança nas detonações. Nenhum deles mereceu sequer comentário ou manifestação da alta direção. Tinham pressa, queriam aumentar a produção, cumprir metas de exportação. O Ministério Público suspeita que aqueles homens não foram os primeiros a serem criminosamente soterrados por tais negligências. Tudo o que vem me acontecendo me parece uma perseguição contra a pobre gente do nosso povo, gente como eu, e, no meu caso, filha única de pai viúvo, esposa fiel de marido ausente e mãe amorosa de filho único... ai, Taquinho, meu filho querido... Taquinho... (derramou-se em novo e soluçante pranto). Capítulo 26 De seus aposentos na casa paroquial, padre Antonio observava a limpeza do cemitério e rememorava aquele diálogo, quase todo um monólogo da infeliz falecida. Depois de derramar uma torrente de lágrimas, ela retomara uma serenidade estranha e foi surpreendentemente objetiva e direta. Entregou ao padre a pasta de couro contendo os documentos de herança, propriedade, bens de valor e contas bancárias que possuía. Pediu a ele que providenciasse junto ao tabelião e ao escritório do Dr. Gusmão a transferência de tudo para o Lar das Crianças, inclusive as possíveis indenizações que estava para receber da Vale, pela via de um acordo muito favorável às viúvas. Pedia-lhe que aceitasse ser nomeado procurador dela para o que necessitasse ser feito ou decidido em relação a seus bens e direitos. Incluía também um projeto, elaborado algum tempo antes por uma de suas freguesas, arquiteta, do prédio da nova sede do Lar no terreno em que ficava sua casa, quase triplicando a capacidade da creche para 800 crianças, em instalações modernas e mais apropriadas.

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O acordo indenizatório haveria de cobrir as despesas da obra e, se mais fosse necessário, a prefeitura e o governo ajudariam, com certeza. Em troca, só pedia duas coisas. Que o padre conseguisse a sua aceitação como monja laica no mosteiro das Carmelitas Descalças, em Belo Horizonte, ou em outro que achasse conveniente, para que lá vivesse em sua solidão e em orações até o dia de sua morte. Oferecia ao mosteiro os seus dotes de costureira, de cozinheira e até de faxineira, ou se colocava à disposição para qualquer outra tarefa de que fosse capaz. E a sua fé cristã inabalável. E que, ao morrer, tivesse seu corpo trazido a Valadares e enterrado no cemitério da Igreja de Lourdes, junto aos de seus pais. Sabemos que o padre só pôde atender a segunda parte do segundo pedido. O primeiro, por formalidades burocráticas, eclesiásticas e cartoriais, demorou algo mais que o esperado e estava a poucos dias de concretizar-se quando, na madrugada do dia 31 de março, ele recebeu um telefonema de dona Lourdes em que ela lhe dizia aflita e em convulsões: - Venha, padre, por favor, e traga água benta. Acho que estou morrendo. Ele correu até ela acompanhado de Graça, enquanto Belizário localizava o Dr. Leandro. Encontrou-a nos últimos suspiros e ela faleceu durante a extrema-unção. A ambulância chegou logo em seguida, junto com Dr. Leandro, que nada mais teve a fazer senão oficializar óbito. O médico atribuiu ao excesso de remédios e tranqüilizantes, com que dona Lourdes ultimamente se automedicava, como a causa mais provável do acidente cardíaco que a matou, o que, ao menos em tese, pôde ser confirmado nos exames de autópsia. Sem esconder a irritação e o inconformismo, pois gostava muito da falecida, Dr. Leandro, que era um militante socialista convicto, culpou o sistema capitalista pela morte dela. Um sistema que, no Brasil, é dominado pela indústria farmacêutica – segundo ele, a “indústria da doença” e, não, da saúde – e que maldosamente fazia confundir pacientes clínicos com consumidores, e produtos farmacêuticos com mercadorias inofensivas. Luzia bate na porta: - “O pessoal da prefeitura já está aqui para a reunião, padre”. A reunião durou cerca de uma hora, depois do que padre Antonio foi ter com Cirineu, que dava os últimos toques na limpeza do cemitério. - Infelizmente, vamos ter de retirar as azaléias do túmulo de Lourdes, Cirineu. - Tirá as azaréia de do’a Lurde?! – retrucou, pasmo, o bom zelador. - Lourdes não deixou descendência e não tinha parentes; e, para a vida nesta Terra, os mortos são todos iguais, Cirineu – disse o padre em tom filosófico, com o olhar no infinito. - Além disso, os tempos e as coisas mudam. A praga da dengue está aí e a prefeitura quer o cemitério todo calçado e cimentado, dentro de normas técnicas e legais, entre outras exigências. Eles mesmos se encarregarão da obra, mas eu quero que você supervisione tudo...

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- Entonce divia de prantá ao menos u’a arvre pru conforto das arma. Isso aqui todo acementado vai ficá mais prus forno dos inferno que prum campo santo. - É uma boa idéia, Cirineu, vou pensar. Sabemos o quanto nos entristece ter de desfazer o que Lourdes fez com tanto zelo, mas arranque tudo hoje mesmo; eu nem quero estar por perto. O pessoal da prefeitura foi inflexível e eu não tive outra saída senão me comprometer em ajudá-los. Se der, aproveite o carreto que vem recolher a caçamba da limpeza no fim da tarde, quanto mais rápido fizermos isto menor será a nossa dor – e afastou-se cabisbaixo, enxugando os olhos com um lenço. Depois do almoço, padre Antonio foi a seus aposentos para desfrutar uma pequena sesta, como sempre fazia. Cochilou por cerca de quarenta minutos, como de costume. Levantou-se, foi à escrivaninha e abriu a Bíblia a fim de escolher trechos para duas missas que celebraria ainda naquele dia. Num dado momento, Cirineu bateu e recebeu licença para entrar. Trazia na mão um embrulho de plástico e exibiu-o ao padre. - Tava interrado debaixo do úrtimo pé de azaréia qui do’a Lurde prantô. Tá cumu tava, num mixi nada, só alimpei as terra qui garraro pru fora. Ao pegar o volume, padre Antonio arregalou os olhos e não teve dúvidas de que estava recebendo em mãos a misteriosa mensagem de Taquinho. - Alguém mais viu isto, Cirineu? - Só eu mermo, padre, o pessoár tinha ido tudo imbora quando comecei a rancar as pranta. Truce direto pru sinhô, vi qui é trem compricado purisso truce aqui. - Você fechou a cova de onde tirou isto? - Não, cabei de batê cum a pá nesse troço. Foi nesse instantim, e’a a úrtima que fartava prá tirá. As otra já tinha rancado e fechado os buraco tudo cunforme o sinhô pidiu. - Então, faz o seguinte: deixe tudo lá como está. A prefeitura vai começar na quarta-feira e temos amanhã o dia todo para prepararmos as coisas para eles. Tenho duas missas hoje e só vou poder saber do que isto se trata mais à noite. Amanhã digo a você o que vamos fazer. Pode ir. - Tá paricendo cinza de cremado ou coisa de pagão, mas num cridito que do’a Lurde, frevorosa cumu era, ia fazê u’a coisa dessa num campo santo, ó xente! Já pode isso, padre? Era conhecida na paróquia a pouca paciência de padre Antonio com a perguntação de Cirineu, um curioso contumaz. - Cirineu, Cirineu, vamos saber primeiro do que se trata, certo? E não diga nada a ninguém. Amanhã, antes do café, venha até aqui, e resolvemos o que fazer. Agora preciso trabalhar. Até amanhã.

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- Inté manhã, padre. Capítulo 27 Padre Antonio não se lembrava de uma missa tão mal celebrada por qualquer padre como aquela que celebrou neste dia, às cinco da tarde. Não houve jeito de se concentrar no que fazia, o sermão saiu confuso - um desacerto! -, e por pouco ele pulava o Ofertório. A outra missa de sua escala, prevista para logo mais, às sete horas, ele permutou com padre Belizário alegando indisposição. Na verdade, estava aflito e preocupado. Não quis abrir o embrulho de plástico que dona Lourdes enterrara no cemitério (por certo acreditando que ele não seria desenterrado tão cedo) antes de cumprir os compromissos do dia. Sabia que não haveria nele nada que se pudesse avaliar em pouco tempo. Estava certo de que devia ser a “mensagem de Taquinho”, mas não fazia a menor idéia do que constava nela ou de que forma era. Percebeu que não eram cinzas de cremado, como suspeitou Cirineu, e vislumbrou através do plástico algo parecido com o símbolo muçulmano do Crescente Lunar. Mas isto não o preocupava de imediato. Confiava em Cirineu, mas conhecia bem os olhares e as línguas afiadas da paróquia e, no momento, ela estava bem servida delas, com vários hóspedes e o pessoal da casa ainda retomando as atividades algum tempo depois do almoço, hora em que Cirineu subiu ao seu apartamento. Difícil afirmar que ninguém o vira; vindo do cemitério, ele teria de passar pelo refeitório e pela sala de TV até chegar na escada que dava para o andar de cima. Dificilmente estariam ambas vazias naquela hora. Padre Antonio considerava a coisa mais difícil do mundo guardar um segredo em uma casa paroquial. Em todas, abundavam os linguarudos e os bisbilhoteiros. A dele não era diferente. Já quando chegara a Valadares tinha a sua pasta preta, da qual nunca se separava, onde guardava seus escritos em andamento, documentos confidenciais e tudo o mais que nela coubesse e que queria resguardado dos abelhudos. Não havia numa paróquia um só esconderijo, porta, armário ou gaveta, com ou sem chave, que garantisse segurança. Ele tinha na sacristia um gavetão com chave segura onde guardava a pasta enquanto celebrava a missa, mas, para ele, a maior segurança desse gavetão era porque dava para ser visto e vigiado do altar durante a celebração. No almoço, Luzia havia-lhe entregue uma sacola com paramentos novos que ele queria experimentar antes de usá-los. Foi nela que colocou o embrulho de dona Lourdes e o levou, junto com a pasta, para o gavetão da sacristia. Ao terminar a missa, depois de permutar a escala com padre Belizário, ele tomou um lanche rápido no refeitório, subiu aos seus aposentos com a pasta e a sacola e trancou-se lá. Avisou a Graça que desligaria o telefone do seu ramal e não queria ser incomodado. Justificou-se dizendo que precisava de descanso. Padre Antonio não era paranóico, como o leitor poderia suspeitar depois desse relato. Era um veterano. Escolado e viajado no Brasil todo e no exterior, conhecia as

