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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016 1 O “eu” que fala por “nós”: documentários autobiográficos, narcisismo e cinema de denúncia no Oriente Médio 1 Fernanda Andrade Fava 2 Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP Resumo Este artigo analisa dois documentários autobiográficos em primeira pessoa contemporâneos realizados no Oriente Médio Cinco Câmeras Quebradas (Five Broken Cameras, de Emad Burnat e Guy Davidi, 2012, Palestina/Israel) e Isto Não É Um Filme (This Is Not A Film, de Jafar Panahi e Mojtaba Mirtahmasb, 2011, Irã) para discutir a narrativa do eu no cinema e o narcisismo positivo dos cineastas a serviço de um cinema de denúncia, que resiste à repressão e ao enclausuramento e registra a luta por direitos humanos, civis e liberdade de expressão em regiões onde o cenário político é marcado por censura e repressão, seja por meio da justiça ou da violência. O artigo pretende fazer a leitura dos filmes cruzando bibliografias sobre neodocumentários, documentários autobiográficos, e os estudos sobre o indivíduo narcisista para a psicanálise e para a sociologia. Palavras-chave: cinema; audiovisual; narcisismo; documentários autobiográficos; Oriente Médio. Introdução Este artigo relaciona dois documentários autobiográficos em primeira pessoa contemporâneos realizados no Oriente Médio e pretende relacioná-los e analisá-los no que diz respeito aos tópicos da narrativa documental autobiográfica, do papel da temporalidade nas obras e dos paralelos com as teorias do Narcisismo. A trajetória que seguiremos abordará uma nova safra de documentários que, a partir dos anos 2000, passou a valorizar a memória, as identidades e as pequenas histórias pessoais; as características da autobiografia, do auto-retrato, a afirmação do eu e a estrutura do filme-diário no cinema dos anos 70 até hoje; a linearidade e a cronologia do tempo presente desses relatos e suas relações com o passado e o futuro; os conceitos, para a psicanálise, de pulsões, objeto, libido, idealização, e a aplicação deles na teoria do narcisismo de Sigmund Freud; e as releituras da obra de Freud para um olhar mais sociológico sobre a sociedade individualista. Estes elementos serão considerados para lançar luz à análise dos filmes aqui propostos. 1. Trabalho apresentado para a seleção do GP Cinema do XVI Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Multimeios da Unicamp, email: [email protected].

O “eu” que fala por “nós”: documentários autobiográficos ...portalintercom.org.br/anais/nacional2016/resumos/R11-1608-1.pdf · onde vem o título do filme), em diferentes

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O “eu” que fala por “nós”: documentários autobiográficos, narcisismo e cinema de

denúncia no Oriente Médio1

Fernanda Andrade Fava2

Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP

Resumo

Este artigo analisa dois documentários autobiográficos em primeira pessoa contemporâneos

realizados no Oriente Médio – Cinco Câmeras Quebradas (Five Broken Cameras, de Emad

Burnat e Guy Davidi, 2012, Palestina/Israel) e Isto Não É Um Filme (This Is Not A Film,

de Jafar Panahi e Mojtaba Mirtahmasb, 2011, Irã) – para discutir a narrativa do eu no

cinema e o narcisismo positivo dos cineastas a serviço de um cinema de denúncia, que

resiste à repressão e ao enclausuramento e registra a luta por direitos humanos, civis e

liberdade de expressão em regiões onde o cenário político é marcado por censura e

repressão, seja por meio da justiça ou da violência. O artigo pretende fazer a leitura dos

filmes cruzando bibliografias sobre neodocumentários, documentários autobiográficos, e os

estudos sobre o indivíduo narcisista para a psicanálise e para a sociologia.

Palavras-chave: cinema; audiovisual; narcisismo; documentários autobiográficos; Oriente

Médio.

Introdução

Este artigo relaciona dois documentários autobiográficos em primeira pessoa

contemporâneos realizados no Oriente Médio e pretende relacioná-los e analisá-los no que

diz respeito aos tópicos da narrativa documental autobiográfica, do papel da temporalidade

nas obras e dos paralelos com as teorias do Narcisismo. A trajetória que seguiremos

abordará uma nova safra de documentários que, a partir dos anos 2000, passou a valorizar a

memória, as identidades e as pequenas histórias pessoais; as características da

autobiografia, do auto-retrato, a afirmação do eu e a estrutura do filme-diário no cinema dos

anos 70 até hoje; a linearidade e a cronologia do tempo presente desses relatos e suas

relações com o passado e o futuro; os conceitos, para a psicanálise, de pulsões, objeto,

libido, idealização, e a aplicação deles na teoria do narcisismo de Sigmund Freud; e as

releituras da obra de Freud para um olhar mais sociológico sobre a sociedade individualista.

Estes elementos serão considerados para lançar luz à análise dos filmes aqui propostos.

1. Trabalho apresentado para a seleção do GP Cinema do XVI Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento

componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.

2. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Multimeios da Unicamp, email: [email protected].

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À título de contextualização, não há um conjunto homogêneo de obras que possa

falar em nome de um único cinema do Oriente Médio, mas sim uma diversidade de

cinematografias com características próprias de país para país, cuja expressão e produção,

no entanto, tem conquistado cada vez mais atenção de público e crítica, em razão das novas

formas de tecnologia para exibição e acesso das obras e também das particularidades

geopolíticas da região. Aqui, vamos falar apenas de Irã e Palestina/Israel.

