O Filho Eterno (Cristovão Tezza)

Embed Size (px)

Citation preview

  • 0 nascimento de urn filho como momenta de ruptura na vida de urn casal. Uma crianc;:a desejada, mas diferente. Nas palavras do pai, na tfmida tentativa de explicar para os conhecidos, nos primeiros meses, uma crianc;:a com "urn pequeno problema. Ele tern mongolismo." De infcio, o estranhamento, e o pai assu'me que a urgencia nao e resolver 0 tal problema da crianc;:a - haveria algo a ser resolvido? -, mas o espac;:o que o filho ocupara na propria vida.

    E a crianc;:a o ocupa, ocupara pelo resto da vida. Num livro corajoso, Cristovao Tezza expoe as dificuldades, inumeras, e as saborosas pequenas vitorias de criar urn filho com sfndrome de Down. 0 periplo por clfnicas e consultorios medicos numa epoca em que o assunto nao era tao estudado e ainda tinha" 0 veu do misticismo, a tensa relac;:ao inicial com a mulher. "Numa das crises, ela !he diz, no desespero do choro alto: Eu acabei com a tua vida. E ele nao respondeu, como se concordasse - a mao que estendeu aos cabelos dela consolava o sofrimento, nao a verda de dos fatos.

    Aproveita as questoes que apareceram pelo caminho nestes 26 anos de Felipe para reordenar sua propria vida: a experimentac;:ao da vida em comunidade quando adolescente, a vida como ilegal na Alemanha para ganhar dinheiro, as dificuldades de escritor com trinta e poucos anos e alguns livros na gaveta, a pretensa estabilidade com o cargo de professor em universidade publica.

    Com precisao literaria para encadear de maneira clara referencias de anos e situac;:oes tao dfspares, as vezes dentro ~0 mesmo capitulo, Cristovao Tezza reforc;:a, com a publicac;:ao de 0 filho etemo, seu I ugar entre os maio res escritores brasileiros.

    0 FILHO ETERNO

  • 0 z

    tj ~ Q ~3 ~ ~

    ::0 o;.

  • CIP-Brasil. Cataloga
  • - Acho que e hoje - ela disse. - Agora - completou, com a voz mais forte, tocando-lhe 0 bra90, porque ele e urn homem distrafdo,

    Sim, distrafdo, quem sabe? Alguem provis6rio, talvez; al-guem que, aos 28 anos, ainda nao come9ou a viver. A rigor, exceto por urn leque de ansiedades felizes, ele nao tern nada, e nao e ainda exatamente nada. E essa magreza semovente de uma alegria agressiva, as vezes ofensiva, viu-se diante da mulher gravida quase como se s6 agora entendesse a exten-sao do fato: urn filho. Urn dia ele chega, ele riu, expansivo. Vamos la!

    A mulher que, em todos os sentidos, o sustentava ja havia quatro anos, agora era sustentada por ele enquanto aguarda-vam o elevador, a meia-noite. Ela esta palida. As contra96es. A bolsa, ela disse - algo assim. Ele nao pensava em nada -em materia de novidade, amanha ele seria tao novo quanto o filho. Era preciso brincar, entretanto. Antes de sair, lembrou-se de uma garrafinha caub6i de ufsque, que colocou no outro bolso; no primeiro estavam os cigarros. Urn cartum: a figura fuma urn cigarro atras do outro na sala da espera ate que a enfermeira, o medico, alguem lhe mostra urn pacote e lhe diz alguma coisa muito engra9ada, e nos rimos. Sim, ha algo de engra9ado nesta espera. E urn papel que representamos, o pai

    9

  • angustiado, a mae feliz, a crianya chorando, o medico sor-ridente, o vulto desconhecido que surge do nada e nos da parabens, a vertigem de urn tempo que, agora, se acelera em desespero, tudo girando veloz e inapelavelmente em tomo de urn bebe, para so estacionar alguns anos depois - as vezes nunca. Ha urn cenario inteiro montado para o papel, e nele deve-se demonstrar felicidade. Orgulho, tambem. Ele merecera respeito. Ha urn dicionario inteiro de frases ade-quadas para o nascimento. De certa forma - agora ele dava partida no fusca amarelo ( eles nao dizem nada, mas sent em uma coisa boa no ar) e cuidou para nao raspar o para-lama na coluna, como ja aconteceu duas vezes - ele tambem esta-ria nascendo agora, e gostou desta imagem mais ou menos edificante. Embora continuasse nao estando onde estava -essa a sensayao permanente, por isso fumava tanto, a maqui-na inesgotavel pedindo gas. E urn terreno inteiro de ideias: pisando nele, nao temos coisa alguma, so a expectativa de urn futuro vago e mal desenhado. Mas eu tambem nao tenho nada ainda, ele diria, numa especie metafisica de compe-tiyao. Nem casa, nem emprego, nem paz. Bern, urn filho -e, sempre brincando, viu-se barrigudo, severo, trabalhando em alguma coisa enfim salida, uma fotografia publicitaria da familia congelada na parede. Nao: ele esta em outra esfera da vida. Ele e urn predestinado a literatura - alguem neces-sariamente superior, urn ser para o qual as regras do jogo sao outras. Nada ostensivo: a verdadeira superioridade e discre-ta, tolerante e sorridente. Ele vive a margem: isso e tudo. Nao e ressentimento, porque ele nao esta ainda maduro para o ressentimento, essa forya que, em algum momenta, pode nos p6r agressivamente em nosso lugar. Talvez o inicio des-sa contraforya (mas ele seria incapaz de saber, tao proximo assim do instante presente) seja o fato de que jamais con-

    1 0

    seguiu viver do seu trabalho. Do seu trabalho verdadeiro. Uma tensao que quase sempre escapa pelo riso, a libertayao que ele tern.

    No balcao da matemidade a moya, gentil, pede urn che-que de garantia, e as coisas se passam rapidas demais, par-que alguem esta levando sua mulher para longe, sim, sim, a bolsa rompeu, ele ouve, enquanto resolve os tramites -e mais uma vez tern dificuldade de preencher o espayo da profissao, quase ele diz "quem tern profissao e a minha mu-lher. Eu"- e ainda encontra tempo de dizer alguma coisa, a mulher tambem, mas a afetividade se transforma, sob olhos alheios, em solenidade - alguma coisa maior, parece, esta acontecendo, uma especie de teatro se desenha no ar, somos delicados demais para 0 nascimento e e preciso disfaryar to-dos os perigos desta vida, como se alguem (a imagem e ab-surda) estivesse levando sua mulher para a morte e houvesse nisso uma normalidade completa. Volta-lhe o horror que sen-te diante dos hospitais, dos predios publicos, das instituiy6es solenes, de colunas, halls, guiches, ab6badas, filas, da sua granftica estupidez - a gramatica da burocracia repete-se tambem ali, que e urn espayo pequeno e privado. Mais tarde, ele se ve em alguma sala diante da mulher na maca, que, pa-lida, sorri para ele, e eles tocam as maos, tfmidos, quase como quem comete uma transgressao. 0 lenyol e azul. Ha uma assepsia em tudo, uma ausencia bruta de objetos, os passos fazem eco como em uma igreja, e de novo ele vive a angustia da falsidade, ha urn erro primeiro em algum lugar, e ele nao consegue localiza-lo, mas em seguida nao pensa mais nisso. Os segundos escorrem.

    Dizem alguma coisa que ele nao ouve; e na espera, perde a noyao do tempo- que horas sao? Noite avanyada. Agora esta sozinho num corrector ao lado de uma rampa vazia e em

    1 1

  • frente a duas portas basculantes, corn urn vidro circular no centro de cada lamina por onde as vezes ele espia mas nada ve. Ele nao pensa ern coisa algurna, mas, se pensasse, talvez dissesse: estou como sernpre estive - sozinho. Acendeu urn cigarro, feliz: e isso e born. Deu urn gole do ufsque que tirou do bolso, vivendo o seu pequeno teatro. Por enquanto as coi-sas vao bern - ele nao pensava no filho, pensava nele rnes-rno, e isso inclufa a totalidade de sua vida, rnulher, filho, li-teratura, futuro. Ele sabe que de fato nunca escreveu nada realrnente born. Pilhas de rnaus poernas, dos 13 anos ate o rnes passado: 0 filho da primavera. A poesia arrasta-o sern piedade para o kitsch, puxando-o pelos cabelos, mas e preci-so dizer algurna coisa sobre o que est.i acontecendo, e ele nao sabe exatarnente o que est.i acontecendo. Tern a vaga sensa-
  • dos filhos - uma participac;ao quase religiosa. Tudo parece que esta virando religiao. Mas voce nao quis, ele seve dizen-do. E que o meu mundo e mental, talvez ele dissesse, se fos-se mais velho. Urn filho e a ideia de urn filho; uma mulher e a ideia de uma mulher. As vezes as coisas coincidem com a ideia que fazemos delas; as vezes nao. Quase sempre nao, mas af o tempo ja passou, e entao nos ocupamos de coisas novas, que se encaixam em outra familia de ideias . Ele nao quis nem mesmo saber se sera urn filho ou uma filha: a man-cha pesada da ecografia, aquele fantasma primitivo que se projetava numa telinha escura, movendo-se na escuridao e no calor, nao se traduziu em sexo, apenas em ser. Preferimos nao saber, foi o que disseram ao medico. Tudo esta bern, parece, e 0 que importa.

    Ali, era enfim a sensac;ao de urn tempo parado, suspenso. Naquele silencio iluminado, em que pequenos rufdos distan-tes - passos, uma porta que se fecha, alguma voz baixa -ganhavam a solenidade de urn breve eco, ele imagina a mu-danc;a de sua vida e procura antecipar alguma rotina, para que as coisas nao mudem muito. Tern energia de sabra para ficar dias e dias dormindo mal, bebendo cerveja nos interva-los, fumando bastante, dando risadas e contando hist6rias, enquanto a mulher se recupera. Seria agora urn pai, o que sempre dignifica a biografia. Sera urn pai excelente, ele tern certeza: fara de seu filho a arena de sua visao de mundo. Ja tern pronta para ele uma cosmogonia inteira. Lembrou de al-guns dos versos de 0 filho da primavera- a professora ami-ga vai publica-los na Revista de Letras. Sim, os versos sao bo-nitos, ele sonhou. 0 poeta e born conselheiro. Fac;a isso, seja assim, respire esse ar, olhe o mundo - as metaforas, uma a uma, evocam a bondade humana. Kipling da provincia, ele se sente impregnado de humanismo. 0 filho sera a prova de-

    1 4

    finitiva das minhas qualidades, quase chega a dizer em voz alta, no silencio daquele corrector final, poucos minutos an-tes de sua nova vida. Era como se o espfrito comunitario re-ligioso que florescia secretamente na alma do pafs, todo o sonho das utopias naturais concentrando seu suave irracio-nalismo, sua transcendencia eterea, a paz celestial dos cor-deiros de Deus revividos agora sem fronteiras, rituais ou li-vros-texto - vale tudo, 6 Senhor! -, encontrasse tambem no poeta marginal, talvez prin~ipalmente nele, o seu refugio. 0 empreendimento irracional das utopias: cabelos compridos, sandalias franciscanas, as portas da percepc;ao, vida natural, sexo livre, somas todos autenticos. Sim, era preciso urn con-trapeso, ou o sistema nos mataria a todos, como varias vezes nos matou. Ha urn descompasso nesse projeto supostamente pessoal, mas isso ele ainda nao sabe, ao acaso de uma vida renitentemente provis6ria; a minha vida nao comec;ou ainda, ele gostava de dizer, como quem se defende da propria in-competencia - tantos anos dedicados a ... a o que mesmo? as letras, a poesia, a vida alternativa, a criac;ao, a alguma coi-sa maior que ele nao sabe o que e - tantos anos e nenhum resultado! Ficar sozinho e uma boa defesa. Vivendo numa ci-dade com genios agressivos em cada esquina, ele contempla a magreza de seus cantos, finalmente publicados, onde en-contra defeitos cada vez que abre uma pagina. 0 romance ju-venillanc;ado nacionalmente vai se encerrar na primeira edi-c;ao, para todo o sempre, depois de uma rusga idiota com o editor de Sao Paulo, daqui a alguns meses. "E preciso cortar esse paragrafo na segunda edic;ao porque as professorinhas do interior estao reclamando." Desistiu do livro.

