157
Teresa Caldas Camargo O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA ANÁLISE COMPREENSIVA Escola de Enfermagem Anna Nery Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro - novembro de 1997

O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

Teresa Caldas Camargo

O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM

MOLDURA: UMA ANÁLISE COMPREENSIVA

Escola de Enfermagem Anna Nery

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro - novembro de 1997

Page 2: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Escola de Enfermagem Anna Nery

O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM

MOLDURA: UMA ANÁLISE COMPREENSIVA

Dissertação apresentada à Escola de Enfermagem Anna Nery como requisito final do Curso de Mestrado em Enfermagem.

Teresa Caldas Camargo

Rio de Janeiro - novembro de 1997

Page 3: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

Ficha Catalográfica

Camargo, Teresa Caldas O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise compreensiva / Teresa Caldas Camargo - Rio de Janeiro, 1997. ix, 146 p. Orientador: Ivis Emília de Oliveira Souza Dissertação (mestrado) Universidade Federal do Rio de Janeiro - Escola de Enfermagem Anna Nery, 1997. 1.Enfermagem oncológica. 2.Quimioterapia 3.Saúde da mulher. I.Heidegger, Martin - Fenomenologia. II.Título CDD. 614. 546

Page 4: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

i Defesa da Dissertação

CAMARGO, Teresa Caldas. O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise compreensiva. Rio de Janeiro: UFRJ, Escola de Enfermagem Anna Nery, 1997. 146 p. mimeo. Dissertação de Mestrado em Enfermagem.

Banca Examinadora

Professora Doutora Ivis Emília de Oliveira Souza

Orientadora

Professora Doutora Telma Apparecida Donzelli

1a Examinadora

Professora Doutora Regina Lúcia Mendonça Lopes

2a Examinadora

Professora Doutora Benedita Maria Rêgo Deusdará Rodrigues

Suplente

Defendida a dissertação:

Conceito:

Em: 21/novembro/1997

Page 5: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

ii

Esta pesquisa foi desenvolvida com subsídio da Fundação Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, na modalidade de Bolsa de

Demanda Social nível Mestrado no período de março de 1996 à dezembro de 1997.

Page 6: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

iii

Orientadora

Professora Doutora

Ivis Emília de Oliveira Souza

Sua tranquilidade e segurança,

consideração, e amizade, o seu

sendo, me possibilitaram ser-

no-mundo- com, ser pre-sença.

Dedicatória

Page 7: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

iv

Aos meus queridos pais Sabino e Maria Thereza, que com o seu amor me possibilitaram ex-sistir e me ensinaram a com-preender.

Ao meu amado marido Reynaldo, por possibilitar a felicidade que traz a con-vivência autêntica e por ser com-panheiro nesta caminhada de aprendizado acerca do saber sobre oncologia e do saber das pessoas portadoras de câncer.

Aos meus filhos Antonio e Eduardo, grandes amores da minha vida, pela possibilidade da imensa alegria que é ser-mãe e de assim poder amá-los todos os dias e ser-no-mundo-com-eles.

Às depoentes Miriam, Zeni, Maria de Lurdes, Maria Auxiliadora, Nereida, Zilda, Edinéia, Maria Adelaide, Maria Teresa, Laurani, Lenice, Maria Lúcia, Jaciléia, Maria Antonia, Margarida, Sebastiana, Elenice, Jarcira e Margareth, por me mostrarem o valor, a importância e a possibilidade do encontro no cotidiano profissional de assistir ao meu semelhante.

Page 8: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

v

Agradecimentos

Ao Instituto Nacional de Câncer (Inca), pela oportunidade de enriquecimento profissional e pessoal através da liberação para a realização do curso de Mestrado em Enfermagem.

Ao dr. Oscar Jesuíno da Silva Freire, diretor do Hospital Luiza Gomes de Lemos (HLGL), pelo apoio, pelo incentivo e pela valorização deste estudo.

À Maria de Fátima Rodrigues chefe da Divisão de Enfermagem do Hospital Luiza Gomes de Lemos (HLGL), pela consideração, pela compreensão e pre-sença. Sem o apoio da qual não poderia realizar este estudo.

Às colegas de trabalho Eli, Laísa, Liliam, Maria Cristina e Wilza, pelo incentivo, pelo apoio e pela com-preensão, principalmente durante o período em que muitas vezes ficaram sobrecarregadas devido aos meus afastamentos. E por com-preenderem a possibilidade de uma con-vivência preocupada com as nossas clientes.

À dona Lair e Gilma, da biblioteca do Hospital Luiza Gomes de Lemos, pela atenção e presteza com que sempre atenderam as minhas solicitações.

À professora doutora Ieda de Alencar Barreira, pre-sença que mediada pelo carinho, pela confiança, pelo incentivo, pelo apoio e pela disponibilidade colaborou na construção deste estudo.

À professora doutora Benedita Maria Rêgo Deusdará Rodrigues, por acompanhar e colaborar com o desenvolvimento deste estudo. Pre-sença na minha trajetória pessoal e profissional no Curso de Mestrado.

Às colegas do curso de Pós-Graduação Ana Lúcia, Aldira Samantha, Sonia Mara, Marilda, Elisabeth e Lia, pela alegria com que com-partilharam comigo esta caminhada na descoberta da Fenomenologia.

À Sonia da Secretaria Acadêmica de Pós-Graduação e a Cristina do Serviço de Apoio à Pesquisa da Escola de Enfermagem Anna Nery, pela colaboração, pelo sorriso e pela disponibilidade com que sempre me receberam.

Aos membros da Banca Examinadora, pre-senças incentivadoras desta iniciante no pensar heideggeriano, pelo aceite do convite para contribuir analisando este estudo.

Page 9: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

vi

SUMÁRIO

RESUMO VIII

ABSTRACT IX

CONSIDERAÇÕES INICIAIS 1

VIVENCIANDO A TEMÁTICA COMO PESSOA E PROFISSIONAL: 1 ESTABELECENDO A QUESTÃO EM ESTUDO: 6 CONTRIBUIÇÃO DO ESTUDO: 7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 9

O SABER EXISTENTE SOBRE O TEMA: 10

A DOENÇA E SEU DIAGNÓSTICO: 10 O TRATAMENTO E SUAS CONSEQÜÊNCIAS: 13 O PROBLEMA E SUAS DIFERENTES ÓTICAS: 16 A ASSISTÊNCIA DE ENFERMAGEM: 21 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 27

REFERENCIAL FILOSÓFICO 30

CAMINHANDO PARA A FENOMENOLOGIA: 30 A FENOMENOLOGIA: 32 MARTIN HEIDEGGER E O MÉTODO FENOMENOLÓGICO: 34 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 39

ABORDAGEM METODOLÓGICA: 40

O CENÁRIO DO ESTUDO: 40 A TRAJETÓRIA DO ESTUDO: 44 APROXIMAÇÃO AO SER MULHER EM TRATAMENTO QUIMIOTERÁP ICO: 45 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 48

ANÁLISE COMPREENSIVA 49

CONSTRUINDO AS UNIDADES DE SIGNIFICAÇÃO: 49 UNIDADES DE SIGNIFICAÇÃO: 49 A COMPREENSÃO VAGA E MEDIANA: 69 A INTERPRETAÇÃO COMPREENSIVA: 73 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 90

Page 10: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

vii

CONSIDERAÇÕES FINAIS 91

BIBLIOGRAFIA: 98

ANEXO: 102

Page 11: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

viii CAMARGO, Teresa Caldas. O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise compreensiva. Rio de Janeiro. UFRJ, Escola de Enfermagem Anna Nery. 146 p. mimeo. Dissertação de Mestrado em Enfermagem.

RESUMO

Este estudo tem como objeto o ex-sistir feminino diante da perda do cabelo, conseqüente ao tratamento quimioterápico para o câncer de mama. Teve como motivação as inquietações surgidas a partir de minhas experiências e vivências profissionais, enquanto enfermeira da Central de Quimioterapia do Hospital Luiza Gomes de Lemos, unidade hospitalar III do Instituto Nacional de Câncer, onde no contato diário com as mulheres submetidas a quimioterapia antineoplásica, pude constatar mudanças em seus comportamentos diante do efeito colateral, a alopécia. O objetivo do estudo foi compreender o ex-sistir feminino diante da perda do seu cabelo e desvelar o sentido que funda o comportamento assumido pela mulher face a este efeito colateral do tratamento. O método utilizado foi a Fenomenologia, sendo o suporte para a análise compreensiva dos depoimentos o pensamento do filósofo Martin Heidegger expresso em Ser e Tempo. A apreensão dos significados atribuídos pelas depoentes à questão da perda do cabelo e a hermenêutica heideggeriana, mostrou a mulher como ser-aí-com exposta ao falatório. Como pre-sença temerosa que diante da ameaça - quimioterapia - enfrenta as variações do temor: o pavor da perda do seu cabelo, o horror de ver-se sem o seu cabelo e o terror de ser vista pelos outros sem o seu cabelo. A análise compreensiva permitiu compreender que na cotidianidade, a mulher caminha da inautenticidade para a autenticidade, passando pela dimensão da angústia, e assim realizando um encontro consigo mesma e seu poder ser. Nesta compreensão, pude refletir sobre a assistência de enfermagem prestada a mulher e perceber como ela tem privilegiado os aspectos factuais e funcionais do dia a dia em detrimento dos existenciais, não valorizando portanto a dimensão humana e a singularidade do assistir ao nosso semelhante. Pontuei ainda a necessidade da enfermagem de buscar o seu rumo enquanto profissão de gente que cuida do seu semelhante. Considero este estudo como um movimento não acabado porque permite que se desvelem outras facetas deste fenômeno que tanto mobiliza o ser-aí, bem como um aprofundamento na disposição privilegiada da angústia.

Page 12: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

ix CAMARGO, Teresa Caldas. A female “ex-sistere” on an unframed face: a comprehensive analysis. Rio de Janeiro. UFRJ, Escola de Enfermagem Anna Nery. 146 p. mimeo. Dissertação de Mestrado em Enfermagem.

ABSTRACT

The object of this study is the female being, who copes with hair loss as a result of chemotherapic treatment for breast cancer. The motivation for the study arose from my professional uneasinesses as a nurse in the chemotherapic center at Luiza Gomes de Lemos Hospital of the National Cancer Institute. During my daily professional practice close to women submitted to antineoplastic chemotherapy, I noticed changes in their behavior as a result of hair loss, one of the side effects of the treatment. Thus, the purpose of this study was to comprehend a female being coping with hair loss and the several meanings which determine their behavior when facing this side effect. Phenomenological approach was selected as the methodological reference. Martin Heidegger’s philosophical thinking expressed in Being and Time supported me in the comprehensive analysis of the testimonies collected. Women- being who had lost her hair gave a particular significance for their experience, and according to Heidegger’s thinking it seemed that woman-being was exposed to people’s remarks. And also, the woman-being, a fearful one, coped with the chemotherapy effect and passed through different variations of fear such as pavid of hair loss, horror to see herself without her hair and terror to be seen without it by others. The comprehensive analysis allowed me to understand that woman moved daily from untruth to truth, passing through anguish dimension and finally met herself in her original be-ing and possibility of being. In this understanding I could reflect about the nursing assistance to women. Actually, I noticed that the factual and functional aspects of daily care have been privileged putting the existencial values aside, and doing this, unworthing the human dimension and singularity of its fellows. Furthermore, I pointed out the necessity that nursing has to find out its way like a profession where people assist to its fellowman. I do not consider this study finished, but it allows to un-veil other aspects of this phenomenon, that overcomes the woman-being. Besides that, it allows go deep into a thorough study of this privileged dimension of anguish.

Page 13: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

VIVENCIANDO A TEMÁTICA COMO PESSOA E PROFISSIONAL:

Este estudo foi se constituindo a partir de minha experiência como enfermeira na

Central de Quimioterapia do Hospital Luiza Gomes de Lemos1, no Rio de Janeiro. No

entanto, há muito fazem parte da minha vida, momentos nos quais o câncer de mama e

a quimioterapia ganham relevo específico. Lembro-me de uma tia que foi acometida pela

doença e, por ser o câncer uma doença terrível, minha mãe e minha avó sempre

comentavam aos cochichos sobre a infelicidade de minha tia com a doença e a

mastectomia.

Anos mais tarde, já estudante de enfermagem, soube de uma jovem conhecida que

acometida pela doença, escondeu-se de todos. Ao visitá-la após a cirurgia, sua face era

de desespero, angústia, desesperança. A quimioterapia parece ter piorado sua situação

de isolamento já que além das náuseas e vômitos, atormentava-lhe a perda do cabelo.

Alguns anos após, uma amiga de infância, aos 23 anos, deparou-se com um

diagnóstico de câncer de mama. Essa amiga faleceu aos 24 anos e pouco contato tive

com ela durante a doença, já que sua família evitava o convívio social e acho que ela

também não o queria. Soube que, após a mastectomia, ela comparecia ao tratamento

quimioterápico sempre procurando alegrar as outras mulheres. Recordo-me do seu lindo

cabelo louro, comprido e liso, então reduzido a nada. Penso com tristeza em como esta

vivência transformou seu comportamento e suas perspectivas de vida.

Iniciei minha atividade profissional num hospital de ginecologia geral e de câncer

ginecológico e da mama. Lá, meus primeiros anos, foram dedicados a aprofundar meus

conhecimentos. Naquela época, o câncer de mama com freqüencia surgia mesclado a

1 Hospital Luiza Gomes de Lemos (HLGL), unidade hospitalar III, do Instituto Nacional de Câncer (Inca).

Page 14: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

2 outras patologias. Hoje, ao contrário, este hospital atende principalmente às mulheres

com suspeita ou diagnóstico de câncer de mama. Após cinco anos de trabalho nas

enfermarias, comecei um treinamento efetivo na Central de Quimioterapia.

Inicialmente, me vi muito envolvida com os aspectos da manipulação das drogas:

sua nomenclatura, diluição, administração, problemas de punção venosa, efeitos

colaterais e cuidados pessoais preventivos. Após dominar essas técnicas e

procedimentos passei a perceber mais intensamente os sofrimentos dessas mulheres:

seu medo, desespero e angústias.

É normal, após a consulta médica, recebê-las e esclarecer eventuais dúvidas que,

diante da figura do médico, foram esquecidas, ou conscientemente deixadas de lado, por

vergonha ou medo. Esta inibição talvez tenha sua origem no fato de ser o médico

comumente reconhecido pelo doente como o detentor do saber e da cura. Assim diante

dele a mulher doente pode assumir uma postura de inferioridade, por achar que nada

sabe ou entende esquecendo-se do seu direito às informações relativas à sua saúde e

da intransferível responsabilidade do médico com ela.

Estando mais segura senti vontade de conversar com elas, especialmente durante a

administração dos medicamentos. De tudo ouvi: casamentos e lares desfeitos após o

diagnóstico da doença e durante o tratamento; problemas com a família; filhos em

pânico; vergonha da doença; e a perda do cabelo como o pior de tudo, o estigma

revelador de tantas perdas.

Assim, na assistência diária às mulheres submetidas à quimioterapia, pude captar,

através de diálogo informal e observação do estado geral delas, as transformações

físicas, psíquicas e sociais que ocorreram durante o tratamento.

A quimioterapia parece expor definitivamente a mulher diante de sua doença, tanto

para si mesma, como para a sociedade. O impacto sobre a pessoa parece ser, muitas

vezes, maior do que o causado pelo conhecimento da doença e a experiência da

Page 15: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

3 mutilação através da mastectomia. Esta exposição parece ser determinada pelos efeitos

colaterais da quimioterapia, sendo que os mais aparentes são a náusea, o vômito e a

perda de cabelo. No entanto, apesar dos avanços no desenvolvimento de medicamentos

antieméticos, não se conseguiu resultado equivalente para prevenir-se a perda do

cabelo. Até agora este efeito só pode ser amenizado pelo recurso a expedientes,

geralmente pouco estéticos, de recobrir a cabeça exposta.

A assistência de enfermagem prestada na Central de Quimioterapia do HLGL, além

da diluição e administração de drogas, passa também pelo contato diário com estas

mulheres, seus familiares e suas vidas.

A assistência ali prestada pretende ser de uma natureza holística, no entanto, a

correria do dia a dia, a pressão do tempo que deve ser dedicado à atividade diária, o

grande número de mulheres agendadas para cada dia, impedem muitas vezes que a

equipe olhe cada mulher como ser singular e único. Isto confere uma característica de

massificação a um atendimento que pretende ser individualizado.

Não obstante, com o passar dos meses, a equipe de enfermagem acaba por fazer

parte do universo social dessas mulheres e seus familiares. É comum o diálogo sobre

como ela está se saindo em casa após cada dia de tratamento, como sua vida diária foi

alterada, o que sentiu ao ver-se sem o cabelo, suas expectativas e perspectivas quanto

ao tratamento.

Nesse processo, surgem as empatias e existem aquelas enfermeiras e/ou auxiliares

de enfermagem que são as preferidas por determinadas mulheres para realizar a punção

venosa, administrar a medicação e ouvir o que têm a dizer e perguntar... Há mulheres

que manifestam expressivamente sua gratidão ao ver certa enfermeira ou auxiliar de

enfermagem.

Page 16: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

4

Muitas levam presentes, escrevem agradecimentos ao final do tratamento e

continuam a visitar-nos, após a alta da quimioterapia, quando vêm ao hospital para as

consultas de rotina, e nos mostram como realmente o cabelo voltou a crescer.

Mas também surgem aversões. Outras mulheres referem náuseas apenas ao ver a

enfermeira ou auxiliar de enfermagem que lhe traz a lembrança dos efeitos

desagradáveis da quimioterapia e do mal estar que sentem nos dias subsequentes ao

tratamento.

Em minha vivência profissional como enfermeira do setor de quimioterapia, pude

observar que o impacto da perda do cabelo no comportamento da mulher parece talvez

ser pior do que a mutilação causada pela mastectomia, já que esta última pode ser

melhor ocultada no convívio social, mediante o uso de próteses externas e vestuário

adequado. Sempre me chamou muito a atenção a reação das mulheres quando

menciono a queda do cabelo. A expressão delas ao desviar o olhar, em geral cheio de

lágrimas, é tão tocante que se faz necessário algum tempo de silêncio, ao fim do qual,

normalmente ouço indagações como: “Meu cabelo vai cair todo mesmo?”; “Quando isto

vai acontecer?”; “Cairá todo de uma vez?”.

O cabelo e sua perda sempre me tocaram muito. Toda vez que oriento a mulher

sobre isto parece que naquele instante ela me “foge”, fica inalcançável, fechada em si

mesma, inatingível. E ali nesta fuga, algo me escapa, algo essencial desaparece, algo

essencial para que eu possa auxiliar a mulher, dando-lhe efetivamente minha

compreensão, ajuda, amparo.

O que percebo é que, a cada vez que menciono a perda do cabelo, a mulher parece

esquecer-se dos demais efeitos colaterais, que podem ocorrer durante o tratamento

quimioterápico, do mal estar que sente durante vários dias após a administração das

drogas. Sua atenção volta-se toda para o cabelo e sua desastrosa perda.

Page 17: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

5

Muitas mulheres, ao final do primeiro ciclo de quimioterapia, pedem-me para ver as

perucas que o setor possui para empréstimo. Parecem querer estar prevenidas, quando

seu cabelo começar a cair. Outras procuram-me já quando a queda do cabelo tornou-se

aparente e é sempre com certo constrangimento no olhar que me pedem para ver e

experimentar as perucas.

Foi assim que me decidi por este estudo. Fazer galhofa ao mostrar uma peruca,

dizer que o cabelo volta, que a saúde é mais importante, que cabelo cresce, que o

necessário é impedir o retorno ou a progressão da doença, nada disso parece amenizar

esta situação.

Com o passar dos meses, essas mulheres comparecem para o tratamento com

perucas, lenços, toucas ou turbantes e é sempre com tristeza que relatam sua

experiência e a forma como ocorreu a perda do cabelo. O que me parece é que, neste

período, elas começam a tentar uma adaptação à sua nova condição e muitas vezes

aparentam querer dizer: “Agora que o cabelo já caiu todo mesmo, só anseio pelo fim do

tratamento para vê-lo crescer e esquecer tudo isto”.

Percebo também no meu dia a dia que aquela mulher ali está para cumprir um

tratamento imposto a ela como meio de sobrevivência. Ela recebe muitas explicações

sobre a necessidade de seguir o tratamento para curar-se e evitar o retorno da tão

temida doença. Ela é orientada também sobre como agem os quimioterápicos e o porquê

dos efeitos colaterais que eles provocam. Mas, na realidade, a palavra não é dada à

mulher, ela está ali para ouvir, não para ser ouvida. Está ali para cumprir um tratamento

que lhe é oferecido, com as melhores intenções, pelos profissionais que a cercam por

todos os lados, sempre vigiando para que ela siga em frente, para que ela se sinta, ao

menos fisicamente, o melhor possível, para que ela não abandone o tratamento.

Esquecem-se, entretanto, de que cada uma destas mulheres é uma pessoa peculiar no

mundo, que pensa e que sente e que talvez desejasse partilhar este seu vivido.

Page 18: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

6

Ao assisti-las diáriamente, passei a compreender como é importante ouví-las, trocar

idéias e outras vezes apenas respeitar seu silêncio... Percebo ainda como o tratamento

quimioterápico é desgastante, sofrido e tenso, tanto para a mulher como para a equipe

de saúde. Que é necessário não apenas educar e orientar a mulher e sua família quanto

ao que esperar do tratamento, mas estar disposta a ouvir e abrir espaço para uma

compreensão autêntica de cada ser-mulher e sua família ali presentes.

ESTABELECENDO A QUESTÃO EM ESTUDO: A partir das mulheres portadoras de câncer de mama que perdem seu cabelo ao

submeterem-se à quimioterapia antineoplásica, passei a me questionar sobre a pessoa

que vivencia tal situação, na busca de desvelar o sentido fundante do seu ex-sistir.

O OBJETO DE ESTUDO:

A partir das inquietações surgidas de minhas experiências e vivências profissionais,

tenho como objeto de estudo o ex-sistir da mulher diante da perda do seu cabelo,

conseqüente ao tratamento quimioterápico para o câncer de mama.

OBJETIVO DO ESTUDO: Compreender o ex-sistir da mulher com diagnóstico de câncer de mama diante da

perda do seu cabelo conseqüente ao tratamento quimioterápico e portanto, desvelar o

sentido que funda o comportamento assumido por ela.

Page 19: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

7 QUESTÃO NORTEADORA DO ESTUDO: Como se sente a mulher que, ao submeter-se ao tratamento quimioterápico, ex-siste

sem o seu cabelo?

CONTRIBUIÇÃO DO ESTUDO:

Em minha experiência profissional, reconheço a importância do papel da enfermeira

como educadora da família, e no meu caso em que a clientela é feminina, da mulher em

tratamento quimioterápico. Ao ser informada sobre os objetivos do tratamento e dos

efeitos colaterais que podem advir, a mulher parece se sentir mais capaz de cuidar de si

mesma e menos aflita quando os efeitos colaterais ocorrem. Quanto a estar mais

preparada, fica uma interrogação, pois no caso da alopécia por exemplo, parece sempre

haver um choque e muita tristeza, apesar da informação anteriormente dada.

A orientação, que é realizada individualmente com cada mulher, também funciona

como um primeiro contato entre ela e a enfermeira, e traz ainda o conforto e a segurança

de ter a quem recorrer quando tem alguma dúvida ou problema relacionado ao

tratamento. Não é incomum, por exemplo, que muitas delas ou seus familiares,

telefonem para o setor de Quimioterapia, buscando mais informações, tirando dúvidas ou

pedindo auxílio para resolução de algum problema surgido.

A mulher e sua família parecem também sentirem-se apoiadas diante da atuação

da enfermeira como educadora e orientadora, pois compreendem que alguém sabe do

momento pelo qual estão passando, e têm a liberdade de procurá-la quando julgam

necessário.

O contato com outras mulheres que estão passando pela mesma experiência,

também é bem vindo no entender da mulher. Parece encontrar algum conforto por não

ser a única que enfrenta a quimioterapia, gosta de trocar experiência e falar de sua

Page 20: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

8 vivência com outras na mesma situação que ela. No meu local de trabalho, isto é

extremamente facilitado, pois as pacientes estão juntas aguardando a consulta ou na

sala de quimioterapia. É comum que se consolem umas às outras.

Vemos que há preocupação com a alopécia resultante do tratamento quimioterápico

para o câncer de mama, e com os danos causados à auto-imagem e auto-estima das

mulheres à ele submetidas.

Porém, não há até hoje resultado efetivo para a prevenção deste efeito colateral e

nem tampouco houve preocupação em buscar o significado desta vivência para a mulher.

Entretanto Freedman (1994 :334-341), julga crucial que se tenha um entendimento

profundo do significado da perda do cabelo, para se compreender porque tantas

mulheres, na cultura americana, consideram esta perda particularmente traumática e de

efeito iatrogênico no tratamento do câncer.

À mulher não foi dada voz para expressar o sentido deste vivido. Inclusive vários

pesquisadores parecem negar o problema da alopécia para a mulher que se submete ao

tratamento quimioterápico, ao relacioná-lo apenas como conseqüência da frustação

causada pelo aparecimento do câncer de mama. Ao contrário, este estudo busca o

significado atribuído pela vivência da alopécia pela mulher em tratamento quimioterápico.

Espera-se assim contribuir, através da compreensão, para um melhor atendimento

das suas necessidades, durante este período tão difícil do tratamento do câncer de

mama. Espera-se também que a melhor compreensão do fenômeno, provoque uma

reflexão sobre a atuação da equipe de enfermagem na especialidade, face ao impacto

deste efeito colateral no comportamento destas mulheres.

Page 21: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

9

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: FREEDMAN, Tovia G . - Social and cultural dimensions of hair loss in women treated for

breast cancer. Cancer Nursing, New York, Raven Press, ltd. 17 (4) :334-41, 1994.

Page 22: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

10

O SABER EXISTENTE SOBRE O TEMA:

A DOENÇA E SEU DIAGNÓSTICO:

O corpo humano é constituído por vários tipos de células e cada uma tem sua

própria estrutura e função. Quando as células chegam ao fim de sua vida ou sofrem

algum dano, novas células são formadas, já que o corpo tem a propriedade de reparar-

se. Este processo é chamado divisão celular e, em condições normais, as células se

dividem e crescem ordenadamente e de maneira controlada. No câncer, as células se

dividem descontroladamente, construindo uma massa de células não saudáveis

chamadas de tumor. Um tumor maligno invade e destrói os tecidos adjacentes podendo

espalhar-se para outras partes do corpo, originando as metástases (Mead Johnson,

1994).

O câncer de mama vem sendo considerado uma doença importante e crescente em

várias partes do mundo. As maiores taxas são vistas nos países industrializados da

Europa e da América do Norte, porém o aumento da incidência do câncer de mama na

série histórica é menor nas nações industrializadas do que nas nações em

desenvolvimento da Ásia e da América do Sul. Apesar da incidência do câncer de mama

ser crescente na maioria dos países, a mortalidade mantém-se estável ou em declínio

naqueles países que estão conseguindo detectá-lo mais precocemente, possibilitando

assim um tratamento mais eficiente (Silva, 1995 :80).

O câncer de mama pode ser detectado através de três procedimentos: auto-exame

das mamas, exame clínico realizado por um profissional habilitado e mamografia. Os dois

primeiros são de baixo custo e, por isso mesmo, de fácil implantação em qualquer

programa de saúde (Brasil,1996 :3). Entretanto, segundo Lopes (1996 :128-30), o fato de

um exame ser de baixo custo, indolor, rápido e gratuito, não implica na adesão a ele pela

Page 23: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

11 população alvo, já que a ação de prevenir não depende apenas da vontade do

profissional e da disponibilidade dos serviços. Importa, na instância existencial, a decisão

da cliente, a qual se dá a partir da compreensão e interpretação que tem da possibilidade

de prevenir a doença e ser responsável por cuidar da própria saúde.

Na Europa e nos Estados Unidos, o câncer de mama é a forma mais comum no

sexo feminino. Mant e col. (1991 :236) dizem que o Japão, apesar da forte

industrialização, apresenta baixo risco para esta patologia, porém suas mulheres ao

emigrarem para países com alta incidência da doença, aumentam o risco de desenvolver

este tipo de câncer.

O câncer de mama tem, como fatores de risco, a menarca precoce, menopausa

tardia, primeira gestação completa com idade acima de 30 anos, nuliparidade, doença

mamária benigna, doença tireoideana, exposição prévia à radiação ionizante, história

familiar da doença, câncer prévio de mama, dieta rica em gorduras e proteínas animais,

biópsia prévia de mama (Brasil,1995 :33-34).

O risco para o câncer de mama também é maior nas mulheres que vivem nas áreas

urbanas do que entre as que vivem na zona rural. Os fatores ambientais têm papel

preponderante sobre os raciais ou genéticos e as mulheres de situação sócio-econômica

mais elevada têm maior probabilidade de serem acometidas por essa doença. Ao

contrário do que comumente se pensa a amamentação não diminui o risco. Antes da

menopausa os fatores de risco estão principalmente relacionados à atividade ovariana,

tendo a ooforectomia bilateral produzido redução da probabilidade de câncer de mama,

especialmente se o procedimento for realizado antes dos 40 anos (Silva,1995 :80-82).

A expectativa de vida da população brasileira vem aumentando. Este é um indicador

sócio-econômico e de saúde positivo, mas ele demanda que o setor da saúde se prepare

para atender à população idosa a qual apresenta maior probabilidade de ter câncer

(Minayo1995, :12).

Page 24: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

12

O Ministério da Saúde e o Instituto Nacional de Câncer estão agora com uma

proposta para a implementação de um programa nacional para a prevenção e

diagnóstico precoce do câncer cérvico-uterino e de mama (Brasil, 1996 :12).

Este programa vem da necessidade de ser o câncer de mama o mais freqüente em

incidência e mortalidade no sexo feminino. A faixa etária de maior concentração está

entre 45 e 50 anos, representando aproximadamente 20% de todos os casos

diagnosticados de câncer e 15% em média, das mortes por câncer em mulheres ou seja,

dos 43.050 óbitos por neoplasia ocorridos em 1996 em mulheres, 6450 serão por câncer

de mama. As regiões sul e sudeste do Brasil apresentam incidência do câncer de mama

comparáveis a dos países desenvolvidos que possuem taxas maiores. Porto Alegre

apresenta os níveis mais elevados do país (66,12%) segundo dados do Registro de

Câncer de Base Populacional local de 1991 (Brasil 1996, :3). Numa estimativa para o ano

de 1997, o número de óbitos esperados por cancer em mulheres computa 45.165 casos,

sendo que destes 6.780 serão por câncer de mama, o que mostra um crescimento em

relação a estimativa para 1996 ( Brasil 1997, :8 e 9).