De acordo com a pesquisadora Monique Sochaczewski (2014), a virada do milênio

representou o surgimento dos primeiros filmes empáticos com a comunidade árabe e

muçulmana, deixando de lado aos poucos uma visão mais preconceituosa e as constantes

associações ao terrorismo. Apesar desses estereótipos, o cinema iraniano possui uma grande

representatividade no exterior, consolidada por décadas, ganhando visibilidade

principalmente a partir dos anos 1980 com a trajetória de Abbas Kiarostami, ao lado de

outros nomes muito conhecidos, como Mohsen Makhmalbaf, o próprio Jafar Panahi e o

mais recente Ashgar Farhadi. Os quatro cineastas vêm de um contexto cinematográfico pós-

Revolução Islâmica, a partir da qual o Estado passou a intervir, por meio de forte censura,

na indústria de filmes do país. Kiarostami teve muitos de seus filmes proibidos no Irã, e

Farhadi sofreu duras críticas do Estado por A Separação, mesmo após vencer o Oscar de

Filme Estrangeiro para o país em 2012.

Por conta de sua postura contestatória da realidade política nacional no mandato do

presidente Mahmoud Ahmadinejad, de 2005 a 2013, Panahi, diretor de Isto Não É Um

Filme, cumpria pena de prisão domiciliar na época em que realizou este documentário e foi

proibido de trabalhar como diretor e roteirista de cinema, de dar entrevistas ou de deixar o

país por 20 anos. O filme foi enviado ao Festival de Cannes, onde teve estreia mundial,

contrabandeado clandestinamente do Irã dentro de pen-drive.

Já o cinema palestino, de acordo com Sochaczewski (2014), passou por um aumento

de produção justamente nesta virada de milênio, mas, desde seu marco inicial com o filme

Return to Haifa (1980), de Kassem Hawak, sempre demonstrou a força da resistência

palestina à opressão e dominação israelense do território. O seu maior expoente é

possivelmente o diretor Elia Suleiman, cujo segundo longa, Divine Intervention, venceu o

prêmio do júri no Festival de Cannes de 2002.

Cinco Câmeras Quebradas (2012) é um filme mais recente e teve grande

repercussão internacional, ganhando mais de 30 prêmios em festivais de cinema em Israel e

em outros países do mundo. Diferentemente de Suleiman, Emad Burnat não era cineasta e

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apontou no cenário cinematográfico mundial como um desconhecido, porém contou com

financiamento de Israel e da França e com o apoio, na produção, roteiro e direção, do

colega e cineasta israelense Guy Davidi. O filme ganhou uma vaga para concorrer ao Oscar

de Melhor Documentário em 2013, porém seu diretor, Burnat, quase não compareceu à

cerimônia, tendo sido barrado no aeroporto de Los Angeles por ser palestino. Só foi

liberado após grande insistência do cineasta norte-americano Michael Moore.

Em Cinco Câmeras Quebradas, a história contada é a do próprio co-diretor, Emad

Burnat, camponês, casado e pai de quatro filhos, habitante da aldeia de Bil'in, território

palestino na Cisjordânia, a 40 quilômetros de Jerusalém e 50 de Tel Aviv, próxima à

fronteira com Israel. No começo do filme, ele explica que comprou sua primeira câmera

filmadora para documentar a vida na sua aldeia e, principalmente, da sua família, na ocasião

do nascimento de seu quarto filho, Gibreel. Não demorou muito tempo, no entanto, para

perceber que a câmera teria um outro objetivo, o de testemunha na tomada de seu território

por conjuntos habitacionais israelenses ocupando terras que pertenciam à aldeia e nas

manifestações e atos de resistência da população palestina duramente reprimidas pelo

exército israelense. Como Burnat diria em diversas entrevistas após o lançamento do filme,

a presença da câmera também era um recurso usado pelos cinegrafistas para proteger seus

companheiros manifestantes, uma vez que, na presença da filmagem, os soldados de Israel

costumavam policiar mais suas ações, com medo da repercussão negativa das imagens.

Como é possível ver ao longo do filme, que cobre um período de quase seis anos a partir do

momento em que a resistência de Bil'in começa a operar, conforme os protestos aumentam

e se tornam mais “barulhentos”, a repressão também se torna mais violenta.

O agravamento da situação, a ocupação do território, correm paralelamente ao

transcorrer da infância (ou perda da inocência) de Gibreel, aos questionamentos, insistência

e problemas de saúde de Burnat em decorrência da militância, à perda da esperança e do

entusiasmo por Soraya, sua mulher, e ao cotidiano da família, vizinhos e amigos de

militância, cada vez mais afetado pelos acontecimentos.

Ao cobrir estes episódios de confronto, Burnat teve cinco câmeras quebradas (de

onde vem o título do filme), em diferentes circunstâncias, mas, em geral, atingidas por

bombas, golpes ou munição durante os conflitos, cada uma delas representa um período

entre 2005 e 2010. A sexta câmera encerra o documentário intacta, no mesmo momento em

que uma decisão judiciária é acatada e Israel começa a devolver algumas terras aos aldeões.

O filme é montado basicamente com imagens captadas por ele, recorrendo ao arquivo de

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outros cinegrafistas para promover diferentes ângulos de um mesmo episódio. O relato é

feito em primeira pessoa, porém com a co-autoria no roteiro e na direção do israelense Guy

Davidi, parceiro de Burnat nos protestos.

