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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUITA FILHO FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS, LETRAS E ARTES O GOVERNO LULA E A AGENDA DOS ANOS 90: ambigüidade na política administrativa ARARAQUARA 2008

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Tese de doutorado

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  • UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JLIO DE MESQUITA

    FILHO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, CINCIAS, LETRAS E ARTES

    O GOVERNO LULA E A AGENDA DOS ANOS 90: ambigidade na poltica administrativa

    ARARAQUARA 2008

  • LEONARDO BARBOSA E SILVA

    O GOVERNO LULA E A AGENDA DOS ANOS 90: ambigidade na poltica administrativa

    Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Sociologia, da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da UNESP Araraquara, como exigncia parcial para a obteno do grau de Doutor em Sociologia.

    Orientador: Prof. Dr. Marco Aurlio Nogueira

    Araraquara 2008

  • O governo Lula e a agenda dos anos 90: ambigidade na poltica administrativa Leonardo Barbosa e Silva

    Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Sociologia, da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da UNESP Araraquara, como exigncia parcial para a obteno do grau de Doutor em Sociologia.

    Araraquara, fevereiro de 2008.

    BANCA EXAMINADORA

    _____________________________________ Prof. Dr. Marco Aurlio Nogueira - UNESP

    Orientador

    _____________________________________ Prof. Dr. Milton Lahuerta - UNESP

    _____________________________________ Prof Dr Christina Windsor Andrews - UNESP

    _____________________________________ Profa. Dra. Maria do Socorro Sousa Braga - UFSCar

    _____________________________________ Prof. Dr. Valeriano Mendes Ferreira Costa- UNICAMP

  • Lelena e Luiza

  • AGRADECIMENTOS

    Mais inconclusos do que as teses so os agradecimentos. Eles nunca fazem justia

    s pessoas e s instituies que foram imprescindveis para a realizao do trabalho, seja

    pela pequenez das palavras, pelo escasso espao dedicado, ou pelo esquecimento

    imperdovel de algum.

    A tese demandou enorme sacrifcio de minha parte e de todos aqueles com quem

    divido minha vida. Luiza e Lelena tiverem comigo uma pacincia imensurvel.

    Conformaram-se com um pai e companheiro apressado e dividido. Lelena devo

    muito. Da retomada dos estudos aps anos de dedicao exclusiva militncia poltica,

    passando pelo amor, pelo carinho, pela pacincia e pelo estmulo, recebidos em doses

    maiores do que eu merecia. Luiza cresceu junto com a tese e responde pela energia que

    tenho e pela sensao de ser humano que carrego. Minha famlia - pai, me, Robledo,

    v e Patrcia - compreendeu minhas tarefas e deu, antes e durante a pesquisa, toda a

    estrutura moral e sentimental de que eu precisava.

    Passei parte desses quatro anos em escritrios, ministrios e nibus interurbanos,

    atrs de documentos e entrevistas. Recebi auxlios fundamentais de meus tios Marco

    Antnio e Lucimar, do Mandato do Senador Eduardo Suplicy, do poca Secretrio

    Adjunto da SEGES Alexandre Kalil Pires e do professor Humberto Falco Martins. Por

    todos /a eles /a tive acesso a informaes relevantes para as concluses desse trabalho.

    Agradeo tambm, e sempre que puder o farei, ao eterno mestre Heldio por me

    contaminar pelo amor ao tema e pesquisa sobre as questes polticas desse pas. Tento

    me guiar por seu compromisso e sensibilidade sociais. Agradeo banca de

    qualificao, nas pessoas do professor Milton Lahuerta e da professora Christina

    Andrews, pelas crticas necessrias para jogar luz sobre meu objeto, em especial ao

    Milton que me acompanhou em todas as bancas. Ao meu orientador, Marco Aurlio

    Nogueira, meus mais profundos agradecimentos. Foi uma honra, motivo de orgulho e

    extremo proveito poder receber sua orientao durante toda a ps-graduao. Levarei

    para sempre o seu exemplo de docente e intelectual que tanto enaltece a universidade

    pblica.

    Meus tropeos na lngua portuguesa e nas regras da ABNT foram sanados pela

    competncia da amiga Snia Miralda. Para a lngua estrangeira o colega Edilson

    Pimenta me socorreu gentilmente. O convvio na FCLAr-UNESP tambm me ajudou

  • muito e por isso agradeo aos /s colegas, especialmente Maria Socorro. Enquanto

    escrevia a tese fui docente substituto na Universidade Federal de Uberlndia. L

    encontrei auxlios gigantescos, boa parte deles condensada nas figuras do professor

    Edilson Jos Graciolli, dos alunos e das alunas do curso de Cincias Sociais, de Mrio e

    Jlio e dos membros do Grupo de Pesquisa Trabalhadores, Sindicatos e Poltica do qual

    fao parte.