Quanto à mortalidade, o câncer de mama juntamente com o câncer de colo do útero,

são responsáveis pelo maior percentual dos óbitos por câncer ocorridos em mulheres em

todas as regiões do Brasil. Segundo estatísticas de mortalidade do Ministério da Saúde

no ano de 1989, nas regiões sul, sudeste e centro-oeste, o câncer de mama apresentou

a maior frequência relativa (12%). Inclusive, os óbitos por câncer ocorridos nas mulheres

brasileiras nas faixas etárias de 30-39 anos e 40-49 anos, de 1981 a 1989, 20% em

média tiveram como diagnóstico o câncer de mama (Brasil, 1996 :5-7).

Page 25: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

13

O TRATAMENTO E SUAS CONSEQÜÊNCIAS:

Os recursos para o tratamento do câncer de mama incluem cirurgia, radioterapia,

quimioterapia e hormonioterapia. O tratamento indicado depende do tipo de câncer, do

tamanho do tumor, do grau histológico e de disseminação da doença (estadiamento), da

dosagem de receptores hormonais, da idade, do status menstrual e do estado geral da

paciente.

A quimioterapia usualmente é combinada à cirurgia e/ou à radioterapia. As drogas

específicas atuam sobre as células cancerosas, destruindo-as ou impedindo sua

reprodução. A quimioterapia é um tratamento sistêmico, porque as drogas percorrem

todo o sistema circulatório. E pode ser realizada mais de uma vez ao longo do processo

de acompanhamento clínico da paciente, que após o diagnóstico e tratamento do câncer

de mama, perdura por toda sua vida. Assim a quimioterapia pode ser recomendada por

mais de uma vez, como por exemplo, quando há o retorno da doença, mesmo mediante

o tratamento quimioterápico realizado anteriormente.

Estas drogas, destroem os tipos de células que apresentam a característica de

multiplicação rápida, como as células do câncer, mas também células normais como as

do cabelo, da medula óssea, das mucosas, e as gastrointestinais. Apesar disto, a

quimioterapia pode dar à pessoa doente a oportunidade de curar-se ou, pelo menos,

afastar a ameaça mais imediata à sua vida. Devido a estes efeitos colaterais, a

quimioterapia é, em geral, realizada em ciclos com períodos de repouso (usualmente de

21 em 21dias), para permitir que as células normais se recuperem.

A doxorubicina2 é uma antraciclina, classificada como antibiótico antitumoral sendo

um agente citotóxico muito utilizado no tratamento do câncer de mama. Esta droga, de

coloração vermelha provoca muitos efeitos colaterais, e é conhecida pelas mulheres

Page 26: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

14 antes mesmo de iniciado o tratamento quimioterápico. Elas comumente referem-se a

esta droga como a vermelha ou como a mais forte , aquela que, por sua potência, causa

mais náuseas e vômitos e que as fazem perder o cabelo.

No HLGL, um dos protocolos de tratamento quimioterápico para o câncer de mama,

inclui a doxorubina (ou a droga análoga epirubicina) sozinha ou combinada a outros

agentes citotóxicos. O tratamento quimioterápico pode ser utilizado como adjuvante à

cirurgia3, que visa a erradicação de micro metástases; neoadjuvante ou citorredutor, com

a finalidade de reduzir o tumor para que o tratamento cirúrgico possa vir a ser realizado;

ou em casos de câncer de mama metastático, como tratamento paliativo, visando à

diminuição de sintomas como dor, edema etc., bem como melhora do estado geral, da

qualidade de vida e o possível aumento de sobrevida.

A doxorubicina provoca a atrofia total do bulbo capilar. Os fios do cabelo, ao serem

lavados ou escovados, se quebram na base e a droga não permite que eles se

regenerem, o que só ocorrerá um a dois meses após o fim do tratamento. A alopécia

severa resultante pode provocar transtornos emocionais para o paciente. Além disso, a

alopécia pode causar ainda mudanças negativas à imagem corporal, diminuição da

atividade social e também alterar as relações interpessoais (Cline 1984 :221).

Assim, o benefício desta droga, pode ser ofuscado por seu desastroso efeito

psicológico e social, podendo levar a paciente a recusar o tratamento ou não realizá-lo

adequadamente (Anderson 1981 :423-24).

Cline (1984 :225-227), fazendo uma revisão da literatura sobre a prevenção da

alopécia durante o tratamento quimioterápico, afirma que, embora os estudos iniciais

sejam até promissores, suas limitações devem ser consideradas antes de utilizados na

prática de enfermagem, que tem a responsabilidade de ser prudente. Considera que,

2 Nomes comerciais Adriblastina ou Adriamicina. 3 Mastectomia, Segmentectomia ou Quadrantectomia da mama com linfadenectomia axilar, onde quatro ou mais linfonodos estão comprometidos pelo câncer segundo, o laudo histopatológico.

Page 27: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

15 apesar da prevenção da alopécia ser de grande importância na adaptação do paciente

ao tratamento, no momento, a utilização de métodos como o torniquete ou hipotermia

localizada no couro cabeludo, deve ser considerada com cautela, devido às limitações

dos estudos realizados até agora, que não apresentam resultados conclusivos.

A utilização de capacetes de gelo ou hipotermia localizada no couro cabeludo, com o

objetivo de prevenir a circulação da droga no bulbo capilar através de uma

vasoconstricção temporária, foi abandonada nos Estados Unidos, em 1990, pois a Food

and Drug Administration (FDA) concluiu que não havia dados de pesquisa clínica

suficientes para manter o procedimento, colocando ainda como preocupante o potencial

para metástases do couro cabeludo, do crânio e possivelmente do cérebro, advindas do

uso destes artefatos, que ao provocarem vasoconstricção localizada, impedem o acesso

da droga (De Vita, 1993 :2394-95).

Dean e col. (1979 :1429), só encontraram eficácia na redução da alopécia em

pacientes que realizaram tratamento com a doxorubina na dose de 50mg, porém na

utilização de doses mais elevadas, o benefício mostrou-se bastante reduzido ou

inexistente. Tollenaar e col. (1994 :1448-53), também não encontraram eficiência do

método quando há combinação de drogas. Witman e col. (1981 :508), são de opinião

que o uso da hipotermia no couro cabeludo tem contraindicação no caso de tumores

sólidos (como o câncer de mama), já que apresenta possibilidade de disseminação para

o couro cabeludo.

De outro modo, o uso do Minoxidil, medicação que induz o crescimento do cabelo,

foi também tentado e, apesar de não tóxico, o produto não foi efetivo na prevenção da

alopécia induzida pela quimioterapia (Rodriguez,1994 :769-70).

Para Hussein (1993 :1446), parece que o tratamento e a prevenção da alopécia

induzida pela quimioterapia não tem tido progresso por não haver ainda um modelo

Page 28: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

16 animal em laboratório, com o qual possam ser desenvolvidos experimentos e pesquisas

que conduzam à um novo saber que ajude a solucionar o problema.

O PROBLEMA E SUAS DIFERENTES ÓTICAS:

Vários autores, entre eles Mackenna (1991 :547) e Lesley e col. (1991 :1086),

estudaram a reação dos pacientes em relação à quimioterapia. Em geral, eles associam

as drogas a seus efeitos colaterais e podem concluir que elas não ajudam ou curam,

porque eles sabem de outros pacientes nos quais a quimioterapia falhou. A ansiedade

advinda da doença, combinada com a reação ao tratamento, levam pacientes e suas

famílias a grandes níveis de tensão, que podem fazer com que o doente não cumpra o

tratamento planejado, por reconhecê-lo como perigoso e incapacitante. Os efeitos

colaterais da quimioterapia antineoplásica podem ser tão desastrosos para a paciente

que ela pode vir a recusar esse tratamento, lançando mão de tratamentos alternativos e

de eficácia duvidosa. No entanto (apesar dos efeitos colaterais), muitas pacientes

aceitam o tratamento, desde que esclarecidas de que este pode melhorar suas chances

de sobrevivência.

Em um estudo de Kiebert e col. (1990 :1040-41), 88% das pacientes que fizeram

tratamento quimioterápico pré-operatório para câncer de mama consideraram este

período como o mais difícil, devido à perda do cabelo e à necessidade de usar peruca.

Não obstante, esses autores afirmam que, apesar de a alopécia ser mencionada pelas

mulheres como um dos efeitos mais difíceis de suportar no tratamento objetivamente, ele

não parece ter influenciado negativamente a imagem corporal ou a qualidade de vida

destas mulheres. Para eles, este aspecto contraditório pode ser explicado por ser o

câncer de mama em geral, e o tipo de cirurgia realizado em particular, condições que

afetam psicologicamente a qualidade de vida e, podem aumentar a importância da

Page 29: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

17 alopécia, que além de geralmente ser associada à perda de parte da identidade feminina,

também pode ser o alvo deslocador para fora da raiva e do desespero causado pelo

inexplicável aparecimento do câncer de mama.

O significado simbólico do cabelo é tão grande, que a experiência de perdê-lo é

raramente percebida pela mulher como parte de um processo que visa a aumentar suas

chances de vida. A perda do cabelo é percebida pelas mulheres como mais traumática

do que a perda da mama. A perda da mama, podendo ser escondida ou disfarçada, não

torna evidente para todos a desfiguração da imagem corporal, podendo ser mantida na

esfera da vida privada; já a perda do cabelo, por ser inegável, faz com que a doença

invisível e silenciosa torne-se visível e pública . A mulher além de se ver confrontada

com a realidade de sua própria finitude, passa ainda a ser reconhecida pelos outros

como pessoa atingida por uma doença maligna. Assim a perda do cabelo afeta a

autopercepção, a auto-imagem e a auto-estima (Freedman,1994 :334-341).

Pickard-Holley (1995 :235-8), também diz que a perda do cabelo causa depressão,

perda da autoconfiança, e humilhação. Alerta ainda no sentido de que além da perda do

cabelo, pode ocorrer a perda de cílios e sombrancelhas, alterando drásticamente o

aspecto do rosto e a expressão facial, o que agrava o comprometimento de sua imagem

corporal, o que interfere em suas relações sociais e inclusive na expressão de sua

sexualidade.

Freedman (1994 :334-41), apresenta um estudo exploratório no qual um dos

objetivos é descobrir o significado da vivência do câncer de mama para a mulher. Os

relatos colhidos foram, segundo ela, mais do que histórias de câncer de mama. Trata-se

da vivência das mulheres, suas experiências no decorrer da doença. Vários temas

surgiram, entre os quais o da queda do cabelo, que aparece como simbolismo cultural

de crenças e valores, e é sobre ele, em especial, de que trata o artigo “Social and

Cultural Dimensions of Hair Loss in Women Treated for Breast Cancer”.

Page 30: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

18

Analisa, então ela, que o cabelo representa simbolicamente a identidade e o

conceito de si mesma. Muito se pode saber sobre uma pessoa através do estilo do

cabelo, diz ela. Informações como classe social, religião, pensamento político-social, etc.

É indicador de personalidade, sexualidade, atração, feminilidade. O conceito de

identidade é transmitido aos outros, inicialmente, através da aparência do cabelo. Em

certa medida, o que a pessoa pensa de si mesma estaria relacionado à avaliação do(s)

outro(s) a seu respeito. E o sentimento em relação ao seu cabelo, expressa comumente

como alguém julga que os outros sentir-se-ão em relação a si como pessoa.

A autora citada ainda comenta que, sendo o cabelo associado à identidade pessoal,

a perda do mesmo pode ser entendida, simbolicamente, como uma sensação

devastadora de diminuição e eventual perda de si própria. Isto faz surgir o terror

psicológico e conseqüente medo de que o ser, como é reconhecido, não mais exista. E,

mesmo na transição para o novo ser (perda e crescimento do cabelo) existe a incerteza

do conhecimento deste novo ser que surgirá. Em nossa cultura ocidental, como afirma a

autora, a cabeça raspada tem a finalidade de despersonalizar o indivíduo, como nos

casos dos recrutas e prisioneiros. Em muitas culturas e religiões, a cabeça raspada tem

o significado simbólico de desgraça, significando pecado ou erro. Este simbolismo pode

ser parte da razão pela qual as mulheres se sentem envergonhadas pela perda do

cabelo.

Na França, após a libertação de 1944 (2a guerra mundial), as mulheres que foram

amantes de alemães costumavam ser punidas, tendo suas cabeças raspadas e, então,

eram obrigadas a desfilar sua vergonha pelas vilas (Brownmiller,1984 :61).

Segundo Vieira (1977 :28-29), a auto-imagem é o modo como a pessoa percebe a si

própria, como ela pensa que é. Assim, se ela tem uma percepção favorável de si própria,

surgirá a auto-estima. Para construir sua auto-imagem e sua auto-estima, a pessoa

baseia-se nas reações dos outros (para procurar alguma identificação), na comparação

Page 31: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

19 de si mesmo com os outros (para se auto-avaliar comparando-se a um semelhante), no

efeito dos papéis desempenhados (para determinar sua auto-identidade como membro

de um grupo) e, na identificação com modelos (para ser igual a ele).

A mulher, ao longo de sua vida e nos contatos sociais que estabelece, enfrenta

questionamentos tais como: “Você é bonita ?”, “É desejável ?”. Sua beleza e

feminilidade estão relacionadas a diversos atributos, entre eles o cabelo que em nossa

cultura ocidental, tem sido também associado à sexualidade.

Em propagandas de revistas ou de televisão, podemos ver mulheres sempre com

lindos cabelos bem tratados, tingidos, esvoaçantes, sedosos ou penteados de acordo

com a moda, anunciando um novo xampu, uma nova tintura, um novo modismo, que irá

deixá-las mais femininas, mais desejáveis e as tornará bem sucedidas como

profissionais, mães e esposas. Quem não se lembra da moça do comercial de televisão

que ao anunciar um produto para embelezar o cabelo feminino pergunta: “Você se

lembra da minha voz ? Mas os meus cabelos... veja que diferença”.

Qual de nós, mulheres, já não passou pelo menos alguns minutos diante do espelho

para tornar o cabelo mais bonito, ou já não se viu a reclamar do fato de ele ser muito liso

ou crespo demais, ou até mesmo “ruim” ? Ou passou horas tentando alisá-lo ou cacheá-

lo ou ajustá-lo à moda mais atual, em casa ou no cabeleireiro? Os salões de beleza não

deixam de proliferar e como menciona Brownmiller (1984 :74-75), qualquer que seja o

evento público de que uma mulher participe, quer seja uma atividade profissional, ou um

funeral ou ainda apenas uma atividade de lazer, deve ser precedido de um ritual para

pentear o cabelo ou tê-lo penteado por um profissional.

Comentando ainda sobre o cabelo, uma mudança no modo de usá-lo, pode afetar a

expressão do rosto e alterar o humor. Um estilo de cabelo característico de determinado

grupo, pode afastá-lo de outro e significar, por exemplo, rebelião, devoção a Deus, etc. O

Page 32: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

20 cabelo já serviu para indicar o masculino e o feminino, o escravo e o dono, o jovem, o

velho, a virgem, a casada, a viúva (Brownmiller, 1984 :57).

Vemos, na história recente, a luta das primeiras feministas para trazerem o cabelo

curto o que, para muitos, significava a masculinização da mulher. Hoje, apesar dos

diversos estilos e comprimentos do cabelo feminino, permanece nas mulheres e na

nossa cultura o desejo de mantê-lo como “cartão de visitas”. Como menciona

Brownmiller(1984 :76), o cabelo, apesar de trivial, é muito relevante para a definição

feminina. Para fundamentar seu ponto de vista, cita Edith Wharton que em 1900 disse:

“Genialidade é de pouco uso para a mulher que não sabe como arrumar seu cabelo.”

No mundo ocidental, o corte do cabelo e seu estilo, está relacionado à convenção

social que distingue o feminino do masculino. Para Brownmiller (1984 :61), o apelo

erótico do cabelo foi reconhecido pela igreja católica, ao não permitir que as freiras o

deixassem exposto, assim como as esposas judias ortodoxas que, ao terem que encobri-

lo, sofrem uma tentativa de omissão da sua sexualidade diante de estranhos.

A autora segue comentando que a mulher após um período difícil de sua vida,

sempre escolherá fazer algo diferente com o seu cabelo, já que uma nova forma de

apresentá-lo, dá a impressão de que ela deu a “volta por cima”, que este é o início de

uma nova fase a ser vivida..., que esta mudança no estilo do cabelo, tem mais do que

qualquer droga, poder de elevar seu humor. Isso porque mostra-a como uma pessoa que

está tratando de si mesma e de sua sobrevivência,saindo de uma crise com a moral

elevada (Brownmiller, 1984 :76).

Page 33: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

21

A ASSISTÊNCIA DE ENFERMAGEM:

A assistência de enfermagem, no que se refere ao câncer, passa por várias etapas.

Ela vai desde a participação em programas de prevenção e detecção precoce da doença,

até o assistir ao paciente em fase terminal.

Segundo Ades e col.(1991 :589-90), durante a fase de tratamento do câncer a

atuação da enfermeira deve estar voltada para a educação do paciente e sua família,

sobre a doença, seu tratamento e cuidados durante o mesmo; prover suporte emocional

ao paciente e sua família; minimizar a morbidade relacionada ao tratamento para, assim,

melhorar a qualidade de vida; coordenar o cuidado durante o tratamento; e assistir ao

paciente através da administração dos medicamentos.

Para as autoras referidas, educar o paciente e sua família é parte integral do

tratamento do câncer e reconhecidamente um componente da prática de enfermagem. A

enfermeira oncológica seria responsável por assegurar que o paciente e sua família

compreendam o suficiente sobre o tratamento e a doença e, para tanto, uma coleta de

dados junto ao paciente e familiares sobre o assunto possibilita o diagnóstico de

enfermagem e a elaboração de um plano de cuidados. O contato inicial da enfermeira

com o doente e aqueles responsáveis por ele é que estabelecem as bases para as

ações educativas, orientações e apoio.

Uma vez decidido o tipo de tratamento a ser seguido pelo paciente, a enfermeira

deve orientá-lo quanto ao mesmo, seus efeitos colaterais e ensinar medidas para

minimizar ou prevenir sua toxicidade. As orientações educativas podem se realizadas

pela enfermeira de forma verbal, individual ou em grupo, com o uso de material áudio-

visual ou escrito, que possibilitam ao paciente consultar às informações quando em

casa, para alívio de sintomas. O contato com outros pacientes com o mesmo problema

Page 34: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

22 deve ser facilitado e promovido, assim o paciente, ao conversar com outros, poderá

conseguir suporte emocional e educacional.

As autoras prosseguem ainda dizendo que o cuidado de enfermagem prestado ao

paciente em tratamento para o câncer envolve quatro componentes: suporte emocional

para facilitar o doente lidar com o diagnóstico e o tratamento; controle da toxicidade;

educação do paciente e sua família para a identificação e controle dos efeitos colaterais

esperados; e administração dos medicamentos citotóxicos.

Segundo estas autoras, a maioria dos efeitos colaterais ocorrem com o paciente em

casa. Assim estando orientados, eles podem ter um senso de participação ativa no seu

tratamento e controle sobre si mesmos. Continuam comentando que os pacientes devem

ser orientados também sobre quais podem ser controlados em casa, e quais devem ser

logo notificados à enfermeira e/ou ao médico. Dentre os efeitos colaterais comuns temos

a náusea, o vômito, a estomatite e a alopécia que podem ser controlados em casa. No

que se refere à alopécia a conscientização no início do tratamento e o suporte emocional

dado pela enfermeira podem minimizar o profundo efeito que ela exerce sobre a

percepção do paciente acerca dele mesmo.

Em uma pesquisa realizada com pacientes em quimioterapia, notou-se que as

enfermeiras tendem a se acostumar com a calvície dos pacientes porém, eles

necessariamente não se habituam a se verem calvos, mesmo que não usem qualquer

disfarce (Pickard-Holey, 1995 :237).

Afirma ainda a referida autora, que a intervenção da enfermagem na questão

deveria ser direcionada à ajuda ao paciente e sua família na adaptação, e meios de lidar

com a alopécia. A educação do paciente, a identificação de recursos disponíveis e ouvir

como apoio o que o paciente tem a dizer, são consideradas por ela medidas de

intervenção terapêuticas.

Page 35: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

23

Ehmann e col. (1991 :769-73) relatam uma pesquisa com enfermeiras e pacientes

acerca das necessidades da pessoa portadora de câncer que vivencia a alopécia. Os

resultados mostram ser necessário educar pacientes e enfermeiras sobre os recursos

que podem ser utilizados para disfarçar a falta do cabelo, e a necessidade de determinar

as preocupações com o autocuidado (a ser desenvolvido pelos pacientes que perderam

o cabelo). Os pacientes também indicaram que gostariam de uma participação ativa das

enfermeiras ao auxiliá-los a lidar com a alopécia.

Os autores notaram que muitos pacientes estavam despreparados quando ocorreu a

queda do cabelo. Recomendam que a enfermagem, antes de iniciado o tratamento,

oriente a paciente a guardar uma mecha de cabelo juntamente com uma foto sua

recente. Deste modo um cabeleireiro poderá ajudar a encontrar a cor e o estilo de

penteado mais adequados à peruca a ser usada.

A American Cancer Society elaborou um livreto instrucional denominado “Perda do

Cabelo e Quimioterapia do Câncer” que é utilizado em alguns programas de ajuda aos

pacientes. A informação e divulgação junto aos profissionais de saúde, sobre produtos e

recursos que possam ser utilizados pelas pacientes para ajudá-las a lidar com a alopécia,

também foi proposta.

Para Keller e col. (1988 :1038-42), a assistência de enfermagem diante da alopécia,

deve ser direcionada às três funções primárias do cabelo: física, psicológica e social.

Físicamente, o cabelo dá proteção a várias partes do corpo pois participa dos

mecanismos termo-reguladores que conservam o calor. O paciente com alopécia num

clima frio portanto, deve ser encorajado a usar touca ou chapéu como proteção. Nos

climas quentes, o uso de filtro solar é recomendado. Segundo as autoras no entanto, os

pacientes raramente parecem se importar com esta função do cabelo, estando mais

preocupados com as alterações sociais e psicológicas provocadas pela perda abrupta e

indesejável do mesmo.

Page 36: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

24

Psicológica e socialmente, a perda do cabelo provoca stress no paciente e sua

família. Assim as autoras recomendam que, no início do tratamento, a enfermeira esteja

atenta e avalie a percepção do paciente e de sua família ao orientá-los quanto a este

efeito colateral da quimioterpia, pois muitos relatam, que não importa o quão bem

tenham sido orientados sobre a alopécia, pois quando ela ocorre, é emocionalmente

traumatizante. A enfermeira deve atuar como um agente facilitador, promovendo o

contato do paciente com outras pessoas que vivenciam ou vivenciaram a queda do

cabelo como decorrência da quimioterapia, pois a troca de experiências e infomações

pode diminuir a sensação de medo.

As autoras acrescentam ainda que uma súbita mudança na aparência dos pais,

pode assustar as crianças. Portanto os pais devem ser encorajados a informar aos filhos

sobre a provável ocorrência da alopécia, esclarecendo que ela é temporária e indolor.

Por fim, enfatizam, que a enfermeira deve examinar seus próprios sentimentos acerca da

alopécia para assim não influenciar com sua opinião pessoal o paciente ou seu familiar,

na hora de orientá-los. Utlizando a aproximação individual, a enfermeira pode ajudar o

paciente a lidar física e emocionalmente com a alopécia.

Para Ades e col. (1991 :591), as enfermeiras estão assumindo cada vez mais a

responsabilidade na administração dos agentes citotóxicos, e com isso, adquirem o

conhecimento e habilidades necessárias para a administração segura dos

medicamentos. Também estão familiarizadas com a reação às drogas e seus efeitos

sobre o organismo, podendo portanto avaliar e monitorar os pacientes, planejar

intervenções apropriadas e educar a família e o paciente para o autocuidado.

O treinamento efetivo da enfermeira que atua manuseando e administrando agentes

citotóxicos é fundamental para a assistência eficiente ao paciente, pois possibilita o

conhecimento dos riscos pessoais ao lidar com tais medicamentos e ainda, os riscos

ambientais e para o paciente, quando administrados sem os cuidados necessários.

Page 37: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

25

Assim é que a Oncology Nursing Society (1988 :2-13), preconiza o treinamento de

enfermeiras para lidar com as drogas através do conhecimento do preparo,

armazenamento, transporte e administração; dos cuidados com o paciente; dos cuidados

ao desprezar o material contaminado; do ambiente propício ao trabalho e das medidas

de segurança pessoal e ambiental; das ações de enfermagem na vigência de

estravazamento da droga durante sua administração ou quando ocorre exposição

acidental aos quimioterápicos antineoplásicos.

Para Bonassa (1996 :25-36), é fundamental que a enfermeira seja adequadamente

treinada para lidar com as drogas quimioterápicas, conhecendo como conservá-las,

manuseá-las, diluí-las. E deve também saber dos riscos ambientais e ocupacionais ao

lidar com elas.

A autora recomenda que haja no local destinado ao tratamento, um manual que

contenha as informações importantes sobre cada droga (por exemplo:nome

farmacológico e comercial, diluição, conservação, ação vesicante4, efeitos colaterais,

etc.).

Enfatiza, que o preparo das drogas para a administração, deve obedecer à técnica

estritamente asséptica, já que se destinam a pacientes imunodeprimidos, quer seja pela

própria doença quer seja como resultado do próprio tratamento.

Aponta ainda que nos EUA e em outros países desenvolvidos, a manipulação destas

drogas é realizada pelo farmacêutico, porém no Brasil, a sua diluição e administração é

feita pela enfermagem, que na maioria das vezes não tem conhecimento, nem técnico e

nem científico para realizar a tarefa, pondo em risco a segurança do paciente e a sua

própria. Comenta também que em nosso país não há regulamentação específica a

respeito do manuseio de medicamentos antineoplásicos, o que leva à sua manipulação

4 Droga vesicante é aquela que provoca irritação severa com formação de vesículas e destruição tecidual quando infiltrada fora do vaso sanguíneo.

Page 38: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

26

por pessoas despreparadas e também a falhas na apresentação comercial de

alguns quimioterápicos, que são fornecidos pelos laboratórios de maneira inadequada

para resguardar a segurança de quem o manipula. Além disso, ressalta que poucas

instituições tem capela de fluxo laminar, equipamento essencial para a diluição segura

das drogas, que preserva a integridade pessoal e evita a contaminação ambiental.

Page 39: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

27

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ADES, Teresa et al In: Principles of Oncology Nursing - American Cancer Society

Textbook of Clinical Oncology. American Cancer Society, 40, : 587-93, 1991. ANDERSON, J.E. et al. - Prevention of Doxorubicin-induced alopecia by scalp cooling in

patients with advanced breast cancer. British medical journal, 282, :423-24, fev.,1981. BONASSA, Edva M.A . - Enfermagem em Quimioterapia. São Paulo, Rio de Janeiro,

Belo Horizonte, editora Atheneu, :25-36, 1996. BRASIL / MINISTÉRIO DA SAÚDE, INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER - Programa

de Prevenção e Diagnóstico Precoce do Câncer Cérvico-Uterino e de Mama - Plano de implementação Nacional, :3-15, 1996.

BRASIL / MINISTÉRIO DA SAÚDE, INSTITUTO NACIONAL D E CÂNCER,

COORDENAÇÃO DE PROGRAMAS DE CONTROLE DE CÂNCER- PRO -ONCO - Estimativa da incidência e mortalidade por câncer no Brasil 1996, Pro- Onco, Rio de Janeiro, :3, 1996.

BRASIL / MINISTÉRIO DA SAÚDE, INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER,

COORDENAÇÃO DE PROGRAMAS DE CONTROLE DE CÂNCER- PRO -ONCO - Estimativa da incidência e mortalidade por câncer no Brasil 1996, Pro- Onco, Rio de Janeiro, :8 e 9, 1997.

BRASIL / MINISTÉRIO DA SAÚDE, INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER,

COORDENAÇÃO DE PROGRAMAS DE CONTROLE DE CÂNCER- PRO -ONCO - Ações de Enfermagem para o controle do Câncer. Rio de Janeiro, capítulo I, : 33-4, 1995.

BROWNMILLER, Susan. - Feminity. USA, Ballantines Books, :54-76,1984. CLINE, Brenda W. - Prevention of chemotherapy-induced alopecia: A review of the

literature. Cancer Nursing, :221-28, jun., 1984. DE VITA, Vincent T. Jr. et al - Principles and Practice of Oncology. Philadelphia, J.B.

Lippincott Company, 4th ed., : 2394-95, 1993. DEAN, Judith C. et al. - Prevention of Doxorubicin-induced hair loss with scalp

hypothermia. The New England Journal of Medicine, 301, (26) :1427-29, 1979. EHMANN, Johanna L. et al - Intervening with alopecia: Exploring an entrepreneurial role

for oncology nurses. Oncology Nursing Forum, 18, (4) :769-73, 1991. FREEDMAN, Tovia G . - Social and cultural dimensions of hair loss in women treated for

breast cancer. Cancer Nursing, New York, Raven Press, ltd. 17 (4) :334-41, 1994. HUSSEIN, A. M. - Chemotherapy-induced alopecia: new developments. Southern Medical

Journal, 86, (12) :1446, dez., 1993.

Page 40: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

28 KELLER, Joan F. et al - Nursing Issues and Management in Chemotherapy-Induced

Alopecia. Oncology Nursing Forum, 15, (5), :603-07, 1988. KIEBERT, Gwendoline M. et al - Effect of peri-operative chemotherapy on the quality of

life of patients with early breast cancer. European Journal of Cancer, 26 (10) :1038-42, 1990.

LESLEY, J. Fallowfield, et al - Psychosocial Problems Associated with the Diagnosis

and Treatment of Breast Cancer in The Breast:Comprehensive Management of Benign and Malignant Diseases.W. B. Saunders Company, 55, :1086, 1991.

LOPES, Regina Lúcia Mendonça - O Avesso da Prevenção do Câncer Cérvico-Uterino -

O Ex-sistir Feminino sob a Ótica da Enfermagem. Tese (Doutorado). Escola de Enfermagem Anna Nery. Universidade Federal do Rio de Janeiro, : 128-30, mar.,1996

MACKENNA, Robert J. - Supportive Care and Rehabilitation of Cancer Patient in

American Textbook of Clinical Oncology. Atlanta, The American Cancer Society, Inc., 37, : 547,1991.

MANT, David et al - Epidemiology of Breast Cancer in The Breast: Comprehensive

Management of Benign and Malignant Diseases. USA, W. B. Saunders Company, : 235-46, 1991.

MEAD JOHNSON ONCOLOGY PRODUCTS,BRISTOL LABORATORIES ONCOLOGY

PRODUCTS - Counseling Folder(Breasts).U.S.A.,1994. MINAYO, Maria Cecília S. - Os muitos Brasis: saúde e população na década de 80. São

Paulo-Rio de Janeiro, Hucitec - Abrasco, :12, 356p., 1995. ONCOLOGY NURSING SOCIETY - Cancer Chemotherapy Guidelines. USA, Bristol-

Myers, Bristol Laboratories, Mead Johnson, II, : 2-13,1988. PICKARD-HOLLEY, Sandra. - The Symptom Experience of Alopecia. Seminars in

Oncology Nursing,11, (4) :235-38, nov., 1995. RODRIGUEZ, R. et al - Minoxidil (Mx) as a prophylaxis of doxorubicin-induced alopecia.