    Ele nao sabe ainda, mas ja sente que aquila nao e a sua literatura. Tres meses antes terminou 0 terrorista Urico, e parece que alguma coisa melhor comec;a ali, ainda informe.

    1 5

  • Alguem se debatendo para se livrar da influencia do guru, tentando sair do mundo das mensagens para o mundo da per-cep
  • Ele dormiu, ou quase dormiu, num sofa vermelho ao lado da cama alta de hospital, para onde trouxeram a mulher em algum momenta da madrugada. A crianya estaria no berya-rio, uma especie de gaiola asseptica, que o fez lembrar do Admiravel mundo novo: todos aqueles bebes urn ao lado do outro, atras de uma proteyao de vidro, etiquetados e cadas-trados para a entrada no mundo, todos identicos, enfaixados na mesma roupa verde, todos mais ou menos feios, todos amassados, sustos respirantes, todos imoveis, de uma fragili-dade absurda, todos tabula rasa, cada urn deles apenas urn breve potencial, agora para sempre condenados ao Brasil, e a lingua portuguesa, que lhes emprestaria as palavras com as quais, algum dia, eles tentariam dizer quem eram, afinal, e para que estavam aqui, se e que uma pergunta assim pode fazer sentido.

    Qual era mesmo o seu filho? - aquele ali, mostrou a en-fermeira solicita, e ele sorriu diante da crianya imovel, bus-cando urn ponto de convergencia. Alguma coisa de fora que o tocasse subita, como urn dedo de urn anjo. Mas nao, ele sorriu, invencivel - e preciso criar esse ponto, que nao cai do ceu. Uma crianya e uma ideia de uma crianya, e a ideia que ele tinha era muito boa. Urn born comeyo. Mas aquela

    1 9

  • presenc;a era tambem urn nascimento as avessas, porque ago-ra, talvez ele imaginasse, expulso do parafso, estou do ou-tro lado do balcao - nao estou mais em ben;o esplendido, nao sou eu mais que estou ali, e ele riu, quase bebado, a garrafinha vazia, inebriado do cigarro que nao parava de fu-mar, naqueles tempos tolerantes. Como quem, prosaicamen-te, apenas perde urn privilegio, o da liberdade. 0 que e uma palavra que, se objetivamente quer dizer muito (estar dentro da cadeia, estar fora da cadeia, por exemplo; poder dizer e escrever tudo e nao poder dizer nem escrever nada, outro exemplo pratico - o Brasil esta nos ultimos minutos de uma ditadura), subjetivamente, em outra esfera. nos da 0 dam da ilusao. As vezes basta . Livre significa: sozinho. Claro, tern a mulher, por quem ele alimenta uma nftida mas insuspeitada paixao (ele nunca foi precoce), mas ao mesmo tempo tern de prestar muita atenc;ao em si mesmo, juntar aqueles pedac;:os disformes da inseguranc;:a, urn garoto tao desgrac;:adamente incompleto, para olhar mais atento para ela, o que so conse-guira fazer anos depois; tern a mulher, mas eles nao nasce-ram juntos. Podem se separar, e a ordem do mundo se man-tern. Mas o filho e urn outro nascimento: ele nao pode se separar dele. Todas as palavras que o novo pai recebeu ao Ion-go da vida criaram nele esta escravidao consentida, esse bre-ve mas poderoso imperativo etico que se faz em torno de tao pouca coisa: quem e a crianc;:a que esta ali? 0 que temos em comum? 0 que, afinal, eu escolhi? Como conciliar a ideia fun-damental de liberdade individual, que move a fantastica roda do Ocidente, ele declama, corn a selvageria da natureza bru-ta, que por uma sucessao inextricavel de acasos me trouxe agora essa crianc;:a? 0 proprio Rousseau abandonou os filhos, ele se lembra, divertindo-se. Muito melhor o Admiravel mun-

    20

    do llOVO, aquela assepsia do nascimento sem dares nem pais. VIVl'mos grudados, mas, em vez de sentir nausea da imagem

    o1 invencfvel viscosidade das relac;:oes humanas -, ele sor-11 di,m te daquele pequeno joelho respirante e empacotado do fltllro lado do vidro: isso parece borne bonito, o filho da pri-lllolvcra. Relembrou a data: madrugada do dia 3 de novembro til! 1980.

    2 1

  • Afinal acordou daquela noite intranquila mas feliz (ou te-riarn sido apenas alguns rninutos?), e urna boa sensa
  • - Tudo bern? - Tudo bern- ela diz. -Urn pouco dolorida ainda. 0

    medico veio aqui? -Nao. 0 nascimento e uma brutalidade natural, a expulsao obs-

    cena da crian

  • mao, agora ele esta no lado certo do mundo, ja alimentando a autoironia com que se defende do que seria a propria deca-dencia. Urn homem do sistema. Familia e sistema. Daqui a cinquenta anos, ele imagina, sem de fato acreditar na fanta-sia que poe no corpo, nao havera mais familias, e o mundo sera melhor. Por enquanto, vamos levando com as armas que temos, a entona
  • suspirante. A mulher esta placida, naquela cama de hospital - sim, sim, tudo vai bern. Ha tambem urn rol de recomenda-c;:oes que se atropelam - todos tern alguma coisa fundamen-tal a dizer sobre urn filho que nasce, ainda mais para pais idiotas como ele. Eu fiz urn curso de pai, ele alardeia, palha-c;:o, fazendo piada. Mas era verdade: passou uma tarde numa grande roda de mulheres buchudas, a dele incluida, e claro, com mais dois ou tres futuros pais devotos, atentissimos, ou-vindo uma prelec;:ao basica de urn medico paternal, e de tudo guardou urn unico conselho - e born manter uma boa rela-c;:ao com as sogras, porque os pais precisam eventualmente descansar da crianc;:a, sair para jantar uma noite; tentar sar-ver urn pouco o velho ar de antigamente que nao voltara jamais.

    E as familias falam e sugerem - eMs, ervas, remedinhos, infusoes, cuidados com o leite -, e preciso dar uma palma-da para que ele chore alto, assim que nasce, diz alguem, e alguem diz que nao, que o mundo mudou, que bater em bebe e uma estupidez (mas nao usa essa palavra) - eles nao vao trazer a crianc;:a? E que horas foi? Eo que o medico disse? E voce, o que fez? E o que aconteceu? E por que nao avisa-ram antes? E por que nao chamaram ninguem? E vamos que acontece alguma coisa? Ele ja tern nome? Sim: Felipe. Os pa-rentes estao animados, mas ele sente urn cansac;:o subterra- ~ neo, sente renascer uma ponta da mesma ansiedade de sem-pre, insoluvel. Ir para casa de uma vez e reconstruir uma boa rotina, que logo ele tera livros para escrever - gostaria de mergulhar no Ensaio da Paixdo de novo, alguma coisa para sair daqui, sair deste pequeno mundo provis6rio. Sim, e be-ber uma cerveja, e claro! A ideia e boa- e ele quase que gira o olhar atras de uma companhia para, de fato, conversar so-bre esse dia, organizar esse dia, pensar nele, literariamente,

    28

    como urn renascimento - veja, a minha vida agora tern ou-tro significado, ele dira, pesando as palavras; tenho de me disciplinar para que eu reconquiste uma nova rotina e possa sobreviver tranquilo com o meu sonho. 0 filho e como - e

    le sorri, sozinho, idiota, no meio dos parentes - como urn atestado de autenticidade, ele arriscara; e ainda uma vez fan-tasia o sonho rousseauniano de comunhao com a natureza, que nunca foi dele mas que ele absorveu como urn mantra, e cle que tern medo de se livrar - sem urn ultimo elo, o que fica? Em toda parte, sao os outros que tern autoridade, nao 'le. 0 unico territ6rio livre e 0 da literatura, ele talvez sonhas-

    SC, se conseguisse pensar a respeito. Sim, e preciso telefonar para o seu velhd guru, de certa forma receber sua benc;:ao. Muitos anos depois uma aluna lhe dira, por escrito, porque 'ie nao e de intimidades: voce e uma pessoa que da a impres-sao de estar sempre se defendendo. Sentimentos primarios que se sucedem e se atropelam - ele ainda nao entende ab-solutamente nada, mas a vida esta boa. Ainda nao sabe que agora comec;:a urn outro casamento com a mulher pelo sim-ples fato de que eles tern urn filho. Ele nao sabe nada ainda.

    Subito, a porta se abre e entram os dois medicos, o pedia-tra eo obstetra, e urn deles tern urn pacote na mao. Estao sur-preendentemente serios, absurdamente serios, pesados, para urn momenta tao feliz - parecem militares. Ha umas dez pcssoas no quarto, e a mae esta acordada. E uma entrada ,1brupta, ate violenta - passos rapidos, decididos, cada urn sc dirige a urn lado da cama, com o espaldar alto: a mae ve o filho ser depositado diante dela ao modo de uma oferenda, mas ninguem sorri. Eles chegam como sacerdotes. Em outros tempos, o punhal de urn deles desceria num golpe medido para abrir as entranhas do ser e dali arrancar o futuro. Cinco segundos de silencio. Todos se imobilizam- uma tensao ele-

    29

  • trica, subita, brutal, paralisante, perpassa as almas, enquan-to urn dos medicos desenrola a crianc;a sobre a cama. Sao as formas de urn ritual que, instantaneo, cria-se e cria seus ges-tos e suas regras, imediatamente respeitadas. Todos esperam.

    Ha urn infcio de prelec;ao, quase religiosa, que ele, enton-tecido, nao consegue ainda sintonizar senao em fragmentos da voz do pediatra:

    - ... algumas caracterfsticas ... sinais importantes ... vamos descrever. Observem os olhos, que tern a prega nos cantos, e a palpebra oblfqua ... o dedo mindinho das maos, arqueado para dentro ... achatamento da parte posterior do cranio ... a hipotonia muscular ... a baixa implantac;ao da orelha e ...

    0 pai lembra imediatamente da dissertac;ao de mestrado de urn amigo da area de genetica - dois meses antes fez a revisao do texto, e ainda estavam nftidas na memoria as ca-racterfsticas da trissomia do crornossomo 2t chamada de sfn-drome de Down, ou, mais popularmente - ainda nos anos 1980- "mongolismo", objeto do trabalho. Conversara mui-tas vezes com o professor sobre detalhes da dissertac;ao e curiosidades da pesquisa (uma delas, que lhe veio subita ago-ra, era a primeira pergunta de uma familia de origem arabe ao saber do problema: "Ele podera ter filhos"?- o que pare-ceu engrac;ado, como outro cartum). Assim, em urn atimo de segundo, em meio a maior vertigem de sua existencia, a rigor a unica que ele nao teve tempo (e durante a vida inteira nao tera) de domesticar numa representac;ao literaria, apreendeu a intensidade da expressao "para sempre" -a ideia de que algumas coisas sao de fato irremediaveis, e o sentimento ab-soluto, mas 6bvio, de que o tempo nao tern retorno, algo que ele sempre se recusava a aceitar. Tudo pode ser recomec;ado, mas agora nao; tudo pode ser refeito, mas isso nao; tudo pode voltar ao nada e se refazer, mas agora tudo e de uma solidez

    30

    granftica e intransponfvel; 0 ultimo limite, 0 da inocencia, es-tava ultrapassado; a infancia teimosamente retardada termi-nava aqui, sentindo a falta de sangue na alma, recuando aos cmpurr5es, sem mais ouvir aquela lenga-lenga imbecil dos medicos e apenas lembrando o trabalho que ele lera linha a linha, corrigindo caprichosamente aqui e ali detalhes de sin-taxe e de esfilo, divertindo-se com as curiosidades que des-creviam com o poder frio e exato da ciencia a alma do seu filho . Que era esta palavra: "mongoloide".