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manhas do seu ofício. Sabia que não havia parede que não tivesse ouvidos e fechadura de porta que não tivesse olhos naquela casa. E não eram os ouvidos e os olhos de Deus, eram os da Mitra. A alta hierarquia da Igreja brasileira espionava bem os seus párocos, desde cada um dos livros que mantinham na biblioteca até quantos cigarros fumavam por dia. E, no caso dele, não eram poucos os cigarros como também não o eram os livros, que já iam para mais de cinco mil. Ele acumulava as bibliotecas de padre Maurice, padre Sinfrônio e a dele próprio, parte delas nos seus aposentos de pároco, que dispunha de quarto, sala de estar (que padre Antonio transformou em escritório e biblioteca particulares, onde estudava e escrevia) e banheiro privativo, todos amplos, arejados e bem iluminados, dentro da espaçosa arquitetura de estilo francês que padre Maurice deu ao templo da Virgem de Lourdes e à casa paroquial. O conjunto arquitetônico daquele templo católico era um pedacinho da França incrustado no sertão brasileiro. Das obras de arte até as ferragens o velho pároco fundador trouxera de seu país natal, todas escolhidas a dedo e com bom gosto. “As louças, apesar de inglesas”, costumava dizer, “são também de boa qualidade. As madeiras são brasileiras, melhores não há”. Padre Antonio fechou a porta do escritório, passou-lhe o ferrolho de segurança e pendurou na maçaneta da porta, por dentro, um aviso de “não perturbe” que trouxera de um hotel numa de suas viagens. Tal providência tinha por finalidade tapar completamente o grande buraco da velha fechadura de fabricação gaulesa que o patrimônio histórico, por sua iniciativa, incluíra no tombamento do conjunto arquitetônico em que habitava. Em seguida, ajustou a luz do abajur sobre a escrivaninha, pegou uma tesoura e cortou com cuidado o plástico que envolvia aquele “segredo de Lourdes”. Ao ter nas mãos a caixa que retirou do invólucro ainda um pouco sujo de terra, antes de abri-la não pôde deixar de admirá-la nos detalhes e em todos os seus lados. Era um aficionado de antiguidades e objetos de arte, inclusive os de origem muçulmana, cultura da qual era conhecedor e admirador, desde quando fora capelão da Marinha e visitou alguns países do Oriente Médio. Calculou que era obra de artesanato saudita do século XVIII, pelo uso do marfim na marchetaria e pelo desenho do fecho. Não teve dificuldade para entender e acionar o mecanismo de abertura e soltar a tampa, a qual abriu lentamente como se a filar uma carta de baralho. E retirou de dentro da caixa o rolo de papéis com os dois laços de fita verdes que o seguravam. Ato contínuo, ainda segurando o rolo, soltou os dois laços e abriu o volume, reenrolando-o no sentido oposto para anular as tensões a que se acostumaram os papéis e poder dispô-los sobre o tampo da escrivaninha de modo a examiná-los. Capítulo 28 Um pacote de cigarros fechado e outro aberto, sempre da mesma, tradicional e predileta marca, era a “reserva técnica” que aquele pároco, um tabagista inveterado, costumava manter na gaveta maior de sua escrivaninha. Quando acabava o que estava aberto e abria-se o que estava fechado, ele providenciava para que logo lhe viesse um novo pacote. Nós o vemos agora, concentrado na leitura do documento secreto, que já ia para mais da metade, enquanto abria quase que automaticamente um novo maço de cigarros.

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Ao lado, um grande cinzeiro transbordava de cinzas e baganas catinguentas e uma xícara de café que acabara de encher até quase ao meio com o que restava de uma garrafa térmica. Não tira os olhos do papel nem para acender o cigarro. Da cozinha, Graça e Luzia, finalizando a limpeza do recinto e a arrumação do panelório, viam o fumacê que vazava da janela do pároco, realçado pela luz de um poste nas proximidades. - Hoje a chaminé está a toda – resmungou Graça, que sempre implicava com o vício dele. - Ninguém me tira que tem a ver com o trem que o Cirineu levou pra ele hoje de tarde – retrucou a outra – Rufino, o novo sacristão residente, estava na sala dos computador e viu ele subindo com uma coisa lá prá cima. Diz que voltou sem ela. E só tinha o padre Antonio lá em cima naquela hora. - E a cova da última azaléia que dona Lourdes plantou está lá aberta, eu vi, lá no cemitério. Cirineu não é de deixar trabalho pela metade. Preguntei a ele e me disse que era prá plantar uma árvore. - Que novidade é essa agora? - falei prá ele. Ele não quis conversa; disse que era coisa entre ele e o padre e que nóis num tinha que nos meter nisso não. Atrivido! Inda falou que nóis era muito abelhuda. - Hoje o padre nem quis jantar. Tomou uma xícara das grande de café forte e amarguento - e sem açúcar como só ele pra gostar. Comeu só um pãozinho com manteiga, mais nada. Depois pediu uma garrafa cheia de café prá levar pro quarto. Só vai parar de ler e escrever lá pras alta madrugada, sei quando ele tá de veia. - Faz tempo que não vejo ele assim, o Rufino falou que a missa que ele deu hoje foi de amargar. Parecia missa de padre novato, errou tudo, fez confusão, até tropeçou nos degrau do altar e quase tomou um tombo feio na frente de todo mundo. - Acho que a morte de dona Lourdes deixou ele meio pateta, eu acho. Ele e ela eram assim um com o outro. Já teve gente que desconfiou de coisa ruim, que eles até pecavam. Mas é gente ruim, eles é que é ruim. Eu nunca acreditei, coitada de dona Lourdes, que Deus a tenha (fez o sinal da cruz), era uma santa! Padre Antonio acabou a parte de Guantânamo e fez uma pausa dramática, com as mãos no rosto, consternado, amargurado. Uma angústia profunda o invadira durante aquela leitura. Pesara-lhe tanto a ponto de balançar a sua fé. Lembrou-se de Dom Hélder Câmara. Uma série de artigos seus sobre a Santa Inquisição chamaram a atenção de Dom Hélder, no final dos anos 60, e depois se tornaram amigos e correspondentes. O célebre hierarca, sem conhecê-lo, publicou comentários concordando com ele em que certas práticas de tortura registradas nas ditaduras latino-americanas eram inspiradas naqueles capítulos macabros da história da Igreja Católica. Padre Antonio estreara como ensaísta com aqueles artigos que foram publicados na revista Pensamento e Liberdade, dirigida pela Mitra Arquidiocesana de São Paulo, periódico este que foi fechado pelos militares em 69, logo depois do AI-5. Neles, ele resumia a pesquisa que iniciara nos tempos de seminário e o levara a viagens ao Peru, ao México e à Europa, onde visitara arquivos, museus e acervos importantes sobre a Santa Inquisição, em especial a segunda fase, “a espanhola”, a

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que chegou na América Latina. Intolerância, era para Padre Antonio a palavra-chave da abominável crueldade em que resultou tudo aquilo, falsamente justificada em nome de Deus e de Cristo. O documento que ele tinha diante dos olhos confirmava e atualizava muitas de suas teses. O Vaticano tentara justificar o desatino como “resposta humana” à intolerância dos muçulmanos, a seu fanatismo e fundamentalismo. Contudo, padre Antonio não encontrou respaldo a tais sofismas em nenhum documento sólido, nem em fatos históricos ou razões culturais que pudessem dar alguma sustentação a tais afirmações, que vinham sempre mal alicerçadas, eivadas de preconceito, racismo, parcialidade analítica e, antes de tudo, intolerância. Tivera pistas da existência de documentos como o de Taquinho no passado, escritos por alguns raros sobreviventes das crueldades inquisitórias, tanto no período medieval como na fase espanhola. Porém, tais documentos, se é que estão conservados, foram-lhe inacessíveis. Apesar dos inúmeros documentos de toda natureza que tivera à sua disposição sobre a barbárie que significou a Santa Inquisição, um depoimento lúcido de quem sofrera aqueles castigos seria de fundamental importância e altamente revelador para quem, como ele, queria encontrar algo mais que fatos históricos. Padre Antonio trabalhou numa outra tese, estruturada nos mesmos ensinamentos de Cristo, de que há uma necessidade de transferência, dos algozes às suas vítimas, dos sofrimentos interiores e espirituais, em particular, os causados pela culpa que os primeiros condenam a si mesmos, consciente ou inconscientemente. O algoz se sabe ou se sente, interiormente, culpado; considera-se, a priori, um criminoso, mas se recusa a aceitar tal verdade. Daí a sua intolerância por tudo o que ameaça ou pode ameaçar a revelação dessa verdade, seja a si mesmo ou à sociedade. Seria longo nos aprofundarmos nas idéias que o nosso teórico desenvolveu durante muitos anos e que, recentemente, retomara com redobrado interesse diante dos eventos de 11 de setembro de 2001, em Nova York. Iremos direto a uma de suas conclusões mais destacadas e de maior apego ao argumento que tratamos: para padre Antonio, o sofrimento do algoz é um sofrimento que condena, enquanto o da sua vítima é o sofrimento do mártir, isto é, um sofrimento que salva. Quanto mais tortura, mais o algoz sofre, seja pela condenação que faz de si mesmo, seja pela salvação que percebe em sua vítima. E, não raro, acaba acreditando que no sofrimento do mártir estará a sua própria salvação. Do ponto de vista teológico e espiritual, padre Antonio via sentido em tal comportamento. Cristo perdoara seus algozes e, com isso, salvara suas almas. Mas isto, perante Deus; Cristo tinha o mandado divino e queria dar o exemplo. Porém, perante a Humanidade, seus algozes não foram e nem poderiam ser absolvidos, pois, do ponto de vista humanista - e padre Antonio era um humanista alinhado às raízes filosóficas que são cultivadas desde Erasmo e Thomas Morus -, a tortura é inadmissível e é, também, um crime imprescritível. A estadia no inferno de Guantânamo narrada por Taquinho de maneira tão objetiva, detalhada e lúcida, somada ao talento especial de escritor que o padre desde cedo reconhecera no jovem, era, assim, por demais importante para ele naquele momento, apesar da carga de tragédia e tristeza que o escrito lhe trazia pessoalmente. Porém – considerava - para a Humanidade e para os estudiosos como ele, aquele documento significava um verdadeiro tesouro.