Annals of Oncology, Neuquen, Argentina, Grupo Oncologico Cooperativo del Sur (G. O.C.S.), 5 (8) :769-70, out., 1994.

SILVA, Marcelo G. C. - Epidemiologia do Câncer: Auto-avaliação e Revisão. Ministério

da Saúde, Instituto Nacional de Câncer, Coordenação de Programas de Controle de Câncer, Pro-Onco, Instituto de Câncer do Ceará, 1995.

TOLLENAAR, R.A. et al - Scalp cooling has no place in the prevention of alopecia in

adjuvant chemotherapy for breast cancer. European Journal of Cancer, 30A (10) :1448-53,1994.

VIEIRA, Terezinha T. - Importância da Imagem Corporal na Prática de Enfermagem.

Tese de Livre Docência , Escola de Enfermagem Anna Nery,UFRJ, : 28-29, 1977.

Page 41: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

29 WITMAN, Gary et al - Misuse of scalp hypothermia. Cancer Treatment Reports, 65, (5-6),

: 507-8, maio / jun., 1981.

Page 42: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

30

REFERENCIAL FILOSÓFICO

CAMINHANDO PARA A FENOMENOLOGIA:

A partir de minha vivência e experiência profissional, e por entender a enfermagem

como uma assistência que se dá ao outro, numa relação entre pessoas, optei por

desenvolver este estudo na abordagem fenomenológica a qual, ao buscar a

compreensão do humano em seu cotidiano, poderá mediar a interação tão necessária ao

prestar o cuidado ao meu semelhante.

Para Capalbo (1994:70),

A tendência atual da enfermagem é voltar-se para pessoas conscientes e livres e não para pacientes anônimos. A fenomenologia busca compreender o homem em sua totalidade existencial complexa, enquanto homem que vive numa dada sociedade histórico-cultural situada, em seu todo de carne e espírito.

No meu caminhar em direção à Fenomenologia, importou o meu cotidiano

assistencial onde apareceram minhas inquietações iniciais e o olhar atentivo

questionador dos fatos técnico-científicos, que não davam conta de todas as questões

surgidas no meu dia-a-dia profissional.

Como enfermeira da Central de Quimioterapia, pude constatar o distanciamento

surgido entre mim e a cliente, que ali comparecia para um tratamento quimioterápico, em

conseqüência do qual perdia o cabelo. Apesar de tentar abordar a questão de forma

diferente e variada, ao final sempre me restava a impressão de não ter alcançado aquele

ser singular que estava diante de mim.

Page 43: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

31

Inclinei-me portanto influenciada pela Fenomenologia, a pensar sobre os aspectos

existenciais e não factuais daquela vivência, procurando buscar o sentido fundante do

comportamento assumido pela mulher diante da perda do cabelo.

Pude, mediada por esta abordagem metodológica, vislumbrar um meio de chegar à

compreensão do comportamento assumido por aquela mulher e assim, eliminar o vazio

trazido pelas formas explicativas da abordagem tradicional de pesquisa, que não dão

conta de questões como o significado da tristeza, da ansiedade, da vergonha, dentre

outros.

Como mencionam Lopes e col. (1995:49):

Questões significativas à existência humana, como o amor, a angústia, o medo, a liberdade e o próprio existir, situam-se no homem e merecem um olhar de natureza compreensiva, sendo o homem sujeito e não objeto...

Através da compreensão do mundo, do outro, da vida, neste relacionar-se podemos

compreender que o homem tem mais valor que as coisas, pois possuem uma vida

espiritual, e esta lhe dá a possibilidade de poder-ser, de coexistência.

A compreensão do outro, ao qual presto cuidado, foi portanto tomando forma no

meu cotidiano assistencial, levando-me a ser-no-mundo-com-a-mulher, que a seu modo

e com um sentido próprio, ex-siste sem o seu cabelo.

Martin Heidegger, filósofo do ser, foi o referencial de suporte escolhido para a

interpretação compreensiva deste estudo, porém esta não foi uma opção fácil!

Esta empreitada deu-se com dificuldades, já que a minha formação profissional

como enfermeira, não abordou a filosofia.Assim, com o intuito de aproximar-me do

método fenomenológico e do pensar heideggeriano, além de leituras exaustivas,

Page 44: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

32 participei de encontros com a professora Telma Apparecida Donzelli, onde discutíamos a

obra de Heidegger Ser e Tempo. Também inscreví-me em uma disciplina eletiva no

Instituto de Filosofia da UFRJ, onde o assunto a ser discutido e analisado foi o pensar

heideggeriano relacionado à afetividade, tendo como base a obra anteriormente referida.

A FENOMENOLOGIA: A fenomenologia nasceu como método alternativo de pesquisa em Ciências

Humanas, opondo-se ao positivismo. Ela parte do princípio de que os seres humanos

não são objetos e, portanto, suas atitudes não podem ser analisadas como simples

reações, como fatos.

A questão ontológica do ser do homem é recolocada em evidência pela

Fenomenologia como direção de sua investigação, já que ela vem examinar a estrutura

da consciência. Desta forma, ela vai influenciar as Ciências Humanas, as quais já não

encontravam respostas na aplicação metodológica das Ciências da Natureza, para a

compreensão do homem em sua totalidade existencial (Capalbo, 1994 :70).

A Fenomenologia, como comenta Capalbo (1994 :194),

...define-se como ciência descritiva, rigorosa, concreta, que mostra e explicita o ser nele mesmo, que se preocupa com a essência do vivido, em suma, ela se apresenta como ciência eidética material pois os vividos intencionais dão forma aos conteúdos de significação.

Portanto o reino da fenomenologia é segundo Capalbo (1994 :193), não somente

descritivo “mas também o da significação”. E é nesta significação que ocorre a unidade

fenomenológica que dá sentido ao objeto conhecido.

Page 45: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

33

Edmund Husserl, alemão, nascido em 1859, é considerado o pai da fenomenologia e

propõe uma ciência de rigor que irá preocupar-se com a essência do fenômeno.

Husserl pretendia assim não apenas renovar a prática das Ciências Humanas, mas

também fundar seu sentido ( Dartigues, 1992 :29).

Husserl parte do princípio de que é preciso que se volte às coisas mesmas, e desta

forma, se apreenda a essência do fenômeno. Fenômeno do grego “phainomenon,

significa discurso esclarecedor a respeito daquilo que se mostra para o sujeito

interrogador, do verbo “phainesthai” como mostrar-se, desvelar-se. Fenômeno é, então,

tudo o que se mostra, se manifesta, se desvela ao sujeito que o interroga (Martins e col.,

mimeo, sd. :4).

A essência, que para Husserl é a forma objetiva como significações vivenciadas pelo

homem, se obtém através da redução ao fenômeno, ou seja, chegando-se a sua pureza,

retirando-se tudo o que o fenômeno tem de não essencial ao colocar-se em suspensão

preconceitos e pressupostos acerca do mesmo, conservando-se assim apenas o seu

núcleo invariante ou essencial.

A redução eidética, como é chamada por Husserl, é assim algo que não se obtém

através do simples manipular, mas sim a partir de um “esforço de pensamento que se

exerce sobre o fenômeno cujo sentido se busca” (Dartigues, 1992 :30).

Portanto, para se chegar à essência parte-se dos fatos, que se referem ao que é

casual, repetitivo, pode ser controlado, sendo então objetos da ciência. Porém as

essências são objetos da intuição, da compreensão das significações e expressam

fenômenos. Fenômeno que para Husserl é a consciência e para seu discípulo Martin

Heidegger é o ser.

Estando voltada para a mulher em tratamento quimioterápico para o câncer de

mama no qual perde seu cabelo, e portanto compreendendo-a como um ser que ex-siste,

como pessoa que passa por um momento difícil de sua existência, e não apenas

Page 46: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

34 olhando-a como mais um doente de câncer, voltei-me para a busca de sua compreensão

como um poder-ser, ao ex-sistir frente à doença, ao tratamento e seu efeito colateral.

Para tanto a Fenomenologia de Martin Heidegger e sua obra Ser e Tempo, apresentou-

se como caminho mais adequado à realização deste estudo.

MARTIN HEIDEGGER E O MÉTODO FENOMENOLÓGICO:

Martin Heidegger (1889-1976), nasceu e viveu na Alemanha e em 1909, entrou na

Universidade de Friburgo, seguindo os cursos de Filosofia e Teologia. Em 1913, recebe o

grau de doutor em Filosofia. Foi professor desta mesma Universidade, sucedendo ao

mestre Husserl e tendo sido nomeado reitor em 1933.

Sua mais famosa obra, Ser e Tempo, publicada em 1927, é considerada por Leão

(1995:11), “um marco na caminhada do pensamento pela história do Ocidente”.

Segundo Trotignon (1990:11), o conhecimento do pensamento de Heidegger nos

auxilia “a compreender, a interrogar e a criticar a nossa própria existência”.

O objeto da investigação de Heidegger é o ser, este ente que foi esquecido pela

filosofia na sua tradição metafísica. Para este filósofo, nós nos mantemos em relação ao

ser, numa compreensão vaga e mediana, sem apreender-lhe portanto o sentido.

Buscando o sentido do ser, a fenomenologia apresenta-se como conceito de método

adequado para Heidegger (1995:65) por “deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se

mostra, tal como se mostra a partir de si mesmo”.

A fenomenologia enquanto método de investigação, tem a preocupação da

mostração do objeto de estudo tal como ele é em si mesmo, e não o que ele é em si.

Parte portanto do princípio da transparência, do princípio de que as coisas se mostram5.

5 Anotações de encontros com a professora Dra. Telma Apparecida Donzelli, UERJ - 1996.

Page 47: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

35

No entanto, como diz Heidegger (1995:66), o fenômeno não se mostra diretamente

na maioria das vêzes. Ele mantém-se velado, encoberto pelo que parece mas não é.

Porém, este que parece mas não é, faz parte essencial do que se mostra velado, e que

se constitui no sentido e fundamento.

Para Heidegger, na questão do sentido do ser, é necessário que se torne

transparente este ente que cada um de nós é em seu ser, pois o homem é um ente que

compreende o Ser, ente que foi designado pelo filósofo de ser-aí, pre-sença, Dasein.

Este ente que somos é diferente dos outros entes - coisas e objetos - por ter em seu ser,

o privilégio de se questionar como possibilidade.

Ao referir-se a questão do sentido do ser, questão esta considerada como

“privilegiada”, Heidegger parte do princípio de que “todo questionamento é uma procura”

e como tal, possui em sua estrutura um questionado, que é o ser; um interrogado, que é

o ser que como ente já é conhecido porque é o saber factual oriundo do modo de

entender o ser apenas como ente, mantendo-o assim velado em seu sentido; e um

perguntado, que é o sentido do ser, este que não foi primeiramente apreendido

(Heidegger, 1995 :30-32).

Na busca do sentido do Ser, necessita-se pois partir de uma direção que possibilite

um modo adequado de se chegar ao ser do ente. Assim Heidegger ( 1995 :32), tem o

ente como ponto de partida de acesso ao ser e define-o como:

... tudo que falamos, tudo que entendemos, com que nos comportamos dessa ou daquela maneira, ente é também o que e como nós mesmos somos.

Page 48: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

36

Utilizando o método fenomenológico, Heidegger realiza a de-construção filosófica do

ser, este que foi visto pela metafísica como ente e não como ex-sistente.

O homem é o único que pode “pensar Ser”, logo ele ex-siste. A hifenização dada por

Heidegger significa a compreensão de existência como esta “capacidade do homem para

ficar fora de si mesmo”, ao contrário por exemplo de uma árvore, que por não ter tal

capacidade, e embora tenha vida, apenas é, não ex-siste ( Steiner, 1978 :65). Ser

homem é pois um projetar-se, é ser possível, é poder-ser. A essência do homem está em

sua ex-sistência.

Como Lopes (1996 :54) destaca, a ex-sistência no pensar de Heidegger possui tres

aspectos: a facticidade, a transcendência e a de-cadência.

A facticidade refere-se ao fato de o homem encontrar-se assim, lançado no mundo,

sendo-no-mundo, sem que tenha escolhido ou optado por tal situação. Portanto o

homem está sempre situado em relação ao mundo, que não significa um espaço

delimitado ou homogêneo no qual ele ex-siste, mas sim quer dizer mundo das coisas e

dos outros sujeitos, onde o Dasein relaciona-se com os entes que vem ao seu encontro,

onde con-vive com outros que também são pre-sença.

Assim ser-no-mundo, significa esta familiaridade, o sentir-se confiante, sentir-se em

casa. Ser-no-mundo é como o homem vive e pode viver de várias maneiras e os vários

modos como ele pode relacionar-se com os entes que a ele se apresentam ( Spanoudis,

1981 :16). Portanto ser-no-mundo tem em sua essência ser-com, isto é, a possibilidade

de partilhar este mundo com outros.

Transcendência significa o projetar-se do homem para além de si mesmo conferindo

sentido ao seu ser, ao realizar o encontro com este ente que ele mesmo é, e

compreendendo-se em seu ser. Ex-sistindo, sendo, a pre-sença é um poder-ser, é

possibilidade. Sobre isso Heidegger ( 1995 :78) afirma que

Page 49: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

37

As características constitutivas da pre-sença são sempre modos possíveis de ser. ... A pre-sença se constitui pelo caráter de ser minha segundo este ou aquele modo de ser. ... O ente, em cujo ser, isto é, sendo, está em jogo o próprio ser, relaciona-se e comporta-se com o seu ser, como sua possibilidade mais própria. A pre-sença é sempre sua possibilidade.

A de-cadência significa o de-caimento da pre-sença de si mesma na cotidianidade,

ou seja, é o modo de ser cotidiano onde o ser-aí se afasta de seu projeto originário, de

sua singularidade e esconde-se no anonimato do mundo público onde todos são e

ninguém é.

Neste modo de ser do impessoal, no qual o ser-aí se encontra na maioria das vezes,

ele está descompromissado consigo mesmo e com os outros e neste modo inautêntico,

acolhe tudo e todos apenas como entidades.

No pensamento de Heidegger (1995 :236-237), o termo de-cadência não significa

algo negativo, quer apenas indicar o modo de ser da pre-sença no qual ela está “junto e

no mundo das ocupações” na maioria das vezes, sendo conduzida assim para a “public-

idade do impessoal”, em seu empenho na convivência. E Heidegger (1981 :53), afirma

ainda referindo-se ao impessoal ou “a gente” : o “a gente” é um existênciário e, enquanto um

fenômeno primordial, pertence à constituição positiva do ser-aí.

Empenhada na convivência que é determinada pelo falatório, a curiosidade e a

ambiguidade, a pre-sença vê no fenômeno da de-cadência uma tentação, que a mantém

na public-idade dando-lhe uma sensação de tranquilidade. Sobre isso Heidegger (1995

:239) comenta que:

A pretensão do impessoal, de nutrir e dirigir toda “vida”autêntica, tranquiliza a pre-sença, assegurando que tudo “está em ordem”e que todas as portas estão abertas. O ser-no-mundo da de-cadência é, em si mesmo, tanto tentador como tranquilizante.

Page 50: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

38

Em Ser e Tempo, Heidegger desenvolve portanto uma analítica existencial da pre-

sença considerando seus modos de ser-no-mundo, sua relação com o mundo como pre-

sença e co-presença na cotidianidade, enfim como ex-sistente.

A cotidianidade mediana apresenta-se como o solo adequado para que se tenha

acesso à pre-sença pois segundo Heidegger (1995 :44),

... as modalidades de acesso e interpretação devem ser escolhidas de modo que esse ente possa mostrar-se em si mesmo e por si mesmo. Elas têm de mostrar a pre-sença em sua cotidianidade mediana, tal como ela é antes de tudo e na maioria das vezes.

Em sua ontologia, Heidegger não pretende ditar fórmulas e conceitos para

determinar o ser. Pois para ele ontológico, ao contrário da tradição que conceitua a

ontologia como as essências fundamentais concretamente definidas, é a possibilidade

dos vários modos como algo tende a manifestar-se. Ser portanto é a maneira como algo

se torna percebido, compreendido e conhecido pelo humano, pelo ser-aí.

Page 51: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

39

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: CAPALBO, Creusa. - Considerações sobre o método fenomenológico e a enfermagem.

Revista Enfermagem UERJ. Rio de Janeiro, 2, (2), 193-194, out., 1994. CAPALBO, Creusa. - Abordando a enfermagem a partir da fenomenologia.Revista

Enfermagem UERJ. Rio deJaneiro, 2, (1), :70, maio, 1994. DARTIGUES, André. - O que é a Fenomenologia? 3a. ed., São Paulo, Editora Moraes,

:29-30, 1992. HEIDEGGER, Martin - Ser e Tempo. Parte I. 5a ed. Trad. Márcia de Sá Cavalcanti.

Petrópolis. Editora Vozes, :65, 1995.(Coleção Os Pensadores). LEÃO, Emmanuel C. Apresentação. In: Ser e Tempo. Martin Heidegger. Parte I. 5a

ed.Trad. Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis editora Vozes, :11-22,1995. LOPES, Regina Lúcia Mendonça, et al - A fenomenologia e a pesquisa em

enfermagem. Revista Enfermagem UERJ. Rio de Janeiro, 3, (1), :49-52, maio, 1995. LOPES, Regina Lúcia Mendonça. - O Avesso da Prevenção do Câncer Cérvico-Uterino

- O Ex-sistir Feminino sob a Ótica da Enfermagem. Tese (Doutorado) Escola de Enfermagem Anna Nery. Universidade Federal do Rio de Janeiro, :54, mar.,1996.

MARTINS, Joel, et al - A Fenomenologia como Alternativa Metodológica para Pesquisa -

Algumas Considerações. Mimeo, s.d.,:4. STEINER, George. - As Idéias de Heidegger. Trad. Álvaro Cabral, São Paulo, Editora

Cultrix, : 65, 1978. SPANOUDIS, Solon - Apresentação. In: Todos nós...ninguém. Martin Heidegger.

Trad.Dulce Mara Critelli.São Paulo,Editora Moraes,1981,72p. TROTIGNON, Pierre. - Heidegger. Trad. Armindo José Rodrigues. Rio de Janeiro

Edições 70, :11, 1990.

Page 52: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

40

ABORDAGEM METODOLÓGICA:

Trata-se de um estudo de natureza qualitativa. O objetivo a ser alcançado aponta

para a fenomenologia como abordagem metodológica adequada.

Carvalho (1987:14) diz que compreender não é explicar, mas sim apreender

vivências e sentidos originários. Portanto, sendo a fenomenologia um método que

direciona a compreensão, penso que foi o mais adequado para obter respostas às

minhas inquietações.

O CENÁRIO DO ESTUDO:

O hospital Luiza Gomes de Lemos, do Inca, onde trabalho desde 1986, foi o local

escolhido para o desenvolvimento deste estudo. No entanto, vale ressaltar, que sua

trajetória é pontuada por crises institucionais que, ao longo de quase quarenta anos de

existência, alteraram seguidamente seus propósitos, estatuto legal e financeiro, com

importantes conseqüências para seus clientes e servidores.

Em 21 de novembro de 1957, tendo como diretor o dr. Arthur Campos da Paz Filho,

foi inaugurado no Rio de Janeiro, no bairro de Vila Isabel, o Centro de Pesquisas Luiza

Gomes de Lemos (CPLGL), uma iniciativa das Pioneiras Sociais, sob o patrocínio da sra.

Sara Kubitschek, então presidente desta sociedade civil, criada em Minas Gerais. O

nome desse Centro de Pesquisa, foi uma homenagem à mãe da sra. Kubitschek,

falecida dois anos antes, devido a um câncer ginecológico. A doença da mãe inspirou-a a

fundar esta obra pioneira, cuja finalidade era a prevenção e o controle do câncer

ginecológico.

Page 53: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

41 Quando a Associação das Pioneiras Sociais foi incorporada pela “Fundação das

Pioneiras Sociais” (FPS), entidade de âmbito nacional, com sede em Brasília, e cujos

objetivos eram “a assistência médica, social, moral e educacional da população pobre,

em suas variadas formas, e as pesquisas relacionadas com suas finalidades”, o CPLGL

tornou-se uma de suas unidades (Brasil, 1960).6

Mais tarde com o dr. Arthur Campos da Paz Filho na presidência da FPS, em 1976,

foi criado o Instituto Nacional de Ginecologia Preventiva e Reprodução Humana Luiza

Gomes de Lemos, com a finalidade de ampliar a esfera de ação do CPLGL, assim

atendendo à “diversificação e o aspecto multidisciplinar em que deve ser conceituada a

prevenção e o diagnóstico precoce do câncer ginecológico” (Fundação das Pioneiras

Sociais, 1977 :19). Em 1977, com a conclusão do Hospital Santa Rita, conhecido até hoje

como Hospital das Pioneiras Sociais, o Instituto pôde dispor de local necessário para a

internação de casos que necessitassem esclarecimento, diagnóstico e tratamento

cirúrgico, tanto no caso de câncer ginecológico, como no de mama.

E, em 1981, no governo do presidente João Figueiredo, sendo o presidente da FPS

o dr. Aloísio Campos da Paz Jr, o Instituto foi extinto, passando o conjunto formado pelo

ambulatório e o hospital a constituir o Centro de Ginecologia Luíza Gomes de Lemos

(CGLGL), dedicado apenas a atividades assistenciais, ambulatoriais e cirúrgicas de

ginecologia e mastologia, tanto na prevenção, como no tratamento de patologias

benignas e malignas. Terminaram portanto as atividades de pesquisa.

Em 1991, em virtude da extinção da FPS7, o CGLGL foi incorporado ao Instituto

6 Criada pelo decreto-lei número 3736/60 de 22/3/1960,assinado pelo presidente Juscelino Kubitscheck 7 Em 22 de outubro de 1991, pelo decreto-lei número 8246/91, o presidente Fernando Collor de Mello instituiu o Serviço Social Autônomo Associação das Pioneiras Sociais, que tem como finalidade “prestar assistência médica qualificada e gratuita a todos os níveis da população e de desenvolver atividades educacionais e de pesquisa no campo da saúde em cooperação com o Poder Público” (Brasil, 1991 :2381). Forma-se, assim, um contrato de gestão e em 20 de dezembro de 1991, pelo decreto-lei número 370, ficou extinta a FPS.

Page 54: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

42 Nacional de Câncer (Inca), como unidade hospitalar III. O CGLGL sofreu modificações,

passando a não mais tratar patologias ginecológicas e da mama de origem benigna, de

modo a adequar-se ao seu novo propósito, ou seja, o controle e tratamento do câncer

ginecológico e da mama (Brasil, 1994 :11). A partir de 1994, o CGLGL passou a ser

identificado como Hospital Luíza Gomes de Lemos (HLGL).

O período que antecedeu a passagem para o Inca foi extremamente conturbado.Os

funcionários da Instituição, inclusive eu, vivíamos sobressaltados pelos boatos, ansiosos

com o destino indefinido do hospital. O questionamento frequente era o de qual

instituição nos assumiria. Primeiro surgiu a possibilidade do contrato de gestão,

assumido pela atual Associação das Pioneiras Sociais, que nos traria de volta à época da

CLT. Depois a possibilidade da incorporação ao SUS, que era vista como o que de pior

poderia nos acontecer. Por fim surgiu o Inca, embora não tenha sido aceito por

unanimidade, porém trouxe-nos de volta a estabilidade necessária à continuação do

serviço, mesmo diante da mudança do perfil do hospital.

O Inca, passou em 1993 a incorporar o Plano Nacional de Ciência e Tecnologia do

Ministério de Ciência e Tecnologia que veio então incentivar a pesquisa e o

aprimoramento profissional, portanto permitindo-me fazer o curso de mestrado.

A Divisão de Enfermagem, no HLGL, compõe-se da Chefia de Enfermagem e de

quatro setores, sendo eles: Centro Cirúrgico e Central de Material Esterilizado; Unidade

de Internação; Ambulatório; e Quimioterapia.

Cada setor conta com uma enfermeira responsável, sendo que todas atuam em

conjunto nos seus respectivos setores, atuando tanto nas questões administrativas,

quanto na supervisão da equipe de enfermagem e em cuidados diretos com as mulheres

internadas.

A enfermeira é responsável pela admissão diária de todas as mulheres que

comparecem para internação, realizando entrevista individual, orientada por um roteiro

Page 55: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

43 pré-determinado. Antes de encaminhar as mulheres admitidas à unidade de internação, a

enfermeira realiza uma “dinâmica de grupo” com material audiovisual, para explicar-lhes

tudo o que acontecerá no pré, trans e pós-operatório, até o dia da alta. Nesta

oportunidade também é feita uma apresentação da área de internação, assim como dos

diversos profissionais que atuam no setor e aos quais elas podem recorrer, quando

necessário.

A Quimioterapia conta diariamente, em média, com duas enfermeiras, duas

auxiliares de enfermagem e residentes de enfermagem. Neste setor são atendidas as

mulheres provenientes da consulta médica prévia, na oncologia clínica.

O encaminhamento para a oncologia clínica, no caso do câncer de mama, pode ser

feito pelo médico mastologista após consulta ambulatorial, na qual foi constatada a

necessidade de avaliação para a realização de quimioterapia pré-operatória ou

complementação de tratamento pós-operatório ou ainda no caso de doença metastática.

Também é feito pela enfermeira do ambulatório, a qual acompanha as pacientes

mastectomizadas na consulta de enfermagem, a avaliação dos resultados de exames

periódicos pedidos pelo setor de mastologia. Assim, no caso por exemplo de suspeita ou

evidência de doença metastática, a mulher é encaminhada pela enfermeira para

avaliação pelo médico oncologista, que determinará o tratamento a ser realizado.

Ao chegar pela primeira vez ao Setor de Quimioterapia, a mulher recebe orientação

individual da enfermeira. Um resumo dessa orientação é entregue a ela, na forma de

folheto explicativo. Nessa oportunidade, a mulher é esclarecida sobre o tratamento

quimioterápico e sua finalidade, individualizando-se a orientação para cada estágio da

doença. Ela é informada, ainda, sobre como age a droga no organismo, seus efeitos

colaterais, nutrição adequada para este período, sinais e sintomas que devem ser

comunicados ao médico no período entre os ciclos de quimioterapia, rotinas do setor e

do atendimento médico. Ao final, há espaço para qualquer questionamento e lhe é

Page 56: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

44 assegurado retorno a qualquer dúvida ou indagação que possa ter durante o período em

que estará em tratamento no setor.

Cabe ainda à enfermeira a diluição e o preparo das drogas quimioterápicas e sua

administração, punção venosa periférica ou de catéteres implantados no tecido

subcutâneo, supervisão e treinamento das auxiliares e residentes de enfermagem, que,

após serem consideradas aptas, realizarão também punção venosa periférica e

administração das drogas antineoplásicas.

A TRAJETÓRIA DO ESTUDO:

O grupo estudado foi o das mulheres com alopécia secundária à quimioterapia

antineoplásica com a doxorubicina (ou seu análogo a epirrubicina), sozinha ou

combinada a outras drogas, e os depoimentos colhidos a partir da técnica da entrevista

fenomenológica, que se dá sob a forma de ex-sistência situada no encontro.

Segundo Boemer (1984 :27), em fenomenologia, empatia significa sentir com o

outro o que ele sente, mas sem com isso estar vivenciando o mesmo que ele. A empatia

permite o encontro com o outro e nos possibilita ser-aí-com o nosso semelhante.

Para Capalbo (1987 :6), a empatia é a forma de acesso que se tem para penetrar

nos objetos vividos e portanto a entrevista com abordagem fenomenológica é por ela

mediada. Assim, numa relação empática, procurei chegar à compreensão do vivido

destas mulheres ao perderem o cabelo, distanciando-me dos pressupostos para buscar o

saber deste fenômeno tal como ele se dá.

As entrevistas foram gravadas, transcritas, em número de dezenove, analisadas

compreensivamente visando a construção das unidades de significação e a

hermenêutica à luz do pensamento de Martin Heidegger.

Page 57: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

45

Em decorrência do olhar atentivo, que este estudo tornou possível, procedi à uma

aproximação ao ser-aí-mulher em tratamento quimioterápico. Este olhar foi

possibilitando-me cada vez mais observar inúmeras situações ocorridas no meu dia-a-dia

assistencial, e que levaram-me a questionar o atendimento a estas mulheres.

A formalidade no atendimento, que enfoca a quimioterapia e seus efeitos colaterais

apenas como fatos, conduziram-me cada vez mais ao encontro destas mulheres, com o

intuito de tentar uma aproximação ao ser-aí, a partir da facticidade e do significado

atribuído buscando o desvelamento do sentido.

APROXIMAÇÃO AO SER MULHER EM TRATAMENTO QUIMIOTERÁPICO:

Tendo em vista o desenvolvimento de minhas atividades assistenciais concomitante

à realização do curso de mestrado, procurei iniciar meus primeiros passos, rumo à

ambientação tão necessária à etapa das entrevistas, conversando informalmente sobre a

perda do cabelo conseqüente ao tratamento quimioterápico, com as mulheres que

aguardavam a consulta médica no corredor ou durante a administração dos

medicamentos ou ainda após o tratamento daquele dia. Neste processo, pude penetrar

no cotidiano do ex-sistir daquelas mulheres. No entanto, notei que não seria possível

realizar as entrevistas na Central de Quimioterapia devido ao tumulto do ambiente, onde

havia muitas pessoas falando ao mesmo tempo e as outras mulheres interferindo em

nossas conversas, o que impedia uma relação empática.

Concluí que o melhor local para realizar as entrevistas, seria o consultório médico

que me permitiria privacidade e um ambiente tranquilo e que não é utilizado antes da

chegada dos resultados dos exames laboratoriais, quando então começam as consultas

médicas.

Page 58: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

46

Por estar invariávelmente neste horário escalada para a diluição de medicamentos a

serem administrados naquela manhã, tive que contar com o apoio e a boa vontade da

colega enfermeira escalada comigo naquele dia, para realizar essa tarefa por mim.

Assim, as entrevistas foram realizadas no HLGL, entre sete e meia e nove e meia da

manhã, que corresponde a um período ocioso para a mulher, que chega ao hospital para

colher sangue às sete horas da manhã e depois tem que aguardar até às nove e meia

para ser atendida pelo médico. A questão orientadora da entrevista a ser utilizada,

também foi decidida naqueles primeiros contatos com as mulheres, quando pude

analisar o modo de abordá-las. Assim decidi-me por chegar a elas perguntando: “O que

significou para você a perda do seu cabelo?”