    Ele recusava-se air adiante na linha do tempo; lutava por pcrmanecer no segundo anterior a revelac;ao, como urn boi cabeceando no espac;o estreito da fila do matadouro; recusa-va-se mesmo aolhar para a cama, onde todos se concen-travam num silencio bruto, o pasmo de uma maldic;ao ines-pcrada. lsso e pior do que qualquer outra coisa, ele concluiu

    nem a morte teria esse poder de me destruir. A morte sao Hl' tc dias de luto, e a vida continua. Agora, nao . Isso nao tera ttm. Recuou dois, tres passos, ate esbarrar no sofa vermelho ~~ olhar para a janela, para o outro lado, para cima, negando-Hl', bovino, a ver e a ouvir. Nao era urn choro de comoc;ao q uc se armava, mas alguma co is a misturada a uma especie lttriosa de 6dio. Nao conseguiu voltar-se completamente con-I 1,1 a mulher, que era talvez o primeiro desejo e primeiro alibi ( l'lc prosseguia recusando-se a olhar para ela); por algum 1 1sfduo de civilidade, alguma coisa lhe controlava o impulso d.t violencia; e ao mesmo tempo vivia a certeza, como vin-1\ llt t;a e valvula de escape- a certeza verdadeiramente cien-1 ill ca, ele lembrava, como quem ergue ao mundo urn trunfo litd iscutfvel, eu sei, eu li a respeito, nao me venham com

    ltl ~ l 6rias - de que a unica correlac;ao que se faz das causas do mongolismo, a unica variavel comprovada, e a idade da lltttlher e os antecedentes hereditarios, e tambem (no mesmo

    3 1

  • sofrimento sem safda, olhando o ceu azul do outro lado da janela) relembrou como alguns anos antes procuraram acon-selhamento genetico sobre a possibilidade de recorrencia nos filhos (se dominante ou recessiva) de uma retinose, ada mae, uma limita
  • momentos desagrada.veis, projetou urn futuro acelerado so-bre si mesmo, a passagem vertiginosa do tempo, as coisas fa-talmente acontecendo umas depois das outras, o envelheci-mento e a morte, pronto, acabou, urn cartum delirante, os trac;:os se sucedendo - o que era aquele momento diante de tudo que talvez ja estivesse desenhado diante dele? Urn mo-menta insignificante de alguem insignificante preocupado tambem com urn ser insignificante - apenas uma estatfsti-ca: va em qualquer maternidade e a cada mil nascimentos ha-vera, loterica, uma crianc;:a Down, que alimentara outras es-tatfsticas e estudos como aquele que ele revisou, curioso. Cada coisa que ha no mundo! Crianc;:as cretinas- no senti-do tecnico do termo -, crianc;:as que jamais chegarao a me-tade do quociente de inteligencia de alguem normal; que nao terao praticamente autonomia nenhuma; que serao incapa-zes de abstrac;:ao, esse milagre que nos define; e cuja noc;:ao do tempo nao ira muito alem de urn ontem imemorial, mi-lenar, e urn amanha nebuloso. Para eles, o tempo nao existe. A fala sera, para sempre, urn balbuciar de palavras avulsas, sentenc;:as curtas truncadas; sera inca paz de enunciar uma es-trutura na voz passiva (a janela foi quebrada par Joao estara alem de sua compreensao). 0 equilibria do andar sera sem-pre incerto, e lento; se os pais se distraem, eles engordarao como toneis, debaixo de uma fome nao censurada pela sen-sac;:ao de saciedade, que neurologicamente demora a chegar. Tudo neles demora a chegar. Nao veem a distancia - o mun-do e exasperadamente curto; s6 existe o que esta ao alcance da mao. Sao caturros e teimosos - e controlam com dificul-dade os impulsos, que se repetem, circulares. S6 conseguirao andar muito tempo depois do tempo normal. E sao crianc;:as feias, baixinhas, pr6ximas do nanismo - pequenos ogros de

    34

    boca aberta, lingua muito grande, pescoc;:os achatados, e lar-gos como troncos. Em poucos minutos- ele nao pensou nis-so, mas era o que estava acontecendo - aquela crianc;:a hor-rivel ja ocupava todos os poros de sua vida. Haveria, para todo o sempre, uma corda invisfvel de dez ou doze metros prendendo os dois. E entao iluminou-se uma breve senda, tambem na memoria do trabalho que ele revisou, e, na ma-nha de uma noite maldormida, mal acordado ainda de urn pesadelo, a ideia- ou o fato, alias cientffico, portanto indis-cutfvel- bateu-lhe no cerebra como a salvac;:ao da sua vida. A liberdade!

    Era como se ja tivesse acontecido - largou as maos da mulher e saiu abrupto do quarto, numa euforia estupida e in-tensa, que lhe varreu a alma. Era preciso sorver essa verda-de, esse fato cientffico, profundamente: sim, as crianc;:as com sfndrome de Down morrem cedo. Por algum misterio daque-le embaralhar de enzimas excessivas de alguem que tern tres cromossomos numero 21, e nao apenas do is, como todo mun-tlo, as crianc;:as mongoloides - a palavra monstruosa ganha-va agora urn toque asseptico do jargao cientffico, apenas a definic;:ao fria, nao a sua avaliac;:ao- sao anormalmente inde-fcsas diante de infecc;:oes. Urn simples resfriado se transfor-ma rapidamente em pneumonia e daf a morte - as vezes e uma questao de horas, ele calculava. E ha mais, entusiasmou-se: quase todas tern problemas graves de corac;:ao, malforma-

    ~oes de origem que lhes dao uma expectativa de vida muito curta. Extremamente curta, ele reforc;:ou, como quem da uma ,1 ula, 0 balanc;:ar compreensivo de cabec;:a - e triste, mas e real. Anotaram no caderno? E ha milhares de outros peque-nos defeitos de fabricac;:ao. Urn carro nao conseguiria andar assim. Ele acendeu urn cigarro, e parecia que a vida inteira

    3 5

  • voltava ao normal ao sentir aquela tragada maravilhosa, in-tensa, perfumada: veja, ele se dizia, nao h.i velhos mongo-loides. Voce tern certeza disso?, alguem perguntaria, erguen-do o brac;:o; sim, nenhuma duvida; eles morrem logo, e ele desejou passear por uma rua movimentada as seis da tarde so para conferir in loco, cabec;:a a cabec;:a, essa verdade in-discutfvel: eles nao existem. Veja voce mesmo. Procure na multidao: nao existem. Era quase meio-dia, a maternidade agitada. Uma enfermeira lhe pergunta alguma coisa, ele diz que nao, que vai sair, nao querendo pensar muito na sua descoberta para nao estraga-la, para melhor usufruir a li-berdade que, subita, estava diante dele, talvez - ele calculou - seja so uma questao de dias, dependendo da gravidade da sfndrome.

    Nao h.i mongoloides na historia, relato nenhum - sao se-res ausentes. Leia os dialogos de Platao, as narranvas medie-vais, Dam Quixote, avance para a Comedia humana..de Bal-zac, chegue a Dostoievski, nem este comenta, sempre atento aos humilhados e ofendidos; os mongoloides nao existem. Nao era exatamente uma perseguic;:ao historica, ou urn pre-conceito, ele se antecipa, acendendo outro cigarro - o dia esta muito bonito, a neblina quase fria da manha ja se dissi-pou, e o ceu esta maravilhosamente azul, o ceu azul de Curi-tiba, que, quando acontece (ele se distrai), e urn dos melho-res do mundo - simplesmente acontece o fato de que eles nao tern defesas naturais. Eles so surgiram no seculo XX, tar-diamente. Em todo o Ulisses, James Joyce nao fez Leopold Bloom esbarrar em nenhuma crianc;:a Down, ao longo daque-las 24 horas absolutas. Thomas Mann os ignora rotundamen-te. 0 cinema, em seus lill_ano~~contabiliza, fon;ando a memoria, jamais os colocou em cena. Nem vai coloca-los. Os

    36

    lllnllgoloides sao seres hospitalares, vivem na antessala dos 111 !'dicos. Poucos vao alem dos ... quantos anos? Ele pensou e111 10 anos, e calculou a propria idade, achando muito; tal-VI'/, 5, fantasiou, vendo imediatamente uma sequencia rapi-il.l dL' anos, os amigos consternados pela sua luta, a mao no

    I' ll ombro, mas foi inutil - rnorreu ontern. Sirn, nao resis-lltl . Voltariarn do cerniterio corn o peso da tragedia na alma, tn .t:-1, enfim, a vida recornec;:a, nao e? Urn sopro de renovac;:ao

    como se ele tivesse existido apenas para lhes dar forc;:as, p.11-.1 uni-los, ao pai e a mae, sagrados. Viu-se carninhando no pMque Barigui, quem sabe urna rnanha bonita e rnelancolica ro lll O esta, repensando aqueles cinco - aqueles tres anos, l.d vcz dois. A tempera da alma: eis a expressao certa para co-

    lll l'~'a r seu discurso de orador. Colegas! Precisamos da tern-1 H'ra da alma!

    Por que se preocupar? Refugiado na verdade cristalina de que seu filho nao viveria rnuito - era apenas uma especie dt provac;:ao que Deus, se existisse, teria colocado na sua vida p.tra testar a tempera de sua alma, como fez a Job- o rnundo p.trece que se reorganizou inteiro . Ele sernpre foi urn hornern otimista. Alguem do seculo XX, ele sonhou, apaixonado pela

    l l~cnica, entusiasmado pela ideia do prazer, fascinado pelas tnulheres, atrafdo pela inteligencia, rnergulhado no rnundo verbal, irnpregnado de duas ou tres ideias basicas de hurna-nismo e liberdade, urn pequeno Pangloss da provincia, ern 1 ,ipida transformac;:ao. Ao rnesrno tempo, uma rede tentacular de afetos, de que ate o fim da vida ele jamais conseguira HC livrar cornpletamente, parece que o arrasta para tras e o imobiliza. Eu nao tenho cornpetencia para sobreviver, con-lui. Nao consegui nern urn unico trabalho regular na vida. Penso que sou escritor, mas ainda nao escrevi nada. Tudo que

    3 7

  • tenho e urn filho recem-nascido que deve morrer em breve. Mas esse, mas essa morte proxima, esse - ele gaguejava, tentando nao pensar nisso, acendendo outro cigarro, tentan-do recuperar o fio de uma rotina que simulasse normalidade, o que fazer agora? almo
  • r-

    ..

    rece urn pouco mais comprida que a lingua dos outros, ele pensa, mas os bebes sao animais ducteis, formam-see defor-mam-se com facilidade, vao tomando contornos diferentes dia a dia. Se ele coloca o dedo na sua palma, o menino agar-ra-o com alguma forc;a, 0 que, dizem, e sinal de boa saude. Mas a cabec;a, ele pensa, e grande demais, mesmo para urn hebe, que sao cabec;udos por natureza. Esse pescoc;o. E esse choro esganic;ado - isso e normal?

    Nao, nada mais sera normal na sua vida ate o fim dos tempos. Comec;a a viver pela primeira vez, na alma, a an-gustia da normalidade. Ele nunca foi exatamente urn homem normal. Desde que o pai morreu, muitos anos antes, o seu padrao de normalidade se quebrou. Tudo o que ele fez desde entao desviava-o de urn padrao de normalidade - ao mesmo tempo, desejava ardentemente ser reconhecido e admirado pelos outros. 0 que, bern pensado, e a normalidade abso-luta, ele calcularia hoje. Uma crianc;a tfpica, urn adolescente tfpico. Urn adulto tfpico? Era uma mistura de ideologia e de inadequac;ao, de sonho e de incompetencia, de desejo e de frustrac;ao, de muita leitura e nenhuma perspectiva. Todos os projetos pela metade, tudo parece mais urn teatro pes-soal que alguma coisa concreta, porque eram poucos os ris-cos. 0 medo da mesma solidao que ele alimentava todos os dias. A tentativa de se tornar piloto da marinha mer-cante, a profissao de relojoeiro, o envolvimento no projeto rousseauniano-comunitario de arte popular, a dependencia de urn guru acima do bern e do mal, a arrogancia nietzschiana e autossuficiente com toques fascistas daqueles tempos ale-gres (ele percebe hoje}, enfim a derrocada de se entregar ao casamento formal assinando aquela papelada ridfcula num evento mais ridfculo ainda vestindo urn paleto (mas nao uma