Isto Não É Um Filme cobre um dia na vida do cineasta Jafar Panahi, da manhã até a

noite, intervalo no qual ele mesmo é diretor e protagonista da história que se desenrola na

tela, filmado por uma câmera digital e um aparelho de celular, com ajuda na filmagem e na

direção do documentarista e cinegrafista Mojtaba Mirtahmasb. No momento da filmagem,

março de 2011, Panahi já era um reconhecido cineasta iraniano no exterior por filmes

como Balão Branco, O Círculo e O Espelho, e havia sido proibido de sair de sua casa, um

apartamento em Teerã, pelo Governo iraniano, condenado a seis anos de prisão domiciliar e

banido por 20 anos de dirigir filmes, escrever roteiros, dar entrevistas e deixar o País, sob

acusação de por em risco a segurança nacional e fazer propaganda contra o regime

governamental iraniano, à época regido por Mahmoud Ahmadinejad. Contrariando e

desafiando a condenação e a despeito dela, o cineasta realiza um documentário-denúncia. A

ação se passa em um dia em meados de março de 2011, no período de festas chamado

Chahārshanbe Suri que antecede a chegada do ano novo persa no Irã, “Nowruz”, em 21 de

março, enquanto as pessoas vão às ruas para soltar fogos de artifício e Panahi aguarda

ansiosamente o resultado de uma apelação ao tribunal para atenuação de sua pena.

Com a câmera sempre ligada, Panahi registra seu cotidiano de prisioneiro:

acordando, fazendo chá, alimentando a iguana da filha, dando e recebendo telefonemas,

vendo televisão, acessando a internet, observando o mundo lá fora pela sacada, regando as

flores. Enquanto toma café da manhã e fala ao telefone com sua advogada sobre suas

chances, convoca Mirtahmasb para vir a sua casa para que, juntos, registrem a leitura de um

roteiro de sua autoria que havia sido reprovado pela censura. No meio do processo, eles

reveem juntos algumas cenas de obras de Panahi, que servem ao cineasta para fazer uma

reflexão sobre seu ofício e sobre as especificidades que permitem que um roteiro saia do

papel e se torne um filme. O título do documentário faz uma referência tanto ao artista

plástico René Magritte (autor da famosa obra La trahison des images, a gravura de um

cachimbo com a frase “Ceci n'est pas une pipe” – isto não é um cachimbo), quanto à própria

constatação a que chega Panahi no documentário, de que a leitura de um roteiro não faz um

filme, passando ainda pela metáfora do banimento: intitulando a obra como um não-filme,

Panahi não estaria realmente quebrando a sua proibição.

As Narrativas do Eu

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Os filmes analisados se inserem no panorama do documentário contemporâneo

mencionado por Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (2009), que eles denominarão

neodocumentário e cuja produção atual abrange uma ampla gama de novas temáticas e de

novas formas de abordagem, resultando, entre outros, em filmes empenhados em contar as

pequenas histórias singulares, universo no qual estão localizadas as narrativas em primeira

pessoa que se constroem ao redor da vida do próprio realizador. Além disso, os

documentários autobiográficos possuem estrutura e narrativa muito semelhantes às dos

filmes descritos por autores como Jim Lane (2002), em suas investigações sobre o

documentário autobiográfico nos Estados Unidos, e Raymond Bellour (1997), em suas

asserções sobre a autobiografia e o auto-retrato no cinema.

No capítulo sobre documentários de A Tela Global, Lipovetsky e Serroy (2009)

chamam de “revanche dos Lumières” a nova onda de popularidade da não-ficção no

mundo, com lançamentos de obras que obtêm bons resultados no circuito de festivais3, na

crítica e na bilheteria. O texto se desenrola em muitos exemplos de novos documentários

intimistas, de denúncia, militantes, autobiográficos, entre outros. Os autores assim

justificam o retorno ao singular:

Em primeiro lugar, o crescimento do documentário é uma resposta ao

desaparecimento dos grandes referenciais coletivos do bem e do mal, do

justo e do injusto, da direita e da esquerda, assim como ao apagamento das

grandes visões do porvir histórico. Sem lastro de leituras

macroideológicas a indicar o sentido da história, são as “pequenas”

histórias, são todas as realidades micro e macro do mundo humano-social

que ganham uma nova dignidade. (LIPOVETSKY; SERROY, 2009, p.

143).

Isso é justamente o que vemos em Cinco Câmeras Quebradas e Isto Não É Um

Filme. Apesar de serem filmes que, num macrouniverso, trazem um complexo contexto

histórico de lados divididos e pesos diferentes, como o conflito entre Israel e Palestina e o

regime político fechado do Irã num mundo onde impera a democracia, as narrativas focam

no universo íntimo e são bem situadas nos personagens. Para ambos, mas em especial para

Isto Não É Um Filme, cabe a frase dos autores: “o insignificante de cada dia é

supersignificante” (LIPOVETSKY; SERROY, 2009, p. 149).

Do contexto maior que os envolve, os filmes mantêm apenas os vestígios suficientes

para situá-los, sem que as manobras políticas se tornem o objetivo central da enunciação.

3. Podem incluir-se aí tanto Cinco Câmeras Quebradas, que foi indicado ao Oscar de Longa Documentário, e Isto Não É

Um Filme, que estreou em Cannes, tendo sido exibido também em outros festivais mundiais, como o de Berlim,

conquistando a solidariedade dos cineastas ao redor do mundo sobre a situação do diretor iraniano.

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Denunciam as violações e as inconsistências, mas não apontam nomes, facções ou partidos.

Porém, como lembram Lipovetsky e Serroy (2009), nenhuma narrativa é neutra. O

posicionamento dos dois documentários é evidente, apontando para o cinema militante de

denúncia do desrespeito aos direitos civis e humanos nos dois contextos, “no sentido de que

resultam de um engajamento com uma vontade de fazê-lo compartilhar” (LIPOVETSKY;

SERROY, 2009, p.152).