    Aos amigos e amigas tambm devo muito. Foram importantes nessa trajetria

    Srgio e Aline, Cristhian, Bruno, Cirlei e Mauro, Andr, Luciano, Estefani e Antnio de

    Pdua. Sidartha e Darcilene foram amigos e parceiros na construo das idias presentes

    nessa pesquisa. Dividimos horas em bares, telefone e internet para acertarmos nossas

    impresses sobre a novidade trazida pelo governo Lula.

    Por fim, agradeo CAPES pelo imprescindvel financiamento dos estudos.

  • Faa como o velho marinheiro Que durante o nevoeiro

    Leva o barco devagar. (Paulinho da Viola)

  • RESUMO BARBOSA E SILVA, Leonardo. O governo Lula e a agenda dos anos 90: ambigidade na poltica administrativa. 2008. 218 f. Tese (Doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2008. A reestruturao produtiva, a crise dos anos 1970, a globalizao e a Queda do Muro de Berlim, se associaram para determinar as feies do final do sculo XX e incio do XXI. Sua sntese no campo da poltica de gesto pode ser representada pela Nova Administrao Pblica, uma corrente administrativa que busca na iniciativa privada os modelos e princpios para a gesto pblica. No Brasil ela foi implementada no governo Fernando Henrique Cardoso, sob a direo do Ministrio da Administrao Federal e Reforma do Estado, a partir de 1995. Diante da eleio, em 2002, do candidato Lula, era notvel a expectativa de mudana, sobretudo em relao agenda neoliberal dos anos 1990. Naquilo que se refere questo administrativa, essa pesquisa, a partir do objetivo de avaliar a continuidade ou descontinuidade das polticas, constatou a existncia de um comportamento ambguo. O governo capitaneado pelo Partido dos Trabalhadores em boa medida reproduziu e consolidou a Nova Administrao Pblica no Brasil. Mas, concomitantemente, postou-se contrrio a pontos da agenda anterior ao reverter terceirizaes, reabrir concursos, politizar agncias e paralisar privatizaes. A presente pesquisa engajou-se na misso subseqente de encontrar as razes para esta ambigidade, optando preferencialmente por busc-las na trajetria e na estrutura do Partido dos Trabalhadores. Quatro so as possibilidades explicativas para o fato de a agenda passada resistir fracionada no governo que se empossa em 2003: a) primeiramente o fato de o PT ter deslizado da esquerda ao centro permitiu que pontos programticos conservadores convivessem com histricas bandeiras de luta; b) posteriormente, o partido e o governo Lula desenvolveram o condomnio de interesses, uma forma especial de mediar os conflitos internos sem que uma coordenao dirima as divergncias em prol de uma ao unitria; c) alm disso, na ausncia de um projeto de sociedade ou de uma estratgia clara, o PT se viu obrigado em vrios instantes a absorver propostas pragmticas e contingenciais que se assemelham s institudas pelo governo FHC; e, por fim, d) a existncia de uma ideologia apologtica da sociedade civil, aqui denominada de sociolatria, que inibiu maiores reflexes do partido sobre o Estado brasileiro e criou uma leitura que interpreta o Estado como sinnimo de vcios e a sociedade como virtude. Isso permitiu que vrias polticas da Nova Administrao Pblica como o foco no cidado-cliente, o controle por resultado, a contratualizao de ONGs e agncias estatais pudessem reverberar nos intelectuais e na gesto petista. Palavras-chave: Governo Lula, neoliberalismo, reforma do Estado, reforma administrativa, Partido dos Trabalhadores.

