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Universidade Federal do Rio de Janeiro O EXÍLIO EM A CONFISSÃO DA LEOA Priscila da Silva Campos Fevereiro 2015

O EXÍLIO EM A CONFISSÃO DA LEOA · disponibilidade em tirar minhas dúvidas e por me fazer sorrir, mesmo nos momentos de grande ... Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro,

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

O EXÍLIO EM A CONFISSÃO DA LEOA

Priscila da Silva Campos

Fevereiro

2015

O EXÍLIO EM A CONFISSÃO DA LEOA

Priscila da Silva Campos

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à

obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas).

Orientadora: Professora Doutora Maria Teresa Salgado Guimaraes da Silva.

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2015

O EXÍLIO EM A CONFISSÃO DA LEOA

Priscila da Silva Campos

Orientadora: Maria Teresa Salgado Guimaraes da Silva

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e

Africanas de Língua Portuguesa).

Examinada por:

______________________________________________________________________

Professora Doutora Maria Teresa Salgado Guimaraes da Silva Presidente- Letras Vernáculas- UFRJ

______________________________________________________________________

Professora Doutora Gumercinda Nascimento Gonda

Letras Vernáculas– UFRJ

______________________________________________________________________

Professora Doutora Claudia Fabiana de Oliveira Cardoso UNIABEU

______________________________________________________________________

Professora Doutora Sofia Maria de Sousa Silva

Letras Vernáculas- UFRJ, Suplente

______________________________________________________________________

Professora Doutora Fernanda Antunes Gomes da Costa UFRJ (campus Macaé), Suplente

Rio de Janeiro Fevereiro de 2015

CIP - Catalogação na Publicação

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com osdados fornecidos pelo(a) autor(a).

C186eCampos, Priscila da Silva O exílio em A confissão da leoa / Priscila daSilva Campos. -- Rio de Janeiro, 2015. 160 f.

Orientadora: Maria Teresa Salgado Guimaraes daSilva. Dissertação (mestrado) - Universidade Federaldo Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programade Pós-Graduação em Letras Vernáculas, 2015.

1. Exílio. 2. Memória. 3. Discurso. 4. Aconfissão da leoa. 5. Mia Couto. I. SalgadoGuimaraes da Silva, Maria Teresa, orient. II.Título.

Resumo

O EXÍLIO EM A CONFISSÃO DA LEOA

Priscila da Silva Campos

Orientadora: Maria Teresa Salgado Guimaraes da Silva

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras

Vernáculas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e

Africanas). O trabalho dedica-se analisar a condição do exílio, a partir da leitura de: A confissão da leoa

(2012), do escritor moçambicano Mia Couto. Abordar esse tema, como uma das grandes questões da atualidade, é pensar a própria circunstância do homem no mundo. Diante das

situações subumanas, geradas por regimes totalitários, pela violência, pela guerra, pelo choque entre culturas, o sujeito é obrigado a migrar de um lugar a outro e vivenciar a sensação de desenraizamento. Entretanto, o exílio não se limita apenas pelo viés geográfico

imposto ou voluntário; acrescenta-se, também, o sentido existencial, isto é, ruptura ocorrida interiormente no sujeito, em decorrência do trauma, resultando a sensação de estar “fora do

lugar”. Essa experiência constitui o problema de muitos indivíduos contemporâneos que, dentro de seu próprio país/ lar, sofrem a ausência e o isolamento. No intuito de discutir as conseqüências do exílio no romance de Mia Couto, o estudo propõe o diálogo com reflexões

de Edward Said, que aponta os diversos aspectos do exílio, definindo-o como uma “fratura incurável”; de Todorov, que destaca o desdobramento do totalitarismo; e também de Camus,

que, em sua produção literária, mostra a incomunicabilidade entre os indivíduos. Nota-se, nestes pensadores e em tantos outros, a presença do desconforto e do vazio no homem. Dessa forma, nossa pesquisa pretende investigar a experiência do exílio nos personagens do romance

citado, observando o processo da memória, ao retrabalhar as lembranças dos protagonistas, e do discurso, ao possibilitar a emergência e elaboração de questões conflitantes.

Palavras- chave: Exílio, memória, discurso, A confissão da leoa, Mia Couto.

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2015

ABSTRACT

O EXÍLIO EM A CONFISSÃO DA LEOA

Priscila da Silva Campos

Orientadora: Maria Teresa Salgado Guimaraes da Silva

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos

necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa

e Africanas):

The paper is dedicated to analyze the condition of exile from the reading: A confissão da leoa

(2012), of the Mozambican writer Mia Couto. Approaching this issue, as one of the great

issues of the present time, is to think the circumstance of man in the world. Given the

subhuman situations, generated by totalitarian regimes, violence, war, the shock of cultures,

the person is forced to migrate from one place to another and experience the feeling of

rootlessness. However, exile is not limited by geographical bias enforced or voluntary; it adds

also the existential sense, i.e., rupture occurred within the person as a result of trauma,

resulting in the feeling of being "out of place". This experience is the problem of many

contemporary people who, within their own country / home, suffer the absence and isolation.

In order to discuss the consequences of exile on the novel of Mia Couto, the study proposes a

dialogue with reflections of Edward Said, who points the various aspects of exile, defining it

as an "incurable fracture "; of Todorov, who highlights the unfolding of totalitarianism; and

also Camus, who, in his writing, shows incompatibility among people. It is observed, in these

thinkers and in many others, the presence of discomfort and emptiness in man. Thus, our

research aims to investigate the exile experience in the characters of that novel, observing the

process of memory, when it reworks the memories of the protagonists, and discourse, when it

allows the emergence and development of conflicting issues.

Key words: Exile, memory, speech, A confissão da leoa, Mia Couto.

Rio de Janeiro Fevereiro de 2015

A Deus, pelo dom da vida, por me dar força para superar as dificuldades e por conceder a oportunidade de realizar meus

projetos.

À Nossa Senhora, minha mãe intercessora, por me guiar em toda a caminhada.

À minha mãe, Lucimar, meu amor incondicional.

Companheira e amiga de todas as horas. Minha grande incentivadora. Sempre me aconselhou a nunca desistir.

Obrigada por tudo!

Agradecimentos

Uma das formas mais sublimes da vida é o ato de agradecer. Isto é, reconhecer a importância

do outro para o seu crescimento. Assim, primeiramente meu infinito agradecimento à

professora Maria Teresa Salgado, pela amizade e orientação. Desde os primeiros passos

acadêmicos, suas palavras de incentivo foram essenciais para que eu acreditasse em meu

potencial. Agradeço a paciência, a confiança e as conversas ao longo desses anos. Obrigada

por me ajudar a amadurecer minhas ideias e por me impulsionar a tantos outros desafios.

Enfim, muito obrigada por ser sua orientanda e por despertar em mim a pesquisa em

Literaturas Africanas!

Ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas , pelo estímulo ao estudo das Literaturas Portuguesa e Africanas.

À CAPES, pelo apoio financeiro indispensável para esta pesquisa.

A todos os mestres, pela transmissão dos conhecimentos e por semearem projetos e sonhos em minha vida, em especial:

À professora Gumercinda Gonda, pelo entusiasmo em compartilhar seus conhecimentos e em transmitir com carinho o amor pela Literatura. Obrigada por ter sido sua aluna.

À professora Claudia Fabiana de Oliveira, por aceitar gentilmente o convite para integrar a banca de avaliação desta dissertação.

À professora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco, pelas aulas maravilhosas e pelas palavras

precisas para continuar a caminhada acadêmica. Obrigada, por toda a ajuda. Às professoras, com as quais convivi na Cátedra Jorge de Senna, Luci Ruas, pelas aulas

enriquecedoras; Teresa Cerdeira, pelas sugestões bibliográficas; Mônica Figueiredo, pela disponibilidade em tirar minhas dúvidas e por me fazer sorrir, mesmo nos momentos de

grande tensão; Mônica Fagundes, pelas palavras de encorajamento. Ao professor Antonio Carlos Secchin, por me ensinar a percorrer com outros olhos o

universo literário e por sempre se mostrar solícito em esclarecer minhas inquietações.

Aos professores da graduação e da pós-graduação da UFRJ, que foram grandes incentivadores para continuar a pesquisa acadêmica, em especial: Cleonice Berardinelli,

Ângela Beatriz Faria, Martha Alkimin, Filomena Varejão, Victor Lemus , Jorge

Fernandes, Vera Lins, Ronaldes de Melo e Souza e tantos outros, obrigada pelos conselhos e ensinamentos.

Aos meus pais, Eduardo e Lucimar, por me ensinarem a superar os obstáculos da vida.

Aos meus familiares: minhas “dindas”, tios, tias, primas e primos pela cumplicidade e pela atenção em todos os momentos. Meu agradecimento eterno pelo amor de vocês.

À minha tia, Maria da Conceição, por seu apoio, carinho e amor.

À minha prima/irmã Karina Ramos, por compartilhar as alegrias e as aflições. Obrigada pela

convivência!

Ao meu tio, Italino Ramos (in memoriam), pelos ensinamentos e momentos de alegria. Ao Luiz Carlos Pereira, por me ensinar a ter fé, confiança e perseverança diante dos desafios da

vida.

Aos meus companheiros da pós-graduação na UFRJ, com quem compartilhei boas reflexões,

em especial, Aline Rodrigues, Beatriz Cardoso, Clara S. Marcos, Isabel Mallet, Maria

Carolina Barbosa, Laís Vaz, Nilzelaine dos Anjos, Pamela Mota, Renata de Oliveira,

Rogério Athayde, Wellington Toledo e a todos, que, entre uma aula e outra, souberam

dividir seus conhecimentos. Muito obrigada!

À Adriana de Oliveira, pelo companheirismo durante este desafio do mestrado e pelas

longas viagens para a faculdade. Quantas histórias!

A Alice Vieira e Guilherme Gonçalves , amigos de longas datas, obrigada pela paciência, pela

alegria da companhia e pela ajuda de sempre, principalmente, nos momentos de dor e aflição.

Aos queridos do “Grupo de Estudos” da professora Maria Teresa Salgado, Larissa de Mello,

Jaqueline Conceição, João Gomes e tantos outros, pela troca de ideias e pelo bom humor a

cada encontro. À Adriana Machado, pela amizade e pelo carinho. Obrigada pela companhia em várias feirinhas

de livros e pela ajuda em todos os momentos.

À minha amiga e professora Gilda Francisco, pelo intenso incentivo para que eu continuasse a caminhada acadêmica, pelos esclarecimentos e sábios conselhos.

Às professoras Dayse Estrada, Jemima Barbosa, Claúdia Alves , Aline Alfradique , pelo acolhimento e pelas palavras de confiança.

À Adriana Garcia, Érica Reis , Lenize Alvarenga, pelas conversas animadíssimas, principalmente , nos momentos mais difíceis. Muito obrigada pela parceria, “irmãs do coração”!

A Beatriz de Oliveira, Jeniffer Figueira, Luiz Fernando Cattermol e Tamires Abreu, pela

alegria em nossos diálogos e pelo incentivo constante.

À Vânia Batista, pela contribuição com material de estudo.

À Claudete e ao pessoal da xerox, pela boa vontade e paciência.

Aos funcionários da pós-graduação, sempre tão atenciosos e comprometidos em auxiliar os

alunos.

A Mia Couto, pela maestria com as palavras.

Agradeço a todos que se preocuparam comigo e que diretamente ou indiretamente me

apoiaram e me fizeram crescer. Citados textualmente ou não, vocês estarão sempre presente

em meu coração. Muito obrigada!

Quando a pátria que temos não a temos

Perdida por silêncio e por renúncia Até a voz do mar se torna exílio

E a luz que nos rodeia é como grades.

Sophia de Mello Breyner Andresen- “Exílio”

(...) Com um esforço de memória, como se eu nunca tivesse nascido. Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrança é em carne viva.

Clarice Lispector- “lembrar-se do que não existiu”

Alguma coisa tem que haver para explicar a dor de se ficar calado, na condição de mortos vivos (...). Faz falta a palavra grito a crescer por cima desse silêncio todo,

construída livremente, com respeito antigo pelo lugar, mas trazendo as novas do tempo, dos participantes e das promessas.

É preciso que a palavra acolha esta mais-valia de tantos anos de espera e silêncio e se solte e proteste e renasça na plantação das consciências.

Paula Tavares- “Manifesto”

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 12

2. EXÍLIO: “A FRATURA INCURÁVEL” DA CONTEMPORANEIDADE.............20

2.1. O exílio das leoas- "Deus já foi mulher."...............................................................26

2.1.1. Mariamar.......................................................................................................32

2.1.2. Hanifa Assulua..............................................................................................42

2.1.3. Naftalinda.....................................................................................................51

2.1.4. Luzilia...........................................................................................................57

2.2. O exílio do caçador- “Quero, sim, ausentar-me de mim. Dormir para

não existir.”.............................................................................................................62

3. EXÍLIO E MEMÓRIA: O RETRABALHAR DAS LEMBRANÇAS PELA CONFISSÃO..................................................................................................................74

3.1. A confissão de Mariamar......................................................................................78

3.2. A confissão de Arcanjo.........................................................................................99

4. EXÍLIO E DISCURSO: O ENTRELAÇAR DAS PALAVRAS.............................112

4.1. Versão de Mariamar.............................................................................................119

4.2. Diário do caçador.................................................................................................132

5. CONCLUSÃO...........................................................................................................146

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................................................149

12

1. INTRODUÇÃO

Sábio é o pirilampo que usa o escuro para se acender.

(COUTO, 2012, p. 181)

O primeiro contato literário com a obra de Mia Couto aconteceu ainda, na graduação,

com o conto “Nas águas do tempo”, de Estórias abensonhadas (1994). A partir desta leitura,

sua prosa poética impulsionou-nos a olhar para as situações que perpassam a sociedade

moçambicana. Lembro-me sempre da cena, em que o personagem do avô mostra ao neto

como “temos olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos”

(COUTO, 1994, p.16). Tal experiência levou-nos, desde então, a outras descobertas em torno

de suas produções. Tecendo estudos comparativos ou não, o projeto de estudar as narrativas

miacoutianas tornou-se um exercício encantador, mas, ao mesmo tempo, de grande desafio,

pois a complexidade de suas obras permite articular questões políticas, sociais, culturais, além

de trazer, nos detalhes das imagens, inúmeros significados.

Natural da Beira, Moçambique, António Emílio Leite Couto1, (nome com que foi

registrado Mia Couto), nasceu em 5 de julho de 1955, filho de portugueses, que chegaram em

África na década de 50. Seu pai poeta e jornalista Fernando Couto foi um dos grandes

incentivadores para a carreira literária, como Mia menciona em entrevista:

Ele teve uma importância decisiva. Não apenas porque era um poeta, mas porque

vivíamos em estado de poesia em nossa casa. O meu pai nos ensinou a olhar para as

pequenas coisas, ao jeito das lições de Manoel de Barros, procurando brilhos entre

poeiras e cinzas do chão. Numa sociedade colonial muito violenta, ele nos conduziu

a descobrirmos na vida e por nós mesmos o que os livros depois revelaram. Outra

coisa: ele nos fez primeiro ouvir poetas dizendo os seus próprios versos. Através de

gravações, através de noites de poesia em que ele mesmo e poetas amigos diziam os

seus versos. Para nós, o que nos seduzia era o modo como aquelas pessoas se

embeveciam com a palavra, como se fosse uma espécie de música. 2

Mia Couto iniciou os estudos em Medicina na Universidade de Lourenço Marques

(atual Maputo). Participou do movimento estudantil pela independência de Moçambique,

ligando-se, em 1973, à FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique). Em seguida,

abandonou os estudos na área médica e se dedicou ao jornalismo até 1985. Segundo ele, a

1SECCO, Carmen Lucia Tindó Ribeiro."Mia Couto e a "incurável doença de sonhar."" In: Sepúlveda, Maria do

Carmo; SALGADO, Maria Teresa. (org.). África & Brasil: letras em laços. 2. ed. São Caetano do Sul: Editorial

Yendis, 2006, v. I, p. 267. 2 COUTO, Mia. “Mia Couto fala sobre a literatura de Moçambique e de sua relação com as palavras”. Entrevista

por Marcos Fidalgo. Saraiva-conteúdo, 16/04/2012. Disponível em:

http://www.saraivaconteudo.com.br/Entrevistas/Post/45036. Acesso: 20/10/2014.

13

área jornalística proporcionou certa disciplina e ajudou o “uso da escrita como meio de chegar

aos outros”3. Além disso, outra área, que lhe encanta é a ciência, pois, para ele, é uma forma

de recolher histórias, de “capturar outras linguagens”4. Em meados da década de 1980, Mia

Couto regressou à universidade para se formar em Biologia. Para ele, essas duas atividades

são complementares, porque “ambas resultam da recusa das fronteiras, ambas são um passo

sonhado para lá do horizonte (...). É isso que eu peço à ciência que me faça apaixonar. É o

mesmo que eu peço à literatura” (COUTO, 2005a, p.45). Assim, simultaneamente, o escritor

moçambicano continua com o seu ofício, trabalha como biólogo, é professor universitário e

realiza outras diversas atividades.

No campo da Literatura, Mia Couto iniciou sua primeira publicação, em 1983, com o

livro de poesia, Raiz de Orvalho, e sua reedição Raiz de Orvalho e outros poemas, (1999).

Ainda na poesia lançou Idades Cidades Divindades (2007) e Tradutor de chuvas (2011).

Contudo, na prosa, o escritor ganha maior projeção com: contos, crônicas, artigos de opinião e

romances, nos quais se percebe um refinado trabalho com a linguagem, sobretudo no nível da

morfologia, fortemente influenciado pela obra de autores como o brasileiro Guimarães Rosa e

o angolano Luandino Vieira. Assim, promove, em seu texto literário, combinações e

recriações de vocábulos- nas palavras do próprio Mia Couto, as “brincriações” – mostrando,

ainda, a contribuição dos diversos falares moçambicanos ao português, que, apesar de língua

oficial do país, não é a língua materna de boa parte da população de Moçambique.

Dentre os prêmios, que Mia Couto recebeu no âmbito literário, apontamos os dois,

mais recentes; no dia 10 de junho de 2013, em Lisboa: o prêmio Camões, e, no dia 24 de

agosto de 2014, o prêmio literário Internacional Neustadt (Neustadt International Prize for

Literature), promovido pela Universidade de Oklahoma e pela World Literature Today,

concedido pelo conjunto da obra. Os únicos escritores de língua portuguesa contemplados

com este último prêmio, até o momento, são o brasileiro João Cabral de Melo Neto (1992) e o

moçambicano Mia Couto (2014).

Dentre as estratégias coutianas, destacamos, inicialmente, o minucioso jogo com as

palavras, que passeiam pelo universo da escrita e da oralidade (os mitos, as lendas e os

provérbios de Moçambique) e também o trabalho estético com as imagens, que acionam

críticas aos problemas sociais e políticos.

3 COUTO, Mia. “Escrita desarrumada”. Entrevista de Omar Ribeiro Thomaz e Rita Chaves. Jornal Folha de São

Paulo, em SP, 23/08/98. Disponível: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs23089817.htm. Acesso:

20/10/2014. 4 Idem.

14

Em suas obras, observa-se o diálogo permanente com a tradição moçambicana. Por

isso, em A confissão da leoa, a arquitetura com esses elementos não é diferente, uma vez que

Mia Couto apresenta na composição deste romance a fusão da tradição e a modernidade, o

conflito entre ancestralidade e a herança colonial. O próprio uso de algumas palavras, na

narrativa, em “shimakonde” ou “maconde” , língua falada no Norte de Moçambique, na

província de Cabo Delgado, mostra a necessidade do escritor em valorizar a diversidade

etnolinguística. A escrita miacoutiana nos chama a trafegar pelos múltiplos traços de

Moçambique e repensar o processo de reconstrução do país. No artigo “quebrar armadilhas”,

Couto menciona a habilidade de ler a própria língua e o vasto universo:

Eu vivo num país, Moçambique, em que se costuram várias fronteiras interiores. São

fronteiras de culturas, línguas, etnias, religiões. Esse convívio com a diversidade me

obriga a revisistar palavras e conceitos que me parecem impensadamente globais. E

vou aprendendo coisas curiosas. Por exemplo, vou sabendo de pais que são tios, de

tias que são mães, de primos que são irmãos. Tudo isto porque as relações de

parentesco não podem ser traduzidas com a facilidade de um assunto técnico. E vou

sabendo de leões que, afinal, são pessoas, de crocodilos que são animais de alguém,

de pessoas que, depois da morte, renascem em perdizes, em leopardos, em morros

de murchém. (...).

A nossa tentação é quase sempre maniqueísta. A visão simples que separa os

<<bons>> dos <<maus>> é sempre a mais imediata. Quanto menos entendemos,

mais julgamos.

A cilada maior é acreditarmos que as armadilhas estão sempre fora de nós, num

mundo que temos por cruel e desumano. Ora, por muito que nos custe, nós somos

também esse mundo. E as armadilhas que pensávamos exteriores residem

profundamente dentro de nós. Quebrar as armadilhas do mundo é, antes de mais,

quebrar o mundo de armadilhas em que se converteu o nosso próprio olhar.

Precisamos de passar um programa antivírus pelo nosso hardware mental. (...)

Não sabemos ler o mundo, não lemos os outros

(COUTO, 2009a, p.103,104 e 109).

As consequências da guerra civil constituem outra preocupação da obra de Mia Couto.

Em entrevista5, o escritor salienta que, mesmo em tempos de paz, o sentimento de solidão e

descrença permanece no sujeito contemporâneo. Para ele, chamar algo de paz “sem perceber

exatamente o que fez aquela guerra”6, merece cuidado, pois não se sabe “se o que vivemos

agora é paz, ou se devemos chamar o momento atual de "trégua".”7 Acrescenta-se também o

cuidado dos moçambicanos em relembrar certas situações, pois estas podem dar origem a

outro conflito incontrolável. Por isso, quando trabalha pela literatura determinadas questões

do passado, o objetivo é problematizá- las e acionar outro olhar para as cicatrizes existentes.

Após observar alguns elementos recorrentes nas obras miacoutianas e acompanhar o

curso da professora orientadora, Maria Teresa Salgado, Albert Camus e Mia Couto-

5Idem. 6 Idem. 7 Idem.

15

Literatura, moral e felicidade: a importância do pensamento de Camus na cena cultural

contemporânea, a escolha do tema de nosso trabalho começou a ser definido. Partindo das

inquietações de Camus em suas produções literárias e em alguns ensaios sobre as relações do

sujeito no mundo contemporâneo, observa-se como o ser humano vive a sensação de

banimento.

Seguindo tal raciocínio, a dissertação tem como objetivo analisar a condição do exílio,

a partir da leitura de A confissão da leoa, de Mia Couto. Abordar esse tema, como uma das

grandes questões da atualidade, é pensar a própria circunstância do homem no mundo, isto é,

o indivíduo depara-se com a sensação de estar “fora do lugar” (SAID, 2004, p.19). Trata-se de

expressão apontada por Said, na obra Fora do lugar: memórias, que demarca, a partir das

lembranças do autor, as turbulências de uma vida marcada por estar sempre no entrelugar, ser

palestino e ter que viver em outros países, como, por exemplo, os Estados Unidos. Neste livro

de memórias, Said destaca as aflições daqueles que foram afastados de seus países e também

os que se encontram em seu território, sentindo um gosto amargo do passado marcado por

traumas e violência.

O tema do exílio, pelo senso comum, apresenta a ideia de expulsão, de separação,

aquele que é arrancado de sua terra natal. Segundo Maria José de Queiroz, em Os males da

ausência, ou a literatura do exílio, o exílio “vem do latim exilium (de exsilium, ii, deriv. de

exsilire - ex salire, saltar fora), desterro, degredo” (QUEIROZ, 1998, p. 21). A pesquisadora

apresenta a evolução do vocábulo em diferentes significados, como por exemplo: de punição,

como na história bíblica de Adão e Eva; de ato voluntário ou compulsório e de degredado.

Este termo apresenta diferentes sentidos ao longo da história. Para a nossa pesquisa,

trabalharemos o exílio, apontado por Edward Said como uma terrível experiência; uma

“fratura incurável (...) entre o eu e seu verdadeiro lar” (SAID, 2003, p.46) e retomaremos

também as reflexões de Camus, nos contos do livro O exílio e o reino, por mostrar as

consequências do exílio no ser humano e sua busca para encontrar o seu “reino”, seu lugar.

Dessa forma, nosso interesse é investigar o exílio no sentido existencial, isto é, ruptura

ocorrida interiormente no indivíduo, em decorrência do trauma, da violência. Exilado em seu

próprio território, o sujeito sente-se banido do mundo e passa a indagar si mesmo e o outro.

Ao iniciar o processo de autoconhecimento, o ser humano traz percepções do passado, os

fatos do presente e as incertezas do futuro.

Nosso objetivo nesta pesquisa é trazer para a discussão a experiência do exílio

vivenciada pelos personagens no romance de Mia Couto. Veremos o diálogo entre o exílio e a

16

memória, a partir de outras vozes, que aparecem nas lembranças dos protagonistas, o que

garante o jogo entre a memória individual e coletiva; inclui-se também a análise do aspecto

confessional dos protagonistas, que ao retrabalharem os traumas, trazem para a cena situações

de violência doméstica ou da guerra-civil; verificaremos como o exílio relaciona-se com o

discurso, seja por meio das tradições orais moçambicanas (provérbios, mitos, lendas), seja por

meio da escrita dos protagonistas no diário; indagaremos a importância da escrita terapêutica

no processo de autoconhecimento dos protagonistas.

O estudo pretende abordar o diálogo com as três palavras: o exílio, a memória e o

discurso no processo da percepção dos protagonistas sobre si mesmo e o outro. Neste sentido,

investigaremos a experiência do exílio nos personagens miacoutianos do romance citado,

observando o processo da memória em rearticular as lembranças e da escrita em retrabalhar

questões conflitantes. Além disso, a partir da experiência da confissão é possível perceber a

interação entre o oral e o escrito, a tradição e a modernidade na escrita de Mia Couto.

A divisão dos capítulos se estabeleceu de acordo com a sensibilidade que a obra me

provocou. Ao perceber o vazio vivenciado pelos protagonistas, notamos como a memória é

acionada a partir da confissão e é retrabalhada no corpo do texto pela palavra escrita. Mesmo

que a palavra oral, seja percebida por primeiro na estrutura da obra, na história do avô,

principalmente, na frase “Deus já foi mulher” e em várias tradições moçambicanas presentes

no contexto dos relatos dos personagens, destacamos, no primeiro capítulo, o tema do exílio,

pois este permite justificar o porquê de Mariamar e Arcanjo começarem um trabalho

cuidadoso com a palavra escrita no caderno. Sem ter com quem compartilhar a sua angústia,

eles obtém com o registro escrito a possibilidade de diluir a vivência marcada por perdas e

traumas, tanto individuais, quanto coletivas. Neste caso, a palavra escrita destaca aspectos da

interioridade, que talvez, pela oralidade, não pudessem ser revelados; até porque, ao

vivenciarem o silenciamento, a escrita no caderno torna-se um porto seguro, pois não há

proibições, e sim um fluxo contínuo do pensamento. Claro que esta divisão não é absoluta,

pois o exílio, a memória e o discurso se interligam. Quando os protagonistas tentam organizar

o seu mundo interior, este processo exige reavaliar determinadas circunstâncias, o que implica

a interação com as tradições orais, aos fatos da infância, as cenas traumáticas e tantos outros

casos.

No primeiro capítulo, ressaltamos o tema do exílio e como esta experiência torna-se

pertinente nos protagonistas e nos personagens em A confissão da leoa. Para isso,

recorreremos aos estudos dos teóricos: Edward Said, por apresentar as várias faces do exílio e

17

por trabalhar com maestria a sensação de estar “fora do lugar”; Todorov, por questionar as

conseqüências dos regimes totalitários e o aspecto do desenraizamento; Stuart Hall, por

problematizar a construção identitária e o tema da diáspora; Camus, por apontar, tanto em

seus ensaios, quanto obras literárias, a incomunicabilidade entre os indivíduos. Acrescentam-

se também trabalhos sobre a temática do exílio com os pesquisadores: Maria José de Queiroz,

Simone Schmidt, Terezinha Taborda Moreira, Cristianne A. de B. Lameirinha, Amanda Pérez

Montañés, Paul Ilie e tantos outros.

Subdividido em dois tópicos: “exílio das leoas” e “exílio do caçador”, por englobar

tanto a sensação de banimento das mulheres da aldeia, quanto do homem da cidade, este

capítulo articula-se ainda com elementos do mito para mostrar o exílio já no processo da

criação, visto em: “Deus já foi mulher” (COUTO, 2012, p.13). Por isso, dialogamos com o

mitólogo Mircea Eliade, por esclarecer, em sentido amplo, a importância dos mitos na

sociedade e com a pesquisadora Riane Eisler, por apresentar evidências arqueológicas sobre a

organização das sociedades, destacando a existência de um matriarcado. A partir daí, discute-

se o dom da maternidade e a figura feminina, com o artigo da pesquisadora Laura Padilha,

que retoma o pensamento de Raul Ruiz de Asúa Altuna.

Na sequência “exílio das leoas- Deus já foi mulher”, apresentaremos a protagonista:

Mariamar e as outras vozes femininas: Hanifa Assulua, Naftalinda e Luzilia, apontando a

condição de exclusão das mulheres, enquanto filha, mãe, mulher e esposa. Mesmo com

funções diferentes, elas compartilham do mesmo sofrimento: o exílio, que envolve aspectos

relacionados ao conhecimento de si mesmas, aos desejos e a posição social. Para perceber

estes aspectos em cada personagem, retomamos algumas reflexões da filósofa Júlia Kristeva,

que aborda o sentimento de estar estrangeiro. Com relação ao corpo como “lugar do exílio”,

recorremos ao filósofo francês Jean-Luc Nancy; ainda a psicanalítica Maria Rita Kehl, que

dialoga com o pensamento de Freud para falar dos desejos do sujeito; também a pesquisadora

Claudia Barbosa de Medeiros, com a dissertação Mia Couto: eros em desordem (2013), que

nos ajuda a inferir sobre o ato erótico nos personagens miacoutianos. Por fim, o filósofo

Foucault, para ilustrar o percurso histórico da sexualidade.

Na outra sequência em: exílio do caçador- “Quero, sim, ausentar-me de mim. Dormir

para não existir.”, analisaremos o protagonista Arcanjo Baleiro, que assim como as mulheres

em Kulumani, vive a experiência do banimento. Nele, a exclusão relaciona-se a sua condição

de órfão, de não ser amado, de ter o irmão no Hospital Psiquiátrico, da sua função de caçador,

18

além disso, da necessidade de se afastar da cidade, Maputo. Para ajudar nossa análise,

salientamos o teórico Said e o próprio escritor Mia Couto com seus ensaios.

No segundo capítulo, evidenciaremos a relação do exílio e a memória. A partir do ato

da confissão, os protagonistas trazem à tona as lembranças, tanto individuais, quanto

coletivas. Neste processo, há fatos que se deseja lembrar e outros que se quer esquecer. O

teórico Todorov, em Memória do mal, tentação do bem: indagações sobre o século XX,

problematiza como o sujeito deve gerir o passado e fazer deste processo um ato de

transformação interior e não mais um momento de alimentar vingança. Pela memória, os

protagonistas fazem um diálogo com a História de Moçambique, relembrando o período

colonial, como visto nos relatos do avô de Mariamar, a infância marcada pelas histórias e pela

guerra civil e suas conseqüências. Além disso, situações domésticas também serão retomadas

por Mariamar, que lembra da exploração das mulheres no serviço diário e os abusos sexuais

do pai, e por Arcanjo Baleiro, que evoca a morte da mãe, o assassinato do pai e a internação

do irmão. Para examinar o processo de construção da memória nos protagonistas, nos

apoiaremos nas reflexões de Todorov, de Maurice Halbwachs, de Beatriz Sarlo, de Henri

Bergson, de Artur Nestrovski e Márcio Seligmann-Silva. Além disso, para discutir elementos

da infância, utilizamos o pensamento de Gaston Bachelard.

Ao trazer a relação do exílio e a memória, outro fato importante a percebermos é o

contexto histórico moçambicano. Para tratar deste assunto, recorremos os estudos de alguns

pesquisadores: Maria Teresa Salgado, por trabalhar e explorar os estudos africanos, com

destaque para o tema da memória, do riso e da busca de felicidade nos espaços africanos;

Maria Fernanda Afonso, por estabelecer um panorama sobre a produção africana; Maria

Nazareth Soares Fonseca e Maria Z. F. Cury, por suas contribuições na pesquisa,

principalmente das obras miacoutianas; Ana Mafalda Leite, por trabalhar com maestria

aspectos das literaturas africanas; Carmen Lúcia Tindó, por tratar com riqueza e propriedade

do espaço moçambicano; Rita Chaves, Tania Macedo e Fernanda Cavacas, por trabalhos

relacionados ao escritor Mia Couto; Laura Padilha, por abordar de forma brilhante as obras

africanas e tantos outros. Além disso, articula-se também obras sobre a cultura africana com o

estudo de Honorat Aguessy, Ola Balogun, Joseph KI-ZERBO.

No terceiro capítulo, analisaremos a relação entre o exílio e o discurso. Nossa intenção

é investigar, segundo Todorov, em “O que pode a literatura?”, como a escrita torna-se um

elemento terapêutico de “transformar a cada um de nós a partir de dentro” (TODOROV,

2009, p.76). Ao escrever no caderno, os protagonistas iniciam um processo de autoanálise,

19

que mescla também com elementos da oralidade, como os mitos, as lendas e as tradições da

aldeia. Veremos dois momentos do discurso, tanto na estrutura do romance com as epígrafes,

marcadas em sua grande maioria pelos provérbios, que também expressam a experiência do

exílio, quanto à composição do diário pelos protagonistas. Considerados loucos, pelos demais,

Mariamar e Arcanjo mostram que a loucura, segundo Foucault, é um ato de resistência e

liberdade, pois ao finalizarem o seu ofício reconhecem pela força da palavra o conforto e o

refúgio para romper a incomunicabilidade e trabalhar a angústia existencial. Para a discussão

tanto da oralidade, quanto da escrita no romance, amparamo-nos no pensamento do próprio

Mia Couto, de Marcio Seligmann-Silva, de Todorov, de Laura Padilha, de Honorat Aguessy,

de Amadou Hampaté Bâ, de Maria Fernanda Afonso, de Ana Mafalda Leite, de Oscar Tacca e

de Albert Camus.

A experiência do exílio faz parte da vida humana. É inevitável, não sentir um

desconforto por estar em algum lugar ou em uma situação, que provoque uma angústia. Então,

nos perguntamos, como o sujeito sente-se no mundo contemporâneo? Como vivem aqueles

que passaram pela situação de trauma? De que forma a memória e o discurso ajudam neste

processo de autoconhecimento? Cabe a essa pesquisa analisar um dos aspectos da escrita

magnífica miacoutiana. Nossa decisão já foi tomada pelo tema do exílio. Por isso, nas

palavras de Ondjaki sobre a tessitura de Mia Couto, peço a você leitor a atenção para que:

Estejamos com os poros atentos: talvez além dos detalhes e dos adornos resida o

essencial. A semente. O sonho. A sua verdade, portanto. A verdade que é, o mais

das vezes, um gigante em hibernação. Sendo obra tão vasta e recente, haverá que

saber esperar o desaguar de tantas interpretações possíveis. Talvez além das sombras

e das escarpas resida a foz. (...) Na verdade, penso, só vozes interiores é que fazem o

Couto miar-porque a cultura se fez para ele canoa e o mundo lê a sua mão grudada

ao remo. Vai ao remo ao fundo e volta; ganham as águas novos redomoinhos;

enquanto o Couto, felinamente calmo, vai miando... (ONDJAKI, 2013, p.29-30).

20

2. EXÍLIO: “A FRATURA INCURÁVEL” DA CONTEMPORANEIDADE

Só há um modo de escapar de um lugar: é sairmos de nós.

(COUTO, 2012, p.27)

A condição do exílio faz parte de toda a história da humanidade. Desde os tempos

genesíacos, com a expulsão de Adão e Eva do Paraíso até a contemporaneidade, o homem

apresenta a marca da rejeição e da fuga. O termo sofreu transformação: de "pena e castigo"

(QUEIROZ, 1998, p.39) a degredado e desterrado. Segundo Said, "a diferença entre os

exilados de outrora e os de nosso tempo é de escala: nossa época, com a guerra moderna, o

imperialismo e as ambições (...) é (...) a era do refugiado, da pessoa deslocada, da imigração

em massa" (SAID, 2003, p.46).

Como uma das grandes questões da atualidade, abordar esse tema é pensar a própria

circunstância do homem no mundo. Diante das situações subumanas geradas por regimes

totalitários, pela violência, pela guerra, pelo choque entre culturas, o sujeito é obrigado a

migrar de um lugar a outro e vivenciar a sensação de desenraizamento8. Entretanto, o exílio

não se limita apenas à ruptura geográfica imposta ou voluntária; acrescenta-se, também, o

sentido existencial, que elucitaremos mais adiante nos próximos capítulos. Quem nunca teve a

sensação de estar “fora do lugar”?(SAID, 2004, p.19) Ou de deslocar-se? Essas experiências

constituem o problema de muitos indivíduos contemporâneos que, dentro de seu próprio país/

lar, sofrem a ausência e o isolamento. Para Said, a maior dificuldade dos exilados:

não consiste só em ser forçado a viver longe de casa, mas sobretudo, e levando em conta o

mundo de hoje, em ter de conviver o tempo todo com a lembrança de que ele rea lmente se

encontra no exílio, de que sua casa não está de fato tão distante assim, e de que a circulação

habitual do cotidiano da vida contemporânea o mantém num contato permanente, embora

torturante e vazio, com o lugar de origem (...); por um lado, ele é nostálgico e sentimental,

por outro, um imitador competente ou um pária clandestino [sic]

(SAID, 2005, p.56-57).

A pesquisadora Simone Pereira Schmidt examina os romances de Mia Couto, Terra

sonâmbula (1992) e Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2002), a partir do

exílio dos personagens que não partem de seu país, chamando a atenção para o trauma. Para

ela, aqueles que passaram por momentos de guerra apresentam:

8 Todorov, em O homem desenraizado, apresenta a característica do desenraizamento a partir da experiência de

duas culturas: ao mencionar sua origem búlgara, sua partida para França e seu retorno dezoito anos depois para a

Bulgária.

21

uma outra situação de exílio, que as faz testemunhas das profundas mudanças

vividas, e no seio de tais diferenças, negociam novos significados para si, como

sujeitos. O drama que vivenciam é (...) o de sua própria identidade. Onde

reencontrar os vínculos perdidos? Como reconstruir a vida, a partir de novos

paradigmas? (SCHMIDT, 2005, p.96)

Essa sensação de desconforto é também resultado da fluidez e da transitoriedade na

construção identitária, característica de uma época de migrações e diásporas. Segundo

Bhabha, em O local da cultura, “encontramo-nos no momento de trânsito em que espaço e

tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade, passado e

presente, interior e exterior, inclusão e exclusão” (BHABHA, 2013, p.19). Para o pensador, há

uma necessidade de “re-locação do lar e do mundo” (BHABHA, 2013, p. 31). Isto é, o sujeito

tenta encontrar o seu lugar, pois, ao perceber a posição ambivalente de dentro e de fora ou de

nenhum lugar, o indivíduo sente-se estrangeiro. Dessa forma, pensar na experiência do exílio

é refletir também a complexa formação identitária. Segundo Hall, esta é uma das

consequências do processo contemporâneo de globalização, que:

se torna cada vez mais evidente nas diásporas multiculturais e em outras

comunidades minoritárias e mistas do mundo pós -colonial. Antigas e recentes

diásporas governadas por essa posição ambivalente, do tipo dentro/fora, podem ser

encontradas em toda a parte. Ela define a lógica cultural composta e irregular pela

qual a chamada modernidade ocidental tem afetado o resto do mundo desde o início

do projeto globalizante da Europa (HALL, 2003a, p. 74).

Stuart Hall destaca, a partir da migração caribenha para a Grã-Bretanha, a "sensação

familiar e profundamente moderna de des-locamento" (HALL, 2003a, p.27). Analisa que,

diante da experiência diaspórica "as identidades se tornam múltiplas" (HALL, 2003a, p.27), o

que significa dizer que o sujeito moderno além de descentrado com relação ao mundo, está

também consigo mesmo.

Neste sentido, a presença de exilados é fundamental para a formação da literatura

ocidental moderna. Segundo Said, ao retomar o pensamento de George Steiner, a

característica da literatura do séc. XX é "extraterritorial", isto é, "feita por exilados e sobre

exilados, símbolo da era do refugiado" (SAID, 2003, p.47). A experiência do exílio aparece

como elemento propício à criação literária. Para Said, o escritor encontra, mesmo que de

forma provisória, na escrita, a possibilidade de um novo mundo o qual possa habitar, já que o

atual se encontra desorganizado.

Grandes pensadores, que vivenciaram situações de estar “fora do lugar” (SAID, 2004,

p.19); como Camus, o próprio Said, Todorov e tantos outros, expressam um desconforto em

relação ao mundo, principalmente, quando se referem a sua identidade, muitas vezes,

22

representada pela fusão entre duas ou mais culturas: de origem e do novo território habitado.

Vale ressaltar que, estar exilado não condiciona a escrever sobre o tema, mas assegura uma

nova sensibilidade do autor em relação a si e ao outro.

Em Camus, especialmente, o exílio parece desencadear a incomunicabilidade entre os

indivíduos, como na obra, O exílio e o reino (1957). As estórias partem de situações comuns

para apresentar indivíduos exilados, que buscam o seu reino. Cada narrativa enfatiza a relação

do homem com o mundo, na tentativa de buscar o sentido da vida que não se encontra ou que

só se encontra na própria busca. O pensamento camusiano está profundamente relacionado

aos terríveis acontecimentos do séc. XX (Guerras Mundiais, a crise de 1929, A Guerra Civil

Espanhola- 1936-1939), pois, diante da crueldade e da violência, a exclusão do sujeito é

potencializada.

Em Reflexões sobre o exílio, Edward Said relaciona essa terrível experiência a uma

"fratura incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar: sua

tristeza essencial jamais pode ser superada. (...)" (SAID, 2003, p.47). Com origem na prática

do banimento, o indivíduo carrega as cicatrizes da reclusão e passa a questionar a si, ao

ambiente e ao outro, pois sua vida encontra-se em desordem.

O teórico palestino, nascido em Jerusalém, filhos de árabes cristãos, saiu de seu país e

viveu no Egito, Líbano e nos Estados Unidos. Na obra Fora do lugar: memórias, ele expressa

a sensação de deslocado diante das consequências de tal circunstância e afirma:

Ás vezes me sinto como um feixe de correntes que fluem. Prefiro isso à ideia de um

eu sólido, à identidade a que tanta gente dá tanta importância. Essas correntes, como

os temas da vida de uma pessoa, fluem ao longo das horas de vigília e, em seu

melhor estado, não requerem nenhuma reconciliação, nenhuma harmonização. Elas

escapam e podem estar fora do lugar, mas pelo menos estão sempre em movimento,

no tempo, no espaço, em toda espécie de estranhas combinações que se movem, não

necessariamente para a frente, às vezes umas em choque com as outras, fazendo

contrapontos, ainda que sem um tema central. (...) Com tantas dissonâncias em

minha vida, de fato aprendi a preferir estar fora do lugar e não absolutamente certo

(SAID, 2004, p.429).

Ao situar-se entre a cultura árabe e americana, Said tenta compreender sua vida pela

visão "contrapontística" (SAID, 2003, p.309), no qual tem a possibilidade de ver "o mundo

inteiro como uma terra estrangeira" (SAID, 2003, p.59). Desse modo, chama a atenção para a

mudança do comportamento do exilado para "não ficar sentado à margem, afagando uma

ferida" (SAID, 2003, p.58), mas adotar uma atitude de resistência, a qual contribui para o

desenvolvimento do olhar plural aos acontecimentos. Embora valorize a originalidade desta

visão, ressalta que não se devem esquecer as mutilações e as perdas causadas pelo exílio.

23

Relacionando com este pensamento "contrapontístico", o escritor moçambicano Mia

Couto valoriza também o olhar para "o mundo inteiro como a nossa casa".9 Para ele, o diálogo

entre as identidades nos permite sermos outros; por isso, a "riqueza provém da nossa

disponibilidade de efectuarmos trocas culturais" (COUTO, 2005a, p.10). Enfatiza que não há

uma única identidade, mas múltiplas que estão em permanente mudança:

Podemos ser diversas coisas. O erro é quando queremos ser apenas uma. O erro é

quando queremos negar que somos diversas coisas ao mesmo tempo. (...)

A verdade é que não existe ninguém "puro". A nossa espécie humana é toda feita de

mestiçagens. Há milhões de anos que nos andamos cruzando, trocando genes,

traficando valores. Fomos capazes de sobreviver por causa dessa diversidade. Não

há nesta sala ninguém que não possua uma identidade múltipla e plural. As

identidades, meus amigos, são como os dedos da mão. De quando em quando, há um

desses dedos que incha e não deixa ver os restantes dedos. Cada um de nós, em certo

momento da sua vida, já sentiu esse inchaço na sua alma. Houve dias que fomos

mais de uma etnia, de uma religião, de um clube. Mas a mão continua sempre sendo

composta por múltiplos dedos (COUTO, 2005a, p.87 e 89).

Outro pensador que dialoga com a experiência de várias identidades é Todorov. Em O

homem desenraizado, ele menciona o seu retorno à Bulgária, depois de dezoito anos na

França, e a descoberta da "vida interior de duas culturas, de duas sociedades" (TODOROV,

1999, p.16). Para o teórico, o homem desenraizado sofre no primeiro momento ao ser

arrancado de seu meio; contudo, essa experiência permite compartilhar diferentes identidades.

Assim, afirma que vive no espaço singular, "ao mesmo tempo por fora e por dentro:

estrangeiro "na minha casa" (em Sófia), em casa "no estrangeiro" (em Paris)" (TODOROV,

1999, p.26).

Ainda, nesta obra, Todorov acrescenta o desdobramento dos regimes totalitários na

vida dos indivíduos. Ao impedir o desenvolvimento do pensamento, o totalitarismo gera um

sentimento de vazio no sujeito, que se encontra com a própria unidade individual estilhaçada.

Indaga como esta experiência da violência pode ser retrabalhada pela sociedade e como a

memória pode servir de instrumento para a transformação interior.

Neste aspecto mencionado anteriormente, lembramos como é pertinente, nas obras de

Mia Couto, o aspecto do exílio, advindo de situações de trauma e violência gerados pela

guerra. Esta situação de calamidade perpassa a memória ou a situação social de vários

personagens, que em alguns momentos sofrem do deslocamento geográfico ou interior, o que

se pode confirmar em: Terra sonâmbula (1992), onde personagens como Muidinga, Tuahir, 9COUTO, Mia. “Repensar o pensamento, redesenhando fronteiras de Mia Couto.” Site: Fronteiras, 10 de agosto

de 2014. Disponível em: http://www.fronteiras.com/canalfronteiras/entrevistas/?16,176. Acesso: 20/08/2014.

24

Kindzu e Farida são obrigados a deixar suas terras, pois "não havia sítio para onde escapar"

(COUTO, 1995, p.36); em A varanda do Frangipani (1996), o isolamento dos idosos está no

ambiente do asilo, onde se sentem "expulsos do mundo, expulsos de nós mesmos" (COUTO,

1996, p.127); em Vinte e zinco (1999), Dona Margarida (tristeza da solidão) e Irene (vinda de

Portugal a Moçambique é "exilada do juízo e das maneiras" (COUTO, 1999b, p.20)

apresentam o seu desenraizamento na casa colonial; em O último voo do flamingo (2000) e

em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2002), os territórios, respectivamente,

Tizangara e Luar-do-Chão, mostram os personagens exilados dentro da própria terra, onde "o

mundo já não era lugar para de viver" (COUTO, 2003, p.23); em O outro pé da sereia (2006),

destacamos personagens: Mwadia Malunga, que faz a viagem de Antigamente até Vila Longe

e o escravo africano Nimi Nsundi que, banido de sua terra, prefere a morte, pois não consegue

se reconhecer em nenhum lugar; em Venenos de Deus, remédios do Diabo (2008), Sidónio,

médico português, apresenta a solidão tanto da partida da pátria, quanto interior: "não sabia

mais o que era o desejo de ser feliz (...) há muito que estava só. Solitário entre parentes e

conhecidos" (COUTO, 2008, p.109); em Jesusalém (Antes do nascer do mundo- 2009b),

Silvestre funda seu próprio reino como exílio para as suas memórias.

Em torno da construção literária miacoutiana, torna-se marcante a prática do

banimento. A partir da leitura de: A confissão da leoa (2012), pretende-se analisar a

experiência do exílio e seu desdobramento na memória e no discurso. Nesta nova produção, a

sua função como biólogo, na região de Cabo Delgado, ao Norte de Moçambique, serviu de

inspiração para o enredo. Tal fato é percebido, na explicação inicial, em A confissão da leoa:

Em 2008, a empresa em que trabalho enviou quinze jovens para atuarem como

oficiais ambientais de campo durante a abertura de linhas de prospeção sísmica em

Cabo Delgado, no Norte de Moçambique. Na mesma altura e na mesma reg ião,

começaram a ocorrer ataques de leões a pessoas. Em poucas semanas, o número de

ataques fatais atingiu mais de uma dezena. (...) Sugerimos à companhia petrolífera

que tomasse em suas mãos a superação definitiva dessa ameaça: a liquidação dos

leões comedores de pessoas. Dois caçadores experientes foram contratados e

deslocaram-se de Maputo para a Vila de Palma, povoação onde se centravam os

ataques de leões. (...)

Vivi esta situação muito de perto. Frequentes visitas que fiz ao local onde decorria

este drama sugeriam-me a história que aqui relato, inspirada em factos e

personagens reais (COUTO, 2012, p. 7- 8).

Em entrevista, Mia10 afirma que, por ser biólogo, as visitas demoradas facilitam o

contato maior com o universo das pessoas:

10 COUTO, Mia. “Mia Couto fala sobre ‘A confissão da leoa’”. Entrevista a Leonardo Cazes. Jornal O globo. 10

de novembro de 2012. Disponível: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2012/11/10/mia-couto-fala-sobre-

confissao-da-leoa-474310.asp. Acesso: 15/04/2013.

25

(...) Não vou lá como um turista. (...) na aldeia de Palma (que no romance surge

como Kulumani) eu tive que permanecer mais tempo. Só o tempo torna possível que

os aldeões se abram para um estranho. (...) Eles têm pensamentos e religiosidades

próprias que valem tanto e são tão dinâmicas como as lógicas da idade e da

modernidade (COUTO, 2012, site).

As pesquisadoras Fonseca e Cury comentam que o escritor parte, muitas vezes, de

“acontecimentos “reais”, para neles inserir vozes que a história reprimiu” (FONSECA e

CURY, 2008, p.84). Assim, ao reinventar os fatos, cria-se um novo olhar para as situações

atuais. Por isso, Mia, ainda em entrevista ao jornal O globo, sobre este romance, expressa a

possibilidade de desconstruir a imagem estereotipada de África:

(...) Escrevi sem ter nenhum outro propósito que o de ficar longe da realidade,

porque se vivia uma situação de insuportável medo e horror. Eu queria, mesmo que

não soubesse, converter em ficção aquela realidade. Mas, naquele momento, eu

nunca imaginaria que iria escrever um romance. E mesmo depois, já na cidade, eu

tive que vencer o peso de estereótipos que olham a África como o lugar dos bichos e

das caçadas. Não queria escrever um livro que sedimentasse esse olhar exótico e

folclórico sobre o meu próprio lugar. Regressei à aldeia para ganhar intimidade com

as pessoas e o modo como liam aqueles estranhos eventos

(COUTO, 2012, site).

A obra, a princípio, de forma simples, apresenta os ataques de leões às mulheres de

Kulumani e a chegada do caçador para solucionar o caso. Na verdade, o contexto articula

questões bem mais complexas: a condição feminina e diversos impasses (políticos, sociais e

culturais). O autor revela que o cenário recriado é uma forma de desconstruir a imagem

romântica de África e mostrar os aspectos "cambiantes da maldade humana" (COUTO, 2012,

site).

A confissão da leoa (2012) apresenta, já pelo título, uma reestruturação social. O

"leão"- "rei dos animais", aquele que impõe a "sua autoridade e a sua força" (CHEVALIER,

2009, p.539) dá lugar à leoa, ou melhor, às leoas. A escrita convoca a confissão das mulheres

como saída à opressão masculina. O próprio ato de confessar da protagonista, Mariamar,

revela, a cada "versão", as suas angústias existenciais.

A estrutura ficcional é dividida, de forma básica, em uma explicação inicial e

dezesseis capítulos que se entrecruzam, no discurso em primeira pessoa, nas vozes de dois

narradores: a voz de Mariamar, apresentada como “Versão de Mariamar” e a voz de Arcanjo

Baleiro, apresentada como “Diário do caçador”. Ambos vivenciam o exílio existencial, que

gera o autoconhecimento; este relaciona-se as lembranças das vozes do passado que, por sua

vez, são reorganizadas pela escrita no caderno.

26

Neste percurso, a escrita traz o deserto de conflitos e medos que perpassam os

habitantes da aldeia. Para Mia Couto, o encontro com as inquietações interiores permite

compreender a própria realidade. Por isso, afirma que a literatura tem esse papel de

transformação, já que ajuda a "manter vivo o desejo de inventar outra história para uma nação

e outra utopia como saída"11.

2.1. O exílio das leoas- "Deus já foi mulher"

São as mulheres que, desde há milénios, vão tecendo esse infinito véu.

(COUTO, 2012, p.13)

Na tentativa de compreensão do desconhecido, o ser humano busca no mito o “valor

à existência” (ELIADE, 2007, p.8). Entretanto, esta situação não é tão simples, pois o termo é

muito complexo, uma vez que, cada sociedade traz um significado próprio para a sua

realidade, seja para entender a origem do mundo ou os fenômenos naturais. O grande

mitólogo do séc. XX Mircea Eliade esclarece que: “o mito conta uma história sagrada; (...)

relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. (...)

É sempre, portanto, a narrativa de uma "criação" (ELIADE, 2007, p.11). Acrescenta que o

importante no conhecimento sobre o mito é o ato de rememorá-lo e reatualizá-lo, isto é,

aprender “não somente como as coisas vieram à existência, mas também onde encontrá-las e

como fazer com que reapareçam quando desaparecem” (ELIADE, 2007, p.18).