Além de novas temáticas, de acordo com estes autores, os neodocumentários

também abandonaram o tom excessivamente professoral, pedagógico, adotando novas

formas de narrar e de olhar. Isto Não É Um Filme não lança mão nem de voz over e nem de

letreiros e não tem a função didática de falar sobre o regime político opressor no Irã. Mas,

de certa forma, estes dados estão subentendidos na história. Cinco Câmeras Quebradas faz

uso da narração muito mais para evocar emoções, subjetividades e conexões do que para

informar números, datas e fatos dos conflitos entre palestinos e soldados israelenses.

Mesmo assim, e de uma maneira contemporânea, como reforça o texto de A Tela

Global, esses filmes não escapam da “dimensão primeira, irredutível da escrita.”

(LIPOVETSKY; SERROY, 2009, p. 149). Por isso, convém analisar as semelhanças e

diferenças entre Cinco Câmeras Quebradas e Isto Não É Um Filme pela construção da

narrativa. Aqui, nos interessa cruzá-la com a estrutura específica dos documentários

autobiográficos e dos filmes-diários.

No capítulo “Auto-retrato”, Bellour (1997) aplica o conceito de autobiografia ao

cinema. Ele investiga como o cinema opera na escrita do eu. É na noção de narrativa e de

contexto de produção que o autor encontra dois modos de funcionamento dessa estratégia,

que nos dão pistas para a leitura adequada dos filmes. Assim ele define:

O primeiro se deve à escolha que um cineasta faz de ater-se a si mesmo o

quanto puder, de narrar ou evocar sua vida, de circunscrever com base em

sua própria experiência a questão 'quem sou eu' e de colocá-la mais ou

menos explicitamente, com todas as consequências que isso acarreta. O

segundo se deve ao caráter privado (muito variável) das condições de

produção e de filmagem, que frequentemente garante, mas não

necessariamente (é o que mostra o contra-exemplo de Fellini), a promoção

do íntimo. (BELLOUR, 1997, p. 322).

Para o filme iraniano, bem como para o palestino, a promoção do íntimo na

produção e filmagem é um ponto-chave, o olhar é individual, assim como a intenção do

registro. Isto Não É Um Filme é realizado efetivamente por apenas duas pessoas. Cinco

Câmeras Quebradas, apesar de uma equipe maior de finalização, é um projeto muito

pessoal de duas pessoas também. E, principalmente para o diretor Emad Burnat, o esforço

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em situar a história em termos de “quem sou eu”, “o que eu fiz” e “de onde falo” permeia

Cinco Câmeras Quebradas do início ao fim. A iniciativa do cineasta de contar os

acontecimentos de sua vida em uma linha de tempo cronológica, começando o filme com

memórias da sua infância e demonstrando preocupação evidente com a construção do

relato, associa-o quase totalmente à noção de autobiografia para Bellour (1997), que aponta

para esta identificação precisa de tempo e de ações encadeadas para criar – à vida e à

narrativa – a sensação de plenitude.

Estas características também aparecem para definir o documentário autobiográfico,

na visão de Jim Lane, que se refere a esse tipo de filme como journal entry documentary4:

“um tipo de documentário autobiográfico que envolve a filmagem dos eventos do dia-a-dia

por um período duradouro de tempo e a subsequente montagem desses eventos em uma

narrativa autobiográfica cronológica” (LANE, 2002, p. 33).

Em Cinco Câmeras Quebradas, o esforço narrativo é visível: há um claro recorte

temporal, a iniciativa de filmar eventos que têm relevância para a história, a montagem

linear, a narração para costurar as cenas numa enunciação coesa. Em Isto Não É Um Filme,

isto ocorre em partes: a montagem também é cronológica, o caráter de registro constante

com início e fim é inserido claramente em um intervalo de tempo definido. Porém a ligação

de significado entre elementos da narrativa é operada muito mais pela sugestão metafórica.

De fato, o documentário iraniano encontra-se muito mais num limiar, seja entre o

documentário e as bordas da ficção, seja na fronteira entre a autobiografia e o auto-retrato,

da qual trata Bellour (1997). Por um lado, Panahi se aproxima do documentário

autobiográfico, como já foi citado, por situar temporalmente a narrativa cronológica, no

entanto, neste caso, em um intervalo de apenas 24 horas.

Por outro lado, Isto Não É Um Filme tem muitas características que remetem ao

auto-retrato, conforme ele é diferenciado da autobiografia por Bellour (1997). Ele não tem

como objetivo contar a história plena de Jafar Panahi. Em especial os diversos retornos à

memória e ao passado5 não obedecem a uma sequência temporal que queira abarcar a

trajetória do cineasta e aparecem muito mais em livre associação com as lembranças e

pensamentos que surgem durante o dia. O filme opera no plano do devaneio e da divagação.

4. A tradução literal aqui seria documentário de notas de diário. Ele está se referindo a produção norte-americana de

documentários autobiográficos, cuja obra-marco, ironicamente, ele identifica como sendo o falso documentário

autobiográfico David Holzman's Diary (1968), de Jim McBride, pelo uso da estrutura narrativa que depois seria adotada

por cineastas como Stan Brakhage, Jonas Mekas, Rossa McElwee, entre outros.

5. No filme de Panahi, essas incursões acontecem durante os comentários do cineasta sobre seus roteiros censurados e

sobre cenas específicas de seus filmes anteriores.