    ~

    gravata, ele resistiu, sem gravata!}, a falta de rumo, uma relu- 1

    40

    Llncia estupida em romper como proprio passado, naufrago dtlc mesmo, depois o curso universitario com a definitiva in-ltgrac;ao ao sistema, mas nenhuma de suas vantagens, de-trnpregado indocil, escritor sem obra, movendo-se na som-

    hr ,l cnsaboada de seu born humor- e agora pai sem filho. E preciso enfrentar as coisas tais como elas sao; e preciso

    tltsarmar-se, ele sonhava. Nao fugir do peso medonho do ins-Lillie presente. A filosofia inteira do seculo se debruc;a sabre tssc instante vazio, ele relembra. 0 problema e que as coisas

    o filho agora, e toda a interminavel e asfixiante soma dos pl't]uenos fatos cotidianos que ele acumulou a vida inteira rom a sensac;ao .de que criava e nutria uma personalidade pr6pria- as coisas nao sao nada em si. 0 mundo nao fala. Sou eu que dou a ele a minha palavra; sou eu que digo o que .t s coisas sao. Esse e urn poder inigualavel- eu posso falsifi-r .rr tudo e todos, sempre, urn Midas Narciso, fazendo de tudo 111inha imagem, desejo e semelhanc;a. Que e mais ou menos o que todos fazem, o tempo todo: falsificar. Essa algaravia rnonumental em toda parte, todos falando tudo a todo ins-l.rnte, esse horror coletivo ao silencio. Ha outra perspectiva? N.1da tern essencia alguma (ele lembra dos livros que leu) em hrgar algum. Isso, sim, faz sentido. Eu so preciso escapar des- 1,1 asfixia. 0 filho e a imagem mais proxima da ideia de desti-ne, daquilo de que voce nao escapa. Ou daquilo de que voce n,1o pode escapar? Por que? Por que eu nao posso tamar ou-lro rumo?- sera a pergunta que fara varias vezes ao longo da vida. Porque eu ja tenho uma essencia, ele responde, que l'U mesmo construf. A minha liberdade e uma margem muito

    ~;treita, suficiente apenas para me deixar em pe. No escuro, a crianc;a dorme. Ele acende urn cigarro na sala. Urn dos raros momentos

    tranquilos, mas, ao apurar o ouvido, ouve o choro da mulher

    4 1

    .. - --- l

  • ..

    no quarto, quase urn choro de crianc;a inibida. Ele fica im6-vel, ouvindo. A crianc;a nao acerta sugar o seio - e preciso toda uma operac;ao de guerra para conseguir algumas gotas de Ieite. Indicam uma traquitana (o que lhe agrada, e claro): urn pequeno funil de vidro com uma bombinha de borracha. Urn objeto delicado: lembra-lhe algo antigo, uma farmacia de filme, urn alquimista medieval. Aquilo suga o Ieite como urn projeto de Da Vinci, ele fantasia. Gotas amareladas - nao parece Ieite. Dias tensos para a mae, ele sabe. Numa das cri-ses, ela lhe diz, no desespero do choro alto: Eu acabei com a tua vida. E ele nao respondeu, como se concordasse - a mao que estendeu aos cabelos dela consolava o sofrimento, nao a verdade dos fatos. Talvez ela tenha razao, ele pensa agora, no escuro da sala - e preciso nao falsificar nada. Ela acabou com a minha vida- refugia-se no oco da frase, sentindo-lhe o eco, e isso lhe da algum conforto.

    A normalidade. 0 que dizer aos outros, quando encontra com eles? Sim, nasceu meu filho. Sim, esta tudo bern. Quer dizer, ele e mongoloide. Nao - essa palavra e pesada demais. E em 1980 ninguem sabia o que era "sfndrome de Down". A maneira delicada de dizer e: Sim, urn pequeno problema. Ele tern mongolismo. Mas isso exige uma rede de explicac;6es subsequentes - e as pessoas nunca sabem o que dizer ou fazer diante daquela coisa esquisita. Ao "nao me diga!" cons-ternado, ele da urn tapinha nas costas, urn sorriso, e tranqui-liza - mas esta tudo bern, sao crianc;as bem-humoradas, com urn born tratamento elas ficam praticamente normais. "Prati-camente normais". 0 que ele quer resolver agora nao eo pro-blema da crianc;a, mas o espac;o que ela ocupa na sua vida. E esses contatos medonhos do dia a dia: explicar. Ja viu na enciclopedia que o nome da sfndrome se deve a John Langdon Haydon Down (1828-1896), medico ingles. A manei-

    42

    1.1 da melhor ciencia do imperio britanico, descreveu pela pri-rnl'ira vez a sfndrome frisando a semelhanc;a da vftima com a txpressao facial dos mong6is, la nos confins da Asia; daf "111ongoloides". Que tipo de mentalidade define uma sfndro-llll' pela semelhanc;a com os trac;os de uma etnia? 0 homem Ill itanico como medida de todas as coisas. 0 prfncipe Charles, .tquela figura apolfnea, sera o padrao de normalidade racial, t' l'lc comec;a a rir no escuro, acendendo outro cigarro. E como tssa denominac;ao durou mais de urn seculo, como algo nor-Ilia! e aceitavel? Sim, normal e aceitavel, inclusive por ele rnesmo - ele lembra agora, com urn frio na espinha, como ll ,i poucas semanas comentou com urn colega a burrice de 11ma professora: Parece uma mongoloide, ele disse. A palavra veio-lhe facil, do trabalho que revisava - foi s6 estender a 111ao e recolher da arvore. Nao cuspa para cima, que cai no olho, lembrou ele do dito popular, essa sabedoria calculista e pragmatica, procurando sempre uma justic;a secreta em todas .1s coisas, para fugir do peso terrfvel do acaso que nos define.

    0 problema da normalidade. Talvez ele mesmo escreva urn pequeno roteiro com o texto certo para as pessoas reci-tarem no momento da confissao da tragedia. Algo como "Nao me diga! Mas imagino que hoje em dia ja ha muitos recursos, nao? Olha, precisando de alguma coisa, conte comigo" -c entao ele diria, obrigado, vai tudo bern. Mudariam de as-sunto e pronto . Bern, em grande numero de encontros, nao precisaria dizer nada: sao bilh6es de pessoas que nao o co-nhecem, contra apenas umas dez ou doze que o conhecem. Essas ja sabem; nao e preciso acrescentar nada. Na maior par-te dos casos, basta dizer: Sim, a crianc;a vai bern. Felipe, o nome dele. Obrigado. E nada mais foi perguntado e nada mais se respondeu, dando-se por encerrado o assunto e prosse-guindo a vida em seus tramites normais. Ele respira aliviado.

    43

    l

  • 0 problema, ele insiste, e que nao ha bern urn lugar para essa crianc;a na sua vida. Lembrou, em panico, do poema 0 filho da primavera, que lhe ressurgiu subito inteiramente ridfculo, patetico, o horror do texto ruim, do mau gosto, do arquikitsch desabando na cabec;a e na memoria - ele havia entregue para publicac;ao numa revista de letras, e comec;ou a suar, so de lembrar. Teria de suportar aquilo impressa - talvez ate o viessem cumprimentar pelo talento e pela sensibilidade: "Como voce superou bern o problema!", diriam, solidarios, o solido aperto de maos, o sorriso de admirac;ao. Sim, todos sempre souberam que ele tern talento. E a mentira escarrada: urn poema meloso para urn filho retardado. Era preciso im-pedir a publicac;ao daquilo. Ele perde qualquer resqufcio de sono, so em lembrar: amanha cedo mesmo falara com a edi-tora da revista: Por favor, nao publique o poema. Ainda ha tempo, nao? Ele nao sabe ainda, mas bastou urn breve fiapo de realidade mais diffcil para que se apurasse seu senso de literatura. Mas aqui o problema e outro .

    A vergonha. A vergonha- ele dirci depois- e uma das mais poderosas maquinas de enquadramento social que exis-tem. 0 faro para reconhecer a medida da normalidade, em cada gesto cotidiano. Nao saia da linha. Nao enlouquec;a. E, principalmente, nao passe ridfculo. Ele pensava sincera-mente que ja havia transposto esse Rubicao de uma vez por todas - o teatro de rua de que participara anos atras, na co-munidade, aquela grandiloquencia pretensiosa fantasiando-se de teatro popular ja lhe dera micos suficientes para urn doutorado em cara de pau. Mas havia a protec;ao de grupo e o involucra da inconsequencia - ele ainda podia ser qual-quer coisa a qualquer momento; ele ainda podia mudar de rumo; ele nao tinha destino algum. Tinha so a arrogancia fe-liz da liberdade. Fodam-se.

    44

    A fa milia do velho Kennedy escondeu do mundo, a vida l11 1drJ, urn filho retardado. Havia muita coisa em jogo, ever-ri.H IL - mas o grande motor era a vergonha . A vergonha 11 '1\1 11 ,1 do catador de lixo ao presidente da Republica. E uma ' ll o~vc poderosa da vida cotidiana: esses politicos deviam e 11'1 vcrgonha na cara!, nos dizemos todos os dias, o que e urn 11 1.1 11 tra que nos redime enos tranquiliza. Como se fosse a

    l l ll '~ ma coisa, agora ele sentia vergonha, embora a palavra, 11111 a lgum misterio, nao lhe aflorasse, o som da palavra em 11.1 simplicidade, como se alguma coisa tao absurdamen-

    11 ~ imples, vergonha, nao pudesse fazer parte de sua vida ( 1 t'1 os medfocres sen tern vergonha, ele recitava) - o que che-I\.IV,1 a pele, 0 que queimava, era 0 sentimento insuportavel d1 alguma coisa errada. E alguma coisa errada nao com o I IIII o, mas com ele mesmo.

    A crianc;a dorme, a mae agora tambem dorme, e ele acen-dv outro cigarro, no escuro. A mulher tern razao: ela acabou n un a vida dele, ele suspira, concordando, e sente-se miste-l iosamente mais tranquilo.

    45

  • Em apenas dais dias surgiu outro argumento poderoso p.tta escapar do peso do momenta presente: a hip6tese de que ltouvesse urn erro de diagn6stico, e que, de fato, a crian~a losse normal oil tivesse algum problema de outra natureza, lam menos grave.

    S6 havia urn modo de tirar a duvida: fazer o cari6tipo da f:l 1.1n~a, a fotografia dos cromossomos. Mas ele nao consegue

    ~ ~ enganar: sabe que essa hip6tese e remota- o menino pa-tl 'l'l' uma demonstrayao viva de todas as caracteristicas mais ollvias da sindrome, praticamente urn exemplo didatico para tt s,u em sala de aula. Conversando como professor da area dt genetica, descobre a possibilidade de uma salva~ao mila-grosa, mas que seria pelo menos rigorosamente cientifica. () cstudo de urn pesquisador frances de alguns anos antes, sobre a ocorrencia da trissomia em gemeos, teria revelado que pode haver manifestayao parcial da sfndrome- desco-llriu-se que uma parte delimitada do cromossomo extra e res-ponsavel estritamente pelo retardo mental, e outro segmento, 1,1mbem perfeitamente delimitado, e responsavel pela aparen-cia fisica, pelo fen6tipo, o conjunto de caracteristicas exter-nas que permitem o diagn6stico. No caso dos gemeos, urn exemplo fortuito, houve uma "distribuiyao do problema": urn deles, de aparencia perfeitamente normal, apresentava a defi-

    47

  • ciencia mental tfpica da sfndrome; o outro, de aparencia ine-quivocamente Down, era uma crianc;a mentalmente normal.

    0 caso era urn milagre- de ocorrencia e de sorte cientffi-ca do pesquisador em flagra-la- mas o paise aferrou ao mi-lagre assim que soube dele. Sim - praticamente nao havia duvida de que o Felipe era uma crianc;a normal; veja como ele aperta o dedo com forc;a assim que voce toea na palma dele! Muito provavelmente, ele argumentava, agitado, talvez para nao ouvir o que ele mesmo dizia, muito provavelmente a parte afetada do cromossomo e apenas a das caracterfsticas ffsicas, nao a responsavel pelo retardo mental. Essa fantasia lhe dava folego para sobreviver mais alguns dias (ja se ante-cipava, em lapsos visionaries de que ele mesmo achava gra-c;a, nervoso, preocupando-se com a feiura da crianc;a- como convencer os outros de que aquele pequeno monstro seria, de fato, uma crianc;a normal?); a outra hip6tese, a mais s6li-da - trata-se sem discussao de uma trissomia do cromosso-mo 21 -, tambem nao seria tao tragica, afinal, pela vulnera-bilidade da crianc;a - uma infecc;ao e ela nao sobreviveria. Em qualquer caso, Pangloss esta feliz! Tudo que ele queria era urn apoio silencioso naquela passagem de tempo, qual-quer coisa que nao fosse encarar o fato em si. Deixar escorrer o tempo, no limbo da inconsciencia. Mais uma vez ele sairia do outro lado, sozinho, sao e salvo, mais experiente, mais maduro, mais compenetrado de seu grande destino.