Neste sentido, as reflexões de Eliade dialogam com a escrita de Mia Couto que,

segundo Fonseca e Cury, apresenta a característica de mostrar a narrativa sagrada do mito

para atualizá- lo:

(...) a remissão à origem que acompanha a narrativa sagrada do mito, exercendo

função exemplar e reguladora nas sociedades arcaicas, função de harmonizar tempos

diferentes- o imemorial e o presente- vê-se, na obra de Mia Couto, atualizada. Isso

se dá sem a ilusão de uma volta à pureza das origens, pureza sempre presente nas

estratégias de fabricação do projeto nacional. Subverte-se, de certa forma, o mito,

mas simultaneamente ele é valorizado, na possibilidade de a ele se agregarem novos

sentidos. (...) (FONSECA & CURY, 2008, p.83).

11COUTO, Mia. “Mia Couto, o poeta que escreve histórias ”. Entrevista a Miriam Sanger. Memorial de

Ipaumirim-CE- Wordpress.com. 17 de setembro de 2009. Disponível em:

http://memorialdeipaumirim.wordpress.com/2009/02/17/acredito-que-a-literatura-pode-ajudar-a-manter-vivo-o-

desejo-de-inventar-outra-historia-para-uma-nacao-e-outra-utopia-como-saida-mia-couto/. Acesso: 12/04/2013.

27

Em entrevista12, Mia Couto revela que ao trazer os mitos e as lendas para a literatura

deseja retrabalhar os medos e as inseguranças dos povos de Moçambique e também observar

a construção dessas narrativas, que transportam uma beleza de ensinamentos.

O mito aparece, em A confissão da leoa, logo no início, quando há a inversão da

condição divina: “Deus já foi mulher. Antes de se exilar para longe da sua criação (...)

parecia-se com todas as mães deste mundo” (COUTO, 2012, p.13). Destacamos dois

aspectos: o exílio e a figura feminina.

A personagem Mariamar, ao iniciar seu autoconhecimento pela escrita, apreende que o

criador é mulher e se encontra exilado; logo, o próprio nascimento do ser humano também

está deslocado. É curioso que, ao conceber a divindade à mulher, Mia Couto recria o mito

bíblico e indica a dupla sacralidade da figura feminina, como criadora e mãe da Terra, aquela

que possui a força da vida.

Em O cálice e a espada, Riane Eisler apresenta evidências arqueológicas sobre a

organização das sociedades, destacando a existência de um matriarcado. Os vestígios da pré-

história, como estatuetas ou pinturas, apontam para a veneração pela Terra-Mãe. Uma das

explicações para a associação da mulher com a terra seria o fato de que as antigas sociedades

agrícolas apresentavam uma “deificação da fêmea” (EISLER, 1989, p.30), devido a sua

característica biológica em fecundar e proporcionar nutrição, assim como a terra.

Em muitas das primeiras histórias da criação conhecidas nos mais diferentes pontos

do mundo, encontramos a Deusa-Mãe como fonte de toda a existência. Nas

Américas, ela é a Senhora da Saia de Serpentes – de interesse também porque, assim

como na Europa, no Oriente Médio e na Ásia, a serpente é uma das suas

manifestações mais básicas. Na antiga Mesopotâmia este mesmo conceito do

universo é encontrado na idéia da "montanha do mundo" como o corpo da Deusa -

Mãe do universo, idéia esta que sobreviveu através de períodos históricos. E como

Nammu, a Deusa suméria que concebeu o céu e a terra, seu nome é expresso em um

texto cuneiforme de cerca de 2000 a.C. (hoje no Louvre) por um ideograma

simbolizando o mar.

(...)

Embora raramente estes fatos sejam incluídos no que aprendemos sobre nossa

evolução cultural, muito do que surgiu nos milênios de história neolítica ainda se

encontra hoje entre nós.

(...)

De fato, se analisarmos com atenção a arte neolítica, é verdadeiramente

surpreendente quanto deste imaginário da Deusa sobreviveu- e não terem essas

obras comuns da história da religião ressaltado este fato fascinante. Assim como a

Deusa neolítica grávida era descendente direta das "Vênus" paleolíticas de ventres

protuberantes, esta mesma imagem sobrevive na Maria grávida da iconografia cristã

medieval. A imagem neolítica da jovem Deusa ou Virgem ainda é adorada no

aspecto de Maria como a Virgem Santa. E naturalmente a figura neolítica da Deusa-

12 COUTO, Mia. “Entrevista”. Entrevista a André Miranda. Jornal O globo. 30 de agosto de 2013. Disponível:

http://oglobo.globo.com/cultura/deixo-me-apaixonar-pelos-personagens-conta-mia-couto-as-vesperas-de-

participacao-na-bienal-9751745. Acesso: 19/09/2013.

28

Mãe levando seu filho divino nos braços ainda é dramaticamente mostrada em toda

parte como a Madona cristã e seu filho. (...) (EISLER, 1989, p.30-31-negritos

nossos).

O romeno Mircea Eliade ressalta que a estrutura cósmica relaciona-se com a

fecundidade e o nascimento. Por isso, os ritos da Mãe-Terra mostram a ideia da criação da

vida, o que garante a mulher um modelo cósmico. Afirma que, este mito cosmogônico é

bastante difundido na “Oceania da Indonésia à Micronésia –, mas também na Ásia, na África

e nas duas Américas” (ELIADE, 1992, p.72).

Para Laura Padilha a “sacralização da mulher” (PADILHA, 2007, p.472) mostra a

base de organização matrilinear nas sociedades africanas, isto é, o laço de parentesco é

transmitido pela mulher. Esta relação é essencial, quando analisarmos, mais adiante, a

protagonista. A pesquisadora retoma o pensamento de Raul Ruiz de Asúa Altuna, em Cultura

tradicional banto (1985), para evidenciar o dom da maternidade concedido às mulheres, que

se "transformam num laboratório sagrado onde realizam a comunhão vital com seus

descendentes" (ALTUNA apud PADILHA, 2004, p. 37). Ela acrescenta que “a mulher

sempre exerceu um papel muito representativo” (PADILHA, 2007, p.472) para o imaginário

africano. Assim, destacamos como a imagem feminina aparece em perfeita harmonia com os

elementos da natureza, ou seja, não há separação de gêneros, como visto na passagem da

trama, pois as mulheres, no outro tempo, falavam “a mesma língua dos mares, da terra e dos

céus” (COUTO, 2012, p.13).

Cabe ressaltar que, a natureza acompanha a configuração do corpo feminino: “Todos

sabemos, por exemplo, que o céu não está acabado (...) Quando os seus ventres se

arredondam, uma porção de céu fica acrescentada. Ao inverso, quando se perdem um filho,

esse pedaço de firmamento volta a definhar” (COUTO, 2012, p.13). Na imagem do céu, que

no início e no final da obra aparece rodeado por nuvens, as mulheres tecem a sua condição

sagrada. Para Mircea, o céu mostra “a transcendência, a força, a eternidade. Ele existe de uma

maneira absoluta, pois é elevado, infinito, eterno, poderoso” (ELIADE, 1992, p. 60).

A trama articula-se com a ressalva acionada pela voz do avô de Mariamar: “esse

reinado há muito que morreu” (COUTO, 2012, p.13), o que explicita uma mudança do poder.

Na frase, “Deus já foi mulher” (COUTO, 2012, p.13), a imagem do criador projeta o

protagonismo da mulher; entretanto, o verbo, no passado, apresenta o silenciar da divindade

feminina, pois o universo encontra-se subjugado pelos homens. Isto é percebido, no primeiro

momento, pelo próprio uso da palavra masculina “Deus” e não o termo “deusa”, ao conceber

a divindade, e, no segundo momento, pelo comportamento opressor dos homens com as

29

mulheres, o que justifica o porquê do autoexílio da deusa. Assim, percebe-se, já no início do

romance, o exílio fundado a partir da recriação do mito.

Para Mircea Eliade, os seres supremos retiram-se depois da criação, ou porque sentem

uma “fadiga” (ELIADE, 1992, p. 61), ou porque deixam na Terra um filho para aperfeiçoar o

trabalho já realizado. Aqui, esse fenômeno do “afastamento” mostra várias situações: a

presença dominadora do masculino e a necessidade de auto-proteção; já que Mariamar

confessa que ainda resta, “algures (...) dessa época longínqua. Sobrevivem ilusões e certezas

que, (...) são passadas de geração em geração” (COUTO, 2012, p.13). Isto é, apesar das

adversidades vivenciadas pelas mulheres, a protagonista alimenta a esperança, no contato com

as histórias do avô, de ter os direitos femininos garantidos.

Há uma tentativa de “reatualizar” a condição de deusa a partir da escrita de Mariamar,

como aspira nesta passagem: “que regressasse o tempo em que nós, mulheres, já fomos

divindades” (COUTO, 2012, p. 185). O discurso ficcional dialoga com a história das

mulheres, que buscam romper as fronteiras do silêncio e alcançar o espaço social. Exilada, no

que se refere a sua própria existência, sua linguagem e sua participação social, a protagonista

tece no caderno as suas experiências traumáticas e das mulheres em Kulumani.

Neste sentido, as figuras femininas aparecem transfiguradas na imagem: de mãe-

deusa, como vimos no início do bloco I; de mulheres-estrelas, como na história contada pela

mãe do caçador. Nesta lenda, a noite mostra a harmonia entre as estrelas (feminino);

entretanto, dá-se a chegada de uma estrela com ganância maior: o Sol (masculino) ocupa o

lugar das demais:

Antigamente, não havia senão noite. E Deus pastoreava as estrelas no céu. Quando

lhes dava mais alimento elas engordavam e a sua pança abarrotava de luz. Nesse

tempo, todas as estrelas comiam, todas luziam de igual alegria. Os dias ainda não

haviam nascido e, por isso, o Tempo caminhava com uma perna só. E tudo era tão

lento no infinito firmamento! Até que, no rebanho do pastor, nasceu uma estrela

com ganância de ser maior que todas as outras. Essa estrela chamava-se Sol e cedo

se apropriou dos pastos celestiais, expulsando para longe as outras estrelas que

começaram a definhar. Pela primeira vez houve estrelas que penaram e, magrinhas,

foram engolidas pelo escuro. Mais e mais o Sol ostentava grandeza, vaidoso dos

seus domínios e do seu nome tão masculino. Ele, então, se intitulou patrão de todos

os astros, assumindo arrogâncias de centro do Universo. Não tardou a proclamar

que ele é que tinha criado Deus. O que sucedeu, na verdade, é que, com o Sol, assim

soberano e imenso, tinha nascido o Dia. A Noite só se atrevia a aproximar-se

quando o Sol, já cansado, se ia deitar. Com o Dia, os homens esqueceram-se dos

tempos infinitos em que todas as estrelas brilhavam de igual felicidade. E

esqueceram a lição da Noite que sempre tinha sido rainha sem nunca ter que reinar

(COUTO, 2012, p.30).

Interessante que a mulher, como a “Noite”, mesmo sendo rainha, é banida, pois com a

presença do homem, como o “Sol”, não consegue reinar. Esse deslocamento também acontece

30

na retomada da história da rainha do Egito contada por Mariamar ao avô. Aqui, encontramos

outra nomeação para a figura feminina deusa-leoa:

Conta-se que Rá, o Deus Sol do Antigo Egito, cansado dos pecados dos homens,

criou a deusa Sekhmet para punir aqueles que deviam ser punidos. E foi o que fez a

deusa, dizem mesmo que com excessivo zelo. A vingança de Sekhmet passou a

tombar também sobre gente inocente. Desesperados, os seguidores de Rá pediram

ajuda ao deus, mas este não pôde ajudar. Então, os egípcios tiveram a ideia de fazer

uma bebida da cor do sangue e embebedaram a deusa. Sendo assim ela adormeceu

e voltou a ser recolhida por Rá (COUTO, 2012, p.129).

Ao trazer o diálogo com mitos (lendas e histórias), Mia entrelaça pontos incomuns que

correspondem à própria economia da narrativa, como a presença feminina e a condição do

exílio. Além disso, Couto ilustra a presença de outras culturas em Moçambique, como

exemplificada nesta última, a importância da cultura egípcia, que faz “parte integrante do

patrimônio cultural africano” (AGUESSY, 1977, p. 109). Mais adiante, no capítulo exílio e

discurso, veremos como a inserção dos mitos na narrativa permite articular a oralidade e a

escrita, o que garante reflexões sobre a força da palavra.

Ainda com relação à história do Egito, nota-se como o comportamento da deusa

Sekhmet, ao punir a humanidade, estabelece uma analogia ao próprio desejo da protagonista.

Na imagem de uma felina, Mariamar descreve a ânsia de acabar com a raça humana, a partir

da eliminação das fêmeas, já que estas possuem o poder da criação, o que justifica de certa

forma o ataque das leoas somente às mulheres.

A simbologia da figura do leão aparece de diversas formas na trama. Por um lado,

encontramos nomeado como: “leões-pessoas” (COUTO, 2012, p.19); “leões-soldados do

exército português” (COUTO, 2012, p.110); “leão-fabricado” (COUTO, 2012, p.113), “leões-

homens” (COUTO, 2012, p.228) ou no final aparece “uma leoa em corpo de pessoa”

(COUTO, 2012, p.235). Em todos os casos, há uma característica de dominação e o conflito

social gerado pós-guerra civil. Por outro lado, não há uma clareza para determinar, a

princípio, se o “leão” que ataca a aldeia é masculino ou feminino, por causa de tais passagens:

“os leões vinham comer os restos do dia anterior” (COUTO, 2012, p.19); “numa dessas

sombras repousarão os famigerados leões, comedores de gente e de sonhos” (COUTO, 2012,

p. 69); “como poderia ter a certeza de que se tratava de uma fêmea? Os leões machos, nesta

região, são pequenos e quase não têm juba” (COUTO, 2012, p.58).

A indefinição do gênero é proposital, pois há uma tentativa de questionar a atitude do

ser humano diante do poder. Claro que, em geral, a presença do homem na posição de

dominador é mais evidente; entretanto, a mulher aparece como vítima e também algoz; daí a

31

nomeação de “vingativa leoa” (COUTO, 2012, p.239). Na narrativa, a leoa é a caçadora: “a

leoa surge na outra margem de um riacho seco. (...) Sem pré-aviso, lança-se ao ataque, e, num

ápice, vence a distância que nos separa” (COUTO, 2012, p. 168).

Como mencionamos, anteriormente, o título da obra A confissão da leoa apresenta a

inversão da palavra leão para leoa. Dificilmente deparamos com a definição do termo

feminino, mas sim do masculino. Segundo Chevalier, o leão é o “poderoso, soberano, símbolo

solar e luminoso ao extremo (...) símbolo do pai, mestre (...), saber divino” (CHEVALIER,

2009, p.538-539). Mesmo simbolizando, o “rei dos animais”, biologicamente, o leão, na

maioria das vezes, protege o território, pois quem caça, em muitos casos, é a leoa13.

Relevante a forma como Mia realiza a união entre a Biologia e a Literatura. O próprio

declara sobre a interação entre as duas áreas: “Nenhuma das actividades me basta. O que me

alimenta é o diálogo, a intersecção entre os dois saberes (...) é percorrer como um equilibrista

essa linha de fronteira entre pensamento e sensibilidade, (...) entre poesia e saber científico”

(COUTO, 2009, p.58). Essa relação entre esses dois universos registra uma das passagens da

trama, quando apontam as características da leoa:

Todos acreditam que são leões machos que ameaçam a aldeia. Não são. É esta leoa,

delicada e feminina como uma dançarina, majestosa e sublime como uma deusa, é

esta leoa que tanto terror tem espalhado em todas as vizinhanças. Homens

poderosos, guerreiros munidos de sofisticadas armas: todos se prostraram, escravos

de medo, vencidos pela sua própria impotência (COUTO, 2012, p.55).

O termo “leoa” vai além do discurso biológico, uma vez que o seu sentido simbólico

de “força, poder” é semelhante à luta no trabalho diário das mulheres de Kulumani: “a buscar

lenha, a coletar barro, a transportar as colheitas das machambas” (COUTO, 2012, p.52). E

também com a batalha pela existência, como na voz de Naftalinda direcionado aos homens:

“Fingem que estão preocupados com os leões que nos tiram a vida. Eu, como mulher,

pergunto: mas que vida há ainda para nos tirar?” (COUTO, 2012, p.115).

A quantidade de leões é revelada pela voz da mãe de Mariamar: “São uns três e

caminham na direção da aldeia” (COUTO, 2012, p.139). No final do romance, Hanifa,

13 Para o biólogo e doutor em comportamento de animais felinos e comportamento humano Carlos Camargo

Alberts, a caçada das felinas se direciona para a presa levemente incapacitada- doente, velha ou muito jovem. O

êxito da caça é uma ação coletiva. Para ele, um dos motivos pelos quais as fêmeas apresentam uma caçada

implacável se deve ao fato de que os machos, devido à juba, grande e pesada, não tem movimentos ágeis, por

isso, sua função é proteger o território. O pesquisador ressalta que, embora as fêmeas efetuem a maior parte das

caçadas, os machos também são capazes, e cita casos de “leões -tsavo”, que vivem perto do Rio Tsavo, no

Quênia, por não ter juba- caçam junto com as leoas. Para o biólogo, há uma divisão entre os felinos, cabendo,

muitas vezes, as leoas a função de caçar em grupo e conseguir a refeição para atender à prole. Retirada do artigo

de IWAKURA, Mariana. Leão: Majestade por mérito. Revista Super interessante. Abril 2005. Disponível em:

http://super.abril.com.br/mundo-animal/leao-majestade-merito-445635.shtml. Acesso: 27/04/2014.

32

confessa ao caçador a quantidade de leões e confirma que é a quarta: “Eu sou a leoa que

resta” (COUTO, 2012, p.251). Para Padilha (2013), as quatro leoas apresentam exatamente as

personagens: “Mariamar, Naftalinda, Hanifa e mesmo Luzilia”. Nelas encontramos a

resistência diante da submissão masculina. A voz de duas leoas (Hanifa e Naftalinda) aparece

conduzida por Mariamar, que, ao iluminar as fissuras destas mulheres, acentua a sua

interioridade. Elas (Hanifa e Naftalinda) também aparecem na voz do caçador, que destaca,

especialmente, Luzilia. Em seguida, perceberemos as facetas dessas leoas.

2.1.1. Mariamar

É isso que sou: uma leoa em corpo de pessoa.

(COUTO, 2012, p.235)

Nossa primeira leoa é Mariamar. Pela sua voz, escuta-se o grito das mulheres exiladas

em Kulumani. Sua experiência do exílio ultrapassa o aspecto territorial e apresenta, segundo

Maria José de Queiroz, um caráter mais subjetivo, que refere-se “à noção íntima- de

autodegredo do mundo, seguido pelo mergulho no Eu” (QUEIROZ, 1998, p.31). Aponta que,

por esta experiência descobre-se um “desajuste interior” (QUEIROZ, 1998, p.521). Essa

fratura enfatizada tanto por grandes teóricos, Said, Todorov, Stuart Hall, quanto por

pesquisadores como: Maria de Queiroz, Simone Schmidt e tantos outros, nos leva a identificar

as consequências da situação do exílio no indivíduo.

O professor norte-americano Paul Ilie, em Literature and Inner Exile: Authoritarian

Spain, 1939-1975, chama a atenção para os efeitos do período ditatorial Franco, na Espanha.

Aborda a noção de exílio interior, como rupturas anteriores ao deslocamento espacial. Para

ele, o exílio14 é uma condição mental, que provoca um desacordo em relação ao grupo social.

Assim, o isolamento não necessariamente se associa ao deslocar-se do território, mas a um

sentimento de estranhamento, de diferença frente ao outro.

A partir desta discussão, veremos como, a sensação de estar “fora do lugar” (SAID,

2004, p.19), se apresenta nas mulheres-leoas: Mariamar, Hanifa, Naftalinda e Luzilia, aquelas

que exiladas, desnudam a consciência de si enquanto (filha, mãe, mulher, esposa),

respectivamente, o que impulsiona a refletir sobre seus desejos, tormentos e sua posição

14 Paul Ilie apud Moore – “is a state of mind whose emotions and values respond to separation and severance as

conditions in themselves. To live apart is to adhere to values that do not partake in the prevailing values; he who

perceives this moral difference and who responds to it emotionally lives in exile”. Fragmento retirado da resenha

de Roger Moore (1981). Disponível em: journals.hil.unb.ca/index.php/IFR/article/.../14603. Acesso em:

20/03/2014.

33

social. Para Fonseca e Cury, “os personagens miacoutianos assumem a posição da margem,

seja como: mulheres, loucos, feiticeiros, estrangeiros” (FONSECA e CURY, 2008, p.106).

Nossa protagonista é Mariamar, filha de Hanifa Assulua e Genito Serafim Mpepe.

Tem como irmãs Silência, a última vítima dos leões e as gêmeas Uminha e Igualita. Vive a

experiência do exílio em Kulumani “um lugar fechado, cercado pela geografia e atrofiado

pelo medo” (COUTO, 2012, p.21). Diante do enterro de Silência, reconhece a diferença da

crença em relação aos outros moradores da aldeia: “No chão sagrado do nosso cemitério

figurava mais uma cruz a mostrar que éramos distintos, entre muçulmanos e pagãos”

(COUTO, 2012, p.14). Este embate é percebido também na descrição da casa e da origem

familiar:

A nossa casa diferia das demais palhotas de cimento, com telhados de zinco,

apetrechada de quartos, sala e cozinha interior. Sobre o chão espalhavam-se tapetes

e nas janelas pendiam cortinados. Nós também éramos diferentes dos demais

habitantes de Kulumani. Sobretudo a minha mãe, Hanifa Assulua, era distinta,

assimilada e filha de assimilados (COUTO, 2012, p.14-15).

Em outro momento, “as casas descoloridas, tristonhas, como que arrependidas de

terem emergido do chão” (COUTO, 2012, p. 44), revelam a desfiguração da aldeia, que

reflete a angústia das mulheres. O “acolhimento” (BACHELARD, 1998, p.61), tantas vezes,

mencionado por Bachelard referente à casa, dá lugar ao medo e ao vazio. Uma das

consequências do sujeito exilado dentro do seu território é a condição que Said nomeia como

a de uma “espécie de pária permanente” (SAID, 2005, p.55), ou seja, parafraseando o teórico,

o indivíduo nunca se sente em casa, está sempre em conflito com o ambiente que o cerca.

Observa-se esta situação em nossa protagonista, que transfigura sua vida em objeto:

Todos os outros já se tinham retirado, restava apenas eu e os objectos sem valor

espalhados no chão da casa: Enquanto esperava os braços salvadores do avô, na

solidão do quarto uma certeza se reforçava em mim: eu era uma coisa e seria

enterrada como um objecto na poeira de Kulumani (COUTO, 2012, p.121).

A parte da casa ocupada por Mariamar e sua mãe é o chão. Esta imagem representa,

por um lado, o lugar de submissão e de “prisão”, imposto pelo pai para garantir o controle da

autoridade:

- Enquanto essa gente estiver em Kulumani, você nem desponta o nariz fora de casa.

O silêncio se reinstalou no quarto. Eu e a minha mãe sentámo-nos no chão como se

fosse o último lugar no mundo. Toquei o seu ombro num esboçado gesto de

conforto. Ela desviou-se. Num instante, estava refeita a ordem do universo: nós,

mulheres, no chão; o nosso pai passeando-se dentro e fora da cozinha, a exibir posse

da casa inteira.

(...)

34

Na noite anterior, em nossa casa a ordem tinha sido ditada: as mulheres

permaneciam enclausuradas, longe dos que iriam chegar. Mais uma vez nós éramos

excluídas, apartadas, apagadas (COUTO, 2012, p.25- 26 e 43).

Por outro lado, o solo mostra o diálogo das mulheres com a grande Mãe Terra. Por

isso, Hanifa “dorme com o ouvido de encontro ao chão” (COUTO, 2012, p.18) para receber

recados das filhas falecidas. Segundo a pesquisadora Carmen Secco, a morte, na cultura

bantu, “era entendida como um rito de passagem, um trânsito, uma metamorfose, um estágio

mais avançado, de onde os mortos mantinham, por meio de metáforas e metonímias, formas

constantes de comunicação com seus familiares” (SECCO, 2012, p. 69). Em nossa trama,

seguindo a tradição local, a mãe de Mariamar busca uma ligação com o mundo dos mortos,

isto é, procura adentrar outro lugar, já que o atual desencadeia uma rejeição.

Por esse motivo, a jovem, ao observar a atitude da mãe, apreende que é um ser de

fronteira, que convive com a cultura local e com a cultura do colonizador; contudo, não se

adapta a nenhuma delas. Esse processo, que Said chama de “estado intermediário” (SAID,

2005, p.57), na narrativa aparece em diferentes momentos, dos quais destaco a brincadeira de

Mariamar com os meninos, mostrando este desajuste e o olhar de condenação das outras

mulheres em relação à atitude da menina:

Os seios, em Kulumani, são um sinal: pelo seu volume as mães sabem quando

devem sujeitar as filhas aos rituais de iniciação. O que para mim era um jogo

inocente, para a aldeia era uma afronta. As mulheres viam-me às costas dos rapazes

e, apoquentadas, viravam a cara. E nessa posição, às cavalitas, que as madrinhas, as

chamadas «mbwanas», transportam para as cerimónias as meninas que se vão

transmutar em mulheres. Era isso que as mulheres não me perdoavam: eu antecipava

e desarrumava um momento que se queria recatado e sagrado. Filha e neta de

assimilados, eu não cabia num mundo guiado por arcaicos mandamentos (COUTO,

2012, p.123-124).

Deslocada em sua própria terra, a protagonista mostra, segundo Kristeva, a face oculta

de sua identidade: a consciência da diferença. Por tantas vezes, reprimida pelo pai, Mariamar

percebe a si mesma com a sensação de “inquietante estranheza” (KRISTEVA, 1994, p.33),

que a impulsiona a fugir. Para onde? Haveria direção? Parafraseando Terezinha Taborda

Moreira (2007, p.365), o vazio criado pelo exílio provoca a procura pelo desconhecido ou por

algo que se precisa recuperar.

Neste sentido, a única alternativa da protagonista é o rio Lideia. Com o nome de uma

ave, esse elemento da natureza cria a possibilidade de alçar novos horizontes. Além disso, a

imagem do rio marca o “fluir das águas, a corrente da vida, da renovação” (CHEVALIER,

35

2009, p.780) e “o sangue da Terra”15. Segundo Afonso, “os rios são elementos

frequentemente mencionados nas estórias de Mia Couto” (AFONSO, 2004, p.371). A

pesquisadora cita que, em algumas delas, a presença dos rios marca o sofrimento ou a morte;

contudo, na grande maioria, como é o exemplo da nossa obra, determina a sorte dos sujeitos,

que precisam de esforço e perseverança para ganhar a liberdade. No caso de Mariamar,

mesmo com tanta disposição para seguir a viagem e encontrando neste elemento uma nova

perspectiva de vida, a saída sempre é impedida, devido a sua condição de mulher:

Sou mulher, o meu destino nunca poderia ser a viagem. Contudo, Adjiru

Kapitamoro estava certo. Porque passaram apenas dois dias Silência e eu sigo em

viagem de almadia, correnteza abaixo. Fujo da ordem de prisão do meu congénito

carcereiro, Genito Mpepe. Para escapar de Kulumani não há estrada, não estão meu

pai. No mato estão os leões matadores. Toda a saída é uma emboscada. O único

caminho que me resta é o rio. Este fio de água foi batizado de Lideia, que é o nome

das rolas que nos visitam na estação das chuvas. Passaria bem como um riacho

anónimo, mas nós temíamos que, permanecesse inominado, ele se extinguiria para

sempre. Quem lhe deu o nome, dizem, foi o avô Adjiru Kapitamoro. E nós

fingíamos acreditar.

Assim, vamos agora seguindo ambos: o rio Lideia com o seu nome de ave; e eu,

Mariamar, com o nome de água. Viajo contra o destino, mas a favor da corrente

(COUTO, 2012, p.48-49).

Seu próprio nome “Mariamar”, a princípio, configura o movimento de partida pelas

águas, segundo avô Adjiru, de “um barco entre mar e amar” (COUTO, 2012, p.125), daquela

que deseja ser amada. É no rio que descreve a sensação de encontrar-se com a leoa:

“Contempla-me sem medo nem alvoroço. Como se há muito que me esperasse” (COUTO,

2012, p.55). É neste espaço que, depois de tanto tempo, consegue renascer, como relata na

seguinte passagem: “o meu corpo resvalou e tombei, desamparada, nas águas do rio Lideia.

(...) Quando, finalmente, me retiraram eu tinha no olhar o deslumbramento de quem acaba de

nascer” (COUTO, 2012, p.190). Além disso, o rio oferece não só o caminho de fuga de

Kulumani, mas também, serve de cenário para despertar o amor. Mariamar, com dezesseis

anos, foi salva por Arcanjo Baleiro da tentativa de abuso sexual do “Maliqueto Próprio,

solitário verdugo da aldeia” (COUTO, 2012, p.57). O olhar de seu salvador, despindo-lhe,

desencadeia a chance de mudança, pois ela passa a reparar a paisagem como um grande

mundo.

Notável como esse primeiro contato motiva, na protagonista, a consciência de seu

corpo feminino, pois “nunca antes tinha sido olhada” (COUTO, 2012, p.51). O corpo é por

excelência, segundo o filósofo francês Jean- Luc Nancy, o lugar do exílio, onde se estende a

15Observações da palestra da Prof.ª Dr.ªLaura Padilha, na mesa redonda: “Literatura, Diáspora e

travessamentos”. Organizada: Profa. Dra. Maria Teresa Salgado Guimarães da Silva, na UFRJ, dia 15/04/2014.

36

própria existência, pois revela pela “exterioridade a interioridade do ser.”16Ao encontrar com

Arcanjo na posição subalterna, pela segunda vez, o corpo de Mariamar, a princípio “aterrado”

e “imóvel”, ganha uma combustão de ânimo, que é acionado pelos sons do batuque e pela voz

do caçador a possibilidade de sair da aldeia:

- Venha comigo- insistiu o caçador- Vamos ser felizes juntos.

Aterrada, recusei. O que ele prometia estava bem para além do que eu sabia sonhar.

(...) Falávamos no terreiro da cozinha, nesse recanto onde as mulheres mais se

esquecem de viver. Olhei o fogo eternamente aceso. (...)

- Não diz nada, Mariamar?

Escutar já é falar. O caçador falava de coisas que eu não conhecia: a cidade, a

felicidade, o amor. (...)

Nessa noite houve batuques e danças. No início, guardei-me imóvel, vendo os outros

agitarem os corpos com sensualidade, o chão estremecendo como se os tambores

estivessem rufando nas profundezas. Contive-me até que os meus pés entraram em

combustão. Para me livrar desse fogo fui-me entregando, pouco a pouco, ao

compasso da música, rodopiando no pátio enluarado. Vendo-me dançar, Arcanjo

aproximou-se e me enleou pela cintura, convidando-me a rodar com ele.

- Largue-me, caçador, aqui os dançarinos não se tocam.

- Não quero saber, eu danço da maneira que sei.

Lembrei-me do que diziam os homens de Kulumani: ninguém caça com ninguém.

Pois, dançar é como caçar. Cada dançarino toma posse do universo todo inteiro.

Rodopiei sobre mim mesma, antes de o enfrentar:

- Eu não danço consigo. Eu danço para si. Fique sentado e veja como me torno uma

rainha.

Submisso, obedeceu. A realidade, essa, deixou de me obedecer. Porque me vi

dançando nua no pátio, rebolando no chão, pouco a pouco perdendo a humana

compostura. Arcanjo tombou rendido, sem fala, sem gesto. Vê-lo assim, frágil e

indefeso, me fez ser mais mulher. Murmurei doçuras ao seu ouvido e ele se

dissolveu no meu regaço. Nem notámos que a fogueira se tinha apagado: um

outro fogo se acendera dentro de nós (COUTO, 2012, p.157, 158-159- negritos

nossos).

Ao sentir-se amada, brota, em Mariamar, a liberdade de lidar com os seus desejos.

Para Maria Rita Kehl, todo “sujeito é desejante” (KEHL, 1990, p.368), pois é sempre

motivado por uma ausência. A psicanalista afirma que: “o que mais se deseja é seguir sendo

sujeito de um desejo que possa se enunciar; ter a falta, mas também o significante, já que o

terrível é a falta sem um significante que pareça lhe corresponder- e assim sucumbir a ela”

(KEHL, 1990, p.370). Ou seja, na trama, o despertar do desejo, na protagonista, ocorre no

contato com o caçador. O reencontro entre eles cria um “prazer de repetição” (KEHL, 1990,

p.369), já que a moça, além de receber a proposta de sair da aldeia, é convidada para dançar.

Nesta aproximação, ela sente-se mais mulher e amada. A própria possibilidade da

16 “El cuerpo es por excelencia uno de los nombres del exilio tradicional: lugar de paso para un regreso al alma o

el espíritu. No obstante, el cuerpo también puede pensarse, no como cuerpo caído, ni como «cuerpo propio» (al

modo de Merleau–Ponty), sino más bien como exterioridad en la cual la «interioridad» se ve, ante todo y de

modo esencial, expuesta: planteada fuera, planteada como fuera. No soy mi cuerpo —si no, no nombraría «el

cuerpo»— y tampoco paso por el cuerpo para ir a otra parte, sino que el cuerpo es el exilio y el asilo en el que

algo así como un «yo» viene a quedar expuesto, es decir, a ser” (NANCY, 1996, p.10). Disponível: http://www.hojaderuta.org/imagenes/jean-luc.pdf. Acesso: 28/10/2013.

37

consumação do desejo, segundo a Kehl, muitas vezes, permite maior satisfação do que a

realização.

É com a dança, que representa a “linguagem para além da palavra” (CHEVALIER,

2009, p.319- 320), Mariamar expressa à intenção de capturar o outro, já que “cada dançarino

toma posse do universo todo inteiro” (COUTO, 2012, p. 159). Para o avô, que lhe ensinou a

bailar, a dança é comparada a caça, onde apresentam “corpos fugindo da própria realidade”

(COUTO, 2012, p.91). No compasso do movimento, a protagonista esquece por alguns

instantes a sua condição de banimento e apresenta no corpo o desejo sexual, como meio de

combater a própria repressão. Para a pesquisadora Claudia Barbosa de Medeiros:

(...) Mia Couto faz do ato erótico uma construção alegórica da liberdade, em que o

corpo – e sua sexualidade dissonante – porta uma voz contrária a qualquer sistema

totalitarista. Desobediente e provocadora, a força erótica (...) reabilita no corpo do

sujeito a enunciação de seus desejos, a deliberação de seus gestos

(MEDEIROS, 2013, p.46-47).

Como uma leoa, Mariamar faz de Arcanjo “submisso (...) frágil e indefeso” (COUTO,

2012, p.159). Ao vê-lo seduzido, a jovem inverte os papéis de autoridade e torna-se a rainha,

o que garante a relação peculiar, segundo Marilena Chaui, de “reconhecimento de si por um

outro” (CHAUÍ, 1990, p.24), isto é, há a necessidade de ser desejada. Esta sintonia entre os

dois é representada pelo fogo, que, no início, marcava o labor das mulheres e, depois, com a

dança, traduz o libido deste encontro amoroso, por isso “um outro fogo se acendera”

(COUTO, 2012, p.159). A partir desse instante, ela torna-se sujeito de sua própria vida. Isto é

enfatizado, com o uso do verbo no imperativo, “venha buscar-me” (COUTO, 2012, p.159),

quando ordena o seu amado a realizar seu pedido. A protagonista deseja sair de Kulumani, da

família e da condição de exilada.

A concretização desta fuga aconteceria “antes de a aldeia acordar” (COUTO, 2012,

p.159); entretanto, este lugar nunca acordou. Jogada no canto do quarto com a mala na mão,

na qual guardava todos os seus devaneios, Mariamar é abandonada por Arcanjo. A sua

esperança dá lugar ao pesadelo:

Nunca cheguei a desmanchar essa maleta. Porque, na manhã seguinte, o caçador não

me veio buscar. Um esquecimento, pensei, para atenuar mágoas. Um pequeno lapso

que Arcanjo retificaria mais tarde: voltaria a Kulumani onde, para encurtar demoras,

a minha mala de viagem se mantinha intacta.

Aos poucos, como quem morre sem doença, sucumbi ante a evidência: Arcanjo me

abandonara. Um por um, os meus sonhos se foram convertendo num recorrente

pesadelo. (...) (COUTO, 2012, p.159-160).

Na tentativa de explicar a rejeição, a jovem menciona o medo do caçador em ser

devorado pela fera, que se encontra nela, e em vivenciar o retorno da divindade feminina:

38

(...) E tudo se torna claro: não foi por qualquer desfaçatez que Arcanjo me

abandonou. O seu afastamento explica-se pelo medo. O que ele padecia era do

arcaico pavor de que, sob a superfície do lago, se escondessem monstros. A suspeita

de que, oculta na minha doce aparência, morasse a fera que o iria devorar. Esse era o

receio de Arcanjo.

(...)

Há dezasseis anos atrás, quando Arcanjo Baleiro me olhou dançando na festa da

aldeia, era já a incerteza que nele morava. O caçador tinha medo do que o meu corpo

dizia, tinha medo de quem falava pelo meu corpo enquanto os batuques rufavam.

Para ele, que não conhecia essa língua, só podiam ser forças obscuras. (...). Esse era

o seu receio. Mas não eram demónios que me faziam estremecer o corpo. Eram

deuses que dentro de nós, mulheres, falam e escutam. (...)

Ao se enlear em mim, com a suavidade de brisa, Arcanjo queria proteção e graça

dessas entidades. (...) Eu não dançava. O que fazia era outra coisa: eu apagava o

tempo e o peso, como cobra que se despe da velha pele (COUTO, 2012, p.184-185).

Curiosamente, ao final da trama, esta postura acontece nos escritos do caçador, que

descreve sua fraqueza diante da caça representada pelo olhar fulminante de Mariamar. Assim,

ele percebe na jovem, a presença da leoa e da deusa. Mesmo tendo rejeitado-a, anos atrás,

neste novo reencontro, o caçador sente-se capturado e estimulado por ela a buscar outros

caminhos que acreditava ter perdido.

Diário do caçador- (5)

(...) A leoa continua enfrentando-me, medindo-me a alma. Há uma luz divina nos

seus olhos. Ocorre-me o mais estranho dos pensamentos: que em algum lugar já

havia contemplado aqueles olhos capazes de hipnotizar um cego. (...)

(COUTO, 2012, p. 169).

Diário do caçador- (8)

(...) Quando o seu olhar cruza com o meu, uma tontura me fulmina. De súbito,

aqueles olhos de mel transportam-me para um passado que parecia desvanecido.

Desvio o rosto, sou caçador, sei fugir das armadilhas. Aqueles olhos, de tanta luz,

escurecem o mundo. Mas é um escuro bom, um suave entorpecimento de infância.

De tão claros, os olhos de Mariamar me devolviam qualquer coisa que, sem saber,

eu há muito havia perdido. (...) (COUTO, 2012, p. 249).

Com o regresso de Arcanjo para a aldeia, depois de dezesseis anos, com o propósito de

caçar os leões, Mariamar tem a oportunidade de rever aquele que durante anos sustentou os

seus sonhos. Por esse motivo, levada pela vaga esperança de preencher sua ausência, a jovem

lança-se novamente em viagem pelo rio, onde imagina um novo encontro com o seu amor.

Contudo, o caçador ao chegar à aldeia não lembra de ter deixado ninguém, o que desconstrói

os devaneios da jovem:

Quando, ainda madrugada, me lancei nesta viagem o meu propósito era avisar o

caçador da emboscada que contra ele se preparava. (...) E já me via, no meio da

estrada, agitando os braços como incansáveis bandeiras. Quem sabe o caçador me

abraçaria e me ergueria pelos céus num estonteante voo?

(...)

Por que razão ele não me enviava um sinal do seu interesse em me rever? A verdade

era só uma: eu tinha morrido para ele. Não havia ilusão a prolongar. Foi essa

39

decepção profunda que me fez desistir. Eu já não queria escapar de casa, dispensava

o reencontro com o caçador. Eu prescindia do rio, da viagem e do sonho

(COUTO, 2012, p.53- 211).

Marcada pelo degredo de seus desejos femininos, a jovem prefere distanciar-se dos

“temores presentes, dos futuros pesadelos” (COUTO, 2012, p.49). Por isso, afirma que

“quando os estranhos chegaram a Kulumani” (COUTO, 2012, p.81) preferiu não escapar dos

momentos da sua clausura. A incansável procura pelo outro não se concretiza como previra, o

que dá lugar a solidão e a angústia:

(...) Arcanjo Baleiro, o caçador. Esse homem, em tempos, caçou-me a mim. Desde

então nunca mais tive sossego. Fugir de um amor é o modo mais total de lhe

obedecer. Quanto mais senhora de mim, mas escrava desse amor. Não há, neste

mundo, rio que me liberte dessa armadilha.

(...)

Não houve nem amor, nem homem, nem alma. O que sucedeu é que, com o tempo,

deixei de ter esperas. E quem deixa de ter esperas é porque já deixou de viver. E é

por isso que fujo: tenho medo de ser devorada. Não pela ansiedade que mora dentro

de mim. Devorada pelo vazio de não amar. Devorada pelo desejo de ser amada

(COUTO, 2012, p.50- 54).

Ao mesmo tempo, que o encontro com o caçador desencadeia a percepção de si como

mulher, também frustra. Segundo Maria Rita Kehl, essa ambivalência “nos acompanha pela

vida toda” (KEHL, 2009, p.544), pois há uma tensão constante entre os impulsos, que movem

a sobrevivência do ser humano. Retomando o pensamento de Freud, ela ressalta a importância

das pulsões: Eros (pulsões da vida) e Thanatos (pulsões de morte). Na primeira, “o vetor

erótico impulsiona a vida humana ao contato ao embate com o outro e com a realidade-

impulsos, (...) geradores de constantes tensões” (KEHL, 2009, p. 543), na segunda, há a

“abolição das tensões, o grau zero de energia” (KEHL, 2009, p.543).

Além da contenção do desejo, Mariamar está marcada pela dupla condenação: “a ter

um único lugar e a ser uma única vida” (COUTO, 2012, p.121). Além de isolada dos demais

moradores da aldeia, a jovem acredita em sua infertilidade. Em diálogo com sua mãe, após o

enterro de Silência, a protagonista descobre a impossibilidade de gerar um filho:

[Mariamar] Por um tempo, fitou-me como se avaliasse quanto eu lhe era preciosa.

Pensei que havia maternal ternura nesse olhar. Não era assim. Outro sentimento lhe

desenhou as palavras:

[Hanifa]- Não terás nunca que passar por tristezas de mãe.

[Mariamar] - Por favor, mamã, acabei de perder a minha irmã - disse eu.

[Hanifa]- Não perderás nunca uma filha. Foi Deus que assim quis

(COUTO, 2012, p.15- negritos nossos).

Uma das justificativas para tal situação é o fato do não cumprimento de Hanifa da

“cerimónia dos ingoma, o ritual que nos autoriza a ter idade” (COUTO, 2012, p. 121). Devido

a presença dos padres católicos, os avós de Mariamar não deixaram a filha realizar os rituais

40

de iniciação, nos quais a menina transita para mulher; por isso, a mãe de Mariamar “estava

condenada a ser uma eterna criança” (COUTO, 2012, p.121). Nota-se que a sensação de

deslocada se encontra na própria formação familiar, que representa a convivência com os

valores da aldeia e dos portugueses.

Neste sentido, percebemos a identidade da protagonista em processo. Tal circunstância

dialoga com o pensamento de Stuart Hall sobre a cultura que:

(...) não é apenas uma viagem de redescoberta, uma viagem de retorno. Não é uma

"arqueologia". A cultura é uma produção. (...) Portanto, não é uma questão do que as

tradições fazem de nós, mas daquilo que nos fazemos das nossas tradições.

Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada, estão a

nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural. A cultura não é

uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar. (...) As identidades, concebidas

como estabelecidas e estáveis, estão naufragando nos rochedos de uma diferenciação

que prolifera (HALL, 2003a, p. 44).

Ao mergulhar na tradição matrilinear, Mariamar recupera a imagem da “corda do

tempo” (COUTO, 2012, p. 186), uma espécie de colar, no qual as mulheres contam os meses

da gravidez fazendo um nó. Na tentativa de possuí-lo, a jovem tenta convencer a mãe de uma

suposta gravidez do caçador; contudo, a violência sofrida pelo pai é uma das causas da

infertilidade:

[Mariamar] (...) Mas eu estava vazia apenas na aparência. Porque sabia que, apesar

de efémero, o amor de Arcanjo Baleiro gerara fruto. Esperei que a minha barriga se

arredondasse e, no exato dia em que fazia dezassete anos, compareci perante a

minha mãe, em triunfal afronta:

[Mariamar] - Achava que eu não era mulher? Ponha aqui a sua mão, sinta o que

trago dentro de mim.

[Mariamar] Desfalecido na minha mão, o braço dela desabou antes mesmo de tocar

o meu ventre.

[Hanifa] - Ouviu trovejar e já pensa que está a chover, Mariamar? Pois há ainda

muito nó na corda do tempo.

[Mariamar] - Não percebo, mãe.

Mentia. Eu sabia o que ela sugeria. As mulheres de Kulumani, em cada mês de

gravidez, fazem um nó numa corda que é passada de geração em geração.

[Hanifa]- Nós somos mulheres - disse ela- Fomos feitas para superar o sofrimento.

(...)

[Mariamar] Não havia dúvida: eu estava impedida de ser mãe por causa da pancada

que recebera do meu pai. Até o enfermeiro confirmara as graves sequelas dos

pontapés.

[Hanifa]- Há crianças que nascem e morrem dentro de nós- afirmou Hanifa,

colocando termo ao diálogo.

[Mariamar] Palavras escritas no destino. Porque naquela mesma noite um pesadelo

me transbordou do sono: dentro de mim, uma fera carnívora devorava o meu filho.

O meu bebé mulato, meu menino impuro, natural da estrada, se extinguia como um

sonho na obscuridade. Acordei estremunhada, lençol húmido: o sangue me visitava,

avermelhando-me as coxas (COUTO, 2012, p.185-186- negritos nossos).

41

Diante da dura convivência familiar, a protagonista descreve, no contato com o mar,

os seus desejos interrompidos e compara-os com as espumas, que se apresentam fluídas e

efêmeras:

Toda a família se extasiou perante a vastidão do oceano, o infinito vivo, esse

horizonte sem contorno que parecia nascer dentro de nós. (...) Nos meus lábios

enrolei e soltei mil vezes a palavra «espuma». Se um dia tivesse uma filha chamar-

lhe-ia assim: Espuma.

O nome que escolhi para esse impossível filho está, afinal, certo. Porque a minha

descendência se fará como a mesma matéria que se solta das ondas e esvoaça até não

ser mais que ausência. Não terei nunca filhos, não haverá ninguém a quem eu possa

dar nome.

E, no entanto, sempre que faz lua nova sou atacada por espasmos e, na solidão do

meu leito, dou à luz. Dezenas de filhos, já tive dezenas de filhos, nenhuma mulher

pariu tantas vezes.

Nasceram bebés sem conta e todos se extinguiram no minuto seguinte como estrelas

cadentes riscando os céus. Os meus imposs íveis filhos desvaneceram­se, mas as

dores verdadeiras desses imaginários partos perseguir-me-ão toda a vida

(COUTO, 2012, p.191-192).

Na última parte da obra, Mariamar recebe de sua mãe a “corda do tempo”, o que garante a

possibilidade da fecundação. A partir daí, o nome de Mariamar ganha uma nova definição. Ao

decompor a palavra, veremos três em uma: “Maria”17, “amar” e “mar”18. É a imagem da

mulher divina, que por natureza carrega consigo o símbolo da criação, que se confirma com o

colar presenteado pela mãe.

A protagonista que, a princípio, não acreditava na sua vida ou na possibilidade de

gerar um ser é o símbolo da fecundidade. Ela é a deusa, a intercessora, aquela que movida

pelo amor ao caçador, busca renascer (imagem do mar) o grito das mulheres de Kulumani:

“Viajo contra o destino, mas a favor da corrente. Durante todo o tempo a canoa vai simulando

obediência. Quem a conduz não são os meus braços. São forças que prefiro desconhecer”

(COUTO, 2012, p.49).

17 Nome do Hebraico- Miriam- (senhora soberana, maneira de escrever Maria). Tornou-se popular com a

propagação do Cristianismo tendo outros significados - (mãe de Jesus), (mulher que ocupa o primeiro lugar),

(força vital). Retirado do site: <http://www.significado.origem.nom.br/nomes_biblicos/>,

<http://www.portalbrasil.net/nomes/m.htm>. Acesso: 15/10/2013. 18"Símbolo da dinâmica da vida. Tudo sai do mar e tudo retorna a ele: lugar dos nascimentos, das transformações

e dos renascimentos (...) estado transitório" (CHEVALIER, 2009, p.592).

42

2.1.2. Hanifa Assulua

- Eu sou a leoa que resta. É esse o segredo que só você, conhece, Arcanjo Baleiro .

(COUTO, 2012, p.251)

A segunda leoa é Hanifa Assulua. Representa a base da sociedade matrilinear; carrega

a “corda do tempo” e transmite os ensinamentos às filhas: a mais velha Silência, Mariamar, as

gêmeas, Uminha e Igualita. Sua vida na aldeia sempre “tornara-se um idioma estrangeiro”

(COUTO, 2012, p. 20). O que justifica de certa forma os conflitos existenciais de Mariamar

que, assim como a mãe, suporta o fardo do isolamento, da morte em vida, que passa de

geração em geração, como visto na confissão da matriarca: “Nós todas, mulheres, há muito

que fomos enterradas. Seu pai me enterrou; sua avó, sua bisavó, todas foram sepultadas

vivas” (COUTO, 2012, p.43).

Diante de tantas perdas, primeiro de Uminha e Igualita, que morreram afogadas, e

depois de Silência, a última vítima dos leões, Hanifa indaga ao marido, chamado de ntwangu,

em forma de respeito, sobre a atual situação: “E o que fazemos agora, ntwangu? (...) Eu já

não sei viver, ntwangu. (...) Há muito que eu não vivo. Agora, já deixei de ser pessoa”

(COUTO, 2012, p.15, 16-20). Tendo consciência de estar “fora do lugar” (SAID, 2004, p.19),

o seu calvário vai além da morte das filhas, atravessa a formação familiar, a omissão diante da

violência do marido e dos próprios desejos.

Hanifa Assulua, “era distinta, assimilada e filha de assimilados” (COUTO, 2012,

p.15). Com o nome de origem árabe: “crente verdadeiro”19, ela apresenta a conexão entre os

dois universos culturais: interno (da aldeia) e externo (colonizador). Segundo a pesquisadora

Simone Schmidt:

Vários fatores contribuem para essa posição identitária flutuante, fronteiriça. (...), a

mais óbvia, liga-se à negociação que foi feita entre as tradições ancestrais e as

culturas europeias em solo africano. (...) A essa questão se agrega a crise que as

tradições ancestrais vêm sofrendo em decorrência, principalmente, dos processos de

ocidentalização, modernização e urbanização dos países africanos

(SCHMIDT, 2010, p.204).

Em vários momentos, Mariamar descreve a atitude da mãe em ter que conviver com as

duas culturas. Se, por um lado, no funeral de Silência, a mãe obedece aos rituais da aldeia,

como percebemos na seguinte passagem:

19 Significado do nome Hanifa. Retirado do site:

http://www.almaany.com/home.php?language=portuguese&lang_name=%C3%81rabe&word=hanifa. Acesso:

15/12/2013.

43

Porque morreu desfigurada, deitaram o que lhe sobrava do corpo sobre o lado

esquerdo, com a cabeça virada para o Nascente e os pés virados para Sul. Durante a

cerimónia, a mãe parecia dançar: vezes sem conta ela se inclinou sobre um cântaro

feito por suas próprias mãos. Aspergiu água sobre a terra em volta que, depois,

calcou com ambos os pés, com o mesmo embalo de quem semeia.

No regresso do funeral, havia demasiado céu nos olhos da minha pobre mãe. O

caminho até casa era apenas de uns passos: o cemitério familiar ficava nas cercanias

da aldeia. Hanifa fez uma breve passagem pelo rio Lideia para os banhos

purificadores, enquanto, mais atrás, eu apagava as pegadas que conduziam à

sepultura.

- Sacudam os pés, as poeiras gostam de viajar (COUTO, 2012, p.14).

.

Por outro lado, no cemitério da família, há a presença da cruz, que marca a influência

portuguesa. Em seguida, essa relação entre os elementos da aldeia e do colonizador aparece

no questionamento do marido sobre a conduta da esposa em raspar o cabelo em sinal de luto,

mesmo sendo considerada cristã. Esta situação conflituosa entre as tradições culturais é

percebida desde a infância de Hanifa, que fora batizada na igreja católica, mas que estava

inserida nos costumes locais. Por isso, quando chegou a idade para os rituais da iniciação,

uma parte das tradições importantes de Kulumani, os habitantes da aldeia pressionaram seus

pais para realizá-los, mas isto não aconteceu. Assim, para alguns, ela era considerada

“amaldiçoada” (COUTO, 2012, p. 121).

Dessa forma, a convivência com as tradições da aldeia e do colonizador proporciona

também a Hanifa uma sensação de banimento. Isto se intensifica, depois da morte da filha,

pois a matriarca, sentindo-se desolada, confessa não ser coisa alguma, o que impulsiona um

descumprimento, em alguns momentos, de ambos os costumes. Assim como raspou o cabelo

em desobediência ao hábito português, agora ela também deseja ignorar uma das práticas da

aldeia, que é a proibição do sexo em dia de luto. Por isso, disposta a sujar Kulumani, a

matriarca chama o marido para a prática sexual:

[Hanifa] - Vamos fazer amor!

[Genito] - Agora?

[Hanifa] - Sim. Agora!

[Genito] - Você está muito desencadeada, Hanifa. Não sabe o que está dizer.

[Hanifa] - Recusa-me, marido? Não quer fazer um agorinha comigo?

[Genito] - Você sabe que não podemos. Estamos de luto, a aldeia vai ficar suja.

[Hanifa] - É isso que eu quero: sujar a aldeia, sujar o mundo.

(...)

[Mariamar] No côncavo do quarto, minha mãe se entregou a ousadas carícias como

se o seu homem realmente lhe comparecesse. Desta feita, ela comandava, galopando

na sua própria garupa, dançando sobre o fogo. Suava e gemia.

(...)