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Por causa disso ele aponta ao auto-retrato, na definição de Bellour (1997), que o

associa a analogias, metáforas, discurso poético, elementos que estão muito presentes na

obra iraniana. As metáforas são o grande recurso de circularidade do filme de Panahi. São

constatáveis desde a analogia entre o roteiro jamais filmado sobre a estudante de Arte

proibida de frequentar a universidade pelos pais e a própria situação do cineasta que o

escreveu, até a metáfora da janela como enquadramento que remete ao encarceramento e à

prisão de Panahi e à associação do filme com a obra de Magritte, do filme com o não-filme.

Há, no longa, ainda mais aproximações com o auto-retrato. “À escrita como ação,

intervenção, diálogo, ele opõe a escrita como inação, divagação, monólogo. […] Ele é uma

deriva solitária da retórica cuja herança perverte.” (BELLOUR, 1997, p. 331). Aí reside

mais uma característica notável de Isto Não É Um Filme, na impossibilidade de sair de seu

encarceramento, a rotina de Panahi e até mesmo alguns de seus diálogos apontam para a

divagação explícita e implícita, principalmente sobre o fazer cinematográfico.

Linha do Tempo

Uma segunda distinção entre os dois filmes, que influencia a narrativa, é a

apropriação do tempo: apesar de terem sido lançados em datas próximas, enquanto Cinco

Câmeras Quebradas foi filmado ao longo de cinco para seis anos na vida de Emad Burnat,

Isto Não É Um Filme é o retrato de apenas um dia na vida de Jafar Panahi. E o lugar de

partida da narrativa também difere: Isto Não É Um Filme é um documentário que se

desenrola no presente de forma linear. Cinco Câmeras Quebradas, por sua vez, parte do

presente – na cena inicial o cineasta reúne suas cinco câmeras quebradas em uma mesa para

introduzir sua história – para na sequência operar um flashback a partir do qual a narração

passa a comentar os episódios com verbos no presente.

A lentidão da passagem do tempo é elemento-chave na narrativa de Isto Não É Um

Filme, um documentário que tenta se realizar no presente, incluindo os tempos mortos, na

representatividade e na monotonia que eles têm para uma pessoa privada de liberdade.

Porém as primeiras cenas do documentário desagradam Panahi, que resolve interromper o

fluxo, olhando diretamente para a câmera em uma das cenas mais determinantes do filme,

na qual admite francamente que é a “hora de arrancar o gesso”, em alusão a um de seus

filmes, no qual uma atriz-mirim, tendo cansado de representar seu personagem resolve

arrancar o gesso cenográfico que carregava no braço, dizendo que queria ser ela mesma.

Se o presente carrega o “gesso” da ficção para Panahi, é a partir desta cena que o

documentário assume outras reflexões a respeito do tempo, do aqui agora letárgico, em

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suspensão, que carrega em si um passado impossível de recriar – o dos filmes realizados –,

um futuro do pretérito que não se realizou – o dos roteiros que foram impossibilitados de

sair do papel –, e um futuro imponderável – o do resultado da apelação ao tribunal para

amenizar a pena de Panahi, expectativa que o final do filme não nos satisfaz.

Em Cinco Câmeras Quebradas, além das marcações temporais claras, por meio das

indicações da vida útil de cada uma das cinco câmeras, dos letreiros e das citações de

Burnat situando os anos e também acontecimentos singulares, isto é intensificado pela voz

over da narração, da qual já comentamos, que faz a costura dos eventos avulsos valorizando

sua significação para o todo e tem o cuidado de narrar as cenas com verbos no presente,

imprimindo paralelamente uma busca incansável de quais emoções e sentimentos o cineasta

experimentou no momento em que vivenciou cada um deles. Mas algumas das cenas mais

marcantes do longa-metragem, na verdade, são construídas na narração, como uma reflexão

posterior ao acontecimento e carregada de ressignificação6.

Suprir o hiato entre o momento da filmagem e o momento da escritura com a

reflexão: esta é uma questão sobre a qual o cineasta Jonas Mekas, principal expoente do

Underground norte-americano nos anos 60, já havia atentado, em suas reflexões sobre o

filme-diário e a apreensão da realidade. Inicialmente ele acreditava que, ao passo que o

diário escrito era a reflexão em retrospecto sobre os eventos de um dia, o filme-diário era a

tradução da realidade aqui e agora, a câmera captando a vida no momento em que ela passa.

“Mas percebi bem cedo que não era tão diferente, afinal. Quando filmo, também estou

refletindo. Eu pensava que só estivesse reagindo à realidade. Não tenho muito controle

sobre ela e tudo é determinado pela minha memória, meu passado.”7

A passagem do tempo é o fator, na narrativa, que faz ver a transformação de temas e

personagens num mesmo intervalo, de acordo com Lane (2002). No transcorrer dos cinco

anos em que filma a resistência de sua aldeia à tomada de seu território e à construção de

muros de separação, o que Emad Burnat faz é justamente chamar atenção para o

amadurecimento dos personagens de seu documentário. Ele faz isso principalmente com

relação às fases de aprendizado de seu filho mais novo, Gibreel – os primeiros passos, as

primeiras palavras, os primeiros contatos com os muros de separação, com as

6. Isso acontece, por exemplo, quando o cineasta bate o carro contra o muro de separação de Israel e Cisjorndânia num

acidente, e a narração do documentário diz: “Não posso deixar de pensar que o acidente foi por causa da barreira. Mas ter

batido nela talvez tenha salvado minha vida: os soldados têm de me levar para um hospital israelita. [...] Se me tivessem

levado para um hospital palestino comum, provavelmente não teria sobrevivido”. Na dramática cena da morte de um

amigo durante um protesto, esse recurso volta a ser usado, quando a voz over de Burnat afirma: “Na hora, não percebi que

a morte pairava sobre nós. Só se tornou claro para mim quando Phil foi morto”.