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Capítulo 29 Já dissemos antes e agora repetimos: não é nosso propósito tratar a questão das barbáries de Guantânamo e prisões similares. Confiamos que os mais competentes na matéria o façam de modo mais conseqüente, hoje e no futuro. Se o leitor quiser se aprofundar na questão, há inúmeros trabalhos de boa cepa disponíveis na Internet, inclusive sobre as muitas “coincidências” dos fatos registrados no pós-11 de setembro de 2001 – a “Lei Patriota” de Bush, as guerras, as perseguições religiosas e racistas, as diversas e mal afamadas prisões, a legalização da tortura e etc – com os das duas Santas Inquisições, a medieval e a espanhola. Recomendaríamos, por exemplo, os trabalhos do escritor e historiador canadense Michel Chossudovsky, em particular o intitulado O 11/9 e a Inquisição Americana, disponível em português no sítio Resistir. info. Vamos continuar com padre Antonio, na leitura do restante do documento deixado pelo nosso herói. Ia pela madrugada quando, enfim, leu as últimas linhas das laudas finais do manuscrito. A terceira parte do texto, que encerra o relato principal, custou-lhe quase um maço de cigarros. Um hermeneuta como nosso padre não ficaria à margem de uma vírgula sequer daquele texto. Soube encontrar e decifrar nele quase toda a informação que poderia transmitir, mesmo as coisas que o autor não explicitou mas eram passíveis de análises e deduções hermenêuticas, semiológicas ou subliminares. Padre Antonio foi capaz até de calcular a idade do preceptor de Taquinho, que ele estimou ter sido um sufi, um dervis ou um clérigo de alta cúpula da resistência iraquiana, uma vez que sabia não haver hierarquia religiosa no credo muçulmano. Calculou ser a idade do sufi mais ou menos a mesma que a dele, e quase acertou: ele completara 75 anos e o sufi 77, quando encontrou Taquinho pela primeira vez. O decorrer da parte final do escrito foi para o hermeneuta uma enxurrada de informações de alta relevância sobre tudo que acumulara de conhecimento em sua vida de estudioso. Aquele texto como que potencializara as conexões de saber que foram sendo construídas por ele nos estudos e pesquisas que levou a cabo, despertando até as que se mantinham em estado de hibernação, fazia tempo, em sua consciência. Além do mais, as fagulhas poderosas dessa nova informação, que ele sabia hermetizada exclusivamente na sua pessoa, provocavam severos curtos-circuitos e alertas em regiões ainda pouco estáveis do processo de decantação e purificação do conhecimento e da razão. No interior do cérebro do hermeneuta reiniciou-se o combate da dúvida contra a certeza em certas regiões não totalmente clareadas, e que o tempo e as necessidades cotidianas mantiveram em trégua. As duas primeiras partes do texto – de Brasília a Guantânamo, para ficar só nas coordenadas geográficas, e a estadia nesta última – provocaram sua revolta e indignação, as mais agudas, mas, ao mesmo tempo, aquelas informações não só vinham de encontro como confirmavam tudo o que conhecera e pensara a respeito de toda a realidade, pretérita e atual, que ali via arrolada sob quase todos os aspectos históricos ou dialéticos. Porém, a terceira e última parte do texto realimentou no velho padre um penoso

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cisma (kisma, no sentido do rompimento) que desde a sua juventude, quando dos primeiros contatos diretos e eruditos com a realidade muçulmana e médio-oriental, se levantaram no interior, não só da sua consciência, como também de sua própria fé católica. Naquela última parte, cada linha do relato do jovem autor – que fora como um filho seu, vivera e crescera em sua paróquia, fora por ele batizado e crismado e dele recebera a primeira comunhão; mais que isso, o padre desfrutara da convivência de amizade da mãe dele, do pai, do avô e dele próprio – causava no velho sacerdote uma gradual e sempre mais sofrida ampliação do pior sentimento que alguém possa ter no crepúsculo de uma carreira profissional: o fracasso. Um fracasso que transcendia o pessoal e alçava-se aos limites de tudo em que acreditara, a que se dedicara e dera o melhor de sua vida. Perguntas do tipo: se a nossa Igreja estivesse cumprindo a verdadeira missão que a justifica neste mundo, teria aquele jovem talentoso e promissor se equivocado tanto em sua juventude a ponto de levá-lo a tão infausto quanto imerecido destino? E, em seguida: teria ele próprio, enquanto sacerdote, cumprido a sua missão perante aquele jovem que esteve tanto tempo sob a sua jurisdição confessional? Lado a lado com tais questões, assomava a comparação, quase invejosa, com o trabalho meritório e tão bem sucedido do clérigo muçulmano, pois este, sim, cumprira de fato a sua missão. E, sem dúvida, a partir de uma situação muito mais desvantajosa que a dele. Mas as comparações não paravam aí, vinham em cascata. O credo católico e o muçulmano: qual o mais justo e que melhor atende às necessidades confessionais dos que cultivam ou querem cultivar a fé em Deus? Nos debates que manteve ao longo do tempo, em pessoa ou em teoria, com certos pensadores, ele teve de enfrentar críticas severas ao catolicismo que o puseram, enquanto intelectual de preparo acima da média, em becos sem saída. Era-lhe difícil contestar teóricos como Weber e Walter Benjamin quando afirmavam que o cristianismo havia abandonado seus fundamentos originais e se tornara o pilar central do capitalismo e até do sionismo. Opus Dei... A própria história do cristianismo nada tem a ver com Cristo, mas tão só com o capitalismo, e este, uma religião em si mesmo, parasita do cristianismo, como tão bem demonstra Benjamin em um de seus escritos. Isto dividira a Igreja Católica em dois blocos: o que mantém o poder institucional e econômico dela e é conivente com tal situação; e o que se mantém à margem de tais poderes, mas não abandona a Igreja e seus princípios originais, resistindo à sua decadência ao aproximá-la do povo humilde, apoiando movimentos sociais e lutando politicamente contra a pobreza e pelos direitos humanos. São os chamados teólogos da libertação, e padre Antonio está entre seus precursores no Brasil desde as décadas de 60/70, no trabalho que fez junto aos marinheiros e portuários, e, mais tarde, ao lado de Dr. Gusmão, entre os garimpeiros do vale do Rio Doce, libertando-os do trabalho escravo e insalubre a que eram submetidos. Entre estes, estavam o bom Cirineu e o jovem Eustáquio, que depois viria a ser o marido de Lourdes e pai de Taquinho. A verdade, pensava o padre, é que hoje assistimos à decadência do capitalismo e,

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com ele, do cristianismo. Não é mais possível ocultar o fato de que a Igreja do Vaticano está mergulhada até o pescoço em escândalos financeiros, de máfias, pederastias e pedofilias, e, por isso, assistindo passivamente à evasão de seus fiéis e ao esvaziamento de seus templos. Enquanto isso, o número de adeptos de Maomé aumenta em todo o planeta, independente de ideologias e sistemas de governo a que se vinculam ou vivem. Por sua parte, os sábios e líderes muçulmanos nunca permitiram que sua religião saísse dos trilhos que lhe deram origem; toda religião origina-se na tentativa de aperfeiçoamento do homem e da Humanidade, mas a maioria de suas igrejas, tão logo galgam qualquer espaço de poder, abandonam os preceitos originais e compactuam com quase tudo o que lhes é contrário, como são os casos da sua Igreja Católica Apostólica Romana e da maioria das igrejas cristãs de corte reformista, luteranas ou calvinistas. O texto do jovem mártir valadarense explica bem por que isso acontece. Os muçulmanos têm o Jihad; os cristãos “a outra face”. A interpretação equivocada dessa polêmica postura de Cristo, que só Ele soubera explicar e convencer como manifestação de altivez e coragem, e não como ato de covardia, foi o que levou Nietszche a responsabilizar o cristianismo por “dois mil anos de humilhação da Humanidade”. Foi quando chegou neste ponto, isto é, no desfecho do texto de Taquinho, que padre Antonio se viu diante da mais difícil encruzilhada de todo o seu sacerdócio. Capítulo 30 Ele acompanhara o noticiário pertinente ao caso com bastante atenção e podia intuir a dimensão do estrago. Diferentemente da Guerra do Vietnã, quando ainda havia vida inteligente e livre no jornalismo, o Pentágono agora manejava a seu bel prazer as cifras que comunicava pela imprensa. No Vietnã, tentava minimizar suas baixas e maximizar as do inimigo. No Iraque, contam como querem as suas próprias, quase uma por uma, e as do inimigo não lhes importa em nada. Assim, o reconhecimento de 20 baixas próprias num só evento bélico significava, para quem sabe ler nas entrelinhas dos códigos comunicacionais, algo muito superior, transcendental e que nunca será revelado em sua verdade factual. Durante todo o tempo em que vinha lendo o manuscrito, padre Antonio ia meditando estratégias para dar conseqüências ao projeto do autor e dos que o assessoraram. Na falta de um Hélder Câmara, que seria a pessoa ideal para definir um bom caminho de colocação do documento em instâncias jurídicas e institucionais de um poder capaz de levar a cabo o projeto, pensava em frei Leonardo Boff, de quem era amigo pessoal, correspondente assíduo e companheiro de militância. Porém, ao deparar com o desfecho da tragédia, que, apesar de anunciado e antecipado lhe foi surpreendente e de enorme impacto, se viu obrigado a repensar tudo. Estava diante de um problema maior que tudo o que já enfrentara, talvez maior que o próprio mundo, imaginou. Sequer conhecia algum precedente a que pudesse