Eis o que a aldeia iria dizer: que a mulher de Genito Serafim Mpepe não deixara o

chão esfriar. Sexo em dia de luto, quando a aldeia estava ainda quente: não havia

pior contaminação. Ao fazer amor naquele dia - e mais ainda ao fazer amor consigo

mesma - Hanifa Assulua ofendera todos os nossos antepassados

(COUTO, 2012, p.20, 21 e 22- negritos nossos).

44

A recusa do cônjuge não a impede de concretizar sua vontade, pois ela entrega a si

mesma a “ousadas carícias como se o seu homem realmente lhe comparecesse” (COUTO,

2012, p. 21). É no contato com seu corpo que fica longe da repressão masculina e que

encontra o verdadeiro libido, uma vez que a relação sexual com o marido é movida pela

dominação e dor: “Durante o ato amoroso, Genito Mpepe se convertera numa fera que

literalmente a devorava. (...) Quando, porém, sentiu a garra rasgar-lhe o pescoço, Hanifa

gritou a tais plenos pulmões que ela, por um instante, desconheceu se era de dor ou prazer”

(COUTO, 2012, p.21).

Até mesmo nos raros diálogos com Genito, Hanifa sabe que o verbo “preferir” não era

usado pelas mulheres em Kulumani, que privadas de sua liberdade, precisavam conter-se de

seus desejos ou realizá-los escondidos. Por isso, Mariamar faz a seguinte indagação, após

visualizar uma cena, na qual a mãe é impedida de realizar sua vontade, “quem nunca aprendeu

a querer como pode preferir?” (COUTO, 2012, p.24). Em seguida, Hanifa, mesmo sabendo da

exclusão das mulheres, mostra a Mariamar durante uma conversa discreta a sensação de

liberdade sexual. Assim, a mãe aconselha a filha a encontrar o prazer no leito do rio:

- O pai queixa-se de que, ontem, a mãe desafiou os mandamentos do luto. É verdade

que ofendeu os espíritos?

- Dou-lhe um conselho, minha filha: quando fizer amor, faça dentro do rio, dentro

da água, como os peixes.

- Por amor de Deus: isso não é conversa de uma mãe!

- Pois lhe digo: fazer amor na água é melhor que na cama.

- Como sabe?

- Eu vejo a vizinha.

-A vizinha? Não pode, ela é totalmente viúva.

Sorriu, com malícia, e confessou: escondida na margem, ela espreitava a vizinha a

banhar-se sozinha. As mãos dessa mulher, aos poucos, se convertiam nas mãos de

outras criaturas em seu corpo arrepios nunca antes sentidos.

- A vizinha me ensinou uma vingança contra os homens ...

Entendia eu o que aquela confissão escondia? A vizinha só fazia amor com os

mortos. Era isso que Hanifa me estava dizendo. Gerações e gerações de falecidos

desfilaram pelos braços da nossa vizinha. Gente de longe, gente de raça, gente que

nunca foi gente: todos se acenderam no seu líquido do leito. De todos esses amores,

cada um por si escolhido, aquela mulher só colhia, vantagens: não havia doença, não

havia traição, não havia risco de engravidar. Restavam simples lembranças, sem

cinza nem semente. Apenas longe dos vivos, as mulheres de Kulumani encontram

correspondidos amores: era isso que minha mãe me ensinava

(COUTO, 2012, p.44-45).

A filha sente-se incomodada com a conversa da mãe, já que este assunto não era

tratado. Em a História da sexualidade 1: a vontade de saber, Foucault afirma que até o século

XVII não havia segredo em falar sobre sexo. Com a ascensão da burguesia, a sexualidade

muda-se para dentro de casa, no ambiente familiar, onde se associava apenas ao ato de

procriar. Daí, abordar esse tema, no espaço social, passa a ser motivo de repressão, que ele

45

define como o “modo fundamental de ligação entre o poder, saber e sexualidade”

(FOUCAULT,1988, v.I, p.12). Acrescenta que:

se o sexo é reprimido, isto é, fadado à proibição, à inexistência e ao mutismo, o

simples fato de falar dele e de sua repressão possui como que um ar de transgressão

deliberada. Quem emprega essa linguagem coloca-se, até certo ponto, fora do

alcance do poder; desordena a lei; antecipa, por menos que seja, a liberdade futura.

(...) Falar contra os poderes, dizer a verdade e prometer o gozo; vincular a

iluminação, a liberação e a multiplicação de volúpias; empregar um discurso onde

confluem o ardor do saber, a vontade de mudar a lei e o esperado jardim das

delícias- eis o que, sem dúvida, sustenta em nós a obstinação em falar do sexo em

termos de repressão (...) (FOUCAULT, 1988, v.I, p. 12-13).

Ao ensinar a filha sobre o local de buscar o prazer, Hanifa tenta sair da sua condição

de exilada, mesmo que por pouco tempo, posto que, os serviços diários ao marido lhe

proporcionam o retorno à submissão: “Todas as madrugadas a nossa mãe se antecipava ao

Sol: colhia, buscava água, acenda o fogo, preparava o comer, laborava na machamba, avivava

o barro, tudo isso ela fazia sozinha” (COUTO, 2012, p.22). Essa situação impulsiona o desejo

sempre de partir para a cidade, mas o marido a impedia.

Com a chegada do caçador à aldeia, a proibição se dirige à Mariamar. A mãe, temendo

a partida da filha, presta apoio ao cônjuge, o que provoca estranheza à protagonista, que

justifica ao mencionar o distanciamento de Hanifa ao amor:

Que aquela reclusão fosse vontade de meu pai, isso em nada me surpreendia.

Estranhei, sim, o modo entusiástico com que minha mãe apoiava agora a decisão do

marido.

- É isso mesmo, Mariamar: vai ficar aqui, bem trancada!

Depois, pensei: talvez não fosse tão desconcertante esse empenho em me afastar de

quem chegava. A mãe desconhecia o amor. Vantagem tinha a vizinha: no leito do

rio, ela amara e fora amada. Em contrapartida, Hanifa Assulua receava a estrada, a

viagem, a cidade. Não era a minha saída que a afligia. Era o despeito de ninguém a

querer levar a ela. Outras mães, em outros lugares, teriam desejado que as filhas

florescessem pelo mundo. A minha família, porém, fora contaminada pela

mesquinhez que dominava a nossa aldeia (COUTO, 2012, p. 45-46).

Esse temor em sentir-se amada acompanha a família Assulua. Em uma das lembranças

de Mariamar com a irmã, percebe-se a orientação de Silência para que a protagonista não

obedecesse ao amor e nunca crescesse para evitar mais sofrimento. Em vista disso, Mariamar

enfatiza o desejo de que uma inundação “varresse este mundo. Este mundo que obrigava uma

mulher como Hanifa a ter filhos, mas que não a deixava de ser mãe; que a obrigava a ter

marido, mas não permitia que conhecesse o amor” (COUTO, 2012, p.191). Interessante como

as figuras femininas tentam aconselhar umas as outras, mas nota-se que, dependendo da

situação, as mesmas podem se apresentar ora como vítimas, ora como algozes.

46

Um desses exemplos é a relação de Mariamar e Hanifa, que expressa, ao mesmo

tempo, cumplicidade e repulsa. Diante da violência de Genito para com a mulher, a filha tenta

protegê-la. Com um olhar fulminante de leoa, a jovem tenta controlar o impulso do pai, que

por alguns instantes, sente-se indefeso. Em seguida, Mariamar baixa os olhos e volta à

submissão:

O homem agarrou-a pelos pulsos e empurrou­a de encontro ao velho armário,

derrubando a lamparina. (...)

Decidi então intervir, em defesa de minha mãe. Ao me ver sair da penumbra, as

fúrias redobraram em meu pai: ergueu o braço, pronto para impor o seu reinado.

- Vai-me bater, pai?

Ele fitou-me, perplexo: sempre que me assomam raivas, os meus olhos se

clareiam, incandescentes. Genito Mpepe baixou o rosto, incapaz de me

enfrentar.

(...)

- Vou dizer-lhe uma coisa, escute bem - declarou, zangado, nosso pai. - Não olhe

para mim enquanto falo. Ou já perdeu o respeito?

Baixei os olhos, como fazem as mulheres Kulumani. E voltei a ser filha

enquanto Genito reganhava a autoridade que, por momentos, lhe havia

escapado.

- Quero-a aqui fechada quando chegar esse caçador. Está a ouvir?

- Sim (COUTO, 2012, p.25- negritos nossos).

Mesmo sendo forçada a realizar os serviços domésticos, Mariamar deseja compartilhar

com a mãe o peso da condição feminina, uma vez que, tudo na aldeia tinha garras:

A autoritária voz de Hanifa Assulua devolve-me à realidade:

- Não durma à sombra das pestanas, Mariamar! Vá despescoçar uma galinha.

Uma grande refeição está sendo preparada em homenagem aos visitantes. Nós,

mulheres, permaneceremos na penumbra. Lavamos, varremos, cozinhamos, mas

nenhuma de nós se sentará à mesa. Eu e a mãe sabemos o que temos que fazer,

quase sem trocar palavra. A mim cabe-me capturar, matar e depenar uma galinha da

nossa capoeira (COUTO, 2012, p.81-82).

Ela constata que a mãe também sofre com os desmandos do marido. Em um dos

episódios, após um acordo entre Florindo e Genito, Mariamar é obrigada a dormir na casa do

administrador. Com o apoio do pai, que deseja privilégios administrativos e a omissão de

Hanifa, que prepara o visual da filha até a partida, a jovem teme que esse encontro resulte em

abusos sexuais; entretanto, seu medo cede lugar ao diálogo com sua velha amiga de Missão

Naftalinda:

- Hoje à noite você vai com o administrador!­sentencia Genito Mpepe.

- Mas eu não estou de prisão? - pergunto.

- Vai dormir lá, na casa dele - afirma o meu pai, pouco à vontade.

Na presença do visitante, contenho-me, arruinada por dentro. Assim que Florindo se

retira, porém, a minha súplica irrompe:

- Pai, não me faça isso. Por amor de Deus, eu não quero...

- Você não tem que querer.

- Mas, ntwangu, por favor, pense bem - declara minha mãe, agindo inesperadamente

em minha defesa. - Esse Florindo, esse verme rasteiro...

47

Mpepe não permite argumento. Que nos calássemos. Sabíamos nós o que, na calada

da noite, se conspirava contra a sua pessoa? Percebíamos nós como ele estava

isolado e frágil? Prestar favores ao administrador era a sua oportunidade

soberana para voltar a ganhar proteção e respeito.

Em silêncio, a minha mãe prepara-me os banhos, veste-me e penteia-me. O poente

espreita quando ela me acompanha à residência de Florindo Makwala. Permanece

imóvel na estrada vendo-me entrar pelo quintal e ainda me chama:

- O lenço, minha filha ...

E passa-me a mão pelo rosto, fingindo que me corrige o penteado. Deixa-se assim

ficar, presa no seu próprio gesto. Olha-me demoradamente, antes de dizer:

- Não se preocupe, minha filha, você está muito bonita.

E parte, de regresso a casa. Fico só, indecisa, à entrada daquilo que o administrador

sempre insistiu não ser uma «casa» mas uma «residência».

(...)

- Dê-me a sua mão - pede Florindo.

(...)

- Você sabe por que está aqui?

Minto, sacudindo a cabeça em tímida negação. Um cheiro acre me rouba o ar.

Florindo Makwala segura-me pela mão e conduz-me ao longo da sala como fazem

os velhos casais quando se recolhem aos aposentos. Percorre um corredor escuro e,

frente à porta do fundo, aproxima o seu rosto do meu. Desvio-me de forma abrupta,

mas ele volta a insistir e sussurra ao meu ouvido:

- Há um problema com a minha esposa , Naftalinda.

Por fim, ele se explica. O motivo da minha presença estava, afinal, muito longe do

que eu suspeitara. Na verdade, os desesperos de Florindo eram outros. A espos a se

oferecera como isca para os leões. O esposo tentara dissuadi-la. Em vão. A primeira-

dama insistia que iria dormir, nua, ao relento, noites seguidas, até que os leões

fossem atraídos e a devorassem. Essa era a sua declarada intenção

(COUTO, 2012, p. 212, 213, 214 e 215- negritos nossos).

Em outros momentos, quando ambas se sentem ameaçadas em relação ao amor, há um

repúdio entre elas. Para Mariamar, o afeto maternal conduz uma indiferença, quando percebe

que a mãe não se preocupa com os sentimentos das filhas. Isto fica claro, quando a matriarca

vai trabalhar como empregada doméstica na casa do caçador e indaga-o sobre o real motivo

de retorno à aldeia, pois pensava que ele levaria Mariamar. Mas, neste encontro, Hanifa

descobre que o caçador não se lembra de ninguém. Interessante que este diálogo, de certa

forma, entrelaça as duas confissões:

Desde manhã cedo, uma mulher chamada Hanifa Ass ulua está varrendo, lavando,

limpando, aquecendo água sem nunca não pronunciar a palavra. A sua presença tem

a discrição de uma sombra. Apenas à saída, ela me dirige a palavra, sem nunca

levantar os olhos do chão.

- Lembra-se de mim? – pergunta.

Não me recordo. Explico-lhe a circunstância efémera da minha visita. Passara tanto

que eu viera aqui dar caça a um crocodilo. Foram uns escassos dias e partira sem

nunca mais voltar. Queria desculpar-me de uma eventual indelicadeza. Mas ela

parece aliviada com a minha falta de lembrança.

- Diga a verdade: o senhor apenas vem caçar? Ou vem buscar uma pessoa a

Kulumani?

- Que pessoa? Não conheço ninguém.

- É bom que seja assim. Aqui também não há ninguém.

E não me disse mais nada naquele dia nem nos seguintes dias. Rodava por ali sem

voz, sem presença. (...) Hanifa (...) Ergue-se em aprumada postura, como se a lata

48

de água fizesse parte do seu corpo, como se a água é que a estivesse transportando a

ela (COUTO, 2012, p.102-103).

Ao contar a Mariamar sobre a conversa com Arcanjo, a jovem sente-se humilhada,

pois sem sair de casa, verifica que sua mãe tem a possibilidade de ter mais contato com o

caçador. Assim, a protagonista desamparada, deseja um novo lugar, pois demonstra

estranheza também em relação à mãe.

Em outro episódio, ao receber o caçador em sua casa, Hanifa nega a presença da filha

e a sua existência. Além disso, indaga-o, pois não compreende como Arcanjo, sendo homem,

se permite dar atenção às mulheres em Kulumani:

[Caçador] No pátio ouço alguém tossir por detrás da paliçada de caniço. Quando

me disponho a espreitar, Hanifa puxa-me pelo braço e faz-me sentar na única

cadeira disponível.

[Hanifa] - Não é ninguém, são apenas os cães. Os que ainda não foram comidos

pelos leões.

[Caçador] A anfitriã retira da cozinha uma panela com batata-doce cozida e serve-a

num prato de barro. Não tenho fome, mas não posso recusar. Em silêncio,

partilhamos a comida.

[Hanifa] - Nós estamos os dois aqui comendo juntos. Em Kulumani isso é interdito.

Um homem comer junto de uma mulher? Só se o homem estiver enfeitiçado.

[Caçador] - Quem sabe eu estou mesmo enfeitiçado?

[Caçador] De repente, ouço tombar a louça posta a secar sobre o telheiro. E vejo

um vulto de mulher correndo a esconder-se por detrás da casa.

[Caçador] - Quem é?

[Hanifa] - Não é ninguém.

[Caçador] - Mas eu vi, eu vi uma mulher a esconder-se.

[Hanifa] - É o que lhe dizia: uma mulher, aqui, não é ninguém ...

[Caçador] Ergue-se e, sem cerimónia, conduz-me para o pátio da frente. É um

modo de me dizer que o tempo da visita está prestes a terminar. (...)

[Hanifa] - Vejo uma tristeza tão funda dentro de si. Que se passa?

[Caçador] - Nada. Não se passa nada. E por que pergunta?

[Hanifa] - Por que razão o senhor perde tempo falando com uma velha negra e

solitária como eu? (COUTO, 2012, p.178-179- negritos nossos)

O repúdio em relação à figura materna se intensifica, quando Mariamar, mesmo

sofrendo a violência sexual do pai, é acusada pela mãe de seduzir Genito. Assim, o ambiente

do lar significa para a jovem uma verdadeira prisão:

Hanifa Assulua, minha mãe, sempre fez de conta que nada sabia. Que era invenção

dos vizinhos, delírio de quem queria esconder as suas próprias mazelas. Quando as

evidências a esmagaram, mandou-me chamar para, voz tremente, me perguntar:

- É verdade?

Não respondi, olhos presos no chão. O meu silêncio foi, para ela, a confirmação.

- Maldita!

Sem qualquer reação, fitei - a saltando sobre mim, agredindo-me com socos e

pontapés, insultando-me na sua língua materna. O que ela dizia, entre babas e

cuspos, era que a culpa era minha.Toda a culpa apenas minha. Bem que Silência já a

tinha alertado: era eu que provocava o seu homem. Não se referia a Genito como «o

meu pai». Ele era, agora, «o seu homem».

- Vai para fora desta casa. Nunca mais a quero aqui.

49

Não cheguei a sair. Ao contrário, enclausurei­me entre paredes e nunca ninguém se

internou tanto numa casa. Hanifa Assulua fez comparecer um feiticeiro e esse uwavi

fez-me beber uma amarga poção. Durante um dia inteiro me servi de um pequeno

pote de barro. No dia seguinte, o veneno tinha produzido efeito. Eu tinha sido

convertida num corpo sem alma. Peçonhenta seiva, em vez de sangue: era o que nas

veias me restava.

Minha mãe vingava-se: antes ela transferira a minha doença para a árvore do nosso

pátio. Agora ela fazia takatuka ao inverso: deslocava a vida de mim para a árvore

morta. O tamarindo, num instante, renasceu verde e altivo. Em contrapartida,

converti-me em inanimada criatura. Um único sentido me restava: a audição. No

resto, um antigo e congénito escuro me rodeava (...)

(COUTO, 2012, p.187, 188, 189).

Há um paradoxo entre a mãe e a filha. Durante a narrativa, nota-se a construção e

desconstrução das atitudes da mãe, o que garante uma dinâmica interessante ao leitor, que

consegue reparar os conflitos e a complexidade dos personagens, de acordo com cada

situação.

Por um lado, Hanifa expressa atos de ternura ao curar a paralisia de Mariamar, na

infância, quando, seguindo uma das tradições da aldeia, transfere a doença para uma árvore;

depois, consente ao caçador levar sua filha embora da aldeia e alerta-o que não a trouxesse de

volta, pois a jovem “seria morta pelos vivos, perseguida pelos mortos.” (COUTO, 2012,

p.248). Além disso, a matriarca presenteia a jovem, ao final da trama, com a “corda do

tempo” (COUTO, 2012, p.186-250), confirmando a fertilidade da protagonista.

Por outro lado, essa mesma mãe é capaz de atos perversos, como: deixar, a princípio,

Mariamar acreditar na infertilidade; depois, não contar ao caçador sobre a presença da filha;

em seguida, quando ameaçada no matrimônio, promover o exílio absoluto da jovem, ao dar-

lhe “uma amarga poção”. Assim, percebemos nas mulheres de Kulumani é que, mesmo diante

das injustiças, ao se sentirem ameaçadas por qualquer situação, buscam a auto defesa. Por

isso, não são só vítimas; há momentos de crueldade, que legitimam as atitudes tomadas.

A própria Hanifa evidencia dupla atitude com o marido. Ora teme a perda do

matrimônio, ora há o desejo de tornar-se viúva. Sem conhecer o amor e sem a liberdade, ela

prepara uma emboscada para Genito. Sabendo que o marido tinha ido comprar bebidas e

sempre voltava pelo mato, ela avisa ao caçador de um “suposto” barulho de leões vindo da

redondeza e chama-lhe para que atire na mesma direção pela qual, provavelmente, Genito

passaria:

[Caçador] Hanifa vem chamar-me, alta noite. Está tão alarmada que desato a segui-

la sem mudar de roupa.

(...)

[Hanifa] - Os leões chegaram a minha casa.

(...)

50

[Caçador] A mulher não tem dúvida. (...) Hanifa segue atrás de mim. (...) Num

instante, estamos no pátio da casa do casal Mpepe.

[Caçador] (...) E você, Hanifa, chame imediatamente Genito! - ordeno.

[Hanifa] - Ele está a dormir.

[Hanifa]- Dispare, são os leões! Dispare!

(...)

[Genito]- Não dispare, sou eu, Genito!

[Caçador] O pisteiro tinha ido comprar aguardente na povoação vizinha. Ergue uma

garrafa como prova.

(...)

[Genito]- Hanifa sabia que era eu. Ela sabia que era eu que estava a chegar. (...)

[Genito]- O que se passou aqui sabe o que foi? Uma emboscada. Hanifa quer

matar-me.

(...)

[Genito]- Ela pensa que sou culpado de coisas terríveis

(COUTO, 2012, p.139, 140 e 141- negritos nossos).

Sua confissão de desprezo ao marido e seu ato de matá-lo é revelado ao caçador, que

torna-se uma espécie de receptor dos conflitos de Hanifa:

[Hanifa]- O meu marido é um kwambalwa – afirma- Podia dizer que era bêbedo.

Mas o que esse homem é só pode ser dito na minha língua: um kwambalwa.

[Hanifa]- O que se vê por aí, espalhados pelo quintal, são garrafões de bebida ...

(...)

[Caçador] Para as mulheres de Kulumani, mais vale um bêbado que um marido. No

seu caso, porém, a escolha é entre o cuspo da serpente e o hálito do demónio. A

violência de Genito, quando sóbrio, acaba por doer mais do que a sua crueldade nos

momentos de embriaguez.

(...)

[Hanifa] - Parece um bicho - comenta Hanifa. - Às vezes peço a Deus que não

acorde nunca mais - confessa.

[Caçador] Sorrio, embaraçado. Sacudo a cabeça como que a aliviar a gravidade das

suas declarações. Contudo, a anfitriã regressa à fala, com acrescido azedume:

[Hanifa]- Se ele não acordasse eu não teria que o matar.

[Caçador]- O que é isso, Hanifa?

[Hanifa]- Esse homem deu-me quatro filhas mas tirou-me todas elas.

[Caçador]- Disseram-me que a mais velha foi morta pelos leões.

[Hanifa]- Foi Genito que a matou ...

[Caçador] Naquela fatídica madrugada, Silência estava escapando de Kulumani,

fugindo do regime despótico de Genito Mpepe.

(...)

[Hanifa] Falo em matar Genito, mas é Kulumani toda que eu queria eliminar. (...)

(COUTO, 2012, p.176, 177e 178- negritos nossos).

É ainda com Arcanjo, ao final da trama, que Hanifa autoriza a partida de Mariamar de

Kulumani; revela o segredo da “corda do tempo” e confessa ser uma das leoas:

[Caçador] Dou tempo arredo-me para que as duas, Hanifa e Mariamar, cumpram os

adeuses. Mas não há despedida. A mão que se demora na mão: é a única fala entre

mãe e filha, Essa demora tem um fito que quase me escapa: há uma espécie de colar

que a mãe passa, discretamente, para a mão da filha.

[Caçador] - Também gosto de oferecer colares - digo.

[Hanifa] - Não é um colar - corrige Hanifa. - O que estou a dar a Mariamar é a

antiga corda do tempo. Todas as mulheres da família contaram os meses da

gravidez naquele longo cordão.

[Caçador] O presente comoveu Mariamar.

(...)

51

[Caçador] - Adeus, Hanifa.

[Hanifa] - O senhor contou os leões ?

[Caçador]- Desde o primeiro dia que sei quantos são.

[Hanifa] - Sabe quantos são. Mas não sabe quem são.

[Caçador]- Tem razão. Essa arte nunca aprenderei.

[Hanifa]- O senhor sabe muito bem: os leões eram três. Falta ainda um.

(...)

[Hanifa] - Eu sou a leoa que resta. É esse o segredo que só você conhece. Arcanjo

Baleiro (COUTO, 2012, p.249, 250 e 251- negritos nossos).

A matriarca termina o romance com a esperança da fertilidade concedida a Mariamar

por meio da “corda do tempo”. Hanifa acredita que pela filha a geração dos Assulua

continuará não mais em Kulumani, mas em outro lugar, onde possa ser construída uma nova

história, na qual os direitos e a liberdade das mulheres sejam respeitados.

2.1.3. Naftalinda

-Fingem que estão preocupados com os leões que nos tiram a vida. Eu, como

mulher, pergunto: mas que vida há ainda para nos tirar?

(COUTO, 2012, p.115)

Outra figura feminina importante é Naftalinda, que traz consigo as propostas de uma

sociedade igualitária e não mede esforços para buscar seus objetivos. Ela é aqui considerada

como terceira leoa, pois sua língua afiada apresenta a luta pela inclusão das mulheres: “o tom

de sua voz (...) ajusta-se ao seu estatuto: tem essa doçura de quem sabe tanto o que quer que

nem precisa mandar” (COUTO, 2012, p.69). É a primeira-dama do administrador do distrito,

Florindo Makwala, e a única mulher que acompanha a comitiva para o combate aos leões.

Sua primeira crítica acontece, logo, na chegada da comitiva em Kulumani. Vendo

milhares de camponeses reunidos, a esposa condena a atitude do marido em forjar uma

popularidade para impressionar os visitantes e se preocupa com o retorno dessas pessoas aos

seus lares, sabendo da violência na região:

Sem dar por isso, um mar de gente nos envolve. A esposa do administrador explica,

sussurrando ao meu ouvido: mobilizaram camponeses de outras aldeias para nos dar

as boas vindas. Contra todas as regras de segurança, estes aldeões marcharão de

noite, indefesos, de retorno aos seus lares. Mas parece inevitável: a força de um

chefe mede-se pelo tamanho da cerimónia de receção. E Florindo Makwala não

queria perder a oportunidade de nos impressionar. Os créditos não lhe escapam das

mãos e vai incentivando Gustavo Regalo:

- Vê, caro escritor? O povo ama-nos. A mim e ao meu partido. Escreva isto,

fotografe tudo isto (COUTO, 2012, p.75-76).

Ela não mede esforços para revelar a crueldade da aldeia, pois enfrenta o seu cônjuge e

as regras impostas pelos homens. Um exemplo disso é a referência que faz a empregada

52

Tandi; quando o administrador tenta amenizar os últimos acontecimentos de violência,

Naftalinda rebate-o na discussão:

[Florindo] - Amanhã virá uma senhora da aldeia para fazer as limpezas e preparar

a refeição.

[Naftalinda] - Devia ser Tandi, a nossa empregada - corrige a primeira-dama.-

Acontece, porém, que ela foi ...

[Florindo] - Ela está incomodada - interrompe às pressas Florindo.

[Naftalinda] - Incomodada? Que palavra é essa, marido? Incomodada?

[Caçador] Makwala empurra com firme gentileza a esposa para o quintal. Lá fora,

ainda discutem. Aos poucos, as vozes desvanecem-se. Parece terem-se afastado, mas

os passos nervosos de Naftalinda confirmam que regressa, empenhada em nos deixar

com a sua última palavra:

[Naftalinda] - Só para que fique claro: incomodada quer dizer atacada, quase

morta. E não foram os leões que o fizeram. A maior ameaça, em Kulumani, não são

as feras do mato. Tenham cuidado, meus amigos, tenham muito cuidado

(COUTO, 2012, p. 97-98- negritos nossos).

Em outro momento, nota-se também, no encontro de receção, na shitala, “o alpendre

no centro da aldeia” (COUTO, 2012, p.110), onde se reúnem somente homens, Naftalinda

invade o local e dá sua opinião sobre o abuso sofrido por Tandi:

[Naftalinda] - A caçada devia ser outra. Os inimigos de Kulumani estão aqui, estão

nesta assembleia !

(...)

[Florindo] - Camarada primeira-dama, por favor, este é um encontro privado...

[Naftalinda]- Privado? Não vejo nada de privado, aqui. E não me olhem assim

que não tenho medo. Sou como os leões que nos atacam: perdi o medo dos

homens.

[Florindo] - Naftalinda, por favor, estamos reunidos aqui segundo a tradição

antiga- solicita Makwala. [Naftalinda] - Uma mulher foi violada e quase morta, nesta aldeia. E não foram

leões que o fizeram. Já não há lugar proibido para mim.

(...)

[Naftalinda] - Você voltou a Kulumani, Arcanjo Baleiro? Pois dê caça a estes

violadores de mulheres. [Florindo] - Mamã, há que pedir a palavra- adverte Florindo Makwala.

[Naftalinda] - A palavra é minha, não preciso pedir a ninguém. Estou a falar

consigo, Arcanjo Baleiro. Aponte a sua arma para outros alvos.

[Florindo] - Que conversa é esta, esposa?

[Naftalinda] - Fingem que estão preocupados com os leões que nos tiram a vida.

Eu, como mulher, pergunto: mas que vida há ainda para nos tirar?

[Florindo] - Mamã Naftalinda, por amor de Deus. Temos uma agenda para este

evento.

[Naftalinda] - Sabe por que não deixam as mulheres falar? Porque elas já estão

mortas. Esses aí, os poderosos do governo, esses ricos de agora, usam-nas para

trabalhar nas suas machambas.

[Florindo] - Maliqueto, por favor, leve a primeira-dama. Está a perturbar o nosso

workshop.

[Naftalinda] - Uns poucos ficam ricos. Há mortos que trabalham de noite para que

uns poucos fiquem ricos (COUTO, 2012, p.114- 115- negritos nossos).

Na perda de sua empregada “Tandi”, pela violência, Naftalinda, mais uma vez,

provoca novos questionamentos:

53

[Naftalinda]- Os leões cercando a aldeia e os homens continuam a (...) mandar as

filhas e as esposas coletar lenha e água de madrugada. Quando é que dizemos que

não? Quando já não resta nenhuma de nós?

[Caçador] Esperava que as demais mulheres a seguissem naquele convite à revolta.

Mas elas encolhem os ombros e afastam-se, uma por uma. A primeira-dama é a

última das mulheres a abandonar a cerimónia. Por dentro, ela sente-se derradeira das

mulheres (COUTO, 2012, p.195- 196- negritos nossos).

Por mais que a primeira-dama seja a porta-voz das mulheres em Kulumani, ela

também é silenciada. Essa sensação de deslocamento torna-se evidente quando não consegue

o seu espaço social. Isto fica claro ao mostrar os visitantes o ritual da aldeia, onde homens se

reúnem e se transformam em leões. Ela percebe como o universo masculino, impulsionado

pela tradição, ainda prevalece. Alerta, ainda, sobre as contradições locais, ao reparar que os

mesmos homens que cumprem os rituais são também aqueles que comentem a violência:

[Naftalinda] - Mataram a alma dela, ficou só o corpo. Um corpo ferido, uma réstia

de pessoa.

[Caçador] Relatou o que sucedera: inadvertidamente a empregada atravessou o

mvera, o acampamento dos ritos de iniciação para rapazes. O lugar é sagrado e é

expressamente proibido a uma mulher cruzar aquele território. Tandi desobedeceu e

foi punida: todos os homens abusaram dela. Todos se serviram dela. A moça foi

conduzida ao posto de saúde local, mas o enfermeiro não aceitou tratar dela. Tinha

medo de retaliação. As autoridades distritais receberam queixa, nada fizeram. Quem,

em Kulumani, tem coragem de se erguer contra a tradição?

[Naftalinda]- O meu marido ficou calado. Mesmo quando o ameacei ele nada fez ...

[Caçador] Não sei o que responder. Dona Naftalinda ergue-se e olha o caminho

tomado pelos caçadores.Sem parar de atiçar o lume, murmura:

[Naftalinda] - Não sei o que eles vão procurar pelo mato. Esse leão está dentro da

aldeia (COUTO, 2012, p.148-149- negritos nossos).

Mais adiante, com coragem, ela decide solucionar o caso e se oferece para ser cobaia

para os leões, pois como “era tão carnuda (...) os bichos ficariam saciados e deixariam a aldeia

tranquila por muitas luas” (COUTO, 2012, p.216). Seu desejo era “dormir, nua, ao relento,

noites seguidas, até que os leões fossem atraídos e a devorassem” (COUTO, 2012, p. 214). Na

verdade, busca concretizar os seus desejos reprimidos: “Eu quero ser comida, quero ser

comida no sentido sexual. Quero engravidar de um leão” (COUTO, 2012, p.218). Mesmo

casada, a relação com o administrador é só de aparência, embora em alguns momentos, como

depois que foi atacada pelo leão, ela confessa: “Esta noite, depois de tanto tempo, fui feliz.

Mesmo com as dores, namorei bem, dormi bem e sonhei bem” (COUTO, 2012, p.228)

Com a insatisfação em relação à violência na aldeia e o descaso do marido no assunto

de Tandi, Naftalinda toma a iniciativa de resolver o problema em Kulumani. Temendo mais

uma atitude impulsiva da esposa, Florindo chama a filha de Hanifa para convencer a esposa a

mudar de ideia.

54

A relação das duas surgiu desde a Missão, onde descobriram algumas afinidades,

dentre elas, a mesma solidão: “Eu [Mariamar] e Naftalinda (...) nascêramos no mesmo ano,

estudáramos ambas na Missão, ambas estávamos condenadas a não ter filhos e, assim,

destinadas a nunca sermos mulheres” (COUTO, 2012, p.215- negritos nossos).

O reencontro com Mariamar revela a infância e a condição exilada de Naftalinda. Seu

verdadeiro nome era Oceanita, devido ao volume de prantos, quando era menina de colo. Já

na adolescência, seu corpo “se multiplicou em volume” (COUTO, 2012, p.215). A alternativa

da sua família foi levá-la até a Missão para tratá-la; mas nada adiantou, sua vida continuou

vazia, o que se evidenciou no aspecto físico. Durante a viagem até Kulumani, o desajuste do

corpo da primeira-dama é descrito pelo caçador:

Ela é tão pesada que a viatura se inclina perigosamente sobre o lado em que se

instalou (...) Dona Naftalinda é descida da viatura. A suspensão do jipe geme,

sofrida. (....) Vários braços se erguem para apoiar a operação de descarga da

primeira-dama. Hesito, não sabendo onde apoiar as mãos. Receio que os meus

braços se percam entre polpas e banhas. (...)

(COUTO, 2012, p.68 e 70).

A estrutura física é destoante da condição pré-estabelecida, o que expressa as

consequências do exílio interior de Naftalinda frente ao desejo de ser amada pelo marido e de

alcançar o espaço social. A única parte que ela admira são as unhas, devido à magreza.

Mia Couto mostra esta apresentação do corpo em outros textos, como no conto

“Rosalinda, a nenhuma”, em Cada homem é uma raça, no qual a mulher, depois que ficou

viúva, “sofria de tanto volume que se sentava no próprio peso, superlativa” (COUTO, 1990,

p. 26); no conto: “A gorda indiana”, em Contos do nascer da terra, a personagem Modari,

“de tanto viver em sombra ela chegava de criar musgos nas entrecarnes” (COUTO,1999a,

p.33). E também, na obra Mar me quer, Luarmina, “a gorda mulata” (COUTO, 2001, p.10)

vivia na reclusão a costurar. Em alguns desses exemplos, o escritor desconstrói a imagem do

“padrão físico” e discute o modo como o corpo reage diante das situações adversas.

Dessa forma, em Naftalinda, a subjetividade amargurada é percebida também por “um

azedume no olhar” (COUTO, 2012, p.216), o que justifica a mudança do nome. A primeira

parte do nome: “Nafta” lembra a composição do “naftaleno”20, propriedade química presente

no combate a pragas. Já a segunda parte: “linda” apresenta a sagacidade da personagem em

lutar pelos direitos das mulheres.

20 Retirado do site: http://www.priberam.pt/dlpo/naftalina. (Adaptação). Acesso: 15/12/2013.

55

O significado do nome, nas obras de Mia Couto, é muito relevante, pois antecipa

algumas atitudes do personagem. Segundo a pesquisadora Maria Fernanda Afonso: “A

onomástica de Mia Couto cria frequentemente um efeito rítmico, sugestivo de valores

simbólicos. Muitos nomes femininos são formados a partir do adjetivo “linda”, acrescentado a

um substantivo evocatório de beleza: Marcelinda, Florlinda, Rosalinda.” (AFONSO, 2004, p.

345). Esta simbologia corresponde a riqueza da cultura tradicional africana pois, para Raul

Ruiz de Asúa Altuna, o nome “situa o homem no grupo; é a denominação que permite

reconhecê-lo, o sinal da sua situação, da sua origem, da sua actividade, das suas relações com

os outros” (ALTUNA apud TEIXEIRA, 2011, p.81).

Para Mariamar, a velha amiga de infância ainda tem o mesmo nome, pois repara uma

angústia interior. “Para mim, ela era ainda Oceanita. Mas para todos os outros ela não carecia

de nome algum. Era apenas uma esposa (...). Ela era a primeira-dama de uma aldeia sem

damas” (COUTO, 2012, p.216). No diálogo entre as duas, Naftalinda confessa a inveja da

beleza de Mariamar, o que, de certa forma, se repete em outras mulheres. Como por exemplo:

em Silência, que mostra ciúme da própria irmã, no que diz respeito atração que a protagonista

despertava nos homens, e também em Hanifa, que acusa a filha de seduzir Genito. Esse

sentimento de repulsa, em alguns momentos das mulheres com Mariamar, acontece, pois, das

figuras femininas em Kulumani, ela é a única que consegue se aproximar dos meninos na

infância e mantém um breve caso de amor, sem a imposição patriarcal. Na verdade, o que

move Mariamar é o desejo de ser amada e de ser livre da opressão da aldeia.

Ainda na conversa com a protagonista, Naftalinda revela o mal estar que sente ao

visualizar seu corpo e expressa a ânsia de ser outra, já que se encontra deslocada:

[Mariamar] Confessava, agora, tantos anos depois: sempre tivera inveja de mim, da

minha esbelta figura, dos meus olhos rasgados. Essa inveja tornava-se insuportável

sempre que eu subisse para as costas dos rapazes e eles corressem comigo e caíssem

comigo num corpo só e rissem comigo numa única gargalhada.

[Naftalinda]- Como eu te odiava, Mariamar! Tanto pedi a Deus que te levasse.

[Mariamar] Mais afeita à luz: contemplo-a com a mesma demora com que o

estivador, no cais, inspeciona a carga. O meu olhar é o tatear de um cego. Fixo

Oceanita sem nunca a chegar a ver. Os invisíveis cotovelos, as covinhas lunares, as

dobras e os refegos: a moça era uma plantação de carnes. Percebo, então: irrita-a que

eu a observe. Quando se tenta erguer, lembra um astro despegando do universo.

[Mariamar]- Eu ajudo-te - prontifico-me.

[Naftalinda]- Não é preciso - rejeita energicamente.

[Mariamar] Mas logo se despenha, como se lhe faltassem os joelhos. E apoia-se em

mim, como um navio se afeiçoando ao cais. Parece tirar prazer desse demorado

encosto. Afasto-a com cuidado, dou uns passos atrás para a voltar a

contemplar.Quando dias antes a espreitei de longe não avaliei o seu tamanho. Agora,

percebo: Naftalinda é tão gorda que, mesmo de pé, está sempre deitada.

[Naftalinda] - Olha bem para mim! Olha sem medo, somos ambas mulheres. Como

pode um homem desejar-me a mim? Como posso seduzir Florindo, diz-me?

(COUTO, 2012, p.217-218- negritos nossos).

56

A amizade entre as duas acontece na Missão, onde Naftalinda foi levada para

emagrecer e Mariamar deveria curar-se da paralisia. Ambas sentem-se “fora do lugar” (SAID,

2004, p.19). Neste ambiente, a primeira-dama reconhece a possibilidade da liberdade e

menciona: “Sabes, Mariamar? Tenho saudades de nós, na Missão. A Missão não era apenas

uma casa religiosa: era um país. Entendes? Nós duas vivemos no estrangeiro. Somos mais

brancas que Arcanjo” (COUTO, 2012, p.218). Por mais que sejam pertencentes da aldeia,

elas desejam a fuga. O território não faz parte de sua vida, pois o grito não tem voz, a luta não

tem força. Elas compartilham a solidão, que segundo Kristeva (1994, p.19-20), é a única

liberdade do estrangeiro.

Nesta troca de cumplicidade entre as duas, Naftalinda permite que Mariamar a chame

de Oceanita, recordando os tempos da infância. A primeira-dama pede à jovem que a deixe

sair de casa, só para olhar a aldeia e cumprir o seu sonho, e esta acaba consentindo, o que

resulta no ataque da leoa. Sem saber o que fazer, Mariamar toma coragem e ajuda-lhe, mesmo

com a rejeição de Naftalinda, que deseja ser devorada pelo animal. Por isso, a cena ilustra as

três em combate. Muitos moradores acreditam que a protagonista é o próprio animal, por ter

sido encontrada deitada por cima de Naftalinda. Entretanto, a primeira-dama protege a amiga

da multidão e ainda, mais adiante, intercede pela jovem:

Naftalinda adormece enquanto me mantenho vigilante, à distância. Aos poucos

também cedo ao sono até que, num segundo, tudo sucede, em confusa e atabalhoada

mistura: um restolhar no capim, um abafado ronco, uma sombra projetada como

uma bala de fogo sobre Naftalinda. Como um clarão vejo uma leoa se enovelar

sobre o seu extenso corpo e as duas, quase indistintas, se abraçarem numa dança

fatal.

- Socorro, a leoa! Ajudem!

Aos berros, acorro a ajudar a moça. A leoa se espanta perante o meu ataque. Com

ímpeto que em mim nunca antes adivinhara, cresço em força e tamanho e

obrigo a leoa a afastar-se. Seria o momento oportuno para que Naftalinda

escapasse. Mas ela rejeita a minha ajuda e corre, de novo, a se entregar à

agressora. Num ápice, rodopiamos as três, confundem-se unhas e garras, babas e

suspiros, rugidos e gritos. A raiva faz-me duplicar de corpo: mordo, esgadanho,

pontapeio. Surpresa, a leoa acaba por ceder. Vencida, retira-se com a dignidade de

rainha destronada. E desaparece no escuro, para além da estrada.

Por segundos, permaneço deitada por cima de Naftalinda quando, de repente, sobre

as minhas costas desaba o firmamento. A dor é imensa, grito em desespero, rodo

sobre mim mesma e, num relance, avisto Florindo com uma matraca erguida acima

da cabeça, pronto para me desfechar o golpe final.

- Sou eu! Sou eu, Mariamar!

Um coro de vozes eclode: mate-a, Florindo! Essa mulher é a própria leoa! À nossa

volta junta-se a aldeia inteira, reclamando justiça. A meu lado, Naftalinda está

coberta de sangue. Ergue-se de joelhos, abre os braços a proteger-me o corpo e

proclama numa espécie de guincho:

- Ninguém toca nesta mulher. Ninguém!

Empunhando ainda a matraca, Florindo Makwala, confuso, ordena à multidão que se

afaste. Ajoelha-se a meu lado para saber do meu estado. A sua voz também está

ajoelhada quando murmura:

- Desculpa, Mariamar, no escuro não vi que eras tu.

57

(...)

Ninguém nota que Florindo ampara, sozinho, a magoada esposa de volta a casa.

Apenas eu não tenho casa para onde regressar. Só eu choro, no escuro chão de

Kulumani (COUTO, 2012, p.219, 220 e 222- negritos nossos).

Em gratidão a atitude de defesa da amiga, Naftalinda ainda no hospital, recebe a visita

do caçador e pede-lhe que leve Mariamar para Maputo, alegando que, para a semana, também

iria à cidade e tomaria conta da jovem. Interessante que a narrativa termina sem descrever esta

partida da primeira-dama, o que garante um reencontro entre os protagonistas, depois de

tantos anos:

[Caçador] A mulher toma a minha mão e olha-me de modo maternal:

[Naftalinda]- Tenho um pedido para lhe fazer. Leve Mariamar consigo para

Maputo.

[Caçador] - Mariamar? [Naftalinda]- É a filha mais nova de Hanifa. Para a semana também vou para lá e

tomo conta dela.

[Caçador] - Fique tranquila, eu faço isso (COUTO, 2012, p.227- negritos nossos).

2.1.4. Luzilia

-Tinhas razão, esta é a tua última caçada. Porque eu te venho buscar...

(COUTO, 2012, p.207)

Pela voz de Arcanjo, conhecemos nossa quarta leoa, Luzilia. Sua presença é essencial

na composição do diário do caçador. Segundo Padilha, mesmo “de protagonismo menor”

(PADILHA, 2013, p.272), mas instigante, Luzilia completa as “mulheres-estrelas”, ou

melhor, as leoas. Aparece, nos diálogos, com mais regularidade; na primeira sequência, “O

anúncio”; na sexta sequência, “O reencontro”; na sétima sequência, “O demónio santo”, do

diário do caçador. Nos demais capítulos, a personagem surge nos devaneios de Arcanjo, que

alimenta um grande amor por ela. Seu nome, composto com a palavra “luz”, traz a vida para

os escritos dele: "É por causa dela que escrevo este diário (...)” (COUTO, 2012, p.35).

Luzilia representa a moça da cidade: Maputo, do Sul de Moçambique, onde

predominam as relações de parentesco patrilineares21, diferente das matrilineares do Norte. Na

trama, percebemos essas relações, com a matriarca Hanifa Assulua, que sendo do Norte passa

os costumes para as filhas e com o patriarca Henrique Baleiro, que, inserido nas tradições do

Sul, ensina os hábitos para os filhos.

21Retirado do site: http://escola.mmo.co.mz/historia/as-sociedades-mocambicanas-apos-a-fixacao-bantu/.

Acesso: 15/05/2013.

58

Nota-se que a presença de Luzilia apresenta um questionamento importante para o

papel da mulher na sociedade moçambicana, pois, independente de pertencer à região Norte

ou Sul, a figura feminina continua silenciada e dominada pelos homens. Embora possua uma

profissão, sendo enfermeira, no “Hospital Psiquiátrico Infante”, ela se assemelha a todas as

mulheres de Kulumani, pois também vive o vazio interior. Casada com o paciente Rolando,

mantém um relacionamento de aparência, uma vez que seu marido “não sabia existir senão na

doença” (COUTO, 2012, p.37). Daí, sua vida torna-se sinônimo de cuidar dos outros e de

esquecer de si mesma. O seu desejo está fadado ao silêncio, embora esta sensação pudesse ser

mudada, quando Arcanjo declara-se à ela:

[Caçador] Foi naquele mesmo recinto que confessei a Luzilia a grande paixão que

nutria por ela. Era uma tarde vazia, dessas que se arrasta como contagiosa doença.

Sem olhar o seu rosto, inspirei fundo e declarei-me à amedrontada Luzilia. Como ela

nada dissesse, prossegui:

[Caçador] - Há uma coisa que devo dizer, Luzilia: sempre que aqui venho, a este

hospital, é a ti que venho visitar.

[Luzilia]- Não é verdade. E o teu irmão?

[Caçador] - É por ti que venho (COUTO, 2012, p. 37- negritos nossos).

Na primeira sequência, observa-se o contato de Luzilia com o cunhado no hospital,

onde ele visita o irmão Rolando, que está internado, devido ao assassinato do pai, um

acontecimento, aparentemente visto como acidente, mas que, ao final, revela-se como uma

vingança pela morte da mãe. Mesmo sabendo do amor do caçador, Luzilia, a princípio, o

rejeita em respeito ao marido. Assim, com esta indiferença, Arcanjo, sem alternativa, se afasta

da cidade, mas carrega consigo as lembranças da amada.

Na sexta sequência, depois de sonhar várias vezes com seu amor, o caçador consegue

revê-la. Com a justificativa de revelar a verdade sobre o assassinato cometido por Rolando,

Luzilia vai à aldeia, onde está hospedado o caçador:

[Caçador] Acordo estremunhado e avanço pelo corredor quando, lá fora, se

anunciam os primeiros laivos da manhã. Cruzo-me com o escritor que anuncia à

queima-roupa:

[Escritor]- Acabou de sair daqui uma mulher.

[Caçador]- Uma mulher? Que mulher?

[Escritor]- Não sei, não a conheço. Chegou de Maputo, vem à sua procura. Diz que

se chama Luzilia.

[Caçador]- Luzilia?

[Caçador] Por fora impávido, por dentro um vulcão: eis­me apanhado de surpresa

como um animal emboscado. Na aparência imóvel, mas por dentro correndo,

impetuoso, adolescente, sucumbindo à tentação. E já sentia o corpo de Luzilia de

encontro ao meu, já me embeveciam gemidos e suspiros. Não era apenas a

consumação de um sonho que eu buscava, mas o cicatrizar da ferida da rejeição.

Uma hora depois, Luzilia regressa. Cumprimenta-me com um beijo no rosto quase

roçando os lábios. Corrige no rosto o áspero roçar da minha barba mal feita. Sinto os

seios dela de encontro ao meu peito e ficamos assim por um tempo.

[Caçador]- Eu sabia que tu virias.

[Luzilia]- Mentira. Nem eu mesmo sabia.

59

[Caçador]- E como está o meu irmão? [Luzilia]- É por causa dele que estou aqui. O teu irmão...não sei como dizer isto ...

[Caçador]- Morreu? [Luzilia]- Não, ainda não.

[Caçador]- Ainda não?

[Luzilia]- Rolando quer que regresses a Maputo com a maior urgência. Há coisas

que ele te quer dizer antes de morrer.

[Caçador]- Preciso de mais um dia. Depois voltamos juntos.

[Luzilia]- Então eu regresso para Palma, estou lá numa pensão. Amanhã vais ter

comigo.

[Caçador]- Não vás já, Luzilia. Quero mostrar-te o rio. Depois levo-te de carro a

Palma (COUTO, 2012, p.202-203- negritos nossos).

Esse movimento de Luzilia para reencontrá-lo desconstrói a imagem feminina

submissa que, por tanto tempo, foi capaz de reprimir suas vontades em prol do outro. Assim,

como as outras mulheres, ela sofre pelo amor não vivido, mas deseja obter o que lhe falta,

mesmo que essa ida, a princípio, seja para cumprir uma ordem do marido.

Percebe-se, na passagem acima, a ânsia do contato com o outro, pois ela oferece a

Arcanjo “um beijo no rosto quase roçando os lábios” (COUTO, 2012, p. 202) e deixa os seios

próximos do peito do cunhado. Mais uma vez, o caçador sente-se capturado e torna-se um ser

indefeso, “um animal emboscado” (COUTO, 2012, p.202) diante do seu amor. Para ele, revê-

la é uma tentativa de “cicatrizar da ferida da rejeição” (COUTO, 2012, p.202).

Nesta proximidade, de certa forma, o sujeito experimenta sanar o vazio interior, já

que, segundo Kristeva, há “uma ferida secreta, (...) arremessa-o nesse vagar constante”

(KRISTEVA, 1994, p. 12). Isto acontece no reencontro de Luzilia e Arcanjo e também com

Arcanjo e Mariamar. Tanto Luzilia, quanto Arcanjo rejeitaram um relacionamento, mas

quando se permitem sair da prisão de si mesmo, reconhecem que o outro pode ajudar no

processo de autoconhecimento.

Na trama, há uma inter-relação movida pelo encontro e desencontro entre os três.

Luzilia é desejada por Arcanjo, que é rejeitado por ela, mas voltam a se rever. Por sua vez, ele

rejeita Mariamar, que o ama e ao final, vai ao seu encontro. Nesta tríade amorosa, ainda com

o pensamento de Kristeva, o indivíduo verifica que o sentimento de estar estrangeiro habita

interiormente, daí negar a presença do outro é excluir uma parte de si mesmo. Acrescenta que,

quando “fugimos ou combatemos o estrangeiro lutamos contra o nosso inconsciente”

(KRISTEVA, 1994, p. 201).

Neste sentido, quando Luzilia revela a causa da morte da mãe do caçador, este

descobre outra parte da sua identidade, que se encontra, segundo Hall, “deslocada,” (HALL,

2003a, p.27) ou fragmentada:

60

[Luzilia]- Há coisas que te devo revelar. Primeiro, sobre a tua mãe, sobre a morte

dela.

(...)

[Luzilia]- A tua mãe morreu de kusungabanga.

[Caçador] No momento não entendi. Mas depois Luzilia explica: na língua de

Manica, o termo kusungabanga significa <<fecha à faca>>. Antes de emigrar para

trabalhar há homens que costuram a vagina da mulher com agulha e linha. Muitas

mulheres contraem infeções. No caso de Martina Baleiro, essa infeção foi fatal.

[Luzilia]- Rolando sabia. Foi por isso que matou o pai. Não foi um acidente. Ele

vingou a morte da mãe (COUTO, 2012, p.203- negritos nossos).

A violência recebida por Martina se assemelha a tantos outros casos de mutilação

genital, principalmente a circuncisão feminina em certas sociedades africanas. Segundo

informações do portal “Por dentro da África”22(24/02/2014), essa prática afeta milhares de

mulheres e meninas, que estão sujeitas a contrair várias infecções e até levar a morte. Em

alguns casos, “o processo consiste no corte da parte ou de toda a genitália e tem o objetivo de

eliminar o prazer durante o sexo (...). Outra versão, chamada “infibulação”, é a costura dos

lábios vaginais ou do clitóris.”23Para a embaixadora contra essa violência Waris Dirie, uma

somaliana, vítima da circuncisão feminina, esse ato não se enquadra em nenhum aspecto

cultural, pois é um crime que clama por justiça24.

Na trama, Mia Couto alerta sobre o abuso sexual e afirma que “um país em que as

mulheres só podem ser a sua metade está condenado a ter apenas metade do seu futuro”

(COUTO, 2009a, p.146). No próximo capítulo, exploraremos, com mais detalhes, os traumas

deixados pela violência contra as mulheres em Kulumani.

Ainda, com relação à revelação de Luzilia, Arcanjo, desnorteado com a crueldade do

pai, busca o consolo no rio da aldeia e conduz seu amor a percorrer com ele: “Afasto-me de

Luzilia, aproximo-me da escarpa para melhor espreitar o vale. Desde que cheguei a Kulumani

as águas do rio ganharam volume. (...) O rio não dorme nunca. Nisso ele se parece comigo”

(COUTO, 2012, p.204). Neste mesmo local, o caçador tenta provocar ciúmes em Luzilia ao

declarar que teve um caso amoroso com uma das moças da aldeia:

[Caçador]- Não vás já, Luzilia. Quero mostrar-te o rio. Depois levo-te de carro a

Palma.

***

(...) [Caçador]- Aqui, junto deste rio, namorei uma moça ...

[Caçador]- Esgrimo a esbatida lembrança como uma arma, movido por uma

absurda vontade de magoar Luzilia. E prossigo:

22 Reportagem do Portal por dentro da África (24/02/2014): “Mutilação genital feminina”. Disponível: http://www.personamulher.com/index.php?t=Mutila%C3%A7%C3%A3o+genital+feminina&secao=secoes.php

&sc=29&id=636&url=&sub=MA==. Acesso: 04/05/ 2014. 23 Idem. 24 Idem.