7. MEKAS, Jonas. O filme-diário. In: MOURÃO, Patrícia (org.). Jonas Mekas. São Paulo: Centro Cultural Banco do

Brasil, Pró-reitoria de Cultura e Extensão Universitária - USP, 2013.

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manifestações, com a ideia de morte –, e a forma como ele pouco a pouco se apropria do

mundo ao seu redor por meio de palavras e vivências. Mas ele também faz isso com seus

companheiros de militância, e a forma como o passar dos anos impacta suas motivações e

esperanças, assim como suas transformações como autor/protagonista/narrador da história,

ao passo em que vai se dando conta do tamanho da responsabilidade da função de registrar.

Um Narcisismo Positivo

A evolução do personagem e a transformação do cineasta permitem analisar uma

questão central nos dois filmes aqui comparados: o caráter narcisista. Aqui estamos falando

em narcisismo pelo viés da psicanálise principalmente, mas, como veremos em seguida,

também há implicações sociológicas do comportamento narcisístico. O interesse

cinematográfico do cineasta pela sua própria vida pode estar atrelado ao “advento de um

neoindividualismo que se apresenta como obsessão narcísica” nos dias atuais, porque “sob a

influência da cultura individualista e psi, toda pessoa e toda realidade psicológica se

mostram dignas de interesse cinematográfico” (LIPOVETSKY; SERROY, 2009, p. 148.). É

aí que o documentário ganha os contornos da psicanálise, “voltada, pelo efeito-espelho que

oferece, tanto para o indivíduo filmado quanto para o realizador que o filma”.

Nos dois casos aqui estudados, os filmes em primeira pessoa representam um

retorno ao eu, característica do reinvestimento das pulsões libidinais ao próprio ego de que

fala a teoria do narcisismo para a psicanálise formulada por Sigmund Freud em 1914.

Porém há, nos dois, um diferencial importante: no diário de seus cotidianos, os cineastas

colocam o registro, a denúncia e a militância às vezes acima da própria vida e da liberdade,

o que denota uma espécie de nível máximo da libido de objeto, se neste caso tomarmos o

objeto simbolizado pelo cinema, a posse da câmera, levando à quase despossessão do eu8.

Ao mesmo tempo, os riscos de prisão e de vida aos quais Burnat escolhe se submeter todas

as vezes, não obstante ter quase sido atingido por uma bala na cabeça e mediante os

suplícios da mulher para que abandone a militância; e a postura desafiadora de Panahi em

fazer um filme mesmo sob proibição da justiça iraniana e condenado à prisão domiciliar,

demonstram o quanto é relevante para eles a auto-afirmação do eu.

Antes de entrar no campo complexo da psicanálise, é preciso tomar as aproximações

entre o cinema e o narcisismo em sua concepção clínica mais como exercícios interessantes

de olhar para os filmes do que como verdades absolutas. Isto posto, devemos ter em mente

8. Para entender os extremos da libido de objeto e da libido do eu, ver a explicação de Carlos Augusto Nicéas (2013, ps.

47-48) sobre esses dois tipos de pulsão. A noção de objeto tem a ver com o alvo externo para o qual o sujeito aponta seu

desejo, geralmente uma outra pessoa.

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que Freud escreveu sua Introdução ao Narcisismo com base em sua experiência clínica com

pacientes que sofriam de diversas parafrenias. Como explica Nicéas (2013), nesta época,

por volta de 1914, Freud estava começando a fundamentar a sua teoria das pulsões, que ele

dividiu entre pulsões de autoconservação, relacionadas à sobrevivência do indivíduo e onde

está situada a libido do eu, e as pulsões sexuais, relacionadas a perpetuação da espécie e

onde está situada a libido de objeto. Neste contexto, o nascimento do narcisismo primário é

quase imediatamente concomitante ao do surgimento do eu no indivíduo, unindo a

consciência do corpo no psiquismo, de acordo com os escritos de Freud em 1914 e 1923 e

também as constatações de Jacques Lacan em O Estádio do Espelho:

Em 1923, ao dizer que o eu é antes de tudo um eu corporal, Freud nos

convida a entender e a estender, na teoria psicanalítica, a definição

estrutural desse eu: instância psíquica, ele não se constitui como um ser de

superfície, mas é, ele mesmo, a projeção, no psiquismo, de uma superfície.

Ou, dizendo de outra maneira, o eu freudiano teria propriamente o estatuto

de uma projeção, projeção mental da superfície do corpo. Dessa maneira,

o narcisismo equivale a esse instante em que se explicita a fundação do eu,

exteriormente às funções vitais, momento em que ele se dá à pulsão

sexual, ao seu investimento por ela, à maneira de um objeto libidinal.

(NICÉAS, 2013, p. 95)

Paralelamente a isso, Freud identificara um narcisismo secundário, que, segundo

Nicéas (2013), seria uma tentativa tardia de reencontrar esse primeiro narcisismo, na qual o

indivíduo retira o investimento libidinal nos objetos para retorná-lo ao eu. Perelberg (2012,

p. 76), que estuda o conceito por meio de Freud, indica que “a escolha do objeto é narcísica

quando o objeto representa o próprio sujeito, ou aquele que ele era, ou aquele que gostaria

de ser, ou uma parte de si mesmo (uma criança)”.