    Era preciso, entretanto, enfrentar o cari6tipo. Ate meados dos anos 1950 nao se sabia o que causava o chamado mon-golismo. Foi o medico frances Jerome Lejeune (1926-1994) quem pela primeira vez relacionou a sfndrome com uma ca-racterfstica genetica perfeitamente delimitada, a trissomia do cromossomo 21. Em 1958- o pai le, avido, o material que o professor lhe empresta - Lejeune vai a Dinamarca para re-

    48

    Vt' l.lr as fotos dos cromossomos que tirou em urn laborat6rio d.t Franc;a. Mais tarde, no Canada, ele apresenta a tese do "dl' lcrminismo cromossomico" dos "mongoloides". No ano q:uinte, publica seu trabalho - pela primeira vez se de-

    lt 'lll1ina a relac;ao entre uma aberrac;ao cromossomica e uma dtli ciencia mental. Era mais urn passo em direc;ao a desde-ltlonizac;ao do mundo , comprovando-se nessa area sensfvel, lt'l rit6rio privilegiado da magia, dos bruxos, dos maus-olha-dos, das maldic;oes e das transcendencias de ocasiao, mais 11ma vez a natureza arbitraria, absurda, loterica, erratica dos l.1 tos; em suma, urn cari6tipo e por si s6 mais urn passo de-11\0nstrativo da vida em direc;ao a profunda indiferenc;a de totlas as coisas. Ele fecha os olhos, tentando dar uma digni-d,lde fria ao seu desespero: a contingencia do ser e urn fato, ll'pete ele, como se a revelac;ao por si s6 o salvasse do abis-1110. Mas e ainda incapaz da pergunta seguinte: e daf?

    Ainda no hospital (lembra-se agora, acendendo outro ci-garro e olhando para 0 teto), 0 irmao dele veio ve-lo.

    - Voce ja sabia - o irmao disse, serio como urn sacer-dote, como quem sussurra urn segredo esoterico acessfvel .1penas aos iniciados, aproximando o rosto como urn cristao tl isfarc;ado do primeiro seculo, movendo-se nas sombras do paganismo hostil-e mostrou-lhe o documento indiscutfvel, urn dos dez poemas que o pai do Felipe havia escrito anot antes, numa pensao em Portugal, em seus tempos de mo-chileiro, e enviado ao irmao. "Tudo esta em tudo", talvez ele dissesse em complemento. Mesmo com 42 graus de febre, o irmao sempre se recusou a tamar remedio; no maximo, uma agua fria na testa - "A natureza sa be o que faz." 0 pai do Felipe abriu o papel, ja antevendo o que estava ali. Irritando-se com a consolac;ao tranquila e medieval que o irmao ofe-recia, releu 0 proprio texto, de rna vontade:

    49

  • Nada do que nao foi poderia ter sido. Nao ha outro tempo sobre esse tempo.

    Amanha e amanha e uma escada curva. Ninguem abre a porta ainda em modelo. Hoje ouvimos os ratos roendo o outro lado. Ninguem chegou l.i, porque hoje e aqui.

    Mas o sonho insiste o sonho transporta o sonho desenha uma escada reta.

    Quando cortas o pao o depois-de-amanha nao te interessa. Mesmo que sabes: todas as fon;as estao reunidas para que o dia amanhe9a.

    Ele estava demasiadamente destrufdo, no momento, para contra-argumentar, mas come9ou a moer e remoer o seu pro-prio poema assim que ficou sozinho. Nada aqui sou eu, disse ele, em voz alta. Isso e urn simulacra de poesia; cada ver-so deixa o seu rastro a vista, num amadorismo elementar.

    so

    t. 1 tt.tda do que nao foi" e urn eco longfnquo e inepto do Qua-{,rlt/tUlrletos, que por sua vez repete o Eclesiastes; mas ami-'"'" rdcrencia e posti9a. Nunca assisti a uma missa inteira na rlillllt,l vida. Nao sei latim nem sou leitor da Bfblia. Nao gosto i11 p.tdres, pastores, profetas, rabinos, milagreiros; sofro de lltticlcricalismo atavico. Nao tenho absolutamente nada aver '"'" cssa causalidade mftica que querem inventar na cultura '''' Ocidente, esses brasoes de isopor, pintados de ouro, que !11 .tvcssam OS tempos; nunca li Virgilio inteiro; tudo isso e .dwdoria de urn almanaque sofisticado - T. S. Eliot e al-

    f:llt''m incompreensfvel para mim. E continua, quase em voz .dt,t : "Nada do que nao foi poderia ter sido" e urn prosafsmo ltnnfvel herdado das teses do velho guru, para quem haveria 11111.1 misteriosa "propon;ao correta" entre todas as coisas -dt novo, a magica explicac;ao medieval do mundo, tudo esta ''"' tudo, esse delfrio capaz de atrair (e tranquilizar) tantos 111ilh6es de pessoas todos os dias. Ha uma causae uma culpa ('Ill tudo - e preciso que haja, e absolutamente indispensa-Vl'l que haja urn sentido para as coisas, ou cafmos no abismo. Elc sente que a ideia do acaso e insuportavel - pois e exata-mente af que ele quer estar, naquilo que nao pode ser supor-t.ldo, ele sonha, como quem se afasta do corpo e se transfor-ma em abstra9ao. A escada curva do amanha, a porta ainda em modelo, sao ecos de algum verso de Carlos Drummond de Andrade, que ele leu, repetiu e decorou tantos milhares de vezes desde a infancia que ja fazem parte de sua sintaxe. "Mesmo que sabes" e urn enigma oco. A estrofe final, que pa-rece uma marcha militar, vern de algum ideario marxista di-fuso, linguagem do tempo, estilo revolu9ao cubana, compa-nheiros, avante!, determinismo dialetico, a ideia de que a causalidade absoluta da natureza se confunde com a causa-lidade contingente dos fatos da cultura e da hist6ria; "realis-

    5 1

  • mo" socialista. As "fon;:as reunidas" descem pela escada de algum verso retumbante em berc,:o esplendido, talvez. 0 de-sejo de que o dia amanhec,:a, quem sabe num sabado, tern urn que de Vinicius de Moraes, outro tanto de Geraldo Vandre, para nao dizer que nao falei de flores. E lembrou que o poe-rna foi escrito em Portugal, em plena Revoluc;ao dos Cravos - cinco governos provisorios em urn ano. Ele absorvia aqui-lo pelos poros - e urn pouco por preguic,:a. 0 parafso estava proximo, faltava so acertar os detalhes.

    Problema mesmo, de verdade, era o dele, agora. A auto-demolic;ao poetica deixa-o sem chao, ainda no corrector do hospital. Mas ele sabe exatamente o que nao quer, ao reagir ao conforto poetico: nao quer uma muleta. Quer o fato em si. 0 amago das coisas, sonha ele, nao resistindo ao prazer da bravata. E quer manter intacto o orgulho, o sentimento da propria superioridade, que custou tanto a alimentar, que foi sempre a direc;ao cega de sua vida - ou nao teria feito nada, ou teria sido igual a todo mundo, carimbando formulario em algum balcao, puxando o saco de alguem, dependendo da propria gentileza e da gentileza alheia, pedindo favor, sendo aquila que todos os outros sao, no seu olhar incompleto. Essa porcariada toda, esse lixo que ele ve em volta. Eu nao quero isso. Eu nunca quis isso. Nao, ele tern outro destino (vem-lhe a mente outro desfile de fantasias, os arquetipos, as figuras mfticas de uma Grecia retumbante e kitsch, com seus deuses seminus, contra os quais, parcas do destino, nao ha desgrac,:a-damente 0 que fazer, estamos escritos para todo 0 sempre; e 0 nascimento da tragedia, de Nietzsche, cujos trechos mais impactantes ele copiava laboriosamente no silencio sinistro da Biblioteca de Coimbra). 0 amago das coisas. Repita varias ve-zes essa expressao, ele se diz, em voz alta, e veja se ela man-tern algum sentido. 0 amago das coisas. 0 amago das coisas.

    52

    t l .'I mago das coisas, nesse momento, e a descoberta de lttttH.', tao simples na sua metodologia prosaica de labora-

    tlll ill, na completa ausencia de pathos da melhor ciencia, o lt . d ~o tlil o de formiga diante de plaquinhas de vidro, anos a fio. llttllt ,tbalho realmente nao espetacular. Uma coisa mediocre. I f'V.t tll a-se uma hipotese e testa-sea hipotese: repita-se a ope-' t\, to ate se chegar a "verdade dos fatos". Sim, a mac;a cai na ' dn

  • ,.---

    ..

    -

    Ja esteve aqui, anos antes, tentando avaliar a probabilidade de repetir;ao hereditaria de uma provavel retinose da mulher, de caracteristicas indecifraveis. Newton Freire-Maia classifi-cou-a como gene dominante - a possibilidade de que acon-tecesse o mesmo com os filhos seria de 50% . Ouvindo Freire-Maia, ele lembrou das leis de Mendel, nos tempos de colE~gio . Gostava daquilo - era uma arvore perfeita, geometricamen-te delimitando olhos azuis (dependendo dos pais, 25%) e olhos castanhos (os outros 75%); ele via, graficamente, o poder da possibilidade, tirando linhas daqui e dali, genes recessivos, genes dominantes. Uma cH~ncia exata. (Alguem lhe disse, anos depois, que Mendel muito provavelmente frau-dou o calculo de suas ervilhas, para que o resultado fosse tao miraculosamente exato. Nao importa: ele extraiu a lei, que continua viva, em cada nascimento dos bilh6es do mundo.) Cinquenta par cento? - era uma aposta razoavel contra o destino; o poder da paixao, e ele abrar;ou a mulher. Que sao 50%? Uma pur a ideia. Sim, vamos colo car nossas fichas em nos mesmos, no vermelho, e se beijaram e se amaram. Mas a roleta perdeu o rumo, deu preto, a bolinha saltou para outra mesa do cassino e agora eles tinham nos brar;os uma trissomia 21.

    Era ainda preciso classificar o tipo de trissomia. Se sim-ples, a possibilidade de repetir;ao da sindrome era minima. Se de outro tipo, nem tanto. Os professores, gentis, explicam sorridentes a maquina dos cromossomos - ele ve aquela fo-tografia ampliada em preto e branco, uma sequencia nume-rada de duplas irregulares que parecem dentes com raiz, fora de foco. Estamos inteiros ali, ele imagina. Pensando bern, sao poucas variaveis para tantos resultados disparatados. A den-cia organiza - o que vern embaralhado na natureza, a cien- cia abstrai e dispoe em fila, par tamanho e caracteristicas.

    54 ~ I

    li' tmmossomo aqui, o 21, e o dedo aponta - veio com 1111 ,1 1.11nflia maior; sao tres, em vez de dais. Se for esse o ltllt, ( clara, embora ... embora o fen6tipo , o conjunto das \l 'ltt tldsticas fisicas, nao desminta. Mas .

    IJn1,1 gota de sangue. A crianr;a mal se move, mergulhada ~~ ~ 1sruridao do sono. Depois sera o sangue dos pais, mas dai jtC'II.IS em nome da ciencia, para abastecer o banco geneti-

    ut Algum pesquisador, diante dos cari6tipos de centenas de p.tl'l de crianr;as Down, podera quem sabe ter urn momenta d n iar;ao e descobrir alguma nova lei de recorrencia geneti-1, ,1 Mas nao e nisso que ele pensa agora - e SO no resultado IIIH' vira. Ja esta~a perfeitamente integrado ao destino, nesse tttllllciro momenta: tenho urn filho com mongolismo (nao llliiScguia mais pronunciar a palavra "mongoloide"), ele di-

    1.1, e e com isso que tenho de lidar. Esse eo problema; nao lnvente outros; nao agora. 0 impacto inicial de dias antes l'omer;ava a amortecer. Mesmo porque ele reservava urn so-ll tl'destino sabre o primeiro: a fragilidade da crianr;a (de urn 1110mento em diante, evitava pensar nisso , sacudindo a ca-hl't;a, mas a ideia estava la) faria o resto. Simulando conster-llilt;ao, ele ouvia a estatistica dos professores: cerca de 80 % das crianr;as mongoloides nao sobrevivem muito tempo. Mas hoje, eles ressaltavam, isso tende rapidamente a mudar. (Nao no meu caso, ele sonhava, e sacudia a caber;a.) Quem sabe haja mesmo, de fato, uma proporr;ao correta entre todas as coisas? Mas agora entrava outra variavel, como urn jogador descartado que, subitamente, ve a chance de voltar ao jogo - e se o cari6tipo indicasse de fato que se trata de uma crian-r;a normal? Apenas esse fiapo ridiculo de esperanr;a dava-lhe alguns dias de normalidade, ate que o exame ficasse pronto. Talvez, ele pensava, ao voltar a ceu aberto, urn dia bonito -eu deva continuar meu livro e me esquecer urn pouco.