61

[Caçador]- Havia duas irmãs, sim, não me recordo dos nomes nem das caras.

Cheguei a dar uns beijos numa delas. Mas não me lembro de nenhuma. Talvez, se as

voltar a ver ... [Luzilia]- Os homens, os homens! Esse esquecimento nunca aconteceria a uma

mulher. Aposto que elas se recordam de ti.

[Caçador]- Confesso que, nessa altura, eu bebia muito e cheguei mesmo a consumir

essas aguardentes que se produzem por aqui.

[Luzilia]- E o que vinhas aqui fazer, neste fim do mundo?

[Caçador]- Vim matar um crocodilo perigoso.

[Luzilia]- E conseguiste? [Caçador]- Tens dúvidas dos meus dotes de caçador?

[Luzilia]- Nem sempre caçaste quem querias.

[Caçador]- Faço de conta que não escuto. Sigo o exemplo dos felinos que fingem

distrair-se antes de se lançarem sobre a presa. Já não sei lidar com Luzilia senão

como caçador (COUTO, 2012, p.203, 204 e 205- negritos nossos).

Luzilia não acredita na função de caçar de Arcanjo, pois ele não se assemelha em nada

aos homens, que impõem o poder. Visto pela própria atitude passiva diante da caça e da vida.

Decidida a tirá-lo desta função, ela corresponde ao sentimento do caçador, ao devolver a carta

que recebera na primeira sequência do Diário do caçador. Ela o convida para ficar juntos:

“Vamos para Kulumani, vamos para o teu quarto (...)- Tinhas razão, esta é a última caçada.

Porque eu te venho buscar...” (COUTO, 2012, p.206-207).

Na sétima sequência, o ato amoroso de Arcanjo e Luzilia permite uma transformação

interior. Na imagem da borboleta, “símbolo do sopro vital (...), renascimento” (CHEVALIER,

2009, p.139), eles conseguem concretizar o desejo reprimido. Em seguida, a cunhada o

convence de voltar à cidade. Entretanto, ao ouvir tiros vindos de Kulumani, o caçador

interrompe o seu regresso, por alguns momentos, para saber do ocorrido, restando para

Luzilia a espera do retorno do seu amor:

[Caçador] Escuto tiros, a meio da noite. Apetece-me sair de Palma, largar pela

estrada e procurar a origem dos disparos que parecem vir dos lados de Kulumani.

Mas estou preso, ancorado no chão onde acabei de amar como nunca amei. Junto a

mim dorme a única mulher do universo. (...) Luzilia espreguiça-se como se estivesse

nascendo. Há horas que a observo, na penumbra do quarto da pensão de Palma.

[Luzilia] - Há muito que me olhas?

[Caçador] - Desde sempre.

[Luzilia] - Pois eu acordei como se tivesse dormido desde sempre. E tu?

[Caçador] - Há pouco escutei tiros. Vinham dos lados de Kulumani. Tenho que ir.

[Caçador] Luzilia parece não ter escutado. Veste-se com esse vagar que só a

felicidade confere. Depois, volta a sentar-se e fala abraçada à almofada.

[Luzilia] - Sonhei com uma louca, uma que conheci, internada no meu hospital.

Sabes o que fazia?

[Caçador] A mulher recolhia borboletas, raspava-lhes as asas e metia-as num

frasco. O que fazia ela como esse pólen? Enchia a sua própria almofada. Dizia que

assim voava enquanto dormia.

[Luzilia] - Esta almofada deve estar cheia de pólen.

[Caçador] A chave da viatura balança na minha mão. Luzilia percebe a mensagem.

E sugere que eu regresse a Kulumani e depois a venha buscar. Ela quer dormir mais,

prolongar-se borboleta em busca de novas asas

(COUTO, 2012, p.225-226- negritos nossos).

62

2.2. O exílio do caçador- “Quero, sim, ausentar-me de mim. Dormir para não existir.”

Sou caçador, sei o que é perseguir uma presa. Toda a minha vida, porém, fui eu o

perseguido.

(COUTO, 2012, p.31)

Mesclando com os escritos de Mariamar, numa sequência de oito pares, encontra-se o

Diário do caçador: Arcanjo Baleiro. Na constituição do seu nome, constata uma situação

conflitante. Por um lado, a palavra Arcanjo mostra o significado de “anjo de ordem

superior”25, cujo o termo “anjo”26-do latim angelus e do grego ággelos- “o mensageiro de

Deus”, aquele que traz vida à Mariamar e a leva para longe da aldeia. Por outro lado, o

sobrenome “Baleiro” indica aquele que possui a “habilidade” com as balas da morte, mesmo

por diversas vezes, confessar a sua incompatibilidade com a profissão familiar, passada de pai

para o filho.

A sua primeira visita em Kulumani, há dezesseis anos, teve por motivo a caçada de um

crocodilo; já o seu retorno é movido pela caçada dos leões. O ofício herdado do pai traz

tormentos e uma impotência, pois toda a sua vida não foi o perseguidor, mas o perseguido.

Por tantas vezes, menciona a sua condição de órfão, de não ser amado, de ter o irmão no

Hospital Psiquiátrico; além disso, existe a necessidade de se afastar da cidade, Maputo. Esses

elementos configuram a sensação de estar “fora do lugar” (SAID, 2004, p.19).

Para Said, o exílio desencadeia “uma perda inesperada e indesejada” (SAID, 1995,

p.411), que pode ser ocasionada pelo afastamento da pátria ou sem que se tenha saído dela.

Faz a distinção, em Reflexões sobre o exílio (2003), entre os termos “refugiado”, “emigrado”,

“expatriado” e “exilado”. Segundo ele, “refugiado” envolve questões políticas e sugere um

grande número de pessoas, que precisam de ajuda internacional. O “emigrado” representa

uma situação ambígua, pois o indivíduo sai de seu país, ficando implícita a possibilidade de

escolha; pode viver em exílio, mas não é banido. Por sua vez, o “expatriado” mora

voluntariamente em outro país, por "motivos pessoais ou sociais” (SAID, 2003, p.54).

Finalmente, o “exilado” “está sempre deslocado (...), traz consigo um toque de solidão (...)”

(SAID, 2003, p.54). Para o exilado há uma necessidade de “reconstruir uma identidade a

partir de refração e descontinuidades” (SAID, 2003, p.52). Neste último exemplo, relaciona-

se com os protagonistas na trama, pois ambos expressam o amargo sabor de uma vivência

dilacerada, mas que pela escrita no diário, apresenta a possibilidade de reestruturar e repensar

a vida.

25 Retirado do site: http://www.priberam.pt/dlpo/arcanjo. Acesso: 28/04/2014 26 Retirado do site: http://www.significado.origem.nom.br/nomes/angelus.htm. Acesso: 28/04/2014.

63

Neste sentido, quando nos deparamos com Arcanjo, observa-se a sua condição de

exilado. Sentindo-se banido do ambiente da cidade, vai para Kulumani realizar sua última

caçada. Mesmo com o conflito de assumir novamente esta função, é, nesta aldeia, visto pelos

olhos dos moradores como aquele que vem de fora. Consegue, em algumas situações, sentir-

se em casa, já que nesta viagem de retorno, desenvolve um processo de auto-análise para

entender a sensação de deslocado.

Assim como Mariamar, Arcanjo percebe que sua insatisfação começa pela origem

familiar. Seu pai “o conceituado Henrique Baleiro (...) homem alto e austero (...) emigrante

das montanhas de Manica” (COUTO, 2012, p.33) vai para Kulumani e casa-se com a mulata

Martina Baleiro, o que provoca uma reação por parte dos mulatos e brancos, que não

aceitavam um “negro casar com alguém de outra raça. O casamento tornou-o ainda mais

solitário, arredado pelos negros e excluído por mulatos e brancos” (COUTO, 2012, p.33).

Esse contraste resulta na posição de seu lar, que afastada das demais moradias, ocupava a

posição das “margens do bairro, onde se acumulavam chuvas e doenças” (COUTO, 2012,

p.65).

A questão da identidade, mais uma vez, torna-se pertinente nos escritos de Mia Couto,

que alerta em Pensatempos, sobre a visão “estereotipada” criada pelo colonizador e a posição

dos moçambicanos:

A visão que temos da nossa História e das nossas dinâmicas não foi por nós

construída. Não é nossa. Pedimos emprestado aos outros , lógica que levou à nossa

exclusão e à mistificação do nosso mundo periférico. Temos que aprender a pensar e

sentir de acordo com uma racionalidade que seja nossa e que exprima a nossa

individualidade.

Fomos empurrados para definir aquilo que se chamam <<identidades>>. Deram-nos

para isso um espelho viciado. Só parece reflectir a <<nossa>> imagem porque o

nosso olhar foi educado a identificarmo-nos de uma certa maneira. O espelho

deforma o que trazemos amarrado no pulso. Pior que isso: amarra-nos o pulso. E

aprisiona o olhar. Onde deveríamos ver dinâmicas vislumbramos essências, onde

deveríamos descobrir processos apenas notamos imobilidade.

Em vez de tirarmos proveito das mestiçagens que historicamente fomos produzindo,

contentámo-nos com essa ilusão estéril que é a procura de identidades <<puras>>.

Trocamos um namoro produtivo por uma cruzada infecunda. Em nome da ciência se

esqueceram outras sabedorias, outras aproximações

(COUTO, 2005a, p. 156).

Ainda sobre sua família, Arcanjo descreve alguns momentos de convivência com os

pais. A presença paterna mostra a soberania masculina dentro da casa, principalmente com a

submissão de Martina. Mesmo na ausência do marido, devido ao trabalho, “a mãe (...) vestia-

se com o seu vestido mais elegante- na verdade, o único vestido que possuía- e fazia de conta

que escutava os ditados do ausente Henrique Baleiro” (COUTO, 2012, p. 67).

64

A única proximidade com o patriarca Baleiro, aquele que vem “das balas” (COUTO,

2012, p.31), está na profissão. Depois de tornar-se caçador, Arcanjo passa a compreender seu

pai, que longe de suas origens, considerava o mundo estranho e citava um “lamento saudoso”:

“- Lá onde nasci há mais terra que céu” (COUTO, 2012, p.33). Para o filho, ocupar esse

ofício é “ficar vazio. Isento de ser homem” (COUTO, 2012, p. 169). Dessa forma, ir à outro

lugar é a possibilidade de fazer um autoconhecimento, já que o seu universo atual mostra um

desconforto por não ter “mais ninguém para partilhar felicidades” (COUTO, 2012, p. 35). Isto

é visto, no momento do resultado do concurso, onde compartilha sua aprovação com uma

pessoa desconhecida: a rececionista:

[Caçador]- Venho saber do resultado do concurso. (...)

[Rececionista]- O senhor é o próprio caçador? [Caçador]- Eu sou o último caçador. E esta é a minha última caçada.

[Caçador]- A funcionária olha o teto como um astrónomo contempla o céu ao meio -

dia. Abre à minha frente um envelope enquanto volto a falar, eufórico, certamente

para adiar o momento da revelação:

[Caçador]- Não sei por que publicaram o anúncio. Já não há mais caçadores. Há

quem ande por aí aos tiros. Esses não são caçadores. São matadores, todos eles. E

eu sou o único caçador que resta.

[Rececionista]- Arcanjo Baleiro? É esse o seu nome?

[Caçador] - Sou o único que resta, repito sem responder à pergunta. E prossigo o

meu delirante discurso. Não tarda, afirmo, que não sobrem animais esses falsos

caçadores não poupam nem fêmeas grávidas, não respeitam os períodos de defeso,

invadem os parques e as reservas. Gente poderosa fornece-lhes as armas e tudo, para

esses matadores, se resume à sagrada trilogia: arma, dinheiro e poder. (...) [Rececionista] - O seu nome é Arcanjo Baleiro? Pois o senhor vai poder caçar à

vontade, foi você que ganhou o concurso.

[Caçador]- Posso entrar no seu gabinete? Quero dar-lhe um beijo.

[Caçador]- Com inesperada ligeireza, a mulher ergue-se sobre o balcão e espera de

olhos fechados, como se o meu beijo fosse o único prémio de toda a sua vida

(COUTO, 2012, p.33-34- negritos nossos).

Ao assumir este compromisso, constata que sua função de caçador também está em

desacordo com a realidade, uma vez que se considera distintos dos demais caçadores:

primeiro, por considerá-los matadores, segundo, por não compartilhar a “trilogia: arma,

dinheiro e poder” (COUTO, 2012, p.34) e terceiro, por conhecer os limites da caçada. Por

isso, quando inicia a viagem para Kulumani, com o escritor Gustavo Regalo, Dona Naftalinda

(a primeira-dama) e Florindo Makwala, Arcanjo discute com o administrador os reais

interesses da captura dos leões e apreende que o político visa apenas benefícios próprios.

Esta crítica a hipocrisia dos administradores é recorrente nos textos de Mia Couto.

Segundo Ana Mafalda Leite, na obra do escritor moçambicano “se faz a crítica aos poderes,

(...) à corrupção (...)” (LEITE, 2003, p.59). Como, por exemplo, em O último vôo do

Flamingo, o personagem corrupto Estêvão Jonas dizia que não abusava do poder, “os outros é

que não detinham poderes nenhuns” (COUTO, 2005b, p.18). Nesta trama, o caçador adverte

65

que não vai tirar vantagens, nem colaborar com os planos de Florindo e explica-lhe que há

diferença entre caçar e matar:

[Caçador] Regressados ao carro, o administrador corre a inspecionar a carga: uma

dezena de cabritos comprimidos na bagageira. Os bichos parecem tranquilos, com

essa estúpida bonomia dos ruminantes.

[Naftalinda]- Não é melhor amarrá-los? - pergunta dona Naftalinda.

(...)

[Florindo]- Não esqueça, camarada caçador: um destes animais é isco para o leão.

Escolha o que quiser.

[Caçador] - Há aqui um equívoco, caro administrador. Aliás, vários equívocos.

Primeiro, eu não seu camarada. E depois, mais importante ainda, eu não caço com

isco. Sou um caçador, não sou um pescador.

[Florindo]- Pois faça como quiser. A verdade, porém, é só uma: seja a pescar, seja

a caçar, o senhor tem que eliminar esses leões. Faz parte das minhas metas

políticas.

[Caçador] Os comedores de gente são para ele um assunto político.

[Florindo]- Os meus superiores -. relembra com ênfase -, deram instruções bem

claras: o povo vota, os bichos não. Há que eliminar rapidamente estes motivos de

queixa das comunidades - e retoma a ordem sumaria: - Tem que os matar.

[Caçador]- Não os vou matar. Disso pode ter a certeza- respondo.

[Florindo]- Como diz?

[Caçador]- Sou um caçador. Eu não mato, eu caço.

[Florindo]- E não é a mesma coisa?

[Caçador]- Para si, talvez. Para mim é completamente diferente. E deixe-me dizer

uma coisa antes de chegarmos à aldeia. Não fui contratado pela administração. Só

devo obediência a quem me paga. (COUTO, 2012, p.72, 73 e 74- negritos nossos).

Segundo Mia, o “caçador” foi “inspirado numa figura real”27, no qual conviveu em

Cabo Delgado, mas cita que a história “é toda ficcional”28. Dessa experiência, o escritor

moçambicano ressalta que transcreveu para a obra a relação que ouvia sempre: a diferença

entre “caçar e matar”. Em entrevista29, Couto menciona que quando o caçador e a caça se

fitam, há uma troca de posição: o caçador se animaliza e a caça se humaniza. Neste momento,

o caçador é capaz de ler o chão que habita e sente-se prisioneiro. Na trama, esta relação

acontece, pois Arcanjo revela que matar não é o que fascina, mas o encontro “com o esquivo

milagre, o fugaz e irrepetível momento” (COUTO, 2012, p.171-172). Tal posicionamento

torna-se expressivo, ao descrever o contato com a leoa:

O animal não se dá por assustado, como se aguardasse esse encontro. Sem pré-aviso,

lança-se ao ataque, e, num ápice, vence a distância que nos separa. Mais inesperado

que a carga da leoa é o meu próprio grito: - Deus me ajude!

(...)

Mas eis que, de repente, a leoa suspende a carga. Surpreende-a, quem sabe, não me

ver correr, espavorido. Está frente a mim, com os seus olhos presos nos meus.

27COUTO, Mia. “Mia Couto fala sobre ‘A confissão da leoa’”. Entrevista a Leonardo Cazes. Jornal O globo. 10

de novembro de 2012. Disponível: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2012/11/10/mia-couto-fala-sobre-

confissao-da-leoa-474310.asp. Acesso: 15/04/2013. 28 Idem. 29 COUTO, Mia. “Entrevista”. Programa da TVE- programa Roda Viva- 05/11/2012. Disponível:

http://www.youtube.com/watch?v=kCbKtYTxOks. Acesso: 20/12/2013.

66

Estranha-me. Não sou quem ela espera. No mesmo instante deixa de ser leoa.

Quando se retira já transitou de existência. Já não é sequer criatura.

(...)

Sou o oposto do caçador tradicional que, de véspera, sonha o animal que vai matar.

No meu caso, sonho-me a mim mesmo, ganhando a apenas depois de ter sido morto

por bravias criaturas. Essas feras são agora os meus monstros privados, a minha

mais dileta criação. Nunca mais deixarão de ser meus, nunca mais deixarão de

passear pelas minhas noites. Porque afinal, sou eu o seu domesticado prisioneiro

(COUTO, 2012, p.168, 169 e 170).

Em outra cena, Florindo já insatisfeito com a demora do resultado da caçada contrata

Maliqueto e Genito para ajudar o caçador. Na verdade, seu objetivo era não ser arriscar

politicamente, já que esperava uma promoção, dessa forma menciona que se fosse preciso

usaria “outros métodos”:

(...) Florindo aproxima-se de mim para anunciar que as espingardas chegarão no dia

seguinte.

- Você vai ter reforços.

- Não preciso. Eu apenas preciso de mim. Guarde essas armas para outros fins.

Para combater os caçadores furtivos, por exemplo.

- Maliqueto e Genito vão receber armas e ficarão sob seu comando.

- Não vou comandar ninguém. Se quiser criar uma outra equipa, tudo bem. Mas o

que eu tenho que fazer, vou fazer sozinho.

A discussão adensa-se. Os presentes afastam-se em sinal de reprovação. Aquele não

é, certamente, o nem o lugar nem o momento oportuno. Mas o administrador está

demasiado exaltado:

- Sabe quanto é que arrisco politicamente? Eu que tanta fé fazia nesta caçada para

a minha promoção? Você quer o quê, que eu me envolva nos outros métodos?

O escritor puxa-nos para longe da igreja. É ele quem retoma o diálogo:

-Não entendo, caro Makwala. O que quer dizer com «outros métodos»?

(COUTO, 2012, p.196)

Ainda em diálogo com o administrador, o caçador suscita reflexões políticas e

pessoais, e passa a reparar que, assim como a aldeia, ele também precisa de alguém que

impulsione um novo caminho ou de algo que provoque a mudança. Isto é visto com a

presença do verbo “salvar”. Para Florindo, “salvar o povo” se resume na projeção de uma

quantidade elevada de votos. Já para o caçador, a salvação depende de Luzilia, que o

impediria de realizar a caçada:

[Caçador] Retomamos a viagem e, num ápice, uma nuvem de pó volta a desordenar

a milenar quietude da savana. O administrador percebe que deve recuar no con fronto

comigo. A presença do escritor de renome é uma oportunidade soberana para puxar

lustro à sua imagem. Displicente, afirma como se pensasse em voz alta:

[Florindo]- Matar ou caçar, o que importa é que as pessoas possam voltar às suas

atividades diárias. Para lutarem contra a pobreza absoluta.

[Caçador] O homem já não fala. Discursa. E anuncia que a expedição, dirigida pelo

seu partido, irá salvar as pessoas da condenação à miséria. Usa o grande verbo:

salvar. Pelo espelho do carro, vou olhando o esvoaçar da poeira e uma doce

sonolência me invade: como eu queria ser salvo! Deixar-me soçobrar, como um

afogado, nos braços de um salvador. Emendo, de uma salvadora, Luzilia.

***

67

[Florindo]- Quando você for caçar, eu vou consigo, camarada Arcanjo - declara o

administrador.

[Caçador]- Na caça ninguém vai com ninguém - respondo. (...)

[Florindo]- Preciso que o meu povo me veja, que me vejam trazendo o troféu de

volta à aldeia (COUTO, 2012, p.74- negritos nossos).

A repulsa pelo comportamento do político se intensifica quando observa as palavras

contraditórias. Depois da morte dos leões, Florindo “confessa que vai abdicar do cargo.

Voltará a ser professor. Não é uma escolha, é uma renúncia” (COUTO, 2012, p.228), pois,

segundo o administrador, com a presença da esposa Naftalinda, não tinha como encobertar os

problemas da aldeia, principalmente relacionados à violência contra as mulheres, desse modo,

afirma que denunciaria a violência feita em Tandi. Contudo, quando inicia o registro dos

noticiários da nação, o político, para manter a sua imagem, exige uma foto com o pé em cima

do leão morto, como garantia do problema ter sido resolvido. Segundo Guy Debord “O

espetáculo é um discurso ininterrupto que a ordem atual faz a respeito de si mesma, seu

monólogo laudatório. É o auto-retrato do poder na época de sua gestão totalitária das

condições de existência” (DEBORD, 1997, p. 20). O administrador prefere o registro do leão

e não da leoa, como marca da exclusão feminina. Além disso, nesta fotografia, ele pretende

preservar a memória dos “vencidos”, isto é, a visão do dominador sobre o dominado:

A leoa tinha sido morta junto à estrada. (...) Restava o macho, que se apresentava

imponente. Por essa razão, o administrador pediu que se fotografasse não a leoa mas

o leão: a imagem renderia mais nos noticiários da nação.

***

(...)

- Fotografe-me a mim, junto com o troféu- insiste o administrador, perfilando-se,

garboso, com um pé por cima do animal. Ilusão que não desfaço: o que ali estava já

não era um leão. Era um despojo vazio. Não era mais que uma descartada casca,

uma pele recheada de nada (COUTO, 2012, p.247).

O olhar de Arcanjo para os acontecimentos da aldeia perpassa a dor e o medo de tantas

pessoas devoradas pelas feras e desamparas pelos políticos, daí afirma que este território é

mais órfão do que ele. Mesmo que se identifique com os aspectos da região, os habitantes

locais o tratam como estrangeiro, no sentido literal do termo, aquele que vem de fora.

Neste ser viajante, que afirmava várias vezes não está “em lugar nenhum” (COUTO,

2012, p.63), mesmo no aeroporto com tanta gente, acreditava não encontrar ninguém, há uma

afinidade com território: seja por se solidarizar com os leões, a ponto de deixar-se transformar

por eles e cita que “os olhos humanos roubam-me a alma, quanto mais humano o olhar mais

eu me converto em bicho” (COUTO, 2012, p.68), seja por desejar permanecer com a poeira

de Kulumani, como visto no conselho ao escritor: “É melhor ficar assim para o seu corpo

68

começar a habituar-se à terra. Habituar-se a ser da terra, a ser desta terra” (COUTO, 2012,

p.72). Além disso, é no rio da região, que leva Luzilia e abre-lhe a oportunidade de algo novo,

pois afirma que “a vida é espera do que pode ser vivido” (COUTO, 2012, p.207).

Sua volta à aldeia, depois de dezesseis anos, ao mesmo tempo, mostra uma

familiaridade pelo lugar, mas também cria uma sensação de que algo foi deixado para trás;

contudo, sem ter certeza exatamente o que era. Isto é perceptível, em algumas passagens,

como, no diálogo com Hanifa, o caçador afirma que queria desculpar-se de “uma eventual

indelicadeza” (COUTO, 2012, p.103); no contato com Genito, que o ajudaria na caçada,

Arcanjo nota “um ressentimento, uma mágoa” (COUTO, 2012, p.104); e no sonho com “uma

jovem negra, bela. É uma moça local que sorri junto a um rio. Permanece sem rosto”

(COUTO, 2012, p.102). Essas situações, que remetem ao passado, serão trabalhadas no

próximo capítulo, no qual veremos o jogo entre lembrar e esquecer.

Ainda com relação esta presença do caçador na aldeia, em uma das cenas da reunião

na shitala, “o alpendre no centro da aldeia” (COUTO, 2012, p.110), os homens da comitiva

da caça tentam participar do encontro com os mais velhos de Kulumani. Entretanto, o próprio

administrador local, não tem poder, onde prevalece a tradição. Já o caçador e o escritor notam

o sentimento de não-pertencimento aos hábitos da região, seja pelo relacionamento afetivo ou

pelo modo de comerem.

[Caçador] (...) Florindo Makwala preferia que fosse num outro lugar, mais

moderno, menos comandado pela tradição. Mas o escritor insistiu: de uma assentada

colocaria em confronto as mais diversas interpretações sobre os ataques dos felinos.

(...)

[Caçador] Por fim, aparece Florindo Makwala, acompanhado pelo seu guarda-

costas e um secretário que segura uma pasta. Um camponês idoso ergue-se, com

reservado respeito, e recebe o adminis trador com as seguintes palavras:

[Um camponês idoso]- Nunca o vimos aqui, nesta shitala. Bem-vindo ao umbigo da

aldeia. Sente-se, mas saiba que aqui falamos nós primeiro...

[Florindo]- Muito bem - admite o administrador- Depois, no final, eu encerro a

sessão...

(...)

[Caçador] O velho espera que Florindo se instale e, de imediato, nos confronta, a

mim e a Gustavo, mãos nas ancas:

[Um camponês idoso]- Por que nos estão a visitar?

[Escritor]- Não vos informaram? - admira-se o escritor.

[Um camponês idoso]- Queremos saber por que nos escolheram a nós.

(...)

[Um camponês idoso]- Os outros, das outras aldeias, que não foram visitados,

queixar-se-ão. Seremos vítimas, dessa inveja, e nós, que já estamos a morrer, ainda

mais, por vossa culpa.

[Caçador]- Não podemos visitar toda a gente­ argumento eu, juntando-me aos

esforços de Gustavo Regalo. - E que conversa é esta? Estão a morrer pessoas, todas

as semanas há mais uma vítima.

[Um camponês idoso]- O tempo não tem corrida. As pernas do tempo estão em nós

mesmos. Além disso, agora é que vão morrer ainda mais pessoas. Visitando

Kulumani, vocês estão a chamar os leões matadores.

69

[Caçador]- Se vocês não me querem, vou-me embora ­ afirmo, levantando-me da

cadeira. - Hoje mesmo regresso à capital.

(...)

[Um camponês idoso]- Nenhum dos dois é casado?!

[Caçador] De súbito, se reinstala a suspeição: tão homens e tão solteiros? Só

podíamos ser feiticeiros, só eles permanecem solitários a vida inteira.

[Um camponês idoso]- Desculpem duvidar, mas os senhores vivem na ideologia de

Deus?

[Caçador] O idoso volta à carga. Comenta o fato de nos termos recusado servir da

panela grande. Quem neste mundo, nega semelhante convite?

[Um camponês idoso]- Enganam, irmãos. Esses, brancos, comem carne branca

todos os dias. É essa gula que vai acabar com o mundo.

[Camponês II]- O problema - corrige um outro camponês -não é o que eles comem,

mas como comem.

[Escritor]- O que quer dizer? - pergunta Gustavo.

[Camponês II]- Vocês comem sozinhos. Quem faz isso são os feiticeiros.

[Caçador] E o homem amassa com a mão um naco de shima, passa-o

demoradamente no esparregado de couves e deixa-o pingar antes de o levar à boca.

[Camponês II]- Os que comem sozinhos escondem alguma coisa. Pode ter a

certeza, senhor caçadeiro, não somos que estamos a receber-vos mal. Vocês é que

chegaram mal (COUTO, 2012, p.110, 111, 112 e 113- negritos nossos).

Outra situação que sucede é a dança dos homens para a caçada coletiva, na qual

Arcanjo, a princípio, deseja participar, mas por ser da cidade não pode compartilhar da

tradição da aldeia, mesmo que, em algumas situações, como no contato com o rio, sinta-se

pertencente à terra. Na verdade, a sua integração não acontece, pois ao saber das revelações

de Naftalinda sobre o abuso dos homens, ele reconhece que não faz parte do vínculo dos

matadores da aldeia, por isso apenas acompanha de longe a exibição deste ritual.

O dilema do exilado, segundo Said (2003), ao retomar Simone Weil, é a necessidade

de ter raízes. Nosso protagonista procura a todo momento seu espaço, pois sua vida de solidão

em Maputo provoca desconforto; por isso, quando decide ir à Kulumani, é uma tentativa de

inserir-se em algum lugar. Contudo, fazer parte da aldeia para ele não significa agir da mesma

forma que os homens da região. Dessa forma, Arcanjo torna-se também semelhante com a

vivência de muitas mulheres, já que desencadeia a experiência do exílio:

[Caçador] Naftalinda Makwala vem ter connosco, ao fim da tarde, para nos avisar

de que algo se está a preparar na aldeia. E que ficássemos atentos, mas que não

saíssemos de casa nem nos expuséssemos. Devíamos espreitar, sem sermos vistos . [Naftalinda]- Se saírem correm um perigo de morte!

[Escritor]- O que se passa? - aflige-se o escritor, levantando a cortina da janela.

[Naftalinda]- Escritor Gustavo? Saia daí! O senhor não pode assistir.

[Caçador] A primeira-dama chama-me para um canto e coloca-se à minha frente,

espremendo as suas generosos nádegas de encontro ao meu corpo. Daquela janela

espreitaríamos a praça à nossa frente.

[Naftalinda]- Os homens já estão a chegar. Fique aqui, junto de mim - disse ela.

[Caçador] O ritual que precede a caça coletiva, o kuyola liu, está prestes a começar.

A praça prepara-se para receber as duas dezenas de homens que, de madrugada se

irão lançar na perseguição aos leões. Como eu queria estar mais presente, quem me

dera eu pudesse participar do ritual! Naftalinda entende a minha desilusão:

[Naftalinda]- Você é como eu, que sou mulher: ficamos de fora. Façamo-nos

companhia. Não estamos bem aqui, nesta sombra?

70

[Caçador] Sombra? Dentro de casa reina a escuridão. Lá fora extinguem-se as

últimas réstias do dia. O ritual foi convocado de emergência. Os chefes das famílias

querem ser eles, os da terra, a afastar a ameaça que pesa sobre a aldeia. Não querem

entregar-me a mim, um estranho, os louros dessa batalha contra as mais poderosas

forças invisíveis.

[Caçador] Juntaram-se os homens de Kulumani e mais uns de outras povoações

vizinhas. Cada um trouxe um arco, uma espingarda, uma catana, uma rede.

Coletaram alimento e água que carregam em cantis e sacolas. Aglomeram-se no

pátio em redor da shitala e parece não existir nenhum guião para o evento, nenhuma

hierarquia entre eles. Enxotam os cães que começam a ficar excitados com a

movimentação. Um jovem quer-se juntar ao grupo, é prontamente afastado. Ele não

cumpriu os rituais de iniciação. Aos poucos, como se houvesse um oculto mestre-de-

cerimónias, vão despontando cantos e ensaiam-se tímidos passos de dança.

(...)

Durante um tempo os homens dançam e, à medida que rodam e saltam, vão

perdendo o tino e, em pouco tempo, desatam a urrar, rosnar e sujar os queixos de

babas e espumas. Então percebo: aqueles caçadores já não são gente. São leões.

Aqueles homens são os próprios animais que pretendem caçar. Aquela praça

apenas confirma: a caça é uma feitiçaria, a última das autorizadas feitiçarias

(COUTO, 2012, p.143, 144, 145 e 147- negritos nossos).

Ainda sobre esta dança local, o caçador constata que muitas das respostas para o

ataque dos leões não são entendidas por razões humanas, e, sim, consequências dos

comportamentos dos habitantes da aldeia. Assim, quando visualiza, a partir do ritual, a

transformação dos homens em leões, retoma as palavras de Naftalinda que dizia que o “leão

está dentro da aldeia” (COUTO, 2012, p.149). Isto é, os homens, que dizem defender a

população, são os mesmos que praticam abusos sexuais, como o caso da empregada Tandi.

Para o administrador, a preocupação gira em torno da disputa da captura dos leões

com os homens da aldeia, porque para ele, essa caçada deveria partir da sua expedição:

“temos que resolver isto rapidamente. Não gosto do ambiente que se está a gerar” (COUTO,

2012, p.149). Diante dos conflitos internos, as mortes continuam acontecendo e nada é

resolvido.

Em outro momento, quando a comitiva da caça está na floresta, o caçador deixa

Florindo e Gustavo na viatura e decide andar pelos arbustos. Assim, para provocar medo e

apoiar os argumentos de Naftalinda, de que os grandes responsáveis pelos problemas, na

aldeia, são os homens, Arcanjo dá um tiro para o alto e corre com velocidade, deixando os

dois especulando sobre a razão da infelicidade em Kulumani:

[Escritor]- O que aconteceu, Arcanjo? - pergunta, tremendo, o escritor.

[Caçador]- Não posso contar.

O administrador mantém-se calado. Se não posso nomear o motivo do susto, então o

que acabou de ocorrer escapa à razão humana. Chegados à aldeia, retiro -me sem

palavra. Do quarto, escuto a conversa entre Florindo e Gustavo:

[Administrador] - Que raio de coisa terá acontecido?

[Gustavo]- Como posso saber?

[Administrador]- Já começo a padecer das crenças dessa pobre gente. Quem sabe

ele viu uma coisa dessas...

71

[Gustavo]- Uma coisa dessas?...

[Administrador] - Sim, por exemplo, a serpente coxa.

(...)

[Administrador] O administrador é mais explícito: há na aldeia uma serpente que

circula pelo silêncio dos tetos e pela lonjura dos caminhos. Essa peçonhenta criatura

procura as pessoas felizes para as morder e as envenenar, sem que elas se apercebam

nunca. Esta é a razão porque, em Kulumani, todos padecem da mesma infelicidade.

Todos têm medo, medo da vida, medo dos amores, medo até dos amigos. Uns

chamam a esse monstro de «diabo». Outros chamam-no de shetani. A maior parte,

porém, chamam-no de «serpente coxa». O escritor interrompe a longa narrativa: [Escritor]- Desculpe, meu caro administrador, mas para mim, essa serpente

somos nós mesmos (COUTO, 2012, p.152-153- negritos nossos).

Para o administrador é mais fácil admitir que os problemas da aldeia sejam causados

por seres não humanos; por isso, utiliza a imagem da “serpente coxa”. Assim, livra-se da

responsabilidade em punir os culpados, que violentam as mulheres. Contudo, Arcanjo, em

contraponto, começa a entender as situações de forma diferente. Depois de ser alertado

diversas vezes por Naftalinda, ele compreende os perigos causados pela violência masculina,

dessa forma, apóia as palavras do escritor de que as serpentes, na verdade, são os homens da

aldeia.

Interessante como Mia Couto articula duas imagens importantes para os costumes

moçambicanos30: o leão e a serpente. O leão representa a sociedade patriarcal do Sul, de

Moçambique; mas, na trama, a região de Kulumani (Norte) privilegia a imagem do leão, tanto

na metamorfose das mulheres, que se tornam leoas, quanto dos homens. Enquanto a

cobra/serpente, que representa a imagem da sociedade matriarcal do Norte, aparece na figura

do medo proporcionado pelos homens. Dessa forma, as transformações das mulheres em leoas

e dos homens em leão ou serpente deixam transparecer uma das características das obras

miacoutianas apontadas por Ana Mafalda Leite, que é a marca da “metamorfose”, isto é, a

ação e comportamento dos personagens que revelam o sentido “simbólico-didácticos-

múltiplos” (LEITE, 2003, p.64). Isto é, a presença dessas imagens funciona como alertas

importantes para as contradições e os impasses sociais. Segundo Ana Mafalda Leite, a

narrativa miacoutiana “fornece-nos elementos para o entendimento não só da narrativa

principal, mas outra matéria suplementar de informação formadora, crítica e moralizante”

(LEITE, 2013, p.189-190).

Cabe ressaltar que essas imagens ajudam a compor os argumentos, tanto de Mariamar,

quanto de Arcanjo, para tentar desconstruir os relatos dos poderosos. Segundo Fonseca e

30Observações das aulas ministradas pela professora Carmen Lúcia Tindó R. Secco, no curso de mestrado- Afeto,

Memória e História nas Literaturas Africanas, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2013/ I.

72

Cury, ao retomar uma das conferências de Mia Couto proferida na UFMG (03/07/2007), os

personagens de fronteira ou deslocados se afirmam “com mais radicalidade o projeto literário

do escritor que, na invenção de estórias, percebe (...) a construção de uma possibilidade de

futuro” (FONSECA e CURY, 2008, p.119). Acrescentam ainda que:

Não se trata, contudo, de supor uma superação dos conflitos característicos do pós-

independência, mas de acreditar na força de recuperação da terra, do homem. É a

partir das ruínas das guerras (...) que se constrói em germe o espaço de pertença, nas

palavras do próprio escritor, “ensinando pela ficção, garantindo aos moçambicanos

que são eles os fazedores de estórias e os construtores do futuro ”

(FONSECA e CURY, 2008, p.119).

Desse modo, o caçador é a imagem masculina possível de reconstrução, uma vez que,

é diferente dos demais homens da aldeia. Assim, torna-se um receptor das confissões das

mulheres em Kulumani, como visto, em Hanifa Assulua, que revela para ele a identidade das

leoas e também em Naftalinda, que o elogia e pede-lhe para levar Mariamar da aldeia:

[Naftalinda]- Você é um homem bom, faz-me lembrar Raimundo, o cego da aldeia.

Há qualquer coisa semelhante em vocês os dois, qualquer coisa estranha ...

[Caçador]- Estranha?

[Naftalinda] - Esse cego anda e ciranda pela noite, dorme ao relento e sempre foi

poupado pelos leões. Sabe por que é que ele nunca foi atacado?

[Caçador]- Não me diga que é um dos tais leões-homens?

[Naftalinda]- Ao contrário. É porque ele é, entre todos os da aldeia, o único que é

completamente pessoa, completamente humano. Tal e qual você, nosso caçador ...

(COUTO, 2012, p.227-228- negritos nossos).

Cumprindo sua palavra, Arcanjo conduz Mariamar para Maputo. O reencontro entre

eles acontece, no final do romance, apenas na troca de olhares, já que a voz da moça é

suspensa. Durante o caminho, percebe que, além do novo contato com uma das leoas e de

proporcionar a ela a chance de se cuidar e de ser feliz longe da aldeia, ele suspira que, em

Palma, aguarda-lhe a mulher que toda a sua vida esperou: Luzilia. Cabe ressaltar que há um

mistério se Arcanjo realmente retornou para buscar Luzilia e se deixou Mariamar internada no

hospital. Interessante, nas obras de Mia Couto, é este olhar suspenso, que nos provoca a

analisar as várias possibilidades para o desfecho, como na seguinte passagem:

[Caçador]- Falei com o administrador. Eu levo-a comigo. Mas a senhora vai ficar

aqui sozinha?

[Hanifa]- Tenho campas para tomar conta.

[Caçador]- A sua filha virá visitá-la. [Hanifa]- Mariamar não pode voltar. Nunca mais. Seria morta pelos vivos,

perseguida pelos mortos.

***

(...)

[Caçador] Naquele momento estou rodeado de deusas. De um e do outro lado da

despedida, naquele rasgar de mundos, são mulheres que costuram a minha rasgada

história. Contemplo as nuvens, que caminham com o pesado e torto passo da

73

gravidez. Não tarda que chova. Em Palma, aguarda-me a mulher que toda a

minha vida esperei.

***

Já instalado na viatura, com Mariamar sentada a meu lado, despeço-me de forma

desajeitada.

[Caçador]- Adeus, Hanifa.

(...)

[Caçador]- Olho em redor como se vigiasse a paisagem. É a última vez que

contemplarei Kulumani. Será a última vez que escutarei aquela mulher (...)

(COUTO, 2012, p.248, 250 e 251- negritos nossos).

Tanto Mariamar, quanto Arcanjo, na condição de indivíduos exilados, buscam a partir

do autoconhecimento reconstruir sua vida. Neste percurso, retoma-se um dos elementos

fundamentais: o mecanismo da memória. Ao buscar nas lembranças o preenchimento dos

vazios existenciais, as experiências do presente são reelaboradas, criando possíveis

alternativas na travessia dos medos, dos traumas e das perdas. De que maneira o passado é

reelaborado pela memória? Para o ser exilado, qual é o momento mais adequado para falar e

calar? Esses e outros apontamentos serão trabalhados no próximo capítulo.

74

3. EXÍLIO E MEMÓRIA: O RETRABALHAR DAS LEMBRANÇAS PELA

CONFISSÃO

- Estar perdido é bom. Significa que há caminhos. O grave é quando deixa de haver

caminhos.

(COUTO, 2012, p.151)

Como gerir o passado? Quando fazer a memória emergir? Ou será que “todas as

práticas do passado são recomendáveis?” (TODOROV, 2002, p.12). Questionamentos

pertinentes para Todorov, que nos impulsiona a analisar o processo de construção da memória

nos personagens exilados. Tal temática é recorrente e instigante nos escritos de Mia Couto;

por isso retomá-la “significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no

momento de um perigo” (BENJAMIN, 1994, p.224).

O filósofo Todorov, em O homem desenraizado, partindo das consequências do

regime totalitário, formula algumas observações de como retrabalhar a memória. Menciona

que “toda sociedade tem um dever com relação a seu passado” (TODOROV, 1999, p.75).

Entretanto, alerta que, nem “todas as lições do passado sejam igualmente recomendáveis”

(TODOROV, 1999, p.75), uma vez que, a comunidade prefere lembrar apenas os

acontecimentos vitoriosos ou quando foram vítimas inocentes, o que só favorecem uma

cegueira com relação ao presente. Por isso, afirma que:

as páginas menos gloriosas de nosso passado seriam as mais instrutivas, se nós

aceitássemos lê-las inteiramente. O passado é benéfico não quando alimenta o

ressentimento ou o triunfalismo, mas quando seu gosto amargo nos leva a

transforma-nos a nós mesmos. Um povo deve recuperar seu passado não para

repeti-lo nem para legitimar suas reivindicações presentes - conduzindo assim ao

ciclo interminável de vinganças e represálias; as guerras balcânicas são um bom

exemplo dos desastres provocados por uma memória estritamente literal-, mas para

encontrar ali uma lição para o futuro; para tentar meditar as injustiças do passado,

reanimar o próprio ideal da justiça. Não há dúvida de que se deve começar por

conhecer o passado (TODOROV, 1999, p.75- negritos nossos).

Articulando com a citação anterior, em sua outra obra Memória do mal, tentação do

bem: indagações sobre o século XX, o búlgaro menciona dois paradoxos na retomada do

passado. No primeiro, problematiza que o sujeito tem o livre arbítrio de não reatar os

acontecimentos dolorosos, dando preferência ao “esquecimento à memória do mal”

(TODOROV, 2002, p.203), já que esse sentimento pode levá-lo a reação de vingança, o que

mostra como “a memória da violência passada alimenta a violência presente” (TODOROV,

2002, p.201). No segundo, o ato de reaver alguns episódios do passado significa uma

libertação. Exemplifica casos de indivíduos que, intoleráveis por algum motivo a fatos da sua

infância, não conseguem viver tranquilamente. Dessa forma, o pensador reitera a proposta do

75

trecho destacado anteriormente, em O homem desenraizado, de que a transformação interior

só é possível quando rearticula questões conflitantes. Retoma o pensamento de Pierre Nora-

historiador francês contemporâneo conhecido pelos trabalhos sobre a memória- para

argumentar sobre a necessidade de lidar com as lembranças dolorosas e para reforçar um dos

objetivos da psicanálise que não visa “encerrar definitivamente a pessoa no repisamento do

seu passado, mas sim libertá-la dele” (NORA apud TODOROV, 2002, p. 203).

Assim, para Todorov, “o bom uso da memória é aquele que serve a uma justa causa, e

não aquele que se contenta com reproduzir o passado” (TODOROV, 2002, p.204). Adverte

que algumas comemorações ritualísticas desviam a atenção das pessoas para as urgências do

momento presente, pois utilizam os acontecimentos apenas para confirmar “a imagem

negativa dos outros ou sua própria imagem positiva” (TODOROV, 2002, p.206). Acrescenta

que retomar com minúcia os fatos do passado cria mecanismos de vigilância e de atenção para

os perigos atuais. Neste ponto, retomamos um dos pensamentos de Bergson (2006), que

menciona como o passado deve ser útil ao momento presente. Isto é, que erros anteriores não

se repitam, até porque a medida que certas condutas voltam, como por exemplo, a exclusão ou

a violência, configuram outras formas e outras vítimas.

Ainda com Todorov, o teórico evidencia que o passado pode deixar dois tipos de

rastros: uns, na mente dos seres humanos sob forma de lembranças; outros no mundo sob a

forma material (cartas, decretos). Para ele, não há como reconstituí-lo integralmente, pois há

sempre uma interação entre lembrar e esquecer. Aponta que a dificuldade em retomá-lo, se

encontra, no nível coletivo: o uso da manipulação, por parte das tiranias em tentar eliminar os

vestígios da violência ou controlar os registros, o que contribui para a criação de uma outra

versão para a História e leva ao “esquecimento parcial ou orientado” (TODOROV, 2002,

p.149). Já a outra complicação se apresenta, no nível individual: a memória passa por um

processo de seleção, onde alguns detalhes serão “conservados, outros, afastados, logo de

início ou aos poucos, e portanto esquecidos” (TODOROV, 2002, p.149). Este processo

seletivo, na qual as lembranças passam, aparece na forma: involuntária ou voluntária:

(...) não basta buscar esse passado para que ele se inscreva mecanicamente no

presente. De todo modo, subsistem apenas alguns sinais, materiais e psíquicos,

daquilo que aconteceu: entre os fatos em si mesmos e os sinais que eles deixam,

desenrola-se um processo de seleção que escapa à vontade dos indivíduos. Agora, a

isso se acrescenta um segundo processo de seleção, consciente e voluntária desta

vez: de todos os sinais deixados pelo passado, escolheremos só reter e só consignar

alguns, julgando-os, por uma razão ou por outra, dignos de ser perpetuados. Esse

trabalho de seleção é necessariamente secundado por outro, de disposição e portanto

de hierarquização dos fatos assim estabelecidos: alguns serão destacados e outros,

lançados à periferia (TODOROV, 2002, p.143).

76

Observa-se em Fora do lugar: memórias, Said compõem as “peculiares lembranças,

experiências e sentimentos” (SAID, 2004, p.16) de sua vida. Em alguns momentos, ele deseja

lembrar; em outros, nem tanto, mas as lembranças reaparecem. Cita uma dessas situações,

como a relação com o pai, que recorda a imagem de “uma combinação devastadora de poder e

autoridade, disciplina racionalista e emoções reprimidas” (SAID, 2004, p.31):

Desde o momento em que me tornei consciente de mim mesmo como criança, achei

impossível de pensar em mim como alguém que tinha um passado desabonador (...)

Ser eu mesmo significava não apenas estar totalmente certo, mas também nunca me

sentir à vontade, sempre esperando ser interrompido ou corrigido, ter minha

privacidade invadida e minha insegura pessoa atacada. Permanentemente fora do

lugar, o extremo e rígido regime de disciplina e educação extracurricular que meu

pai criou e no qual fui aprisionado desde os nove anos de idade não me deixava

nenhum espaço para perceber a mim mesmo além dos limites de suas regras e

padrões (SAID, 2004, p.41).

Em A confissão da leoa, Mariamar e Arcanjo retrabalham as idas e vindas da

reminiscência e tornam-se agentes de suas experiências. O próprio termo “confessar”31

apresenta o exame de consciência, que reflete os acontecimentos vividos. Na interação com a

memória coletiva, que abordaremos adiante, no ato confessional, os protagonistas mostram as

situações mais íntimas, que permitem ao leitor “ouvir” as vozes silenciadas e as inquietações

repelidas que reaparecem nas lembranças.

Uma das causas do silenciamento dos protagonistas está relacionada ao trauma da

guerra civil, da violência e da situação de medo. Como nos lembra a pesquisadora Simone

Schmidt (2005), mencionada no capítulo anterior, a problemática avassaladora do sujeito é

tentar construir sua identidade após as guerras. Assim, o silenciar marca as experiências

angustiantes, que voltam a confrontar-se na mente daqueles que realizam a confissão.

Para Márcio Seligmann-Silva, em Literatura e trauma: um novo paradigma, a

sociedade ao longo do século XX é marcada por “pós-catástrofe” (SELIGMANN-SILVA,

31 O pesquisador Fábio Dalpra em Ciência da Religião da UFJF, no artigo, “O sentido do termo confiteri no

pensamento de Agostinho de Hipona”, faz um levantamento etimológico do termo confissão:

O vocábulo confiteri, verbo depoente, correspondente latino de confessar e raiz da forma substancializada

confissão (confessio), é composto pela junção dos vocábulos cum e fateor (SARAIVA, Dicionário latino-

português, p. 278). Segundo Anatole Bailly (Manuel pour l’étude des racines grecques et latines, p. 228-229), a

origem de confiteri remonta ao grego φα e suas derivações, formando, assim, os cinco grupos semânticos que lhe

emprestam um caráter polissêmico: o primeiro, com a acepção de brilhar; o segundo, relacionado ao sentido de

aparecer, mostrar-se; o terceiro, relacionado aos vocábulos claridade e brilho; o quarto, correspondente ao

verbo dizer e ao substantivo palavra (do qual advém diretamente a base etimológica de fateor); por fim, o quinto

grupo, vinculado ao termo voz. Na sua forma latina, de acordo com A. Ernout e A. Meillet (Dictionnaire

étymologique de la langue latine, p. 219), o verbo confiteri reteve algumas dessas significações gregas, assim

como expandira seu alcance semântico, compreendendo, essencialmente, cinco acepções: reconhecer um erro ou

falta; proclamar, conferir; propor-se, oferecer-se, proclamar publicamente; professar, ensinar (...). Considerando

o emprego mais recorrente de confiteri, constata-se, a partir das acepções latinas, que o mesmo permite, além do

sentido ativo de declarar, manifestar, proclamar, também a forma reflexiva de reconhecer-se, admitir-se.

Disponível em: http://www.ufjf.br/eticaefilosofia/files/2011/08/14_1_dalpra.pdf. Acesso: 20/03/2014.

77

2005, p. 63). Explica que esta expressão não representa o término das catástrofes, mas

significa que ainda habitamos entre elas. Neste contexto, para ele é inevitável não pensar no

conceito de trauma. Por isso, articula com alguns pensamentos da psicanálise de Freud para

explicar as consequências das cenas traumáticas no indivíduo.

Nesta trama, o desnudar das lembranças de Mariamar e Arcanjo apresenta a

complexidade interior do ser humano. Percebemos como Mia Couto, ao ilustrar, em cada

cena, os conflitos e as contradições dos protagonistas e dos personagens, evita o uso de

rótulos; isto é, a visão maniqueísta de que, na aldeia, há indivíduos vítimas ou heróis. Por

mais que as mulheres sejam submissas, na maior parte do tempo, o escritor moçambicano

deseja mostrar também a ação algoz das figuras femininas. Como vimos, a atitude de Hanifa,

que ameaçada com relação ao matrimônio, concede uma porção amarga para Mariamar.

Assim, quando os protagonistas iniciam a sua confissão, há o jogo entre lembrar e

esquecer, que auxilia o autoconhecimento. Para a pesquisadora Maria Teresa Salgado, a ideia

de autoconhecimento na obra de Mia Couto está relacionada a “constante necessidade de

busca, de reinvenção do homem” (SALGADO, 2014, site). Afirma que este processo “se dá

no “outrar-se”, que possibilita a emancipação do nosso “olhar” em relação ao mundo”

(SALGADO, 2014, site) e faz “emergir as vozes periféricas (...) das mulheres, dos loucos, dos

cegos, dos velhos, das crianças” (SALGADO, 2014, site). E conclui: que o “caminho ligado

ao autoconhecimento, [que] não só valoriza os desejos e sonhos, mas, sobretudo, os

dimensiona no mundo em que vivemos” (SALGADO, 2014, site).

Em entrevista32, Mia Couto salienta que o encontro com as lembranças do passado,

permite um movimento constante de reatualização, pois “sempre reescrevemos, selecionamos

e reelaboramos esse tempo.” Neste próximo tópico, acompanharemos a natureza fragmentada

das memórias de Mariamar e de Arcanjo, em que as lembranças aparecem, desaparecem e se

relacionam, atravessando seus vazios existenciais.

32 COUTO, Mia. “Escutas de Mia Couto”. Entrevista de Paulo Hebmuller. Revista Brasileiros, 08/11/14.

Disponível: http://www.revistabrasileiros.com.br/2014/11/as -escutas-de-mia-couto/#.VGDpEfnF_T. Acesso:

15/11/2014.

78

3.1. A confissão de Mariamar

Nesse outro tempo, falávamos a mesma língua dos mares, da terra e dos céus. O meu

avô diz que esse reinado há muito que morreu. Mas resta, algures dentro de nós,

memória dessa época longínqua. Sobrevivem ilusões e certezas que, na nossa aldeia

de Kulumani, são passadas de geração em geração.

(COUTO, 2012, p.13)

A partir da epígrafe, observa-se como a memória de Mariamar aciona outras vozes

para participarem da sua confissão. Partindo da constituição da sociedade matrilinear do norte

de Moçambique, na qual os ensinamentos são transmitidos de mãe para filha, suas lembranças

são construídas na interação entre a memória individual e a coletiva.

Para o francês Maurice Halbwachs, a memória individual se constitui por diversas

interações entre grupos sociais. Considera que o sujeito, por mais que possua o seu universo

individual, terá, sempre, suas lembranças ancoradas no coletivo:

Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros , ainda que

se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente

nós vimos. Isto acontece porque jamais es tamos sós. Não é preciso que outros

estejam presentes, materialmente distintos de nós, porque sempre levamos conosco e

em nós certa quantidade de pessoas que não se confundem

(HALBWACHS, 2006, p.30).

O sociólogo salienta que o ato de lembrar precisa da existência de um acontecimento

ou de alguém para relatar ou guardar fatos, o que constituirá a noção de memória individual.

Cada ser humano possui muitas lembranças pessoais, porém está inserido em um contexto

(família, escola, trabalho), que carrega em si, também, lembranças sociais. É por

pertencermos a uma coletividade que construímos a memória individual, mesmo que esta

mantenha suas particularidades. Por isso, Halbwachs defende a tese de que “a memória

individual (...) não está inteiramente isolada e fechada. Para evocar seu próprio passado, em

geral a pessoa precisa recorrer às lembranças de outras” (HALBWACHS, 2006, p. 72).