Os depoimentos foram obtidos durante os meses de outubro e novembro de 1996,

nos dias em que eu estava cumprindo minha escala de serviço (,já que estou

parcialmente afastada do trabalho para realizar o curso de mestrado). O número de

entrevistas realizadas por dia, não ultrapassou a quatro. Após cada uma delas, sozinha,

voltava a fita para o início do diálogo e procurava escutá-la atentamente, para deste

modo tentar fixar a imagem de cada mulher, sua linguagem gestual, seu silêncio, seu

choro, enfim suas emoções e expressões faciais, com a intenção de assim buscar o

sentido daquela fala singular, própria e única de cada ser-no-mundo.

O uso do gravador foi autorizado por cada mulher e os nomes mantidos para

singularizar cada entrevista. Não houve qualquer problema com o uso do gravador, ao

contrário, cada mulher mostrou-se grata por poder falar e compartilhar seu modo de ser,

sentir e seu mundo próprio. Percebi aí mais fortemente, como a mulher tem desejo de

conversar mais prolongadamente e como esta oportunidade lhe é negada pelo ritmo

intenso do serviço, que impede os profissionais de dedicarem mais tempo à convivência

com elas, e que deste modo, acabam privilegiando as rotinas e horários, em detrimento

daquele ser singular que deveria ser o centro de sua atenção e dedicação.

Page 59: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

47

Durante as entrevistas, procurei suspender meus pressupostos acerca da perda do

cabelo durante o tratamento quimioterápico, procedendo assim à redução

fenomenológica, e busquei a empatia com cada uma daquelas mulheres. Portanto, com

a entrevista fenomenológica, pude me emocionar e sentir com cada mulher o que

significava para ela a perda do cabelo, realizando assim o encontro com o outro, sendo

no mundo com ela, sendo pre-sença.

Page 60: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

48

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BOEMER, Magali R . - Empatia - proposta de abordagem fenomenológica. Revista da

Escola de Enfermagem, USP, São Paulo, 18 (1): 23-9, 1984. BRASIL / DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO - Decreto-lei número 3736/60, 1960. BRASIL / MINISTÉRIO DA SAÚDE, INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER,

COORDENAÇÃO DE PROGRAMAS DE CONTROLE DE CÂNCER- PRO -ONCO - Registro hospitalar de câncer 1992. Pro-Onco,Rio de Janeiro, :11, 1994.

CAPALBO, Creusa Prefácio In: Metodologia da entrevista: uma abordagem

fenomenológica. Rio de Janeiro, Livraria AGIR editora, : 5-8, 1987.

CARVALHO, Anésia S. - Metodologia da entrevista. Rio de Janeiro, Livraria AGIR editora, :14, 1987.

FUNDAÇÃO DAS PIONEIRAS SOCIAIS . Relatório das Atividades do ano de 1977. :19 e

31, 1977. PIONEIRAS SOCIAIS, CENTRO DE GINECOLOGIA LUÍZA GOME S DE LEMOS.

Boletim. 1, (1), ago., 1958.

Page 61: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

49

ANÁLISE COMPREENSIVA

CONSTRUINDO AS UNIDADES DE SIGNIFICAÇÃO:

Após a obtenção dos depoimentos, iniciei a transcrição dos mesmos e sua

leitura, mediada pela empatia, procurando recordar-me dos momentos que tive com cada

uma das mulheres. Assim, procedendo à leitura de cada depoimento em separado, fui

procurando alcançar o que expressava cada mulher ao relatar a sua vivência. Fiz várias

leituras, sempre me guiando pela questão norteadora do estudo, que expressa as

inquietações surgidas no meu cotidiano assistencial, e procurando chegar aos

significados atribuídos pelas mulheres à perda do cabelo durante o tratamento.

Ao procurar os significados, busquei a essência deste vivido pelas mulheres, já que

como menciona Capalbo (1994 :192), “Essência são significações que são

compreendidas porque são vividas na existência humana concreta”. Assim os

significados exprimem as percepções que as mulheres têm do que vivenciam

conscientemente, atribuindo-lhe significado.

Utilizando o pensamento de Martin Heidegger, expresso em Ser e Tempo, procurei,

posteriormente, desvelar o sentido velado em cada uma das unidades de significação,

elaboradas a partir dos depoimentos obtidos (os quais encontram-se transcritos na

íntegra no final deste estudo).

As unidades de significação construídas a partir dos significados atribuídos pelas

mulheres diante da perda do cabelo consequente ao tratamento quimioterápico para o

câncer de mama, numa compreensão vaga e mediana, são a seguir apresentadas.

UNIDADES DE SIGNIFICAÇÃO:

Page 62: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

50

Nesta compreensão, a mulher diante da perda do cabelo consequente

ao tratamento quimioterápico para o câncer de mama, mostrou-se como

pessoa....

1. ... assustada pela maneira inesperada como ocorreu

esta perda e por vezes tem dúvidas quanto à reversão de

sua condição.

“...Olha, quando meu cabelo começou a cair, um buraco aqui, outro buraco ali, eu fiquei

com aparência de doente limpa. Me fez muito mal...”

Miriam (dep.1)

“...Mas tem gente que diz: tem gente que não cresce mais! Vai toda vida tratando,

tratando... caindo, caindo. Aí olha, tem duas vêzes que caiu e tá aí olha. É aquela coisa

de receio. Depois, quando eu vi assim (mostra o cabelo crescendo), ah! Tem jeito...”

Zeni (dep.2)

“...Aí,começou a cair, aí foi assim me dando aquela... Bom, o cabelo tá caindo. Quinze

dias, fez quinze dias... Aí, entrei no chuveiro e quando abri o chuveiro, quando passei

assim (passa a mão na cabeça), aí foi caindo, entendeu? Caiu mesmo, tudinho, ficou só

aquelas penugezinhas...”

Maria de Lurdes (dep.3)

“...É... o dia que eu fui cortar o cabelo no salão, a moça passou o pente, saiu aquela

porção... Passava o pente, saía tudo. Aqueles cabelo comprido que eu tinha... aí, as

pacientes que tava tomando, disse: é bom assim na terceira a Sra. já começar a cortar o

Page 63: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

51 cabelo. Aí, eu fui cortar mas cheguei lá, passou o pente assim e caiu aquela porção...

Mas aí, depois que eu vi cair, pôxa...”

Zilda (dep.6)

“...Tô até com medo de botar a mão assim prá... e dá de choque assim com a realidade,

né? A cabeça pelada... eu não quero, eu não quero vamos dizer assim... eu não quero

ter assim aquela... tá dentro da realidade, que realmente, eu vou ficar totalmente

careca... Mas quando cheguei em casa que eu botei a mão assim (passa a mão atrás da

cabeça), que vi isso aqui igual... sei lá, assim meio afastado, eu fui botar a mão, os

dedos foi entrando, eu digo: ai meu Deus, chegou a hora! Tô triste (com os olhos cheios

d’água)...”

Maria Teresa (dep.9)

“...Eu tenho muito cabelo...tinha né? (ri). Aí, quando foi na sexta-feira, é que começou

mesmo. Só despencando o meu cabelo, mas de montão, sabe? Tô com pouquinho,

pouquinho mesmo, muito pouquinho (silêncio)...”

Lenice (dep.11)

“...Pôxa, você vai lavar a cabeça, saindo aquelo monte de cabelo, né? Você perdendo

cabelo, fica angustiada, né? Dá uma sensação muito estranha (ri). Você em frente ao

espelho, né? E eu tinha muito cabelo... mas agora já tô acostumando mais...”

Maria Antonia (dep.14)

“...Ah ...fiquei muito, assim muito triste porque caiu muito rápido. Aí, fiquei muito

agoniada(ri). Aí é isso, fiquei muito nervosa porque caiu muito rápido... É, caiu muito

rápido, rapidinho mesmo. Agora não tem mais nada. Eu tinha muito cabelo, aí caiu

rápido...”

Page 64: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

52

Elenice (dep.17)

“...prá mim foi triste e quando eu pentiei que veio caindo todo, todo meu cabelo, que eu

sou muito cuidadosa, não é?...”

Margareth (dep.19)

Page 65: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

53

2. ... com dificuldades para desenvolver atividades sociais

e de conviver com as outras pessoas e consigo mesma.

“...Aí, comprei uma coleção de boné. Combinava o boné com a roupa. Não tive grandes

problemas não. Em alguns casos, que riam, tem gente que ri, depois eu levava na

brincadeira eu...”

Miriam (dep.1)

“...É devido aos meus vizinhos que é pessoas que toma conta de tudo, então eu não

gosto assim... Eu me dou com todos os meus vizinho... Mas não gosto de

comentário,essas coisas... Eles gostam de ficar reparando... No princípio eu tinha

vergonha por causa deles. Que eles ficam na janela, todo mundo olhando, quer saber o

que houve e tal. Tem que menti, que faz candomblé...”

“...Ainda olham, ficam olhando, as vêzes. Agora quando tá assim (sem lenço e com

cabelo começando a crescer), eu vou no portão... Eu não gosto de tá comentando.

Porque eu que tô passando né? Prá que ficar falando, falando... Não sabe ajudar. Quer

saber só como é que é, curiosidade. Parecem entrevistadoras. Mas ajudar, ninguém

quer. Eles quer é discriminar...”

“...Uma vez na condução, quando caiu, ficou carequinha, então eu tinha medo... Doeu,

eu amarrei bem o lenço com medo da pessoa as vêzes, sem querer, de poder acontecer,

a condução cheia, passa o braço, puxar... Brigar com a pessoa eu não podia brigar,

porque ela não fez por mal. Ninguém vai adivinhar que eu tô doente, que eu tô careca,

ninguém...”

“...É porque o que adianta usar peruca, ficar nervosa, não me sentir bem. Acho que

aquilo parece que as pessoas vai começar a reparar. Sabe, vai incentivar...”

Page 66: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

54

Zeni (dep.2)

“...A diferença que faz, só que a gente... Sair na rua, porque as pessoas cobra da gente.

Porque eu não usava lenço, não é?... Sempre um olha, outro olha... E eu não posso ficar

na minha casa sem um lenço na cabeça porque constantemente chega pessoas.E o meu

problema é que eu não falei para ninguém, a não ser a minha família, né? ...Aí fiquei

assim aqueles dias com vergonha de ficar na frente dos meus filhos mesmo, meu

marido, né?...”

“...porque as pessoas vai me cobrar porque estou careca. Porque estou assim...”

“...O que está me impedindo...Porque eu sou testemunha de Jeová. Então eu estou

querendo ir a reuniões e eu estou muito em falta... Porque ali é um conforto que a gente

tem... Na minha congregação, ninguém sabe, a não ser uma irmã. Nenhum deles ainda

sabe o que está se passando...”

“...Que eu tô de lenço, quer saber, como agora com essa história de piolho. Deve ter

botado por causa de piolho, sabe...”

“...O meu cunhado diz né: agora você tá usando pano na cabeça? Porque ele detesta

mulher que usa pano. Ele diz que mulher que não penteia o cabelo bota lenço...”

Maria de Lurdes (dep.3)

“...É, prefiro usar lenço do que peruca... Mas agora tenho que ir nesse casamento, vou

mandar arrumar a peruca prá poder ir que... tapeia...”

“...Eu sinto muita tristeza. Mas eu estava ciente que nós nessa quimioterapia, nós ia ter

muitas, assim, horas que ia querer até jogar as coisas pro alto e não continuar o

tratamento. Então, quando eu vejo assim, então eu procuro passar por cima,entendeu?

Page 67: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

55 Eu procuro me distrair, saio da frente do espelho, eu procuro o melhor , faço o melhor prá

mim...”

Maria Auxiliadora (dep.4)

“...Eu fico, eu fico assim triste, no mesmo tempo fico com vergonha. Onde moro, os

pessoal lá, tudo quer saber, fica perguntando o que foi, o que é que é... fica, os pessoal

as vêzes, pensa que é outra coisa demais, aí fica querendo saber...”

Edinéia (dep.7)

“...As pessoas chega na minha casa, eu cubro logo a cabeça prá ninguém ver, só meus

filhos e meu marido é que vê. Aí, as visita chega, eu cubro logo a cabeça, não deixo

ninguém ver...”

“...Todo mundo sabe, todo mundo sabe, mas eu não amostro a ninguém não...”

Maria Adelaide (dep.8)

“...Eu gosto de tá bem apresentada em qualquer lugar que eu compareça, eu gosto de tá

bem apresentada, sabe? Aí eu fico chocada...”

Maria Teresa (dep.9)

“...Uso lenço assim mais prá sair. Em casa eu já fico sem lenço. Só quando meus filhos

tá perto, aí o pequenininho de cinco anos, fica: não tira não mãe! Fica muito feio! Aí eu

coloco...”

Laurani (dep.10)

“...Prá mim todo mundo sabe que estou usando peruca, sabe? Todo mundo tá sabendo.

Ah, me sinto tão mal!...”

Page 68: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

56 “...Eu já falei que vou ficar fechada dentro de casa, que não vou sair na rua. Só prá entrar

dentro do carro prá ir ao médico. Tudo isso eu falei lá em casa. Gente estranha... não

vou atender ninguém na minha casa... Prá mim foi um choque muito grande. Está sendo

muito difícil (silêncio)...”

Lenice (dep.11)

“...Fiquei triste por isso, porque meu filho também adorava meu cabelo... Foi difícil prá

mim tê que chegar na minha casa depois de seis meses e ter que enfrentar minha família

da maneira que eu estou agora, né?...”

Jaciléia (dep.13)

“...Aí,eu procuro, eu procurei fazer o seguinte: é não olhar tanto. Então eu ponho uma

meinha, uma meia calça, né? Eu, eu cortei e ponho debaixo da peruca. Então,

automáticamente, eu tiro a peruca e a meinha fica. Prá hora do banho né, é a mesma

coisa. Então eu não vejo, não olho. Então, a gente vai levando...”

Margareth (dep.19)

Page 69: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

57

3. ... inicialmente entristecida, deprimida porém, após o

fato consumado procura controlar-se, tranquilizar-se e

adaptar-se à sua nova condição.

“...A expectativa do cabelo cair é que me incomodou bastante. Entende? Aí, eu ficava

angustiada, ficava nervosa. Meu cabelo vai cair, vou ficar careca. Depois do fato

acontecido, aí foi mais tranquilo. Entendeu? Não é que eu tenha... ah tudo bom... Depois

do fato consumado, fui adaptando...”

Miriam (dep.1)

“...Aí o meu nervoso era esse, dentro do ônibus, quando caiu a primeira vez que eu

tomei, comecei o tratamento. Aí eu tinha aquele nervoso. Depois eu fui me acalmando,

prá me controlar... Não sei, agora já estou mais forte. Senti, não vou dizer que não sente.

Com o cabelo enorme que eu tinha, cair assim...”

“...Agora eu coloco o lenço normalmente e se ele cair, eu vou continuar. Consegui

controlar aquele complexo, não sei se é complexo, é um nervoso que eu tinha. Mas não

foi muito não porque eu já sabia que ia cair (risos)...”

Zeni (dep.2)

“...Mas agora, de noite, já tiro o lenço e fico ali a vontade, entendeu? Agora já me

habituei, já acostumei. A gente é assim, a gente tem que acostumar para poder aceitar

as coisas, né? E eu aceitei bem...”

Maria de Lurdes (dep.3)

Page 70: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

58 “...Quando caiu o meu, eu fiquei numa tristeza, fiquei até deprimida. Deprimida

mesmo...”

“...Aí, eu fiz de novo, foi como se tivesse feito a primeira vez. Aí, caiu tudo de uma vez,

mas dessa vez, eu não me deprimi não, eu já senti que ia cair porque começou a doer o

meu couro cabeludo. Aí, eu falei: vai cair tudo de novo. Mas caiu tudo, não ficou um

fiapinho, ficou carequinha igual do Buda. Aí, eu reparei, tava parecendo a reencarnação

do Buda. Mas na segunda vez eu não fiquei deprimida não, mas na primeira, fiquei muito

deprimida. Estive arrasada mesmo. Fiquei por baixo...”

Nereida (dep.5)

“...Agora tô menos.Tô triste ainda mas... devagar ele vai crescendo, né? Só vou ficar

feliz mesmo depois que fizer a operação e não precisar tomar mais isso (sorri). Mas é

assim, né...”

Zilda (dep.6)

“...A primeira vez que começou a cair, eu entrei num... fiquei desesperada. Depois eu

me conformei... o problema de cair o cabelo nem é tanto o caso... o problema é a reação.

A reação que...”

Laurani (dep.10)

“...Chorei muito quando tive que cortar, mas no espelho mesmo e olhando prá mim, vi

que o cabelo não era muito importante, que mais tarde eu poderia é... ter um cabelo

talvez até mais bonito do que tinha, né?...”

Jaciléia (dep.13)

Page 71: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

59 “...Prá mim foi horrível, né? É, nos dias eu fiquei muito nervosa é... mas agora já

passou...”

Maria Antonia (dep.14)

“...No começo eu fiquei desesperada, fiquei mesmo. Chorei muito, fiquei nervosa, mas

agora tô bem, tem que aceitar mesmo, né?...”

Sebastiana (dep.16)

“...No início eu fiquei muito nervosa, mas agora não. Tô calma. Depois vai nascer

mesmo, né? Tem que nascer mesmo depois... tem que se conformar, é a vida, né? Olha

a moça como tá chorando! (mostra outra paciente). É pior, porque fica mais nervosa...”

Elenice (dep.17)

Page 72: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

60

4. ... que encontra junto à família, aos amigos próximos e

aos profissionais de saúde, apoio para enfrentar este

momento.

“... Prá outros já tem que dizer que que aconteceu, pros pouquinhos mais íntimos...”

“...Então fui meia chateada, também não comentei com ninguém, só com meu marido...”

Zeni (dep.2)

“...E o meu problema é que eu não falei para ninguém, a não ser a minha família, né?

Que eles são meus filhos...”

“...Minha garota falou: mãe, eu vou comprar uma peruca prá você, prá você poder...

Porque nós temos um congresso, né? Então muita gente vai....”

Maria de Lurdes (dep.3)

“...a gente faz oração pelos médicos, pelas enfermeiras...várias coisas. Porque...

Precisa ter muita paciência, muito amor no coração...”

“...Mas aqui é um lugar que a chateação tem que deixar prá trás. Você tem sempre que

tá com um sorriso, tá alegre, aquela coisa. Então eu acho muito bacana. Então eu acho

que esse setor precisa de muita oração. Porque pelo mundo que a gente vive, né?...”

Maria Auxiliadora (dep.4)

“...Ah... eu saí, saí, fui passear. Chamei uma amiga, fomo prá praia, fomo sentar lá

embaixo das árvores, ficar conversando... Que eu tenho uma amiga que eu converso

Page 73: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

61 muito com ela, até mais que com minhas irmãs. Nós saímo, fomo conversar, depois fomo

pro bar, tomei uma cerveja, aí me melhorou (risos). Fiquei na boa de novo. Agora eu já tô

bem, graças a Deus...”

“...Minha família, nós somos muito unida, nós somos assim uma porção de irmã velha

dentro de casa. Aí, eu fiquei chorando, a minha irmã que tinha rido acabou chorando

também. Mas elas ficaram assim muito unidas comigo, graças a Deus. Bom, se eu não

tivesse a família, acho que eu nem aguentava este sofrimento todo, sinceramente

(chora)...”

Nereida (dep.5)

“...Ah! A queda do cabelo, no início a gente fica... mulher é meia vaidosa (ri), mas aí

agora, graças a Deus, meus parentes tudo, me deram apoio, sabe? Todo mundo me deu

apoio. Aí... você engana...”

Laurani (dep.10)

Page 74: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

62

5. ... que se submete ao que for necessário para recuperar

a saúde.

“...A única coisa que tenho mais assim em mim, é ficar boa. Agora o cabelo cresce tudo,

depois cresce liso (risos)... Deixa ele...”

“...No meu íntimo mesmo eu quero é ficar boa. Minha... eu tô lutando é prá recuperar a

saúde. O cabelo dá um jeito, tem jeito. Já caiu duas vêzes aí... Não tá grande coisa

mas... (risos)....”

“...Então eu vou procurando esquecer. Assim distrai, não pensa. E tô conseguindo. A

única coisa que eu tenho mesmo como te falei, é ficar boa...”

Zeni (dep.2)

“...Acabou, eu continuo a fazer meu tratamento, poque eu não tenho medo de fazer

exame nenhum... E outra, vou sem saber o que vou fazer. Só vou saber na hora, porque

é importante... Todos os exames e eu...”

Maria de Lurdes (dep.3)

“...E por mais que a gente esteja derrotado, a gente encontra pessoas muito

maravilhosa...”

“...Então tudo isso, tudo dá força à gente. Porque você vem aqui, como eu, então

aquela confiança que eu passei a ter, né? Isso aumenta muito. Dá muita confiança na

gente viu. É muito importante as pessoa que dá esse apoio a gente, entendeu?...”

Maria Auxiliadora (dep.4)

Page 75: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

63 “...Fiquei apavorada. Custei a me conformar, mas enfim... eu vi que era em meu

benefício...”

“...Fiquei triste, fiquei muito arrasada, mas enfim não é, a gente tem que passar por isso,

não é?...”

Zilda (dep.6)

“...Acho que foi a única coisa na minha vida que eu falei que não ia fazer e...é, voltei

atrás e comecei a fazer. Só pelas dores, senão não fazia não...”

Lenice (dep.11)

“...Mas a gente tem que aceitar, fazer o que? Depois já sabe que vai nascer de novo,

não vai ficar careca prá sempre, né? Vai nascer, acabando a aplicação, aí volta tudo ao

normal, falei: então tá tudo bem. Vamo encarar numa boa porque... não adianta entrar

em pânico. Vou levando bem...”

Maria Lúcia (dep.12)

“...Fiquei muito triste, mas depois eu comecei vê que cabelo não é tudo prá gente. Não

é o mais importante mas o mais importante, é a saúde da gente. Quer dizer, não

adianta eu ter o cabelo tão bonito e tá com um problema de saúde tão sério. E aos

poucos eu fui aceitando que eu ia perder meu cabelo...”

“...Prá mim o cabelo agora não é mais importante. Importante prá mim é minha saúde...”

“..E a gente não deve olhar prá o câncer como uma derrota, como um ponto final na vida

da gente não. Devemos encarar ele como um problema que vai ser resolvido. Devemos

é levantar a cabeça e lutar, que não tem ninguém prá nos ajudar...”

“...Quer dizer, eu luto. Luto porque ainda tenho muita vontade de viver e um dia ser

feliz...”

Page 76: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

64 “...Então, eu quero ficar boa e tô lutando...”

Jaciléia (dep.13)

“...Eu quero é melhorar meu estado de saúde, que eu acho que é mais importante que a

vaidade. Eu acho. Tá certo que ninguém gosta de ficar esquisita e tudo, né? Mas eu

quero em primeiro lugar a saúde, depois vem a vaidade. Isso que eu quero...”

“...Não é dizer que eu aceitei, gostei, que ninguém gosta, mas prá mim...”

Margarida (dep.15)

“...Ah...tem que ... como é que se diz? Que... pacientemente tem que... isso é prá gente

mesmo, né? Isso foi feito prá gente, quer dizer que eu tenho que me conformar. A gente

se... se desesperar não posso. Desesperar não vai adiantar nada...Tenho que ficar bem.

Toda a vida a gente não vai ficar assim, né? Tem que ficar boa que aí...”

Elenice (dep.17)

Page 77: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

65

6. ... que tem fé em Deus e Nele deposita sua confiança,

esperança e seu destino.

“...Estou pegada a Deus, segurando mesmo, então tive conforto, né? Como estou tendo

até hoje...”

“...Mas eu já esperei este problema e eu tenho fé em Deus que vou superar isto...”

“...Olha filha, porque eu tenho a espiritualidade, eu tenho o apoio de Deus. Todos têm,

mas não tem a segurança que eu tenho. Porque nós temos que servir um Deus

verdadeiro. Deus de amor, Deus puro, limpo...”

Maria de Lurdes (dep.3)

“...Porque se eu fosse outra, graças a Deus, eu tenho muito que agradecer a Deus,

porque pelo que... De onde eu vim, era prá eu ser uma pessoa arrasada. Porque lutei

com minha irmã dois anos. Perdi minha irmã com esse mesmo problema. Então era prá

mim pensar... Então eu vou morrer igual a minha irmã, entendeu? Se entregar... Mas

graças a Deus, sabe, até agora tô firme e forte, não penso nisso entendeu?...”

Maria Auxiliadora (dep.4)

“...Mas agora eu tenho muito motivo prá tá alegre. Eu já tinha quatro neto, na semana

passada ganhei mais uma neta. Quer dizer, Deus tira uma coisa, mas dá sempre outra

prá gente, né?...”

Nereida (dep.5)

“...Eu fico chocada com um negócio desse. Não posso fazer nada, né? São as

circunstâncias da vida... tem que aceitar, né? Deus quis assim, né?...”

Maria Teresa (dep.9)

“...E eu digo assim, as pessoas que tiverem passando por algum problema como esse,

que lute, que tenha esperança e não tem coisa melhor que a gente lutar e confiar em

Page 78: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

66 Deus... Se não for de Deus, se não for a vontade de Deus, não adianta o homem lutar.

Mas se não tivermos confiança em Deus, colocarmos todinha nossa confiança ao

homem, nós não temos êxito. As minhas palavras...”

Jaciléia (dep.13)

“...A gente tem que se conformar com isso tudo porque... que que a gente pode fazer... é

a vontade de Deus, né? Tem que ter paciência...”

Sebastiana (dep.16)

“....Nem o cabelo, nem o seio... eu queria sim, se Deus permitir, que me desse... apesar

de eu não ser católica, não ser de nenhuma dessas religião, se ele deixasse que eu

vivesse mais uns anos, prá mim fazer alguma coisa que eu planejei. Mas se não vier, até

a morte eu aceito bem (chora)...”

“...E se Deus te mandou aquilo, se você não aceitar, você vai viver uma pessoa

revoltada, vai prejudicar todo mundo que tá do seu lado, todo mundo que você gosta e

você mesmo...”

Jarcira (dep.18)

Page 79: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

67

7. ... que encara esta perda com grande tristeza, a qual

pode ser maior que aquela causada pela gravidade da

doença, o sofrimento do tratamento e a mutilação pela

mastectomia.

“...Prá mim a perda do meu cabelo foi o pior de tudo. Até hoje né, quando eu chego

assim em frente ao espelho, eu tenho aquela depressão. Não me conformei com a perda

do cabelo. Prá mim até agora, foi mais triste que ter dado a notícia que eu tive câncer. Eu

ainda não me adaptei a história do cabelo não... Mesmo a gente sabendo que vai nascer,

mesmo que a gente teve explicação que ia ter a perca do cabelo, mas que ia renascer...”

Maria Auxiliadora (dep.4)

“...Bom eu vou falar a verdade. Foi a única vez que eu chorei, foi quando caiu meu

cabelo. Eu fiquei muito triste mesmo. Acho que eu fiquei mais triste aliás que quando...

de ter tirado a mama... Porque eu sempre tive um cabelão, sempre tive muito apego

assim a arrumar cabelo, trazer ele bonito. Ah! Fiquei muito triste mesmo. Foi como se

tivesse tirado um pedaço de mim...”

Nereida (dep.5)

“...Olha, eu caí numa depressão e continuo numa depressão danada. Quando me olho

no espelho que vejo a falta do meu cabelo, eu choro igual a criança, tá? Muito triste,

muito triste mesmo. Primeiro que eu tinha um cabelo que vinha aqui embaixo (mostra a

coxa). Eu tive que cortar ele, guardar a trança dele. Aí, quando eu vi eu careca, tô

Page 80: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

68 carequinha... realmente eu caí numa depressão danada. E ainda continuo, eu choro igual

a criança...”

Maria Adelaide (dep.8)

“...Tristeza. Tristeza porque eu sou muito vaidosa e porque eu realmente estou assim

muito chocada, apesar de ter tido uma orientação anterior, né? Mas não dá prá gente

aceitar assim, assim de imediato, né? As... as ligações que vai influenciando a gente

assim, a vaidade da gente...”

Maria Teresa (dep.9)

“...Foi a pior coisa da minha vida. A coisa mais... sempre falei que eu não ia fazer a

vermelha, desde do dia que operei...”

“...Vi que não tinha jeito mesmo, né? Comecei a fazer. Prá mim foi a pior coisa da minha

vida, de tudo. A doença, a cirurgia, tudo foi prá mim... tirei de letra. Mas o cabelo, tá

sendo terrível. Começou a cair agora, sexta-feira... todinho...”

“...Prá mim foi. Tá sendo ainda. Tá sendo muito ruim (chora)...”

Lenice (dep.11)

“...No começo foi difícil prá mim, né? Aceitar. Porque desde de criança eu tive o cabelo

comprido e nunca, em hipótese nenhuma, eu cortei o cabelo curto. E, quando eu

comecei a observar algumas pessoas aqui usar lenço, peruca, logo que eu entrei no

hospital prá fazer o tratamento, eu me senti muito mal porque eu sabia que eu ia chegar

naquela situação...”

Jaciléia (dep.13)

Page 81: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

69

A COMPREENSÃO VAGA E MEDIANA:

Este não foi um momento fácil! Pois por já estar embrenhada na leitura de Ser e

Tempo e no pensamento heideggeriano, tive a tentação de desenvolver direto a

hermenêutica, porém a análise compreensiva e o método destacam a compreensão vaga

e mediana como o primeiro momento, anterior e necessário à interpretação.

Através dos pensamentos, emoções e percepções das mulheres acerca do que lhes

perguntei, elas foram pouco a pouco se mostrando em sua facticidade, em seu universo

ôntico. A partir então desta compreensão vaga e mediana, comecei a estruturar as

unidades de significação, buscando, posteriormente desvelar, o sentido velado em cada

uma delas.

Assim, a compreensão vaga e mediana, mostrou que a mulher em tratamento

quimioterápico para o câncer de mama, recebe da equipe de saúde toda a informação e

explicação acerca do factual, ou seja, a perda iminente do cabelo. Além da orientação

verbal que recebe da enfermeira e do médico sobre este efeito colateral no início do seu

tratamento, ela também tem na mesma oportunidade e à sua disposição, uma peruca

como empréstimo.

No seu cotidiano do tratamento quimioterápico, tem ainda a oportunidade de

constatar o fato de que outras mulheres já iniciaram o tratamento e em conseqüência

perderam seu cabelo. Este contato ocorre no período em que aguarda a consulta médica

ou durante o próprio tratamento, quando as mulheres estão reunidas no corredor de

espera ou na sala de quimioterapia. Ela tem então, a possibilidade de conversar com

outras mulheres e observar a falta do cabelo em algumas, e no entanto, parece realizar

um movimento ambíguo onde apesar de orientada e de já ter visto outras mulheres sem

o cabelo, não projeta para si mesma esta consequência do tratamento. É como se a

orientação recebida, que muitas vezes é seguida de lágrimas e desvios de olhares e a

Page 82: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

70 experiência da visão de outras na situação informada, não fosse considerada como

realidade futura para ela,apesar de temê-la e constatá-la. É como se não acreditasse.