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recorrer e estudar. Como lidar com matéria tão explosiva? Tal era o texto de Taquinho. Mesmo feito por incentivo de seu mestre e com assessoria especializada, o autor se revela senhor absoluto do conteúdo de cada linha que escreveu. Por sua extraordinária capacidade de apreensão de tanto conhecimento em tão pouco tempo, poder-se-ia dizer que o autor daquele texto era um gênio. Sem dúvida o era. E pensar que em Valadares ele se via como portador de uma deficiência vergonhosa – considerou o padre. Talvez, no Brasil, uma criança ou um jovem perceba assim a virtude da inteligência, eis porque fogem dela como foge o diabo da cruz! É a cultura ocidental dos nossos dias: o mundo e seus valores pelo avesso (Eduardo Galeano). Graças a Deus (Allah?), Taquinho livrou-se desses preconceitos e deu permissão à sua inteligência privilegiada para que se manifestasse e contribuísse com esta obra prima para o conhecimento humano. Ele a escreveu com admirável domínio da qualidade que padre Antonio mais apreciava em qualquer texto: a concisão. Cada palavra era potenciada no máximo de significação e sentido e combinava-se magistralmente com as demais na impecável composição do talentoso autor; cada parágrafo era um manancial de conteúdos que agregavam valores muito para além da narração memorialista dos fatos ou do interese jurídico proposto. Estudiosos de filosofia, teologia, sociologia, antropologia e outras ciências humanas e do espírito poderiam extrair dali dissertações valiosas para o desenvolvimento e atualização de suas respectivas disciplinas. O próprio padre, na medida em que o ia lendo, projetava a redação de um comentário analítico e noticioso daquele raríssimo documento, a fim de prefaciá-lo numa futura publicação. Se revelado publicamente, o desespero dos que nele são denunciados e desmascarados se manifestaria, com certeza, na forma que sempre lhes ocorre diante de toda e qualquer verdade bem expressada que lhes ameaça: a tentativa de desacreditá-lo como obra de encomenda ou teleguiada. Pois é só o que fazem eles no labor insano que praticam: atribuir aos outros seus próprios defeitos, equívocos e delitos, incluindo-se os seus crimes. Assim, o problema se lhe apresentava em duas frentes distintas e sem solução à vista. Num primeiro plano, teria a Igreja Católica interesse ou autoridade suficiente para defender o ato final protagonizado pelo jovem mártir? Ou ela mesma seria a primeira a condená-lo como pecador e terrorista, diante de Deus e dos homens? Estaria o Vaticano no rol do sionismo cristão, como insinuou o preceptor de Taquinho num de seus discursos que foram transcritos em partes ou em citações no corpo do memorial? Opus Dei... Taquinho menciona membros dessa “ordem secreta cristã” como assistentes convidados de sessões de tortura por que passou. Padre Antonio conhecera de perto o rosto dessa fera ultra-reacionária, auto-intitulada “Obra de Deus”, que tomou conta dos espaços de poder no Vaticano e nas hierarquias católicas quase todas, entre as mais influentes. Seria necessário dissolver até as mais flexíveis e rasas estruturações teológicas para aceitar que tamanho cinismo possa se tornar uma obra de Deus, e não dos homens - pensava. “Tudo, até o mal, é obra de Deus”, eis o fácil sofisma desses fundamentalistas, como eram chamados no jargão acadêmico (“de fundamental mesmo, nessa gente, só o

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egoísmo” – costumava ironizar sua falecida irmã, que era historiadora). Com muitos deles padre Antonio tivera sérios entreveros e os mais poderosos se tornaram seus inimigos figadais dentro da igreja, no Brasil e no exterior. No extremo oposto, “tudo, até Deus, é obra dos homens”. Com esses não lhe era tão difícil o diálogo. Apesar de ateus convictos, padre Antonio conservava na memória bons quebra-paus com alguns deles, a seu ver “cabeças duras, mas boas”. Certa vez, na casa do professor e ensaísta católico Edgard da Matta Machado, em Belo Horizonte, levara uma discussão com um deles enquanto chupavam jaboticabas dulcíssimas no quintal. “Dê-me uma só prova da existência de Deus”, disse-lhe o homem, tentando derrubá-lo. Padre Antonio escolheu uma das mais belas jaboticabas a seu alcance e a ofereceu ao seu contendor: “Prove esse pequeno fruto e diga-me se não há algo mais que mera nutrição e prazer do paladar na relação entre você e ele. Você não pode negar que há algo de sublime, de divino, nesta relação, a não ser que seja um insensível ou um teimoso irrecuperável. Algo ocorre ali que você não pode explicar, porque transcende a ambos enquanto seres cósmicos. Os místicos identificam nisto ‘a chama da vida’, a energia original, o ki, como dizem os chineses, ou o djin, para os indianos. E não me venha dizer que é obra dos homens. ‘As relações são mais reais e mais importantes que as coisas que relacionam’, diz um provérbio asiático colhido por Ernst Fenolosa, um lingüista inglês que estudou a cultura oriental. Concordo que são dos homens as criações mitológicas de Deus ou dos deuses. Mas não há como negar que algo divino existe de fato na criação do kosmos e dos homens, e isto se revela principalmente nas relações mais sublimes que se estabelecem entre ambos. É o que faz com que o kosmos esteja contido inteiro nesta pequena jaboticaba, em especial, no momento em que você a degusta”. Padre Antonio via na terceira parte do texto de Taquinho uma bela demonstração dessa sublimação relacional, no plano do espírito – a inteligência em aliança com a fé! Como já constatara desde o início da leitura, havia no texto uma transcendência que o levava muito para além da peça judicial, do memorial. A cada linha, o texto evoluía para um texto de descoberta, revelador de regiões do espírito e da consciência nunca antes visitadas e relatadas com tanta precisão e detalhes. Chegou a compará-lo às cartas de Vespúcio, reveladoras do Mundus Novus, a América, ou aos escritos de Pigafeta, o poeta que acompanhou Fernão de Magalhães na viagem de circunavegação da Terra. A diferença é que o nosso herói visitara, em si mesmo e no interior de sua própria consciência, as regiões mais impalpáveis e insondáveis da alma humana. Tal como um Orfeu contemporâneo, ele fora a continentes imateriais inexplorados e os abordou em ignotos limites, em lugares e situações de onde poucos que lá foram puderam retornar, muito menos relatar. O próprio ato final de imolação, tal como vem justificado e defendido no texto – e a bem da verdade –, não o distancia de Cristo; mais o aproxima. Cristo não teria também se deixado imolar após ter sido barbaramente torturado? No contraponto, o chamado “poder real” – o poder material, do dinheiro, da mentira e da guerra, e, porque não dizer, o poder de manipular e de matar pessoas –, queda, tanto no calvário de Cristo como no de Taquinho, nas mãos desses infiéis. “São monstros que só têm cabeça e barriga; não têm coração!” – sentenciara certa vez irmã Margarida, escritora e amiga de padre Antonio, num congresso de escritores católicos em que participaram juntos, no Paraná. Nestes, é o ódio e não a fé que é cultivado, lado a lado com a intolerância e a violência. E se o de Cristo durou três