O caráter evocativo do passado por Mariamar “é sempre conflituoso”, (SARLO, 2007,

p.9), pois há seleções de fatos, que se desejam revelar, outros que tentam ser omitidos. Ao

recuperar as lembranças, as vozes aparecem no fluxo narrativo, criando um jogo labiríntico,

que se interliga à narração do caçador. Sua “versão” tece um “eu” que desnuda a própria vida

e a das mulheres de Kulumani.

79

Nesse fluxo contínuo, observamos lembranças que “são passadas de geração em

geração”. Há um tempo mítico, “espiralar” (MARTINS apud SECCO33): “o passado sobre o

presente e o presente sobre o futuro, não apenas pela interpretação dos fatos e o peso dos

acontecimentos passados, mas por uma irrupção direta que se pode exercer em todos os

sentidos” (KI- ZERBO, 1982, p. 62).

O macrotexto, pouco a pouco, se desmembra em microfragmentos, por meio de outras

personagens que, em forma de “suposto” diálogo, evocam também seus traumas e situações

silenciadas, como foi possível notar, no capítulo anterior, nas vozes das mulheres: Hanifa,

Naftalinda e Luzilia. Cabe ressaltar que a marcação gráfica na obra acompanha esta mistura

de planos temporais, com o tipo de letra “itálico”, para as vozes das lembranças e o tipo de

letra “redondo” para as reflexões dos protagonistas.

Para Oscar Tacca, “o mundo do romance é, basicamente, um mundo in-sólito. Mundo

cheio de vozes (...)” (TACCA, 1983, p.61). E inclui a função do narrador é de “informar. Não

lhe é permitida a falsidade, nem a dúvida, nem a interrogação nesta informação. Apenas varia

(apenas lhe é concedida) a quantidade de informação” (TACCA, 1983, p.64- grifos do autor).

Para esse teórico, a voz do narrador, mesmo quando é a principal, mostra-se fluida e se

confunde com outras, em “outros planos do romance” (TACCA, 1983, p.63). Isso é

importante para as perspectivas dos protagonistas, que trazem em suas confissões as relações

complexas no campo das lembranças.

Ao reconstruir sua convivência na aldeia, Mariamar, desde sua origem, confessa suas

relações com o espaço – o rio Lideia, a natureza –, com o caçador e com os seus familiares–

destacando a presença de Adjiru Kapitamoro, o “avô” –, com o comércio de galinhas na

estrada, com a missão católica, com as doenças, com as lembranças da infância marcada pela

guerra civil.

Relacionar exílio e memória é percorrer as faces ocultas dos acontecimentos e penetrar

nas zonas mais estreitas das lembranças em buscar da auto descoberta. Um dos lugares mais

propícios para capturar as relações conflituosas é a fase da infância. Para o filósofo Bachelard,

a infância reimaginada potencializa a chance de “reviver os tempos da primeira vida”

(BACHELARD, 1988, p. 93). Alerta que este “passado rememorado não é simplesmente um

33 Observações das aulas ministradas pela professora Carmen Lucia Tindó R. Secco, no curso de mestrado

intitulado Afeto, Memória e História nas Literaturas Africanas, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em

2013/ I. O conceito de “tempo espiralar” a professora Carmen Tindó usou, citando a Professora Leda Martins:

MARTINS, Leda. "Performance do tempo espiralar". In: RAVETTI, G. e ARBEX, M. (orgs.). Performance,

exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte: FALE-Faculdade de Letras da UFMG, 2002.

80

passado da percepção” (BACHELARD, 1988, p.99), no qual se data os acontecimentos. A

infância “está por ser reimaginada. Ao reimaginá-la, temos a possibilidade de reencontrá-la na

própria vida dos nossos devaneios de criança solitária” (BACHELARD, 1988, p.94). Para

Mia Couto, a “infância (...) é quando ainda não é demasiado tarde. É quando estamos

disponíveis para nos surpreendemos, para nos deixarmos encantar. Quase tudo se adquire

nesse tempo em que aprendemos o próprio sentimento do Tempo” (COUTO, 2009a, p.110).

Neste sentido, Mariamar traz para sua confissão lembranças da infância vivida com

Adjiru Kapitamoro, que sempre a estimulou a seguir os sonhos para além do mundo da aldeia,

e também lembranças de situações, que lhe foram contadas. Pela tradição materna, em

Kulumani, todos os tios maternos são designados de “avô”, aquele que possui a sabedoria.

Para ela, recordar-se do “mais velho”, vai além de adquirir o aprendizado, é preencher e dar

sentido a própria existência:

Quanto mais vazia a vida, mais ela é habitada por aqueles que já foram: os exilados,

os loucos, os nossos mortos, todos guardamos neles as raízes dos sonhos. O meu

morto maior é Adjiru Kapitamoro. Em rigor, ele é o irmão mais velho, de minha

mãe. Na nossa terra, designamos de «avô» todos os tios maternos . Adjiru é, aliás, o

único que conheci. Chamamo-lo, em casa, de anakulu, «o nosso mais antigo».

Ninguém soube nunca a sua idade, nem ele mesmo tinha ideia de quando nascera. A

verdade é que se proclamava tão perene que atribuía a si próprio a autoria do rio que

atravessava a aldeia.

- Fui eu que fiz este rio, o Lundi Lideia - defendia, com altivez.

Era longa a lista das suas fabulosas fabricações para além do rio, o avô já

confecionara penedos, abismos e chuvas. Tudo graças às poderosas mintela, as

mezinhas e os amuletos dos feiticeiros. Contudo, ele negava o grave estatuto:

- Não sou feiticeiro, sou apenas velho (COUTO, 2012, p. 46-47).

A pesquisadora Carmen Secco relembra que a imagem do mais velho representa “o

guardião das tradições (...) o de conselheiro, elo entre as origens e os deuses” (SECCO, 1994,

p. 10). Nesta trama, a figura do avô aparece, inicialmente, no dilema entre a tradição e a

modernidade. Assimilado de nascença; há momentos em que se recusa aos rituais da aldeia

por está mais próximo da crença do colonizador, já em outros, ele aparece com a autoridade

da criação, pois é o “fazedor de leões” (COUTO, 2012, p.237), o escultor das máscaras de

deusas, que representa a sabedoria da cultura africana e que estabelece a conexão entre o

mundo dos vivos e dos mortos.

Pelas lembranças do avô, a menina inicia a construção de uma pequena parte da sua

árvore genealógica. Pouco a pouco, conhece as dificuldades do tempo colonial e as situações

vivenciadas pelo bisavô Muarimi, excluído da convivência harmoniosa na aldeia e pelo avô

Adjiru, afastado da função de caçador. Esses elementos esboçam também a condição de exílio

de sua descendência materna:

81

No tempo colonial, o seu pai, o venerando Muarimi, exerceu funções de capitão-

mor. Cobrava impostos e resolvia conflitos locais a favor dos colonos. Esse cargo

custou a meu bisavô culpas, invejas e duradouras inimizades. A nossa família,

contudo, ganhou o nome que agora ostenta: os Kap itamoros. Numa terra sem

bandeira, nós erguíamos essa emprestada insígnia como se fosse um direito natural e

milenar.

Ao arrepio da tradição familiar, o avô Adjiru se entregou a uma distinta ocupação: a

caça. Era isso que ele era, por vocação e juramento: um caçador. A arma é a minha

alma, dizia. Por acidente matou um homem, no cerco a um leopardo, para os lados

de Quionga. Para se purificar desse sangue teria que se esfregar em cinzas de

árvores. Recusou o ritual: para ele, um assimilado, aquilo era uma insuportável

humilhação. Ficou interdito de caçar, limitando-se a atuar como pisteiro. Com a

dignidade de um rei, aceitou essa despromoção. Até ao dia em que morreu, não

perdeu o porte nobre. Exercendo serviços de chão, continuou sendo ele a derramar

sombra em todo Kulumani. E agora, que a aldeia estremecia perante a ameaça dos

leões, todos sentiam saudade dessa divina proteção.

Meu pai, Genito Serafim Mpepe, podia também ter sido caçador, por pleno direito.

Preferiu, contudo, ficar por pisteiro, em solidariedade para com o seu falecido

mentor. Despromovido um, despromovido o outro. Em tudo, afinal, Genito

ambicionava seguir as passadas do destronado caçador. Todavia, o estatuto do avô

era inalcançável. Adjiru fora mais que um mweniekaya, um chefe de família. A sua

autoridade sempre se estendeu a toda a vizinhança. Era um mando silencioso, sem

proclamação, de quem exerce grandeza sem precisar de palavra. Mas eu, Mariamar,

era para ele uma pessoa especial (COUTO, 2012, p.47-48).

Em alguns passeios por Kulumani, a jovem descobre por meio do avô, além das

histórias de quando ele era caçador, o processo tenso de formação de Moçambique. Desde a

partida de moçambicanos para São Tomé e Príncipe até as consequências da guerra civil, o

"mais velho" mostra as fases de um país, marcado pelo dilaceramento.

No “alpendre”- local só da presença masculina, Adjiru rompe com a tradição e leva à

neta consigo. Neste ambiente, com toda a sua sabedoria e autoridade, o avô traz fatos do

passado- nos quais os habitantes da aldeia desejam esquecer- como uma forma de levá-los “a

conscientizar-se das fraquezas ou dos erros de seu grupo” (TODOROV, 2002, p.168). Para o

“mais velho”, confrontar-se com estas lembranças é evitar a manipulação por parte dos

detentores do poder.

Ao desmascarar a exploração do colonizador, principalmente o trabalho escravo,

grande parte dos homens sente-se incomodados e resolvem ir embora. Interessante que,

enquanto contava suas façanhas como caçador, todos se mostravam entusiasmados, pois

preferiam resgatar apenas os fatos gloriosos. Entretanto, quando toca na ferida ainda aberta da

dominação, todos o abandonam. Isto porque, os dominados de outrora são os dominadores

atuais, neste caso, os opressores das mulheres. Neste ambiente totalitário de Kulumani,

retomar o passado significa, segundo Todorov, um “ato de oposição ao poder” (TODOROV,

2002, p.140).

82

Para a pesquisadora Afonso dialogando com as palavras de Simeão Cachamba,

escritor moçambicano, a retomada de alguns assuntos sobre o colonialismo é um caminho

para reatualizá-los “em cada texto através da escrita da memória. A lembrança torna-se a

substância essencial de uma trajectória literária que exige a expressão catártica do tempo

passado para poder abrir-se ao presente e ao futuro” (CACHAMBA apud AFONSO, 2004, p.

318).

Um dos fatos históricos mencionado pelo avô de Mariamar foi o sistema de contrato34

de moçambicanos para São Tomé e Príncipe:

Na verdade, explicou, a carreira do caçador é feita de fracassos e esquecimentos. Por

mais apurada que seja a sua pontaria, todo o homem que caça é um falhador. Para

cada vitória, mil derrotas. É por isso que o caçador é um inventor de proezas: porque

ele mesmo se desacredita, mais receoso da sua fragilidade que da mais feroz presa.

- Antes eu fosse mentiroso. Porque, no fundo, não sou nada. Nunca fiz nada.

- Não diga isso, avô. O senhor já fez tanta caçada.

- Quer saber, minha neta? Na caça, trabalha mais a presa que o predador.

Não era uma queixa. No fundo, o que ambicionava era não ter obrigação nenhuma.

A felicidade, costumava ele dizer, consiste num fazer nada: ser-se feliz é apenas

deixar Deus acontecer. E calou-se, as mãos rodando, nervosas, sobre os joelhos. De

súbito ergueu-se, determinado, como se tivesse sido visitado por uma nova alma.

Passo firme, se encaminhou de novo para o alpendre, em numa cadeira, enfunou o

peito e enfrentou a multidão.

- Querem histórias? Pois eu vou contar-vos uma história. A vossa história.

- Pronto, já vai começar- resmungaram alguns.

- Vocês já se esqueceram de que foram escravos?- prosseguiu Adjiru.

- Estamos lixados - comentaram outros.

- Ou já se esqueceram que nos levaram para além do mar? Nenhum de nós voltou.

Ou já esqueceram do meu pai, Muarimi Kapitamoro? Foi levado para São Tomé,

não lembram?

- Nós já vamos embora- disseram os homens, em coro. E, dirigindo-se a mim,

acrescentaram: - Venha connosco que, agora, vão chover palavras.

Retiraram-se um por um, até que, sob o telheiro, restei apenas eu fixando, com o

coração nas mãos, a bamboleante cadeira em cima da qual o avô prosseguia a sua

inflamada alocução. Ainda ousei, quase sem voz, chamá-lo de volta ao mundo.

Naquele momento, porém, eu era, para ele, invisível. Um inflamado profeta tomara

posse do meu velho parente.

34 Para compreendermos como surgiu este sistema, passemos brevemente pela colonização nas ilhas de São

Tomé e Príncipe. Segundo Carmen Secco (1999), esta região foi intensamente explorada pelo mercado de

escravo e servia de “paragem dos navios negreiros que iam da África para as Américas ” (SECCO, 1999, p.148).

Contudo, com o fim da escravidão no Brasil, o território sofreu uma instabilidade econômica, já que este

comércio de escravo era uma das principais fontes de renda. Para solucionar o problema, passou -se o cultivo de

café e cacau. Isto exigiu o aumento da mão-de-obra, pois os mulatos, que enriqueceram com o antigo sistema se

recusaram ao trabalho. Assim, recrutou-se mão-de-obra “de outras colônias portuguesas (de Angola,

Moçambique, Cabo Verde) e de outras regiões da África” (SECCO, 1999, p. 149), formando o contrato. Neste

regime, os colonizados, chamados de contratados, eram levados para as roças ou fazendas, onde continuavam a

ser explorados, pois os baixos salários e as péssimas condições de trabalho mascaravam a relação de semi-

escravidão.

Em Moçambique, para Afonso, o “recrutamento era facilitado pela lei do trabalho forçado, o chibalo, que

impunha que todos os (...) africanos, fossem obrigados a trabalhar” (AFONSO, 2004, p.23). O contratado podia

ser o magaíça, que ia para as minas de carvão na África do Sul ou para as roças em São Tomé e Príncipe, que é

chamado, em Angola de monangamba (aquele/moço que trabalha). Assim, observam-se duas relações: a do

explorador e a do explorado.

83

- Os escravos não deixam memória sabem porquê? Porque não têm campa. Um dia

destes, em Kulumani, ninguém mais terá campa. E nunca mais haverá lembrança de

que aqui houve gente ...

- Avô, vamos para casa. - Agora já nem precisamos que nos metam nos navios. São Tomé é aqui, em

Kulumani. Aqui, moramos todos juntos, escravos e donos de escravos, os pobres e

os donos da pobreza. (...) (COUTO, 2012, p.91, 92 e 93-negritos nossos).

Adjiru compara Kulumani com São Tomé e Príncipe, pois reconhece que, apesar da

passagem do tempo, as relações entre “escravos e donos de escravos, os pobres e os donos da

pobreza” (COUTO, 2012, p.93) ainda prevalecem. Ao relacionar a partida de seu pai na

condição de contratado, o “mais velho” tem a intenção de alertar, aos homens da aldeia, sobre

a continuidade de seus comportamentos. Se atualmente são os dominadores, no passado eles

já foram os explorados. Esta situação nos lembra as palavras do teórico da cultura Edward

Said, que enfatiza como a invocação do passado:

constitui uma das estratégias mais comuns nas interpretações do presente. O que

inspira tais apelos não é apenas a divergência quanto ao que ocorreu no passado e o

que teria sido esse passado, mas também a incerteza se o passado é de fato passado,

morto e enterrado, ou se persiste, mesmo que talvez sob outras formas

(SAID, 1995, p.33).

O passado da escravidão retomado por Adjiru mescla-se com o próximo fato terrível

da história de Moçambique: a guerra civil. Com “uma ilegível memória” (COUTO, 2012,

p.79), Mariamar apresenta episódios da violência, que ora aparecem mais nítidos, ora mais

obscuros. Isto é, como testemunha desta brutalidade, suas lembranças passam por um

processo de seleção entre lembrar e esquecer. Mesmo na “fronteira entre a ordem e o caos”

(COUTO, 2012, p.84), a jovem pela confissão dos atos violentos do passado tenta redescobrir

caminhos para lutar “contra os campos presentes e para impossibilitar os campos futuros”

(TODOROV, 2002, p.185) de opressão.

A devastação de Kulumani repercute na escassez dos alimentos. Sem alternativa, a

família Assulua procura seu sustento no abutre, “o devorador de entranhas, símbolo da morte”

(CHEVALIER, 2009, p.9), que prefigura a própria imagem da crueldade:

Naquele momento, um episódio me vem à memória: quando os padres, em plena

guerra, se retiraram de Kulumani, ninguém mais tornou conta do aviário da Missão.

As galinhas ficaram abandonadas nas capoeiras que se desfaziam aos pedaços. Aos

poucos, as aves tornaram-se selvagens, esgravatando afincadamente pelos baldios e

apenas regressando à noite. Os galinheiros foram-se desmoronando e as velhas

tábuas desapareceram devoradas pelas térmites. Aquilo era um aviso: a fronteira

entre a ordem e o caos estava-se apagando. A primitiva savana vinha resgatar o que

lhe tinha sido roubado.

E assim sucedeu: as galinhas foram, uma por uma, devoradas por abutres. As aves

de rapina ocuparam o espaço antes reservado às aves domésticas e familiarizaram-se

de tal modo que deixaram de recear a nossa presença. Uma meia dúzia acabou

84

obedecendo ao chamamento do avô Adjiru que, como recompensa, lhes atirava uns

nacos de gordura.

Certa vez, em nossa casa, o jantar se anunciou faustoso.

- Há frango hoje, o que celebramos? - inquiriu Silência.

Desconfiámos do tamanho do assado. Apenas eu tive coragem de duvidar:

- Estamos comendo abutre?

- E se for? - ripostou meu pai. – Nunca ouviu dizer que nós, os caçadores, comemos

abutre para ganharmos a sua visão certeira? (COUTO, 2012, p.84)

Em consequência da péssima alimentação e da destruição deixada pela guerra,

Mariamar desenvolve o seu processo de metamorfose. Na tentativa de resistência, a menina

ausenta-se da sua humanidade e transforma-se em leoa, dando lugar à fome intensa:

Nunca soube o que comi. A verdade porém, é que a partir dessa refeição nunca mais

tive o conforto de um sono solto. Pesadelos me arrancavam do leito e eu acordava

com uma inusitada sofreguidão, uma avidez que me roubava o ser. O modo como

essa fome tornava posse de mim era coisa de pessoa. A bem dizer, eu não apenas

sentia fome. Eu era fome dos pés aos cabelos e uma viscosa saliva escorria-me pelos

queixos.

- É madrugada e você ainda anda a comer os restos do jantar? Que fomes são

essas?­ estranhava o avô, sempre madrugador.

Levaram-me a Palma, para exames no hospital. Pode ser diabetes, ainda aventou o

enfermeiro. Suspeita infundada. Nenhum exame revelou doença alguma e eu

regressei a Kulumani sem alívio para os misteriosos acessos.

***

(...)

Com o tempo, os acessos noturnos agravaram: os lençóis acordavam rasgados

espalhados pelo chão do quarto.

- Isto já não é fome, eu estou doente. Avô, o que se passa comigo? - inquiria eu, em

lágrimas.

A razão daquela enfermidade era um segredo, respondeu, certa vez, Adjiru. Um

segredo tão fundo que, mesmo ele, acaba se esquecendo.

- Não entendo, avô. O senhor está deixar-me com medo.

Eu estava doente, sim. Mas essa doença era a única coisa que me protegia do meu

passado.

- O problema não está consigo, minha neta. O problema está nesta casa, nesta

aldeia. Kulumani já não é um lugar, é uma doença.

Kulumani e eu estávamos enfermos (COUTO, 2012, p.84, 85, 86 e 87).

Embora tente com o “mais velho” desvendar a causa de tal doença, ela reconhece que

o diagnóstico não se pode explicar por razões humanas. Então, descobre que compartilha com

a aldeia as mesmas moléstias: o medo, a insegurança e o abandono. Paralelamente, vendo a

situação da neta e o descaso com a região, o avô tenta resgatar, na tradição, saídas para

solucionar o problema e começa a esculpir as máscaras da divindade feminina para invocar a

proteção da deusa:

De madrugada, o avô continuou a cruzar-se comigo na varanda enquanto eu

debicava uns restos de nchemba, catando ossos de galinha no meio da farinha de

mandioca. Adjiru aproveitava o escuro para exercer a sua outra atividade: a de

escultor de máscaras. Obedecendo a ancestrais preceitos, esse afazer era clandestino,

ninguém podia suspeitar de que as máscaras surgiam das suas mãos. Essas

esculturas retratavam invariavelmente mulheres: as deusas que já fomos não

85

queriam ser esquecidas. As mãos dos homens diziam aquilo que as suas bocas não

ousavam pronunciar.

- Posso fazer eu uma máscara? - perguntei.

A máscara, disse ele, não é apenas aquilo que cobre o rosto de quem dança. O

dançarino, a coreografia, a música ondeando em seu corpo: tudo isso é que é a

máscara.

- Então, quando terminar a obra, posso usá-la?

- Isto não é uma máscara. É um ntela, um amuleto, como você queira chamar.

- Por amor de Deus, avô! Acredita mesmo nisso?

- Não importa o que eu penso. Importa o que os mortos pensam. Sem isto - e fez

rodar a madeira entre as mãos -, sem isto os antepassados ficam longe de Kulumani.

E você fica longe do mundo.

- O avô me perdoe: mas o senhor, um assimilado de nascença, já devia estar muito

longe dessas crenças ...

Um sorriso vago e bondoso: era a sua resposta. Depois, me admoestava. Que eu não

devia atirar os restos de comida para o quintal.

- Isso chama os bichos ...

Talvez fosse o que eu queria: convocar os bichos para junto da casa, reinstalar a

desordem da selva, converter as capoeiras em ninhos de abutres

(COUTO, 2012, p.85-86- negritos nosssos).

As máscaras, para cada região de África, apresentam um determinado significado.

Para Ola Balogun, em Forma e expressão nas artes africanas, um dos traços comum a todas

está no fato de “não serem concebidas para ser contempladas como obras de arte, mas sim

para serem utilizadas por ocasião de cerimónias rituais, sociais ou religiosas” (BALOGUN,

1977, p.44). Completa, observando que o uso da máscara no ritual concentra um conteúdo

mais vasto, que engloba música, dança e a expressão corporal:

Na maioria das sociedades africanas, a vida religiosa da comunidade caracteriza-se

pelo culto activo de espíritos e de deuses, assim, como, sob uma forma ou outra,

pelo culto dos antepassados. Ainda que a crença num Ser supremo esteja bast ante

difundida, pensa-se quase sempre que Deus está instalado demasiado alto e

demasiado longe para poder interessar-se directamente pelos assuntos humanos.

Consequentemente, é para toda a multidão dos deuses inferiores e dos antepassados

deificados que a maioria dos Africanos se volta, a fim de lhes pedir para intervirem

na sua vida quotidiana e para intercederem a seu favor junto das forças da Natureza

e do Ser supremo. As cerimónias mascaradas procedem, regra geral, de um ritual

destinado a invocar estes deuses ou a estabelecer uma comunicação entre eles e o

grupo, e, ao mesmo tempo, a lembrar aos seus membros os laços que os unem às

forças não humanas do universo. A cerimónia mascarada é, portanto, considerada

como a manifestação material de uma força inacessível, como uma encarnação

temporária daquilo que está para além do humano (BALOGUN, 1977, p.47-48).

O contato com a tradição da aldeia é tão importante que, diversas vezes, Silência

recorre aos “amuletos” produzidos pelo avô para acalmar os ataques da irmã:

Em desespero de causa, Silência reproduziu, à nossa porta, o mito da fundação da

nossa tribo: enterrou no nosso quintal uma estatueta secretamente esculpida por meu

avô. A lenda dizia que uma escultura de madeira, enterrada pelo primeiro homem na

areia da savana, se convertera na primeira mulher. Esse milagre aconteceu no início

do mundo, mas Silência rezou consecutivas noites para que, no nosso quintal, a

madeirinha recebesse o sopro da vida. A estátua nunca viria a ganhar alma, mas, de

cada vez que sentia que se avizinhava um ataque, Silência corria a trazer-me a

86

pequena sentinela de madeira. Então, eu embalava a escultura como se fosse uma

filha minha e, naquele balanço, cresciam em mim sossegos de mãe. (...) (COUTO,

2012, p.122-123).

Com a infância marcada pela guerra civil, Mariamar já não sabe distinguir sua

identidade: leoa ou humana? Como recuperar sua existência na presença de tantos confrontos?

Segundo a pesquisadora Maria Rita Kehl (2009, p.563), ao retomar as ideias de Freud, muitas

vezes, quando o indivíduo não consegue dizer com palavras as suas fragilidades, é pelo corpo,

que manifesta o sintoma. Este é o caso de nossa protagonista, que, silenciada por tantos

sofrimentos, expressa no corpo a ânsia por justiça, paz e liberdade.

Tendo amenizado, algumas vezes, os ataques de fome, outro problema, que surge, aos

12 anos, é a paralisia. Diante da imobilidade, Mariamar encontra nas costas dos meninos a

possibilidade de percorrer a região, mesmo sendo esse ato de brincar condenado pela tradição.

Para ela, a sua condenação maior é vivenciar tempos de guerra:

As minhas pernas podiam estar mortas, mas nunca fiquei prisioneira de mim mesma.

Todas as manhãs as vozes da meninada irrompiam pelo nosso quintal.

- Suba, Mariamar, suba-nos!

A rapaziada revezava-se para me carregar às costas e levavam-me para longe de

casa, em alegres correrias. Às cavalitas, como uma menina de colo, não havia folia

que não experimentasse. Posso dizer, hoje: exerci a infância por delegação de outras

crianças. Pendurada num qualquer pescoço, encavalitada num anónimo dorso, nem

dei conta de quanto o meu peito se espalmava de encontro à transpiração dos

rapazes. (...)

O meu pecado tornava-se mais grave por causa dos tempos de crise que vivíamos.

Quanto mais a guerra nos roubava certezas, mais carecíamos da segurança de um

passado feito de ordem e obediência (COUTO, 2012, p.123-124).

Em outra brincadeira, o avô observa a neta sendo venerada dentro do caixão pelas

crianças e repreende os pais por autorizarem tal diversão. Por outro lado, para ela, este é o

momento em que consegue sentir-se importante na aldeia, já que sua “suposta” morte

contribui para que todos a percebam:

Certo dia, um grupo de rapazes foi à Vila de Palma e roubou um caixão sem uso.

Trouxeram-no de noite e disseram-me:

- Essa é a tua padiola.

A partir daí passaram a carregar-me para todo o lado dentro desse caixão. Sentada

nesse andor, via as pessoas se imobilizarem para me dirigir respeitos que nunca

ninguém antes me brindara.Embalada por aquela unânime veneração, declarei:

- Mãe, eu quero viver para sempre num caixão.

Toda aquela deferência acabou, porém, por me impedir de entender que tudo aqu ilo

era, afinal, uma vaidade triste: era preciso deixar de existir para notarem a

minha existência. Deveria sentir saudade desse outro alpendre vivo onde brincara:

as costas dos outros meninos. Mas não. Balançando em cima do meu improvisado

trono, vaidades de rainha me enchiam o peito:

- Agora é que me vão crescer as mamas!

- Não queira crescer, mana, não queira ser mulher - advertiu Silência.

***

87

Um dia o caixão amanheceu todo despedaçado. Quem o quebrou foi o avô Adjiru

Kapitamoro. Inesperadamente, o nosso mais velho avançou pelo pátio e escavacou a

caixa de madeira. Ainda o ouvi berrar com os meus pais:

- Como é que autorizam uma brincadeira destas? Por amor de Deus, é uma

criança...

Lembro que chorei diante das tábuas quebradas. Ao ver-me escavar furiosamente na

areia, Silência ainda acreditou que eu procurava a estatueta que ela plantara no

quintal. Mas a cova tinha outra finalidade:

- Estou a enterrar o meu caixão (COUTO, 2012, p.124-125- negritos nossos).

Para a família Assulua, a paralisia, justamente no meio da guerra civil, torna-se um

problema sério, visto que era preciso a agilidade para se esconder dos tiros e das explosões.

Assim, coube ao avô a incumbência de escondê-la da violência:

As pernas nascem na cabeça, todo o corpo começa na cabeça tal como os rios

descem do céu. Adjiru Kapitamoro, meu muitíssimo avô, assim dizia e, ainda hoje,

acho que ele tinha razão. As minhas pernas adormeceram quando a minha cabeça

despertou. Um dia, tinha eu doze anos, tombei como um saco vazio aos pés da cama.

Juntaram-se os parentes, Adjiru puxou meu pai pelo casaco:

- Foi você, Genito?

Acorri a responder, escudando o meu velhote. Que não havia culpa, nem se carecia

de explicação. Eu apenas tivera pesadelos nessa noite, com visões que não ousava

lembrar. Ergueram-me a pulso e voltei a desabar, sem amparo interior.

- Logo agora, no meio desta guerra toda - lamentou meu pai - Vai ser mais um peso,

agora.

- Desde quando uma filha é um peso? - inquiriu Adjiru.

Na infância, o corpo tem um serviço único: brincar. Mas não em Kulumani. Os

meninos da nossa aldeia pediam às pernas que os fizessem fugir, à frente do fogo,

mais velozes que as balas. Era o tempo em que as armas varriam povoações. Ao fim

da tarde, o ritual era sempre o mesmo: empacotávamos os nossos haveres e

escondíamo-nos no mato. Para mim, esse proceder era um jogo, uma diversão

partilhada com as outras crianças. Num mundo de pólvora e s angue, inventávamos

silenciosas brincadeiras. Naquele noturno esconderijo aprendi a rir para dentro, a

gritar sem voz, a sonhar sem sonho. Até ao dia em que a metade inferior de mim

deixou de ser minha. E tombei aos pés da cama.

***

Depois da paralisia, era o avô Adjiru que ao fim da tarde, me vinha buscar e me

carregava a braços para o esconderijo na mata (COUTO, 2012, p.120-121).

A solução encontrada por ele é levá-la à igreja. Além de zelar pela segurança da neta

contra a guerra e contra os homens da aldeia, Adjiru tem a convicção de que na Missão,

Mariamar conseguiria o apoio e o tempo adequado para se recuperar. Esta certeza já trazia

consigo, desde a época em que Hanifa transferira a doença da filha para a árvore. Por isso, ele

sabia que a cura de sua neta não viria pelo padre, e sim pela tradição da aldeia.

Sem saber dos rituais feitos em Mariamar, o missionário Amoroso acredita que os

primeiros passos da menina pudessem surgir de suas orações. Para ele, esse fato apresenta um

caminho para convencer os habitantes da região a se converterem ao catolicismo e

acreditarem em sua pregação.

88

Vale evidenciar que a Missão iniciou-se muito antes da independência de

Moçambique. Segundo Afonso, para estabelecer as novas relações entre Portugal e suas

colônias, Salazar, em 1930, anexa à Constituição o Acto Colonial, uma carta, que expõe os

princípios entre a nação portuguesa e os territórios ultramarinos, cujo objetivo é o de

“colonizar e de civilizar as populações indígenas” (AFONSO, 2004, p.23). Esse projeto

intensifica as discriminações raciais, uma vez que, “faz a distinção entre (...) brancos,

indianos, mestiços e negros assimilados” (AFONSO, 2004, p.23). O discurso para a

dominação apresenta as colônias como uma extensão de Portugal, no qual propõe uma

unidade política e assimilação cultural.

Assim, na tentativa de apoio ao Estado Novo, a Igreja Católica, com as Missões

religiosas, serviu de instrumento para propaganda do regime salazarista. Dentre os projetos

desse governo35, destacava-se a alfabetização dos negros assimilados, no qual se reforçava a

língua portuguesa como oficial.

Ainda com relação à ida de Mariamar à Missão, o avô realiza essa partida como um

ritual. Primeiro, concede a neta um “segundo batismo”, em seguida calça-lhe os sapatos e diz

o seguinte provérbio: “<<Se fores capaz de falar, tu és capaz de cantar; se fores capaz de

caminhar, tu podes caminhar, tu podes dançar>>.Pois tu vais cantar, tu vais dançar, minha

neta” (COUTO, 2012, p.126). Com o apoio do “mais velho”, a jovem sente-se amada e ganha

estímulo para prosseguir por sinuosos caminhos:

Tudo isso aconteceu antes dessa inesquecível manhã em que, sapato posto e cabelo

alinhado, o meu avô me levou a sair. Nem muito ele se explicou. Apenas as

enigmáticas palavras: vai receber as águas de Deus.

Estava habituada às suas extravagâncias. Tinha sido ele que, ainda eu em estado

artesanal, me concedera este meu definitivo nome: Mariamar.

- Não te dou apenas um nome - disse. - Dou-te um barco entre mar e amar.

Foram essas as suas palavras no meu segundo batismo. E disse mais: que eu não

precisava de nenhum ritual para ser mulher. A mulher que eu ia ser já estava

dentro de mim.

***

Essa manhã em que Adjiru me veio buscar, essa manhã estreava um dia de acontecer

o mundo. Num instante, os preparativos da saída se cumpriram: um pente de

madeira arou em meus bravios cabelos e os meus pés se espremeram de encontro a

uma improvisada calçadeira.

- Já calçou os sapatos?- conferiu o avô.

Calçar, para quê? Há muito que os sapatos eram, em mim, simples decoração.

35 Zélia Pereira em seu artigo: “Os Jesuítas em Moçambique – Aspectos da Acção Missionária Portuguesa em

Contexto Colonial (1941-1974)”, com base na leitura Portugal e a Santa Sé. Concordata e Acordo missionário

de 7 de Maio de 1940, Lisboa, Secretariado da propaganda nacional, 1943, p. 120- aponta o ensino destinado

aos africanos, cujo objetivo: “perfeita nacionalização e moralização dos indígenas e a aquisição de hábitos e

aptidões de trabalho, de harmonia com os sexos, condições e conveniências das economias regionais,

compreendendo na sua moralização o abandono da ociosidade e a preparação de futuros trabalhadores rurais e

artifices que produzam o suficiente para as suas necessidades e encargos sociais ” (p.87). Disponível em:

http://www.lusotopie.sciencespobordeaux.fr/pereiraz.pdf. Acesso: 15/06/2014.

89

- Os meus pais sabem onde vamos?

- Não tenha medo, sou o seu primeiro avô.

E foi debitando conversa enquanto me ajeitava o cabelo.

- Dê-se a bênção, neta. Você vai receber o milagre.

- Qual milagre, avô?

- Vai voltar a andar.

Fosse doença, fosse maldição, ele não podia ficar resignado vendo-me descer à

condição dos bichos.

(...)

Olhei para o seu braço como se fosse a continuação de mim. E, de facto, era. Como

podia eu alguma vez cortar o meu segundo cordão umbilical? Alheio aos meus

pensamentos, levando-me num carrinho de mão, Adjiru Kapitamoro cruzou a aldeia

com vaidades de quem estivesse inaugurando a praça

(COUTO, 2012, p.125, 126 e 127- negritos nossos).

A entrada da menina na igreja expressa certa estranheza no olhar, em relação ao

comportamento do avô, que, pela primeira vez, se mostra frágil. Estranheza também, em

relação ao ambiente do templo, que, diferente da arquitetura das casas na aldeia, mostra

paredes enormes e a imagem de Jesus Cristo. Mariamar sente-se na posição de entrelugar,

pois, inserida na tradição local, não se identifica com os costumes e também não se adapta à

cultura do colonizador, pois ela assimila o que repercute na própria condição de exilada:

Perfilado à porta da igreja, esperava o padre Manuel Amoroso. O missionário

português era o único branco que conhecíamos. O homem se distinguia não pela cor

da pele, nem pela língua que falava, nem pelas vestes que envergava. O que o

diferenciava era não ter mulher que lhe fosse vista. Nem filhos que lhe seguissem os

passos.

- Adjiru Kapitamoro!- anunciou o padre, floreando cada sílaba, como se trauteasse

uma alegre canção.

- Sou eu, meu padre.

A voz do avô pela primeira vez me pareceu frágil, em busca de amparo. Olhei-o em

contraluz como para confirmar a sua estatura. E respirei, de novo: por trás da sua

imagem se erguia, soberana, a torre da igreja. Ali começavam os verticais caminhos

para o firmamento. Ficar junto de Deus me pareceu, então, um esforço de alpinismo.

O convite da igreja não era o de entrar: era o de subir.

Demorei a acomodar-me à luminosidade do interior. Depois me fui rendendo: nunca

tinha visto casa com tanta parede. A mesma cruz pendurada no peito de Amoroso

reinava, ampliada, no centro do edifício. Sobre a madeira do crucifixo repousava o

segundo branco deste mundo: de barbas, meio nu e coberto de feridas.

- Ajoelhe-se perante Cristo - ordenou Amoroso.

- Ela não pode, padre. Esqueceu-se por que é que ela veio para cá, para a Missão?

- Ajudemo-la. Ela tem que o fazer.

Os dois homens suspenderam-me pelos braços para depois me largarem.

Desmoronei como um pano molhado. Fiquei esparramada no chão de pedra e

contemplei, desse ângulo, Amoroso e Cristo. Os dois brancos se pareciam:

tristonhos e murchos como se a vida ocorresse sempre num outro, inacessível lugar.

Cristo expunha as feridas, Amoroso exibia o seu olhar viúvo. Ambos nos chamavam

para a grande família dos sofredores. Para a família dos que só em sofrimento se

sentem próximos de Deus.

***

- Então, já decidiu sobre a minha menina?- inquiriu o padre.

O pronome possessivo irritou o meu avô. Minha menina?

- Essa minha neta será sempre minha, deixo-a por aqui um tempo, apenas até ela

voltar a andar - essas foram as suas zangadas palavras, à saída da igreja. - Eu

90

mesmo a virei buscar para a levar, pelo seu pé, de volta a nossa casa - prometeu,

enfático, o meu avô.

O sacerdote português pareceu não escutar. Contemplava, embevecido, o teto da

igreja como se olhasse para além do que estava a ver. Ficou assim imóvel, sem

reparar que Adjiru já se havia retirado. Estava satisfeito: numa região

predominantemente muçulmana, a exibição de um milagre poderia render crentes e

créditos. Sorrindo, disse-me:

- O seu avozinho, quando morrer, vai direto para o céu.

- Meu avô não vai morrer nunca!

Para mim, Adjiru Kapitamoro tinha o viver da árvore: sendo chão, já era pertença do

céu (COUTO, 2012, p.127-128).

O espanto da jovem, com a fragilidade do avô diante da igreja, se deve ao fato de que,

por muito tempo, Adjiru esteve próximo do catolicismo, dizia que gostaria de “devolver os

tambores para as mãos de Deus, fazer o sagrado livro dançar” (COUTO, 2012, p. 132), o que

mostra também sua fronteira entre a cultura do colonizador e do colonizado. Entretanto,

depois que seu irmão mais velho, Vicente, entrou ferido, neste lugar sagrado, e sem socorro,

morreu, despertou-lhe um sentimento de descrença com relação à igreja e também com o

futuro de Kulumani. Por isso, preferia ficar afastado do templo e “pedia aos irmãos para que

entrassem e rezassem em seu nome” (COUTO, 2012, p.131).

Mesmo diante da dor de tanta violência, seu avô nunca deixou de visitá-la. Durante os

dois anos que ela passou na Missão, a menina ouviu histórias, que a encantaram e também

notícias de tantos males provocados pela guerra. Era visível observar o vazio interior em

tantos indivíduos:

A constante presença de Adjiru na Missão dava-me sossego, mas engrandecia outras

ausências. Certa vez, venci o medo:

- Avô, diga-me: os meus pais estão tristes comigo?

- É que agora a guerra já é a tempo inteiro. É por isso que não a visitam. Todos

saíram, apenas resto eu e mais uns como eu, desses que não contam.

- Não tem medo de ser morto?

- Sou tão magrito que nenhum tiro me acerta.

Na realidade, lá fora cresciam disparos e explosões. O padre Amoroso era solicitado

para funerais cada vez mais frequentes, cada vez mais distantes. A população de

Kulumani, incluindo os meus pais, há meses que se transferira para Palma. Ficaram

apenas Adjiru e os seus cinco irmãos. Estavam convencidos de que, por serem

velhos, seriam poupados. Mas não era a idade que os salvava: eles pagavam pela sua

segurança. Aquilo que caçavam era para dar aos soldados de um e de outro exército.

- E assim, Mariamar - lembrava Adjiru.

-Na guerra, os pobres são mortos. Na paz, os pobres morrem

(COUTO, 2012, p.130).

Passando, sucintamente, por esse confronto da guerra civil, observa-se que, em

Moçambique36, a euforia, após a independência em 25 de junho de 1975, durou pouco tempo,

36 Informações: SECCO, 1999, p.28.

CAMPOS, 2009, p.80.

91

pois as contradições políticas entre a RENAMO e a FRELIMO provocaram uma longa guerra

civil, que devastou o país. A FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) assumiu o

poder do país e elegeu Samora Machel presidente, cujo o projeto político de linha socialista,

tendo o apoio da União Soviética, visava modernizar o país, rompendo com o que considerava

atrasado e/ou fruto da tradição. Isto gerou “um descontentamento entre as chefias tradicionais

e a população rural” (CAMPOS, 2009, p.80). Segundo Afonso, o “exército moçambicano

agrupou, de forma autoritária, camponeses que tinham as suas próprias regras de

funcionamento social e que não aceitaram bem esta transformação do seu habitat” (AFONSO,

2004, p.27).

A insatisfação se deu também no plano internacional, já que os países que cercavam

Moçambique não aprovavam esta bases ideológicas, como a África do Sul, que mantinha a

política do apartheid (segregação racial implantada, em 1948) e a Rodésia, com o regime

racista de Ian Smith. Além dos acordos econômicos rompidos, catástrofes naturais

aumentaram o caos nesta fase de reconstrução da nação. Assim, todos aqueles que eram

contrários à FRELIMO constituíram a RENAMO (Resistência Nacional de Moçambique).

A RENAMO, com financiamento da Rodésia e, mais tarde, da África do Sul, iniciou o

conflito armado contra a FRELIMO. Após dezesseis anos de guerra, no dia 4 de outubro de

1992, em Roma, foi assinado o Acordo de Paz, entre o presidente de Moçambique, Joaquim

Chissano, e o líder da RENAMO, Afonso Dhlakama. Dentre os objetivos do acordo buscara-

se garantir: “liberdade de crenças, opinião e associação; pluralismo partidário; independência

dos tribunais; eleições livres e secretas; respeito aos direitos cívicos e humanos; e anistia a

presos políticos.”37 Mesmo com o acordo, o país continuou a sofrer com a destruição deixada

pela guerra, como: a falta de infraestrutura, problemas psicológicos e físicos; além da própria

calamidade natural.

Para as pesquisadoras Fonseca e Cury, a temática da guerra aparece em muitas obras

de Mia Couto. “Não é sem razão que isso se dá, uma vez que o escritor, tendo participado

como jornalista da última fase das lutas contra o colonizador português, viveu o longo período

das guerras civis” (FONSECA & CURY, 2008, p.37). Acrescenta-se, na trama, mesmo com o

conflito acabado, a paz é vista aparentemente, pois outras dificuldades causadas pela violência

continuam. Esta reflexão dialoga com a resenha de Padilha sobre A confissão da leoa em que:

o texto, que se vai produzindo e montando frente a nossos olhos leitores, reforça a

ideia de desvios, desordens e dissonâncias do sonho antigo que alimentara a criação

da nação. O que se tem são violências e exclusões de toda a ordem. Por isso, a

37 Ibidem, p.85.

92

palavra <<guerra>> é convocada em muitos momentos do romance, mesmo que

suas ações se passem em tempos de paz. (...)

Aprofunda-se, por tal perspectiva crítica, uma espécie de mergulho no corpo

nacional moçambicano, desenhando-se a face de um país marcado por contradições

de natureza vária que ameaçam despedaçá-lo, como se dá com os corpos dilacerados

pela fúria dos leões (PADILHA, 2013, p.270-271).

Neste sentido, depois da saída de Mariamar da Missão, mesmo com o fim da guerra

civil, observam-se os problemas sociais e principalmente o tormento vivenciado pelas

mulheres: a violência masculina. Por isso, esse cenário não é recebido com euforia por Adjiru,

que, com um olhar descrente em tempos de paz, nota que há ainda muitos temores rodando na

aldeia. Assim, os argumentos positivos do padre não são suficientes para convencer o “mais

velho”, que aconselha a neta, não só a andar, mas também a “dar murros, dentadas e

pontapés” para se proteger:

Fazendo apelo à divina inspiração, Amoroso foi desfiando um longo rosário de

argumentos. A mão de Deus, disse ele, é a de um guia cego. O que essa mão

pretende é que sejamos donos de caminhos. Mas os caminhos têm duração de

estrela: quando os vemos já há muito que deixaram de existir.

- Tudo isso são palavras. Que mão de Deus aponta o caminho da guerra, senhor

Amoroso?

- Por que me chama de senhor? Por que já não me trata por «padre»?

- O senhor vive fechado. Veja o que se passa lá fora. E vai ver que, às vezes, os

deuses morrem nas guerras ...

- Como ousa falar assim em plena casa de Deus?

- Esta igreja fui eu que a fiz. Eu e os meus irmãos. Começámos a sua construção

quando éramos ainda escravos.

Fez uma pausa, mediu as palavras e acabou por desabafar, sem mágoa, como se

estivesse entre amigos:

- Devíamos, nesse tempo, ter atirado a igreja para o rio.

- Cruzes, credo!

Em bicos de pés, a voz trémula de emoção, tudo no padre contrastava com a

tranquilidade do avô:

- Queria ver um milagre, Adjiru? Pois veja a sua neta - e, falando para mim,

ordenou:- Mostre-lhe, Mariamar, mostre-lhe...

Levantei-me e caminhei na direcção de Adjiru. Bamboleantes as pernas, mas os

passos firmes. O avô não pareceu surpreso. - Mariamar já anda, estou muito feliz. Mas eu pergunto: o senhor padre lhe

ensinou a dar pontapés?

-Pontapés? Então isso ensina-se a uma menina?

- Exatamente, padre. Exatamente por ser menina é que ela deve aprender a dar

murros, dentadas, pontapés ...

- Essas não são palavras de um crente. Aqui ensinamos a amar o próximo. -De quem mais nos precisamos defender é dos que nos são mais próximos

(COUTO, 2012, p.132-133- negritos nossos).

Dando continuidade ao trecho da passagem anterior, a partida de Mariamar é marcada

pela opressão. Com o olhar vigilante do sacerdote, ela tenta ensaiar uns movimentos

desajeitados de dança pela sala. Para o padre esta exibição deveria ser visualizada por todos,

pois ele almejava a glória e a conversão de muitos moçambicanos com a cura da jovem.

93

Entretanto, os primeiros passos da menina fora da Missão acontecem longe dos olhares dos

habitantes, pois Adjiru vai buscá-la e a coloca no carrinho para evitar aglomeração. Ao

mesmo tempo, esta atitude do avô é uma forma também de homenageá-la pelo aniversário de

dezesseis anos e de tratá-la como uma deusa:

Ergueu-se e rondou à minha volta, as mãos percutiram no peito, a simular um

tambor, e começou a ondular os braços. O avô sabia que o padre interditava que

dançássemos.

- Ainda dança, Mariamar? Ora mostre-se que ainda sabe levantar poeira.

O olhar vigilante de Amoroso não me autorizava o balanço. Ensaiei uns desajeitados

passos pela sala e, sem mais esperar, o avô ergueu o braço suspendendo a patét ica

exibição. Em tom seco, ordenou:

- Vá fazer a mala que amanhã venho buscá-la.

No dia seguinte regressou, trazendo um carrinho de mão. Ainda lhe lembrei que

podia caminhar por meus próprios passos. Perentório, apontou o tosco veículo e

inquiriu:

- Minha filha, você sabe que dia é hoje?

- Hoje?

- Você faz dezasseis anos hoje. Tem o direito de ser carregada.

Montada nesse carrinho percorri a aldeia, escutando atrás de mim os desesperados

gritos do missionário:

- Mariamar já anda, é um milagre de Deus, é um milagre! Vai no carrinho, mas ela

anda perfeitamente. Venham ver, que é um milagre! (COUTO, 2012, p.133-134)

Durante o caminho de retorno ao seu lar, Mariamar não reconhece a aldeia. O que

mais lhe impressiona, não era só a mudança geográfica, mas a quantidade de vendedores na

estrada em busca da sobrevivência: “Kulumani estava irreconhecível. Com o final da guerra,

as pessoas tinham regressado à aldeia. (...) E parecia terem-se multiplicado os habitantes.

Uma multidão de vendedores enchia a estrada que nos ligava a Palma” (COUTO, 2012,

p.134). Segundo a pesquisadora Afonso, depois da guerra civil, “muitos moçambicanos

refugiaram-se nos países vizinhos e um número elevado de <<deslocado>> (...) instalaram-se

na periferia das grandes cidades” (AFONSO, 2004, p.29).

A própria menina confessa a luta dos escassos recursos após os confrontos. Relembra

sua tentativa de vender galinhas na estrada para juntar dinheiro para fugir de Kulumani, mas

em vão, pois reconhece que este deserto não tinha saída:

O único fito que restava era ficar longe de Kulumani. Nas tardes de domingo

assaltava a capoeira da Missão Católica para vender galinhas na berma da estrada. A

minha intenção era amealhar uns dinheiros para fugir para a cidade. Todavia, a

estrada estava quase deserta, com raríssimos viajantes. A guerra acabara nesse

mesmo ano de 1992, mas restava ainda um invisível garrote asfixiando o nosso

lugar.

Nunca entendi por que motivo tantos vendedores se aglomeravam junto à estrada

morta. Talvez fosse uma espécie de reza, uma forma de nos ajoelharmos perante o

destino. Ou talvez fosse porque ocasionalmente por ali já despontassem camiões de

madeireiros furtivos. Aqueles negócios eram propriedade de gente poderosa, a quem

chamamos de «donos da terra». Passasse quem passasse, eu levantava os galináceos

no ar e as asas agitavam-se num voo breve e cego. Nunca ninguém parou, nunca

ninguém comprou. Com um estúpido cacarejo, as aves voltavam a pender da minha

94

mão, como se lhes pesasse o arremesso de pássaro que, por instantes, elas tinham

ousado (COUTO, 2012, p.50-51).

Seu retorno a casa não foi como imaginava, com muita alegria e felicitações por voltar

a andar, uma vez que a família ainda recolhe os cacos deixados pela guerra, principalmente

sua mãe que menciona o problema da dominação masculina. Nesta outra guerra vivenciada

pelas mulheres, a violência “silenciada” se apresenta em todos os sentidos: físico e

psicológico e deixam marcas traumáticas, configurando a solidão e o medo:

Em casa, apenas Silência festejou o meu regresso. Minha mãe estava peneirando

arroz e ergueu o rosto, sem entusiasmo. Fui eu que falei, depois de um longo

silêncio:

- O avô diz que faço anos hoje.

- O avô inventa calendários. É por isso que ele ainda não morreu.

- Seja que dia for, é bom voltar. Voltar, agora que temos paz ...

Sem desviar os olhos da peneira, Hanifa Assulua reclamou, em surdina. Eu falava da

Paz? Qual Paz?

- Talvez para eles, os homens - disse. - Porque nós, mulheres, todas as manhãs

continuamos a despertar para uma antiga e infindável guerra.

Hanifa Assulua não tinha dúvidas sobre a condição das mulheres de Kulumani.

Acordávamos de madrugada como sonolentos soldados e atravessávamos o dia

como se a Vida fosse nossa inimiga. Regressávamos de noite sem que nada nem

ninguém nos confortasse das batalhas que enfrentávamos. Esse rosário de

reclamações a mãe desfiou de um só fôlego, como se fosse algo que há muito queria

dizer.

- Por isso, minha filha: deixe lá na Missão essa conversa de Paz. Durante este

tempo, você viveu lá, nós tivemos que sobreviver aqui.

Acusava-me. Como se eu fosse culpada não apenas da sua solidão como da

infelicidade de todas as mulheres. Atravessei o corredor com os pequenos passos da

prisioneira que regressa à cela (COUTO, 2012, p.134-135).

Em uma de suas intervenções “O futuro por Metade”, Mia Couto aborda a violência

praticada contra a mulher. Na cerimônia em que participou como jornalista, o escritor relata

da dificuldade de sermos outros. E conta que, no dia da mulher em Moçambique, o general

Sebastião Mabote pediu a todos os homens, que gritassem: “Somos todos mulheres”. Houve

um imenso silêncio. Mia alerta que há ainda uma “violência silenciada”, pois muitas meninas

interrompem o ciclo de vida, onde deveriam ser filhas; na verdade, já são mães. E chama a

atenção para o fato de que, “um país em que as mulheres só podem ser a sua metade está

condenado a ter apenas metade do seu futuro” (COUTO, 2009a, p.146).

Esse pensamento relaciona-se com um dos testemunhos escrito pela autora

moçambicana Paulina Chiziane sobre as dificuldades enfrentadas pelas mulheres, que são

oprimidas: “pelo meio social, pelas ideias fatalistas que regem as áreas mais conservadoras da

sociedade. Dentro de mim, qualquer coisa me faz pensar que a nossa sorte seria diferente se

Deus fosse mulher” (CHIZIANE, 2013, p.200).

95

Na trama de Mia Couto, a confissão de Mariamar dá visibilidade ao universo opressor,

principalmente, os abusos sexuais cometidos por seu pai Genito. Relata que a primeira vítima

foi Silência, daí a origem do nome da irmã, e em seguida ela mesma:

Hoje, sei: a história da minha infância não é senão uma meia verdade. Para

desmentir uma meia verdade é preciso bem mais que a verdade inteira. Essa verdade

enorme, tão vasta que me escapava, era apenas uma: não foram os castigos fisicos

que me fizeram estéril. Essa era a versão adocicada inventada por minha mãe. O

crime foi outro: durante anos, meu pai, Genito Mpepe, abusou das filhas. Primeiro

aconteceu com Silência. Minha irmã sofreu calada, sem partilhar esse terríve l

segredo. Assim que me despontaram os seios, fui eu a vítima. Ao fim das tardes,

Genito migrava de si mesmo por via da lipa, a aguardente de palmeira. Já bem

bebido, entrava no nosso quarto e o pesadelo começava. O inacreditável era que, no

momento da violação, eu me exilava de mim, incapaz de ser aquela que ali estava,

por baixo do corpo suado do meu pai. Um estranho processo me fazia esquecer, no

instante seguinte, o que acabara de sofrer. Essa súbita amnésia tinha uma intenção:

eu evitava ficar órfã. Tudo aquilo, afinal, sucedia sem chegar nunca a acontecer:

Genito Mpepe desertava para uma outra existência e eu me convertia numa outra

criatura, inacessível, inexistente (COUTO, 2012, p.187).