    55

    -

  • r: preciso ainda consul tar urn especialista em genetica me-dlt\ 1, para conferir uma eventual cardiopatia- todos os me-dhos disseram que nao ha nada de errado com a saude do nHnino, mas a incidencia de problemas de corac;ao em crian-'"s com trissomia 21 e muito alta. Urn especialista saberia lo-t ,liizar o problema, se houver, com precisao. Ao cruzar o pa-llo dos milagres do Hospital das Clinicas, aquela pobreza ttja, estropiada, crista, os molambentos em fila, a desgrac;a tttcmorial em busca de esmola, aqui e ali as ambulancias de

    ptdeituras do interior trazendo votos potenciais que se arras-1.1111 em muletas, o gada balanc;ando a cabec;a e contemplan-do no balcao uma cerca incompreensfvel e intransponfvel, t'tlidada por outra especie de gada que carimba papeis e en-lrcga senhas; o setimo ceu e algum corrector que cte em outra ala onde urn ap6stolo de branco estendera a mao limpa e

    clara sabre as cabec;as para promover a cura milagrosa- ele pcnsa em Nietzsche e no horror da misericordia, a humilha-~\10 como valor, a humildade como causa, a miseria como grandeza. Pais o seu filho, confirmada a tragedia, nem mes-mo a esse ponto (ele olha em torno) chegara, porque nao tera cerebra suficiente para inventar urn deus que 0 ampare e nao tera linguagem para pedir urn favor. 0 que o ampara agora, no vaivem desses dias medonhos, e a perspectiva justamente

    57

  • da cardiopatia do seu filho, que acabara logo com o pesade-lo, ele sonha, e mais uma vez se anteve recebendo abrac;os e condolencias sentidas. Pensa vagamente na imagem de urn filme ingles, urn enterro sob uma arvore, num fim de tarde melanc6lico, todos de preto. Ma~ nao havera servic;o religio-so. Uma cerim6nia limpa e tranquila. Urn recomec;o: o mun-do comec;a com urn suspiro de alfvio. 0 desejo estupido de morte nao o deixa - hJ. urn esforc;o de derrota-lo (primeiro a miragem de urn engano genetico, que faria desse nascimento s6 urn pequeno trote do destino), depois a vergonha do pro-prio sentimento, a estupidez de sua frieza oculta - ele nao consegue oculta-lo; em lapsos, esse desejo volta irresistfvel, e e como urn sonho.

    A porta se abre e uma jovem medica residente, gentil, os recebe com urn sorriso - olha com urn carinho maternal para a crianc;a, que dorme suave no colo da mae. E preciso preen-cher alguns papeis, ela diz, em tom amigavel. Ele se sente urn animal chucro, puxando o pescoc;o para se livrar do freio na boca, aquela prisao inc6moda que o arrasta para tras: respon-der a perguntas idiotas diante de uma mesa, hJ. sempre uma invasao de intimidade - 0 que voce faz, do que voce vive, quem voce pensa que e -, e aquela irritante compreensao humanista dos que tern poder mas o usam com moderac;ao. Aceite a regra do jogo, e o que eles dizem. E uma mulher bo-nita e realmente tranquila, ele vai descobrindo, e se angustia com a ideia de ser urn homem tao transparente - todos des-cobrem de imediato o que se passa na sua cabec;a, ele imagi-na. No colo da mae, a crianc;a move a cabec;a e boceja, olhos fechados. Sera que, assim, ninguem percebe que esta nao e uma crianc;a normal? Os bebes - mesmo o dele - sao todos parecidos. Por urn born tempo, ate que a crianc;a cresc;a, ele

    58

    tli Vitg.t, cles poderao passear como filho sem ter de dar ne-lillltttt.l cxplicac;ao adicional.

    N.t outra sala, esta o medico - urn velho senhor cansado i1 ut'lll humor que mostra urn sorriso contrariado ao pegar a u lttt~'

  • fantasia, sentindo o mesmo arrepio na pele). A medica sorri - e apenas uma rotina, fiquem tranquilos, parece que ela diz. A mae est.i tensa; o pai aguarda, ainda com os 50% de inteligencia batendo na alma. Par que alguem assim deve vi-ver? Mas a irrita
  • Escrever: fingir que nao esta acontecendo nada, e escre-ver. Refugiado nesse siH~ncio, ele volta a literatura, a maneira cle antigamente. Uma roda de amigos - o retorno a tribo - e cle le em voz alfa o capitulo quatro do Ensaio da Paixao, que continua a escrever para esquecer o resto. Ler em voz alta: um ritual que jamais repetiu na vida. Naquele momento, au-vir a propria voz e rir de seus pr6prios achados, com a plateia l'Xata, e urn balsamo. E ele escreve de outras coisas, nao de scu filho ou de sua vida - em nenhum momento, ao longo de mais de vinte anos, a sfndrome de Down entrara no seu ltxto. Esse e urn problema seu, ele se repete, nao dos outros, t' voce tera de resolve-lo sozinho. Fala muito em voz alta, e ri !l,1stante - nao sera derrotado pela vergonha de seu filho, .1inda que tenha de fazer uma ginastica mental a cada vez que ~l' fate dele em publico. Simular, quem sabe, que o filho nao nasceu ainda - que alguma coisa vai acontecer antes que o lrrcmediavel acontec;:a. Escreva, ele se diz- voce e urn escri-lor. Cuide do mfnimo - o resto vira sozjnho. A crianc;:a vai lltm, em silencio no quarto. Nao ha muito a fazer. Ja sabe que e preciso estimula-la, mas as informac;:6es sao poucas e v.1gas, e ele odeia medicos, hospitais, enfermarias e enfermei-ros, tratamentos, remedios, doentes, pianos de saude (nunca ll'Ve nenhum), prescric;:6es, bulas, farmacias. Sente dificulda-

    63

  • ....---

    ..

    r

    de em olhar para o filho , que lhe lembra sempre tudo que nao lhe agrada. Pediu expressamente a professora que nao publi-que o poema, aquele poema ridfculo, e parece- ele se lem-bra vagamente- que ela disse sim, a coisa seria retirada da revista. E urn alfvio. Os leitores deveriam ser poupados da-quela baboseira horrorosa.

    Mas o Nada do que niio foi, e a imagem do irmao, apresen-tando-lhe a filosofada em versos que ele mesmo escreveu como antfdoto ao horror da vida, volta-lhe a memoria de tempos em tempos, sempre com urn sentimento de irritac;ao. 0 poema defendia urn fatalismo otimista: as coisas aconte-cem inapelavelmente e elas ja estao escritas em algum lugar, o que lhes da o estatuto de valor indiscutfvel. 0 simples fato de que acontecem ja e urn valor a ser respeitado: o peso sim-ples e brutal da realidade, o que se pode pegar com a mao. Foi preciso que nascesse o seu filho para que, de urn golpe so, percebesse a fissura medonha daquele otimismo cosmico que ele havia tornado de emprestimo de algum lugar como mol-dura estetica da propria vida - tao lindo, tudo esta em tudo, o tempo presente contido no tempo passado, a harmonia ce-lestial, enos, seres de papelao, participando do espetaculo do universo como convidados de honra. Seja sabio: aceite.

    Mas ele formula uma reac;ao; ou pelo menos verbaliza aquilo que, de fato, tentou guiar sua vida ate ali: eu niio es-tou condenado a nada - eu me recuso a me condenar a algu-ma coisa, qualquer que seja. Sempre consegui tamar outra di-rec;iio, quando preciso. Era urn outro tipo de bravata, ele sabia - mas e preciso comec;ar de alguma parte. Por onde? Por aqui mesmo, aqui, agora, hoje, eu e meu filho deficiente mental para todos os tempos. Essa crianc;a, nesse momento, ele cal-cula, nao e absolutamente nada; urn ser organico buscando sobrevida, e so . Nesse ponto, ela se iguala a qualquer outra,

    64

    ~

    normal ou anormal, do mundo inteiro, em qualquer lugar. Aqui e agora: se ela morresse aos dois dias da cardiopatia ine-xis tente, se fosse fulminada por uma outra mutac;ao qualquer 11 0 quarto dia de vida ou por qualquer outra razao aleatoria dos possfveis da vida, bern - la estarfamos nos no entarde-l't'r do cemiterio, sob a sombra daquela bela arvore, receben-do pesames, com urn sopro de alfvio. Melhor assim, diriam lodos num sussurro. Os abrac;os apertados dos amigos, como llt'riam bons! Nao houve tempo para que o filho recebesse dos ou tros algum contorno vivo alem do mundo dos reflexos e do proprio nome no cartorio. Ele nao teria sido nada alem da vida biologica. Urn ser ainda estranho, a quem n6s, os pais, demos a dactiva de uma presenc;a, e mais nada. A ideia de IIITia crianc;a: e iSSO que me falta, 0 pai talvez dissesse, Se pU-dl'SSe formular com mais clareza o que sentia. Esta crianc;a 11 ,10 me da nenhum futuro, ele se viu dizendo. Nao estou con-dl'nado a nada, ele quase diz em voz alta. Posso ir a Moc;am-l> ique dar aula de portugues para uma tribo perdida no rna to, I ' nunca mais voltar. Ou entrar nos Estados Unidos e traba-lll ar como varredor- ja fiz isso na Alemanha, posso fazer de novo-, enquanto escreveria livros que me tornariam ce-il'bre, com outro nome. Eu posso - ele se via dizendo, com 11 ma irritac;ao crescente contra a propria impotencia. Abre outra cerveja, e pensa vagamente que precisa comer alguma roisa, quando o telefone toea.

    Subito, lembra que ainda falta algo para o irremediavel-" confirmac;ao genetica, uma derradeira e improvavel carta na manga, breve fantasma de salvac;ao, algum milagre dos cro-mossomos. A resposta esta na outra ponta da linha. Suspen-dc a respirac;ao. Mas a ultima muleta desaba:

    - Nenhuma duvida. 0 cariotipo deu mesmo a trissomia do 21.

    65

  • Pai e mae sao tornados pelo silencio. E preciso esperar para que a pedra pause vagarosamente no fundo do lago, enterrando-se mais e mais na areia umida, no limo e no lim-bo, e preciso sentir a consistencia daquele peso irremovivel para todo o sempre, preso na alma, antes de dizer alguma coisa. Monossilabos cabeceantes, teimosos - os olhos nao se tocam.

    - A gente ja sabia. -Sim. Anos depois, ele pensaria: vivemos de urn modo tao pro-

    fundamente abstrato, que nao bastava a presenc;a da crianc;a, todas as suas evidencias; para que ela comec;asse, de fato, a se tornar alguma coisa, era preciso urn documento oficial, um papel, urn carimbo, uma comprovac;ao de urn saber inatingi-vel, uma fotografia ilegivel, aquelas manchinhas negras dan-c;ando no caos de urn fundo cinza, agora ordenadas por ta-manho e tipo, uma a uma, em duas colunas, dando uma ordem cientifica ao caos da vida real, a determinar a nature-za de uma vida. Nao o cromossomo, que e irrelevante por in-compreensfvel; a fotografia do cromossomo, ja reorganizado para que dele tenhamos urn sentido e uma explicac;ao.

    Tres estranhos em silencio. Nao ha o que abrac;ar.

    66

    Confirmado o diagn6stico, e preciso fazer uma avaliac;ao de especialistas, preparar-se para a estimulac;ao precoce que deve comec;ar Q quanta antes. Para se defender da perspecti-va sombria desse trabalho insano e que ele, na sombra, ima-gina inutil, repete o chavao, sorrindo: A vida e uma corrida de obstaculos. Isso lhe da uma especie de sobrevida emocio-nal: a piada e o sorriso. Obstaculos: uma palavra viva. Em voz alta, uma pedra girando na boca. Obstaculo::., obstacu-los, ele repete, para conferir se a palavra nao perde a forc;a.