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dias, o que dizer de um calvário de três anos, acrescido do avanço tecnológico dos “romanos” atuais? Em toda a sua extensão e complexidade, este raciocínio levava o hermeneuta ao plano seguinte, a uma questão perfurante: que magnitude de forças aquele documento, tão contundente quanto demolidor, despertaria se viesse ao conhecimento público? Ou a um tribunal, mesmo que sob sigilo? Seria possível avaliá-las, calculá-las? E, depois, enfrentá-las? Como e com quê? De qualquer modo, ficava demonstrada de forma irrecusável a culpa dos EUA em crimes de guerra, de tortura e contra a humanidade a partir daquele documento, independente de seu desfecho. Não só poderia se comprovar autêntico e veraz com muita facilidade diante de qualquer tribunal como nenhum juiz digno deste cargo poderia rejeitar o fato de que, do ponto vista jurídico, do chamado Direito Positivo, foram os próprios EUA, por sua arrogância e prepotência, a causa principal dos atos da personagem central do atentado. Assim mesmo, seria tolice ou ingenuidade contar com a prevalência da razão numa época em que a hipocrisia e o cinismo dominam as instituições em todos os níveis e em graus tão elevados que estas sequer se vêem chamadas a dar explicações ao menos razoáveis dos fatos que se desenrolaram em Nova York, no 11 de setembro de 2001. Ali, abriram-se as comportas do descaramento absoluto e do absolutismo mais bárbaro e cruel, jamais registrado na história. Invasões como as do Iraque e Afeganistão, atos bélicos de enorme importância mundial e de conseqüências previsíveis como catástrofes humanitárias e imprevisíveis para o futuro da Humanidade, são justificadas com mentiras primárias, incapazes de enganar uma criança. Neste contexto – meditava o padre – a própria ONU se tornara mero ornamento dispensável no chamado “concerto das nações”. Perdera até a natureza política que a caracteriza enquanto instituição e por pouco não se deixa levar ao ridículo. Por pouco? Mas não fora esse mesmo congresso, que se postula como a mais alta instância da representação política mundial, que, por pressão abertamente sionista, votou uma resolução proibindo a Humanidade de questionar a existência do “holocausto” judeu na Segunda Guerra? A resolução não informa, mas é de se questionar: qual será a pena para os que a infrigirem? A excomunhão? Mesmo a mais de três séculos do vexame histórico com Galileu, que até hoje ridiculariza a sua igreja – refletia o padre – esses desatinados não percebem que tais expedientes só fazem escancarar a fraude e, não, disfarçá-la. As verdades históricas não precisam deles para se imporem à eternidade, elas o fazem por si mesmas. Nunca faltou quem tentasse desacreditar a existência de Homero, de Shakeaspeare e até de Cristo. Mas quando lemos a Odisséia ou assistimos a uma apresentação de A Tempestade é com os autores Homero e Shakespeare que nos relacionamos através de suas obras. E o que dizer de alguém que não existiu e foi capaz de dividir toda a História em antes e depois d’Ele? A madrugada já ia alta e um redemoinho de pensamentos girava na cabeça do velho erudito. Perguntava a si mesmo: “Por que Lourdes não lhe confiara o documento? Se o próprio filho dela o citara nominalmente, o que a levara a não atendê-lo?” Para tais

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questões, as respostas não eram difíceis: bastava-lhe imaginar a pobre mãe lendo aquele texto para entender a dimensão do seu sofrimento (nas especulações de alguns teóricos, talvez ainda maior que o do filho). Admirava-se que ela o tenha suportado a tal ponto, sem deixar transparecer tamanha dimensão do insuportável. Na ponta oposta do mesmo redemoinho colocava-se ele, um padre e militante das causas progressistas que dedicara a vida a um preparo espiritual e intelectual que o tornasse capaz de enfrentar as questões humanas mais complexas, naturais e sobrenaturais. Repassava em si os atributos que lograra em seu labor que pudessem lhe indicar um caminho a seguir. Examinava detalhadamente suas relações pessoais nos cleros católicos e não católicos, na política, na imprensa, na sociedade, o seu cargo de relator da Comissão de Direitos Humanos de uma postulada Igreja da Libertação, sua influência regional e nacional. Assaltava-lhe a dúvida de a própria paróquia não ser capaz de assimilar a dimensão da questão, mesmo sob a sua orientação. Da cidade, do estado e do país, enquanto níveis de opinião pública, jamais poderia esperar qualquer coisa em favor da análise imparcial, da razão e da justiça. São feudos de obediência e bom comportamento sob os ditames e a desinformação propagada pela mídia hegemônica, de propriedade dos que se julgam “os donos da opinião pública”. Quem poderia ser assim tão presunçoso para se julgar proprietário da opinião alheia? – especulava o padre – Há quem diga que certos “sábios” do Sion, sete deles, não mais. E seus seguidores, decerto. Com certeza, em transes de delírios, pois na presunção, ao que se sabe, nunca se hospedou sabedoria nenhuma. No centro do redemoinho a pergunta, por sinal, a mesma que afligiu dona Lourdes, cada vez mais repetida e pontiaguda: “Que fazer?” Nem pensar em escrever e tentar publicar uma denúncia, um protesto, mesmo sem dar nomes e situações precisas. Havia quase dois anos que não publicava em veículos de alcance significativo. Nos anos 60 e início dos 70, mesmo sendo perseguido e procurado pela ditadura militar ainda se via publicado em veículos importantes de oposição, alguns de alcance nacional, sob o pseudônimo Gil Vieira de Matos, e, até, por vezes, um texto de opinião num jornal da grande mídia. Gil era o seu codinome na resistência, e os dois sobrenomes homenageavam Padre Vieira e Gregório de Matos, dois célebres padres católicos brasileiros, também escritores, que admirava, entre outros de mesma verve, como o “Sátiro de Barbacena”, Padre Correia de Almeida. Mas, depois da década de 1980, já anistiado, seus escritos só encontravam espaços em pequenas publicações de resistência e, mais recentemente, em panfletos ou sites de movimentos sociais. No último artigo que escreveu, recusado por uma revista de circulação nacional dita “de resistência”, havia o seguinte trecho, do qual agora se recordava: “O mundo foi colocado por eles em estado de guerra contínua e por diversas maneiras jamais experimentadas. É, antes de tudo, uma guerra contra toda e qualquer manifestação de vida inteligente e culta dentro e fora dos limites do que consideram como o império deles. É ver seus porta-vozes na televisão, ler seus jornais e revistas,

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ouvir as bobagens sonoras que propagam como ‘música’ e assistir aos seus filmes idiotas para nos vermos imersos no reino da estupidez e da mediocridade com que assolam o planeta sob o pretexto banal da ‘globalização’. Hoje, tal pretenso Império acha-se no direito de não reconhecer limites geográficos e nacionais; a presunção do seu núcleo de poder, que se pretende invisível e em covarde anonimato, é a de que o planeta é de sua propriedade exclusiva, e a Humanidade composta de cabeças de gado, inclusive para o abate.” Padre Antonio não estava insone, estava extremamente ocupado. Não dormiu naquela noite e nem se sentia cansado quando, enfim, nas primeiras luzes da aurora e com os ruídos da cozinha e do refeitório se fazendo mais nítidos, decidiu-se. Capítulo 31 - Cirineu, o que temos a fazer agora deve ficar rigorosamente em sigilo. Ninguém, a não ser nós dois, pode saber de nada. Posso contar com você? - O padre já sabe que sim... - Jura por Deus? - Percisa invocá o Santo Nome?! Minha palavra já num basta? - Basta! - Istá dada! Quando se decidira pelo que fazer, padre Antonio percebeu que se não tivesse encontrado o documento, este teria se perdido em pouco tempo. Dona Lourdes não sabia que o plástico é péssimo invólucro para se conservar papéis, tecidos e madeiras. Com o tempo, sabia-o o velho padre, a ausência de arejamento faz desenvolver-se internamente um fungo capaz de destruir o objeto ou os papéis. Por isto, ele recorreu ao armário de velharias da paróquia, que ficava no corredor do segundo piso da casa, perto da porta de entrada dos seus aposentos, e nele encontrou um velho saco de esmolas, usado nos tempos de padre Maurice, feito em pele de cordeiro tingida de preto e com a cruz cristã gravada em ouro, ainda visível, apesar de desbotada. A caixa de dona Lourdes, com o manuscrito da mesma forma em que fora encontrado, coube justa, dentro e bem no fundo dele, com sobra para dobrá-lo sobre si mesmo e fechá-lo hermeticamente valendo-se do seu próprio cadarço de couro, e deixando a cruz visível e bem centralizada na parte superior do novo invólucro. Agora, sim, “per omnia, saeculae saeculorum”, pensou o padre ao amarrá-lo com firmeza. - Sabe aquela muda de imbaúba que eu pedi a você para retirar do lado de fora da cerca do cemitério, Cirineu? Ela ainda está por aí? - Eu ia levá pro meu rancho, mas inda istá aqui, prantada num vaso véio pra num morrê.