A palavra “trauma” em Vocabulário de psicanálise apresenta um “acontecimento da

vida do sujeito que se define pela sua intensidade, pela incapacidade em que se encontra o

sujeito de reagir a ele de forma adequada, pelo transtorno (...) que provoca na organização

psíquica” (LAPLANCHE & PONTALIS, 2001, p.522). O termo, que vem do grego38,

significa “ferida, dano”. Para Márcio Seligmann-Silva, o trauma é definido como uma “ferida

da memória” (SELIGMANN-SILVA, 2000, p.84), isto é, o indivíduo vivencia um fato que

deixa marcas profundas, que, muitas vezes, o impedem de testemunhar.

O pesquisador retoma o pensamento da psicanalista armênia Héléne Piralian, para

acrescentar a dificuldade de narrar o trauma, que passa por uma “(re)construção de um espaço

simbólico da vida” (PIRALIAN apud SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 105). Para Seligmann,

a cena traumática, que permanece incorporada, como um corpo estranho, nunca aparece

completa; precisa, enquanto linguagem, da construção de metáforas e repetições para dar uma

“nova dimensão aos fatos antes enterrados” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 105).

Dessa forma, quando Mariamar confessa o abuso paterno, recria-o admitindo ter uma

“súbita amnésia” e que “tudo aquilo, afinal, sucedia sem chegar nunca a acontecer” (COUTO,

2012, p. 187). Assim, notam-se duas situações: na primeira, ao admitir o esquecimento, a

menina tenta, apesar de tudo, manter a figura paterna e na segunda, como um caminho de

proteção contra a violência sua alternativa é o autoexílio. Neste processo, o seu corpo

38 Retirado do site: http://www.priberam.pt/dlpo/trauma. Acesso: 12/06/2014.

96

apresenta sinais de autodefesa, através das enfermidades, o que provoca o afastamento dos

demais habitantes, que não queriam se contaminar:

Fiquei internada um tempo na enfermaria sem vestígio de melhoras. A medicina

desistiu de mim, mas não foi por isso que me trouxeram de volta a Kulumani. No

Hospital de Palma permaneci, com menos vida e ainda menos companhia. Só depois

entendi aquele adiamento do meu regresso. O avô Adjiru morreu por esses dias. Não

quiseram que eu estivesse presente. Não para me poupar da despedida. Mas para que

essa despedida demorasse a vida inteira.

No primeiro aniversário da morte do avô levaram-me a visitar a sua campa. O

falecido tinha deixado expresso o desejo de me ver presente na cerimónia. Eu já

regressara a casa, mas a minha condição não se alterara. Ninguém quis transportar-

me naquele estado, estrada afora. Podia contaminar as viaturas. Optaram por me

conduzir numa embarcação, rio abaixo, até ao bosque sagrado onde repousavam

Adjiru e o bisavô Muarimi (COUTO, 2012, p.189-190).

Pouco a pouco, Mariamar revela que o resultado de sua “inexistência” é a sua morte

em vida. Percebemos, neste momento, a jovem como o símbolo da nação moçambicana pós-

guerra civil, isto é, marcada pela desconstrução dos ideais revolucionários na independência.

A grande euforia, em 1975, com o surgimento da nação moçambicana, foi substituída por

longos anos de violência. Mesmo em tempos de paz, cicatrizes permaneceram e restaram aos

moçambicanos muitas incertezas. No caso da nossa protagonista, esta analogia é pertinente,

pois sua origem permeada por sonhos passa a ser marcada por ausências. Somente ao final de

sua confissão, nota-se um sopro de esperança; por isso, acontece o seu novo nascimento com

o avô, que lhe concede o definitivo nome, e, mais tarde, com a mãe, ao receber a “corda do

tempo” (COUTO, 2012, p.186-250).

Ainda com relação a sua natividade, Mariamar é renegada pelos pais, que a deixaram

em contato com o solo, tendo como berço o acolhimento na “terra húmida”. Segundo Mircea

Eliade (1992, p.71), a imagem primordial da terra mãe lhe assegura uma proteção divina,

como se ocorresse um renascimento:

Confesso agora o que devia ter anunciado logo de início: eu nunca nasci. Ou

melhor: nasci morta. Ainda hoje a minha mãe aguarda pelo meu choro natal. Só as

mulheres sabem quanto se morre e nasce no momento do parto. Porque não são dois

corpos que se separam: é o dilacerar de um único corpo, de um corpo que queria

guardar duas vidas. Não é a dor física que, naquele momento, mais aflige a mulher.

É uma outra dor. É uma parte de si que se desprende, o rasgar de uma estrada que,

aos poucos, nos devora os filhos, um por um.

É por isso que não há maior sofrimento que dar à luz um corpo sem vida. Nos

braços da minha mãe depositaram essa criatura inanimada e retiraram-se todos do

quarto. Dizem que ela cantou para me embalar, desfiando a mesma ladainha com

que celebrara os anteriores partos. Horas depois, meu pai tomou nos braços o meu

corpo sem peso e disse:

- Vamos deitá-la na margem do rio.

Na berma da água se enterram os que não têm nome. Ali me deixaram, para

que me lembrasse sempre de que nunca nasci. A terra húmida me abraçou com

o carinho que a minha mãe me dedicara nos seus vencidos braços . Desse escuro

97

regaço guardo memória e, confesso, tenho a mesma saudade que se tem de uma

longínqua avó.

No dia seguinte, porém, repararam que a terra se revolvia na minha recente campa.

Um bicho subterrâneo tomava conta dos meus restos? Meu pai muniu -se de catana

para se defender da criatura que emergia do chão. Não chegou a usar a arma. Uma

pequena perna ascendeu do pó e rodopiou como um mastro cego. Depois

apareceram as costelas, os ombros, a cabeça. Eu estava nascendo. O mesmo

estremecer convulso, o mesmo desamparado grito dos recém-nascidos. Eu

estava sendo parida do ventre de onde nascem as pedras, os montes e os rios

(COUTO, 2012, p.233-234- negritos nossos).

A jovem traz um vazio de uma vida impedida de evoluir, uma vez que, constata, na

primeira parte desta passagem, o estado, segundo Afonso, de <<zumbificação>>, isto é, sente-

se completamente perdida, “vítima de um destino implacável que faz abortar os mais

modestos dos seus sonhos” (AFONSO, 2004, p.402). Daí retoma, mais uma vez, a sua

condição de opressão feminina, na qual os caminhos são redesenhados pelos homens.

Este fluxo de abandono se repete em sonho, que transfigura tanto a memória

individual da jovem, quanto a memória coletiva. Isto é, na imagem do mar, símbolo da

“dinâmica da vida” (CHEVALIER, 2009, p. 592) Mariamar apresenta a tentativa de

transformação. É por ele que a protagonista deseja concretizar a fuga com seu amor e mudar

de vida. É por esse recurso aquático também, que nota-se a chegada dos portugueses em

Moçambique. Em ambos os casos, há uma descrença em relação à mudança:

- Dombe! Dombe!

Ao longe, para além da neblina, pessoas gritavam. Tomavam-nos por criaturas de

raça branca. Essa a razão de nos chamarem de dombe, que é o nome que se dá aos

peixes. Desde que aqui aportaram, há séculos, que os portugueses são assim

designados. Desaguados nas praias, vindos do líquido horizonte, eles só podiam ter

nascido no oceano. Que era de onde provínhamos nós, eu e Arcanjo.

Estendido a meu lado, inconsciente, o caçador parecia sucumbido. Aquele era o meu

pesadelo: eu e Arcanjo naufragávamos numa praia quando fugíamos numa canoa,

rio abaixo. A corrente lançara-nos para além do estuário até nos depositar na

rebentação, por entre destroços espalhados pela areia.

Aos poucos, sombras emergiam das dunas, flamejantes vultos acorriam em

nossa direção. Vêm-nos salvar, pensava. Mas quando se debruçavam sobre nós

o que faziam era roubarem-nos roupas e bens. A horda em fúria ia subindo de

tom, nos compassados incentivos:

- Dombe, dombe!

- Não nos matem, por favor não nos matem - suplicava eu, em pranto.

- Vocês são peixes, vamos esventrá-los.

- Sou pessoa! Sou negra, vejam-me!

Constatava, então, o ridículo da situação. Como pode alguém fazer prova da sua

própria raça? Queria falar em shimakonde, não me ocorria uma simples palavra. De

novo, os compassados gritos, como num ritual de execução. De súbito, uma visão

emerge do fundo nebuloso: Genito Mpepe, catana na mão, comandando a ululante

turba:

- Dombe! Dombe!

Era o fim. Meu pai prepara-se para catanear o meu amante. Ao meu lado,

desfalecido, Arcanjo não dá conta do eminente perigo. Veloz como um relâmpago, a

catana sulca o ar mas não chega a atingir a vítima. Inesperadamente, o corpo do

caçador se liquefaz, onda após onda, até ser mar, nada mais que mar. Arcanjo

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salvava-se, no derradeiro instante convertido em água. No sonho, também eu me

entregava a esse último abandono, juntando-me ao destino do meu amado. Já que

ninguém me vinha salvar, preferia dissolver-me numa outra substância.

O sonho me ensinou uma decisão: eu queria morrer afogada. Nunca quis nada

tanto assim. Morrer na água é um regresso. Foi isso que senti ao ver o mar pela

primeira vez: saudade desse ventre para onde, naquele momento, eu retornava.

Saudade dessa morte doce, desse pulsar de um duplo coração, dessa água que,

afinal, é todo o nosso corpo.

Queixava-se minha mãe, Hanifa Assulua, que, em Kulumani, nós estávamos

enterrados. Era o contrário. Afogados, sim. Todos nós , já antes, estivemos afogados

antes de nascermos. A luz que nos recebeu no parto foi a primeira praia onde

desembocámos (COUTO, 2012, p.160-161-negritos nossos).

Diante de tantas lembranças dolorosas, a única luz que se projeta é pelos seus olhos.

Segundo Marilena Chauí, o “olhar é, ao mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro

de si. Porque estamos certos de que a visão depende de nós e se origina em nossos olhos,

expondo nosso interior ao exterior, falamos em janelas” (CHAUÍ, 1988, p.33). Portanto, em

Mariamar, embora cercada de trevas, a janela, que se abre para o mundo, é por meio do seu

olhar, pois reflete a luz intensa de uma leoa, que resiste diante das adversidades:

Dizem que a minha mãe, naquele momento, envelheceu tudo quanto havia de

envelhecer. Ser velho é esperar doenças. Naquele instante, Hanifa Assulua era toda

ela uma enfermidade. Meu pai espreitou o rosto grave de minha mãe e inquiriu:

- Sou pai de toupeira, eu?

Foi então que uma luz estranha pousou sobre o meu pequeno rosto. E viu -se,

naquele momento, como eram fundos os meus olhos, tão fundos como o remanso

das águas do rio. Os presentes contemplavam o meu rosto e não suportavam o

incêndio do meu olhar. Meu velho, receoso, titubeava:

- Os olhos dela, esses olhos ...

Uma suspeita foi despontando em todos: eu era uma pessoa não humana. Ninguém

ousou falar. Não demorou, porém, que a minha mãe desse conta: havia nos meus

olhos claros a translucência de uma outra, afastada alma. Ela se perguntava, em

solitário pranto, a razão de meus olhos serem assim amarelos, quase solares. Alguma

vez se vira tais olhos em pessoa negra? Talvez os meus olhos tivessem ficado

luminosos de tanto procurar nos sombrios subterrâneos.

As trevas, dizem, são o reino dos mortos. Não é verdade. Tal como a luz, o escuro só

existe para os vivos. Onde os mortos habitam é no crepúsculo, nessa fresta entre dia

e noite, onde o tempo em si mesmo se enrosca. (...)

(COUTO, 2012, p.234- 235).

Esse olhar também revela outra habilidade: o de despertar para um outro tempo, como

apontados em diferentes momentos entre Mariamar/leoa e o caçador. Na primeira, revela-se

na tentativa de caça, na qual o caçador confessa ter sido hipnotizado por uma luz divina e

lembra daqueles olhos, mas não sabe de onde. Na segunda, no final da trama, Arcanjo troca

olhares com a jovem e sente-se atraído. Para Maria Rita Kehl, o indivíduo seduzido “é alguém

que perde o rumo e tem que se guiar, nas brumas de uma infância revisitada, pela bússola do

olhar sedutor” (KEHL, 1988, p.411). No caso do caçador, esta experiência com a jovem é tão

intensa, que traz essa sensação do tempo de criança:

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(...) Quando o seu olhar cruza com o meu, uma tontura me fulmina. De súbito,

aqueles olhos de mel transportam-me para um passado que parecia desvanecido.

Desvio o rosto, sou caçador, sei fugir das armadilhas. Aqueles olhos, de tanta luz,

escurecem o mundo. Mas é um escuro bom, um suave entorpecimento de infância.

De tão claros, os olhos de Mariamar me devolviam qualquer coisa que, sem saber,

eu há muito havia perdido (...) (COUTO, 2012, p.249).

As últimas lembranças de Mariamar retomam o encontro com a leoa morta na estrada.

A jovem se solidariza com o animal e a compara como uma irmã. Pouco a pouco, liberta-se da

roupa para compartilhar os sofrimentos com a felina. Paralelamente, ao saber da morte do pai,

seu comportamento é indiferente: “Não sei medir o que sinto. Talvez não sinta nada. Ou

talvez aquela morte já tivesse ocorrido havia muito dentro de mim” (COUTO, 2012, p.239).

A confissão de Mariamar chega ao fim, quando revela em seus últimos papéis um

paradoxo surpreendente. Por um lado, afirma ser a vingativa leoa e a culpada pela morte das

irmãs. Explica que seu objetivo era extinguir as figuras femininas para que no futuro só

restassem homens solitários. Por outro lado, nega as mortes, pois justifica que todas as

mulheres, na verdade, já teriam nascidas mortas. Daí, seus escritos desvelam-se um “sangue

de bicho e lágrimas de mulher” (COUTO, 2012, p.239). Mais adiante, no próximo capítulo,

exploraremos o discurso desta confissão.

Nestas lembranças, a jovem revela traumas e dores de um passado no presente. Ao

manifestar a sua condição de felina, Mariamar mostra resistência, que é capaz de fragilizar as

certezas do poder masculino.

3.2. A confissão de Arcanjo

Antes de ficar órfão, tudo em mim estava intacto: a casa, o tempo, o céu onde me

diziam que a minha mãe andava guardando as estrelas. De repente, porém, olhei a

Vida e assustei-me: era tão infinita e eu tão pequeno e tão só. Subitamente, pisei a

Terra e encolhi-me: tão poucos eram os meus pés. De repente, não havia senão o

passado: a morte era uma lagoa mais escura e mais lenta que o firmamento. A mãe

estava na outra margem escrevendo cartas, e o meu pai nadava sem nunca atravessar

o infinito lago.

(COUTO, 2012, p.36)

Assim, como Mariamar, Arcanjo evoca as lembranças da infância para entender a sua

existência. Diante de tantas perdas, como da mãe, do pai e da internação do irmão no Hospital

Psiquiátrico, o início da viagem à Kulumani é também o começo do encontro consigo mesmo.

À medida que experimenta sensações nesta longa travessia, projeta imagens do passado

capazes de exteriorizar o seu esfacelamento.

O retorno à aldeia para a caçada dos leões desperta cenas traumáticas como o seu

conflito com a função de caçador, com a internação do irmão, com a morte dos pais e com a

100

guerra civil, mas também episódios agradáveis como as histórias contadas pela mãe.

Interessante que a segunda parte do seu diário, intitulado “A viagem”, prepara o leitor a

percorrer com ele as lembranças da infância:

A minha rede de captura de borboletas está suspensa, espero apenas que a

mariposa me instigue através dos seus recuos, das suas hesitações. Como ficaria

feliz se me pudesse dissolver em luz e ar, apenas com o intuito de me aproximar e

ser capaz de a dominar. Entre mim e a presa, agora, a velha lei da caça se instala:

quanto mais eu, com todo o meu ser, tento obedecer ao animal, mais me converto,

corpo e alma, em borboleta. Quanto mais perto estou de cumprir o desejo de

caçador, mais esta borboleta ganha a forma da vontade humana. No final, é como

se a captura fosse o preço que tenho que pagar para recuperar minha existência

humana. (...) No regresso da caça, o espírito da criatura condenada toma posse do

caçador.

Tradução livre de excerto de A Caça à Borboleta, de Walter Benjamim

(COUTO, 2012, p.61).

O trecho, que inicia a escrita desse bloco, se encontra em Infância berlinense por volta

de 190039, de Walter Benjamin. Nesta obra, o filósofo rememora em fragmentos a

complexidade das recordações da sua infância em Berlim, que perpassam o lembrar e o

esquecer. Segundo Susan Sontag, o filósofo “não procura recuperar o seu passado, mas

compreendê-lo: condensá-lo nas suas formas espaciais, nas suas estruturas premonitórias”

(SONTAG apud Araújo, 2010, p.75).

Para o pesquisador Jander Araújo, a obra configura a instabilidade da memória. Isto é,

“(...) Lembramos justamente o que queríamos esquecer” (ARAÚJO, 2010, p. 71). Acrescenta

que, quando Benjamin retrabalha a infância perdida, a escrita pouco a pouco desvela situações

de pequenos prazeres e frustrações, como uma forma de uma profunda reflexão sobre si

mesmo, que se associa também a uma análise coletiva, no qual o “eu” torna-se “vários eus”.

Conclui com o pensamento da pesquisadora Carla Milani Damião, que Walter Benjamin,

nesta obra, segue o princípio de que “conhecer a si mesmo significa (...) conhecer o seu século

e as condições históricas, sociais e econômicas que fizeram do si o que ele é. (...) a

39Segundo o pesquisador Jander de Melo Marques Araújo (2010), a obra teve origem em pequenos textos

autobiográficos que Walter Benjamin fora convidado a escrever para uma revista, entre 1931 e 1932, o título

para os textos era Crônica berlinense. Já entre 1932 e 1934, o teórico escreveu um conjunto de 41 textos -

traduzidos para o português -, intitulado Infância berlinense por volta de 1900 , e que se subdividem em pelo

menos duas variantes. Na última versão feita, em 1938, os manuscritos foram encontrados na Biblioteca

Nacional de Paris pelo filósofo, e tradutor dos escritos de Benjamin para o italiano, Giorgio Agamben.

Walter Benjamin não chegou a publicar o livro em vida. Há três traduções completas para a língua portuguesa,

uma no Brasil (Infância em Berlim por volta de 1900 ; 1.ed. 1987) e duas em Portugal (Infância em Berlim por

volta de 1900; 1992; Infância Berlinense: 1900; 2004). Mas apenas a edição de 2004, traduzida por João

Barrento, é a tradução da última versão de 1938. Disponível em:

http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/trabalhos/2010/dissertacao_janderdemelomarquesaraujo.pdf. Acesso:

20/05/2014.

101

experiência individual só é interessante ao unir-se ao social e ao histórico” (DAMIÃO apud

Araújo, 2010, p.74).

No caso de nossa trama em questão, o fragmento “A caça à borboleta” dialoga com a

vivência do nosso protagonista. Observa-se, principalmente, na viagem para dentro de si, que

elabora ao longo da comitiva de caça. A partir daí, retoma situações que deseja esquecer,

outras lembrar. A própria imagem da borboleta acompanha as duas figuras femininas, que

manteve contato amoroso: Luzilia e Mariamar. Na primeira, depois de uma noite de amor

com Arcanjo, ela revela a transformação interior, como visto anteriormente no capítulo, e na

segunda, a simbologia de viver em casulo lembra o desejo de ser outra criatura, assim como

acontece com a borboleta através da metamorfose. É por meio da imagem desse inseto, que

desperta o grande conflito que o acompanha: a função de caçador.

Assim, reaparece o dilema entre a caça e o caçador. Associando com o texto de

Benjamin, nota-se o comportamento do protagonista, que quanto mais perto se aproxima da

caça, mas se metamorfoseia no próprio animal, que “ganha a forma da vontade humana”

(COUTO, 2012, p.61). Isto é, à medida que entra em contato com a presa, sua rede é

“suspensa” e deseja se “dissolver em luz e ar”, pois já não deseja capturá-la, mas apenas

contemplá-la através do movimento.

Esta simbologia da “rede suspensa” aparece em vários momentos no caçador, quando

não consegue capturar sua presa. Em uma das passagens, quando se depara com a leoa, sua

aproximação acontece só por meio do olhar, que para ele traz lembranças desagradáveis:

Nessa mesma tarde parto sozinho. Rumo pelas matas que ladeiam a estrada que

conduz a Palma. Um pressentimento diz-me que aquela caminhada será produtiva.

***

O pressentimento confirma-se. A meia hora de caminho, em contraluz, a leoa surge

na outra margem de um riacho seco (...).

Aquela desesperada invocação é o que me resta quando o gatilho da espingarda fica

suspenso, à espera do crispar do meu dedo. Que maldição pesa sobre mim que, em

vez de disparar, me ponho a encomendar a alma? Dentro de mim brigam o vaticínio

da minha mãe e a herança do meu pai.

(...)

***

Chego ao acampamento tão derrotado e vazio que me deito na varanda, disposto a

dormir ao relento. Tive a leoa ao alcance de uma bala e falhei como se fosse um

novato, tomado pela ansiedade. Não mereço um teto. Talvez os deuses me perdoem

mais facilmente, assim humilde e exposto.

Não sou dos que, em aflição, se socorre dos céus. Rezar, só rezo enquanto durmo.

Os sonhos são as minhas únicas orações. Deus que não leve a mal. É que apenas me

sobra uma pequena e temporária alma. Apenas à noite esse es pírito se acende, em

delicado sussurro para que ninguém mais escute. Peço desculpa por esta

despromoção para bicho. Ter alma, contudo, é um peso que, só morto, sou capaz de

suportar. Foi por isso que amei tanto, em tantos enganados amores. (...)

(COUTO, 2012, p.168-169).

102

A partir desta experiência, “a memória, praticamente inseparável da percepção,

intercala o passado no presente, (...) faz com que de fato percebamos a matéria em nós”

(BERGSON, 2006, p.77). Portanto, a situação do presente aciona um passado que guarda em

si situações traumáticas. Por este motivo, o ato de caçar faz Arcanjo retomar cenas

traumáticas que deseja esquecer. Ao confrontar-se com essas imagens, abrem-se indagações:

“que maldição pesa sobre mim que, em vez de disparar, me ponho a encomendar a alma?”

(COUTO, 2012, p.168). Assim, a lembrança passada é acionada, o que gera desconforto em

lidar com situações dolorosas.

O filósofo Henri Bergson, em Matéria e memória, um dos pioneiros do estudo sobre a

memória, chama a atenção sobre a maneira de olhar a matéria. Isto é, o indivíduo parte da

percepção dos centros sensoriais, como um movimento de “caleidoscópio”, que combina

diferentes imagens, até armazenar na “memória reservatório” (BERGSON, 2006, p.20-174), o

que foi percebido. Deste modo, a lembrança fica guardada até ser acionada ao momento

presente. Para Bergson, esta lembrança não é nostálgica ou capaz de paralisar o pensamento,

mas ativa a reflexão do momento atual, ao reconstruir e reviver situações, a partir de novas

interações.

O autor ainda nos esclarece sobre a forma como o passado pode sobreviver: pela

memória hábito, que registra todos os acontecimentos de nossa vida cotidiana, e seria apenas

mecânica; e pela memória espontânea, na qual as imagens costumam aparecer e desaparecer

independentemente de nossa vontade, e seria uma faculdade subjetiva.

Em Arcanjo, as cenas traumáticas da infância continuam latentes no inconsciente e, a

cada aproximação com alguma nova situação, elas reaparecem. Por isso, procura dormir

tentando apenas manter uma memória prazerosa; entretanto, a insônia traz imagens que deseja

esquecer:

É quase manhã e eu ainda brigo com os lençóis. Não tenho outra doença: a ins ónia

intercalada por sonos breves e estremunhados. Afinal, durmo como os bichos que

persigo por profissão: a salteada vigília de quem sabe que demasiada ausência pode

ser fatal.

(...)

Um tiro de espingarda persegue-me desde a infância. Esse disparo me atirou, há

quarenta anos, definitivamente, para fora do sono. Eu era menino e dormia com essa

competência que só as crianças alcançam. A detonação rasgou a noite e o mundo.

Não sei como, na altura, percorri o longo corredor: os meus pequenos pés estavam

grudados ao pavimento. Na sala, encontrei o meu pai com o peito desfeito, os braços

esgravatando por entre um mar de sangue, como se nadasse para uma margem que

só ele visse. No meio desse desabar de mundo, o meu irmão Rolando permanecia

sentado no seu quarto, a arma pousada no colo.

- Não me toques - ordenou, com estranha tranquilidade. - Nunca mais toques em

mim. Vais­te queimar.

Guardou-se assim, imóvel, até que familiares e vizinhos invadiram a casa com seus

espantos e gritos. Da janela, vi o meu irmão a s er levado pela polícia. Não havia

103

dúvida: ele tinha disparado sobre o nosso pai, o reputado caçador Henrique Baleiro.

Um acidente já previsto pela nossa mãe:

- Armas de fogo em casa são causa de tragédia (COUTO, 2012, p.29, 31 e 32).

Baseando-se nas ideias freudianas, Márcio Seligmann- Silva, em “Literatura e trauma:

um novo paradigma” (2005), afirma que o conceito de trauma se desenvolveu a partir da

experiência de soldados retornados da Primeira Guerra Mundial. Para Freud, citado pelo

pesquisador, os sobreviventes repetiam nos seus sonhos regularmente a situação traumática,

como se não tivessem desvencilhado dos episódios violentos, já que desencadearam uma

ruptura psíquica.

Em outro artigo “História como trauma”, Seligmann-Silva aponta a característica do

trauma para Freud:

(...) de uma quebra do Rezschutz (pára-excitação), provocada por um susto (Schreck )

que não foi amparado pela nossa Angstbereitschaft (estado de prevenção à angústia).

A volta constante à cena do trauma (sobretudo nos sonhos) seria o resultado de um

mecanismo de preparação para essa sobreexitação que, patologicamente, vem

atrasado. O que importa para nós na teoria freudiana do trauma é tanto a sua relação

com o choque (...) como também o fato de tratar-se de um distúrbio de memória no

qual não ocorre uma experiência plena do fato vivenciado que transborda a nossa

capacidade de percepção (FREUD apud SELIGMANN-SILVA, 2000, p.85).

Em Além do princípio do prazer, Freud afirma que os sonhos são elementos

fundamentais para investigar os processos psíquicos, já que “possuem a característica de

repetidamente trazer o paciente de volta à situação (...) da qual acorda em outro susto”

(FREUD, 1975, p.24).

O trauma reaparece no sonho de Arcanjo, que relaciona os seus conflitos interiores

com os problemas em Kulumani. Na imagem, o caçador mostra uma igreja repleta de leões e

leoas, na qual o sacerdote alerta sobre a necessidade de eliminar os “homens brutais” da

aldeia e não os animais, o que associa ao abuso de poder. E, em seguida, no altar do sacrifício,

ao ouvir a palavra sangue, volta-se o temor para a caçada, pois, mesmo sabendo da missão de

caçar os leões, sabe que as lembranças do passado o atormentam; dessa forma, acorda

sobressaltado:

A velha igreja de Kulumani surge-me em sonho. Quando abro as ferrugentas

portadas deparo com um padre branco. É português, o seu rosto parece­me familiar.

É difícil imaginar que é um sacerdote. Os cabelos desgrenhados, a batina rota e suja,

emprestam-lhe a aparência de um mendigo.

- Entra, meu filho - convida ele. - O meu rebanho há muito que espera

fervorosamente por ti. Arcanjo é o teu nome e foi Deus que te enviou.

O meu olhar ajusta-se à penumbra: aqueles que o padre chamou de «rebanho de

crentes» são, afinal, leões e leoas. Os felinos estão sentados com deferência e

escutam com humana devoção a mensagem que o padre propala do púlpito. E

juntos, crentes e padre, rezam para que eu leve a bom termo a minha missão: que

acabe com os homens brutais que estão dando caça a inocentes leões. O padre ergue

104

o cálice: este é o teu sangue, proclama. Lutando para se conterem, os leões inundam

de saliva os bancos da igreja. Braços estendidos, a voz brigando para não se afogar

entre os rugidos das feras, o missionário proclama:

- Não vieste para matar leão nenhum. Tu vieste para matar uma pessoa!

***

Raio de sonho, penso ao acordar. Ponho o escritor ao corrente dos fantasmas que me

atormentaram a noite. Gustavo sorri e comenta:

- É curioso que sonhamos sempre com os mesmos bichos: leões, tigres, águias,

serpentes. No fundo, queremos ser aqueles que nos podem devorar

(COUTO, 2012, p.170-171).

Diversas vezes, sua confissão é interrompida por uma memória fragmentada para

acentuar seu permanente questionamento: Como exercer a profissão de caçador, se a

lembrança do assassinato do pai impossibilita-o de ir adiante com a caçada? Isto acontece em

diálogo com o escritor:

Para nos distrairmos da embaraçosa espera, o escritor finge interessar-se pela minha

espingarda e confessa:

- Houve tempo em que sonhava usar uma arma, queria ser guerrilheiro. Dizíamos,

nesse tempo, que a liberdade iria nascer do cano de um fuzil.

- E chegou a acontecer?

- A liberdade?

- Não. Pergunto se chegou a ser guerrilheiro.

- Mais ou menos.

- Não existe mais ou menos quando se trata de armas e de liberdade. Alguma vez

viu, alguém ser morto?

- Nunca. E você? Matou alguém ou foram só bichos?

De imediato, assalta-me a memória do meu pai sulcando o sangue que não era

apenas seu, mas de todos os Baleiros. Uma entonação grave ensombra a minha fala.

Aqueles que matámos, por mais estranhos e inimigos que sejam, tornam-se nossos

parentes para sempre. Nunca mais se retiram, permanecem mais presentes que os

vivos (COUTO, 2012, p.71-72).

Reaparece também em contato com Hanifa, que lhe pede para caçar os leões próximos

da sua casa. Sem saber que era Genito, vindo bêbado pelo mato, o caçador não consegue

manter-se firme com a arma, já que esta situação-limite o faz lembrar de Rolando:

Naquele arco de osso e nervo está a decisão dos deuses: apagar uma vida num

deflagar de relâmpago. Contudo, neste caso, o dedo, tremente, hesita.

(...)

Em casa, tiro as balas da câmara da espingarda e pressiono, repetidas vezes, o dedo

sobre o gatilho. Subsiste um intermitente tremor, mas no geral o meu corpo obedece

com prontidão. Como sempre, demoro a conciliar-me com o sono. Olhos fixos no

teto, revejo a última vista ao asilo psiquiátrico. Não me sai da memória a despedida

de Rolando, as suas longas mãos ganham asas e rodopiam cegas pelo quarto.

Demoro assim um tempo. Como dizem em Kulumani, a noite só termina quando se

calam as corujas. Sem a presença destas aves, a noite fica sem teto. E existem, sem

que eles mesmos o saibam, aqueles que espantam as agoirentas aves. A esses

enxotadores de corujas devemos o despontar dos novos dias. As mãos de Rolando

fabricam, para além da lonjura, cada uma das minhas insônias (COUTO, 2012, p.140- 141).

105

Mais adiante, quando atira na hiena, os conselhos de sua mãe provocam-lhe incômodo,

pois lembra do pedido de abandonar esta profissão. Martina já previra como a caça não fazia

parte do destino de seu filho. Para ela, o caçador sempre fora “Arcanjo”, o seu anjo, a sua vida

e não mais um “Baleiro”. Dessa forma, é evidente, na trama, que o caçador, mesmo atirando

na hiena, elabora questionamentos sobre sua atitude, pois nunca conseguiu realizar sua

verdadeira caçada dos leões:

Não tínhamos andado muito quando deparámos, ao longe, com uma hiena solitária.

Caminha como uma miragem contra o fundo indistinto do areal. O escritor tem

dificuldade em detetar o animal. Depois, quando enxerga a presa, no seu rosto

emerge a fulguração de um instante, o relampejar dos sentidos. Explico -lhe depois:

este é que é o vício. Não é matar que me fascina. É esse encontro com o esquivo

milagre, o fugaz e irrepetível momento. De supetão, sou sacudido pela firme ordem

de Genito Mpepe:

- Dispare, mate-a.

- Matar uma hiena?

- Não vê? Ela traz alguma coisa na boca, parece um pedaço de uma perna.

Temo que os meus dedos me desobedeçam uma vez mais. Desta feita, porém, a

espingarda cumpre a sua mortífera natureza. Disparo certeiro e o bicho tomba,

riscado do viver. Tudo aquilo, de chofre, causou-me estranheza. Por que razão tive,

desta vez, acesso aos meus próprios dedos? A lembrança de minha mãe, suja do meu

sangue, como se me parisse pela segunda vez, ressurge em mim. Escuto de novo a

sua profecia: o meu destino não era ser caçador. Mas por que razão essa premonição

se manifestaria apenas agora?

- Grande tiro, caiu redonda! - aclama o pisteiro.

A verdade, porém, é que, pela primeira vez, disparei sem nervo, sem alma: o tiro

rasgou o silêncio sem que eu desse conta de ter pressionado o gatilho.

Quando me debruço sobre a presa confirmo que traz um osso na boca. Não é fácil

soltá-lo das poderosas mandíbulas. Não há dúvida: trata-se de um fémur humano. O

bicho tinha-o desenterrado, esgravatando nas funestas areias.

- Sabe o que quer dizer isto? - pergunta Genito. - Quer dizer que os leões mataram

outra pessoa (COUTO, 2012, p.171-172).

Com a morte da hiena, inicia-se a investigação para descobrir a ossada que o animal

trouxe consigo. O desajuste da situação acontece, pois no território de Kula Vila, onde a

caçada foi realizada, não era um lugar habitável; apenas se guardavam ali os “restos dos

antigos guerrilheiros” (COUTO, 2012, p.173). Assim, recorre-se a feiticeira chamada de Apia

Nwapa para solucionar o caso. Para a pesquisadora Maria da Conceição Vilhena, o adivinho

ou feiticeiro “é responsável pelos rituais que restauram o poder dos espíritos e da palavra, que

assegura a ordem ensinada pelos antepassados” (VILHENA apud FONSECA & CURY,

2008, p.82).

Esta cena de procurar respostas por meio do feiticeiro acontece também em O último

voo do Flamingo, no qual o personagem Zeca Andorinho revela que a causa da morte dos

soldados da ONU seria resultado dos homens de Tizangara, que por ciúme de suas mulheres,

106

mandavam o feitiço de “likaho de sapo” (COUTO, 2005b, p.146), no qual os sujeitos

engordavam até arrebentarem.

Na nossa trama, a feiticeira revela ser Tandi, a empregada do administrador, a nova

vítima da violência. Interessante observar como o caçador, que tanto louvava a tradição da

aldeia, diante da sabedoria da senhora, se mostra descrente e passa a ser questionado sobre a

caçada do crocodilo no passado:

Fica decidido que se levaria o fatídico osso a uma velha feiticeira chamada Apia

Nwapa. Um osso não surge do nada. Mais grave ainda quando, como naquele caso,

o osso surge exatamente do nada. Recuso a consulta aos espíritos. Não tenho tempo

para aquelas distrações. Mas o escritor insiste que é vital aquela visita e que eu não

me poderia furtar a acompanhar os cerimoniantes. Desse modo conseguiria outras

bênçãos para o bom êxito da minha missão.

***

- Vou pedir licença ao rio.

A feiticeira inclina o sombreiro sobre o rosto e, nesse instante, ela própria se

converte em sombra. Apia Nwapa está inchada de vaidade: gente estranha (incluindo

um representante do próprio administrador) senta-se no seu terreiro.

A mulher recosta-se pesadamente no tronco do embondeiro. Pernas estendidas

juntas, acomoda-se como se aquela fosse a sua igreja privada. Olha longamente para

o escritor, para mim e para Maliqueto Próprio. Depois, volta a anunciar:

- Para vos dar autorização para caçarem tenho que, primeiro, pedir licença ao rio.

- Ao rio? - pergunto, impaciente.

- O rio tem os seus mandos. No Lideia mora o ngwena maior. O senhor conhece

bem esse crocodilo ...

- Conheço-o?

- É o mesmo crocodilo que o senhor matou há muito tempo atrás.

Não posso senão sorrir. Ngwena, o crocodilo? Eu já tinha licença de porte de arma,

estava autorizado a matar os leões assassinos. Faltava-me agora aguardar pela

sentença de um crocodilo imaginário? É o que pergunto, entre timidez e descrença.

A voz de Apia é contida, mas ela já não escolhe as palavras:

- Imaginário? O senhor duvida do crocodilo? Que raio de africano você é?

- Deixemos o meu assunto. Nós viemos aqui para a senhora identificar um osso

encontrado na boca da hiena.

Depositam a ossada a seus pés. Ela não se mexe, limita-se a contemplar à distância o

resto do esqueleto. Fecha os olhos e aspira fundo como se apurasse o cheiro.

- Este osso ainda está muitíssimo vivo. Esta morte foi encomendada.

As ossadas são a nossa única eternidade. Vai-se o corpo, esmorecem as lembranças.

Restam os ossos para sempre. Estes são os argumentos de Apia Nwapa: o que ali se

apresentava não era apenas um fémur. Ao avesso, era a viva prova de uma vida de

alguém.

- Sim, mas de quem?

- A minha boca não aponta ninguém. Vocês sabem de quem.

- Viemos aqui para ouvirmos isto? - pergunto, em desafio.

- Vou então adiantar alguma coisa, o senhor é caçador, vai descobrir o que está por

baixo das minhas palavras - fez uma pausa e, de olhos fechados, acrescentou: - Uma

mulher deitada por terra, caiu mais fundo que a poeira. No fim, alguém vai

engravidar de um esqueleto.

A mensagem parece indecifrável, mas Maliqueto parece entender claramente o seu

sentido. Já longe da casa da feiticeira chama-nos para a berma do caminho e

esclarece:

- Esse osso é de Tandi, a empregada do administrador, essa que foi violada...

(COUTO, 2012, p.173, 174 e 175).

107

Cabe ressaltar que o novo ciclo de questionamentos volta a atormentar o caçador, que

percebe que os problemas no presente, são resultado do passado. Mas que situação seria esta?

No diário, intitulado “Uma longa e inacabada carta”, Arcanjo articula com a confissão de

Mariamar, as marcas de uma memória “ilegível”, ao tratar da guerra civil. O ambiente

instaurado por esta violência aparece na confissão da sua infância e nos testemunhos dos

moradores de Kulumani.

O pensamento de Maurice Halbwachs vai ao encontro do pensamento bergsoniano,

quando se refere ao reconhecimento das imagens por outras imagens. Isto é, a lembrança

reaparece não por ser “um conjunto de reflexões, mas de uma aproximação de percepções

determinada pela ordem em que se apresentam determinados objetos sensíveis, ordem essa

resultante de sua posição no espaço” (HALBWACHS, 2006, p.53). Esta relação acontece

quando o caçador, ao ver a luz pela janela do avião, lembra das palavras da mãe por meio da

fábula, que narrava a soberania do Sol. A partir daí, as imagens da brincadeira na rua trazem

uma sensação de conforto, já que pedia a mãe: “Deixe-me ficar assim sujo só mais um

bocadinho” (COUTO, 2012, p. 67).

O pesquisador Halbwachs também acrescenta que “cada memória individual é um

ponto de vista sobre a memória coletiva” (HALBWACHS, 2006, p.69). Portanto, o momento

de guerra é comum para os habitantes moçambicanos, mas cada um traz uma experiência

dolorosa. Isto torna-se claro, quando em uma das cenas, o caçador junto com o escritor

resolve desarmar as armadilhas pelo caminho da aldeia. Durante o trajeto, o barulho do motor

do carro associa-se a outras imagens, principalmente do drama da violência, tanto da

submissão da mãe, quanto da guerra:

Acordo o escritor com desnecessária veemência. O homem tinha adormecido há

pouco, devia emergir de um poço fundo.

- Preciso da sua ajuda. Siga-me de carro, a iluminar-me o caminho ...

- O que se passa?

- Estes gajos encheram os caminhos de armadilhas.

- E então?

- Sou um caçador, não uso armadilhas.

Vou seguindo a pé, o ensonado escritor vai conduzindo a viatura, devagar, na minha

peugada. Aqui e ali, recolho armadilhas e lanço-as para as traseiras da carrinha.

Mais adiante deparo com uma construção feita de troncos que superam a altura de

um homem, sustentando no topo um telhado de colmo.

- Parece uma casa - avisa o escritor.

- É um utegu, uma armadilha para apanhar leões.

Passo uma corda por entre os tronco a amarro-a à viatura, ordenando que Gustavo,

de marcha à ré, arraste o teto e a paliçada.

- Vá, força, pé no pedal!

O esforço do motor, junto com os meus impacientes gritos, fazem-me recuar ao

tempo da infância. Recordo certa vez que meu pai decidiu que eu iria com ele para o

mato. A minha velha opôs-se com vigor: para além dos perigos da caça, nós

estávamos em plena guerra. Discutiram à porta de casa, era madrugada e os gritos de

108

minha mãe chamaram a atenção da vizinhança. O velho Baleiro decidiu pôr cobro à

disputa: empurrou-me para dentro do jipe e fechou-se comigo na cabina. A viatura

recuou com tais desvairadas pressas que, de súbito, um violento embate me atirou de

encontro ao vidro que se estilhaçou. O sangue escorria quente pelo rosto. Lembro

como, chorando em silêncio, a minha mãe me transportou ao colo. Ao colo. Ao

depositar-me na minha cama, o meu sangue tingindo-lhe os braços, ela proclamou

com misteriosa serenidade:

- Fica a saber, marido: este menino não será nunca um caçador

(COUTO, 2012, p. 98-99).

Em outro momento, Arcanjo certifica as consequências da violência, ao visualizar uma

grande quantidade de pessoas na margem do Lideia. Estabelece o primeiro contato na língua

local; contudo, os refugiados da guerra suspeitam do interesse por eles; portanto, afirmam:

“- Querem saber como morremos? Mas nunca ninguém veio saber como vivemos” (COUTO,

2012, p. 108). O escritor se aproxima e tenta recolher os testemunhos da guerra, já que

acredita ser uma chance de descobrir as mortes na aldeia:

O escritor é uma ave de rapina: pede relatos da guerra. Os aldeões esperam alguma

benesse. Um donativo, no linguajar local. Como pode alguém criticar-me pela minha

atividade profissional? Sou um praticante da caça? Pois, o escritor é um necrófago.

Embarcou nesta viagem para debicar desgraças, por entre sobreviventes cujo luto é o

silêncio.

Raspar as feridas do passado: é isso que Gustavo executa ao esgravatar memórias da

guerra civil.

- Do que mais se lembram do tempo de guerra?

- Não há nada a lembrar, meu senhor - diz um camponês.

- Como não há?

- Todos voltamos mortos da guerra.

Desvio o rosto. Não quero que se veja a vingança florindo no meu sorriso. Nenhuma

guerra se relata. Onde há sangue, não há palavra. O escritor está a pedir aos mortos

que mostrem as cicatrizes.

No momento, ocorre-me que é isso que me apraz na caçada: regressar para além da

vida, isento de ser pessoa (COUTO, 2012, p.108- 109).

Para Seligmann, “o testemunho é uma modalidade da memória” (SELIGMANN,

2008, p. 109) e é caracterizado como uma “atividade elementar, no sentido daquele que volta

do Lager (campo de concentração) ou de outra situação radical de violência que (...)

desencadeia esta carência absoluta de narrar” (SELIGMANN, 2008, p. 102). Por isso, na

trama, para alguns, é preferível o esquecimento. Em Holocausto, testemunho, arte e trauma,

Geoffrey H. Hartman alude que “cada testemunha conduz sua própria luta com a memória; é

provável que alguns evitarão a introspecção e fugirão da verdadeira lembrança” (HARTMAN,

2000, p.215).

Se para alguns o depoimento é inviável, para outros, como o cego, ex-soldado

moçambicano, testemunhar torna-se marca de resistência para novas violências da aldeia. Este

personagem consegue ver para além das aparências. Depara-se duas vezes com o caçador. Na

109

primeira vez, tenta avisá-lo que os problemas da aldeia não são causados de razões humanas,

mas é impedido pelo administrador:

No meio da multidão alguém me prende o braço. Correspondo, num atabalhoado

aperto de mão. Reparo, então, que se trata de um homem cego. Foi o seu

desnorteado gesto que esbarrou comigo e me fez parar a marcha. Enverga um

camuflado militar que contrasta com os pés descalços.

- Chegaram, vocês! - exclama o cego, como se cumpríssemos um destino. E depois

sentencia: ­ Vocês vieram para deixar o vosso sangue em Kulumani.

Num momento, cedendo a um estranho impulso, começo a acenar à multidão.

Lembro outras ocasiões em que fui recebido como um salvador. Esta gente, porém,

olha-me de soslaio. A pegajosa mão do cego volta a prender-me o braço:

- Você traz uma espingarda? Para quê? Estes leões não se matam com bala.

O vigor com que me persegue faz-me duvidar da autenticidade da cegueira. Essa

suspeita agrava-se quando me agarra com o desespero de um afogado e me pergunta:

- O senhor vê-me?

- Por que pergunta?

- A nós, os de Kulumani, ninguém nos vê, só os muwavi, os feiticeiros, nos prestam

atenção.

O administrador ajuda a libertar-me do impertinente cego. Empurra-me para a frente

da viatura onde os faróis abrem um recinto de luz e confidencia-me:

(...)

Depois, o administrador ordem em voz alta:

- Deixem passar! Nós vimos salvar-vos, nós trazemos quem vem matar os leões.

O cego faz uma vénia e volta a apoiar-se no meu braço para rematar:

- Não há morrer, não há matar. Vocês todos vem morrer a nossa casa

(COUTO, 2012, p.76-77).

Na segunda, consegue testemunhar que Kulumani é consequência da guerra. Esta

atitude do cego, em revelar um dos motivos da destruição da aldeia, faz-nos pensar nas ideias

de Dori Laub. Este afirma que, apesar da dificuldade em narrar a cena traumática, existe em

cada sujeito vítima da violência a necessidade de “contar e portanto de conhecer a sua própria

história, desimpedido dos fantasmas do passado contra os quais temos de nos proteger.

Devemos conhecer a nossa verdade enterrada para podemos viver as nossas vidas” (LAUB

apud SELIGMANN-SILVA, 2005, p.70).

Nesta passagem, o cego compara a chegada dos portugueses, em Moçambique, com os

“leões” que, assim como os colonizadores impuseram o medo. Nota-se que um dos recursos

utilizados para a dominação foi negar a cultura dos povos africanos através da criação de

estereótipos, o que aumentou a segregação:

O cego que nos perseguiu na noite da chegada também está na roda dos

entrevistados. Num certo momento, apoia-se nos ombros de quem estava à sua

frente e saúda-nos com uma aparatosa continência. Continua descalço, envergando o

mesmo camuflado militar.

- Que exército o senhor serviu? – pergunta o escritor.

- Servi todos - responde prontamente na minha direção, acrescenta: ­ E lembro bem

da voz daquele senhor.

- Não é possível, a minha voz?

- Desculpem, não quero ofender, mas queria perguntar: por que razão chamaram

um caçador? Deviam chamar-me a mim que sou soldado.

110

- Não entendo - argumenta o escritor. – O que é que isto tem a ver com soldados?

- Você não está a ver? Isto, meu senhor, isto não é uma caçada. Isto é uma guerra.

A guerra é que explicava a tragédia de Kulumani. Aqueles leões não emergiam do

mato nasceram do último conflito armado. Repetia-se, agora, a mesma desarrumação

de todas as pessoas tornaram-se animais e os animais tornaram-se gente. Durante as

batalhas, cadáveres foram deixados no campo, nas estradas. Os leões comeram-nos.

Naquele preciso momento, os bichos quebraram o tabu: começaram a olhar as

pessoas como presas. O cego, enfim, encerrou o longo dis curso:

- Já não somos donos, nós os homens. Agora, eles mandam no nosso medo.

Depois discorreu com eloquência e sem interrupção:

- Aconteceu o mesmo no tempo colonial. Os leões fazem-me lembrar os soldados do

exército português. Esses portugueses tanto foram imaginados por nós que se

tornaram poderosos. Os portugueses não tinham força para nos vencer. Por isso,

fizeram com que as suas vítimas se matassem a si mesmas. E nós, pretos,

aprendemos a nos odiar a nós mesmos.

O velho falava como se discursasse, pleno de certeza. Naquele momento, ele era um

soldado. Uma imaginária farda cingia-lhe a alma (COUTO, 2012, p.109-110).

O administrador afirma, em seu depoimento, que a causa do aparecimento dos leões

relaciona-se a Simão Mutapa. Depois de ser suspeito de acumular “artefactos mágicos” da

modernidade, como restos de sucatas, o morador da aldeia é espancado e ameaçado de morte.

Numa aldeia, onde ninguém poderia ser ou ter nada, o poder arbitrário impera. Assim, sem

voz para se defender, a família Mutapa decide ir embora:

Espalhara-se na aldeia o rumor de que a família Mutapa tinha poderes invisíveis. Era

na casa de Simão, diziam, que se fabricavam os leões. De pouco valeu o

esclarecimento, de pouco valeu as autoridades provinciais terem enviado uma

comissão de inquérito. Mutapa abriu a casa e expôs a sua intimidade para provar a

sua inocência. Vasculharam a residência, o quintal, o local de trabalho. Não

encontraram nenhuma mintela, nenhum desses materiais com que se fabricam leões.

Mas estava escrito que ele era um fazedor de leões.

- E em que consistem essas mintela? - quer saber o escritor.

Antigamente, as mintela eram apenas raízes, cascas e ossos. Agora, os artefactos

mágicos incluem desperdícios da modernidade urbana: ácido da bateria de carro,

caixas velhas de telemóvel, teclados de computador.

- Deve ter havido uma razão para tanta suspeita - insiste Gustavo.

O fundamento da suspeita era apenas um: os Mutapa acumulavam posses. Para

qualquer um de nós, os bens daquele funcionário eram escassos, quase invisíveis.

Uns poucos pés de cana-de-açúcar, umas tantas bananeiras e um alambique onde as

filhas produziam lipa. Aos olhos da aldeia, porém, aquela riqueza era enorme e

inexplicável. Num lugar em que ninguém pode ser alguém, Simão Mutapa acabou

dando nas vistas. A vizinhança foi atiçada. E a vizinhança é como os remédios: é

muito boa, mas só se apresenta quando há doença. Acusado de «fazer» leões, Simão

foi espancado e ameaçado de morte. No dia seguinte, ele a família desapareceram na

estrada (COUTO, 2012, p.142- 143).

Sem esclarecer, através dos depoimentos, o aparecimento dos leões, a caçada

continuou. Longe de Kulumani, o caçador tem uma noite de amor com Luzilia e escuta tiros

da aldeia. Ao saber da notícia da morte dos animais por Genito e Maliqueto, Arcanjo descreve

a sensação de não ter sido o responsável por esta missão: “Para mim, o último caçador do

mundo, não me restava senão a constatação do sucesso de infames matadores. Para mim,

111

Arcanjo Baleiro, que sabia de bala e não de escrita, não me restava senão elaborar o relatório

da ocorrência” (COUTO, 2012, p.227). Interessante, como a arma dá lugar ao poder da

escrita, esta que é instrumento de sua confissão de conhecer a si mesmo.

Após, a morte dos felinos, aparece a última lembrança da infância, que remete ao

conselho da mãe em não exercer a função de caçador, o que garante certo alívio das cenas

traumáticas que o acompanhavam:

Florindo Makwala conduz-me ao leão morto, como se fosse uma excursão ao meu

próprio fracasso. Não cacei nenhum dos leões. O meu irmão Rolando pode estar

tranquilo: esta não foi a minha última caçada. Esta não foi sequer uma caçada. E a

minha mãe, onde quer que esteja, pode-se orgulhar do seu vaticínio: eu e a caça

divergimos de destino (COUTO, 2012, p.245).

À medida que depreende que sua função nunca foi ser caçador, Arcanjo liberta-se das

mazelas interiores e nota que sempre foram às mulheres a costurar sua “rasgada história”

(COUTO, 2012, p.250). Se por um lado, em Palma, Luzilia espera o seu retorno, por outro

lado, em Kulumani, ele termina junto com Mariamar. Ao conduzi-la para longe da aldeia, leva

consigo aquela que tem a “corda do tempo” (COUTO, 2012, p.186-250), a portadora da vida,

a jovem que representa a geração de novos começos. Por fim, Arcanjo guarda a confissão de

Hanifa, sobre a revelação dos leões.

No próximo capítulo, uma das “armas” utilizadas pela confissão de Arcanjo e

Mariamar é o discurso, que permite retrabalhar as fissuras interiores e garantir a liberdade das

vozes silenciadas.

112

4. EXÍLIO E DISCURSO: O ENTRELAÇAR DAS PALAVRAS

- Escrever não é como caçar. É preciso muito mais coragem. Abrir o peito assim,

expor-me sem arma, sem defesa...

(COUTO, 2012, p.100)

Diante do mundo dilacerado, o indivíduo exilado depara-se, segundo Márcio

Seligmann, com a problemática de “narrar o inenarrável” (SELIGMANN-SILVA, 2008,

p.103). Como vimos anteriormente, a memória articula-se no jogo entre lembrar e esquecer.

Isto é, se por um lado, o indivíduo tem a necessidade de relatar os fatos vividos, mesmo tendo

dificuldade em recompor as situações, e também a “impossibilidade de recobrir o vivido (o

“real”) com o verbal” (SELIGMANN-SILVA, 2003a, p.46), por outro lado, o indivíduo tenta

esquecê-los. Dessa forma, o pesquisador indaga como “o trauma encontra na imaginação um

meio para sua narração. A literatura é chamada diante do trauma para prestar-lhe serviço”

(SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 106).

Em Literatura e trauma: um novo paradigma, o pesquisador afirma que a literatura

não tem limites, pois “nos ensina a jogar com o simbólico, com as suas fraquezas e

artimanhas. Ela nos fala (...) de um visível que não percebemos (...) e de constante Angst

(angústia), diante do pavor do contato com as catástrofes externas e internas” (SELIGMANN-

SILVA, 2005, p.74). Acrescenta que a literatura do século XX “foi em grande parte marcada

pelo seu presente traumático” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p.77). Assim, a produção

literária desenvolve uma “sensibilidade para reler e reescrever sua história do ponto de vista

do testemunho” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p.77).