    E urn livro que tern agora nas maos, urn objeto mais po-deroso que a vida real, capaz de explica-la, formata-la, dese-nha-la, explica-la, subverte-la e ate mesmo substitui-la, as vezes com vantagens . Urn livro de orientac;ao familiar para pais com filhos mongoloides - a capa azul usa a palavra "mongolismo ", urn pouco menos pesada. E a autora tern o aval da ciencia - uma especialista completa na area. 0 po-der da ciencia e respeitavel. Abre-se uma outra vereda de salvac;ao - nao e preciso muita coisa para que 0 pai se e'l." tusiasme; com aquela crianc;a no colo, 0 mundo comec;a de novo todas as manhas e qualquer coisa e melhor do que nada, quando se tern urn nao filho nas maos. Foi a mulher, entretanto, que procurou o livro, e lhe trouxe. Alguns telefo-nemas e eles anotaram a referencia- iriam a Sao Paulo para

    67

  • -..

    uma consulta de avalia

  • .....

    nao da para todos, paciencia. Uma nac;ao tao grande! Mas o que se pode fazer? Na avenida Paulista, la vai ele com o seu pequeno problema no colo, ao lado da mulher, que leva a bol-sa com a parafernalia de objetos de sobrevivencia de urn bebe. A crianc;a, insidiosamente, nao incomoda quase nada. Crianc;as mong6licas dormem muito, sao hipotonicas, lentas em tudo - como no teste das crianc;as do mundo das bruxas de Grimm, todos os dias ele esfr~gaJ> indicadur.na palma d.Q. mao do menino, que imediatamente fecha os dedos sobre ele, apertando-o, num reflexo que lhe parece normal. Talvez, ele sonha, a crianc;a nao tenha nada. Nao sera preciso leva-la ao forno- ele ri, sem coragem de fazer a brincadeira de humor negro com a mulher.

    0 consult6rio medico devolve-lhe o senso da realidade mais dura. Esta entre ricos, consulta paga, quadros de born gosto nas paredes, estofados limpos, gente de primeira em torno, ar-condicionado, uma funcionaria gentile atenta, hora marcada, que, e claro, sera a unica falha - como uma miste-riosa compensac;ao para afirmar a autoridade absoluta, a au-sencia ofensiva de pontualidade medica e a regra universal da classe, uma especie de c6digo a distancia-los da condic;ao humana mais terrena e miuda; jamais ele viu alguem recla-mar ao medico da pontualidade; no maximo, uma inquiric;ao delicada a funcionaria, mais urn pedido temeroso de licenc;a, uma curiosidade avulsa, as maos para tras, a cabec;a baixa, que propriamente uma reclamac;ao. Ele se irrita consigo mes-mo - o fato de que esta atras de uma razao para se irritar, e isso o coloca no rebanho de novo, gado em meio ao gado, cabeceando contra a cerca. A mulher, entretanto, parece tran-quila. A crianc;a, como sempre, tambem esta tranquila. Se ele reclamar a mulher da pontualidade medica, ela imediatamen-te apresentara urn motivo razoavel para explicar o contratem-

    70

    po - urn chamado de urgencia; uma consulta encaixada na ultima hora; urn engarrafamento do transito - o que, antes tll

  • I

    ..

    Nao h.3. novidade alguma, e clara . 0 diagn6stico e aquele que ele ja sabia antes mesmo de olhar para a crianc,:a, e, como ela ainda nao e ninguem, sonolenta e indiferente ao inferno em torno, a medica se dirige aos pais, repetindo tudo o que eles ja sabem. A cH~ncia nao tern e nao faz milagres. Ouvem uma predica sabre as vantagens da estimulac,:ao precoce; al-guns conselhos avulsos; o livro e autoexplicativo . Ha quest5es psicol6gicas envolvidas que, vistas com atenc,:ao, podem alivi-ar o peso do filho. A mae ouve com atenc,:ao redobrada cada palavra; o pai devaneia - tenta encontrar, nas frestas daquela fala seria e severa, do alto da autoridade, alguma coisa que lhe parec,:a realmente uti!, mas nao ve nada. A medica nao conse-guiu perceber na crianc,:a absolutamente nada particular, ne-nhuma qualidade especial que merec,:a nota . A medica nao sorri. Ela e uma porta-voz impessoal da ciencia, e tern a obri-gac,:ao de dizer as coisas exatamente como elas sao, e as coisas nao sao boas, porque nao sao normais e fogem de todas as medic,:oes-padrao em todos os aspectos: uma trissomia do cro-mossomo 21, que se manifesta, agressiva, em cada celula do hebe. E isso. Levem o seu pacote, ela parece dizer, quando en-fim sorri o seu sorriso profissional. Dizer as coisas como elas sao: nao reclame, ele se ve pensando. Voce quer ouvir uma mentira, e isso a medica nao tern para dar. Voce quer urn gesto secreta de piedade, disfarc,:ado pela mao da ciencia, e isso tam-bern esta em falta. Ha seculos as func,:oes da vida ja se separa-ram todas, cada uma em sua especialidade. 0 que ela tern a dizer, alem de descrever cientificamente a sfndrome, e 0 que voce pode fazer pela crianc,:a, mas nao espere muito disso; no maximo voce vai tornar as coisas suportaveis. Voce nao e nem 0 unico, nem 0 ultimo.

    Na rua, ele finalmente acende urn cigarro e da uma traga-da funda e saborosa, olhando para o alto, para aquele funil de predios contra o ceu azul.

    72

    ~

    u

    Duas semanas depois, urn recorte de jornal cai na mao de-lts - uma clfnica do Rio de Janeiro oferece urn programa wmpleto de estimulac,:ao precoce para crianc,:as com sfndro-III C de Down (a notfcia colocava entre parenteses a palavra "mongolismo "), aplicando tecnicas tradicionalmente usadas p.1ra os afetados por lesao cerebral, o que e outra coisa. "Urn pmgrama completo"- depois da experiencia insossa com a n16dica de Sao Paulo, a ideia lhe agrada. Sempre gostou de "cursos completos"- as coisas tern deter urn comec,:o, urn n1cio e urn fim, como a vida, e de preferencia nessa ordem. N,tda pela metade - e enquanto acende urn cigarro, relendo lll' la trigesima vez a notfcia sucinta - pensa no filho pela Jnctade. Dias diffceis : o hebe ainda nao consegue sugar o seio d,l mae, e e preciso continuar a engenharia com a corneta n1cdieval de vidro para extrair dos peitos da mae, do modo Jli Jis primitivo, aquele sumo de cor indefinivel, afinal com-plctado por Ieite de lata mesmo, de urn tipo especial, o unico que a crianc,:a aceita.

    A primeira crianc,:a de urn Casamento e uma aporrinhac,:ao JII Onumental- o intruso exige espac,:o e atenc,:ao, chora de-Jllais, nao tern horario nem limites, praticamente nenhuma llnguagem comum, nao controla nada em seu corpo, que vive " borbulhar por conta propria, depende de uma quantidade

    7 3

    l

  • enorme de objetos (do berc;o a mamadeira, do funil de plasti-co as fraldas, milhares delas) ate entao desconhecidos pelos pais, drena as economias, o tempo, a paciencia, a tolerancia, sofre males inexplicaveis e intraduzfveis, instaura em torno de si o terror da fragilidade e da ignorancia, e afasta, quase que aos pontapes, o pai da mae. E e uma crianc;a - como todo recem-nascido - feia. E dificil imaginar que daquela coisa mal-amassada surja como que por encanto algum ser humano, s6 pela forc;a do tempo. E no caso dele, ele pensa-e quando pensa acende outro cigarro -,a troco de nada. Para dizer as coisas claramente, ele conclui todos os dias: essa crianc;a nao lhe dara nada em troca. Sequer aquele prazer mesquinho, mas razoavel, de mostra-lo aos outros como urn trofeu, ja antevendo secretas e inauditas qualidades no futuro daquele (que seria urn) belo ser. Se eu escrever urn livro sa-bre ele, ou para ele, o pai pensa, ele jamais conseguira le-lo.

    "Urn programa completo." Vira e revira o pedac;o de jor-nal entre os dedos, enquanto a mae, que descobriu o recorte, aguarda uma definic;ao. Sempre foi ela que decidiu tudo, mas ha ainda urn teatro machista: ambos nasceram em 1952 epa-garam por urn born tempo o prec;o do tempo - ele mais do que ela. A maioria esmagadora dos homens sofre de retardo emocional, ele brinca, 0 que e urn born alibi para ficar onde esta. Nesses primeiros dias - duros, angustiantes, mal-aca-bados, silenciosos - a sogra ajuda muito, o que o alivia. Aquele medico que deu uma aula para pais na maternidade tinha razao, ele concede. Ele quer ficar longe da crianc;a tan-to quanta possa. De manha vai a chatice das aulas de letras - sente a estupidez da propria agressividade, que consegue canter quase sempre. Precisa do diploma para sobreviver -algum dia ainda vai sobreviver do que faz, ele sonha. A tar-

    74

    dt>, escreve mais uma ou duas paginas, e avanc;a no livro 1omo quem escapa do mundo por urn tunel secreta. A noite, ,li - vai aos botecos beber cerveja e conversar, quase nun-

    1.1 sobre o filho. Quando perguntam, ele responde com urn "ludo bern" e urn sorriso desarmante, ao qual se segue uma rontrapergunta que mudara o rumo da conversa. 0 mundo I'St.:i em outra parte, nao com ele.

    Caminhando pela cidade, numa subita manha vive a es-ll .mheza de seus passos, ressoando num silencio absurdo em 111cio a multidao dos estranhos; volta-lhe aquela percepc;ao dura, implacavel, de que ele nao e mais a mesma pessoa, de que agora passou em definitivo para urn outro lado, ainda dcsconhecido, de que absolutamente nada tern retorno e ele l'Sta condenado a escravidao deste momenta presente que nJo termina nunca e que ele nao domina. E uma rua fami-liar, nesse centro de cidade- anos atras, ele lembra, andava tic madrugada, bebendo no gargalo, com dois ou tres ami-gas. Urn mundo tao inocente que, em plena rua de bancos e financeiras, desatarraxaram da parede uma imensa placa co-mercia! de vidro e levaram-na como quem carrega mobilia, quadras e quadras, ate espatifa-la no meio do asfalto, arre-messando-a para cima num grito primal de guerra - o se-gundo em que os cacos se partiam reverberava em sua ca-bec;a dopada e as luzes mortic;as ganhavam vida num eco sobrenatural. Curitiba era uma cidade fantasma, e ele, aos 15 anos, imaginava-se dono dos pr6prios passos.

    Em outra madrugada inesquecivel, assaltou uma vitrine de livros com uma pequena barra de ferro. Ele e o amigo, num banco da prac;a Generoso Marques, conferiam o butim: 22 volumes, alguns repetidos. 0 azar: eram obras de nao fic-c;ao. S6 levou dois para casa, porque teria de explicar aquila,

    75

  • se perguntassem, e sempre mentiu mal em voz alta. Mas leu os livros, para justificar o crime. Urn sobre os males do impe-rio norte-americana, uma aguia agressiva na capa. Outro so-bre as vantagens do mundo do socialismo, o titulo em ver-melho. Dois dias depois sai uma nota do assalto no jornal, e ele conta a fac;:anha ao amigo ator no colegio, mostrando-lhe orgulhoso o recorte. Tetracloroetileno, ele lembrou, como uma cabala - umas capsulas que tinham essa substancia e que ele furava com urn alfinete e cheirava no lenc;:o. Compra-va o remectio na farmacia, levando o nome no papel, para dar credibilidade ao pedido. Talvez tenha sido a unica transcen-dencia de sua vida, aquele transporte ffsico para lugar ne-nhum, uma pequena montanha-russa sensorial. Dessa eu es-capei, ele relembra agora, mas nao exatamente com alfvio -ficou apenas esse chao, onde estou, esse exato tamanho, ne-nhuma aura a mais. Como quem desaba, nao como quem acorda. Ninguem acorda, ele pensa agora, atravessando a pra-c;:a Osorio nesta manha de sol. Apenas desabamos. Ha de novo aquele sentimento de vazio que ele quer preencher com algo que esta muito proximo dos olhos e da alma, e que seria uma chave, como alguem que, enfim, abre uma porta diffcil - ele diminui os passos, urn menino !he pede esmola e ele o ignora, avanc;:ando para o calc;:adao. Talvez - ele pensa -agora mergulhado na sensac;:ao de nao retorno, a memoria inutillhe devolvendo imagens de anos e anos atras, como se elas dissessem algo, ou tivessem algo urgente a dizer, algum sentido secreta em busca de decifrac;:ao, mas nao tern, sao so pequenos fantasmas do tempo, fragmentos de nada, e final-mente, parece, ele esta no outro lado agora, como quem ab-sorve o inevitavel, sem resistencia: nao hci retorno. Agora e com voce. Sente aquele ridfculo espasmo na garganta, o cor-

    76

    po exigindo o choro e ele se negando esse direito. Ele para no meio da rua, o sentimento de vergonha, o dia esta claro de-mais - alguem percebeu que ele esta chorando, e isso !he doi. Da meia-volta, pega outra rua, e outra, mas todas nao levam a lugar nenhum.