Assim, há sempre surpresa diante do modo súbito como ocorre a perda do cabelo.

O impacto desta perda parece causar espanto e ela sente-se entristecida, apavorada,

incrédula com a situação. Sente-se impotente diante deste fato que a deixa incapacitada

de ajudar-se a si mesma, evitando que o cabelo caia. Está fora de suas mãos qualquer

ação que impeça ou atenue esta perda.

Portanto, ela tem conhecimento do que lhe vai acontecer, vê em outras o

acontecido, porém não o reconhece como seu futuro imediato e assim, o impacto com o

acontecendo não impede o susto, a tristeza, a vergonha, o medo.

Sente-se então envergonhada sem o seu cabelo. Os artifícios que existem para

disfarçar esta perda, nem sempre são bem aceitos por ela. Percebe que os outros vão

notar o disfarce. Acredita que todo mundo sabe que está usando algum artifício para

encobrir a falta do cabelo, mas não tem coragem de expor-se sem o cabelo,

consequência de um tratamento para uma doença maligna. Para os outros assim,

permanece encoberto o fato da doença e do tratamento. Eles, na visão dela, notam a

diferença, a falta do cabelo, fazem suposições, mas não sabem na realidade o porquê, e

ela, não tem interesse em dar explicações e partilhar este seu momento, ao contrário,

esquiva-se do que considera curiosidade alheia e vontade apenas de comentar, sem a

preocupação de ajuda.

A mulher não se sente ela mesma, é como se fosse estranha para si mesma e

portanto para os outros. É como se perdesse a identidade. Sente-se discriminada, tem

medo, vergonha e tristeza de ser vista sem o cabelo, incomoda-se com o que os outros

vão pensar ou dizer dela. Sente-se mal até mesmo ao olhar-se no espelho, assim

desfigurada. Chega a pensar em abandonar o tratamento e isolar-se.

Page 83: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

71

Além desta perda, outras também ocorrem. O convívio social fica prejudicado, deixa

de participar de atividades do dia a dia como ir a Igreja, participar de festividades, sair à

rua, estar com os vizinhos. Evita os outros e tende a restringir sua convivência aos que

têm conhecimento da sua doença e tratamento, ou seja, a família, os amigos mais

chegados e a equipe de saúde.

E de fato, fecha-se no seu núcleo familiar, naqueles que lhe são mais próximos e

também nos profissionias de saúde, onde encontra apoio e conforto. Diante deles, sente

cumplicidade na sua desventura e compreensão do seu sofrimento. Isto a auxilia a

continuar sua vida rotineira, ajuda-a a prosseguir com o tratamento, pois pelo menos

existe alguém com quem pode compartilhar este seu momento. São pessoas que não

vão questioná-la, que não estão curiosas e nem interessadas em comentar sobre seu

novo aspecto, mas sim estão ao lado dela para apoiá-la.

Inicialmente, a mulher desespera-se diante de sua nova realidade, muitas vezes

encarando-a como o pior de tudo que lhe aconteceu desde que foi diagnosticada a

doença. Descreve-se como nervosa, deprimida, chorosa, angustiada, abalada mesmo.

Pois a mulher além de ver-se diante de uma doença grave, da cirurgia mutilante ou de

sua perspectiva, ainda percebe-se frente a uma desfiguração exterior provocada pela

falta do cabelo. É como se fosse a gota d’água, é coisa demais para ela. Sem o cabelo

parece estar exposta de modo definitivo diante de si mesma e dos outros como pessoa

doente, pois a perda da mama ou o próprio tumor, podem ser ocultados mas não há

como fazer o mesmo com o cabelo.

A mulher sente também que há algo maior que ela, que olhará por ela com

benevolência e a ajudará a superar tudo pelo que está passando. É como se não

pudesse fazer nada por ela mesma, pois seu destino é ditado e guiado segundo a

vontade de Deus.

Page 84: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

72 Após o temor inicial no entanto, a mulher busca superar o abalo pela perda do

cabelo, e embora muitas vezes identifique este fato como o pior de tudo, tenta adaptar-se

à situação. Parece menos desesperada e menos triste, mais acostumada, mais

conformada, pois não há mesmo o que fazer diante do ocorrido. Nesse processo de

aceitação, procura então voltar às suas atividades rotineiras aceitando usar disfarces

para cobrir a cabeça e tentando levar sua vida da forma mais normal possível. E quando,

por contingências do tratamento, ocorre uma segunda perda do cabelo, encontra-se, no

seu entender, mais capaz de enfrentar a situação já vivenciada anteriormente.

A certa altura do tratamento, e já conformada com a perda do cabelo, a mulher

volta-se então para o que julga ser o mais importante de tudo: a recuperação da saúde, a

cura. Ela está é querendo viver, e então, confia no tratamento, na equipe de saúde, e

tem como objetivo, ficar saudável novamente. Por isso, qualquer que seja o sofrimento

pelo qual tenha que passar, ele é aceito como válido e menos importante, já que agora

encara-o como benefício futuro. É como se fosse necessário sofrer para alcançar a cura.

Assim a perda do cabelo torna-se no seu pensar e dizer, menos importante. E espera,

pacientemente, o fim do tratamento, o crescimento do cabelo e a continuação da vida

com a saúde recuperada. O pesadelo terminou e a vida até aquele momento parece ter

voltado ao normal, apesar das cicatrizes...

Page 85: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

73

A INTERPRETAÇÃO COMPREENSIVA:

O ser-no-mundo cotidiano, é o modo de ser em que estamos na maioria das vezes e

é aquele da inautenticidade, pois ele é regido pelo impessoal, pelo quem, onde todos são

e ninguém é. A pre-sença, neste modo de ser, encontra-se na impessoalidade, não tendo

encontrado a si própria. Para Heidegger (1995:182),

O próprio da pre-sença cotidiana é o próprio-impessoal que distinguimos do si mesmo em sua propriedade...Enquanto o próprio-impessoal, cada pre-sença se acha dispersa na impessoalidade, precisando ainda se encontrar

Assim, ser-no-mundo na cotidianidade é o modo predominante como o humano

relaciona-se com o mundo circundante, ou mundo próximo, ou mundo doméstico, com os

outros e consigo. Neste modo de ser que é o da ocupação, neste relacionar-se, o ser-no-

mundo é guiado pela circunvisão, ou seja, para o que está ao seu redor, voltando-se

para as entidades e não para a pre-sença em seu aí mais próprio e originário que

pertence ao ser. Portanto na inautenticidade, a mulher que é informada de que vai perder

seu cabelo, volta-se para as possibilidades abertas pelo impessoal e para a

compreensão e interpretação medianas ditadas por ele.

O que compreendi a partir da unidade de significação número um, ... assustada pela

maneira inesperada como ocorreu esta perda e por vezes tem dúvidas quanto à reversão de sua

condição8, foi que sendo informada de que perderá o cabelo e podendo constatar o fato

8 O período em itálico é a reprodução textual de unidades de significação conforme apresentadas anteriormente.

Page 86: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

74 através da visão de outras na mesma situação, a pre-sença parece descompromissada

com o acontecer, estando voltada para a coisa que ocorre, de modo superficial,

acolhendo apenas a informação na superficialidade, achando que compreendeu o que

afinal todo mundo já sabe e conhece, quando na verdade nada foi compreendido

autenticamente. Por isso, a mulher sofre um impacto quando seu cabelo cai, pois antes,

presa ao modo da ocupação e exposta ao falatório e à curiosidade, que estão ocupados

apenas em pressentir, a pre-sença vê apenas as suas possibilidades ditadas pela

ambigüidade, que está ali para tirar-lhe a força. Com a realização do que se pressentia, a

pre-sença é remetida para si própria e o falatório e a curiosidade perdem seu poder. É

como dizem Maria Teresa (dep.9) e Maria Antonia (dep.14) em suas falas:

“... Mas quando cheguei em casa que eu botei a mão assim(passa a mão atrás da

cabeça), que vi isso aqui igual... sei lá, assim me io afastado, eu fui botar a mão, os

dedos foi entrando, eu digo: ai meu Deus, chegou a hora!...”

“...Você perdendo cabelo, fica angustiada, né?Dá um a sensação muito estranha(ri).

Você em frente ao espelho, né?...”

O falatório, o qual pude perceber na unidade de significação dois, ...com dificuldades

para desenvolver atividades sociais e de conviver com as outras pessoas e consigo mesma, é um

modo de ser da pre-sença, a partir do qual ela realiza a compreensão e interpretação

cotidiana. Ele se constitui pela falta de solidez, pois não está preocupado com uma

apropriação originária do ente referencial, mas sim ocupa-se apenas em falar, em passar

adiante a fala, sem fundamentá-la ou deter-se em sua compreensão originária. Para

Heidegger (1995 :228),

Page 87: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

75

Tanto a escuta quanto a compreensão já se colaram previamente no que foi falado no falatório. A comunicação não “partilha” a referência ontológica primordial com o ente referencial, mas a convivência se move dentro de uma fala comum e numa ocupação com o falado. O seu empenho é que se fale.

A interpretação e a compreensão mediana cotidiana ditada pelo falatório, está

consolidada na pre-sença e Heidegger (1995 :229) comenta que

É dessa maneira que nós aprendemos e conhecemos muitas coisas e não poucas jamais conseguem ultrapassar uma tal compreensão mediana. A pre-sença nunca consegue subtrair-se a essa interpretação cotidiana em que ela cresce. Toda compreensão, interpretação ou comunicação, toda redescoberta e nova apropriação se cumpre nela, a partir dela e contra ela.

Portanto, o falatório constitui o modo de ser da pre-sença descompromissada

consigo mesma e com os outros. Ele não está voltado para uma compreensão genuína e

autêntica, segundo as possibilidades essenciais da pre-sença, de si mesma e dos entes

que vêm ao encontro no mundo. Assim é que Heidegger (1995 :230) pondera que,

...como ser no mundo, a pre-sença que se mantém no falatório rasgou suas remissões ontológicas primordiais, originárias e legítimas com o mundo, com a co-presença e com o próprio ser-em. Ela se mantém oscilante e, desse modo, sempre é e está junto ao “mundo”, com os outros e consigo mesma.

Assim como o falatório ocupa-se com o falar, a curiosidade ocupa-se em ver apenas

por ver, sem almejar compreender aquilo que se vê. Para Heidegger (1995 :233),

Page 88: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

76

A curiosidade nada tem a ver com a meditação que admira os entes, ...Ela não se empenha em se deixar levar para o que não compreende através da admiração, do espanto. Ela se ocupa em providenciar um conhecimento apenas para tomar conhecimento.

Por não estar interessada em apreender aquilo que vê e sim apenas buscar a visão

de algo novo, para depois logo passar a outra novidade, a curiosidade caracteriza-se

pela impermanência e pela dispersão, levando a pre-sença a um desenraizamento e

descompromisso contínuos.

No modo de ser cotidiano, a curiosidade é arrastada pelo falatório, o qual determina

o que deve ser visto. Esses dois modos de ser tendem a manter a pre-sença

desenraizada e na inautenticidade e Heidegger (1995 :233) comenta que,

A curiosidade, a que nada se esquiva, o falatório, que tudo compreende, dão à pre-sença, que assim existe, a garantia de “uma vida cheia de vida”, pretensamente autêntica.

Estando na inautenticidade, no modo cotidiano de ser do impessoal e portanto

afastada de si mesma e de suas possibilidades mais próprias, a mulher de-cai no mundo

em seu empenho na convivência ditada pelo falatório. Este que não está preocupado

com o ser-aí, mas sim ocupa-se com o falado, em falar.

A mulher vê-se então lançada no mundo e exposta ao que vão dizer ou pensar dela.

Assim, no fechamento do falatório, se deixa levar pela interpretação mediana e pública

que a arrasta para a disposição do temor, como compreendi nas unidades de

significação dois, ...com dificuldades para desenvolver atividades sociais e de conviver com as

outras pessoas e consigo mesma, tres, ... inicialmente entristecida, deprimida porém, após o fato

consumado procura controlar-se, tranquilizar-se e adaptar-se à sua nova condição, e sete, ... que

Page 89: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

77 encara esta perda com grande tristeza, a qual pode ser maior que aquela causada pela gravidade

da doença, o sofrimento do tratamento e a mutilação pela mastectomia.

Para Heidegger(1995:229-30),

O predomínio da interpretação pública já decidiu até mesmo sobre as possibilidades de sintonização com o humor, isto é, sobre o modo fundamental em que a presença é tocada pelo mundo. O impessoal prescreve a disposição e determina o que e como se “vê”.

A disposição ou sentimento de situação, é o que onticamente reconhecemos como

humor, clima, atmosfera, tonalidade afetiva, em que a pre-sença sempre se encontra. O

temor é um modo da disposição, um modo de ser da mulher que ao perder o cabelo,

vivencia a convivência com os outros e consigo mesma como ameaça, como pude

compreender nas unidades de significação um, ...assustada pela maneira inesperada como

ocorreu esta perda e por vezes tem dúvidas quanto à reversão de sua condição, dois, ...com

dificuldades para desenvolver atividades sociais e de conviver com as outras pessoas e consigo

mesma, e sete, ... que encara esta perda com grande tristeza, a qual pode ser maior que aquela

causada pela gravidade da doença, o sofrimento do tratamento e a mutilação pela mastectomia.

Segundo Heidegger ( 1995 :195), o fenômeno do temor pode ser analisado pela

perspectiva do que se teme, o temer e pelo que se teme.

Assim, o que se teme, o temível, é o que é ameaçador, aquilo que ameaça e que

apresenta-se como “um ente que vem ao encontro dentro do mundo, podendo ter o

caráter do manual ou do ser simplesmente dado ou ainda da co-presença” ( Heidegger,

1995 :195).

Aquilo que se teme tem o caráter da ameaça e trás consigo o perigo. Um dos

aspectos do que se teme é o de dano, o que causa prejuízo em certo contexto, vem de

Page 90: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

78 determinada região e que é, ainda, conhecido. O danoso, sempre está numa

proximidade e emana algo que ameaça ( Heidegger, 1995 :195).

Assim, a mulher teme a quimioterapia, encarando-a como algo ameaçador, pois

segundo lhe informaram, fará com que perca o seu cabelo e portanto causar-lhe-á dano

ao afetar a imagem que tem de si própria e expondo-a ainda, aos outros.

A crescente aproximação do que se teme, representa também o crescimento do

temor. No entanto embora na proximidade e aproximando-se, o danoso pode ou não

chegar.

O temor tem assim um forte caráter de aproximação, percebe-se que algo está se

aproximando, porém pode não chegar. O que constitui portanto o temor, é esta

possibilidade de não chegar, é a esperança de que a ameaça não chegue, a esperança

de escapar dela9 . Por isso também, a mulher não considera a perda do cabelo que lhe é

informada e pode ser notada por ela em outras, como realidade futura, pois há sempre a

esperança de que ela nunca se concretize, como compreendi a partir das unidades de

significação um, ... assustada pela maneira inesperada como ocorreu esta perda e por vezes tem

dúvidas quanto à reversão de sua condição, e sete, ... que encara esta perda com grande tristeza,

a qual pode ser maior que aquela causada pela gravidade da doença, o sofrimento do tratamento

e a mutilação pela mastectomia .

O que provoca o temor não é isto que se teme, essa ameaça que está se

aproximando. Mas sim o temer ele mesmo, que abre assim a possibilidade e libera a

ameaça enquanto ameaça10 .

9 Anotações de aula da disciplpina “A Questão da Tonalidade Afetiva (Stimmung) em Heidegger”, ministrada pelo professor Dr. Roberto Charles Feitosa, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais ( IFCS), 1o semestre de 1997. 10 Ibdem.

Page 91: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

79

O temer, é a disposição afetiva, é aquela que permite o contato e o encontro com

algum ente dentro do mundo. O temer é que é condição de possibilidade do que é temido

e não o contrário. O temer abre portanto o ser-aí para o temível. Sendo o ser-aí temer, é

que possibilita a existência do temível11 .

Sendo pre-sença temerosa, a mulher se vê lançada na possibilidade de ficar sem

o seu cabelo, e portanto aberta para o temível. Segundo Heidegger (1995 :196), “Como

possibilidade adormecida do ser-no-mundo disposto, o temer é “temerosidade” e, como

tal, já abriu o mundo para que o temível dele possa se aproximar”.

Pelo que se teme, é o que é ameaçado, é o que está em risco podendo ser a

própria existência, a de outro ou ainda os objetos que nos pertencem, etc. No entanto

segundo Heidegger ( 1995 :196), o que o temor mostra é o ser-aí temendo por si próprio.

O que está em risco no temer é o ser do ser-aí: “Apenas o ente em que, sendo, está em

jogo seu próprio ser, pode temer”.

O que o temor mostra, é pois, a pre-sença temendo por si própria em seu ser-no-

mundo junto as coisas e aos outros. O temor é uma possibilidade existencial, e abre a

pre-sença para suas possibilidades de estar em perigo, lançando-a em seu aí originário.

Para Heidegger (1995 :196),

O temer abre esse ente no conjunto de seus perigos, no abandono a si mesmo. Embora em diversos graus de explicitação, o temor desentranha a pre-sença no ser de seu pre... a pre-sença,enquanto ser-no-mundo, é um ser em ocupações junto a. De início e na maior parte das vezes, a pre-sença é a partir do que se ocupa. Estar em perigo é a ameaça do ser e estar junto a

11 Ibdem.

Page 92: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

80

A mulher aberta na disposição do temor e enquanto pre-sença que teme pelo seu

ser-no-mundo, revela uma preocupação antecipadora e temorosa diante da reação que

os outros terão ao vê-la sem o cabelo. Demonstra também temor diante da doença,

agora revelada de forma contundente para si e para os outros.

“...Uma vez na condução, quando caiu, ficou carequi nha, então eu tinha

medo...Doeu, eu amarrei bem o lenço com medo da pes soa as vêzes, sem querer,

de poder acontecer, a condução cheia, passa o braço , puxar...”

Zeni (dep.2)

“...A diferença que faz, só que a gente... Sair na rua, porque as pessoas cobra da

gente...”

Maria de Lurdes (dep.3)

“...As pessoas chega na minha casa, eu cubro logo a cabeça prá ninguém ver...”

Maria Adelaide (dep.8)

“...Eu já falei que vou ficar fechada dentro de cas a, que não vou sair na rua...”

Lenice (dep.11)

“...Aí,eu procuro, eu procurei fazer o seguinte: é não olhar tanto... Então eu não

vejo, não olho...

Margareth (dep.19)

“... Prá mim a perda do meu cabelo foi o pior de tudo. A té hoje né, quando eu chego

assim em frente ao espelho, eu tenho aquela depress ão...”

Maria Auxiliadora (dep.4)

Page 93: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

81 “...Bom eu vou falar a verdade. Foi a única vez que eu chorei, foi quando caiu meu

cabelo. Eu fiquei muito triste mesmo. Acho que eu f iquei mais triste aliás que

quando... de ter tirado a mama...”

Nereida (dep.5)

O temor é uma abertura que coloca em risco o equilíbrio do ser-aí. Ele abre o

próprio do ser-aí de forma tão radical e privativa, que o ser se mostra em desequilíbrio,

em confusão e necessita se recompor quando ele passa, ou seja, se achar de novo até

voltar assim ao modo de ser cotidiano conhecido de si próprio12 .

Portanto, sentindo-se ameaçada, em perigo e temendo a perda do cabelo, a mulher

experimenta após o fato consumado, uma sensação de recomposição, foi o que

compreendi nas unidades de significação tres, ... inicialmente entristecida, deprimida porém,

após o fato consumado procura controlar-se, tranquilizar-se e adaptar-se à sua nova condição, e

sete, ... que encara esta perda com grande tristeza, a qual pode ser maior que aquela causada

pela gravidade da doença, o sofrimento do tratamento e a mutilação pela mastectomia.

E sobre isso, comentando acerca do temor Heidegger (1995:196) diz que,

Ele confunde e faz “perder a cabeça”. O temor vela, ao mesmo tempo, o estar e ser-em perigo na medida em que deixa ver o perigo a ponto da pre-sença precisar se recompor depois que ele passa.

É como relataram Miriam (dep.1), Zeni (dep.2) e Laurani (dep.10)

12 Ibdem.

Page 94: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

82 “...A expectativa do cabelo cair é que me incomodou bastante... eu ficava

angustiada, ficava nervosa. Meu cabelo vai cair, vo u ficar careca. Depois do fato

acontecido, aí foi mais tranquilo...”

“...Agora eu coloco o lenço normalmente e se ele ca ir, eu vou continuar. Consegui

controlar aquele complexo, não sei se é complexo, é um nervoso que eu tinha...”

“...A primeira vez que começou a cair, eu entrei nu m... fiquei desesperada. Depois

eu me conformei...”

Heidegger (1995 :197) afirma que o temor apresenta momentos variados e é dentro

deles que aparecem as diferentes possibilidadaes de ser do temer. Assim o pavor ocorre

quando a ameaça de algo conhecido, que se encontrava na proximidade, subitamente se

concretiza para o ser-no-mundo. O horror ocorre quando algo não conhecido se

concretiza subitamente para o ser-no-mundo. E o terror, é algo súbito que se concretiza

para o ser-no mundo, possuindo o caráter de pavor e horror ao mesmo tempo.

Pude então compreender que a mulher submetida ao tratamento quimioterápico

para o câncer de mama no qual perde seu cabelo, sente pavor diante da quimioterapia

que subitamente a faz perder o cabelo. A quimioterapia, esta conhecida de antemão

como recurso para se combater a doença, e que sempre esteve numa proximidade real

da mulher desde o diagnóstico do câncer de mama, com sua possibilidade ameaçadora

de trazer a perda do cabelo. Sente horror ao ver-se sem o seu cabelo. Embora

prevenida anteriormente sobre a perda do cabelo, a mulher desconhece o impacto

causado por esta visão não familiar de si própria e que subitamente se abate sobre ela. E

sente terror ao ver-se exposta, assim desfigurada, aos outros. A vivência desta nova

Page 95: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

83 aparência, na qual a mulher desconhece a si própria e que ocorre de modo súbito, é

assim mostrada de forma inegável para si mesma e para os outros.

A pre-sença sempre se encontra de humor e qualquer que ele seja, sempre ocorre

uma abertura. Assim Heidegger (1995 :189) comenta que

No estado de humor, a pre-sença já sempre se abriu numa sintonia com o humor como o ente a cuja responsabilidade a pre-sença se entregou em seu ser e que, existindo, ela tem de ser.

Na trajetória da mulher, a partir do aparecimento da doença, do seu diagnóstico e do

seu tratamento, ela tem a possibilidade de voltar-se para si mesma como ser possível em

sua propriedade e assumir de forma autêntica o seu ter de ser e a responsabilidade do

seu ser como pre-sença lançada no mundo numa situação de doença.

Porém, estando na disposição do temor, permanece no modo de ser cotidiano,

recusando o encontro com o próprio possibilitado pela abertura que se faz no humor.

Não se deixa levar pela abertura, pelo estar lançada que indica a facticidade de ser

entregue à responsabilidade. A pre-sença ao contrário, se esquiva ao ser que se abre no

humor, dele e do seu peso de ter de ser sem proveniência e sem destino, faz pouco

caso.

Mas é no próprio movimento de esquivar-se, que o pre da pre-sença se abre em seu

ser e Heidegger (1995 :189-90), pondera que

O ente que possui o caráter da pre-sença é o seu pre, no sentido de se dispor, implícita ou explícitamente, em seu estar-lançado. Na disposição, a pre-sença já se colocou sempre diante de si mesma e já se encontrou, não como percepção mas como um dispor-se no humor. Enquanto ente entregue à responsabilidade de seu ser, ela também se entrega à responsabilidade de já se ter sempre encontrado- encontro que não é

Page 96: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

84

tanto fruto de uma procura direta mas de uma fuga. O humor não realiza uma abertura no sentido de observar o estar-lançado e sim de enviar-se e desviar-se.

A mulher, na disposção do temor, realiza um movimento de desvio, de fuga do ser

que se abre no humor, recusando o confronto com o si e sua propridade, permanecendo

na inautenticidade. Mas o que torna possível o temor, é a angústia. Só há temor porque

podemos nos angustiar, e sobre isso Heidegger (1995 :254) comenta que,

Como a angústia já sempre determina, de forma latente, o ser-no-mundo, este, enquanto ser que vem ao encontro na ocupação junto ao “mundo”, pode sentir temor. Temor é angústia imprópria entregue à de-cadência do “mundo” e, como tal, angústia nela mesma velada”.

Compreendi então na unidade de significação sete, ... que encara esta perda com

grande tristeza, a qual pode ser maior que aquela causada pela gravidade da doença, o

sofrimento do tratamento e a mutilação pela mastectomia, que a mulher ainda temerosa,

entregue a decadência do mundo e expressando profunda tristeza pela perda de seu

cabelo, que parece ser o ponto culminante de tantas perdas, inicia ali um processo de

singularização, de voltar-se para si mesma como ser-no-mundo. Começa assim, a

realização da passagem do indefinido, do indeterminado onde todos são e ninguém é,

para uma maior determinação onde cada um vai ter de assumir a responsabilidade sobre

seu próprio ser. Diz Nereida (dep. 5) :

“...Bom eu vou falar a verdade. Foi a única vez que eu chorei, foi quando caiu meu

cabelo. Eu fiquei muito triste mesmo. Acho que eu f iquei mais triste aliás que

quando... de ter tirado a mama... Foi como se tives se tirado um pedaço de mim...”

Page 97: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

85

Percebi também, na unidade de significação seis, ... que tem fé em Deus e Nele deposita

sua confiança e seu destino, que ainda na inautenticidade, a mulher entrega a Deus o

cuidado de si própria e refere-se e volta-se para Ele como entidade, não percebendo

neste seu invocar a Deus, o chamamento de si mesma e a abertura plena para sua

possibilidade mais pura. No entanto, mesmo sem esta compreensão, ela mostra-se

movendo neste sentido, pois ao falar de Deus prenuncia a busca de suas possibilidades

mais próprias13. É como diz Jaciléia (dep.13):

“...A minha confiança não tá no homem, não tá no mé dico mas tá em Deus... Se

não for de Deus, se não for a vontade de Deus, não adianta o homem lutar...”

Então, em dado momento do tratamento, a mulher volta-se para si mesma como

ser-no-mundo e mostra-se num aí, como me foi possível compreender na unidade de

significação cinco, ... que se submete ao que for necessário para recuperar a saúde. Ao

angustiar-se, a pre-sença, é remetida para o seu poder-ser mais próprio. A angústia,

como disposição privilegiada, singulariza a pre-sença em seu

ser-no-mundo e realiza a abertura dela como ser possível.

Para Heidegger (1995:252),

Na pre-sença, a angústia revela o ser para o poder ser mais próprio, ou seja, o ser-livre para a liberdade de assumir e escolher a si mesmo. A angústia arrasta a pre-sença para o ser-livre para... para a propriedade de seu ser enquanto possibilidade de ser aquilo que já sempre é. A pre-sença como ser no mundo entrega-se, ao mesmo tempo, à responsabilidade desse ser.

13 Anotações de encontro com a professora Dra. Telma Apparecida Donzelli, setembro de 1997.

Page 98: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

86

A angústia, ao provocar essa abertura que singulariza a pre-sença, traz um

sentimento de estranheza pois, retira-a da de-cadência, revelando-lhe a propriedade e

impropriedade de seu ser como possibilidades. Segundo Heidegger (1995 :255),

Na angústia, essas possibilidades fundamentais da pre-sença, que é sempre minha, mostram-se como elas são em si mesmas, sem se deixar desfigurar pelo ente intramundano a que, de início e na maior parte das vezes, a pre-sença se atém.

Assim a mulher assume-se como ser que luta pela recuperação da sua saúde,

entrega-se ao tratamento como possibilidade de escolha para ficar curada, e sendo,

encara em sua abertura e possibilidades de estar lançada a perda do cabelo

conseqüente ao tratamento quimioterápico com aceitação, pois submeter-se a esta

terapia foi resultado de sua decisão, do seu poder-ser.

Segundo Heidegger (1995 :256),

Esse poder-ser é a destinação onde a pre-sença é sempre como ela é. Em seu ser, a pre-sença já sempre se conjugou com uma possibilidade de si mesma. É na angústia que a liberdade de ser para o poder-ser mais próprio e, com isso, para a possibilidade de propriedade e improprieade se mostra numa concreção originária e elementar.

Esta compreensão me foi dada a partir dos depoimentos de Zeni (dep.2), Lenice

(dep.11), e Jaciléia (dep.13),

“...A única coisa que tenho mais assim em mim, é fi car boa. Agora o cabelo

cresce tudo, depois cresce liso(risos)... Deixa ele ...”

Page 99: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

87 “...Acho que foi a única coisa na minha vida que eu falei que não ia fazer e...é,

voltei atrás e comecei a fazer...”

“...Fiquei muito triste, mas depois eu comecei vê q ue cabelo não é tudo prá gente.

Não é o mais importante mas o mais importante, é a saúde da gente...Quer dizer,

eu luto. Luto porque ainda tenho muita vontade de v iver e um dia ser feliz... Então,

eu quero ficar boa e tô lutando...”

Ser-no-mundo é essencialmente ser-com e o mundo é sempre mundo

compartilhado. Com seu núcleo familiar mais próximo e com a equipe de saúde, a mulher

com-partilha o mundo com outros que se preocupam com ela e não apenas se ocupam

dela, como foi por mim compreendido na unidade de significação quatro, ... que encontra

junto à família, aos amigos próximos e aos profissionais de saúde, apoio para enfrentar este

momento.

No pensar de Heidegger, o ser-com enquanto característica existencial da pre-

sença, deve se exprimir na convivência através de um preocupar-se com o outro e um

ocupar-se das coisas.

O se ocupar, não é uma característica ontológica do ser-com, mas sim um modo de

ser da pre-sença para com os entes que vem ao encontro no mundo como ocupação.

Sobre isso Heidegger (1995 :173) nos diz que,

O ente com o qual a pre-sença se comporta como ser-com, também não possui o modo de ser do instrumento à mão, pois ele mesmo é pre-sença. Desse ente não se ocupa,com ele se preocupa.

Page 100: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

88

A preocupação, é uma característica ontológica da pre-sença enquanto ser-com.

Porém, cotidianamente e na maior parte das vezes nos encontramos nas formas

deficientes da preocupação, caracterizada pela indiferença. Assim, na convivência

cotidiana agimos na maioria das vezes ocupando-nos do ser como à um manual, e desta

forma entificando-o.

A preocupação no que se refere a seus modos positivos de convivência, possui duas

possibilidades. Uma chamada de substituição dominadora, onde o cuidado do outro lhe é

retirado podendo ele tornar-se então dependente ou dominado por não ter

responsabilidade consigo próprio e sim, tê-la ao encargo de outro. E a preocupação

denominada de anteposição liberadora, onde o cuidado é devolvido ao ser como tal e

ajuda-o a tornar-se livre para assumir a responsabilidade por si mesmo e suas

possibilidades mais própria.