Cita o exemplo de Primo Levi, judeu italiano deportado para Auschwitz, que escreveu

o livro É isto um homem? (1947), no qual relata a sua experiência no Holocausto, que mostra

ser “possível a “saída” de dentro do círculo de fogo que fecha, na memória, a experiência

radical do campo de concentração” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p.78). Seligmann aponta

que, apesar de Levi ter produzido esta obra, o próprio escritor admitiu a complexidade de

expressar em palavras a aniquilação do homem. Para o pesquisador brasileiro, essa

necessidade de testemunhar, mesmo sendo complicada, representa a ânsia de libertar-se das

experiências dolorosas.

Em Literatura em perigo, Todorov aborda a importância da literatura para ampliar a

compreensão do homem no mundo. No capítulo, intitulado: “O que pode a literatura?”, o

filósofo mostra exemplos de indivíduos, que após vivenciarem profunda solidão, encontraram

113

nos livros o apoio essencial para situações que os inquietavam. Com isso, afirma a

característica terapêutica da literatura:

(...) Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos

tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos, que nos cercam, nos fazer

compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver. Não que ela seja, antes de tudo,

uma técnica de cuidados para com a alma; porém, revelação do mundo, ela pode

também, em seu percurso, nos transformar a cada um de nós a partir de dentro. A

literatura tem um papel vital a cumprir; mas por isso é preciso tomá-la no sentido

amplo e intenso (...) (TODOROV, 2009, p. 76).

Quando adentramos nas obras miacoutianas, lembramos as palavras de Todorov, ao

afirmar que “a literatura abrange o pensamento e conhecimento do mundo psíquico e social

em que vivemos” (TODOROV, 2009, p.77). Com uma narrativa, que traz os conflitos

interiores dos personagens, aspectos da tradição oral (lendas, mitos e provérbios- estes em

grande parte das epígrafes-), o escritor moçambicano instiga o leitor a ter uma participação

mais ativa a cada nova leitura.

Para Mia Couto, as palavras apresentam uma vocação divina não só porque nomeiam,

mas por produzirem encantamento. Pontua que “estamos todos amarrados aos códigos

colectivos com que comunicamos (...). Mas quem escreve quer dizer coisas que estão para

além da vida quotidiana” (COUTO, 2009a, p.16). Em tantas entrevistas, Couto cita a relação

de complementação entre seu trabalho de biólogo e de escritor. Para ele, a função com a

escrita se define com o verbo “estar” e não o verbo “ser”:

(...) Os momentos que eu “estou” escritor são os momentos na minha vida em que

tenho uma relação com o mundo, com os outros, com as coisas, com os seres, que é

uma relação em que me permite ser criativo, me permite estar num estado de

infância e em que estou olhando o mundo como alguém que ainda está se

surpreendendo com ele. Esses momentos eu tenho quando estou biólogo, também. A

biologia, para mim, não é uma profissão, é uma espécie de uma janela para olhar o

mundo. A maior parte das vezes permite o sentimento de irrealidade que, se calhar,

uma outra profissão não me permitiria . A biologia também permite que eu visite o

interior de Moçambique, trabalhe com pessoas e recolha histórias. Quando estou nas

zonas rurais principalmente, para mim, não é um trabalho. É uma espécie de uma

ponte para eu estar desse outro lado em que eu sou escritor.40

No programa Roda Viva, da TV Brasil (2012), Mia Couto responde diferentes

questões e fala sobre A confissão da leoa. Nesta obra, destaca, a partir da experiência de

intimidade entre o caçador e a caça, a relação também do ofício de escritor e a sua produção.

40 COUTO, Mia. “O jogo das reinvenções: uma entrevista com Mia Couto”. Entrevista feita por Sophia Beal.

Storm. Portugal, março de 2005. Disponível em: http://www.storm-

magazine.com/novodb/arqmais.php?id=359&sec=&secn= Acesso: 30/06/2014.

114

Menciona que este contato intenso proporciona uma situação complexa, pois, muitas vezes,

não sabe ao certo se o autor procura a história ou se é esta que o persegue.

Esta relação com a escrita nos remete à epígrafe deste capítulo, no qual o caçador, em

diálogo com o personagem Gustavo Regalo, revela como é árduo o trabalho de escrever, pois

neste processo consegue penetrar as fases mais ocultas de suas experiências traumáticas.

Nesse sentido, percebemos que a escrita termina por se atualizar como um processo

terapêutico, pois os protagonistas exilados e sem conseguir se comunicar retomam passo a

passo suas lembranças, nas folhas do caderno, que, sendo espaço de refúgio, possibilita

romper a incomunicabilidade e trabalhar a angústia existencial. Assim, escrever torna-se o

mecanismo de reestruturação, pois, ao se aproximarem e se afastarem das fissuras interiores,

Mariamar e Arcanjo serão capazes de produzir outro olhar sobre os acontecimentos.

Em Mariamar, a autoanálise, por meio da escrita, perpassa a sua própria condição e a

de todas as mulheres marcadas por sonhos frustrados, desejos reprimidos e atos de violência.

Em Arcanjo, a composição do diário apresenta a dificuldade em compor em palavras a perda

familiar e a solidão; por isso, tantas vezes, deseja ter a mesma habilidade de escrever do

irmão.

Interessante que os protagonistas possuidores do poder da palavra escrita são

considerados, aos olhos dos demais, como loucos. Em História da Loucura na Idade

Clássica, Foucault declara que, ao final da Idade Média, nas farsas, o personagem do louco

assume o papel do “detentor da verdade” (FOUCAULT, 1972, p.19). Isto é, na trama, a

loucura não é definida no sentido comum de “ato descontrolado ou irrefletido,”41 mas

significa um ato de resistência e de liberdade. Acontece com a jovem da aldeia, que,

considerada louca, passa a ser marginalizada, o que, de certa forma, acaba se tornando um

modo de proteção contra a violência. Aparece também com o caçador, que apresenta uma

lucidez em relação ao descaso do administrador em relação à aldeia e com Rolando, que

obtém na loucura um “álibi (...) absolvição” (COUTO, 2012, p.206).

Para Maria Fernanda Afonso, o tema da loucura é um dos traços fundamentais da

“narrativa pós-colonial, traduzindo o desregramento de um continente que sofre convulsões

profundas, inscrevendo o sofrimento sem limites dos africanos para se adaptarem a um mundo

que lhes impõe regras (...)” (AFONSO, 2004, p.405). Acrescenta que os indivíduos que não

aceitam compactuar com os novos moldes sociais vivem entre a “marginalidade e a tentativa

de reconquista de si próprio. As contradições vividas são excessivas, sem que eles possam 41 Retirado do site: http://www.priberam.pt/DLPO/loucura. Acesso: 08/09/2014.

115

jamais resolvê-las” (AFONSO, 2004, p.405). Afonso retoma, ainda, o pensamento do

pesquisador Pius Ngandu Nkashama, para mostrar como a narrativa orquestrada pelo tema da

loucura indica “a angústia do homem à procura de um equilíbrio que permanece inacessível”

(AFONSO, 2004, p.405).

Na trama, a organização dos conflitos existenciais se estabelece a partir da composição

do diário com elementos da escrita e da oralidade. Com um discurso fragmentado, a narrativa

apresenta, ao mesmo tempo, lembranças de sonhos e de sentimentos traumáticos, juntamente

com relatos de mitos, de lendas e de cartas. Assim, os protagonistas utilizam a loucura como

matéria-prima para expressar dois momentos na confissão. No primeiro, nota-se o caráter

regenerador, no qual os sujeitos tecem observações mais lúcidas e pertinentes diante das

situações extremas. No segundo, imersos no mundo conturbado, constatam a falta de

referência e de rumo.

Em entrevista ao jornal O Globo42, Mia Couto fala sobre a presença da loucura em

Mariamar e Arcanjo e afirma que eles “vivem uma situação limite e, para superá-la, precisam

cruzar a fronteira da chamada “normalidade”. Eles precisam olhar o seu lugar a partir de fora.

E esse “fora”, essa exterioridade só se alcança a partir da outra margem” (COUTO, site).

Ao permitir o olhar de outra perspectiva, os protagonistas indicam a urgência em

redesenhar um novo trajeto, o que encaminha a interpenetração do tempo narrado com as

lembranças do passado. Para Laura Padilha, a obra A confissão da leoa aponta para um:

jogo de pares narrativos (de um a oito) a formarem blocos cujos temas se entrelaçam

(...). São narrados respectivamente por alguém nomeado, no caso de <<

Mariamar>>, e por outro apenas indicado por sua profissão, <<o caçador>>. A partir

dessas duas vozes, que se unem pela numeração, podemos pensar que o romance se

monta como se fora uma peça teatral em que as cenas são vividas por apenas duas

personagens, cujas falas, a cada novo movimento, se vão superpondo até chegar o

desfecho (...) (PADILHA, 2013, p.270).

Além desse jogo de pares, a pesquisadora acrescenta como “a cada novo movimento

narrativo de Mariamar ou do caçador, uma nova <<rubrica>> é convocada, para melhor

orientar a receção do leitor-espectador” (PADILHA, 2013, p.270). Isto é, nas obras de Mia

Couto, é recorrente a utilização das epígrafes, que ora se apresentam como provérbios, ora

42COUTO, Mia. “Mia Couto fala sobre ‘A confissão da leoa’”. Entrevista a Leonardo Cazes. Jornal O globo. 10

de novembro de 2012. Disponível: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2012/11/10/mia-couto-fala-sobre-

confissao-da-leoa-474310.asp. Acesso: 15/04/2013.

116

como falas dos personagens ou ora reinventada. Para Afonso, a epígrafe nas obras de Mia

Couto mostra:

o desejo do autor de quebrar fronteiras entre os universos simbólicos que pertencem

a diferentes tradições culturais. Instaurando relações dialógicas complexas entre o

paratexto e o texto, a epígrafe permite uma superposição de discursos, de vozes e de

espaços numa amálgama que define a criação literária (...). No conjunto, têm

invariavelmente o caráter reflectido dos textos orais, em particular, dos provérbios

(AFONSO, 2004, p.270).

A obra inicia-se com explicação inicial, vista no capítulo I, e com o provérbio

africano: “Até que os leões inventem as suas próprias histórias, os caçadores serão sempre os

heróis das narrativas de caça” (COUTO, 2012, p.9). O uso desse elemento na narrativa, para

Aguessy, revela “belos <<resumos>> de longas e amadurecidas reflexões (...). O caráter

anônimo dos provérbios traduz a sua profunda inserção no âmago da experiência e da vida

coletiva” (AGUESSY, 1977, p. 118).

Neste provérbio, que abre o romance, nota-se uma nova configuração para os fatos que

serão contados. Na trama, a narrativa da caça não tem como destaque o caçador, mas os leões,

ou melhor, as “leoas”, representadas pelas mulheres, que lutam pelo seu lugar social. Isto é, os

caçadores detentores do poder, representados pelos homens, cedem lugar à narração das

felinas, o que garante uma reestruturação da história. Dessa forma, na imagem do caçador e

da caça, Mia Couto propõe um questionamento para a relação de dominador e dominado, que

move os interesses dos habitantes em Kulumani. Por isso, o mistério, que envolve os ataques

de leões, apresenta vários pontos de vista, pois dependendo de quem conta, as “versões” serão

diferentes.

Ainda com relação aos provérbios (em nove capítulos), outro fato importante é a

presença deste recurso para ilustrar a relação da oralidade e da escrita no romance. A palavra

oral aparece na estrutura da obra, com os provérbios e em algumas passagens dos

protagonistas, como nas histórias e mitos, que ouviram e rituais da aldeia. As pesquisadoras

Fonseca e Cury, que retomam o pensamento de Terezinha Taborda Moreira, afirmam que a

citação de provérbios nos textos literários moçambicanos, apresenta um “atravessamento da

voz do narrador pela voz da tradição oral” (FONSECA e CURY, 2008, p.64).

Em grande parte de suas obras, Mia Couto insere elementos das tradições africanas,

como: expressões orais, ditados populares, rituais e mitos, para mostrar a necessidade de

valorizar a força da palavra oral, que é a base da raiz africana, e também, no caso desta trama,

para questionar determinadas condutas ainda repressoras contra a mulher. Em entrevista, o

escritor menciona que seu ofício apresenta uma relação de entrelugar com o oral; por isso,

117

afirma que há a necessidade de “se deixar invadir, quase se dissolver no mundo da oralidade.

(...) essa vivência, essa moradia, essa transumância (movimentação de entrada ou saída).” 43

Acrescenta, ainda, que a oralidade permanece dentro de cada um de nós, mesmo que em

alguns momentos esteja subjugada à lógica da escrita, num espaço hegemônico. Declara que é

preciso deixar “conviver dentro de nós diferentes tipos de lógicas. Esta (...) é a briga, não

como escritor, mas como pessoa que quero ter uma relação com a vida que passa por esse

partilhar de linguagens com as coisas, com os animais (...).”44

Nesta trama, Mia Couto introduz, em alguns momentos, expressões também

específicas da língua local, como as palavras: “takatuka” (COUTO, 2012, p.163), que mostra

o costume de curar doenças nas árvores; “Nungu” (COUTO, 2012, p.13 e 132), o nome de

Deus; “ntwangu” (COUTO, 2012, p.16), termo usado pela matriarca para chamar o marido;

“kwambalwa” (COUTO, 2012, p.176), palavra que se refere ao homem que está bêbado.

Identificam-se também referências ao Adiju, chamado de “anakulu”, “o nosso mais velho”

(COUTO, 2012, p.46) ou “mweniekaya, um chefe de família” (COUTO, 2012, p.48);

“shitala” (COUTO, 2012, p.110), local de encontro dos homens; “lipa e ugwalwa” (COUTO,

2012, p.112), nome das bebidas fermentadas; termos para os leões: “ntumi va kuvapila”

(COUTO, 2012, p.113), leão-do-mato; “ntumi ku lambidyanga” (COUTO, 2012, p. 114), leão

fabricado e “ntumi va vanu” (COUTO, 2012, p. 114), leões-pessoas; para os peixes, “dombe”

(COUTO, 2012, p.160) e o termo kusungabanga, que “significa <<fechar à faca>>” (COUTO,

2012, p.203), prática de costurar a vagina.

Além disso, o escritor moçambicano, por meio da voz dos protagonistas, apresenta o

universo da oralidade e algumas tradições de Kulumani. Em Mariamar, observa-se pela voz

do avô, o grande contador de história, o reinado das mulheres, as lendas, as várias faces de

Kulumani, desde o período colonial até as conseqüências da guerra civil. Com a mãe Hanifa,

a jovem apreende os rituais no enterro da irmã, a relação dos mortos com os vivos, a proibição

do sexo em dia de luto, a prática do amor dentro do rio, os rituais de iniciação, a cura de

doenças por meio da árvore de tamarindo, a tradição de deitar a filha, na margem do rio, pelo

pai, logo, após o nascimento, a tradição da “corda do tempo” (COUTO, 2012, p.186-250). Em

Arcanjo Baleiro, destacam-se as lendas e as histórias contadas pela mãe Martina, os costumes

da aldeia com Naftalinda, o valor do rio Lideia, a importância da feiticeira Apia Nwapa para

desvendar os mistérios de Kulumani.

43 COUTO, Mia. “Entrevista”. Entrevistado por Paulo Markun. TVE-Brasil- Roda Viva 2007. Disponível em:

http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/531/entrevistados/mia_couto_2007.htm. Acesso: 10/10/2014. 44 Idem.

118

Em Oralidades e escritas, Ana Mafalda Leite analisa alguns contos de Mia Couto e

aponta “dois níveis de trabalho da e na língua, cuja lógica se fundamenta quase sempre no

recurso à oralidade, e que o autor trabalha simultaneamente” (LEITE, 1998, p.44). Destaca o

primeiro “no plano sintagmático, e implica transformações fonológicas, morfológicas e

lexicais (...) mais visível nos diálogos, e em que há uma proximidade maior com a captação

das ‘vozes’ do português oral moçambicano” (LEITE, 1998, p.44). E o segundo, ela chama de

“plano associativo ou paradigmático, abrange um grupo de variantes no modo de formação de

léxico novo (...). Poderemos incluir ainda neste nível outro tipo de processos de recuperação

de estratégias da oralidade, como o recurso aos provérbios, a sentenças (...).” (LEITE, 1998,

p.44). Dentre os níveis apontados pela pesquisadora, destacaremos, mais adiante, o recurso

dos provérbios em cada capítulo, que são elementos essenciais para configurar também a

sensação do exílio nos protagonistas.

Por enquanto, voltemos para a estrutura do romance. Como já apontamos, observa-se a

explicação inicial, o provérbio africano e a divisão dos dezesseis capítulos, entrelaçados em

“Versão de Mariamar” e o “Diário do caçador”. Divididos em oito capítulos cada um deles,

acompanhado de epígrafes, nota-se a diferença na confissão dos protagonistas. Em Mariamar,

não há nomeação da composição do diário, mas a “versão” que, segundo Padilha, “nos leva a

desconfiar da existência de uma <<autoria>> direta” (PADILHA, 2013, p.270).

Diferentemente do caçador, que assinala o termo <<diário>>, “produto de uma fala própria”

(PADILHA, 2013, p.270).

Notemos que a trama desencadeia a sensação de um diário; contudo, não são

demarcadas as datas, apenas situam-se os acontecimentos por operadores temporais, que

indicam a morte de Silência, a chegada e a partida do caçador e a expedição de caça. A escrita

dos protagonistas exilados apresenta um “relato fracionado, (...) com um curto espectro de

tempo entre o acontecido e o registro (...)”45.

À medida que trazem as lembranças, Mariamar e Arcanjo desnudam a sensação de

banimento, que, por sua vez, mostra a dificuldade em recompor a memória; nesse aspecto

lembramos, com Seligmann-Silva, que “toda escritura do passado (...) é uma (re)inscrição

penosa e nunca total” (SELIGMANN-SILVA, 2003b, p.76). Dessa forma, a palavra escrita

45 MACIEL, Sheila Dias. ‘A literatura e os gêneros confessionais’. Disponível em

http://www.cptl.ufms.br/pgletras/docentes/sheila/A%20Literatura%20e%20os%20g%EAneros%20confessionais

.pdf . Acesso: 20/06/2014.

119

nas confissões dos protagonistas possibilita a emergência e elaboração de questões

conflitantes.

4.1. Versão de Mariamar

Ninguém mais do que eu amava as palavras. Ao mesmo tempo, porém, eu tinha

medo da escrita, tinha medo de ser outra e, depois, não caber mais em mim.

(COUTO, 2012, p. 87)

Já sabemos que o fio condutor da confissão é conduzido por Mariamar e que esta

revela, a cada “versão”, mistérios da sua vida e de todas as mulheres de Kulumani. O próprio

uso do termo apresenta um papel fundamental para a economia narrativa.

Como afirmou Padilha, o vocábulo “versão”, ao indicar a falta de “uma <<autoria>>

direta” (PADILHA, 2013, p.270), mostra como se configura o desprestígio feminino, já que a

protagonista, sem voz na aldeia, apresenta mais uma de tantas outras versões que aparecerão.

É importante observarmos que, ao final da trama, o caçador lê, no caderno da jovem, “Diário

de Mariamar”; no entanto, o que nos é oferecido, no índice do romance, é a expressão

“Versão de Mariamar”. Cabe ressaltar, como Mia Couto mostra na própria estrutura da obra, a

situação das mulheres, que continuam à margem.

A mudança do termo “versão” para “diário” apresenta, na composição do texto, o

deslocamento do discurso exilado de Mariamar. Partindo do índice, que ilustra algo fechado,

“listado para determinado fim”46, a personagem tem sua confissão nomeada em “versão”. Para

o leitor, esta estrutura imprime, por um lado, a sensação de que participará de um “ato de

escuta”47; por outro lado, indica o aprisionamento do discurso da jovem. Esta situação de

46Retirado do site: http://www.priberam.pt/DLPO/índice . Acesso: 10/10/2014. 47“O “ato de escuta” é uma expressão psicanalítica, que Freud inaugura, segundo Mônica Medeiros Kother

Macedo; Carolina Neumann de Barros Falcão em A escuta na psicanálise e a psicanálise da escuta , “a

singularidade de uma situação de comunicação entre paciente e analista” (MACEDO & FALCÃO, p.65, 2005).

As pesquisadoras ressaltam que até o final do século XIX, a psicanálise apenas preconizava a obse rvação do

paciente sem escutá-lo. A partir de Freud, a “escuta” torna-se um elemento fundamental para identificar os

fantasmas, os lapsos, os traumas que habitavam no paciente. Assim, apontam como esta técnica contribuiu para

abrir caminhos para que o homem repensasse suas aflições. Disponível em:

http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-11382005000100006&lng=pt&nrm=iso.

Acesso: 30/08/2014.

A expressão “ato de escuta”, ainda que seja um termo psicanalítico, aproveitamos o seu uso apenas em alguns

aspectos de aproximação com a psicanálise, no que diz respeito ao papel do leitor em perscrutar, investigar as

mazelas dos protagonistas.

Em “A flutuação do olhar: artes plásticas e psicanálise implicada”, o psicanalista João A. F. Pereira comenta

sobre a relação da arte e da psicanálise, a partir das observações de Freud, no ensaio O Moisés de Michelangelo

(1914). Acrescenta que, diante da escultura, Freud adota uma modalidade específica de “escuta psicanalítica”.

Ou seja, tenta “estudar os efeitos da obra sobre diversos espectadores” (FRAYZE- PEREIRA, 2005, p.80) e

como determinados sentimentos e sensações afetam o indivíduo.

120

submissão da protagonista, de certa forma, se assemelha ao lugar da História vivido pelos

dominados, obrigados ao silenciamento de suas vozes.

Ao término da trama, quando nos deparamos com um novo registro para o caderno da

moça em “Diário de Mariamar”, temos a impressão de que não só ouvimos várias versões,

mas compartilhamos com a protagonista a experiência narrada, a partir da palavra escrita.

Neste sentido, é no final da “escuta” que reconhecemos, na verdade, a escritura de papéis

tecidos com “sangue de bicho e lágrima de mulher” (COUTO, 2012, p.239), no qual percebe

o trajeto da composição da confissão na tentativa de elaboração do trauma.

A inversão proposital de Mia Couto do termo “versão” para “diário” permite verificar

como a jovem elabora as fissuras interiores pelo processo terapêutico e como o leitor,

também, passa por uma espécie de terapia, pois percebe, ao terminar a leitura, uma ação

transformadora, na qual é estimulado a ter uma atenção redobrada para aquilo que acabou de

ser lido. Daí, o texto exige uma releitura, a partir de um novo olhar para os fatos. Por isso, a

“Versão de Mariamar”, a princípio, vista como algo “menor e errôneo”, atua no sentido de

garantir o mistério que se esconde por detrás de cada confissão das leoas e de permitir uma

reestrutura da História oficial, tendo, agora, como protagonistas, as mulheres.

Assim, esta versão, que acompanha os escritos da jovem, implica a seleção de

lembranças, que traz à tona a possibilidade de decifrar as mazelas interiores e as opressões do

universo da aldeia. O fluxo narrativo insinua o esfacelamento feminino, ora mesclando com as

incertezas da situação do presente, que começa com a morte de Silência: “desde há algumas

semanas, atormentam a nossa povoação” (COUTO, 2012, p.14), ora trazendo os

acontecimentos do passado, que tratam da infância e da volta do caçador.

Nossa protagonista é a grande mediadora do universo oral e escrito, o que notamos

pelos termos “versão” e “diário”. Na aldeia, onde a maioria é analfabeta, Mariamar apresenta

a habilidade de traduzir pela escrita as tradições, (como lendas, mitos e provérbios) passadas

pela mãe, pelo avô e também de expor os problemas locais. É aquela que transita entre o

espaço da oralidade e da escrita, o que caracteriza, segundo Fonseca e Cury, grande parte dos

personagens miacoutianos:

Na obra ficcional e poética, Mia Couto problematiza essas questões, na insistência

da tematização do ato de escrever, na construção de personagens que transitam entre

os espaços da oralidade e da escrita, que se utilizam da escrita para possibilitar o

Ao pensarmos na obra de Mia Couto, a “escuta psicanalítica” ajuda o leitor a observar os detalhes do

silenciamento vivido pelos protagonistas e perceber também como o texto é capaz de provocar no leitor reflexão

de situações, que promovam um voltar-se para si mesmo.

121

conhecimento do leitor sobre a diversidade cultural moçambicana e na representação

intelectual deste lugar, isto é desse entrelugar de fronteira, é que a enunciação do

escritor africano assume a tensão colocada no texto de Coetzee. Da margem, criando

condições enunciativas para a voz daqueles “da margem”, os africanos, mas também

os que na África são marginalizados-, Mia Couto produz uma escrita expandida que

consegue abraçar as falas de outros espaços marginalizados do mundo

(FONSECA e CURY, 2008, p.16).

Com a morte da irmã Silência, Mariamar começa a tecer as primeiras linhas do seu

caderno a partir do luto da mãe Hanifa. Diante da perda, a jovem percebe que este sentimento

acompanha há muito tempo a vida das mulheres que, apenas, se submetem às ordens dos

homens.

Neste primeiro bloco da versão, a epígrafe apresenta a dinâmica do poder. Na figura

do leão, que representa a força e a autoridade, como vimos em outro capítulo, a dominação

aparece configurada; na imagem do homem da aldeia, que reprime as mulheres; na imagem

do colonizador, que devasta Kulumani e também; na imagem da “mulher-leoa”, que luta por

seus direitos. Dependendo da situação, o dominado de outrora poderá ser o dominador

posterior, como observamos na seguinte passagem: “Bendito seja o leão que o homem comerá

e o leão em humano se tornará; e maldito seja o homem que o leão comerá, e o leão se tornará

humano” (COUTO, 2012, p.11). Isto é, há o ciclo de domínio, o colonizador exerce a

repressão na população da aldeia, que já apresenta homens impedindo a voz feminina; esta,

por fim, tenta a liberdade, por meio da metamorfose, em leoa, para vencer o dominador.

Enclausurada pelo pai, devido à chegada do caçador, Mariamar percebe claramente a

subalternidade feminina, tal como lemos na epígrafe de abertura do capítulo, no qual recorda

seus tempos de garota: “verdadeiro nome da mulher é <<Sim>>. Alguém manda:<<não

vais>>. E ela diz:<<eu fico>> (...)” (COUTO, 2012, 41). Seu único companheiro é o caderno,

no qual a jovem exerce o seu poder de olhar por outra margem os acontecimentos, pois a

palavra escrita representa sua arma de libertação:

(...) Kulumani já não é um lugar, é uma doença .

Kulumani e eu estávamos enfermos. E quando há dezasseis anos, me encan tei pelo

caçador, essa paixão não era mais que uma súplica. Eu apenas pedia socorro, em

silêncio rogava que ele me salvasse dessa doença. Como antes a escrita me tinha

salvado da loucura. Os livros entregavam-me vozes como se fossem sombras em

pleno deserto (COUTO, 2012, p.87).

122

A escritora moçambicana Paulina Chiziane48 ressalta que a escrita exerce um papel

fundamental para compreender o mundo. Em um texto depoimento, declara que, através da

arte de tecer, é possível preencher o vazio interior e repensar as amarguras femininas:

Coloquei no papel as aspirações da mulher no campo afectivo para que o mundo as

veja, as conheça e reflita sobre elas. (...)

Com as minhas mãos, afasto pouco a pouco os obstáculos que me cercam e cons truo

um novo caminho na esperança de que, num futuro não muito distan te, as mulheres

conquistarão maior compreensão e liberdade para a realização dos seus desejos.

Devo dizer que não há nada de heroico na minha luta e, de resto, desfruto de todo o

prazer que a escrita me proporciona (CHIZIANE, 2013, p.202-204).

Na trama em questão, a escrita de Mariamar representa um ato de resistência, pois, já

que a maioria das mulheres da aldeia era analfabeta, a jovem causa estranheza para muitos por

possuir esta habilidade com as palavras. Diversas vezes, confessa que não foi na Missão que

aprendeu a escrever, mas com o contato direto com a tradição.

Observemos que a protagonista desconstrói a imagem daqueles que são detentores do

poder; neste caso, os portugueses, e sublinha a força africana. Enquanto, para a aldeia, a

Missão era considerada como o lugar oficial de aprendizagem da escrita, para Mariamar este

conhecimento se construíra pelo contato com os animais e os objetos da caçada. Na figura do

avô, a jovem destaca os passos com as palavras, primeiro, a oralidade com as histórias, que

escutava e, segundo, a escrita com as letras iniciais, que Adjiru marcava, nos instrumentos da

caçada, o que facilitava o processo de decodificação:

Em Kulumani, muitos se admiram da minha habilidade de escrever. Numa terra em

que a maioria é analfabeta, causa estranheza que seja exatamente uma mulher que

domina a escrita. E pensam que aprendi na Missão, com os padres portugueses. A

minha escola, de facto, nasceu antes: aprendi a ler foi com os animais. As primeiras

histórias que escutei falavam de bichos selvagens. Fábulas me ensinaram, a

vida inteira, a distinguir o certo do errado, a destrinçar o bem do mal. Numa

palavra, foram os animais que começaram a fazer-me humana.

Essa aprendizagem fez-se sem plano mas com propósito. Meu avô e meu pai traziam

da caça a carne que comíamos e as peles que vendíamos. O meu avô, porém, trazia

algo mais. Do mato carregava pequenos troféus que me oferecia; unhas, cascos,

penas. Deixava esses despojos em cima de uma mesa, à entrada de casa. Por baixo

de cada um desses adornos, numa velha folha Adjiru Kapitamoro escrevia uma

letra. Um «a» para a pluma da águia, um «c» para um casco do cabrito, um «m» para munda, que é o nome que se dá à flecha na língua da nossa terra. E

desfilava ante os meus olhos. Cada letra era uma cor nova com que eu olhava o

mundo (COUTO, 2012, p.87-88- negritos nossos).

48 Notas da Revista Abril: “Testemunho escrito em 1992 e publicado em meados de 1994, por iniciativa da

UNESCO em fase dos preparativos da Conferência Internacional sobre a Mulher, Paz e Desen volvimento,

realizada em Pequim em 1995”. CHIZIANE, Paulina. "Eu, mulher, por uma nova visão de mundo". Revista

Abril, UFF, Vol.5, n° 10, Abril de 2013.

123

Esse poder da escrita se revela também na capacidade de controlar a composição de

cada letra através da caligrafia. Ao escrever “leão”, Mariamar confessa, pela primeira vez, o

domínio sobre a fera, mesmo sendo alertada pelo avô sobre os perigos da escritura:

Certa vez, sobre a folha de papel repousava uma garra de leão. Agachado a meu

lado, o meu avô enrolou a língua no céu da boca e, como um pequeno chicote, fez

estalar um sonoro «L». A sua enorme mão conduziu a minha e desenhei a letra no

papel. No fim, sorri, vitoriosa. Pela primeira vez me confrontava com um leão. E,

ali, caligrafada no papel, a fera se ajoelhava a meus pés.

- Cuidado, minha neta. Escrever é perigosa vaidade. Dá medo aos outros ...

Num mundo de homens e caçadores, a palavra foi a minha primeira arma

(COUTO, 2012, p.88-89).

Essa percepção do uso da palavra escrita, como um ato de resistência na protagonista,

nos remete a alguns fragmentos dos Cadernos do escritor Albert Camus (2014). Nestas

anotações, o escritor apresenta pensamentos, nos quais salienta como a prática de escrever

exerceu papel fundamental para sua existência. Em um dos trechos, após saber que estava

tuberculoso, Camus enfatiza de que modo a escrita lhe proporcionou a força para lidar com as

adversidades: “Eu sofri por estar sozinho, mas por ter guardado meu segredo, eu venci o

sofrimento de estar só. E hoje não conheço maior glória que viver sozinho e ignorado.

Escrever, minha alegria profunda!” (CAMUS, 2014, p. 65). Além disso, o pensador argelino

acrescenta que esta prática diária permite também o autoconhecimento; por isso, afirma que:

ir até o fim não é somente resistir, mas também se deixar levar. Eu preciso sentir a

minha pessoa, na medida em que ela é o sentimento do que me ultrapassa. Às vezes

preciso escrever coisas que em parte me escapam, mas que provam precisamente o

que em mim é mais forte do que eu (CAMUS, 2014, p.50).

No posfácio desta obra, Raphael Araújo e Samara Geske notam que, em Camus, o

“impulso de escrever encontra nos cadernos a possibilidade de tatear uma liberdade

desconhecida” (CAMUS, 2014, p. 74), já que, neste espaço, “o autor se despedaça em

fragmentos oriundos dos conflitos internos, reunindo imagens diferentes de um mesmo

homem” (CAMUS, 2014, p.84). Acrescentam que o escritor, ao registrar no papel as suas

experiências, deseja mais do que reter o tempo da vida, “que persiste em escapar ao homem

(...), é necessário revivê-lo” (CAMUS, 2014, p.86).

As palavras inquietantes, em Camus, nos iluminam e nos fazem perceber o sofrimento

de Mariamar. Nela, os escritos norteiam a angústia de uma vida, na qual tantos projetos e

desejos foram interrompidos. Desta forma, o corpo do texto traz inúmeros pensamentos,

principalmente, valendo-se da memória, para traduzir essa aflição. Como vimos no capítulo

anterior, a memória individual e a coletiva caminham juntas na tentativa de gerir o passado;

124

por isso, Mariamar reconhece que o ato de “sacudir lembranças” é uma forma de apurar os

“azedos antigos” (COUTO, 2012, p.44).

Assim, a confissão da jovem suscita atordoadas reflexões, que, misturando o passado e

o presente, permitem pontuar aspectos da sua fraturada existência, como por exemplo: “Viajo

contra o destino, mas a favor da corrente” (COUTO, 2012, p.49); “E quem deixa de ter

esperas é porque já deixou de viver” (COUTO, 2012, p.54); “Só as pequenas loucuras nos

podem salvar da grande loucura” (COUTO, 2012, p.89); “O segredo de nossa submissão era

um outro e morava dentro de nós” (COUTO, 2012, p.183). Em outros momentos, estas

anotações apresentam o sentimento de aflição também dos pais, principalmente, após a morte

de Silência, como em: “Para tanto esquecer é preciso não ter nunca vivido” (COUTO, 2012,

p.17); “O silêncio é um ovo às avessas: a casca é dos outros, mas quem se quebra somos nós”

(COUTO, 2012, p.18). Esses aforismos ou “máximas de sabedoria”, como prefere a

pesquisadora Fernanda Cavacas, nos ajudam a traduzir a “singeleza poética das palavras”

(CAVACAS, 2013, p.82).

Além dos pensamentos, que reforçam a condição de exilada na aldeia, outro fato

relevante é a recorrência de epígrafes (colocadas ao longo dos oito capítulos da “Versão de

Mariamar”), que ajudam a ilustrar, não só a presença da palavra oral (no caso dos provérbios),

mas também configurar a situação de banimento. Na confissão da jovem, esses elementos, já

apontados em outros momentos anteriormente, reforçam a relação de poder (primeiro

capítulo49), a luta pela sobrevivência diante da guerra civil (terceiro capítulo50), a submissão

das mulheres (segundo, quarto, quinto capítulos51) e a tentativa de mudança da situação

vigente (sexto, sétimo e oitavo capítulos52). Nestas relações, a narrativa ganha o caráter de um

49 Versão de Mariamar (1): A notícia- “Bendito seja o leão que o homem comerá e o leão em humano se tornará;

e maldito seja o homem que o leão comerá, e o leão se tornará humano.” Evangelho Segundo Tomás . 50 Versão de Mariamar (3): Uma ilegível memória- “Todas as manhãs a gazela acorda sabendo que tem que

correr mais veloz que o leão ou será morta. Todas as manhãs o leão acorda sabendo q ue deve correr mais rápido

que a gazela ou morrerá de fome. Não importa se és um leão ou uma gazela: quando o Sol desponta o melhor é

começares a correr.” Provérbio africano . 51 Versão de Mariamar (2): O regresso do rio- “O verdadeiro nome da mulher é «Sim». Alguém manda: «não

vais». E ela diz: «eu fico». Alguém ordena: «não fales». E ela permanecerá calada. Alguém comanda: «não

faças». E ela responde: «eu renuncio».” Provérbio do Senegal.

Versão de Mariamar (4): A estrada cega- “Uma palavra que não pode sair da boca acaba convertendo-se em baba

peçonhenta.” Provérbio africano .

Versão de Mariamar (5): Uns olhos de mel- “O murmúrio de uma moça bonita ouve-se melhor que o rugido de

um leão.” Provérbio árabe. 52 Versão de Mariamar (6): O reencontro-“Sábio é o pirilampo que usa o escuro para se acender.” Provérbio de

Kulumani.

Versão de Mariamar (7): A emboscada- “Tem cuidado com os leões. Mas tem cuidado ainda com a cabra que

vive no covil dos leões.” Provérbio africano.

125

grande bordado expressivo, conduzido também pelas imagens que representam a voz dos

excluídos.

O uso de elementos paratextuais, segundo Afonso, mantém o desejo pela curiosidade,

ao antecipar o não-dito. A pesquisadora acrescenta que “o texto epigráfico torna-se intérprete

e interlocutor da herança oral africana, carreando a significação do poder encantatório ou

simbolicamente transformador” (AFONSO, 2004, p. 267). Dessa forma, quando Mia Couto

traz para a cena epígrafes, marcadas principalmente por provérbios, ora citados, ora recriados,

deseja exatamente criar pontes, articular cisões e alertar para a necessidade de questionar

certos valores sociais. Em muitas reflexões de pesquisadores sobre a escrita miacoutiana,

destaca-se a habilidade do escritor em promover a reestruturação de elos entre a oralidade e a

escrita, tradição africana e a modernidade e a quebra de muros, que ainda impedem a relação

com o outro.

A integração desses recursos, apontados pelos estudiosos, aparece, em diferentes

episódios, nas lembranças de Mariamar com o avô. Vimos, em leituras anteriores, a

importância de Adjiru como transmissor dos mitos, lendas e histórias à neta, que via, a partir

desse contato, a restituição dos sonhos adormecidos. Observa-se, na narrativa, o fio de

ensinamentos do mais velho, tecendo passo a passo a sensação do exílio das mulheres, como,

por exemplo, no mito da criação, no qual há o deslocamento do reino concedido à figura

feminina e também no conjunto de máscaras produzidas por ele, na tentativa de captar

novamente este reinado. Dentre tantos aprendizados, neste capítulo, destacamos a habilidade

do avô com as palavras. Sua sabedoria em narrar às histórias permite a inserção ao espaço de

vida e esperança:

(...) Às vezes puxava-me a mim para o centro e proclamava:

- Você, Mariamar, é que vai contar histórias.

- Mas eu sou uma menina, nunca cacei, nunca irei caçar ...

- Todos já caçámos, todos já fomos caçados - argumentava ele.

Ganhava tempo para se tornar o centro do mundo. Porque, depois, ele se erguia

portentoso, isento de idade, e a palavra vaidosa rodopiava pelo quarto. A um certo

ponto, Adjiru parava, suspirava, os olhos procurando um alvo, a sugerir que a

narração iria ser demorada. Sentava-se, todo transpirado. Mas não era um apoio que

procurava. Era um trono. Porque dali em diante Adjiru Kapitamoro iria reinar. Na

verdade, não recordava a caçada: ele voltava a caçar. Naquele recinto, naquele

preciso momento, ante o olhar espantado dos escutantes , o avô emboscava a presa. E

a assembleia, em suspenso silêncio, temia afugentar não as memórias do caçador

mas os animais que ele perseguia.

- Conte outra história, Adjiru. Conte aquela vez…

Versão de Mariamar (8): Sangue de fera, lágrima de mulher- “Quando as teias se juntam elas podem amarrar o

leão.” Provérbio africano.

126

Em reprovação, o avô erguia o braço. Negava o convite: no relato do caçador não

existe o «era uma vez». Porque tudo nasce ali, na vez da sua voz. Contar uma

história é deitar sombras no lume. Tudo o que a palavra revela é, nesse

instante, consumido pelo silêncio. Só quem reza, em total entrega de alma, sabe

desse acender e tombar da palavra nos abismos

(COUTO, 2012, p.90- negritos nossos).

Pelo contar, Adjiru deseja compartilhar com o outro a força da palavra oral, tão

destacada por Hampaté Bâ em A tradição viva: “Nas tradições africanas (...) a palavra falada

se empossava, além de um valor moral fundamental, de um caráter sagrado vinculado à sua

origem divina e às forças ocultas nela depositadas” (HAMPATÉ BÂ, 1982, p.182).

Acrescentamos, também, o pensamento de Padilha, quando afirma que a arte de contar é “um

gesto de prazer pelo qual o mundo real dá lugar ao momento meramente possível que, feito

voz, desengrena a realidade e desata a fantasia” (PADILHA, 1995, p. 15). A estudiosa

menciona que o ato de dizer adquiriu um espaço expressivo entre os sujeitos comunitários,

pois, “durante séculos, emanou da palavra dita, já que só muito tardiamente a grande maioria

dos naturais teve acesso à escrita” (PADILHA, 1995, p.16).

Para reafirmar a habilidade ensinada à neta, Adjiru troca de lugar com Mariamar e a

deixa contar a história da rainha do Egito, pois também deseja ser conduzido pela imaginação

e redescobrir outro mundo, no qual as mulheres tenham acesso aos seus direitos:

Durante os dois anos que passei na missão, as visitas de meu avô eram o meu sol.

Em certas ocasiões ele ficava calado olhando o horizonte. Outras vezes, ele queria

saber se Deus me dava atenção.

- E como estão as letras? - perguntava.

- Escrevo sempre, avô. Quer ler?

- Não, minha filha. Se eu leio, sabe o que sucede? Deixo de ver o mundo. Leia -me a

história da rainha do Egito.

Era o seu texto preferido. Eu já o sabia de cor e salteado. O avô fechava os olhos e

eu recitava sempre no mesmo tom: (...)

Terminada a narração, o avô permanecia de olhos fechados. Depois, beijava-me as

mãos, dizendo: você é a minha deusa, minha neta (COUTO, 2012, p.129).

Para a jovem, esta habilidade de contar tornou-se perigosa, principalmente, após atos

de violência. Dentre eles, no episódio dos abusos sexuais do pai, observa-se o modo como

Hanifa, ao temer a revelação da verdade, anula a voz da filha através de uma porção amarga.

A partir daí, a jovem percebe a sua não existência e o início do processo do “exílio da razão e

da linguagem” (COUTO, 2012, p.189):

O que Hanifa Assulua pretendia era mais do que me eliminar fisicamente. Morrer

era pouco. Havia que apagar o meu nascimento. Os mortos não estão ausentes:

permanecem vivos, falam-nos nos sonhos, pesam-nos na consciência. O castigo que

me estava reservado era o exílio absoluto. Não de Kulumani, mas o exílio da

razão e da linguagem. Fui declarada louca. A loucura é a única ausência

perfeita. Na insanidade mental eu estava visível, mas fechada; doente, mas sem

ferida; magoada, mas sem dor (COUTO, 2012, p. 189- negritos nossos).

127

Excluída também aos olhos dos demais habitantes da aldeia, Mariamar sabe que a

loucura é o caminho de amparo diante da violência; por isso, admite que esta “aparente

insanidade” “é a única ausência perfeita”. Sem a habilidade de comunicar-se, a escrita torna-

se, segundo Said (2003) ao retomar Adorno, o único lar habitável. Assim, o espaço do

caderno parece atuar como uma espécie de “grande consultório psicanalítico”, no qual cada

“versão” revela a complexa reelaboração de sua existência, com frases entrecortadas,

provérbios, fatos históricos e lembranças. Mais adiante, esta análise acompanhará também a

viagem da escrita do caçador.

Ainda com relação a nossa protagonista, o problema da mudez já era perceptível nas

epígrafes. Retomemos algumas palavras e expressões: “calada” (COUTO, 2012, p.41), “uma

palavra que não pode sair da boca” (COUTO, 2012, p.117), “murmúrio” (COUTO, 2012,

p.155). Interessante perceber que, embora os termos se apresentem no singular, o conflito da

jovem se estende para todas as mulheres, já que aparece, na última expressão, demarcada:

“quando as teias se juntam” (COUTO, 2012, p.231).

Neste sentido, por mais que a palavra oral tenha sido seu primeiro contato com a

tradição da aldeia, o processo da mudez a impede de comunicar-se; assim, Mariamar obtém

por meio da palavra escrita, a “máscara” e o “amuleto”, para romper as barreiras do silêncio.

Mesmo sabendo do poder que tem nas mãos, ela teme ser outra. Dessa forma, em uma das

passagens, a jovem deseja mandar uma carta de amor a Arcanjo; entretanto, não realiza o ato,

por acreditar que o caçador desconfiaria da autoria, já que grande parte das mulheres em

Kulumani era analfabeta. Assim, omite mais uma vez o seu desejo:

Depois de Arcanjo partir, há tantos anos atrás, ainda me passou pela cabeça

escrever-lhe. Infinitas cartas teria escrito, em obediência a essa funda vontade. Não o

fiz. Ninguém mais do que eu amava as palavras . Ao mesmo tempo, porém, eu

tinha medo da escrita, tinha medo de ser outra e, depois, não caber mais em mim.

Tal como o avô, que esculpia madeirinhas às escondidas, eu mantinha uma

incumbência secreta. A palavra desenhada no papel era a minha máscara, o meu

amuleto, a minha mezinha.

Hoje sei quanto foi certo ter guardado para mim essas missivas. Na realidade,

Arcanjo Baleiro teria suspeitado, caso recebesse cartas escritas por mim. Em

Kulumani, muitos se admiram da minha habilidade de escrever. Numa terra em

que a maioria é analfabeta, causa estranheza que seja exatamente uma mulher

que domina a escrita (COUTO, 2012, p.87- negritos nossos).

Nesta tensão em ser outra, a protagonista elabora os últimos manuscritos com “sangue

de fera, lágrima de mulher” (COUTO, 2012, p.231). Na oitava versão, ela confessa que seu

exílio iniciou-se desde seu nascimento, ou melhor, em um não nascimento, pois já nascera

128

morta. Sem amor dos pais, sente-se em descompasso com a família e a aldeia. Por isso,

admite ser a leoa:

Na realidade, foi o escuro que me revelou o que sempre fui: uma leoa. É isso

que sou: uma leoa em corpo de pessoa. A minha forma era de gente, mas a

minha vida seria uma lenta metamorfose: a perna convertendo-se em pata, a

unha em garra, o cabelo em juba, o queixo em mandíbula. Essa transmutação

demorou todo este tempo. Podia ter sido mais célere. Mas eu estava amarrada ao

meu princípio. E tive uma mãe que cantou só para mim. Esse embalo deu sombra à

minha infância e fez demorar o animal que havia em mim.

Aos poucos, porém, algo foi mudando em nossa casa. A exemplo do que fazem as

leoas, eu fui sendo deixada à minha sorte. Aos poucos, Hanifa Assulua me

abandonou, sem culpa, sem palavra de conforto. Como se ela tivesse entendido que

apenas acidentalmente eu tinha ocupado o seu ventre e morado na sua vida.

***

Regresso a casa, depois da contenda com a leoa, as costas doridas e os braços

esfacelados. Não me apresento a minha mãe. Ela não me atenderá. O único

aconchego que me resta é dentro de mim mesma. Procedo como os bichos feridos,

enrosco­me como um feto (COUTO, 2012, p.235-236- negritos nossos).

A metamorfose em felina garante uma “outra postura, mais gatinhosa, mais junto ao

chão, mais perto dos cheiros” (COUTO, 2012, p.238), o que justifica sua atitude de

resistência. Com um tom de despedida, Mariamar escreve suas últimas palavras no caderno, já

que, a partir de sua saída da aldeia, há o encerramento de seus escritos e a possibilidade de

uma nova vida, na qual pudesse realizar seus sonhos. Cabe ressaltar que este desejo torna-se

realidade, quando é descrito no diário do caçador a partida da jovem da aldeia. Assim, as

revelações se completam nos escritos dos protagonistas para compor o grande mosaico

confessional.

Para a pesquisadora Ana Mafalda Leite (2003), os personagens miacoutianos

“complexificam-se” por transformações que ela chama de Metamorfoses e Dualidades, que

“jogam com a componente fabular e a presença do maravilhoso, característicos da

transposição oral, e ajustam estas mutações físicas, psíquicas e culturais. Semelhante

reconfiguração complexifica a personagem, a sua ação e comportamento (...)” (LEITE, 2003,

p. 64). A pesquisadora acrescenta que esta “complexificação” permite sentidos múltiplos as

histórias, que se encaixam a narrativa principal.

Cabe ressaltar, como estes aspectos apontados por Ana Mafalda Leite tornam-se

pertinentes em nossa protagonista, que mostra já pelo nome o conflito interior: a ânsia de

partir e ser amada e principalmente a metamorfose em leoa. A cada confissão um novo fio do

tecido narrativo garante o embate a ser discutido por meio de uma revelação.

Depois da morte da felina, que atemorizava os habitantes, parecia que o enredo já

estava resolvido; entretanto, uma nova situação aparece para complementar a narrativa

129

principal, a confissão de Mariamar como sendo a leoa. Traduzindo o “exílio da razão”, a

protagonista revela ser a “vingativa leoa” e a autora das mortes das irmãs. Este ato poderia

justificar o olhar de banimento dos demais moradores da aldeia para a jovem:

(...) A minha jura permanecerá sem pausa nem cansaço: eliminarei todas as

remanescentes mulheres que houver, até que, neste cansado mundo, restem apenas

homens, um deserto de machos solitários. Sem mulheres, sem filhos, acabará assim

a raça humana. (...)

Pela mesma razão, anos antes, matei as minhas pequenas irmãs. Fui eu que afoguei

as gémeas. Todos pensam que foi um acidente no barco, mas fui eu que sabotei a

embarcação e que a lancei vogando sobre as ondas do mar. Foi melhor que essas

meninas nunca tivessem crescido. Porque elas só se sentiriam vivas na dor, no

sangue, na lágrima. Até que, um dia, de joelhos, pediriam perdão aos seus próprios

carrascos. Como eu fiz, todos estes anos, com Genito Mpepe.

Fui eu que conduzi Silência até à boca da morte, naquela fatal madrugada. Ela era

minha irmã, minha amiga. Mais do que isso, ela era a minha outra pessoa. Da parte

dela, porém, os ciúmes eram um obstáculo fundo (...)

(COUTO, 2012, p.239, 240 e 241).

Ao olhar para dentro de si, a jovem tenta de alguma forma compreender o porquê de

sua “má consciência” e de seus atos, que, na verdade, não teriam acontecido, já que as

mulheres estavam mortas em vida, devido às condições desumanas. Isto é percebido também

na empregada Tandi, que violentada pelos homens, decidiu atravessar pela mata para ser

devorada pelos leões. Para Mariamar, o seu ato representa uma proteção para as irmãs, pois

não gostaria de vê-las sofrer. Isto fica claro, quando menciona que, mesmo depois de tantos

abusos, pediu perdão ao pai. Cabe ressaltar que esta conduta mostra, segundo uma avaliação

psicológica em casos de abusos sexuais53 promovida por Luísa Fernanda Habigzang, o

sentimento da vítima de culpar-se pelo abuso sofrido, sendo uma maneira de manter as

relações familiares. No caso da nossa trama, vimos, em alguns momentos, a acusação de

Hanifa em relação à filha e a “súbita amnésia” (COUTO, 2012, p.187) de Mariamar. Ambas

tentam não acreditar naquilo que estavam vivenciando, até porque, ainda que uma delas

ousasse revelar o fato, os habitantes da aldeia não acreditariam.

Mais adiante, a jovem levanta três probabilidades para argumentar como se

desenvolveu a sua conduta diante das irmãs. Contudo, esses argumentos são desconstruídos

pela própria Mariamar, que percebe a morte simbólica de todas as mulheres:

Um fósforo devorado pelo fogo, assim vejo o futuro. O céu seguirá o exemplo da

humanidade: definhará tão infértil quanto eu. E nenhum rio receberá em suas

53HABIGZANG, Luísa Fernanda et al. “Avaliação psicológica em casos de abuso sexual na infância e

adolescência.” Psicologia: Reflexão e Crítica , Porto Alegre , v. 21, n. 2, 2008. Disponível em:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79722008000200021&lng=en&nrm=iso>.

Acesso: 20/07/2014.

130

margens os defuntos corpos de crianças. Porque não haverá mais quem nasça. Até

que os deuses voltem a ser mulheres, ninguém mais nascerá sob a luz do Sol.

Esta noite partirei com os leões. A partir de hoje as aldeias estremecerão com o meu

rouco lamento e as corujas, com medo, converter-se-ão em aves diurnas.

Este vaticínio será, para os de Kulumani, uma confirmação do meu estado de

loucura. Que fiquei assim por tanto me distanciar dos meus deuses, esses que trazem

nuvens e as fazem derramar em chuvas. Que me fugiu a razão por ter virado costas

às tradições e aos antepassados que guardam o sossego da nossa aldeia. Mas eu não

obedeço senão ao destino: vou juntar-me à minha outra alma. E nunca mais me

pesará culpa como sucedeu da primeira vez que matei alguém. Nessa altura, eu era

ainda demasiado pessoa. Sofria dessa humana doença chamada consciência. Agora

já não há remorso. Porque, a bem ver, nunca cheguei a matar ninguém. Todas

essas mulheres já estavam mortas. Não falavam, não pensavam, não amavam,

não sonhavam. De que valia viverem se não podiam ser felizes?

(COUTO, 2012, p.240- negritos nossos).

Ao chegar neste ponto da narrativa, mesmo com a aparente solução para a caçada dos

leões, nota-se como a jovem ainda se sente deslocada, pois, ao olhar o passado percebe

inúmeras mortes e ao projetar o futuro vê a imagem do vazio, como “um fósforo devorado

pelo fogo” (COUTO, 2012, p.240). Mesmo carregando as cicatrizes, ela acredita que o

verdadeiro lar é construído interiormente; por isso, mais uma vez, retoma a imagem do avô,

que representa, como vimos em capítulos anteriores, o porto seguro, o lugar sonhado e o

preenchimento das ausências. Desse modo, em meio à solidão, a jovem encontra luzes pelo

caminho e afirma que “essas luzes são pessoas, vozes mais antigas que o tempo. A minha luz

sempre teve um nome: Adjiru Kapitamoro. O meu avô ensinou-me a não temer as trevas (...)”

(COUTO, 2012, p. 235).