Na análise fílmica de Isto Não É Um Filme e Cinco Câmeras Quebradas, essas

asserções nos fazem imaginar que a estratégia de falar de um contexto político que é

originalmente coletivo por meio da narrativa individual do eu é uma fórmula narcisística.

Mais além na linha do raciocínio, o retorno do investimento libidinal (tomando libido por

foco da atenção ou desejo) ao eu poderia estar sendo retirado, metaforicamente, de um

objeto que, em contextos políticos conflituais, tem a ver com uma utopia quase

inalcançável: a liberdade, o reconhecimento e o respeito aos direitos do cidadão.

Ao mesmo tempo, como a utopia de Eduardo Galeano, este objeto tão idealizado e

desejado (que na impossibilidade do presente se reflete no eu) está sempre no horizonte, de

forma que poderíamos novamente emprestar a palavra dos estudiosos da obra de Freud para

falar da diferenciação entre um narcisismo positivo e outro negativo, e também de um

narcisismo sadio e outro patológico, destrutivo. O narcisismo positivo, portanto, visaria a

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uma unidade: “o investimento do self sendo alimentado, pelo menos parcialmente, à custa

do investimento objetal” (GREEN, 2002, p.636-7 apud PERELBERG, 2012, p. 81). É o que

se poderia associar ao esforço do documentário autobiográfico em ser também documento e

registro nos dois filmes aqui estudados: um investimento do eu serve a um narcisismo

positivo e sadio, que além de fazer bem ao cineasta também alimenta a memória, a

identidade e a unidade de um coletivo.

Por outro lado, os filmes também podem apresentar vestígios de um narcisismo

patológico em alguns momentos: “um desequilíbrio em favor do narcisismo pode ser

positivo e apesar disso patológico, porque empobrece os relacionamentos com os objetos”

(GREEN, 2002, p.636-7 apud PERELBERG, 2012, p. 81). Em especial em Cinco Câmeras

Quebradas, a valentia de Burnat em forma de narcisismo muitas vezes põe em risco seu

relacionamento com sua mulher, que reclama repetidas vezes que o marido deveria parar de

se arriscar tanto para cobrir as manifestações. Além disso, é do narcisismo negativo que

Jafar Panahi parece fugir ao se propor a registrar e documentar tudo. Na clausura da prisão

domiciliar, a falta de contato com o mundo dos objetos poderia levá-lo ao narcisismo

destrutivo, visando a aniquilação do próprio sujeito, uma condição que estaria muito

próxima à morte psíquica. Em Isto Não É Um Filme, o cineasta parece oferecer a resistência

a essa autodestruição, transformando o seu filme, ao mesmo tempo, em uma espécie de cura

e em um manifesto que correu o mundo a seu favor e a favor da liberdade de expressão.

Criatividade e Política

Talvez a teoria que melhor situe essa relação de dependência entre os cineastas e o

cinema é a que vincula o narcisismo e a criatividade para artistas e cientistas, conforme

parte dos estudos de Heinz Kohut (1985). De acordo com o autor, a obra de arte pode ser

“autoplástica no sentido de que, como um sonho ou um sintoma, serve à solução de um

conflito interno ou a realização de um desejo”, como vemos claramente para Burnat e

Panahi; ao mesmo tempo, pode ser “simultaneamente aloplástica, no entanto, já que

modifica a realidade pela criação de algo original e novo” (HEISSLER apud KOHUT,

1985, P. 114). Ou, “a vida torna-se uma obra de arte, ao passo que 'a primeira obra de arte

de um artista', de acordo com o pronunciamento de Norman Mailer, 'é a modelagem de sua

própria personalidade'” (LASCH, 1983, p. 123).

A idealização é a característica por trás do sentimento do criador para sua obra: o

seu narcisismo do ser criativo se vê transformado “numa forma idealizada de libido”

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(KOHUT, 1985, p. 112). O autor resume, de forma bastante associável à fixação dos

cineastas analisados aqui:

Artistas criativos e cientistas podem apegar-se ao seu trabalho com a

intensidade de um vício, e eles tentam controlar e dar forma a ele com

forças e propósitos que pertencem ao mundo narcisisticamente

experienciado. Eles tentam recriar a perfeição que antes era diretamente

um atributo deles mesmos; durante o ato criativo, no entanto, eles não se

relacionam com seu trabalho na mutualidade de dar e receber que

caracteriza o amor objetal. (KOHUT, 1985, p. 115)

Há ainda uma segunda linha de comparação entre criatividade e narcisismo na obra

de Kohut, a saber: a relação próxima entre os artistas e seus arredores. Essa constatação faz

muito sentido para a postura de Emad Burnat em Cinco Câmeras Quebradas. A começar

pela introdução do filme, onde ele faz questão de localizar pontualmente o lugar de onde

fala e o fato de que se apresenta primeiramente como um camponês que vive do cultivo de

oliveiras, e não um cineasta, nem um jornalista ou cinegrafista. “Nasci e vivi toda a minha

vida em Bil’in, nos territórios ocupados da Cisjordânia. Sou um ‘fallah’ – um camponês,

como toda a minha família. O lugar nos consome”, diz o narrador/autor/protagonista.

Segundo Kohut (1985), o indivíduo criativo é mais dependente do – intimamente

ligado ao – seu meio do que o não-criativo. A metáfora à qual o autor recorre é a da

criatividade como inspiração, referência tanto ao ímpeto criador quanto ao ar ao nosso

redor, o movimento de trazer esse ar para os pulmões. Trata-se de pessoas que, desde a mais

remota infância, possuem sensibilidade dos sentidos não apenas para com a própria mãe,

considerada como o objeto primário, mas também a outros objetos periféricos. Citando

termos de P. Greenacre, Kohut fala que os arredores significam para o artista “substitutos

coletivos” ou “um caso amoroso com o mundo” e não dizem respeito ao narcisismo, mas ao

amor de objeto, “apesar de que coletivo” (GREENACRE apud KOHUT, 1985, p. 113).