A mulher junto à sua família e junto à equipe de saúde, encontra o segundo modo

positivo da preocupação. Esta que guiada pela consideração e tolerância, tem o caráter

positivo de co-existência autêntica.

Heidegger (1995:174) pondera que

Essa preocupação que, em sua essência, diz respeito à cura propriamente dita, ou seja, à existência do outro e não a uma coisa de que se ocupa,ajuda o outro a tornar-se, em sua cura, transparente a si mesmo e livre para ela.

A mulher reconhece assim, na co-presença dos outros, uma co-existência de ajuda

como relatam Maria Auxiliadora (dep.4) e Nereida (dep.5)

“...a gente faz oração pelos médicos, pelas enferme iras... várias coisas. Porque...

Precisa ter muita paciência, muito amor no coração. ..”

Page 101: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

89 “...Chamei uma amiga, fomo prá praia, fomo sentar l á embaixo das árvores, ficar

conversando... Que eu tenho uma amiga que eu conver so muito com ela... saímo,

fomo conversar, depois fomo pro bar, tomei uma cerv eja, aí me melhorou (risos).

Fiquei na boa de novo...”

Assim mediada pelo olhar compreensivo que a Fenomenologia possibilita, pude

refletir e ver o outro, no caso a mulher em tratamento quimioterápico para o câncer de

mama em conseqüência do qual perde seu cabelo, no seu em si mesmo.

Page 102: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

90

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: CAPALBO, Creusa. - Considerações sobre o método fenomenológico e a enfermagem.

Revista Enfermagem UERJ. Rio de Janeiro, 2, (2), out., 1994. HEIDEGGER, Martin - Ser e Tempo. Parte I. 5a ed. Trad. Márcia de Sá Cavalcanti.

Petrópolis, Editora Vozes,1995, 325p.(Coleção Pensamento Humano).

Page 103: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

91

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As inquietações surgidas em meu cotidiano profissional, conduziram-me a pensar

sobre os motivos da distância existente entre mim e a mulher quando à orientava sobre a

perda do seu cabelo. Tais inquietações levaram-me a refletir e a buscar o significado de

tal perda para ela.

Observava que apesar da orientação recebida, a mulher parecia sempre triste,

chorosa, fechada em si mesma, e nada parecia atenuar esta perda. Nem a visão de

outras na mesma situação, ou que já tinham vivenciado a alopécia, ou ainda a explicação

de que seu cabelo voltaria a crescer posteriormente.

Ao aproximar-me da Fenomenologia, voltei-me para a compreensão de quem ex-

siste diante da possibilidade da perda do cabelo, e que me permitiria assim chegar ao

sentido fundante do comportamento daquela mulher que tanto sofria, chorava e parecia

ter vergonha.

O olhar atentivo que a Fenomenologia propiciou, permitiu-me perceber que a

formalidade da assistência de enfermagem prestada à mulher ao orientá-la sobre o

tratamento na primeira vez em que chega a Central de Quimioterapia, conduz a um

enfoque da quimioterapia e de seus efeitos colaterais, psicológicos e sociais apenas

como fatos, tornando o profissional e o seu fazer, na maioria das vezes, fechado para a

sua possibilidade originária de ser-no-mundo-com na preocupação, mantendo-o assim

numa relação inautêntica e regida pelo modo do impessoal e da ocupação, entificando a

cliente.

Ser-com o outro, é ser co-presença origináriamente, e não lidar com o outro como

coisas simplesmente dadas no mundo. E sobre isso Heidegger (1995 :178) diz:

Page 104: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

92

... Na medida em que a pre-sença é, ela possui o modo de ser da convivência. Esta não pode ser concebida como o resultado da soma de vários “sujeitos”. O deparar-se com o contingente numérico de “sujeitos só é possível quando os outros são tratados como “números”. Tal contingente só se descobre por meio de um determinado ser-com e para os outros.Esse ser-com “desconsiderado” “computa” os outros sem “levá-los em conta” seriamente, sem querer “ter algo a ver” com eles.

A forma de orientação autoritária, que pela imposição do saber científico e factual,

impede a mulher de ter voz ao invés de dar-lhe voz, para desvelar o sentido desse seu

ex-sistir, diante da informação anteriormente dada pelo médico e repetida pela

enfermeira acerca do tratamento e conseqüente perda do seu cabelo, e que além disso,

é realizada num ambiente onde há muitas pessoas ao mesmo tempo acaba assim por

coletivizar um momento no qual dever-se-ia buscar a singularidade de cada um. Esta

condição mantém a enfermeira e a equipe de efermagem num desenraizamento e

descompromisso contínuos com aquela que é o objeto de seu assistir e de seu cuidado.

Segundo Capalbo (1994 :74),

O que importa não é a doença, mas o ser que vive esta doença, e que, ao vivê-la, não perde a sua dimensão ontológica de ser humano, que é, por isso mesmo, portador e merecedor de respeito, de dignidade, de valor na sua existência concreta.

Assim, percebi que a forma de aproximação à mulher, no primeiro contato que ela

tem com a enfermagem da Central de Quimioterapia, poderia contribuir para uma relação

enfermeira/cliente mais humanizada, e deveria ser realizada em um ambiente tranquilo,

na forma de consulta de enfermagem, possibilitando tanto ao profissional como a mulher,

o encontro.

Nessa primeira abordagem com a mulher, pode-se mostrar a ela, através de uma

relação empática, que nos importamos e temos a possibilidade de compreender as

Page 105: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

93 dificuldades pelas quais passará, e que ela encontra ali pessoas as quais pode recorrer

para falar sobre o sentido desse seu ex-sistir. É claro que compreendo a necessidade de

orientação para as normas e as rotinas, porém vejo a possibilidade delas emergirem

durante a conversação com a mulher.

Penso que ao invés de abordá-la instruindo-a sobre as normas, as rotinas e a perda

iminente do cabelo, poder-se-ia deixá-la a vontade para dizer o que sabe e o que sente

sobre a quimioterapia e a perda do cabelo que ela provocará, dando-lhe assim a

oportunidade de expressar-se, permitindo-lhe falar sobre seu temor diante desse efeito

colateral tão significativo para ela.

Importa lembrar que aquela mulher chega ali não por escolha pessoal, mas sim por

estar lançada no mundo, numa situação onde é portadora de câncer de mama. Encontra-

se ali então, para submeter-se a um tratamento que a fará perder o cabelo, e que é o

único meio do qual a ciência até então dispõe para ajudá-la a sobreviver. Mas ela está

apavorada diante da quimioterapia e suas conseqüências!

À ela são dadas muitas explicações científicas, muitas das quais ela já ouviu

anteriormente do médico, e se lhe oferece uma peruca. Porém não se está, desta forma,

eliminando o problema de quem está ali ex-sistindo apavorada diante da doença, do

início de um tratamento penoso e de seu efeito colateral inegável. Não se pode também

pensar que através deste artifício estético, está solucionado ou prevenido o temor do ser-

aí.

Considerando o significado do verbo prevenir, Lopes (1996 :128), menciona como

uma de suas definições “realizar antecipadamente”. No entanto, a mulher está ali diante

de algo que ela teme, e que se constitui numa ameaça que a coloca em perigo e causa

dano.

Quando retorna a Central de Quimioterapia já sem o seu cabelo, a mulher está

horrorizada com o que está lhe acontecendo e aterrorizada ao ter que enfrentar-se e aos

Page 106: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

94 outros. Compreender o que está se passando, ter um local adequado para conversar

com ela, nos possibilita chegar a essa mulher e ouvir o que pode ter a dizer. Possibilita,

ao apreender o significado desta sua vivência, também acompanhar seu movimento em

direção a seu aí originário, o qual, este sim, traz consigo a escolha pessoal, a decisão

existencial, de se tratar e de não abandonar o tratamento.

O assistir da enfermagem portanto, não deve se limitar a uma única conversa

caracterizada como orientação ou consulta de enfermagem à cliente, por ocasião da

primeira vez em que ela chega a Central de Quimioterapia. Um acompanhamento de seu

progresso em direção a liberdade e serenidade que traz o encontro consigo mesma, é

fundamental para que ela receba um assistir adequado, o qual lhe dá a oportunidade de

sobreviver e de curar-se.

Diante da compreensão que este estudo apontou, pela possibilidade de

compreensão do impacto e do comportamento assumido pela mulher causado por este

efeito colateral e das transformações determinadas no seu ex-sistir, penso que não só a

equipe de enfermagem mas a equipe multiprofissional (médicos, psicólogos, assistentes

sociais e nutricionistas), pode se apropriar deste novo conhecimento para melhor assistir

aquela de quem cuida.

Mantendo uma relação empática com a mulher, dando-lhe liberdade para a

possibilidade de poder-ser, posso vislumbrar a compreensão do comportamento

assumido pelo ser-aí, estabelecendo um relacionamento interpessoal genuíno e uma

assistência humanizada e holística.

Ao deixar-se tocar pelo outro que vem ao seu encontro no mundo, tanto a

enfermeira como a equipe de enfermagem e demais membros da equipe de saúde,

podem partilhar com a mulher seu ser-aí, realizar o encontro empático sendo-com ela.

Para Heidegger(1995 :177),

Page 107: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

95

No ser-com e para os outros, subsiste, portanto, uma relação ontológica entre pre-senças. Essa relação, pode-se dizer, já é constitutiva de cada pre-sença própria, que possui por si mesma uma compreensão do ser e, assim, relaciona-se com a pre-sença. A relação ontológica com os outros torna-se, pois, projeção do ser-próprio para si mesmo “num outro”.

A Fenomenologia, enquanto metodologia utilizada por mim neste estudo, e o pensar

de Martin Heidegger, possibilitaram-me olhar esta mulher por uma outra ótica: aquela da

compreensão como possibilidade do agir profissional.

Abordar a mulher que inicia o tratamento quimioterápico no qual perderá seu cabelo

sob a ótica da compreensão, traz a possibilidade de encontro com o ser-aí, que também

somos, permitindo não somente que ela seja ela mesma, mas sim nos possibilitando

também sermos nós mesmos.

Ao buscar, com um olhar compreensivo, desvelar o sentido que funda o

comportamento assumido pela mulher diante da perda do seu cabelo conseqüente ao

tratamento quimioterápico para o câncer de mama, objetivo deste estudo, pude

interpretar este sentido não como uma série de comportamentos, mas como as

possibilidades do ser-mulher ex-sistindo diante deste fenômeno. Heidegger (1995 :204),

referindo-se a compreensão e interpretação, afirma que:

Na compreensão, a pre-sença projeta seu ser para possibilidades. Esse ser para possibilidades, constitutivo da compreensão, é um poder-ser que repercute sobre a pre-sença as possibilidades enquanto aberturas. O projetar da compreensão possui a possibilidade própria de se elaborar em formas. Chamamos de interpretação essa elaboração. Nela, a compreensão se apropria do que compreende. Na interpretação se funda existencialmente na compreensão e não vice-versa. Interpretar não é tomar conhecimento de que se compreendeu, mas elaborar as possibilidades projetadas na compreensão.

Page 108: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

96

Continuando, comenta que:

No projeto da compreensão, o ente se abre em sua possibilidade. O caráter de possibilidade sempre corresponde ao modo de ser de um ente compreendido. O ente intramundano em geral é projetado para o mundo, ou seja, para um todo de significância em cujas remissões referenciais a ocupação se consolida antecipadamente como ser-no-mundo. Se junto com o ser da pre-sença o ente intramundano também descobre, isto é, chega a uma compreensão, dizemos que ele tem sentido.

(Heidegger, 1995 :208)

O olhar compreensivo trazido por esta abordagem, possibilitou-me ir ao encontro do

ex-sistir feminino diante da perda do cabelo, e das possibilidades abertas por esse

fenômeno ao ser-mulher em tratamento quimioterápico para o câncer de mama.

Lançada no mundo numa situação de doença e enfrentando o tratamento como

possibilidade de cura, essa mulher é remetida para si mesma e suas possibilidades mais

próprias. Percorrendo o caminho do modo impessoal e presa a língua de tradição que

dita nossa existência cotidiana, ex-sistindo com o temor do tratamento que a expõe

diante dos outros e de si mesma, acaba por encontrar-se em seu ser mais próprio e

originário ao angustiar-se. E a partir daí, assume seu ex-sistir de modo autêntico,

enfrentando as adversidades e as situações decorrentes do estar lançada de modo

singular e único.

Diante do exposto, vejo esta interpretação não como um movimento acabado. Foi

possível compreender que a mulher diante da perda do cabelo conseqüente ao

tratamento quimioterápico para o câncer de mama, em sua cotidianidade, caminha da

inautenticidade para a autenticidade, desenvolvendo um movimento na dimensão da

angústia, o que lhe permite ir ao encontro de si mesma.

Esta compreensão, também abre a possibilidade de continuidade deste estudo

através de um aprofundamento nesta disposição privilegiada do ser-no-mundo, que o

Page 109: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

97 conduz a liberdade de ser si mesmo. Segundo Leão (1996 :51), Heidegger, dentre várias

questões, se ocupa do processo que constitui a liberdade real, e esta é “o empenho de

realização das possibilidades de ser e de ter”.

Além disso, há o caminho para desvelar-se outras facetas deste fenômeno como por

exemplo a influência da linguagem de tradição, que media nossa existência, interferindo

nos aspectos relativos a feminilidade e a vaidade da mulher, e a dor e o desconforto

físico no couro cabeludo provocada pela perda iminente do cabelo relatada em alguns

depoimentos.

Este estudo trouxe ainda a possibilidade de refletir sobre a formação profissional da

enfermeira e de sua equipe. Percebo que ela tem sido pautada pelo modelo biomédico

que privilegia as patologias e diagnósticos em detrimento da pessoa doente, e não

valoriza na formação dos profissionais, as concepções teórico-filosóficas que aproximam

o ser doente de seus cuidadores. No entanto está posto para a enfermagem, enquanto

profissão de pessoas que cuidam de seus semelhantes, o desafio de seu rumo para o

próximo milênio, muito discutido atualmente nos meios acadêmicos. Muito se comenta

sobre a necessidade de humanização nos serviços de saúde, mas para tanto é

necessário que se passe a privilegiar o nosso cliente como pessoa no dia a dia do fazer

profissional e não valorizar apenas os aspectos factuais e funcionais da assistência (as

normas, as rotinas, os quantitativos de atendimento e as escalas de serviço).

A abordagem fenomenológica, ao valorizar o outro como ser único e singular, vem

possibilitar um outro caminho para a arte de enfermagem, no qual se possa conjugar às

práticas diárias do assistir, um olhar de natureza compreensiva que toda pessoa merece,

porque além de ter um corpo, ex-siste.

Page 110: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

98

BIBLIOGRAFIA:

ADES, Teresa et al In: Principles of Oncology Nursing - American Cancer Society

Textbook of Clinical Oncology. American Cancer Society, 40, 1991. ANDERSON, J.E. et al. - Prevention of Doxorubicin-induced alopecia by scalp cooling in

patients with advanced breast cancer. British medical journal. 282, fev.,1981. BOEMER, Magali R . - A condução de estudos segundo a metodologia de investigação

fenomenológica. Revista Latino-americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, 2(1) janeiro, 1994.

BOEMER, Magali R. - A Morte e o Morrer. São Paulo, Editora Cortez,1986, 135p. BOEMER, Magali R . - Empatia - proposta de abordagem fenomenológica. Revista da

Escola de Enfermagem, USP, São Paulo, 18 (1), 1984. BONASSA, Edva M.A . - Enfermagem em Quimioterapia.São Paulo, Rio de Janeiro,Belo

Horizonte, editora Atheneu, 279p., 1996. BRASIL / DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO - Decreto-lei número 3736/60, 1960. BRASIL / MINISTÉRIO DA SAÚDE, INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER - Programa

de Prevenção e Diagnóstico Precoce do Câncer Cérvico-Uterino e de Mama - Plano de implementação Nacional, 1996.

BRASIL / MINISTÉRIO DA SAÚDE, INSTITUTO NACIONAL D E CÂNCER,

COORDENAÇÃO DE PROGRAMAS DE CONTROLE DE CÂNCER- PRO -ONCO - Estimativa da Incidência e mortalidade por câncer no Brasil 1996, Pro- Onco, Rio de Janeiro, 19p., 1996.

BRASIL / MINISTÉRIO DA SAÚDE, INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER,

COORDENAÇÃO DE PROGRAMAS DE CONTROLE DE CÂNCER- PRO -ONCO - Estimativa da incidência e mortalidade por câncer no Brasil 1996, Pro- Onco, Rio de Janeiro, 19p., 1997.

BRASIL / MINISTÉRIO DA SAÚDE, INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER,

COORDENAÇÃO DE PROGRAMAS DE CONTROLE DE CÂNCER- PRO -ONCO - Ações de Enfermagem para o controle do Câncer. Rio de Janeiro, capítulo I, 1995.

BRASIL / MINISTÉRIO DA SAÚDE, INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER,

COORDENAÇÃO DE PROGRAMAS DE CONTROLE DE CÂNCER- PRO -ONCO - Registro hospitalar de câncer 1992. Pro-Onco, Rio de Janeiro, 1994.

BROWNMILLER, Susan. - Feminity. USA, Ballantines Books, 270p.,1984. CAPALBO, Creusa . Prefácio In: Metodologia da entrevista. Rio de Janeiro, Livraria AGIR

editora, 93p., 1987.

Page 111: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

99 CAPALBO, Creusa. - Alternativas metodológicas de pesquisa. Terceiro Seminário

Nacional de Pesquisa em Enfermagem. CAPALBO, Creusa. - Considerações sobre o método fenomenológico e a enfermagem.

Revista Enfermagem UERJ. Rio de Janeiro, 2, (2), out., 1994. CAPALBO, Creusa. - Abordando a enfermagem a partir da fenomenologia.Revista

Enfermagem UERJ. Rio deJaneiro, 2, (1), maio 1994. CAMARINHA, Mário. et al - Manual de Normas Técnicas de Editoração. 3a edição,

editora UFRJ, 75p.,1995. CARVALHO, Anésia. S. - Metodologia da entrevista: uma abordagem fenomenológica.

Rio de Janeiro, Livraria AGIR editora, 1987, 93p. CLINE, Brenda W. - Prevention of chemotherapy-induced alopecia: A review of the

literature. Cancer Nursing. jun.,1984. DARTIGUES, André. - O que é a Fenomenologia? 3a. ed., São Paulo, Editora

Moraes,1992, 174p. DE VITA, Vincent T. Jr. et al - Principles and Practice of Oncology. Philadelphia, J.B.

Lippincott Company, 4a ed., 1993. DEAN, Judith C. et al. - Prevention of Doxorubicin-induced hair loss with scalp

hypothermia. The New England Journal of Medicine, 301(26), 1979. EHMANN, Johanna L. et al - Intervening with alopecia: Exploring an entrepreneurial role

for oncology nurses. Oncology Nursing Forum, 18 (4), 1991. FREEDMAN, Tovia G. - Social and cultural dimensions of hair loss in women treated for

breast cancer. Cancer Nursing, New York, Raven Press, ltd. 17 (4), 1994. FUNDAÇÃO DAS PIONEIRAS SOCIAIS . Relatório das Atividades do ano de 1977, 1977. GHEZZI, Maria Ines L. - Convivendo com o ser morrendo. Porto Alegre, RS, Editora

Sagra, 1991, 136p. HEIDEGGER, Martin. - Todos nós...ninguém. Trad. Dulce Mara Critelli. São Paulo,

Editora Moraes, 1981, 72p. HEIDEGGER, Martin. - Ser e Tempo. Parte I. 5a ed. Trad. Márcia de Sá Cavalcanti.

Petrópolis, Editora Vozes, 1995, 325p. (Coleção Pensamento Humano). HUSSEIN, A. M. - Chemotherapy-induced alopecia: new developments. Southern Medical

Journal, 86(12), dez., 1993. KELLER, Joan F. et al - Nursing Issues and Management in Chemotherapy-Induced

Alopecia. Oncology Nursing Forum, 15 (5), 1988. KIEBERT,Gwendoline M. et al - Effect of peri-operative chemotherapy on the quality of

life ofpatients with early breast cancer. European Journal of Cancer, 26 (10), 1990.

Page 112: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

100 LEÃO, Emmanuel C. Apresentação. In: Ser e Tempo. Martin Heidegger. Parte I. 5a ed.

Trad. Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis editora Vozes, 1995, 325p. LEÃO, Emmanuel C. Heidegger e a Questão da Liberdade Real. O que nos faz pensar,

homenagem a Martin Heidegger, cadernos do Departamento de Filosofia da PUC-RIO, (1), out., 1996.

LESLEY, J. Fallowfield, et al - Psychosocial Problems Associated with the Diagnosis

and Treatment of Breast Cancer in The Breast:Comprehensive Management of Benign and Malignant Diseases. W. B. Saunders Company, 55, 1991.

LOPES, Regina Lúcia Mendonça, et al - A fenomenologia e a pesquisa em

enfermagem. Revista Enfermagem UERJ. Rio de Janeiro, 3 (1), maio, 1995. LOPES, Regina Lúcia Mendonça - O Avesso da Prevenção do Câncer Cérvico-Uterino

- O Ex-sistir Feminino sob a Ótica da Enfermagem. Tese (Doutorado). Escola de Enfermagem Anna Nery. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996, 169p.

MACKENNA, Robert J. - Supportive Care and Rehabilitation of Cancer Patient in

American Textbook of Clinical Oncology. Atlanta, The American Cancer Society, Inc., 37, 1991.

MANT, David et al - Epidemiology of Breast Cancer in The Breast: Comprehensive

Management of Benign and Malignant Diseases. USA, W. B. Saunders Company, 1991.

MARTINS, Joel, et al - A Fenomenologia como Alternativa Metodológica para Pesquisa -

Algumas Considerações. Mimeo, s.d. MARTINS, Joel, et al - A Pesquisa Qualitativa em Psicologia-Fundamentos e Recursos

Básicos.São Paulo, editora Moraes, EDUC-Editora da PUC-SP, 1989, 110p. MEAD JOHNSON ONCOLOGY PRODUCTS, BRISTOL LABORATORIE S ONCOLOGY

PRODUCTS - Counseling Folder (Breasts). U.S.A., 1994. MINAYO, Maria Cecília S. - Os muitos Brasis: saúde e população na década de 80. São

Paulo-Rio de Janeiro, Hucitec - Abrasco, 1995, 356p. MINAYO, Maria Cecília S. - O Desafio do Conhecimento:Pesquisa Qualitativa em

Saúde. São Paulo-Rio de Janeiro, 4a edição, Hucitec - Abrasco, 1996, 269p. MINAYO, Maria Cecília S., et al - Pesquisa Social:Teoria, Método e Criatividade. 4a

edição, editora Vozes, 1995, 80p. ONCOLOGY NURSING SOCIETY - Cancer Chemotherapy Guidelines. USA, Bristol-

Myers, Bristol Laboratories, Mead Johnson, II, 1988. PICKARD-HOLLEY, Sandra - The Symptom Experience of Alopecia. Seminars in

Oncology Nursing, 11(4), nov., 1995.

Page 113: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

101 PIONEIRAS SOCIAIS, CENTRO DE GINECOLOGIA LUÍZA GOME S DE LEMOS.

Boletim. 1(1), ago., 1958. RODRIGUEZ, R. et al - Minoxidil (Mx) as a prophylaxis of doxorubicin-induced alopecia.

Annals of Oncology, Neuquen, Argentina, Grupo Oncologico Cooperativo del Sur (G. O.C.S.), 5 (8), out., 1994.

SILVA, Marcelo G. C. - Epidemiologia do Câncer: Auto-avaliação e Revisão. Ministério

da Saúde, Instituto Nacional de Câncer, Coordenação de Programas de Controle de Câncer, Pro-Onco, Instituto de Câncer do Ceará, 1995.

SIMÕES, Sonia Mara F. - O ser parturiente: um enfoque vivencial. Dissertação

(Mestrado). Escola de Enfermagem Anna nery. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1995, 94p.

SOUZA, Ivis Emília de Oliveira. O desvelar do ser-gestante diante da possibilidade de

amamentação. Tese (Doutorado). Escola de Enfermagem Anna Nery. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1993.

STEINER, George. - As Idéias de Heidegger. Trad. Álvaro Cabral, São Paulo, Editora

Cultrix, 1978,140p. TOLLENAAR, R.A. et al - Scalp cooling has no place in the prevention of alopecia in

adjuvant chemotherapy for breast cancer. European Journal of Cancer, 30A (10), 1994.

TROTIGNON, Pierre. - Heidegger. Trad. Armindo José Rodrigues. Rio de Janeiro

Edições 70, 1990, 102p. VATTINO, Gianni. - Introdução a Heidegger. 5a ed. Trad. João Gama.Lisboa:Edições

70,1987. 193p. (Coleção O Saber da Filosofia). VIEIRA, Terezinha T. - Importância da Imagem Corporal na Prática de Enfermagem.

Tese de Livre Docência, Escola de Enfermagem Anna Nery, UFRJ, 1977. WITMAN, Gary et al. - Misuse of scalp hypothermia. Cancer Treatment Reports, 65, (5-

6), maio / jun., 1981.

Page 114: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

102

ANEXO:

AS DEPOENTES

Miriam (22/10/96-D.1)

O que significou para você a perda do seu cabelo?

“Olha,quando meu cabelo começou a cair, um buraco aqui, outro buraco ali, eu fiquei

com aparência de doente limpa. Me fez muito mal. Aí, eu sentei no salão e mandei

raspar. Aí, eu comecei a curtir (risos). Sabe, aquele negócio quando você chama a

atenção? Passei a ser centro de atenção. Isso satisfazia meu ego(risos). Mesmo com a

carequice. Aí, comprei uma coleção de boné. Combinava o boné com a roupa. Não tive

grandes problemas não. Em alguns casos, que riam, tem gente que ri, depois eu levava

na brincadeira eu... Sabe, não me abalou, sinceramente não me abalou.

-E quando começou este crescimento de volta? O que você sentiu, foi...

-Que que eu senti quando ele começou a crescer? Eu já sabia que ele ia crescer, quer

dizer, não me pegou de surpresa, fui acompanhando o crescimento dele, fui

acompanhando. Então estou procurando como eu fico melhor. Com ele baixinho (risos),

para aí fazer tipo.

-Está na moda não é?

-Tá na moda com certeza. Que mais?

-Era isso que eu queria saber...

-Não foi caótico não. Não abalou a minha personalidade. Não me criou problemas de

rejeição. Nada disso. Eu encarei como se tivesse fazendo moda. Antes, antes de cair, eu

me preocupava mais. A expectativa do cabelo cair é que me incomodou bastante.

Entende? Aí, eu ficava angustiada, ficava nervosa. Meu cabelo vai cair, vou ficar careca.

Page 115: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

103 Depois do fato acontecido, aí foi mais tranquilo. Entendeu? Não é que eu tenha... ah tudo

bom... Depois do fato consumado, fui adaptando. Como o povo carioca é muito chegado

à modismo, você faz disso uma moda.”

Page 116: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

104 Zeni (22/10/96-D.2)

-Zeni, o que eu queria saber, é o que significou para você perder o cabelo?

- “Eu não senti ele assim... Eu fiquei meia, no princípio, nervosa né. Mas não assim com

complexo... É devido aos meus vizinhos que é pessoas que toma conta de tudo, então eu

não gosto assim... Eu me dou com todos os meus vizinho... Mas não gosto de

comentário, essas coisas... Eles gostam de ficar reparando. Mas não fiquei... No princípio

eu tinha vergonha por causa deles. Que eles ficam na janela, todo mundo olhando, quer

saber o que houve e tal. Tem que menti, que faz candomblé... Prá outros já tem que dizer

que que aconteceu, pros pouquinhos mais íntimos. Mas por mim mesma assim (risos)...

Mas já tá crescido meu cabelo. Quer ver? (tira o lenço). Caiu duas vezes. Mas não é

como era antigamente. Mudou completamente. Era crespinho, mas tá diferente (risos).

Eu tenho assim um tipo de um nervoso. Isso no princípio foi assim... Mas já acostumei. A

única coisa que tenho mais assim em mim, é ficar boa. Agora o cabelo cresce tudo,

depois cresce liso (risos)... Deixa ele. Eu ainda não estou usando porque eu quero que

ele fique mais assim... prá disfarçar um pouco. Ainda tá meio assim... na costeleta.

Depois eu uso curto, uso de qualquer jeito. No meu íntimo mesmo eu quero é ficar boa.

Minha... eu tô lutando é prá recuperar a saúde. O cabelo dá um jeito, tem jeito. Já caiu

duas vêzes aí... Não tá grande coisa mas...(risos).

-Mas você ainda está usando lenço, não é?

-Ainda uso, ainda uso mas eu quero que fique... Agora nessa aplicação eu não sei se vai

cair né? Aí, não sei. Mas eu boto lenço, faço um turbante, passo um batom... (risos).

-E seus vizinhos, ainda te incomodam?

-Ainda olham, ficam olhando, as vêzes. Agora quando tá assim (sem lenço e com cabelo

começando a crescer), eu vou no portão. Porque as vêzes chama, eu tenho que ir

correndo no portão. Aí, quer dizer, elas já vêem assim. Já está acostumado, porque eu

Page 117: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

105 tinha um cabelão. Fica todo mundo... Aquilo me chateia, sabe? Eu não gosto. Eu não

gosto de tá comentando. Porque eu que tô passando né? Prá que ficar falando, falando...

Não sabe ajudar. Quer saber só como é que é, curiosidade. Parecem entrevistadoras.

Mas ajudar, ninguém quer. Eles quer é discriminar. Eu não gosto sabe, de tá

comentando. Minhas cunhadas também são enjoadas, sabe? Mas continua assim? Não

cresce? Tá sempre desse tamanho? São enjoadinhas sabe?

-Isso fez você sentir alguma diferença assim em você mesma, como pessoa?

-Não. Uma vez na condução, quando caiu, ficou carequinha, então eu tinha medo...

Doeu, eu amarrei bem o lenço com medo da pessoa as vêzes, sem querer, de poder

acontecer, a condução cheia, passa o braço, puxar... Eu acho que mesmo assim eu

encarava a careca (risos). Que que eu ia fazer, né? Colocar o lenço no lugar de novo... É

o jeito, né? Brigar com a pessoa eu não podia brigar, porque ela não fez por mal.

Ninguém vai adivinhar que eu tô doente, que eu tô careca, ninguém... Aí o meu nervoso

era esse, dentro do ônibus, quando caiu a primeira vez que eu tomei, comecei o

tratamento. Aí eu tinha aquele nervoso. Depois eu fui me acalmando, prá me controlar...