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- Arrume outra para o seu rancho, Cirineu, por que, desta, nós vamos precisar agora. Afinal, foi idéia sua. Quero que você a plante bem no meio do cemitério, no encontro das duas ruelas. E, perto dela, em local onde possamos depois recuperar, eu peço a você que enterre este objeto – e mostrou a ele o embrulho de couro. - Ah, ago’a sim, Padre – retrucou Cirineu olhando o embrulho – com a cruis de Cristo fica mió no campo Santo. Se o sinhô contá três passo do tronco da árvre, indo bem no meio da rua qui vai pro nascente, e ali cavá cinco parmo terra abaxo, ela vai istá lá, bem interradinha, mió qui dexô do’a Lurde, qui Deus lha tenha (fez o sinal da cruz). - Eu mesmo vou levá-lo para o depósito e deixá-lo no armário de ferramentas, daqui a pouco, antes de ir ao refeitório para o café da manhã – disse o padre – Tenho de levar uns paramentos para a lavanderia numa sacola e vou levá-lo dentro dela, escondido. Você sabe como são as paredes daqui, Cirineu, são cheias de olhos e ouvidos curiosos. - O padre tem toda razã! Se saio cum isso daqui ê’es num tira mais os óio de mim nem do imbruio inquanto num sobé ondé qui vô pô ele. - Temos de concluir tudo hoje mesmo, agora de manhã, de preferência enquanto todos estiverem no refeitório para o “jornal da paróquia”. Amanhã a prefeitura vai começar a obra, e você vai orientar o pessoal para fazer o calçamento a partir do centro do cemitério, em volta do canteiro da imbaúba. Eles vão calçar as ruas com paralelepípedos e isto vai dar uma segurança maior ao nosso segredo. A cova da azaléia de Lourdes você deixa pra fechar na hora em que todos puderem observá-lo. O plano de padre Antonio era muito simples: precisava garantir a preservação do documento em segredo para ganhar tempo. Em julho, iria participar de um encontro em Belo Horizonte, no qual frei Leonardo Boff estaria presente. Eles então conversariam pessoalmente sobre o assunto e traçariam um plano detalhado. Quando o documento precisasse aparecer, era só cavar naquele lugar e resgatá-lo. No decorrer desse tempo, estaria completamente seguro, ele confiava na palavra de Cirineu. Chegou a trocar correspondência com o frei - pelo correio, claro, e não via e-mail -, e a agendarem um encontro reservado em Belo Horizonte, entre os dois, para tratarem de um assunto que padre Antonio apenas informou ser sobre um documento “altamente relevante para as nossas lutas em prol dos Direitos Humanos mas que deve ser mantido severamente confidencial até que seja traçada uma estratégia segura para revelá-lo”. Porém, padre Antonio faleceu na semana anterior à do encontro em Belo Horizonte. Não foi por causa do cigarro, nem por problemas de saúde; foi um acidente. Ao entrar na velha banheira de louça inglesa que padre Maurice usava nos seus banhos de imersão semanais, e sobre a qual padre Sinfrônio mandara instalar depois um chuveiro, padre Antonio escorregou e bateu forte com a cabeça na beirada da banheira. Não morreu na hora, passou dois dias em coma no hospital antes do óbito por traumatismo e fratura craniana. Esses dois dias contribuíram para uma elevada e prestigiosa audiência ao seu enterro, que surpreenderia a ele próprio. Não tão

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concorrido como o de dona Lourdes, mas com uma importante presença de autoridades políticas e eclesiásticas vindas da capital e de vários estados, incluindo frei Leonardo Boff. Este chegou a indagar a padre Belizário sobre um documento relativo a direitos humanos de que lhe dera notícia o falecido padre. Não sabendo do que se tratava, padre Belizário colocou à disposição do frei a pasta e os arquivos de padre Antonio, autorizando-o a levar por empréstimo o que encontrasse neles. Os paroquianos, os valadarenses de classe média e o povo humilde também compareceram em massa, este último segmento mobilizado pelo Sindicato dos Garimpeiros do Vale do Rio Doce, que o homenageou publicamente como “Membro Fundador de Honra” e batizou o seu auditório com o nome dele. A oligarquia local e regional não compareceu, é claro; era adversa e temia aquele que chamavam de “padre político” ou “padre comunista”, e que lhe dera tantas dores de cabeça. O sobrinho veio de Santos com a esposa e os sete filhos, pela primeira vez, e chegou a tempo de coordenar e dar providências para que os ritos e cerimoniais fúnebres fossem dignos do tio. Deixou também transferidos e legalizados os bens pessoais do padre em Valadares, incluindo duas contas bancárias, em favor do Lar das Crianças. Quase um ano depois, foi a vez de Cirineu, vitimado por um câncer na cabeça, que, segundo especulações médicas, foi causado pelo excesso de sol a que se expunha em seu trabalho. Da descoberta do mal ao falecimento foram três longos meses de internações e sofrimentos, e ele se recusou a ir para São Paulo, onde poderia fazer uma operação. Na última visita que lhe fez no hospital, Graça aproveitou-se da temporária lucidez do paciente para tentar arrancar dele algo sobre “o troço que desenterrou na cova de dona Lourdes e levou pro padre, pouco depois de ela morrer”. – Dei minha palavra pro padre – respondeu o bom homem –, e ele istá cum ela na otra vida. Num posso dizê nada! Seu enterro foi humilde mas também com alto comparecimento do povo pobre da região e dos garimpeiros. Como sabemos, Cirineu fora um daqueles que padre Antonio libertou do trabalho escravo e o empregou na paróquia. Deixou uma terrinha boa nas margens do Doce que ainda sustenta a viúva e a filharada. Nesse interregno, padre Belizário assumiu a paróquia e mudou radicalmente a sua orientação política e administrativa. Afastou-a dos teólogos da libertação e aproximou-a da hierarquia católica, do alto clero e da Mitra belorizontina. Fez da paróquia uma empresa, informatizando-a e “modernizando-a”, com a terceirização de serviços (o cemitério, o estacionamento, o arquivo, o refeitório e a cozinha), aluguel de imóveis (incluindo a casa de dona Lourdes); até a torre do templo foi locada para uma companhia de telefonia celular. Providenciou as aposentadorias de Graça e Cirineu; dispensou e indenizou Luzia e os demais empregados. Doou toda a biblioteca para uma universidade católica que havia sido inaugurada em Valadares. Logrou desvincular a casa paroquial do tombamento e fez-lhe uma reforma de tal ordem, interna e externa, que a descaracterizou quase completamente dos pontos de vista histórico e arquitetônico. Com a colocação de vidros blindex fumê no lugar das velhas janelas de pinho-de-riga, ar condicionado central, aplicação de carpetes sobre as tábuas corridas, revestimento de fórmica sobre madeiras nobres e portas, substituição das velhas fechaduras, louças, ferragens e lustres, instalação de

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banheiras de hidromassagem, portarias eletrônicas envidraçadas e outras “modernidades” de mau gosto, o vetusto imóvel de nítida inspiração gaulesa e art-décco dos anos 20 se tornou um modernoso monstrengo, um híbrido de casa antiga reformada e motel de luxo. Passando a contar com forte apoio político, o calado, mas ágil e diligente novo pároco forçou e apressou o acordo com a Vale do Rio Doce sobre os direitos de dona Lourdes, e o conseguiu sob sigilo judicial. As línguas afiadas dizem que o acordo montou em grana preta, mas nenhum centavo ficou no Lar das Crianças, cuja administração a paróquia - depois de ter os valores do acordo e dos aportes deixados por padre Antonio integralmente recebidos, e de ter zerado o caixa -, transferiu à Prefeitura e à União, que, em convênio, passaram a pagar aluguel pelo velho imóvel e honorários por serviços permanentes e eventuais prestados pela paróquia à instituição. Nos planos governamentais, a instituição deverá receber um novo nome. Algo como Centro Municipal da Infância Dona Lourdes Varela ou similar, desde que homenageando sua mais popular diretora (com a conveniente omissão do sobrenome de seu pai, claro). As três viúvas também aceitaram o acordo, igualmente sob sigilo. Ao que parece, deram-se muito bem. Todas mudaram-se de Valadares com as respectivas famílias. Duas moram em Miami e a outra na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Foram de tal ordem os montantes recebidos pelos envolvidos na causa, que o “escritório de Valadares” ganhou sede nova e própria de três andares em terreno nobre do centro da cidade, a qual, segundo as línguas, foi quase toda paga com os honorários que lhe coube. Taquinho foi esquecido. Só o amigo da agência de turismo e o Joãozinho da Bicicleta ainda se recordam dele de vez em quando. Ninguém faz a menor idéia de que ele foi um dos brasileiros mais influentes na história contemporânea universal, e seus conterrâneos nem imaginam que aquele jovem aparentemente fútil e alienado acabara se tornando grande homem e herói festejado no outro lado do mundo. Mas antes de falecer padre Antonio teve a sabedoria de mandar Cirineu providenciar discretamente a inscrição do nome do jovem na lápide negra do túmulo de seus pais e avós, logo abaixo do de sua mãe, assim eternizando-o: Lourdes Raghid Varela *G. Valadares, 1953 †G. Valadares, 2005 José Eustáquio Raghid Varela (in memorian) *Belo Horizonte, 1978 †Bagdá, 2005 Na paróquia e na cidade ninguém se deu conta disso ou questionou a inusitada inscrição. E o valioso documento que informa sobre a verdade histórica implícita entre aquelas datas e cidades permanece lá, enterrado num local onde só os que já se foram para a outra vida sabem dele.

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Capítulo 32 O atentado de três de janeiro de 2005, com a violenta explosão no restaurante dos oficiais aliados, na Zona Verde, em Bagdá, mantido sob rigoroso sigilo quanto a seu alcance e força letal, foi considerado pela Inteligência dos EUA como o maior até então sofrido por suas forças de guerra depois do atentado de Beirute contra uma de suas bases, em 23 de outubro de 1983, onde foram reconhecidas as baixas mortais de 241 marines. A mídia controlada pelas forças invasoras teve de divulgar alguma coisa, pois a explosão foi de tal ordem e em tal lugar que não poderia ser explicada de outra forma senão pelo reconhecimento de que fora um “atentado terrorista”. As primeiras informações não davam como certo se fora um “atentado suicida” ou se fora um ataque de mísseis sobre o local. As cifras publicadas falavam de cerca de 20 mortos e perto de uma centena de feridos. Nunca foram divulgados os números exatos daquela ocorrência, e o assunto só foi manchete por três ou quatro dias, até que se publicou um comunicado da “organização terrorista Al Qaeda” assumindo a responsabilidade pelo ataque, após o que sumiu dos noticiários. Nem os motores de busca na Internet sob controle do Pentágono foram poupados; todas as páginas que informaram sobre aquele acontecimento foram suprimidas da rede. Mas a verdade é que as pelo menos 218 pessoas atingidas pela explosão (o total poderia chegar a 223), e, logo em seguida, por uma chuva de mísseis, quase todas estavam dentro do restaurante e algumas poucas nas imediações. Apenas 46 foram recolhidas com vida dos escombros e, destas, somente 12 sobreviveram com graves e irreparáveis mutilações e lesões em várias partes do corpo. Ao todo, e com certeza forense, foram mortos 187 oficiais de elite, nove funcionários militares e dez civis. Entre os sobreviventes, cinco civis e sete militares. Cinco outras pessoas são dadas como desaparecidas, porém não houve comprová-las como vítimas do atentado. Tais números poderiam ter sido maiores não fosse a localização do edifício do restaurante num pequeno parque, a uma boa distância dos prédios mais próximos, e o horário de almoço, com pouca gente circulando pelo parque ou nas imediações. Assim mesmo, o parque ficou quase totalmente destruído e as construções próximas sofreram danos consideráveis. Muitos dos habitantes de edifícios fronteiriços ao parque tiveram traumas psíquicos e ferimentos de maior ou menor gravidade. As investigações surpreenderam os serviços de Inteligência das “forças aliadas” quando começaram a surgir informes de que fora utilizado um explosivo líquido pelo “terrorista suicida”. Um garçon civil - contratado para a ocasião e única pessoa presente no recinto da explosão que, por milagre, sobrevivera, mesmo tendo perdido um braço e uma perna -, descreveu o que vira no “suicida”, bem de perto. Tal tipo de explosivo era um dos segredos mais bem guardados e vigiados da indústria bélica dos EUA e não poderia ter sido vazado nem fornecido por ela. Então, alguém mais possuía essa tecnologia e não se tinha a menor idéia de quem nem de como ela fora fornecida aos mentores do atentado. Outro mistério era o de que o DNA do principal suspeito, um jovem deficiente físico que trabalhava como serviçal para o empresário do restaurante, não fora encontrado

