O Furo No Coração Da Medicina

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  • O Furo no Corao da Medicina: O Efeito Placebo

    Ser resumida neste texto a seguinte constatao de Collins e Pinch (2010), descrita

    em seu livro Doutor Golem: como pensar a medicina: apesar de todos os esforos na

    construo da cincia mdica, existe um furo no corao da medicina: o efeito placebo. Esse

    o nome que se atribui ao poder de cura da mente sobre o corpo, considerando-se que

    nenhuma real interveno fsica feita. Define-se como placebo qualquer tratamento falso

    - seja atravs de plulas quimicamente inertes, falsas cirurgias, etc. que produz esse efeito

    biolgico de cura.

    A existncia do efeito placebo faz com que novos medicamentos e tratamentos tenham

    que ser testados em uma espcie de competio contra este. O efeito do falso tratamento to

    forte que se torna impossvel mensurar melhoras advindas dos tratamentos reais sem que estes

    sejam comparados s suas falsas verses, pois no se pode dizer se os efeitos advm de

    melhoras biolgicas ou dos efeitos psicolgicos advindos da expectativa de tratamento. Esse

    o furo no corao da medicina.

    Diante do exposto, pode-se inferir que os mdicos so hbeis a ponto de

    desenvolverem novos tratamentos, porm, so pequenos quando se analisa a sua compreenso

    sobre a interao entre corpo e mente. essa falta de compreenso que os leva a comparar os

    efeitos da nova medicao com os da falsa verso. E, de forma embaraosa, muitas vezes o

    efeito do falso tratamento to bom quanto o do verdadeiro, ou ainda melhor que este.

    Uma das grandes dificuldades associadas ao placebo o fato de existirem parentes

    prximos a este. Logo, a cincia mdica atualmente se encontra em uma sala de espelhos

    quando se trata do conhecimento sobre o efeito placebo. Quatro so os elementos do efeito

    que devem ser levados em considerao: o vis inerente ao relato do experimentador; o efeito

    placebo verdadeiro; o falso efeito placebo e; o efeito da expectativa do experimentador.

    O vis inerente ao relato do experimentador se trata do efeito do relato do cientista

    mdico. Sempre que os resultados dos experimentos so definidos por uma margem mnima,

    a interpretao dos resultados feita pelos experimentadores tem a tendncia de ser

    influenciada por suas expectativas quanto ao resultado. Esse efeito existe de maneira

    inconsciente em todas as cincias.

    Conforme previamente formulado, o placebo se refere a uma mudana fisiolgica real

    advinda de falsos tratamentos. Entretanto, algumas doenas tem um carter mais subjetivo,

    como o caso de alguns tipos de depresso. Nesse tipo de caso, a medida da melhora feita

    pelo relato dos pacientes, o que novamente permite que o efeito do relato influencie os

  • resultados e concluses. Quando um paciente acredita que o tratamento pode lhe trazer

    melhoras, este pode pensar se sentir melhor mesmo que no haja uma real melhora

    fisiolgica, o que gera o vis do relato do paciente. Este o falso efeito placebo e gera um

    problema: o subjetivo muitas vezes pode ser objetivo.

    Em casos de doenas como a depresso, em teoria mais fcil se separar o vis de

    relato do efeito placebo considerando a lgica de que, se o paciente acredita estar melhor, ele

    de fato se sente melhor. Porm, como no h medidas diretas de melhoria, difcil se avaliar a

    eficcia da psicanlise e reas afins. E mesmo a existncia de medidas diretas, como o caso

    da capacidade pulmonar de um paciente, no garantem que este problema possa ser evitado.

    Tomando-se como exemplo um teste que requer que o paciente assopre dentro de um

    dispositivo, este, por acreditar que est melhorando, pode fazer um esforo maior, gerando um

    autorrelato de confiana na eficcia do tratamento sem melhoras verdadeiras.

    Por fim, tem-se a expectativa do mdico. Estudos demonstram que a expectativa do

    experimentador quando ao bom desempenho de determinados indivduos faz com que estes

    tendam a obterem resultados melhores, mesmo nos casos em que, atravs do sigilo, elimina-se

    o vis do relato do experimentador.

    Em virtude da existncia das quatro influncias sobre o efeito placebo, surge a

    necessidade de se criar o experimento duplo-cego. Neste: os pacientes no sabem se tomam

    o remdio certo ou verdadeiro, para se evitar o falso efeito placebo (vis do relato do

    paciente) e; os mdicos experimentadores e aqueles que analisam o experimento no sabem se

    o paciente est recebendo um placebo ou o tratamento real, com a finalidade de se evitar o

    efeito de expectativa do experimentador e o vis inerente ao relato do experimentador.

    Quando o tratamento afeta o bem-estar de um paciente atravs do efeito planejado ou

    descoberto pela cincia, h o que se pode chamar de efeito fsico, fisiolgico ou qumico

    direto. Estes contrastam com os efeitos fsicos, fisiolgicos ou qumicos indiretos, que so

    provenientes do efeito placebo verdadeiro.

    Considera-se que o efeito placebo uma parte cientificamente estabelecida da

    medicina moderna pelo menos desde a dcada de 50. Diversos estudos demonstram pacientes

    que se beneficiam do uso de placebos. E estes benefcios advm at mesmo de falsas

    cirurgias, nas quais os pacientes sofrem melhora apenas recebendo uma leve inciso na pele,

    sem interveno cirrgica significativa. Porm, as descobertas sobre a cura por meio de

    placebos podem ser questionadas, afinal, as pessoas tambm podem se curar sem tratamento

    algum, sendo possvel que a cura nesses casos ocorra na mesma velocidade que a cura por

    efeitos fisiolgicos indiretos.