Observa-se ao longo da confissão, a inquietação de Mariamar em tentar compreender a

sua condição de mulher/leoa. Em vários momentos, ela se sente confusa por traumas que se

misturam à escrita, desse modo argumenta e contra-argumenta ao mesmo tempo revelando a

mudança de identidade. No início da narrativa, revela a divindade feminina. Entretanto,

devido à dominação masculina ocorreu o afastamento; mais adiante, volta a sentir-se mulher,

quando Arcanjo mostra interesse por ela; depois, o abandono e a violência conduzem à

situação animalesca, o que a leva acreditar na sua metamorfose em leoa; em seguida, quando

precisa defender a amiga Naftalinda da leoa, torna-se uma corajosa mulher, que obriga o

animal a afastar-se; por fim, com a lembrança do avô, sabe que pode reconquistar o seu valor

e o seu lugar.

Neste sentido, Mariamar se deixa conduzir pelas palavras do avô e se reconhece a sua

condição de pessoa, configurando, assim, a sua identidade feminina até então silenciada:

Talvez você, minha neta, acredite não ser pessoa. Há visões que a assaltam, há

delírios que para sempre a perseguirão. Mas não acredite nessas vozes. Foi a vida

que lhe roubou humanidade: tanto a trataram como um bicho que você se pensou

um animal. Mas você é mulher, Mariamar. Uma mulher de alma e corpo. E mais do

131

que isso: você, Mariamar, pode ser mãe. Fui eu que inventei que você era uma

mulher seca, infértil. Inventei essa falsidade para que nenhum homem de Kulumani

se interessasse por si. Estaria assim solteira, disponível para sair e criar novas

raízes longe daqui, livre para ter filhos com alguém que a tratasse como mulher.

Esse homem você já encontrou. Esse homem voltou. Eu mesmo o chamei de novo a

Kulumani. Como é que o chamei? Ora como é que se convoca um caçador?

Fabriquei leões, e a fama desses leões estendeu-se a toda a nação. Esse é o meu

segredo: não sou, como pensavam, um escultor de máscaras. Sou um fazedor de

leões. Não porque seja um feiticeiro, mas porque, desde que morri, eu sou um deus.

E é por isso que sei das mentiras do passado e das ilusões do futuro. Não tarda que

você, minha neta, seja de novo a minha Mariamar Mpepe. Longe de Kulumani,

longe do passado, longe do medo. Longe de si mesma

(COUTO, 2012, p.236-237).

A sabedoria do mais velho faz a jovem repensar a própria postura diante da vida e a

admitir que esta tensão entre ser leoa ou não é fruto de tantos maus-tratos. Por isso, o avô

argumenta que muitas situações que a neta ouviu na infância eram criadas por ele para

protegê-la. Dessa forma, depois de descobrir a sua condição humana, Mariamar retoma nos

seus últimos manuscritos o pensamento de Adjiru:

Chego ao fim. Todo o fim é um início, dizia Adjiru Kapitamoro. Mas não este final.

Este é o desfecho de tudo, o desabar dos últimos céus. Só um desejo não cumpri:

voltar a ver o mar. Talvez por isso, ao sentir-me adormecer, no meu último humano

sono, me invada o mesmo sonho. O mar espraiando-se, aves de espuma cruzando os

ares, e Arcanjo Baleiro, desta vez, ressuscitando do sono dos afogados e

conduzindo-me para longe de Kulumani, para esse lugar onde moram as

miragens e nascem as viagens (COUTO, 2012, p.241- negritos nossos).

Interessante como esta frase: “todo o fim é o início”, de Adjiru, articula toda a

economia narrativa, pois nesta trama realmente o fim é o começo de um novo ciclo. Isto

aparece na carta do caçador e de Luzilia, como vimos em outro capítulo; no sonho de

Mariamar, que mostra o desejo de partir da aldeia ao lado de Arcanjo, contemplar o mar e

seguir por lugares, onde “moram as miragens e nascem as viagens” (COUTO, 2012, p.241).

Este desejo da jovem apresenta um acontecimento provável, pois no escrito do caçador

registra-se a partida de ambos de Kulumani. Outra situação que mostra este ciclo do fim e o

início ocorre, principalmente, no deslocamento da expressão: “Deus já foi mulher”, na

primeira “Versão de Mariamar”, e no final do “Diário do caçador”, quando Arcanjo consegue

ler as primeiras páginas do caderno da protagonista. Esta leitura do “Diário de Mariamar”

pelo caçador é também um convite para nós leitores penetrarmos, agora, com outros olhos a

situação feminina, com uma nova leitura do romance.

132

Para Mia Couto, em entrevista54, o modo de agir e pensar da sociedade moçambicana

em relação às mulheres precisa mudar, mas para isso é necessário “uma possibilidade de fazer

nascer o mundo, de fazer tudo de novo, e isso implica ser-se mulher” (COUTO, 2013, p.161).

Interessante, como vimos em outros capítulos da nossa trama, como Mariamar abre caminho

para construir uma história diferente. Isto fica evidente com o presente recebido pela mãe e

sua partida da aldeia. Sendo a grande portadora da “corda do tempo”, a jovem representa a

probabilidade de uma nova vida, da liberdade e dos direitos das mulheres.

Ao partir com Arcanjo de Kulumani, a única roupa, que leva, é o seu caderno, no qual

registra sua confissão. Com sutil gesto, a jovem aponta para os seus manuscritos, como sendo

o único abrigo possível de habitar. Vale ressaltar como esta imagem representa a vida e a

segurança, isto é o lugar, no qual a escrita revela, ao mesmo tempo, as inquietações, mas

também a sensação de sentir-se amada e acolhida. Assim, neste espaço, Mariamar percebe o

poder de ser sujeito de sua própria história por meio da liberdade com os seus escritos.

Mais adiante, passaremos a notar como o caçador, apesar de conduzir Mariamar para

fora da aldeia, também passa pela condição do exílio e apresenta uma escrita, que buscar

reorganizar a fragmentação deixada por situações de banimento.

4.2. Diário do caçador

É por causa dela que escrevo este diário, na vã esperança de que, um dia, essa

mulher leia os meus atabalhoados manuscritos.

(COUTO, 2012, p.35)

Adentramos o “Diário do caçador”, com a sensação que percorreremos pensamentos

amorosos direcionados à Luzilia, já que Arcanjo, a princípio, nos apresenta estes

“atabalhoados manuscritos”, com o objetivo de serem lidos pelo seu amor. Contudo, o próprio

desconstrói esta imagem ao afirmar que seus rabiscos, na verdade, representam uma

despedida. “Um falso adeus, como tudo no caçador, é inventada ilusão” (COUTO, 2012, p.35-

36).

Logo, no índice da obra, o escrito de Arcanjo é intitulado: “Diário do caçador”. Como

vimos em Padilha, o título é um “produto de uma fala própria” (PADILHA, 2013, p.270), isto

é, indica a autoridade do autor em compor sua escrita e exercer seu poder. Entretanto, a

pesquisadora afirma que o texto apenas mostra a “sua profissão” e não o nomeia. Assim,

54 COUTO, Mia. "Mia Couto: o garimpeiro da terra, das gentes, da palavra". Entrevista concedida a Jane

Tutikian. In: Conexão Letras. Porto Alegre: UFRGS, v. 8, n. 9, 2013. p. 157 a 162.

133

percebe-se uma perda da individualidade do protagonista, que acaba, dando a entender ao

leitor, que é mais um dos caçadores, que contará seus atos de bravuras para “defender” a

população.

À medida que a trama avança, Arcanjo ressalta como é diferente dos demais, pois não

se considera um matador e não deseja participar da sagrada trilogia: “arma, dinheiro e poder”

(COUTO, 2012, p.34). Para ele, a caça nunca foi uma função que lhe agradasse, mas repara

que, nesta “última caçada”, é a oportunidade de sair da cidade e de encontrar o seu lugar, já

que o atual está em desacordo com sua existência, devido a tantos traumas, que o atormentam,

como a profissão, a morte dos pais, a guerra civil, a internação do irmão e principalmente a

rejeição de Luzilia, que o considerava louco. Por isso, ao se distanciar de sua terra natal, o

caçador adquire outro olhar para as situações, a partir da viagem de encontro consigo mesmo,

o que se reflete na criação do discurso entrecortado em seu diário.

Dessa forma, a confissão de Arcanjo estabelece, como visto no caderno de Mariamar,

um discurso fragmentado, no qual mostra a interação do oral e do escrito, por meio das vozes

trazidas pelas lembranças. Sua escrita inicia-se com a véspera do anúncio do concurso para a

caçada, a chegada, o trajeto e a partida da aldeia. Durante esta sequência, o protagonista

apresenta as sensações vivenciadas, indagando principalmente como é estar no mundo. Ao

reconhecer sua condição desconfortável, como ser exilado, ele busca nas histórias e lendas

contadas por sua mãe, como vimos em capítulos anteriores, um acolhimento. Em outros

momentos, apreende também as vozes de Henrique Baleiro, de Rolando, de Luzilia, dos

integrantes da comitiva de caça e dos moradores de Kulumani.

Além disso, a estrutura do seu diário demarca fragmentos de cartas, que garantem uma

dinâmica ao texto, como: no caso da sua missiva enviada para a cunhada, da palavra do pai,

que obrigava Martina a escrever uma carta de amor e da revelação do irmão, ao mostrar a

causa da morte de seus pais. Mescladas a esses elementos, encontramos marcas da oralidade

com o uso, também de provérbios, ao longo das oito partes do seu caderno.

Chama-me a atenção, como a presença das cartas, em diferentes situações, traduz a

experiência do exílio em tantos personagens. No caso de nosso protagonista, nota-se, ao

mesmo tempo, a sensação de banimento e também a expectativa de mudança, por meio do

sonho. Esta relação é perceptível, quando Arcanjo entrega à Luzilia uma carta de amor. A

aceitação desta seria a devolução no dia seguinte; contudo, isto, a princípio, não acontece e o

faz sofrer a dor da rejeição. Somente na sexta sequência, com o objetivo de levar uma carta de

134

Rolando, a jovem o reencontra com uma resposta positiva, o que assegura uma sensação de

esperança para ambos:

Diário do caçador (1)- O anúncio

Desde que te amo, o mundo inteiro te pertence (...). Esta mensagem, contudo, pede

uma resposta. À velha maneira: se gostas de mim, se me correspondes, dobra o

canto desta carta e devolve-me amanhã. (...)

- Não há dobra na carta?

Ela negou com a cabeça. Escondi a mágoa da rejeição. Como há espaço, dentro de

nós, para enterrarmos as nossas pequenas mortes! (...).

- Foi uma grande asneira ter confessado o meu sentimento. Não o devia ter feito.

Agora, devolve-me a carta.

- É minha. Não sou eu a dona de tudo?

(COUTO, 2012, p.37-38)

Diário do caçador (6)- O reencontro

Desdobra lentamente o segundo papel e agita-o à minha frente.

- Reconheces isto?

É a minha velha carta, essa desafortunada missiva em que, há muitos anos, me

declarei apaixonado. Sem mais dizer, Luzilia avança para mim, o sorriso triste ganha

agora enigmático cariz. Beija-me.

(...)

- Tinhas razão, esta é a tua última caçada. Porque eu te venho buscar...

(...)

Olho a estrada de areia que se abre à nossa frente, com mais curva que distância e

penso: a vida é a espera do que pode ser vivido.

(COUTO, 2012, p.206-207)

Em outros episódios, a missiva traduz o silenciamento de Martina, que, mesmo tendo

o poder da escrita, é submetida a escrever as declarações de “amor” ditadas por Henrique

Baleiro:

(...) Imóvel e dobrada sobre o papel, a mãe parecia uma tela e envelhecida. A seu

lado, Rolando rabiscava infinitos deveres de casa. Nesse momento, ele era mais

idoso que a nossa própria mãe. Ainda hoje ressoa em mim a voz do meu pai em

soletrado ditado:

- Meu querido Henrique, meu amado marido, único amor da minha vida ... estás a

escrever, Martina?

E encomendava longas missivas, sempre iguais, enrolando as palavras como se

estivesse embriagado. Que difícil relação o pai tinha com as palavras! Herdei essa

má relação com a escrita, em contraste com Rolando para quem as letras eram um

jogo de brincar (...).

Longe de nós, Henrique Baleiro cumpria o resto do ritual: invariavelmente

humedecia nos lábios e que depois guardava na mala de viagem. Transportava

aquelas cartas para as demoradas caçadas. Levava também uma fotografia desfocada

de Martina.

- Está assim, sem foco, para os outros verem, mas não olharem demais.

Ciumento, o velho Henrique! Esses ciúmes foram, aliás, motivo de sangue e luto

(COUTO, 2012, p.66-67).

Sabendo do analfabetismo do pai e do ciúme excessivo, Arcanjo exemplifica em sua

confissão a falta de liberdade de escrever da mãe, que não podia traduzir em palavras o que

realmente sentia. Em consequência disso, para conferir se aquela escrita contextualizava o que

ditava, Henrique chamava Rolando para ler os manuscritos:

135

(...) Revejo o dia em que Rolando foi obrigado a conferir o verdadeiro conteúdo das

missivas que a mãe eternamente redigia. E meu pai, braços cruzados sobre o peito,

em espera de supremo juiz. Na verdade, também eu me perguntava: as cartas que

Martina redigia eram fiéis ao que o pai ditava?

Aconteceu daquela vez: o meu pai suspendeu o ditado e ficou calado durante um

tempo.

- Então? - perguntou a mulher, vendo-o absorto.

- Não acredito que você obedeça ao que lhe mando escrever - disse ele, avançando

resolutamente sobre a esposa.

Com brusquidão, Henrique Baleiro arrancou a carta das mãos da mulher. Virou e

revirou a folha junto ao rosto como se olhasse através do papel. Para mim, era a

prova de uma antiga meu pai não sabia ler.

- Rolando, meu filho, venha cá.

O mano ergueu-se, tremendo da alma aos pés. O nosso velho estendeu-lhe o

caderno, olhos fixos no seu primogénito.

- Leia alto o que está aqui escrito.

Arregalados, os olhos de Rolando pareciam não lograr foco. As linhas dançavam-lhe

trementes. A voz presa num novelo, sem ponta por onde deslaçar.

- Leia!

- Onde, pai?

- Leia. Leia qualquer parte.

O olhar de minha mãe era uma reza. Rolando fixou-me com espanto e terror.

Depois, inspirou fundo e nem o reconheci quando a sua voz pairou na sala:

- Meu querido Henrique, meu amado marido...

- Vá, continue ..

- ... meu único amor da minha vida.

Fixei o rosto da mãe e vi a tristeza, a tristeza de toda a humanidade

(COUTO, 2012, p.105, 106 e 107).

Para Phillip Rothwell, em “O papel da carta na obra de Mia Couto”, “as cartas

evidenciam uma subjetividade no texto, constituindo a manifestação escrita mais próxima da

expressão oral” (ROTHWELL, 2010, p. 95). Na nossa trama, com a ausência da fala de

Rolando, a escrita representa o refúgio seguro para fazer as revelações. Assim, é neste espaço

que, mesmo com o “exílio total”, o irmão do caçador consegue confessar pela carta a

verdadeira morte de Martina e o porquê do assassinato do pai. Para Arcanjo, a postura do

irmão é impressionante, pois Rolando consegue se desprender do passado por meio do

processo da escrita, o que, para o caçador, é dificultoso:

- Diz-me, Luzilia: o meu irmão consegue dormir?

Rolando dormia, confirma a esposa. Como podia eu ficar indiferente? O meu irmão

conseguira o exílio total que eu sempre almejara. Invejava em Rolando a loucura e o

sono. Invejava-lhe a mulher, o amor correspondido que nunca tive.

(...)

-Há uma coisa que não entendo. É verdade que entendes o que Rolando fala,

naquele linguajar dele?

De repente, vejo-me próximo da desconfiança do meu pai face à fidelidade das

cartas de minha mãe. Meu Deus, como me pareço com Henrique Baleiro! Luzilia

está bem longe dos meus pensamentos quando responde:

- Não te esqueças de que sou enfermeira. E depois, há tanto tempo que cuido dele!

Eu escuto o teu irmão como quem lê as linhas da mão.

E eu que não esquecesse que Rolando sabia fazer uso da escrita. Sempre fora a

sua arma, o seu refúgio. Do bolso das calças, Luzilia retira dois pedaços de papel.

Escolhe o mais amarrotado e entrega-me. É uma carta de Rolando, reconheço a sua

caligrafia de eterno menino bem comportado. Não gosto de ler em voz alta. Sinto -

136

me frágil, ridículo, desnudado. Por isso, leio em surdina (COUTO, 2012, p.204-205-

negritos nossos).

À medida que faz a leitura da carta do irmão, Arcanjo percebe como a loucura

desperta no indivíduo um olhar mais consciente sobre os acontecimentos e que somente com

o auxílio da escrita, tornar-se possível vencer os traumas do passado. Rolando confessa como

sua atitude foi uma forma de libertação da opressão causada pelo pai, que controlava não só a

mãe como também os filhos. Interessante como o próprio nome “Rolando”55 traduz a coragem

em combater a violência paterna. A ação de despir-se da herança deixada pelos Baleiros

revela a necessidade de não coagir da mesma forma que o pai:

Meu querido irmão: imagino que te doa a minha condição. Quero -te dizer que não

sofro. Pelo contrário, sou feliz porque nunca mais posso voltar a ser um Baleiro.

Despi-me do meu herdado nome com o mesmo prazer que certas viúvas queimam as

vestes do marido que as tiranizou. Depois daquele disparo deixei de ter medo,

deixei de ter medo de quem fui. Já nenhum crime me espera. Estou vazio, como

apenas pode estar um santo. Lembras-te como a mãe nos chamava? Meus anjos, era

assim que ela dizia. Aqui onde estou, neste asilo, não são precisos demónios nem

anjos. Nós mesmos nos bastamos. Sim, fui eu que matei o nosso pai. Matei­o e

voltarei a matá-lo sempre que ele volte a nascer. Obedeço a ordens. Essas ordens

foram-me dadas sem palavras. Bastou o olhar triste da minha mãe. Não tenhas pena

de mim, meu irmão. A loucura, primeiro, foi o meu álibi. Tornou-se, depois, a minha

absolvição. A nossa mãe sempre avisou: a bala mata nas duas direções. Ao matar o

velho Baleiro eu mesmo me suicidei. Certa vez, depois do falecimento da nossa mãe,

tu disseste: quem me dera morrer. Pois eu te digo, agora. Não é a morte que confere

ausência. O morto está ainda presente: todo o passado lhe pertence. O único modo

de deixarmos de existir é a loucura. Só o louco fica ausente.

Aquelas linhas confirmavam a minha antiga suspeita: o meu irmão fazia-se passar

por louco. A única criatura realmente doente era eu, com as minhas atormentadas

noites, as cruéis lembranças de um passado mal vivido

(COUTO, 2012, p.205-206).

A ausência apontada por Rolando, por meio da loucura, permite a ousadia em

enfrentar o medo e projetar outra vivência, na qual o alicerce deveria ser a liberdade do ser

humano. Diferentemente, Arcanjo deixa as vozes do passado atormentá-lo; por isso,

constantemente, desejava ter a lucidez do irmão, que pela escrita consegue extirpar as mazelas

interiores. Dessa forma, a ânsia em tentar traduzir pelas palavras as suas fissuras é logo

percebida, nas epígrafes, dos oitos capítulos do “Diário do caçador” e no diálogo com o

escritor Gustavo Regalo.

55Tem origem no germânico Hrodland, Ruotlant, formado pela junção dos elementos hrout que significa

“glória” e land que quer dizer “terra” e significa “glória de sua terra ou natural da terra gloriosa”. (...)

Foi o nome de um sobrinho de Carlos Magno, um cavaleiro heroico e corajoso, que teve sua história contada no

poema do século XI “Le Chanson de Roland”, conhecido em português como “A Canção de Rolando”,

considerada até hoje uma das obras antigas mais importantes da literatura francesa. O poema mostra a coragem e

o fim heroico de Rolando. Disponível em: http://www.dicionariodenomesproprios.com.br/rolando/(adaptado).

Acesso: 22/09/2014.

137

A sequência desses elementos paratextuais movimenta a viagem de Arcanjo. Constata,

(no primeiro, quarto, sexto, sétimo e oitavo capítulos56), a dificuldade do protagonista com as

palavras; por isso, extrai fragmentos do caderno do escritor e também apresenta a força da

escrita, que o estimula a continuar a travessia. Além disso, (no terceiro e quinto capítulos57),

depreende o uso das reflexões com os provérbios para valorizar as figuras femininas, que,

unidas, poderiam exercer o poder. E, por fim, (no segundo capítulo58), retoma sua infância,

como vimos no trecho do pensador Walter Benjamin.

Durante sua confissão, Arcanjo apresenta também o exílio da criação, pois

incessantemente busca vocábulos adequados, que lhe permitam expressar pela palavra escrita

sua angústia. Assim, na comitiva por Kulumani, ele conhece Gustavo Regalo, “homem

branco, baixo, de barba e de óculos (...) um intelectual famoso” (COUTO, 2012, p. 63), com

quem debate questões sobre o ato de escrever, a caça e a própria existência. A sua presença

provoca incômodo em Arcanjo, que fica intimidado diante de um escritor e que lembra o

irmão Rolando:

- Sou Gustavo. Gustavo Regalo.

Parece gostar do seu próprio nome. Espera que eu o reconheça. Faço de conta,

porém, que me é completamente estranho.

- Vou fazer a reportagem da caçada, fui contratado pela mesma empresa que o

contratou a si.

- Tenho a certeza de que vai gostar. E os leões vão gostar de saber que a morte

deles merece uma reportagem.

- É a primeira vez que vou participar numa caçada. Devo dizer, sem ofensa, que sou

contra.

- Contra o quê?

- Contra as caçadas. Ainda por cima tratando-se de leões.

56 Diário do caçador (1) - O anúncio- “Só há um modo de escapar de um lugar: é sairmos de nós. Só há um modo

de sairmos de nós: é amar­mos alguém”. Excerto roubado aos cadernos do escritor;

Diário do caçador (4)- Rituais e emboscadas- “Onde os homens podem ser deuses, os animais podem ser

homens”. Cadernos do escritor;

Diário do caçador (6)- O reencontro- “Sou feliz apenas antes de viver. Só tenho lembrança no que sonho. Por

isso, escrevo”. Extrato roubado aos cadernos do escritor;

Diário do caçador (7)- O demónio santo- “De ossos e Sol, não de vida, se faz o Tempo. Porque a Vida é feita

contra o Tempo. Sem medida, tecida de ínfimos infinitos ”. Extrato roubado aos cadernos do escritor;

Diário do caçador (8)- Flores para os vivos- “Andei por abrigos extensos. Mas não encontrei sombra senão na

palavra”. Cadernos do escritor. 57Diário do caçador (3)- Uma longa carta e inacabada carta- “O homem vê o cacimbo; a mulher vê a chuva”.

Provérbio de Kulumani;

Diário do caçador (5)- O osso vivo da hiena morta- “Um exército de ovelhas liderado por um leão é capaz de

derrotar um exército de leões liderado por uma ovelha”. Provérbio africano. 58 Diário do caçador (2)- A viagem- “A minha rede de captura de borboletas está suspensa, espero apenas que a

mariposa me instigue através dos seus recuos, das suas hesitações. Como ficaria feliz se me pudesse dissolverem

luz e ar, apenas com o intuito de me aproximar e ser capaz de a dominar. Entre mim e a presa, agora, a velha lei

da caça se instala: quanto mais eu, com todo o meu ser, tento obedecer ao animal, mais me con verto, corpo e

alma, em borboleta. Quanto mais perto estou de cumprir o desejo de caçador, mais esta borboleta ganha a forma

da vontade humana. No final, é como se a captura fosse o preço que tenho que pagar para recuperar minha

existência humana (...). No regresso da caça, o espírito da criatura condenada toma posse do caçador”. Tradução

livre de excerto de A Caça à Borboleta, de Walter Benjamim.

138

- O problema, caro escritor, é que você nunca viu um leão.

- Como nunca vi?

- Viu leões em safaris fotográficos, mas você não sabe o que é um leão. O leão só se

revela, em verdade, no território em que ele é rei e senhor. Venha comigo a pé pelo

mato e saberá o que é um leão.

***

Quatro horas de avião, sentado ao lado do escritor, foram suficientes para avaliar o

fosso que nos separa. Com os seus ares de intelectual, o seu bloco de notas em riste,

a incapacidade de ficar calado: em suma, o escritor irrita-me. Pelo modo como me

encara, percebi que o inverso é também verdade. Qualquer coisa nele me faz lembrar

Rolando e a forma como o meu irmão me fitava. Como se me acusasse

(COUTO, 2012, p.64).

Esta figura do intelectual é de grande importância para a trama. Note-se que seu nome,

“Gustavo”, significa aquele que é “protegido de Deus”, o “convidado glorioso”59, “bastão de

combate”60, é o convocado para documentar as situações adversas da aldeia. Os vários

significados do seu nome são desconstruídos por Mia Couto, que, de forma irônica, apresenta

um escritor com o olhar de fora, que não encontra espaço no ambiente da caçada. Até mesmo

o sobrenome “regalo”, que indica “presente”, chama a atenção do leitor a pensar qual seria a

função do escritor, numa terra onde se sente deslocado. Mais adiante, veremos, com

exemplos, como este processo acontece.

Com o bloco de notas, Gustavo registra os fatos e estabelece um diálogo com Arcanjo,

que almejava ter a mesma segurança ao escrever. Na viagem pela aldeia, o escritor colhe o

testemunho das pessoas para entender como ocorrem as mortes de tantas mulheres. Contudo

não consegue organizar os depoimentos, pois há feridas do passado, que os habitantes da

aldeia não desejam recordar. Nesse sentido, lembremos que, para Mia Couto, a habilidade do

escritor é ter a capacidade “de suscitar histórias e de nos revelar facetas da nossa própria

humanidade” (COUTO, 2005a, p. 48), isto é, compreender as motivações humanas.

Vale ressaltar que esta imagem de Gustavo Regalo sugere um “alter ego” de Mia

Couto (que em 2008, visitou o Norte de Moçambique, região atacada por leões). Em

entrevista a Roda Viva, na TVE Brasil (2012), Couto afirma ser ele mesmo “ficcionalizado”

na trama, como confirma na explicação inicial da obra. Menciona que a postura de anotar as

histórias, por onde passa, é uma das suas principais características, que acaba transferindo

para o personagem/escritor ficcional. Relata que suas produções literárias nasceram desta

seleção de fatos, mitos e tradições. Destaca, ainda, na entrevista, que, ao final de suas

observações, já não sabia dizer o que era relatório de seu trabalho como biólogo ou texto

poético.

59 Retirado do site: http://www.dicionariodenomesproprios.com.br/gustavo/. Acesso : 10/08/2014. 60 Retirado do site: http://www.significado.origem.nom.br/nomes/?q=GUSTAVO. Acesso: 10/08/2014.

139

Na trama, os pontos de vista do personagem Gustavo, principalmente com o ato de

tecer, durante a viagem por Kulumani, causam uma inquietação em Arcanjo. Em um dos

momentos, o escritor elabora uma falsa carta para a namorada, o que reflete no caçador um

sentimento de exclusão, tanto por não ter a fluência com as palavras, quanto por não ter

alguém para corresponder seu amor.

Em outro episódio, a problemática levantada é o modo de realizar a construção da

história de Kulumani. O embate acontece, quando o escritor indaga que lado das mãos o

caçador escreve: direita ou esquerda? Para Arcanjo, o poder de disparar encontra-se na mão

direita, enquanto a escrita e o acolhimento a uma criança está na mão esquerda, o que provoca

estranhamento para Gustavo. Este, tendo em vista a histórias das civilizações61, relembra que,

na maioria das culturas, as pessoas sinistras eram castigadas ou convencidas a trocarem de

lado:

- Afinal, você é canhoto? -pergunta o escritor, aproximando-se.

- Sim. Mas, para disparar, sou dextro.

A mão esquerda, explico com súbita inspiração, é a que segura as crianças ao colo.

Não pode ser a mão que mata.

- Estranho - reage Gustavo. - Na maior parte das culturas, a mão esquerda é a

maldita. Em que tribo foi buscar esse preceito?

- Na tribo de minha casa, na tribo dos Baleiros. Hoje, essa tribo sou só eu.

- E o que está a escrever, se não é indiscrição?

- Escrevo esta história.

- Que história?

- A história desta caçada. Vou publicar um livro.

Gustavo não esconde o sorriso nervoso. A revelação funcionou como um soco no

estômago. As perguntas seguem-se, sem pausa: um livro?... e que editora me iria

publicar?... E que estilo adotaria, a novela, o testemunho? Não deixo que termine o

desfile de dúvidas e interrogações. Pergunto-lhe como que a apaziguar:

- Acho que não vou conseguir.

- E por que é que não seria capaz?

- Escrever não é como caçar. É preciso muito mais coragem. Abrir o peito assim,

expor-me sem arma, sem defesa... (COUTO, 2012, p.99-100).

Vale mencionar como Mia Couto desconstrói esta perspectiva direita e esquerda. Se,

por muito tempo, a parte direita era considerada “correta”, enquanto a esquerda era vista

como “errada”, o escritor moçambicano mostra que escrever com a direita ou com a esquerda

pouco importa, pois, diante do poder, os interesses mudam. Para Couto, o fundamental é a

construção do conteúdo das histórias, que levem o sujeito a novos olhares para antigas

situações e possam criar elos, que permitam o diálogo, e não a divisão. Em Pensatempos, Mia

afirma que a grande riqueza “provém da nossa disponibilidade de efectuarmos trocas culturais

61 Informação retirada do site:

http://super.abril.com.br/superarquivo/?edn=002Ed&yr=1987a&mt=novembro m&ys=1987y. Acesso:

20/08/2014.

140

com os outros. (...) Nasce da capacidade de sermos nós, sendo outros” (COUTO, 2005a,

p.10).

Assim, Arcanjo sabe que o grande problema não está no uso da mão direita ou

esquerda, mas no enfrentamento, muitas vezes, do exílio interior, isto é, do reconhecimento da

necessidade de lidarmos com sensações que desejaríamos esquecer. Neste caso, o caçador

debate com o escritor esta problemática de lidar com os conflitos interiores e o alerta para o

medo do desconhecido, como é possível perceber na passagem que é continuidade do trecho

anterior:

Gustavo percebe a ironia nas minhas palavras. Tenta, então, atacar-me no meu

próprio território.

- Já lhe disse que odeio a caça.

- Por que é que está aqui, então?

- Neste caso não existe alternativa para proteger vidas humanas.

- Sabe o que eu lhe digo? Medo.

- Como?

- Você tem medo.

- Eu? - Tem medo de si mesmo. Tem medo de ser caçado pelo animal que mora dentro

de si.

Gustavo vira as costas, mas eu não desisto: por muito que ele vivesse num mundo

moderno, o primitivo mato continuava vivo dentro dele. Parte da sua alma seria

sempre bravia, cheia de indomáveis monstros.

- Venha para o mato comigo e vai ver: você é um selvagem, caro escritor.

- Chame-me o que quiser, mas não encontro grande heroísmo em disparar sobre

animais indefesos. Não há glória num confronto tão desigual.

Em silêncio, retiro da sacola e deposito sobre a mesa uma garra e um dente de leão.

- O que lhe parece que isto é?

- São partes de um leão.

- Partes? São armas. Estas são as espingardas do leão. Como pode ver, o bicho está

mais equipado que eu. Quem é o caçador, afinal? Eu ou ele?

- Esta conversa não vai dar a lado nenhum.

- Deixe-me dizer que, como repórter, você começou muito mal.

- E porquê?

- Você não percebeu por que motivo destruí as armadilhas.

- E você começou ainda pior: nem se dignou a falar com as pessoas a ntes de

destruir aquilo que elas construíram com tanto empenho.

(...)

(COUTO, 2012, p.100-101- negritos nossos)

Ainda neste fragmento, que serve de exemplo para ampliarmos o significado do nome

de Gustavo Regalo, como havíamos previamente mencionado, é possível observar

primeiramente, a ironia apontada por Mia Couto para o “status” da função do escritor. Logo

que se apresenta aos demais na comitiva, Gustavo deseja ser reconhecido, o que acaba não

ocorrendo. Os significados para o seu nome como: o “protegido de Deus”, o “convidado

glorioso”, “bastão de combate”, neste contexto da aldeia, não fazem sentido, já que este lugar

se encontra deslocado. Neste aspecto, a imagem de escritor “celebridade” apresenta

esvaziada, pois, na trama, Arcanjo é o grande protegido, aquele que anuncia e compõe o relato

141

da experiência da caçada. Assim, quando o caçador confessa que Kulumani é seu território, há

uma inversão de papéis; o escritor, apesar de toda sua fama, passa a ser conduzido pelo

caçador.

Outro ponto a observar, ainda com relação a imagem do “protegido”, aparece na fala

do escritor, ao confessar que odeia a caçada e que só está na aldeia para registrar este

momento. Há uma atitude de auto proteção, de não se envolver com os problemas da aldeia.

Por isso, o caçador afirma que escrever requer muito mais coragem e critica em relação à

atitude de Gustavo, que teme o encontro consigo mesmo. Para Mia Couto, quando o escritor

assume a função de contar uma história, significa tomar partido; assim, ele próprio se

questiona sobre o papel do escritor; não aquele que deseja ser o protegido ou fazer parte do

“status quo” do intelectual famoso, mas o que se torna agente na construção de outra História,

ao estar “disponível a deixar-se tomar pelos pequenos detalhes do quotidiano (...)” (COUTO,

2005a, p.46)

Depois de questionar o escritor com relação à escrita e à caçada, ainda nesta passagem,

outro enigma que exige a reflexão é o exílio da produção da obra enfrentado pelo autor da

história. Isto é, em um dos momentos, o pensamento do caçador projeta as perguntas do

escritor sobre o estilo e o tema que adotaria para contar a história de Kulumani: “as perguntas

seguem-se, sem pausa: um livro?...e que editora me iria publicar?...E que estilo adotaria, a

novela, o testemunho?”(COUTO, 2012, p.100). Contudo, há uma crítica de Mia Couto, pela

voz do caçador, ao se referir ao mercado editorial, que autoriza a publicação de obras de

acordo com o interesse de venda, e não pela qualidade do conteúdo. Por esse motivo, o

caçador ilustra como os escritores sentem-se deslocados por se sentirem obrigados a mudarem

seus temas, por razões de publicação: “- Sabe uma coisa, escritor: seria melhor se, em vez de

leões, eu viesse caçar vampiros. Os vampiros vendem bem, você teria um best -seller

assegurado” (COUTO, 2012, p.101).

Após a conversa entre Arcanjo e Gustavo, percebe-se a proximidade cada vez mais

intensa entre os dois. Na aldeia, o escritor sente-se perdido na comitiva da caçada e encontra

apoio no caçador, que lhe ensina uma nova leitura de mundo. Nesta troca de ensinamentos, o

elo é construído principalmente pela escrita, que se torna o caminho de diálogo, já que um

passa a ler os manuscritos do outro. Em Arcanjo, alguns escritos tornam-se elementos da

epígrafe da abertura de cada capítulo do diário; em Gustavo, os papéis do caçador pouco a

pouco passam por uma releitura:

Mais tarde, enquanto arrumo os meus pertences, surpreendo o escritor a espreitar o

meu diário. Não interfiro. Deixo que os seus dedos vorazes folheiem o pequeno

142

caderno. Em vez de me arreliar, porém, aquele interesse me enche de inesperada

vaidade. Afinal, o próprio artista reconhecia valor nas minhas artes?

Não sei - nem nunca saberei - o que Gustavo pensa do que vai lendo. Sei que, a um

certo momento, as suas mãos estremecem e um brilho se acende no seu olhar

(COUTO, 2012, p.105).

Em outra cena, Arcanjo vai se despindo da sua função de caçador ao confessar para o

escritor o desejo de abandonar o seu ofício; por isso, doa sua espingarda para Gustavo, que se

surpreende com tal atitude, pois o considerava um profissional competente para realizar tal

tarefa. Isto fica claro, quando o escritor aprende com o caçador a diferença entre “caçar e

matar”. Mesmo com todo o conhecimento sobre a caçada, as mãos de Arcanjo permanecem

paralisadas, desconhecidas e estranhas diante da presa. Se por um lado elas o impedem de

caçar, por outro elas conduzem a atividade da escrita; em conseqüência disso, constata que o

poder não se encontra na espingarda, mas na habilidade em escrever, que impulsiona uma

ação transformadora do indivíduo despir de si mesmo:

Já em casa, preparo o almoço. O escritor está na sala, trabalhando. Reparo que

continua espreitando os meus caóticos papéis. Já não me importo. Também eu leio

os cadernos dele e até lhe roubo umas frases. Começo, em troca, a ganhar o tardio

gosto de escrever. Qualquer coisa na escrita me sugere o prazer da caça: no vazio da

página se ocultam infinitos sobressaltos e espantos. (...)

- O que é isto, Arcanjo?

- É sua. A espingarda é toda sua.

- Por favor, Arcanjo, para que raio quero eu a porcaria da arma?

Levanto a palma da mão para sugerir que me escute, sem interrupção.

- Lembra-se do que se passou na noite em que Hanifa nos chamou? Lembra-se

como demorei a desfechar o tiro?

Com mil cuidados, o escritor coloca a arma no chão, como se estivesse manuseando

uma carga explosiva. Espero que termina a delicada operação e prossigo: - Há dias o Gustavo quis saber com que mão eu disparava. Pois nem direita, nem

esquerda. Já não disparo.

- Não entendo. - Os meus dedos já não me obedecem, os meus dedos já morreram. A verdade é

esta: eu já não posso caçar.

Ergo bem alto os braços, exibindo os dedos arqueados como velhos ganchos. O

escritor não sabe o que dizer. Apresento-me tão sincero, tão derrotado, que lhe custa

ver desmoronar a imagem que de mim foi construindo. - Já não tenho mãos - concluo, derrotado.

Observo as mãos como se nunca as tivesse visto, como se me fossem

inteiramente estranhas. Exatamente como, no hospital, o meu irmão Rolando

contempla a inutilidade do seu corpo.

- Não diga a ninguém - solicito, num sopro.

- Ninguém vai saber - tranquiliza-me Gustavo. A seguir, pergunta: - Desculpe, mas

não é melhor aceitar a oferta do administrador e caçar com apoio de Genito e

Maliqueto?

- Nunca.

- Não entendo. Quem é que, afinal, vai matar os leões?

- Você.

- Como?

- Você é que os vai matar.

- Está maluco!

- Eu conduzo tudo, não se preocupe. No momento preciso, você só tem que apertar o

gatilho (COUTO, 2012, p. 197, 198 e 199- negritos nossos).

143

Ao receber a arma, Regalo, mesmo que implicitamente, deixa emergir o sentimento

guardado em todos os indivíduos: a ânsia pela caçada. A partir da descrição das imagens do

animal realizada pelo caçador, percebemos o processo de dominação e de repressão que os

indivíduos trazem consigo. Em Gustavo, isto não seria diferente; portanto, Arcanjo apresenta

também a sensação silenciada que acompanha o escritor:

Esperava que o homem fosse mais enfático, em total negação. Todavia, Gustavo

Regalo parece ponderar. Talvez o escritor comece a ceder a uma recalcada

vontade. Volta a reerguer a arma, toma­lhe o peso e aponta para um imaginário

alvo.

- Acha que eu acertaria no bicho?- pergunta.

Um sentimento novo desponta na alma do escritor. Há nele um entusiasmo

quase pueril que desponta. E penso: tudo o que, durante séculos, tão

cuidadosamente construímos para nos afastar da nossa animalidade, tudo o que

a linguagem recobriu com metáforas e eufemismos (o colo, o rosto, a cintura)

num instante se converte na sua nua e crua substância: a carne, o sangue, o

osso. O leão não devora apenas pessoas. Devora a nossa própria humanidade.

- E se falhar?- quer saber Gustavo.

- Não se preocupe, escritor. Não é tanto para matar o leão que lhe entrego a

espingarda. É para me defender a mim (COUTO, 2012, p.199- negritos nossos).

Entretanto, a arma do escritor, assim como o do caçador, é ocupada pela força do

ofício em escrever, que move todas as ações dos protagonistas. Dessa forma, a atitude de

Gustavo, que justifica o primeiro significado do seu sobrenome Regalo, que indica “presente”,

é a elaboração de um relatório, no qual denuncia a conduta de Florindo diante a violação da

empregada Tandi. Mesmo com a desconfiança de Arcanjo com as palavras de Hanifa, já que,

ela quase fez o caçador atirar em Genito, que estava bêbado no mato, o escritor age em favor

das mulheres e envia o relatório:

Espero que o escritor me defenda. Ao que parece ele já se adiantou na defesa de

alguém: enviou um relatório para o governo central denunciando a inércia de

Florindo perante a violação de Tandi.

- Você falou com Naftalinda? - pergunto.

- Foi ela mesma que me pediu que denunciasse esse crime. E Hanifa, a empregada,

também me abordou: declarou que o marido, Genito Mpepe, foi quem comandou o

grupo dos violadores.

- Confia no que diz Hanifa, depois do episódio daquela noite?

- O próprio Genito Mpepe, confessou que estava no mvera comandando os

energúmenos (COUTO, 2012, p.199- 200).

Depois da morte dos leões, por Maliqueto e por Genito, Arcanjo relata a sensação de

Gustavo, ao visualizar o animal morto junto com seu carrasco Genito, que também morrera.

Para o caçador, o escritor é um grande aprendiz desta viagem por Kulumani, pois ao final

reconhece a diferença entre matar e caçar e sabe que o relato da caçada deve passar

necessariamente por um universo de produção, no qual “só se escreve com intensidade se

vivermos intensamente” (COUTO, 2005a, p.49):

144

O administrador não conhecia os pormenores. Sabia, sim, que o pisteiro e a leoa

morreram abraçados, como se os dois se reconhecessem, íntimos parentes.

- Tivemos que separar os corpos, com muito custo. Aquilo parecia um parto às

avessas. Dizem que o escritor até chorou. Nem conseguiu fotografar.

***

Imagino o escritor e a sua lágrima. Certamente, uma lágrima inventada, tal como a

palavra por ele criada. E penso que, afinal, lhe valeu a viagem. Gustavo Regalo sabe

agora o que é um leão. E sabe melhor o que é um homem. Nunca mais perguntará

sobre a razão da caça. Porque não existe resposta. A caça acontece nas cos tas da

razão: é uma paixão, uma alucinada vertigem.

- Fica triste por não ter sido você a matar os leões? - pergunta-me Gustavo, à

queima-roupa.

- Triste, eu?

- Sei o que me vai responder. Que você não mata, você caça.

Passei esta noite com a mulher dos meus sonhos. Como posso estar triste? Talvez,

sim, eu queira agora as noites todas que há no tempo. O caçador é um homem

viciado em milagres. O caçador é o demónio santo (COUTO, 2012, p.229-230).

Antes dos últimos registros da caçada, Gustavo avalia o diário do caçador e o elogia.

A partir deste instante, Arcanjo confessa como esta resposta, vinda do escritor, concede a ele

uma morada, um abrigo. Na verdade, as palavras de Regalo concedem um grande “presente”,

o que nos traz, mais uma vez, o significado para o sobrenome do escritor. O caçador, que

tantas vezes, buscou a habilidade em escrever, tem agora, a partir da releitura de seu diário

pelo escritor, o reconhecimento de seu trabalho minucioso com as palavras e a definição da

troca da espingarda pela escrita:

Passámos, no caminho, a buscar Gustavo Regalo. Encontro -o imerso entre os

habituais papéis.

- Deixe o seu trabalho, vamos ver o leão abatido.

- Não é o meu trabalho, estou a rever o seu diário.

- Vale a pena?

- Escute, eu sou escritor, sei avaliar: quem escreve assim não precisa caçar.

Um nó me prende a garganta. Gustavo não imagina o valor daquela recompensa. Foi

um pequeno bilhete que iniciou a minha história com Luzilia. Eram as cartas que

faziam o meu pai ajoelhar-se perante a mal amada esposa. Era inveja o que eu nutria

por Rolando quando ele permanecia em casa, sentado como um soberano, na

companhia de livros. Sempre fui o da rua, o do mato. O que Gustavo me dava agora

era uma casa. Talvez seja por isso que lhe ofereço agora a minha velha espingarda.

Gustavo recusa. E eu pergunto:

- Afinal, não trocamos? Você caça e eu escrevo?

-Você deu-me o que, na caça, está antes da espingarda

(COUTO, 2012, p. 245-246).

Vale mencionar que este oitavo capítulo do “Diário do caçador” é seguido da epígrafe:

“Andei por abrigos extensos. Mas não encontrei sombra senão na palavra” (COUTO, 2012,

p.243). Este paratexto apresenta exatamente o poder da palavra, que articula toda a economia

narrativa do romance, pois sendo um elemento reconstrutor e transformador, move as ações

dos personagens, por meio dos diálogos e principalmente das ações dos protagonistas, que

elaboram em seus diários as reminiscências por meio da confissão. Dessa forma, nesta última

145

parte da obra, há o encontro da escrita dos diários de Mariamar e de Arcanjo, pois ambos

confessam o lado agregador e terapêutico da palavra escrita, que possibilita a segurança diante

do exílio.

Nas cenas finais da trama, quando o caçador leva Mariamar embora da aldeia, “ela

deixa tombar o caderno” (COUTO, 2012, p.250). Esta imagem em contato com o chão ilustra

o germinar das sementes, agora pelas palavras. Em seguida, com o caderno aberto ele

consegue ler “Deus já foi mulher”, o que dialoga com o início do romance e dá a sensação que

a obra pudesse recomeçar, agora com outro olhar. Dessa forma, acredita-se que, neste novo

ciclo, as mulheres tenham a possibilidade de ter seus direitos e sua liberdade.

Arcanjo, por sua vez, sente-se “rodeado de deusas. De um e do outro lado da

despedida, naquele rasgar de mundos” (COUTO, 2012, p. 250), nota como sua vida também

começa a ter um novo rumo, agora, não mais regido pela herança do Baleiros, que lhe

acompanhou durante tanto tempo, mas uma vida costurada pela confissão das leoas.

146

5. CONCLUSÃO

Chego ao fim. Todo fim é o início (...).

(COUTO, 2012, p. 241)

Analisar o romance A confissão da leoa, exige do leitor a atenção minuciosa para

percorrer os sinuosos caminhos de investigação e construção de hipóteses. Contudo, quem

decide se aventurar nessa trajetória reconhece o prazer da descoberta. Para Roland Barthes,

em O prazer do texto, o sentido mais prazeroso das palavras encontra-se nas entrelinhas, no

lugar intermitente. Para ele, o apreço pela narrativa “não é directamente o seu conteúdo nem

mesmo a sua estrutura, mas sim as esfoladelas que faço no belo invólucro: corro, salto,

levanto a cabeça, torno a mergulhar” (BARTHES, 2004, p.46-47). É essa a sensação que

temos ao lermos as obras miacoutianas: transitamos pelas contradições dos personagens,

investigamos os vários pontos de vista, tentamos reconstruir em palavras as múltiplas

significações das imagens na narrativa.

A epígrafe que selecionamos para elaborar as considerações finais nos ajuda a

compreender o ofício do pesquisador diante de seu objeto de estudo, ou seja, quando se inicia

a pesquisa surge sempre o desejo por um novo ciclo de leituras. Com palavras que projetam

um olhar mais aguçado para as contradições sociais, Mia Couto apresenta esta habilidade de

recriar os vários fatos que recolhe por suas andanças. O próprio afirma em entrevista ser um

“reescritor”:

A história nasce de outras histórias. De pessoas que se revelam, de encontros

fragmentados. Mas não sou capaz de construir um plano. Nenhum dos meus livros

teve essa arquitetura antecipada. Deixo-me apaixonar pelos personagens, a ponto

que eles se tornem uma presença obsessiva dentro de mim. Durmo com eles, acordo

com eles, vou para o serviço com eles. E por razão dessa paixão eles me autorizam a

que me aproxime, espreite as suas vidas e escute os seus segredos. São esses

personagens que me vão relatando a história. A minha função, durante um tempo, é

manter essa relação apaixonada até que surja de dentro de mim um outro eu que faz

a poda daquela árvore caoticamente ramificada. Esse é um segundo momento, mais

oficial, mais de disciplina. É aqui que o escritor se converte num reescritor. 62

Em A confissão da leoa, Couto elabora o universo da aldeia de Kulumani, a partir das

confissões das leoas e do caçador. Nas mulheres representadas como felinas- Mariamar,

Hanifa, Naftalinda e Luzilia- notamos a fúria daquelas que são obrigadas a permanecer na

62 COUTO, Mia. “Entrevista”. Entrevista a André Miranda. Jornal O globo. 30 de agosto de 2013. Disponível:

http://oglobo.globo.com/cultura/deixo-me-apaixonar-pelos-personagens-conta-mia-couto-as-vesperas-de-

participacao-na-bienal-9751745. Acesso: 19/09/2013.

147

posição de inferioridade. Importante a forma como o escritor chama a atenção para o

problema ainda recorrente da submissão feminina e do abuso de poder masculino. Mia traz

também para a cena a imagem fragmentada do homem representado pelo caçador. Exilado,

Arcanjo padece com os traumas deixados pela violência.

O nosso trabalho buscou investigar três relações fundamentais no romance estudado:

exílio, memória e o discurso. Observamos, através dos estudos de Said, o exílio originado na

prática do banimento. Por meio desta experiência, identificamos, em diversos momentos do

romance, a sensação de vazio e solidão nos personagens. Em Mariamar, moradora da aldeia, o

isolamento inicia-se com seu não-pertencimento, tanto a tradição local, quanto os costumes do

colonizador. Em Arcanjo, percebe-se um desconforto na cidade e, por mais que se

considerasse um habitante da aldeia, seria sempre visto como um estrangeiro. Dessa forma,

propomos uma leitura pelo exílio existencial, que aciona os conflitos interiores. Para Laura

Padilha, em Africanas vozes em chama:

o exílio é o máximo do despaisamento, pela ausência do reconhecível e das

referências identificatórias, o estar exilado em seu próprio lugar, sofrendo a

confrontação simbólico-cultural a cada passo, se faz o exílio dos exílios, já que os

modos de viver legítimos são alvos de uma profunda desconfiança histórica do

opressor, para quem sempre significaram uma menos valia cultural. A "fratura in -

curável do exílio", tal como a analisa Edward Said (2003, p. 46.), torna-se muito

mais exposta quando se dá dentro e não fora dos territórios de origem e de

experiências. 63

O universo de Kulumani marcado pelo momento pós-guerra representou as

contradições, os conflitos políticos e sociais deste momento contemporâneo. Neste local, onde

não há saída, focalizamos a busca pela memória, tanto individual, quanto coletiva. Assim,

marcados pela fratura provocada pelo exílio, os protagonistas trazem cenas incomodas e

traumáticas, por meio do jogo entre lembrar e esquecer. Ao se confrontar com cada

lembrança, vimos que Mariamar e Arcanjo iniciaram a tentativa de romper a

incomunicabilidade, de vencer os medos e de enfrentar a solidão, já que, no caderno

reorganizaram os seus pensamentos.

À medida que as lembranças apareciam, a narrativa expressava os dramas, as aflições,

associados aos mitos e lendas e também os momentos de prazer, por meio de uma prosa

poética, capaz de evidenciar e, simultaneamente, amenizar os sofrimentos. Ao resgatar esses

63 PADILHA, Laura. “Africanas vozes em chama”. Revista Semear (Revista da Cátedra Antonio Vieira/PUC-

RJ), n.º 9, 2004. Disponível em: http://www.letras.puc-rio.br/unidades&nucleos/catedra/revista/semiar_9.html.

Acesso: 15/08/2014.

148

pensamentos, os protagonistas pela palavra escrita tornaram-se capazes de reorganizar as

situações conflitantes na busca pelo autoconhecimento. Por meio dos cadernos, Mariamar e

Arcanjo preenchiam seus vazios e realizavam a “cura interior”.

Em Literatura em perigo, Todorov menciona a importância da literatura como um

processo terapêutico, pois possibilita “dar forma aos sentimentos (...), ordenar o fluxo de

pequenos eventos” (TODOROV, 2009, p.76). Em meio a acusações de que eram loucos, os

protagonistas apresentaram pelo poder da palavra escrita a oportunidade de dar voz não só as

situações silenciadas, como também aos excluídos. Para aqueles que possuíam o poder, os

problemas e as contradições na aldeia seriam sempre escondidos.

Em intervenção para a inauguração de uma empresa seguradora, em Angola, em 2005,

Couto escreve o ensaio Dar tempo ao futuro, e questiona o nosso comportamento em relação

ao futuro, já que, para ele, em vários lugares, este termo tem nascido morto, devido às

desigualdades sociais, aos conflitos pelo poder e as ambiguidades do presente. Alerta que:

Estamos tão entretidos em sobreviver que nos consumimos no presente imediato

(...). Fomos exilados não de um lugar. Fomos exilados da actualidade. E por

inerência, fomos expulsos do futuro. (...) o nosso maior inimigo somos nós mesmos.

O adversário do nosso progresso está dentro de cada um de nós, mora na nossa

atitude, vive no nosso pensamento. A tentação de culpar os outros em nada nos

ajuda (...) Uma grande potência não começa nos recursos naturais. Começa nas

pessoas e na capacidade de essas pessoas serem produtoras de felicidades. Seremos

mais pessoas se o futuro for um território nosso, onde o medo e o desespero estejam

tão ausentes como nós estamos presentes aqui, para celebrar algo que se está

iniciando tanto quanto nos podemos iniciar a nós próprios

(COUTO, 2009a, p.138-139).

Este pensamento de Mia Couto nos ajuda a pensar nas situações problematizadas em A

confissão da leoa, isto é, por mais que o momento pós-guerra e a violência as mulheres

causassem traumas e silenciamentos, percebemos, pelo processo de autoconhecimento, por

meio da confissão de Mariamar e Arcanjo, a força impulsionadora de um novo recomeçar,

que deveria partir da mudança interior e depois da transformação social.

Neste trabalho, buscamos a reflexão sobre o tema do exílio, no sentido existencial,

pois acreditamos, assim como o próprio escritor, que a projeção de novos caminhos para a

sociedade só se inicia quando formos capazes de lidarmos com nossas mazelas interiores.

Assim, ao encerrarmos nossa leitura, lembramos que o desejo de travessia pela escrita

miacoutiana é sempre permanente, pois, segundo Ondjaki, “o miar do Couto é um jardim

vasto e complexo onde saltitam, brincando, flores do conhecimento e da imaginação”

(ONDJAKI, 2005, p.27). Fica a possibilidade de novas leituras e outras propostas para a obra

que nos levou a aprender mais sobre a própria condição humana.

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