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em lugar nenhum nos escombros da catástrofe, apesar de as gravações do sistema de segurança o terem registrado, com nitidez, transportando um lote de garrafas para o andar do restaurante, minutos antes da explosão. As câmeras internas do andar de cima não eram bem posicionadas e só uma delas gravou a sua entrada no recinto, porém, pelas costas, andando ao lado do buffet e em direção à coluna central do edifício. Ali, num gesto desafiador, ao que parece feito de propósito para uma das outras câmeras de segurança, detonou o explosivo, logo após dar uns gritos em língua inglesa, mas que não foram gravados com nitidez suficiente em meio à balbúrdia que tomou conta do local para que se pudesse ouvir ou decifrar o que dissera, a não ser as duas últimas palavras: “... save you”. Neste ponto, surge novo mistério: a deficiência física do jovem serviçal era exatamente a impossibilidade de falar; de acordo com a sua ficha médica, era mudo por ter tido a língua decepada muitos anos antes. Suspeita-se que ele transportava algum dispositivo de voz gravada, pois o garçon sobrevivente, que conhecia bem Khalid, não teve a menor dúvida em apontá-lo como autor do atentado. Quanto aos organizadores do feito, abria-se outra difícil incógnita. A resistência poucas vezes atuara belicamente nas áreas centrais de Bagdá. Escaramuças eram registradas com freqüência nos arredores e na estrada do aeroporto, mas os atentados com explosivos que se produziram dentro da cidade no último ano foram obras de serviços secretos aliados. A Inteligência não tinha pistas dos responsáveis nem sabia por onde começar a procurá-los. Possuía vídeos de segurança da mãe do suspeito que foram obtidos na portaria da Zona Verde, mas ela sempre usava hábitos longos, capuz e véu, de modo que sequer podiam descrevê-la. Ela havia desaparecido com seus pertences da residência do empresário, também morto no atentado, e era a única pessoa que poderia informar algo de útil às investigações. Contudo, muito para além das baixas sofridas e das investigações, o Pentágono teve de considerar a derrota estratégica que pôs em risco todo o investimento bélico, político e econômico feito até então naquela guerra, obrigando-o a rever a totalidade do planejamento futuro e as suas ambições de conquistas. A resistência iraquiana se constituíra num empecilho muito acima do calculado pelas forças invasoras, e muito superior ao do exército regular de Sadham Husseim. Este, logo ficara claro antes mesmo da ocupação de Bagdá, era apenas um disfarce para iludi-las. Só depois da invasão perceberam que os preparativos do Iraque foram feitos basicamente na estruturação e fortalecimento militares da resistência para a guerra assimétrica. Quando George W. Bush declarou o “fim da guerra”, três meses depois de começada, nem um militar no front acreditou nele. Naquele momento, todos tinham experiência de combate com a resistência mais que suficiente para saberem que a guerra apenas começava e não seria nada fácil. Entre as principais características daquela força de resistência estavam a surpreendente capilaridade de sua organização em todo o país, a inescrutabilidade de seus recursos e métodos, e, principalmente, a invisibilidade de seu comando central. Foram precisos intensos estudos dos melhores especialistas e o uso de avançada tecnologia satelital e de informática para desvendar a aparente anarquia das movimentações brownianas de suas ações bélicas, distribuídas por todo o teatro da guerra. Descobriu-se que eram, na verdade, táticas de uma sofisticada e bem azeitada estratégia de guerrilha cuja organização era, com grande chance de certeza,

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centralizada em Bagdá. De início, pensaram que seria em Fallujah, mas, depois do maciço bombardeio naquela cidade mudaram de idéia. Porém, isto permanece como uma conclusão teórica. Na prática, por mais que se tentasse desvendar como e onde tão eficaz coordenação se produzia na capital, sem nunca ter sido sequer ameaçada nem bloqueada, tudo resultou inútil. Os esforços nisto despendidos, com recursos ilimitados, sequer chegaram na ante-sala daquele Estado Maior invisível. As prisões de Abu Ghraib, Guantânamo, Kandahar e Diego Garcia eram lotadas de guerrilheiros, militantes e combatentes civis iraquianos que só conheciam o último ou o penúltimo segmento dos tentáculos dessa incrível organização militar. Um prisioneiro feito em batalha só sabia dizer quem lhe havia entregue sua arma e este, por sua vez, que havia apanhado as armas num determinado lugar; um porão ou garagem de um prédio abandonado, um furgão estacionado num beco, um depósito de cargas ou de mercadorias. As ordens chegavam a eles por diferentes meios, podia ser um menino de recados ou um office-boy, um anúncio de jornal, por celular e até pelo correio. Dos segmentos seguintes, de quem deixara lá as armas, as munições e os explosivos, quem enviara as ordens e as coordenadas, não se tinha a menor idéia. Mil códigos e costumes cifrados, em que se misturam religião, tradições, hábitos e a língua árabe garantiam a segurança das remessas e a certificação das mensagens que iam rapidamente do comando central até os extremos mais distantes da organização, passando sem problemas por todas as barreiras e unidades de vigilância dispostos em terra, na capital e em todo o país, no espaço aéreo e até no espaço sideral (satélites). A impressão era a de que toda a população do país, inclusive certos setores e próceres que se diziam ou se faziam de aliados aos invasores, tinha participação ativa na resistência. Foram infrutíferas as tentativas da Inteligência em infiltrá-la. No máximo, lograram algumas apreensões de velhos arsenais e, não raro, a prisão de reles criminosos que lhes passavam como “líderes da resistência”, e eram, na verdade, pessoas que a própria resistência queria descartar. Essa carência de informações confiáveis resultava na insegurança das tropas aliadas e na matança indiscriminada e desnecessária de civis, fatores que estavam minando perigosamente a moral das tropas e a opinião pública mundial, apesar do controle quase absoluto que o comando aliado possuía dos meios de comunicação de grande alcance em todo o mundo. Sem conhecer o inimigo mais profundamente era difícil chegar a algum lugar. Além disso, os segmentos centrais da teia da resistência eram autodestrutíveis e extremamente perigosos. Seguir um sinal suspeito de telefone celular poderia significar uma armadilha mortal. Outro celular era colocado no caminho pronto para detonar um explosivo quando passassem. Apreender ou revistar um veículo, igualmente. Vendo-se sem saída, um militante envolvido com os setores internos e mais próximos aos grandes segredos estava bem preparado e nunca vacilava no acionar de um dispositivo explosivo que sempre trazia consigo para a eventualidade. E levava para a morte os que estivessem com ele e em torno dele sem titubear, ainda que entre eles se encontrasse a própria mãe ou seus filhos. Depois de uma série de estudos e reuniões de cúpula, a solução recomendada foi a de preparar um grupo de oficiais de elite exclusivamente para atuar em Bagdá no que