    77

  • ..

    Em 1981, o Rio de Janeiro continua lindo. Sente de novo o impacto da amplidao dos espac;os que se abrem para o mar e a delicadeza dos recortes contra 0 ceu azul, uma memoria de seus tempos de quase marinheiro. Antes de ir a clfnica, pega urn taxi com a mulher e o filho de tres meses e vao ao bairro da Urea, visitar o velho amigo ator, agora trabalhando no Rio em teatro e televisao. 0 namorado do amigo - quase uma crianc;a - atende a porta, gentil. Ele sente uma outra estra-nheza, urn mundo sob outro mundo, em camadas. Levou urn susto, como alguem ja definitivamente de urn outro tempo. Todas as pessoas - ele pensa olhando o mar no belo cami-nho de volta, a crianc;a no colo - estao no limite, permanen-temente no limite de si mesmas; e no entanto do outro !ado esta apenas o tempo. Urn passo em frente e o tempo que ele leva. Fecha os olhos e refugia-se no tempo: nada do que nao foi poderia ter sido, e novamente se irrita. Nao pode ser ape-nas isso. Mas e urn born alibi, uma especie de repouso: rela-xe; o tempo esta escorrendo. 0 tempo nao pode fazer nada contra voce, ele pensa, alem de envelhece-lo, e a essa altura isso e muito born. "Envelhec;am", aconselhava Nelson Rodri-gues aos jovens, e ele sorriu com a lembranc;a.

    Em janeiro de 1972 ele eo amigo participaram de urn fes-tival de teatro em Caruaru, Pernambuco, e voltaram os dois

    79

    --I

  • de carona, mochila nas costas, dedao na estrada, atravessan-do o Brasil ape. Em Salvador, dormiram ao ar livre, nas areias da mitica ltapua. A saida da cidade, caminharam por urn ton-go trecho de acostamento em obras, em busca do que parecia urn born ponto de espera, urn posto de gasolina adiante; ope-ra.rios intrigados diante daquelas duas figuras cabeludas, e malvestidas de uma forma diferente, perguntaram o que eles faziam na vida. "Teatro", respondeu o amigo. "0 que e tea-tro?", insistiu urn deles, sinceramente curioso. "Uma especie de circo", ele respondeu, depois de gaguejar urn pouco, con-fuso. Sentiu-se mal- uma estranheza bruta entre dois mun-dos. Como alguem pode nao saber o que e "teatro"?- foi a pergunta idiota que ele se fez. Num outro momento da tonga viagem, queimaram OS ultimos trocados COIDprando UID quei-jo mineiro na beira da estrada, previsto para durar muito. Pouco depois, anoitecendo, subiram na carroceria vazia de urn caminhao que parou para eles e que os levaria ate Macae, ja no Rio de Janeiro. Mais adiante, noite alta, o caminhao pa-rou de novo, e come
  • ,.....

    ..

    seculos a vergonha de estar vivo. E no entanto aqui estou eu, com meu pequeno leproso no colo, para a delfcia imaginaria de alguma madre superiora a assomar no atrio do hospital em seu unico momento de real felicidade, a vida inteira a se pu-nir, o cilicio na alma, mas e preciso que ela leve alguem junto para o fogo daquele inferno particular, e a madre superiora sorri, toda de negro na sua pequena morte cotidiana, o falSO' sorriso, as unhas avanyam para o suave carinho na cabeya do bebe, que, incauto, dorme.

    Ele sacode a cabeya: eu estou enlouquecendo. 0 nome dis-so e ressentimento, ele se policia. A jovem que os atende e gentil e determinada: nao se antecipe, ele se diz. Ela repete urn bordao, que ele mal ouve: os pais nao sao o problema; os pais sao a soluyao. Ele preferia nao estar ali. Ele preferia es-tar em casa, fumando urn cigarro e escrevendo o seu livro, que fala de outras coisas, muito mais importantes do que esse pragmatismo que, para onde quer que olhe, se deixa envol-ver nao por urn sentimento de humanidade, mas de religiao, essa pequena e pegajosa transcendencia dos dias. E urn pro-grama coletivo - depois da avaliayao individual, terao urn roteiro completo, uma aula, urn sistema, uma grade de orien-tayao. Sobem uma escada e avanyam por urn corrector. Sim, e coisa de pobres porque no mundo ha infinitamente mais po-bres do que ricos, ele retoma 0 fio, e portanto tudo que e po-bre e escancaradamente visivel, esta em toda parte de mao estendida. Nao e uma maldiyao; e pura estatistica. Governos inteiros se fazem por estas maos estendidas e por mais nada.

    Mais alguns passos e ele para diante de uma porta aberta que da para urn salao onde ve a sua mais inesquecivel ima-gem - nao consegue conter o choque, e, la na ultima camada da alma, a certeza de que ate o fim dos tempos sera esse o seu mundo, e nao outro. Sao dezenas de pessoas, crianyas,

    82

    -

    l

    ! i

    jovens, adultos - todos irremediavelmente lesados, urn pa-tio dos mi!agres de deformay6es, brayOS que nao obedecem, bocas que se abrem e nao se fecham, olhos incapazes, rictus de desejos exasperantes que o gesto nao consegue cumprir, dedos espalmados, sempre a meio caminho; e, em tudo , co-mo que a sombra de urn universo duplo esmagado por urn intransponivel instante presente. Estao em Iugar nenhum. 0 espayo eo chao, eo tempo, urn luxo inacessivel. Eo que fazem? Todos rastejam - mas aqui o rastejar e, na pratica, o verdadeiro caminho da cura, o exercicio primeiro que ha de devolver ao lesado o seu poder - ou alguma parte dele -sobre a propria carne. Mas nao basta isso: colocar o corpo no chao para que ele redescubra o desenho de seu sistema ner-voso e recupere algo do que perdeu. 0 desvario de uma uto-pia: reencontrar o fio da especie que saiu das aguas para ras-tejar na terra - a espinha humana conserva essa memoria, eles dizem, e e preciso acorda-la. A caverna de Platao no rei-no da neurologia. Ha urn adendo tosco que to rna a cena mais , dantesca: todos eles trazem no rosto uma mascara rudimen-tar de plastico que lhes cobre o nariz e a boca, para que eles respirem mal, e a ideia e exatamente esta: com o oxigenio momentaneamente escasso, os pulm6es fazem urn esforyo extra, uma ginastica sobre-humana na luta por recuperar o que lhes falta, o ar - e as maos, enfim, conseguem chegar a mascara para arranca-la, 0 ar renovado brutalmente oxige-na o cerebro em dose dupla, mas por pouco tempo; e em seguida a mascara e colocada de volta, para uma nova se-quencia. E simples: erie problemas, para que eles se salvem. 0 pai nao consegue tirar os olhos daquele purgatorio em que absolutamente tudo esta fora da norma, em que todos os ges-tos contrariam- uma especie de ausencia coletiva, urn mun-do paralelo, quando todos os afetados, lesados, deficientes,

    83

  • trissomicos, sao colocados lado a lado na mesma corrida sem fim em dire
  • clima ali de atividade quase frenetica, que os contagia. Urn empreendimento coletivo, e ele sente uma anima
  • Nurn rnornento da palestra, deixa nftido o fato de que o tra-balho da clfnica e alvo de crfticas e vive a tensao doutrinaria de sua linha: "Nos acusarn de criar rnacaquinhos corn refle-xos condicionados. Se for rnesrno assirn, por que nao? Qual a op
  • padrao inato de movimentos cruzados de bra~os e pernas esta afetado, e com isso todo o resto funciona mal; se refon;amos esse ponto de origem - as primeiras salamandras saindo do mar para a terra, milh6es de anos atras, ele sonha e divaga, ouvindo a prele~ao -, refor~amos por extensao todos os ou-tros problemas; na verdade, n6s os recuperamos. Se e loucu-ra, tern urn metoda. Por mais absurdo - ou inutil, como as vezes lhe dirao anos depois - e sempre urn modo de ele to-car fisicamente o seu filho, fazer dele uma extensao sensorial e afetiva sua, fundar uma cumplicidade por osmose que ele, naquele primeiro momenta, jamais imaginaria possfvel, ain-da cabeceando para sair da jaula mental.

    Ele divaga, criando ele mesmo uma sfndrome que cada vez sera mais intensa na sua vida - a crescente incapacidade de concentra~ao para ouvir alguem mais demoradamente: as pessoas deveriam falar por escrito, ele sonha. Apenas seis anos atras estava na biblioteca da Universidade de Coimbra, em Portugal, lendo 0 homem revoltado, de Albert Camus, e A origem da tragedia, de Nietzsche. Ele calcula o mes, olhan-do o teto, lampadas de luz fria: sim, foi nessa mesma epoca. Os anos de forma~ao, ele imagina, antecipando rapidamente a propria velhice. Se tivesse o poder de pensar com frieza, diria que nem nasceu ainda, a sensa~ao de atraso perpetuo. Urn ano na Europa, com pouqufssimo dinheiro e muita leitu-ra. Lembra como entrava nos supermercados com o seu ca-sacao imenso e voltava de la com os bolsos cheios de latas de atum e sardinha, que estocava no armaria da pensao. Basta-ria comprar o pao e estava alimentado. Urn marginal: uma le-gftima voca~ao de marginal, e ele deu uma gargalhada imagi-naria, como se relatasse a tecnica dos furtos a uma roda de amigos, entre cervejas e gargalhadas.

    90

    Quem sabe hoje ele tirasse do bolso uma explica~ao poli-tica: uma ditadura militar, por si s6, e a derrota da lei - os anos 1970 foram universalmente marcados pela ideia da cor-rosao legal. Vamos encurtar caminho de uma vez, diziam to-dos, a esquerda e a direita. Antes, se Deus nao existisse, tudo era permitido; como Deus ja e carta fora do baralho, agora tudo e permitido se o Estado e criminoso. Ao lado do pai do Felipe, que sonha, pais e maes ouvem atentamente a prele-

    ~ao sabre o padrao cruzado e o amadurecimento neurol6gi-co. Em 1975 dormia de dia e reservava a noite, madrugada adentro, ate amanhecer, para ler e escrever, naquele s6tao de Raskolnikoff - se levantasse subito daria com a cabe~a na viga do telhado. Rua Afonso Henriques, ele lembrou, no alto de Coimbra. La escreveu o seu poema-sfntese, Rousseau e Marx na cabe~a, Freud mais ou menos inutil no bolso do co-lete, o parafso no horizonte: "Todas as for~as estao reunidas para que o dia amanhe~a . " Uma vez saiu com urn amigo do Partido Comunista para pintar foices e martelos nos pastes da cidade, como poderia ter sido para jogar sinuca, heber vi-nho ou jogar pedra nas aguas do Mondego enquanto conver-savam sabre literatura, noite adentro. Ele era born nisso, em pintura, lembrou. A foice o martelo safam perfeitos de dois movimentos rapidos de pincel - Portugal quase em chamas, ele fantasiou. Urn governo provis6rio atras do outro - pare-ce que estamos a urn passo da Revolu~ao Final, o parafso ins-taurado . (Ele seria o que; 0 primeiro dissidente? 0 primeiro fuzilado? 0 porteiro de algum gulag? Nosso Homem no Di-ret6rio Academico? Ou, o mais provavel, uma figura an6ni rna e assustada tentando sobreviver nas sombras?) Ouviram discursos na sede do partido em Coimbra. Alvaro Cunha!, a mftica figura, lan~ava seus desenhos da prisao, bicos de pena

    9 1

  • realistas cujas capias eram vendidas para angariar fundos a grande causa. Urn certo clima de 1917 no ar, rumo a esta~ao Finlandia. Num texto, Cunhal explicava que "passaporte", para os russos, era o mesmo que "carteira de identidade" para