Em Cinco Câmeras Quebradas, essa ideia de coletividade e de importância das

gerações na família chega até a se contrapor, em certo sentido, a concepção sociológica do

narcisismo no cerne da sociedade individualista pós-1968, conforme resumida por Lasch

(1983) e Lipovetsky (1983), e que aplica a definição clínica freudiana sobre o

comportamento narcisista à chamada “era do vazio”. “Estamos rapidamente perdendo o

sentido de continuidade histórica, o senso de pertencermos a uma sucessão de gerações que

se originaram no passado e que se prolongarão no futuro” (LASCH, 1983, p. 25). Para

Lipovestky (1983, p. 49), semelhantemente, “o sentido histórico sofre a mesma deserção

que os valores e as instituições sociais”. Ora, a experiência de Jafar Panahi em Isto Não É

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Um Filme, apesar de ser mais individual e solitária que a de Burnat, também não poderia

ser considerada alienada com relação ao sentido histórico.

De fato, para Lipovetsky (1983, p. 50), o narcisismo da sociedade contemporânea

não é exatamente uma forma de alienação, ele “surge como uma forma inédita de apatia

feita de sensibilização epidérmica ao mundo e simultaneamente de profunda indiferença em

relação a ele” – uma definição que parece combinar mais com o público espectador desses

documentários do que com as obras em si.

O contexto político aí talvez seja a diferença fundamental. Christopher Lasch (1983)

e Gilles Lipovetsky (1983) estavam se referindo basicamente à sociedade norte-americana a

partir do fim dos anos 60 e começo dos anos 70, inserida num contexto ocidental e

democrático específico. Falar do conflito Palestina/Israel e do regime governamental

iraniano no começo do século XXI em sociedades não ocidentais se mostra mais complexo,

pela ausência dos mesmos códigos, e porque a noção de sentido histórico está mais

arraigada. De qualquer modo, há paralelismos pontuais entre esses dois mundos, afinal, é

impossível deixar de notar as semelhanças na tendência ao conflito: no que diz respeito ao

narcisismo da sociedade individualista, “quanto mais os indivíduos se libertam de códigos e

costumes em busca de uma verdade pessoal, mais as suas relações se tornam ‘fatricidas’ e

associais” (LIPOVETSKY, 1983, p. 61). O autor dirá que até mesmo a fraternidade da

partilha implica na exclusão de outrem. Além disso, o caráter narcísico, acompanhado por

“relações humanas cada vez mais bárbaras e conflituais, [...] se vê repescado pelas redes do

‘amor próprio’ e do desejo de reconhecimento já identificados por Hobbes, Rousseau e

Hegel como responsáveis pelo estado de guerra” (LIPOVETSKY, 1983, p. 65).

A política, na sociedade narcisista, está atrelada à noção de espetáculo, segundo

Lasch (1983), tendência que desafia a organização de uma oposição política. “Quando as

imagens do poder encobrem a realidade, os que não têm poder se veem lutando contra

fantasmas” (LASCH, 1983, p. 112). Por isso, é possível tecermos aproximações com Cinco

Câmeras Quebradas e Isto Não É Um Filme. No documentário iraniano, a justiça e o

regime político do Irã representam a metáfora dos fantasmas para Panahi, entidades sem

rosto e sem nome, as quais o cineasta espera que aceitem sua apelação e desconsiderem sua

pena, apesar de saber que isso é improvável. E, no primeiro, pois, de certa forma, a

resistência palestina atual guarda muitas semelhanças, apesar do hiato temporal, com a

esquerda pós-1968 descrita por Lasch, recorrendo à política de confrontação e da auto-

dramatização de maneira muito semelhante e com resultados igualmente frustrantes:

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Exteriorizar fantasias, contudo, não acaba com repressões; meramente

dramatiza os limites permissíveis do comportamente anti-social. Nos anos

sessenta e início dos setenta, os radicais que transgrediram estes limites,

na ilusão de que estavam fomentando a insurreição ou 'fazendo terapia da

gestalt com a nação', segundo as palavras de Rubin, quase sempre

pagaram um alto preço: bordoadas, encarceramento, aborrecimentos com

a polícia, ou mesmo a morte. (LASCH, 1983, P. 114)

A técnica de teatralizar e radicalizar a reação e a resistência também encontra

confirmação nas teorias de Goffman (2011) sobre a representação do eu em sociedade, no

que ele denominou realização dramática. “Em presença de outros, o indivíduo geralmente

inclui em sua atividade sinais que acentuam e configuram de modo impressionante fatos

confirmatórios que, sem isso, poderiam permanecer despercebidos ou obscuros”

(GOFFMAN, 2011, p. 36), o que, em última instância, é uma característica natural do ser

humano como ator social e, no caso dos palestinos, poderia ser enxergado como formas de

agir de modo a chamar a atenção da atenção pública para a violação de direitos civis e

humanos em seu território. No caso de Panahi, o grande interesse em realizar o roteiro

proibido a qualquer custo, em mostrar o que há por trás das câmeras em seus antigos

longas, em “arrancar o gesso” da ficção, como já comentamos, acentua essa realização

dramatizada, para virar os holofotes ao ato de realizar um filme mesmo sob proibição.

Referências bibliográficas

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