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ficou sendo chamado de “front cultural”. Um grupo composto de profissionais experientes que fossem capazes de penetrar o ambiente e a atmosfera cultural própria daquele povo, que não necessitasse de intérpretes para dialogar e se entender com os iraquianos, e que estivesse a par de seus costumes, suas astúcias, seus códigos, seus métodos. Duzentos homens e mulheres foram escolhidos a dedo para a missão, entre os melhores dos melhores. Durante quase três anos se enclausuraram em local secreto e sob o mais rigoroso sigilo para um intenso treinamento dado por instrutores israelenses e muçulmanos sauditas e jordanianos, estes últimos tidos como aliados confiáveis pelo Pentágono, mas mantidos sob severa vigilância durante todo o período e depois eliminados secretamente. Todo este contingente super preparado sequer entrou em ação! Fora um erro inadmissível reunir 187 de seus componentes num só lugar, em plena Bagdá, pensando estar disfarçando-os de oficiais comuns em eventos de rotina. E os 13 outros foram assassinados ou seqüestrados por profissionais no mesmo dia, em diferentes lugares do mundo, inclusive nos Estados Unidos. Sete foram encontrados mortos e seis estão desaparecidos, provavelmente mortos também. Isto dava outra certeza terrível à Inteligência das forças invasoras: a resistência iraquiana a infiltrara até a medula. Tal certeza comprometia a hierarquia militar aliada de ponta a ponta, incluindo o alto comando; até o comandante-em-chefe ficava sob suspeição. De fato, daquela data em diante, foram notáveis o recuo do poder invasor e o avanço das forças de resistência, além da perda de viabilidade da invasão do Irã e da derrota iminente no Afeganistão. Caíram muitos altos oficiais aliados e todo o alto comando militar dos EUA no Iraque, até mesmo o comandante-em-chefe, almirante William Fallon. Contudo, e ao que se saiba, jamais se desvendou a identidade de um só quadro infiltrado. As “forças aliadas” foram perdendo terreno em todo o Iraque até o ponto em que, hoje, negociam uma retirada “honrosa”, mas em dificílimas condições. Os planos de redesenho do mapa político do Oriente Médio foram definitivamente para o espaço. E a hegemonia militar e econômica dos EUA passou a ser contestada e agora se dissolve em frangalhos. Estava o autor desta história escrevendo estas linhas quando ocorreu o episódio da sapatada no presidente dos EUA, George W. Bush, em plena Bagdá. Tal foi a repercussão do fato que, à primeira vista, parece que tudo o que se podia dizer sobre ele já foi dito. Contudo, este autor não viu um só comentário a respeito da capacidade e da competência da resistência iraquiana em executá-lo com tamanho sucesso. Acreditar que aquela fora uma ação isolada de um audacioso ou maluco é ser demasiadamente ingênuo. É que o alvo prioritário do ato nunca fora o rosto do famigerado presidente da nação invasora, mas, sim, a mídia hegemônica a seu serviço, e este foi atingido em cheio. O jornalista que o executou deve ser um Mujahid bem treinado e, pelo enorme risco de sua missão, estava preparado até para morrer. O brilhantismo desta operação do Jihad consiste em ter-se infiltrado no anel de segurança mais próximo do chefe de Estado mais bem protegido do planeta no momento em que este dava entrevista

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coletiva, ao vivo, para a mídia mundial a seu serviço sem a preocupação do filtro do delay, entre o momento real e o da transmissão, que normalmente é usado nestes casos por razões de segurança. Este cuidado não foi tomado daquela feita, e a resistência iraquiana estava lá, ciente disto e pronta para agir e se aproveitar outra vez do erro do inimigo. No momento exato em que ocorreu o ato, a sua imagem em vídeo era reproduzida mundo afora, sem nenhuma chance de bloqueio, e com ótima qualidade. Este último dado, a ótima qualidade do vídeo, é importante a se observar e a se considerar com mais atenção. Entre as dezenas de câmeras presentes, a que melhor registrou o ato parecia estar ensaiada para ele. Estava muito bem posicionada, cobriu com precisão a primeira sapatada e, em seguida, abriu o ângulo exata e coordenadamente, sem tremor ou vacilo causados pela surpresa, para cobrir a segunda com perfeição absoluta. Se no Vietnam a imagem do helicóptero decolando da embaixada dos EUA em Saigon, com pessoas penduradas nele, no desespero da fuga, foi a do encerramento humilhante da barbaridade que lá, então perpetraram; no Iraque, a imagem das sapatadas no tirano fundamentalista ocidental, responsável pelo regime mais cruel e genocida que se registrou em todos os tempos, ficará para a história como a que dá início ao fechamento, igualmente humilhante, do ciclo de atrocidades que ali e em boa parte do mundo perpetraram durante o mandato absolutista daquele facínora. São signos que marcam o crepúsculo de um império cujo esplendor não foi mais que uma fraude imposta e virtualizada pela força do terror e através dos meios de comunicação, numa época que os historiadores futuros poderão considerar como de obscurantismo, horror e grandes desgraças; muito semelhante, em essência, ao período conhecido como Idade Média. Poderá a história batizá-la, no futuro, de Idade Mídia. Capítulo 33 Da varanda do apartamento que fora ocupado por Taquinho, o sufi, acompanhado por Fadil, pelo clérigo xiita e por seis dos principais líderes da resistência, assistiram ao acontecimento com a ajuda de uma luneta e vários binóculos. Apenas Fadil preferiu observá-lo a olho nu. Zahirah ficou rezando na sala de orações. Ainda que envolvida e fazendo torcida para o sucesso da missão, seus olhos lacrimejavam. Uma bateria de mísseis de curto alcance fora posicionada e estava pronta para disparar no caso de insucesso do Mujahid, e também no caso de sucesso, para ampliar o estrago, prejudicar as investigações e confundir os peritos. Ao dar uma hora em ponto nos relógios acertados com o do celular do Mujahid, foi observada a potente e luminosa explosão provocada com o novo explosivo líquido usado, pela primeira vez, pela resistência iraquiana. O poder destrutivo que se verificou ali causou grande espanto até nos que o previam em teoria e por informações técnicas. Depois da enorme bola de fogo, do estrondo e dos tremores do solo que a sucederam, espessos rolos de fumaça negra brotaram do local.

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Nesta mesma hora, o chefe máximo da resistência deu, por telefone celular, a ordem de disparo dos quatro mísseis apontados para o mesmo alvo, os quais caíram nele com precisão, em novas e fortes explosões, ampliando o caos e a destruição. Não se comemora um ato bem sucedido do Jihad. O que se faz é orar em agradecimento a Deus Todo Poderoso e louvar o encontro da alma do mártir com Ele. Por isso, tão logo os olheiros posicionados em boas condições de observação confirmaram o sucesso da operação, todos se dirigiram, compenetrados, à sala de orações. Mas o que não se pôde saber – pois ninguém sobreviveu para contar e nem as câmeras de segurança lograriam registrar em detalhes – é que o Mujahid subiu cautelosamente, degrau por degrau, a escada que dava para o restaurante e lá surgiu, ao lado do balcão do bar, como um espectro no restaurante superlotado de oficiais fardados. Poucos deram atenção àquela figura insólita e ofegante, vestindo aquele suspensório esdrúxulo e trazendo algo na palma da sua mão direita, de que não tirava os olhos. Sem tirar os olhos daquele objeto, ele viu a coluna central do edifício à sua frente, a uns dez metros de distância. O som-ambiente fazia o fundo musical com um dos hits de Madonna que, no passado, fora o seu predileto. Estava exausto, pensou em detonar a explosão ali mesmo, mas, num supremo esforço a mais, decidiu caminhar até a coluna. A essa altura, algumas pessoas começavam a se mover e a se levantar, olhando para ele curiosas. Durante o percurso até a coluna, ele cruzou com um garçon que o viu bem de perto. Este, ao perceber o que tinha diante de si, jogou sua bandeja no chão e saiu correndo em direção à escada. Foi então que o pânico tomou conta do lugar. Taquinho já se encontrava ao lado da coluna quando viu numa das mesas à sua frente um rosto que conhecia bem. Veio-lhe então à mente a última coisa a fazer. Percebeu que tinha o controle da situação e que ninguém mais poderia impedi-lo de executar a operação. Sentia-se repentinamente em excelente condição física, a adrenalina parece ter agido sobre o seu estado e ele se via em tão perfeita harmonia com o seu corpo que era como se tivesse renascido. Estava calmo e sereno, sem temores nem aflições. Naquele segundo, passou-lhe pela mente toda a sua existência; foi como se o vaso da memória tivesse explodido e tudo o que havia nele aflorasse simultaneamente, fazendo um redemoinho de luzes em sua mente, que tinha como centro o escapulário – era o poder na palma da sua mão; o poder total, sobre tudo e sobre todos. Não que se sentisse um Deus; ele sentia que Deus havia penetrado em seu ser e tomado conta de todo ele. Sentia como se seu porte e sua postura fossem se tornando altivos, sua figura se agigantando em relação ao cenário que se amesquinhava; já não estava mais lá. Somente seus olhos ainda ali permaneciam e fuzilavam os raios cataclísmicos do poder dos deuses, ou de Deus, como ele cria e tinha fé. Tudo isto lhe ocorrera enquanto ele mirava, não mais o escapulário, mas aquele rosto, olho no olho, esperando ser reconhecido pelo responsável por sua prisão, o

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homem que balançara a cabeça afirmativamente diante de uma foto na primeira vez em que fora torturado, o qual era, então, o chefe da seção de Psiquiatria de Guantânamo – a pessoa mais odiada pelos prisioneiros daquele inferno nos tempos em que Taquinho lá fora introduzido, e cujo nome era o mais citado na segunda parte do seu memorial. Ao se ver, enfim, reconhecido na expressão de pavor que tomou conta do rosto daquele homem, o Mujahid usou toda a força dos seus pulmões: - Coronel Morgan! – gritou, silenciando o ambiente em transe de horror - I came here to save you. Em seguida, num gesto dramático, por ele coreografado e ensaiado inúmeras vezes e ali encenado com altivez, voltou-se com irreverência para a câmera de segurança mais próxima, levantando o punho esquerdo cerrado, e estendeu o outro braço na direção dela como a oferecer-lhe o que trazia na mão. E fechou o escapulário. FIM Nota do autor No decorrer da revisão desta novela, houve a posse do novo presidente dos EUA, Barack Obama. Como primeiro ato de seu mandato, ele determinou o fechamento da prisão de Guantânamo e outras prisões similares mundo afora, implantadas na gestão anterior. O mundo agradece. É preciso, porém, advertir que as feridas abertas no tecido social da Humanidade por tais instituições do terror não são cicatrizáveis; e os danos, irreversíveis. Assim, se faz necessário identificar e punir os responsáveis, além de indenizar as vítimas e seus familiares, para que recuperemos em parte a condição de seres civilizados – uma vez que a perdemos diante de tamanha barbárie –, e para que tais atrocidades jamais se repitam.