Não sei, agora já estou mais forte. Senti, não vou dizer que não sente. Com o cabelo

enorme que eu tinha, cair assim... Eu já estava avisada, então eu já fui me preparando. E

aos pouquinhos, sentida tudo, mas... Não vou dizer também que estou feliz porque tô

assim, também não, também não dá. Mas eu também fui me preparando, a Dra disse vai

cair, costuma cair o cabelo... Então fui meia chateada, também não comentei com

ninguém, só com meu marido. Depois minhas cunhadas viram... Ih! Eu procurei a não

incentivar, a mesma coisa o seio. O seio também. Se a gente ficar também incentivando,

as pessoas fica reparando (risos). Então eu vou procurando esquecer. Assim distrai, não

pensa. E tô conseguindo. A única coisa que eu tenho mesmo como te falei, é ficar boa.

-Esse é o mais importante?

Page 118: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

106 -É o mais importante. O cabelo tem jeito sim. Dá-se um jeito. Mas tem gente que diz: tem

gente que não cresce mais! Vai toda vida tratando, tratando... caindo, caindo. Aí olha,

tem duas vêzes que caiu e tá aí olha. É aquela coisa de receio. Depois, quando eu vi

assim (mostra o cabelo crescendo), ah! Tem jeito. Eu tenho assim como loucura é ficar

boa. Mas o cabelo, no princípio... Ah! Bota uma peruca diziam. Não sei, acho que não vai

dar certo.

-Você tem que ficar como se sente melhor, não é? Se o lenço te satisfez...

-É porque o que adianta usar peruca, ficar nervosa, não me sentir bem. Acho que aquilo

parece que as pessoas vai começar a reparar. Sabe, vai incentivar. Prefiro ficar assim,

uma coisa simples, um lencinho prá mim. Eu já podia até usar se eu quisesse, porque já

está crescendo.

-Então Zeni, o principal para você foram as pessoas? O jeito como elas olhavam e

reparavam em você é o que te afligia mais?

-Agora não. Agora eu coloco o lenço normalmente e se ele cair, eu vou continuar.

Consegui controlar aquele complexo, não sei se é complexo, é um nervoso que eu tinha.

Mas não foi muito não porque eu já sabia que ia cair (risos)”.

Page 119: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

107 Maria de Lurdes (22/10/96-D.3)

O que significou para você a perda do seu cabelo?

“Normal. O meu cabelo, quando é de manhã, eu tenho essa mania de escovar e passar

a mão molhada assim no cabelo (gesto; passa a mão na cabeça). Aí, começou a cair, aí

foi assim me dando aquela... Bom, o cabelo tá caindo. Quinze dias, fez quinze dias. Aí

esqueci de lavar a cabeça, porque eu lavo a cabeça assim 5a feira e domingo. Eu lavo a

cabeça duas vêzes na semana. Meu cabelo tem pouco crescimento, custa muito a

crescer. Aí, no outro dia, sabe de uma coisa, vou lavar meu cabelo. Aí, entrei no chuveiro

e quando abri o chuveiro, quando passei assim (passa a mão na cabeça), aí foi caindo,

entendeu? Caiu mesmo, tudinho, ficou só aquelas penugezinhas. Porque meu cabelo é

preto, ele já tá grisalho, bem grisalho mesmo, então só tem aquelas penugezinha branca.

E foi... aceitei bem.

-E o que você sentiu quando seu cabelo caiu?

-Normal, não senti nada.

-Não fez diferença para você?

-A diferença que faz, só que a gente... Sair na rua, porque as pessoas cobra da gente.

Porque eu não usava lenço, não é? Agora tô passando a usar lenço. Sempre um olha,

outro olha, incomoda de calor porque é pano e ainda boto dobrado. E eu não posso ficar

na minha casa sem um lenço na cabeça porque constantemente chega pessoas. E o

meu problema é que eu não falei para ninguém, a não ser a minha família, né? Que eles

são meus filhos. Meu esposo, fui falar muito depois. Então a diferença que dá na gente é

essa. Aí fiquei assim aqueles dias com vergonha de ficar na frente dos meus filhos

mesmo, meu marido, né? Mas agora, de noite, já tiro o lenço e fico ali a vontade,

Page 120: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

108 entendeu? Agora já me habituei, já acostumei. A gente é assim, a gente tem que

acostumar para poder aceitar as coisas, né? E eu aceitei bem.

-Então pelo que eu estou vendo, dentro de casa você não tem mais este problema de

ter vergonha. Sua família apóia você, não é? E diante dos outros, você também age

dessa forma?

-Não, porque as pessoas vai me cobrar porque estou careca. Porque estou assim.

Agora quando começar a crescer, que eu puder fazer o pé, assim o pé do cabelo, a

costeleta. Porque eu usava o cabelo curtinho, mas não pelado. Curtinho como se fosse

uma nuca batida. Aí, mas... Eu queria saber, não sei se você sabe, com quanto tempo o

cabelo cresce?

-Olha, terminado o tratamento, em dois meses ele já está grandinho. Ele vai crescendo

devagarinho. Vai ficando igual aquela penugenzinha. Você não tem visto aí no corredor?

Vai crescendo um pouco diferente. Pode crescer mais crespo ou mais liso. O cabelo

nunca fica inicialmente do mesmo jeito que era antes não. Ele fica um pouco diferente.

-O meu cabelo, quando estava ficando grisalho, ele era um pouco crespo, grosso. E eu

tenho para mim, que ele agora vai vir branco, fininho.

-Mas ele vai voltar com certeza.

-Porque olha só... O que está me impedindo... Porque eu sou testemunha de Jeová.

Então eu estou querendo ir a reuniões e eu estou muito em falta. Eu já estou a tres

meses sem ir a reunião e isso, está fazendo muita falta. Porque ali é um conforto que a

gente tem. As minhas meninas não quer que eu vá porque eles vão me cobrar. Na minha

congregação, ninguém sabe, a não ser uma irmã. Nenhum deles ainda sabe o que está

se passando. A não ser quando tocada a cirurgia, eu tenho que falar com o ancião,

porque nós não podemos receber sangue. Aí eu tenho que conversar com ele.

-Mas eles vão cobrar o que da Sra?

Page 121: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

109 -Que eu tô de lenço,quer saber, como agora com essa história de piolho. Deve ter

botado por causa de piolho, sabe...

-Vão questionar, não é?

-Mas eu acho que tenho que quebrar esse meu pensamento. Ir para as reunião e não

ligar porque estou com lenço na cabeça. Porque ali é um conforto, né? A gente sente

muita segurança. Porque desde o momento que eu vim saber que estava com câncer, foi

normal, eu não chorei, entendeu? Aceitei bem, não é poque todos tem que eu também

vou ter, certo? Mas aceitei porque eu tenho confiança na minha religião. Estou pegada a

Deus, segurando mesmo, então tive conforto, né? Como estou tendo até hoje. A única

coisa que está me incomodando, é praticamente o cabelo. Minha garota falou: mãe, eu

vou comprar uma peruca prá você, prá você poder... Porque nós temos um congresso,

né? Então muita gente vai.

-E você está impedida de participar...

-É...

-Maria de Lurdes, pela conversa que a gente teve, acho que você é uma pessoa forte,

que está lutando pela sua sobrevivência. Acho também que neste momento, estes

apoios fazem muita falta à gente. E acho legal que você esteja pensando sobre a

possibilidade de voltar a sua religião, mesmo sendo questionada. Porque ela vai te dar

apoio, não é assim?

-Muita força. Porque olha, você vê, é... Eu quando viva queria este problema. Porque eu

fiquei numa depressão muito grande quando perdi meu neto (chora). Então, aquilo me

acabou muito, sabe? Muito, muito mesmo. Então, com isso tive este problema... Porque

eu queria chorar, eu já acordava chorando, aquilo me acabou muito, me acabou muito. E

foi sugir este problema. Então, quando eu vim me alertar, que eu deveria me conformar,

que eu não poderia ficar o tempo todo, a minha vida toda... Olha, eu fiquei um tempo

sem me alimentar, entendeu? Aquilo por dentro de mim parece que ia explodir,

Page 122: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

110 entendeu? Então, ter esse problema foi por causa disso. Então, eu não quero mais entrar

nessas depressões. Porque essas depressões, acaba com a gente. Porque se eu

continuasse naquilo, eu ia morrer. Porque eu pedia noite e dia prá morrer. Então, eu vi

né, deixar... esquecer. Aí, que surgiu este problema. Mas eu já esperei este problema e

eu tenho fé em Deus que vou superar isto. Porque este problema não me abalou, e não

está me abalando. Foi a perda do meu neto. Foi duro (chora), porque nós lutamos seis

anos né... Todo dia né, eu vendo meu neto... seis anos. Mas tudo bom. Agora eu tô

querendo sair, minhas meninas tão querendo fazer aquele arranjo prá comprar uma

peruca. Então eu digo prá elas: não precisa não, porque em dois meses o cabelo

começa a crescer e vai ser uma boa. Um dinheiro gasto... esse dinheiro dava prá

comprar outra coisa.

-A Sra não viu nenhuma daqui?

-Porque meu cabelo era grisalho meu amor...

-Porque a gente tinha umas grisalhas. Não tem não é? Devem estar emprestadas...

-Não sei..

-Vou pegar a caixa para a Sra.

-Aí sim. Se tiver grisalha... Porque meu cabelo não estava branco. Aparecer de repente

com peruca preta...Vai ficar muito diferente porque eu não quero pintar meu cabelo.

Estava adorando meu cabelo branco, entendeu? Eu não pinto. Quer dizer, só lavava com

xampu, tudo direitinho. Meu cabelo sempre curtinho, bem bonitinho, bem penteadinho,

mas pintura não. Então você vê, o salão são duzentas e poucas pessoas. Não são tres

nem dez pessoas, né? De repente cabelo preto? Pintou... Cabelo assim preto, russo,

não... O meu era grisalho. Aí não me interessei de procurar. Mas francamente, prá

passear no mercado, no médico, na psicóloga, na nutrição, é... Eu vou muito bem. Mas

na reunião... São tres meses, isso tá me decaindo um pouco... O que tá impedindo é o

cabelo, a careca.

Page 123: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

111 -Vou ver se a gente tem a peruca prá te ajudar. Mesmo que não tenha, você pode

pegar a peruca e pintar do jeito que você quiser. Pode pintar de branquinho...

-Foi o que minha garota falou: mãe, a Sra vê porque se der, a gente dá um jeitinho. A

gente escova, entendeu? A gente dá um jeitinho prá Sra poder ir prá reunião. Só isso. Só

mesmo prá reunião. Porque prá passear eu vou de lenço. A única coisa que tá fazendo

falta...

-Compreendi que na família a Sra é muito querida e está sendo bem assistida. Mas fora

dela ainda existem alguns impedimento, não é? E você está lutando contra eles...

-A gente... Você vê, igual você. Todo domingo você vai a missa. O domingo que você

não vai, parece que você ficou um mês sem ir lá. Já reparou? Levar esse tempo todo...

Não sei, prá mim tá fazendo uma falta muito grande. As vêzes eu me arrumo e digo: eu

vou assim mesmo. Não mãe, não vai não, porque a Sra não falou prá ninguém. A Sra

não quer falar... Se a Sra falasse... Tudo bem. Não quero falar porque não é uma nem

duas pessoas. São várias pessoas e eu não quero. Você acha que todos tem que saber

o problema da gente? Porque na palestra que eu assisti, nem todos precisam saber, não

é isso?

-A gente conta para quem a gente quer. Com quem a gente acha que pode dividir...

-Porque você sabe, cada um tem uma opinião, cada um tem um jeito de confortar. E

sou assim, se eu não posso confortar, calada eu fico. O que eu puder dizer, eu digo.

Agora o que não posso, não vou passar... Procuro ajudar, mas tem pessoas que não. Ai

ficou assim, ai ficou assim. Então aquilo, quando a pessoa não tem a cabeça muito boa,

aquilo vai fazer uma confusão na cabeça né? Por isso que eu não... entendeu? Na

minha... em casa, sabe que eu tô de lenço mas não me perguntam nada. O meu

cunhado diz né: agora você tá usando pano na cabeça? Porque ele detesta mulher que

usa pano. Ele diz que mulher que não penteia o cabelo bota lenço. É porque agora eu

pintei a cabeça, botei uma tinta de branquinho, então eu... Agora ele vai lá algumas

Page 124: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

112 vêzes. Ele vai ver o irmão. Meu mariddo é infartado, né? Então as vêzes ele vai lá prá ver

o irmão. Gostei de conversar, poque conversar é sempre bom não é? Conversa sadia,

né? É um alimento espiritual. Porque a religião da gente incentiva muito a gente a ajudar

as pessoas. A gente vai na casa das pessoas... A psicóloga diz: dona Maria eu não

acredito, você é tão calma, eu não sei porque você é assim. Olha filha, porque eu tenho

a espiritualidade, eu tenho o apoio de Deus. Todos têm, mas não tem a segurança que

eu tenho. Porque nós temos que servir um Deus verdadeiro. Deus de amor, Deus puro,

limpo. Eu tenho, então ela fica boba sabe? Porque eu converso... Desde que eu soube

do resultado, porque eu fui saber. Eu fui lá. Quando a carta chegou na minha casa, eu já

sabia. Quando a carta chegou...

-A Sra é muito forte e tem muita força de vontade. E o que está atrapalhando a Sra

neste momento, a gente já sabe o que é. Vamos ver se a gente consegue amenizar isso.

E também acho que só o fato da Sra pensar sobre isso,pensar e descobrir o que está

atrapalhando, já é de muito adianto. Acredito que muito em breve a Sra vai solucionar

este problema por si mesma.

-Se Deus quiser porque isso aí prá mim, eu vou dizer a você, vai ser... Acabou, eu

continuo a fazer meu tratamento, poque eu não tenho medo de fazer exame nenhum... E

outra, vou sem saber o que vou fazer. Só vou saber na hora, porque é importante...

Todos os exames e eu... O que meu marido cobrou de mim foi isso. Você só vive no

médico! De seis em seis meses fazendo exame! Como foi acontecer isso comigo, né?

Ele me cobrou, né? Isso é uma cobrança. Eu disse:olha essas coisas acontecem.

Acontecem comigo, com vários, com todos e agora tá acontecendo com mais freqüência.

Você vê aí as vêzes você nova com esses problemas. E eu convivi com meu neto,

porque ele se tratava no Mario Kroeff, sabe onde é? No hospital de câncer. Meu neto era

tratado lá, entendeu? Então eu já tava mais acostumada com essas coisas. Mas ele não

tinha câncer não, era encefalite. Ele era outra coisa. Mas ele se tratou lá porque botou a

Page 125: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

113 válvula lá. Quer dizer, então, praticamente eu vivia lá com ele no hospital e tudo, e aí a

gente acostuma. Tudo aquilo a gente vai vendo e aí... podia acontecer comigo. O que a

gente vai querer? Se não acontece comigo, podia acontecer com outro. Quando você vai

dar uma coisa prá pessoa, se tem que dar o que? O melhor, você fica com o pior prá

você, porque é prá você, não é? Então você vai dar sempre o melhor não é isso? É

assim que eu sou”.

Page 126: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

114 Maria Auxiliadora (22/10/96-D.4)

O que significou para você a perda do seu cabelo?

-“Prá mim a perda do meu cabelo foi o pior de tudo. Até hoje né, quando eu chego assim

em frente ao espelho, eu tenho aquela depressão. Não me conformei com a perda do

cabelo. Prá mim até agora, foi mais triste que ter dado a notícia que eu tive câncer. Eu

ainda não me adaptei a história do cabelo não. Sei lá, e eu tenho conversado com as

minhas colegas, nem todas, mas várias, hoje mesmo tem aí tres, elas também dizem a

mesma coisa. Que o cabelo prá elas foi um choque. Quando elas chegam assim na

frente do espelho, que se olham, aquilo prá elas... ficam arrasadas, entendeu? Mesmo a

gente sabendo que vai nascer, mesmo que a gente teve explicação que ia ter a perca do

cabelo, mas que ia renascer... Mas prá mim, elas diz também né, prá elas foi muito triste

e até hoje. Umas usa peruca, outras não adaptaram com peruca como eu, entendeu?

Mas... horrível.

-Você usa lenço?

-É, prefiro usar lenço do que peruca. Tô até prá ir num casamento, fui intimada a ir num

casamento agora dia 9, eu acho que vou ter que mandar arrumar uma peruca lá. Apesar

que eu... você sabe? Eu nunca me preocupei. Quando falavam que eu ia fazer química,

eu não preocupei com lenço, não preocupei com peruca nem nada. Uma colega daqui,

uma Sra de Friburgo, que também estava aqui, até foi ela que me deu a peruca de

presente, entendeu? Foi muito bacana, mas não adaptei não. Sei lá, eu acho tão

esquisito! Tudo é o costume, né? Mas eu prefiro lenço. Mas agora tenho que ir nesse

casamento, vou mandar arrumar a peruca prá poder ir que... tapeia.

-O que você sente assim, o que se passa com você quando você se vê sem o cabelo?

-Eu sinto muita tristeza. Mas eu estava ciente que nós nessa quimioterapia, nós ia ter

muitas, assim, horas que ia querer até jogar as coisas pro alto e não continuar o

Page 127: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

115 tratamento. Então, quando eu vejo assim, então eu procuro passar por cima, entendeu?

Eu procuro me distrair, saio da frente do espelho, eu procuro o melhor, faço o melhor prá

mim. Portanto eu venho aqui, a Dra Luciana disse que eu tava com umas coisas, disse

que eu tinha que ficar internada, falou de repente, eu procurei passar por cima... E por

mais que a gente esteja derrotado, a gente encontra pessoas muito maravilhosa, porque

Dra Luciana, tem acho quinze dias que fiquei internada aqui, a Dra Luciana, ela foi Dra,

foi mãe ela foi pai. Ela parecia que eu era um bebê prá ela, entendeu? Ela me deu muita

força, eu recuperei até antes do dias que ela falou que eu ia ficar e foi uma alegria no

corredor... Então tudo isso, tudo dá força à gente. Porque você vem aqui, como eu, então

aquela confiança que eu passei a ter, né? Isso aumenta muito. Dá muita confiança na

gente viu. É muito importante as pessoa que dá esse apoio a gente, entendeu? Minha

visita... Até hoje o comentário na minha casa... nunca pensaram de uma Dra ser como

ela foi, tá entendendo? Então eu calculo assim, ela foi comigo e ela é com as outras

pacientes. Aquilo é dela mesmo. Muito bacana, me deu todo apoio, procurou me ajudar

mais, conversou com as outras. Aquele... ela foi muito... Prá falar a verdade, ela ficou

mais contente do que eu, ela chegou me balançar. Porque que você não tá rindo? Eu tô

feliz! Você recuperou rápido. Mas eu tô feliz. Mas ela tava numa euforia, sabe? Parecia

que ela tava vendo Deus na frente dela, sabe? É bom porque a competência dela né,

que ela ficou ali em cima,enquanto eu me recuperava.Então foi maravilhoso prá ela.Mas

tirando ela, as outras também, porque a gente, não sei porque, fica tipo num isolamento,

porque a gente tá com o organismo fraco. As outras também trataram a gente muito

bem. É muito maravilhoso! Então isso dá muita força a gente, entendeu? Mas sobre a

queda do cabelo, a gente sabe que tem que passar por cima. Então a gente tem que

procurar, assim, de dentro da gente tirar isso. Hoje eu tô um pouco triste porque a minha

colega ali, ela tá chorando. Mas isso deve ser depressão, né? Então a gente fica dando

força uma para outra. Isso não há de ser nada não. Porque se eu fosse outra, graças a

Page 128: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

116 Deus, eu tenho muito que agradecer a Deus, porque pelo que... De onde eu vim, era prá

eu ser uma pessoa arrasada. Porque lutei com minha irmã dois anos. Perdi minha irmã

com esse mesmo problema. Então era prá mimm pensar... Então eu vou morrer igual a

minha irmã, entendeu? Se entregar... Mas graças a Deus, sabe, até agora tô firme e

forte, não penso nisso entendeu? É... o pessoal lá em casa em vez de dá mais força... É

eu que tenho que dá a eles. E assim vai tocando a vida, né? Olha, hoje eu pensava da

minha última ser amanhã, né? Dra Rute... não você está maravilhosa, você está muito

bem, você pode fazer hoje e é a última, você está saudável... Então vou prá radioterapia,

né? Então isso tudo dá força a gente, né? Porque quando você chega perto dum médico,

que todo mundo tem problema, esse problema nosso já é arrasado... Que pega uma Dra

que não dá um sorriso, que não dá nada... Eu sei que as vêzes aquilo ali... Muita gente

diz que não vale nada mas é muito importante, entendeu? Portanto eu sou da religião

católica, então eu tô num grupo, então o nosso grupo, e tem vários grupos, todo um dia

da semana a gente faz oração pelos médicos, pelas enfermeiras... várias coisas.

Porque... Precisa ter muita paciência, muito amor no coração. Porque a gente, sabe, a

gente encontra muita coisa, né? Em todo serviço, em todo lugar, você encontra uma

barreira, não é? Todo serviço. Não adianta você falar que um é melhor que o outro,

sempre tem um probleminha ali, um probleminha aqui. Fulano não botou isso no lugar...

A pessoa sempre fica um pouco chateada. Mas aqui é um lugar que a chateação tem

que deixar prá trás. Você tem sempre que tá com um sorriso, tá alegre, aquela coisa.

Então eu acho muito bacana. Então eu acho que esse setor precisa de muita oração.

Porque pelo mundo que a gente vive, né?”

Page 129: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

117 Nereida (29/10/96-D.5)

Oque significou para você a perda do seu cabelo?

-“Bom eu vou falar a verdade. Foi a única vez que eu chorei, foi quando caiu meu

cabelo. Eu fiquei muito triste mesmo. Acho que eu fiquei mais triste aliás que quando...

de ter tirado a mama. Porque eu cheguei em casa, a minha irmã olhou minha cabeça e

riu, sabe? Ah! Me deu uma tristeza tão grande. Eu abri um berreiro... Porque eu sempre

tive um cabelão, sempre tive muito apego assim a arrumar cabelo, trazer ele bonito. Ah!

Fiquei muito triste mesmo. Foi como se tivesse tirado um pedaço de mim.

-Foi pior que tirar a mama?

-Foi, foi, porque a mama eu sabia mesmo que ia perder, né? Então eu já tava preparada

prá perder, mas o cabelo não. Inclusive porque minha irmã fez quimioterapia e não

perdeu o cabelo. Quando caiu o meu, eu fiquei numa tristeza, fiquei até deprimida.

Deprimida mesmo.

-E... você ficou deprimida. E ainda está deprimida?

-Não, agora não. Agora já acostumei, porque já caiu a segunda vez (risos). Porque o

médico tinha passado seis quimioterapia prá mim. Aí, eu fiz a primeira e duas semanas

depois caiu o cabelo. Aí, depois que eu operei, ficou faltando uma. Aí, eu operei e fiquei

mais dois meses sem fazer. Aí, eu fiz de novo, foi como se tivesse feito a primeira vez.

Aí, caiu tudo de uma vez, mas dessa vez, eu não me deprimi não, eu já senti que ia cair

porque começou a doer o meu couro cabeludo. Aí, eu falei: vai cair tudo de novo. Mas

caiu tudo, não ficou um fiapinho, ficou carequinha igual do Buda. Aí, eu reparei, tava

parecendo a reencarnação do Buda. Mas na segunda vez eu não fiquei deprimida não,

mas na primeira, fiquei muito deprimida. Estive arrasada mesmo. Fiquei por baixo.

-Mas quando você ficou muito triste, o que é que você fez para ver se conseguia sair

dessa tristeza? Fez alguma coisa...

Page 130: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

118 -Ah... eu saí, saí, fui passear. Chamei uma amiga, fomo prá praia, fomo sentar lá

embaixo das árvores, ficar conversando... Que eu tenho uma amiga que eu converso

muito com ela, até mais que com minhas irmãs. Nós saímo, fomo conversar, depois fomo

pro bar, tomei uma cerveja, aí me melhorou (risos). Fiquei na boa de novo. Agora eu já tô

bem, graças a Deus.

-Agora você acostumou com a queda do seu cabelo...

-É, agora não. Agora ele não vai cair mais não. Na segunda etapa, ele tá nascendo

pequenininho, mas não vai cair mais não.

-Você sempre usou lenço?

-Não, eu já usei chapeuzinho, peruca, mas tudo esquenta muito. Então acho melhor

lenço. Na hora também que esquenta muito, eu tiro o lenço na rua, fico careca, não ligo

mais.

-E sua família? Eles ajudaram você nesta época?

-Eles ajudaram sim. Minha família, nós somos muito unida, nós somos assim uma

porção de irmã velha dentro de casa. Aí, eu fiquei chorando, a minha irmã que tinha rido

acabou chorando também. Mas elas ficaram assim muito unidas comigo, graças a Deus.

Bom, se eu não tivesse a família, acho que eu nem aguentava este sofrimento todo,

sinceramente (chora).

-Você ainda se emociona quando fala sobre isto, não é?

-Fico muito emocionada sim (chora). Minha família é muito unida... minhas irmãs, meu

irmão vinha de Niterói todo dia prá me ver. O dia que ele sabe que eu faço quimioterapia,

quando eu chego em casa, ele tá lá. Prá saber se eu estou bem, como é que estou, meu

filho liga, todo mundo quer saber como é que eu estou. Então, tô indo, tô indo. Eu sou

muito emotiva mesmo, não é? As vezes tá na rua, quando vê tá chorando. Mas em...

essa doença, assim, me deixa um pouco assim... Mas agora eu tenho muito motivo prá

Page 131: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

119 tá alegre. Eu já tinha quatro neto, na semana passada ganhei mais uma neta. Quer dizer,

Deus tira uma coisa, mas dá sempre outra prá gente, né?

Page 132: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

120

Zilda (8/11/96-D.6)

-O que significou para você a perda do seu cabelo?

-Fiquei apavorada. Custei a me conformar, mas enfim... eu vi que era em meu

benefício... (chora; silêncio).

-Isso emociona a Sra.? Falar sobre isso?

-(silêncio; chora) Agora já tá crescendo (chorando). São seis que eu já tomei (chora).

-A Sra. disse que custou a se conformar... Porque?

-Eu tinha um cabelo bonito até... (chora;silêncio). Eu tava avisada pelo médico que eu ia

perder, né? Ele avisou: a Sra vai tomar, a Sra vai perder o cabelo mas depois vai nascer

um cabelo mais bonito ainda.

-Mas o que significou isto para a Sra, perder o cabelo?

-Nem sei te dizer, sabe? Fiquei tão chocada... acabei depois me conformando, que é pro

meu benefício, né? Eu tinha que perder mesmo, né?

-A Sra. Ainda está triste com esta perda?

-Não, eu tô aguardando a minha operação, que no dia 14 vou passar pela junta médica

prá eles marcar, por causa da ferida que eu tenho. Então, aí, vamo ver como é que vai

ficar, se eu não preciso tomar mais isso aí. Issoaí, isso aí, isso aí, o dia que a gente

toma, mexe com a gente toda, mexe com o nosso organismo todinho. Quer dizer que tô

doida prá me livrar, né?

-E o cabelo vai nascer de novo a Sra sabe, não é?

-Já tá nascendo devagar. Aqui... (mostra a cabeça). Perdi tudinho, mas tô... é o jeito, né?

O meu filho falou: mãe a Sra. tá perdendo o cabelo todo! Eu disse: não, é o remédio que

eu estou tomando, já tô avisada que vou perder. Ele ficou apavorado!

-Seu filho?

Page 133: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

121 -É... o dia que eu fui cortar o cabelo no salão, a moça passou o pente, saiu aquela

porção. Aí a moça disse: a Sra. tem que ir ao médico de... eu não disse que tava

fazendo não. Dar satisfação da vida da gente... aí eu disse: vou no médico sim. A Sra.

Tem que ir ver o que é isso aí. A Sra. Tá tendo uma queda horrível de cabelo! Passava o

pente, saía tudo. Aqueles cabelo comprido que eu tinha...

-A Sra. foi cortar antes que ele caísse todo?

-Fui cortar, né? Prá aparar ele todo, porque aí, as pacientes que tava tomando, disse: é

bom assim na terceira a Sra. já começar a cortar o cabelo. Aí, eu fui cortar mas cheguei

lá, passou o pente assim e caiu aquela porção.

-Agora...

-Porque eu sempre pintava e cortava mas nesse dia, não quis nem pintar, só cortar.

Porque eu disse: tô tomando esse remédio, não vou dar tintura nenhuma no cabelo. Mas

aí, depois que eu vi cair, pôxa... Fiquei triste, fiquei muito arrasada, mas enfim não é, a

gente tem que passar por isso, não é?

-Agora a Sra. ainda tá triste?

-Agora tô menos. Tô triste ainda mas... devagar ele vai crescendo, né? Só vou ficar feliz

mesmo depois que fizer a operação e não precisar tomar mais isso (sorri). Mas é assim,

né...

Page 134: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

122 Edinéia (8/11/96-D.7)

-O que significou para você a perda do seu cabelo?

-Prá mim, achei uma coisa comum, porque cai depois disse que nasce de novo, né?

-Mas o que significou isso para você? Essa perda do cabelo?

-É, fica um pouquinho triste, chato. A pessoa andar sem cabelo... tem que tá o tempo

todo de touca. A pessoa fica com vergonha as vêzes de sair prá rua... (silêncio)

-Você tem vergonha de sair na rua?

-É porque antigamente você não precisava usar lenço. Agora tem que usar, prá não

sair... fica chato (longo silêncio).

-É chato prá você Edinéia, ter que sair assim na rua?

-Sim, com lenço, né? Com cabelo é melhor.

-Isso deixou você triste?

-Um pouquinho. Já era triste, aí fiquei mais um pouco.

-Você já era triste?

-Já, era triste. Primeiro porque perdi meus pais, depois perdi meus filhos, depois isso, aí

depois perdi o companheiro, perdi uma irmã... (chora; longo silêncio).

-Você anda sempre de lenço?

-Tô andando agora por causa do cabelo que caiu. Eu não andava de lenço.

-Mas desde que o cabelo caiu você usa lenço?

-Agora tô usando lenço (longo silêncio).

-E você fica triste por ter que usar lenço?

-Eu fico, eu fico assim triste, no mesmo tempo fico com vergonha. Onde moro, os

pessoal lá, tudo quer saber, fica perguntando o que foi, o que é que é... fica, os pessoal

as vêzes, pensa que é outra coisa demais, aí fica querendo saber... (silêncio).

-Então o que você sentiu quando perdeu o seu cabelo foi isso? Foi vergonha?

Page 135: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

123 -É, tristeza e um pouco de vergonha. Porque eu queria sair assim... no quintal não podia

sair sem o lenço... aí você quer ir fazer qualquer coisa não pode, tem que usar lenço

(chora; silêncio).

-Você quer conversar mais alguma coisa? Estou vendo que você está emocionada.

-Não, eu tô é triste.

-Porque você está triste?