  • Para se investigar se o placebo realmente existe, deve ser feita a comparao de grupos

    que no foram tratados com grupos que receberam falsos tratamentos. Diversos estudos foram

    realizados, o que levou os mdicos dinamarqueses Hrobjartsson e Gotzsche a analisarem

    diversos artigos que comparavam trs grupos de pacientes: aqueles que recebem tratamento

    mdico, os que recebem placebos e aqueles que no tiveram tratamento algum. Analisando

    114 experimentos, os autores concluram que no havia diferena significativa entre pacientes

    que recebiam placebo e aqueles que no eram tratados. Porm, a observao cautelosa dos

    argumentos derruba a concluso.

    Primeiramente, havia indicaes de que existiam placebos na experincia da dor.

    Alm disso, os resultados podiam estar mascarados pela abordagem estatstica. Entretanto,

    estes no so os argumentos mais fortes que derrubam o estudo, afinal, impossvel se fazer

    um teste s cegas de um tratamento, placebo ou no, comparativamente a um no tratamento,

    pois os pacientes e experimentadores do estudo sabero quem no est sendo tratado. Essa

    situao pode tornar mais marcante a diferena do placebo e do no tratamento, pois os

    pacientes no tratados devem sentir-se pessimistas e o relato daqueles que tratam os pacientes

    pode sofrer forte vis. Logo, deveria ao menos parecer que houve um efeito placebo, o que

    leva inferncia de que houve algo de errado com o experimento.

    Outra complicao inerente aos problemas da cincia mdica pode ser dada pela

    mxima: a fora do efeito placebo uma funo da crena do paciente quanto ao tratamento.

    A ttulo de exemplo, quando tanto os pacientes que tomam placebo quanto os que tomam o

    remdio real sentem que esto recebendo um medicamente cuja eficcia comprovada, o

    tratamento ter um efeito ntido. Esta melhora que ocorre tambm nos pacientes que sofreram

    falsos tratamentos advm da expectativa quanto comprovada eficcia do remdio.

    Um grande dilema associado ao uso do placebo dado pela seguinte indagao: Se o

    efeito placebo funciona, porque no us-lo de forma sistemtica? Primeiramente, vale-se

    ressaltar que a partir do momento em que o paciente sabe que est recebendo um tratamento

    falso, este deixa de ser um placebo e vira um no tratamento. A oferta de uma escolha

    impossvel. Porm, mdicos podem oferecer placebos, contanto que o paciente no seja

    informado. O grande problema que a associao da medicina e das agncias de sade com o

    uso de placebos algo que gera discusso, conforme ser exposto nos seguintes trechos.

    As diversas incertezas existentes na considerada medicina tradicional (ortodoxa)

    dificultam a delimitao entre esta e a medicina alternativa, que se refere s curas que no so

    reconhecidas pela comunidade mdico-cientfica. inevitvel que ao menos uma parcela dos

    tratamentos utilizados pelas duas medicinas no funcionam, ou seja, so tratamentos vazios

  • em termos de melhorias fisiolgicas. Entretanto, a busca por todas as alternativas disponveis,

    sejam elas da medicina tradicional ou da medicina alternativa, como religio, rituais,

    homeopatias, etc., embora possa ser apenas um fruto da busca por todas as possibilidades de

    cura, talvez possa trazer um efeito placebo com mudanas fisiolgicas reais. Entretanto, isso

    no ideal para o avano da cincia mdica, visto que os placebos no funcionam de forma

    igual em todas as pessoas, devido s diferentes suscetibilidades s crenas.

    Deve-se distinguir a medicina como cincia da medicina como socorro para que se

    possa continuar essa discusso. E justamente a primeira que interessa aos Estados, que

    tendem a oferecerem apenas os tratamentos aprovados por testes cientficos. E esse discurso

    de superioridade do conhecimento cientfico por sua vez acaba reduzindo a efetividade das

    curas baseadas em placebo. Essa a tenso entre o bem individual e o coletivo. Para

    exemplifica-la, basta que se observe a luta dos pacientes de cncer que atualmente buscam

    utilizar a Fosfoetanolamina Sinttica - remdio criado por pesquisadores da USP de So

    Carlos -, que, embora apresente bons resultados quando se analisam os discursos de pacientes

    que a utilizaram, no permitida pelo fato de no ter passado por testes clnicos com

    humanos. Entretanto, alguns pacientes, por meio de medidas judiciais obtm o remdio.

    O governo no permite a total liberao do remdio, pois embora prejudique a

    medicina como terapia, seu papel fazer com que essa avance como cincia. E para que isto

    ocorra, deve-se verificar a existncia do efeito placebo atravs de experimentos de controle

    randomizado (ECR), os quais se tornaram o padro de ouro da medicina, embora, de forma

    irnica, simbolizem a falta de conhecimento da cincia mdica acerca da relao entre a

    mente e a cura. E para o preenchimento dessa lacuna, mdicos devem aspirar conhecer todas

    as doenas da mesma forma que conseguem entender de ossos quebrados. Uma compreenso

    melhor do corpo poderia fazer com que fossem abandonados estes tipos de testes.

    No se pode dizer se um dia o conhecimento mdico ir atingir tal estado de

    compreenso, porm, enquanto os tratamentos forem testados por meio de ECRs, as tenses

    entre os interesses individuais e coletivos persistiro. Enquanto perdura esse problema, deve-

    se levar em conta que maximizar o ganho individual imediato custa da cincia, ou em

    desafio a ela, nem sempre a escolha correta, ou nem mesmo a melhor escolha (COLLINS e

    PINCH, 2010, p. 35).

    REFERNCIA

    COLLINS, Harry; PINCH, Trevor. Doutor Golem: como pensar a medicina. Belo Horizonte:

    Fabrefactum, 2010.