-Pela vida.

-Pela vida?

-É, que a gente passa... (silêncio).

Sua vida é triste?

-A minha é um pouco... eu moro sozinha... (silêncio).

-Quer conversar mais um pouco?

-Não, quanto mais eu conversar, aí mesmo é que eu choro.

-Não faz mal, não faz mal você chorar... não quer mais conversar?

-Parar por aqui (chora).

Page 136: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

124 Maria Adelaide (12/11/96-D.8)

-O que significou para a Sra.perder o cabelo?

-Olha, eu caí numa depressão e continuo numa depressão danada. Quando me olho no

espelho que vejo a falta do meu cabelo, eu choro igual a criança, tá? Muito triste, muito

triste mesmo. Primeiro que eu tinha um cabelo que vinha aqui embaixo (mostra a coxa).

Eu tive que cortar ele, guardar a trança dele. Aí, quando eu vi eu careca, tô carequinha...

realmente eu caí numa depressão danada. E ainda continuo, eu choro igual a criança.

-A Sra, ainda está triste?

-Tô. São duas coisaa que me deixou triste esse problema aqui, esse problema de mama.

É a minha magreza, que eu emagreci muito, e a perda do meu cabelo. Pô, eu tinha 56kg,

eu tô com 42kg.

-Como está sendo isto para a Sra. então?

-Um pesadelo, um grande pesadelo. Eu nunca imaginei de tá hoje aqui não... é triste.

-E a Sra.continua triste...

-Continuo... fui lá tratar... (silêncio).

-E usa lenço?

-Uso, uso. Eu uso esse lenço quando eu saio e dentro de casa eu uso um bonezinho.

-Quando sai, sai de lenço na cabeça...

-É...

-A Sra.tá muito triste ainda dona Adelaide?

-Eu tô, eu tô numa depressão danada. Eu choro igual a criança...

-Que mais?

-Só isso. Não me conformo de perder minha mama, sei que vou perder... não me

conformo de perder minha mama não... que que eu posso fazer? Diz que é assim, né?

(silêncio). Tô chateada, né? As pessoas chega na minha casa, eu cubro logo a cabeça

Page 137: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

125 prá ninguém ver, só meus filhos e meu marido é que vê. Aí, as visita chega, eu cubro

logo a cabeça, não deixo ninguém ver...

-Ninguém sabe que a Sra.tá com esse...

-Todo mundo sabe, todo mundo sabe, mas eu não amostro a ninguém não...

Page 138: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

126 Maria Teresa (14/11/96-D.9)

-O que significou para você a perda do seu cabelo?

-Tristeza. Tristeza porque eu sou muito vaidosa e porque eu realmente estou assim muito

chocada, apesar de ter tido uma orientação anterior, né? Mas não dá prá gente aceitar

assim, assim de imediato, né? As... as ligações que vai influenciando a gente assim, a

vaidade da gente...

-Você tá triste porque perdeu o cabelo?

-Tô, ainda num tá de tudo perdido, mas tá numa espécie de chapéu (ri). Tô até com

medo de botar a mão assim prá... e dá de choque assim com a realidade, né? A cabeça

pelada... eu não quero, eu não quero vamos dizer assim... eu não quero ter assim

aquela... tá dentro da realidade, que realmente, eu vou ficar totalmente careca.

-Você ainda tem um pouquinho de cabelo...

-Aqui...

-Não precisa tirar o lenço não...

-Mas tá uma parte assim... tá soltinha. Eu tô com medo da arrancar, de tirar tudo...

-Você tá com medo de passar a mão e cair este restinho que tá aí?

-Tô... totalmente com medo e olha que eu tenho uma força... vamos dizer assim, uma

força, uma coisa muito forte, mas agora tô fraquejando, eu tô... sei lá...

-Você tá usando sempre lenço?

-Não, eu botei hoje, hoje que eu botei. Ontem ainda molhei, fiz assim, vim com ele assim

natural, né? Mas quando cheguei em casa que eu botei a mão assim (passa a mão atrás

da cabeça), que vi isso aqui igual... sei lá, assim meio afastado, eu fui botar a mão, os

dedos foi entrando, eu digo: ai meu Deus, chegou a hora! Tô triste (com os olhos cheios

d’água).

-Tá triste?

Page 139: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

127 -Tô triste, mas como é por pouco tempo... são tres meses, né?

-O que, a quimioterapia?

-Não, assim prá... depois.

-Depois que ele cai? Mas aí você precisa terminar o tratamento, entendeu? Ele só volta a

crescer com o fim do tratamento.

-Eu sei. Então só faltam... é, só faltam duas depois dessa.

-Ele vai cair todinho mesmo, aí depois...

-Vai ficar lisinho?

-Vai. Mas aí, você... faltam duas não é? Quando terminarem essas duas, ele vai voltar a

crescer e em tres meses mais ou menos, ele vai ficar igual aquela... sabe esse cabelinho

que tá na moda? Bem batidinho...

-Bem rasteirinho?

-É... depois ele cresce todinho de volta...

-Eu fiquei impressionada assim com cara... porque eu tenho o rosto muito cheio, né?

Fica ridículo a gente de rosto cheio de cabeça pelada.

-Você se acha ridícula?

-Eu acho.

-Porque vai ficar com a cabeça pelada?

-Eu gosto de cabelo baixo mas não tão... não careca. Cabelo baixinho, mas não careca.

Porque eu tenho o rosto muito redondo prá ficar com a cara pelada, sabe?

-Mas você pode usar uma peruca nesse intervalo... a gente tem prá emprestar Teresa...

-Tiririca...

-Qual é tiririca?

-Aquela tiririca...

-Não, tem uma porção de perucas aí, você depois pode olhar e você pode fazer com ela

o que quiser. Pentear do jeito que quiser...

Page 140: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

128 -Vou experimentar... mas que é triste é. Muito triste, quer dizer, prá minha vaidade é

muito triste.

-Você é muito vaidosa?

-Eu sou. Eu gosto de tá bem apresentada em qualquer lugar que eu compareça, eu

gosto de tá bem apresentada, sabe? Aí eu fico chocada...

-O que?

-Eu fico chocada com um negócio desse. Não posso fazer nada, né? São as

circunstâncias da vida... tem que aceitar, né? Deus quis assim, né?

-Eu vou te mostrar as perucas...

Page 141: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

129 Laurani (14/11/96-D.10)

-O que significou para você a perda do seu cabelo?

-“A primeira vez que começou a cair, eu entrei num... fiquei desesperada. Depois eu me

conformei... o problema de cair o cabelo nem é tanto o caso... o problema é a reação.A

reação que... (silêncio).

-Desde que caiu o cabelo você usa lenço?

-Uso lenço assim mais prá sair. Em casa eu já fico sem lenço. Só quando meus filhos tá

perto, aí o pequenininho de cinco anos, fica: não tira não mãe! Fica muito feio! Aí eu

coloco.

-Ele pede a você prá colocar o lenço?

-Prá colocar o lenço ou senão um boné, sabe? (silêncio)

-Então como foi isto prá você? Como você está se saindo?

-Não, graças a Deus depois disso, tô me saindo bem. O pior de tudo é ficar longe dos

filhos, né? Eu sou do Espírito Santo, não sou daqui.

-Ah! Você é do Espírito Santo? Você fica aqui muito tempo?

-Não, de 21 em 21 dias eu venho. Agora, dessa vez, vou ficar mais porque hoje não pude

fazer a quimioterapia, vou fazer na quarta-feira.

-Então o pior para você foi a distância?

-É o pior foi a distância e longe dos filhos.

-E o cabelo, já tá crescendo?

-Tá começando a crescer, sabe? Mas aí, de ontem prá cá, comecei a sentir assim

dolorido, sabe? Ele vai tornar a cair. Da primeira vez foi assim, começou aí caiu.

-E como foi prá você, assim, a perda do cabelo?

Page 142: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

130 -Ah! A queda do cabelo, no início a gente fica... mulher é meia vaidosa (ri), mas aí agora,

graças a Deus, meus parentes tudo, me deram apoio, sabe? Todo mundo me deu apoio.

Aí... você engana.”

Page 143: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

131 Lenice (19/11/96-D.11)

-O que significou para você a perda do seu cabelo?

-“Foi a pior coisa da minha vida. A coisa mais... sempre falei que eu não ia fazer a

vermelha, desde do dia que operei. Aí fiz a amarela, fiquei bem, quando foi agora

apareceu em outro lugar, no fígado. Aí era prá fazer a vermelha, eu falei que não ia fazer.

Aí fiz a lilás, fiz cinco. Aí, quando chegou na sexta, fiz exame. Aí, não deu melhora

nenhuma e eu com dores, dores, dores... aí, foi que ela falou: ou eu fazia a vermelha, ou

então eu ia continuar com as dores. Aí foi outra paulada. Vi que não tinha jeito mesmo,

né? Comecei a fazer. Prá mim foi a pior coisa da minha vida, de tudo. A doença, a

cirurgia, tudo foi prá mim... tirei de letra. Mas o cabelo, tá sendo terrível. Começou a cair

agora, sexta-feira... todinho.

-Então foi terrível prá você?

-Prá mim foi. Tá sendo ainda. Tá sendo muito ruim (chora).

-Você fica emocionada quando fala disso ainda?

-Eu fico, mas caiu agora. Hoje é a segunda, né? Até demorou um pouco. Eu tenho muito

cabelo... tinha né? (ri). Aí, quando foi na sexta-feira, é que começou mesmo. Só

despencando o meu cabelo, mas de montão, sabe? Tô com pouquinho, pouquinho

mesmo, muito pouquinho (silêncio).

-E como foi isso para você?

-Tão chato... o problema é que eu não ia aceitar, né? Te falei. Há tres anos atrás, eu falei

que não ia fazer. Acho que foi a única coisa na minha vida que eu falei que não ia fazer

e... é, voltei atrás e comecei a fazer. Só pelas dores, senão não fazia não.

-E você dizia que não ia fazer por causa do cabelo?

-Do cabelo, principalmente o cabelo e por causa do enjôo. Daí, a Dra falou que o enjôo

não, que ela garantia que não ia passar mal, que ia colocar remédio, né? Mas o cabelo

Page 144: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

132 não podia garantir, que ia cair mesmo, né? Só pelas dores, se não fosse as dores não

fazia não (silêncio).

-Você agora então está usando peruca?

-Primeira vez. Tô me sentindo terrível. Estou muito mal, muito ruim.

-A peruca fez você se sentir assim, terrível?

-Ah, estou! Prá mim todo mundo sabe que estou usando peruca, sabe? Todo mundo tá

sabendo. Ah, me sinto tão mal!

-Todo mundo sabendo faz você se sentir mal?

-Perto da minha casa, na rua, quase ninguém sabe nada. Que eu tive este problema, que

passei por isso. Ninguém praticamente sabe, entendeu? Eu já falei que vou ficar fechada

dentro de casa, que não vou sair na rua. Só prá entrar dentro do carro prá ir ao médico.

Tudo isso eu falei lá em casa. Gente estranha... não vou atender ninguém na minha

casa. Tudo isso eu falei. Pode ser que eu mude de idéia, na minha cabeça ainda está

assim. Prá mim foi um choque muito grande. Está sendo muito difícil (silêncio).

-E em casa, também é difícil prá você?

-Não, porque começou agora. Aí, em casa, esses dois dias eu passei com lenço e tal.

Em casa eu fico praticamente sozinha o dia todo, né? Aí, fico mais a vontade, mas prá

mim sair assim... tá sendo difícil (silêncio).

-Quer conversar mais?

-Não...”

Page 145: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

133 Maria Lúcia (21/11/96-D.12)

-O que significou para você a perda do seu cabelo?

-“Bom, primeiro eu já tava preparada, né? Que antes o médico avisou prá mim, no

começo né? Que ia cair. Depois a menina aqui da quimioterapia, essa menina ali

(mostra), no primeiro dia que eu vim tomar a aplicação, ela avisou: daqui a quinze dias o

cabelo cai. Mas a gente nunca quer acreditar que vai cair, né? Achava que não ia cair.

Mas aí eu cortei bem curtinho, tava grande, pelei a cabeça, quando começou a cair eu...

estranhei não, aceitei bem. Achava que eu ia mudar, esse negócio de sair... tô levando

numa boa. Agora ela falou que se quisesse peruca, aí tinha, arrumava prá gente usar...

Por enquanto eu falei: Ah! Vou levando de lenço mesmo, dá prá sair... aí, tô... não

esquentei muito não. Tem gente que leva susto, fica incomodada, né? Mas a gente tem

que aceitar, fazer o que? Depois já sabe que vai nascer de novo, não vai ficar careca prá

sempre, né? Vai nascer, acabando a aplicação, aí volta tudo ao normal, falei: então tá

tudo bem. Vamo encarar numa boa porque... não adianta entrar em pânico. Vou levando

bem”.

Page 146: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

134 Jaciléia (21/11/96-D.13)

-O que significou para você a perda do seu cabelo?

-“No começo foi difícil prá mim, né?Aceitar. Porque desde de criança eu tive o cabelo

comprido e nunca, em hipótese nenhuma, eu cortei o cabelo curto. E, quando eu

comecei a observar algumas pessoas aqui usar lenço, peruca, logo que eu entrei no

hospital prá fazer o tratamento, eu me senti muito mal porque eu sabia que eu ia chegar

naquela situação. Fiquei muito triste, mas depois eu comecei vê que cabelo não é tudo

prá gente. Não é o mais importante mas o mais importante, é a saúde da gente. Quer

dizer, não adianta eu ter o cabelo tão bonito e tá com um problema de saúde tão sério. E

aos poucos eu fui aceitando que eu ia perder meu cabelo. Chorei muito quando tive que

cortar, mas no espelho mesmo e olhando prá mim, vi que o cabelo não era muito

importante, que mais tarde eu poderia é... ter um cabelo talvez até mais bonito do que

tinha, né? Apesar de todas as pessoas que me viram com o cabelo grande, meu cabelo

era um cabelo que chamava muito a atenção, era um cabelo muito bonito. Todo mundo,

todas as pessoas que foram minhas amigas, admiravam meu cabelo. Fiquei triste por

isso, porque meu filho também adorava meu cabelo... Foi difícil prá mim tê que chegar na

minha casa depois de seis meses e ter que enfrentar minha família da maneira que eu

estou agora, né? Mas eu pude colocar estes problemas de lado e superar tudo isso aí.

Prá mim o cabelo agora não é mais importante. Importante prá mim é minha saúde e

minha família. É isso.”

-Obrigada.

-Só isso?

-Você quer falar mais?

-“É, você pode perguntar o que você quiser... como uma pessoa se sente tendo câncer,

né? Inclusive eu no começo, quando descobri há seis anos atrás, eu me senti muito

desequilibrada no começo. Depois não, eu comecei ver que a vida não ia parar ali, por eu

Page 147: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

135 ter descoberto que tinha um problema. Quer dizer, eu não tenho câncer, eu não aceito

que eu tenho câncer, os médicos descobriram que no meu corpo existe um câncer, eu

não aceito isso como um câncer. Eu aceito como um problema que vai ser resolvido um

dia, né? E, eu tenho levado isso,não naturalmente porque eu sei que não é fácil.

Principalmente quando nós não temos apoio da família, quando nós não temos nenhuma

pessoa que teja ali nos ajudando naquilo que nós precisamos. O que é aquilo? É o amor,

é o apoio, né? Foi difícil prá mim porque no começo eu não tive apoio da minha família.

Principalmente do meu esposo, né? Eu fui uma pessoa muito discriminada, juntamente

no meu casamento, né? Não tive apoio nenhum. Mas eu comecei a pensar em mim e

pensar nos meus filhos, que eu deveria lutar prá que eu vencesse essa barreira, essa

luta toda e chegasse na vitória. E eu creio, se Deus quiser, eu vou chegar na vitória. Foi

muito difícil prá mim, não foi fácil não. Uma coisa muito difícil. Inclusive eu vim prá cá, pro

Rio, fazer esse tratamento e passei seis meses aqui. Resolvi visitar minha família.

Quando cheguei na minha casa,encontrei meu esposo com outra mulher e ela está

grávida de quatro meses. Foi mais difícil prá mim superar isto tudo, quer dizer, no

momento eu quis largar tudo de mão mas eu pensei que ainda teria muita coisa prá fazer

pelos meus filhos, né? Eu precisava lutar prá que eu tivesse êxito prá me levar adiante,

os problemas que eu estava ainda prá ser resolvido. Meus filhos são ainda criança.

Tenho um de 14 anos, tenho um de 12 anos e uma de 8 anos. Sendo que só o de 14 é

meu e os dois são adotados, né? Então eu tenho um compromisso com eles até o dia

que Deus permitir, que eu fique aqui nessa terra, prá assumir um compromisso com eles.

Qual é o compromisso? De poder educar, criar eles na melhor maneira que eu puder,

né? Então eu tô lutando, talvez nem seje por mim mesmo mas seje pelos meus filhos,

porque precisam de mim. E a gente não deve olhar prá o câncer como uma derrota,

como um ponto final na vida da gente não. Devemos encarar ele como um problema que

vai ser resolvido. Devemos é levantar a cabeça e lutar, que não tem ninguém prá nos

Page 148: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

136 ajudar. Quer dizer, se você, se você for fraco, se realmente você for fraco, não tiver força

prá ajudar você, vai ser difícil alguém ajudar você. Mesmo que ele prepare a melhor

palavra, mesmo que ele tenha o melhor carinho por você. Mas se você não lhe ajudar,

você não chega lá, ao final dessa luta, né? Então eu tenho lutado prá chegar lá, e se

Deus quiser, eu vou vencer isso tudo, tá? E as pessoas que talvez descubram uma

doença, um problema assim como eu estou passando, pode pensar que não existe cura.

Existe cura dependendo da sua cabeça. Se você superar isso, se você levar isso como

um problema, ele vai ser resolvido. Mas se você olhar prá ele como um câncer que não

tem cura, realmente você vai chegar a sepultura, né? Todos nós vamos chegar até lá,

mas se nós pudermos lutar contra isso, melhor ainda. Quer dizer, eu luto. Luto porque

ainda tenho muita vontade de viver e um dia ser feliz. Eu tenho 39 anos, todo o meu

casamento, casei com 13 anos, nunca fui feliz no meu casamento. Não tive uma infância

muito boa e uma adolescência. Mas eu luto que daqui prá frente, eu luto ainda por essa

felicidade e creio que eu vou conseguir ser feliz. Por algum tempo, não sei, mas eu luto

prá isso. Então, eu quero ficar boa e tô lutando. Deixei todas as coisas prá lutar pela

minha saúde e eu creio que vou conseguir, tá? Que as pessoas que possam, que

venham a ouvir esta fita né, não sei porque ela tá sendo gravada ou prá que... eu sei

uma coisa que ainda... quando há vida, há esperança de muita coisa. Então, esperança

da gente lutar prá chegar ao objetivo, né? Quer dizer, se a gente não lutar, esperar que

alguém lute pela gente, não vai ter êxito. E eu digo assim, as pessoas que tiverem

passando por algum problema como esse, que lute, que tenha esperança e não tem

coisa melhor que a gente lutar e confiar em Deus. A minha confiança não tá no homem,

não tá no médico mas tá em Deus. Claro que Deus usa o homem, né? Mas toda minha

confiança tá em Deus. Se não for de Deus, se não for a vontade de Deus, não adianta o

homem lutar. Mas se não tivermos confiança em Deus, colocarmos todinha nossa

confiança ao homem, nós não temos êxito. As minhas palavras...”

Page 149: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

137 Maria Antonia (26/11/96-D.14)

-O que significou para você a perda do seu cabelo?

-“Prá mim foi horrível, né? É, nos dias eu fiquei muito nervosa é... mas agora já passou.

Quer dizer, eu não consigo usar peruca em casa, já coloquei peruca mas não gostei, não

me adaptei, aí vou usando esse bonezinho, entendeu? Espero de nascer um cabelo

bonito, né? (risos). Assim as meninas aí me dão esperança, né”?

-Ele nasce. Quando terminar o tratamento ele vai voltar.

-“Se Deus quiser!”

-Você anda sempre de chapéu?

-“Sempre. As vêzes eu boto bonezinho em casa e chapeuzinho assim prá sair. Achei

mais elegante prá mim (ri). Peruca eu não gostei. Vou ver se depois... com o tempo, né?

Que tem duas... é a terceira aplicação que eu vou fazer, se vou me adaptar, entendeu?

Vou levando assim aos pouquinhos, mas prá sair mais eu tô usando o chapeuzinho

(silêncio).”

-Você disse que no começo foi horrível...

-“Pôxa, você vai lavar a cabeça, saindo aquelo monte de cabelo, né? Você perdendo

cabelo, fica angustiada, né? Dá uma sensação muito estranha (ri). Você em frente ao

espelho, né? E eu tinha muito cabelo... mas agora já tô acostumando mais.”

-O chapéu resolveu prá você?

-“É prá mim resolveu. Tô satisfeita (ri). Lavo, coloco de novo, tem dia que e boto um

branquinho, outro dia esse azulzinho, listadinho, varia de chapéu, né? Comprei uma

porção... Mas tô bem, tô bem, graças a Deus.”

Page 150: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

138 Margarida (26/11/96-D.15)

-O que significou para você a perda do seu cabelo?

-“A gente não gosta, né? Claro. Mas eu já tava esperando, sabe? Aí, fiquei assim, coisa

assim, um pouquinho prá baixo mas... aí, minha nora, meu filho me levaram, compraram

esta peruca prá mim, né? Tô levando numa boa. Eu quero é melhorar meu estado de

saúde, que eu acho que é mais importante que a vaidade. Eu acho. Tá certo que

ninguém gosta de ficar esquisita e tudo, né? Mas eu quero em primeiro lugar a saúde,

depois vem a vaidade. Isso que eu quero”.

-Como foi isso prá você, perder o cabelo?

-“É como eu tô falando, não é? A gente não gosta, mas eu já sabia porque há nove

anos eu perdi uma nora. Quer dizer que eu acompanhei o drama todinho dela, eu tava

boa ainda, né? O dela foi um tumor na cabeça, foi horrível, foi pior. Quer dizer que eu vivi

aquilo ali, quer dizer que mais ou menos eu já sabia. E depois eu leio muito, escuto

muito, eu procuro me informar muito. Não é dizer que eu aceitei, gostei, que ninguém

gosta, mas prá mim...”

Page 151: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

139 Sebastiana (27/11/96-D.16)

-O que significou para vcê a perda do seu cabelo?

-“Eu fiquei triste, né? Quando meu cabelo começou a cair... mas agora eu tô

conformada (silêncio).”

-Você tá de peruca?

-“Tô de peruca”.

-Como foi isso prá você, ficar sem o cabelo?

-“Ah, eu... fiquei triste mesmo, mas o que que a gente pode fazer? Se conformar

mesmo. Vai nascer outro, né?”

-Mas alguma coisa?

-“A gente tem que se conformar com isso tudo porque... que que a gente pode fazer... é

a vontade de Deus, né? Tem que ter paciência... ah! No começo eu fiquei desesperada,

fiquei mesmo. Chorei muito, fiquei nervosa, mas agora tô bem, tem que aceitar mesmo,

né?”

Page 152: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

140 Elenice (27/11/96-D.17)

-O que significou para você a perda do seu cabelo?

-“Ah... fiquei muito, assim muito triste porque caiu muito rápido. Aí, fiquei muito

agoniada (ri). Aí é isso, fiquei muito nervosa porque caiu muito rápido.

-Ficou nervosa?

-É, caiu muito rápido, rapidinho mesmo. Agora não tem mais nada. Eu tinha muito

cabelo, aí caiu rápido. Mas antes deu operar mesmo, ele já tava caindo, depois que eu

operei e comecei a fazer, aí ele caiu de vez mesmo. Tô com uma coisinha a toa, bem

pouquinho.”

-E como tá sendo isso prá você?

-“Ah... tem que ... como é que se diz? Que... pacientemente tem que... isso é prá gente

mesmo, né? Isso foi feito prá gente, quer dizer que eu tenho que me conformar. A gente

se... se desesperar não posso. Desesperar não vai adiantar nada. Quer dizer que eu

tenho... a coisinha de vagarzinho prá vê até... quando chegar, eu tenho que chegar lá,

entendeu? Tenho que ficar bem. Toda a vida a gente não vai ficar assim, né? Tem que

ficar boa que aí... tem gente que fica mais... mas eu não fico muito desesperada não. Eu

me conformo, sabe?”

-Você tá sempre de lenço?

-“Não eu comecei a botar o lenço ontem. Tava caindo muito, aí eu comecei a botar

lenço.”

-Então agora você não tá mais desesperada?

-“Não, não. No início eu fiquei muito nervosa, mas agora não. Tô calma. Depois vai

nascer mesmo, né? Tem que nascer mesmo depois... tem que se conformar, é a vida,

né? Olha a moça como tá chorando! (mostra outra paciente). É pior, porque fica mais

nervosa”.

Page 153: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

141 -O que chorar, a Sra. diz?

-“É, chorando fica mais nervosa, né? Eu acho, se chorar fica mais nervosa.”

Page 154: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

142 Jarcira (28/11/96-D.18)

-O que significou para você a perda do seu cabelo?

-“Não importa não, eu aceito bem tudo que a vida me deu. Eu considero que a vida me

deu muito. Me deu um marido bom, dois filhos maravilhosos, então como a vida não

podia ser boa em tudo, ela me deu este problema de saúde. Eu aceito normal. Outro dia

eu fui na faculdade e eu tava sentindo um calor danado, aí falaram assim: tira o lenço. Eu

tirei, fiquei careca, sem lenço. Aí na... agora até eu tô andando, mas não é nem por

minha causa, mas por causa dos meus filhos que falou assim: mãe, tá tudo prá cima

assim, tudo levantado, ou raspa ou bota! Aí, peguei e botei o lenço novamente, mas não

importo muito não. Nem o cabelo, nem o seio... eu queria sim, se Deus permitir, que me

desse... apesar de eu não ser católica, não ser de nenhuma dessas religião, se ele

deixasse que eu vivesse mais uns anos, prá mim fazer alguma coisa que eu planejei.

Mas se não vier, até a morte eu aceito bem (chora)... agora eu vou chorar, porque

quando eu falo, as vêzes eu me emociono, mas quando eu acabo de falar aqui, aquilo

passou prá mim, acabou. Eu não fico lamentando, nem reclamando, nem chorando prá

nada que eu perdi na vida (chora)... eu suporto bem, quando falo, as vêzes, aí eu me

emociono. Mas passou daquilo ali, tudo bem (chora). Porque eu... olha eu tinha formado,

morava em Minas, eu lecionava. A coisa que eu mais gosto é de lecionar. Aí, quando eu

mudei prá aqui, eu tive que abandonar lá prá poder viver aqui, porque a vida ficou muito

difícil prá mim e meu salário não dava prá adiantar... meu marido muito enjoado, por

causa das crianças... que tinha que ficar, não podia deixar as crianças sozinha... Aí os

filhos cresceram. Minha filha mais nova vai fazer quinze anos agora dia primeiro. Aí,

voltei prá aqui. Quando voltei, quando ajeitou a vida, que eu pensei assim: agora vou

procurar um trabalho, a minha mãe adoeceu de câncer também. E morreu assim num

estadao lastimável... Quando minha mãe morreu, passou... aí eu comecei a estudar, fui

prá UERJ, fui fazer Geografia. Fiz o 1o período, aí me apareceu esse problema. Eu

Page 155: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

143 continuei, eu ia formar agora, só não vou porque não consegui fazer a matemática.

Porque quando eu faço a quimioterapia, eu fico com a cabeça muito ruim. Mas estas

coisas que eu perdi, cabelo, mama, não importa muito não (silêncio).”

-Quer conversar mais?

-Posso converssar, mas desliga o gravador prá não, gastar sua fita.

-Não importa...

-“Aceito bem o que a vida me deu. Acho assim... e nem fico rezando todo dia, pedindo e

coisa, porque todo mundo... pode acontecer alguma coisa nessa vida. Ou você vai viver

bem a vida toda ou vem uma doença, alguma outra coisa. E se Deus te mandou aquilo,

se você não aceitar, você vai viver uma pessoa revoltada, vai prejudicar todo mundo que

tá do seu lado, todo mundo que você gosta e você mesmo. Então o melhor é aceitar, não

perturbar todo mundo. Já pensou se eu não aceitar? Atrapalho a vida dos meus filhos,

eles não vão conseguir estudar. Eu tenho um filho que é uma maravilha. Brigo muito com

ele, ele tem o mesmo defeito que eu tinha quando era criança: malcriado. Aí, ele tá

fazendo o 2o grau no Pedro II, ele sempre teve as melhores notas, ele ficou na turma

especiais e tudo, agora tá na segunda série, passou desde o 3o bimestre. Eu acho assim

se... a minha filha também é boa sim. Ele estuda... só que ela não é tão boa de estudo

quanto ele. Ela tem que sacrificar mais, bater mais. Ela é assim uma filha que não

preciso preocupar mais com a roupa prá passar, nem com a casa prá arrumar... de vez

em quando ela começa assim, aí eu vou: pôxa agora eu vou deitar, ninguém tá vendo

que não tô podendo! Aí, ela começa tudo de novo. Aí, eu tenho dois filhos bom. Se eu

ficasse louca da vida, eu vou atrapalhar a vida deles, reclamando cabelo que perdi,

mama que perdi... Teve sua serventia na hora certa. Também eu já não era tão bonita

(ri). Dava muito trabalho, ele não faz muita falta não.”

Page 156: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

144 Margareth (28/11/96-D.19)

-O que significou para você a perda do seu cabelo?

-“Bom Teresa, prá mim foi triste e quando eu pentiei que veio caindo todo, todo meu

cabelo, que eu sou muito cuidadosa, não é? Bem tratada... foi muito triste, muito

deprimente. Mas graças a Deus eu reagi bem, né? Gostaria que esse tratamento não

fosse assim tão desgastante, que é prá todos, né? Você tem que ter uma cabeça legal,

bem esclarecida, é difícil, muito difícil (silêncio).”

-Como foi isso prá você, estar sem o cabelo?

-Estar sem o meu cabelo? Como vou dizer prá você... (silêncio). É... não tem resposta,

toda resposta. É deprimente, é isso. Estar sem o meu cabelo. Não queira imaginar, quem

passa é que sabe. Quem realmente está passando, vivendo... a cada dia cresce um

pouquinho, depois cai. Aí, eu procuro, eu procurei fazer o seguinte: é não olhar tanto.

Então eu ponho uma meinha, uma meia calça, né? Eu, eu cortei e ponho debaixo da

peruca. Então, automáticamente, eu tiro a peruca e a meinha fica. Prá hora do banho né,

é a mesma coisa. Então eu não vejo, não olho. Então, a gente vai levando.”

Page 157: O EX-SISTIR FEMININO NUM ROSTO SEM MOLDURA: UMA …bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/ex-sistir_analise_compreen... · O ex-sistir feminino num rosto sem moldura: uma análise

145