  • ABSTRACT

    The productive restructuring, the 70s crisis, the globalization and the Berlin wall fall, altogether determine the portrait of the end of the 20th century and the beginning of the 21st. Its summary in the managing political field can be represented by the new public administration, an administrative trend which seeks through the corporate strategy the templates and principles for the public management. In Brazil, it was implemented in Fernando Henrique Cardosos government, under the Ministry for Federal Administration and state reform direction, since 1995. When Lula was elected in 2002, the expectation for change was noticeable, mainly in terms of the neoliberal agenda in the 90s. As far as the administrative aspect is concerned, this research, ranging from the intent to evaluate the continuation or discontinuation of the policies, an ambiguous stance was observed. The government headed by the workersparty, in good terms, reproduced and consolidated the new public Administration in Brazil. On the other hand, at the same time, it behaved contrarily to what had been programmed while reversing outsources, reestablish contests, carry out a politization of agencies and pause privatization processes. The current research indulged in the following mission of encountering the reasons for this duplicity, deciding to look for them mainly in the history and structuring of the workersparty. There are four possible answers for the fact that the previous programmation is only partially resistant and present in the government taking over in 2003. a) Firstly, the fact that PT slided from The left wing to the center authorized old fight causes to tolerate conservative programation aspects b) later, The party and Lulas government developed the interest condominum, a special form of handling the inside conflicts avoiding a unique action to be taken by the coordination c) moreover, lacking a society project or a clear strategy, PT had no other option but to absorb pragmatic proposes that are too much alike FHCs government and at last but not least d) the existence of an apologetic ideology of the civil society, here named as sociolatry, which inhibited greater considerations concerning the Brazilian state and created an interpretation of the state as addiction synonyms and the society as virtue. This allowed many policies of the New public administration as the focus in the citizen-client, to have the control, analyzing results, the contractualization of ONGS and state agencies so that they could to pass in the intellectual and PT management.

    Key words: Lula Government, neoliberalism, State reform, administrative reform, Workers party

  • LISTA DE TABELAS TABELA 01 - Investimentos governamentais totais em porcentagens do PIB............. 49 TABELA 02 - Percentual mdio de gasto social em relao ao PIB de pases selecionados nas dcadas de 1980 e 1990...................................................................... 50 TABELA 03 - Evoluo do quantitativo de servidores civis....................................... 136 TABELA 04 - Evoluo do nmero de estatais (posio em setembro/2004)............. 146 TABELA 05 - Composio da Cmara de Deputados Federais 2003-2006................ 157

  • LISTA DE ILUSTRAES

    QUADRO 01 - Os quatro modelos da Nova Administrao Pblica............................. 52 QUADRO 02 - Princpios da Reforma Administrativa Gerencial............................. 77 QUADRO 03 - Relao de emendas constitucionais, leis complementares e decretos que compem a Reforma Administrativa do MARE........................................................ 81 QUADRO 04 - Evoluo dos programas de qualidade no servio pblico federal..... 134 GRFICO 01 - Inverso de trajetria no nmero de servidores civis do Executivo... 138 QUADRO 05 - Composio ministerial descrita por titulares, tipo de ministrio, partido ou ocupao e regio do titular................................................................................. 160 QUADRO 06 - Transformaes nos programas de governo do candidato Lula: 1989, 1994 e 1998.................................................................................................................. 184

  • Sumrio

    INTRODUO 14

    1 PARTE A EMERGNCIA E A CONSOLIDAO DO MODELO 22

    CAPTULO 1 A REESTRUTURAO PRODUTIVA E SUAS TRANSFORMAES 23 OS TRINTA ANOS DE OURO 24 A REESTRUTURAO PRODUTIVA 26 A REESTRUTURAO PRODUTIVA E SUAS TRANSFORMAES 31

    As transformaes na sociedade civil 31 As transformaes na sociedade poltica 38

    CAPTULO 2 A GESTO FHC E A REFORMA DO ESTADO 55 INTRODUO 55 O MARE, O PLANO DIRETOR E A REFORMA ADMINISTRATIVA 58

    O peso da reforma no programa e no governo 58 O documento-guia: Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado 67 Diagnstico e proposies 68

    A NATUREZA DA REFORMA 79 Os novos marcos legais da administrao pblica brasileira 80

    BALANO FINAL 91

    2 PARTE A GESTO LUIS INCIO LULA DA SILVA: A AMBIGIDADE 101

    CAPTULO 3 O GOVERNO LULA E O LEGADO DO MARE: O QUE DIZEM OS DOCUMENTOS SOBRE A REFORMA DE 1995 102

    A CARTA AO POVO BRASILEIRO E A VISO DOS TCNICOS 104 O MODO PETISTA DE GOVERNAR E A (NOVA) ADMINISTRAO PBLICA 107 OS PROGRAMAS DE GOVERNO DE 1989 A 2002 111 O DOCUMENTO-GUIA: GESTO PBLICA DE UM BRASIL DE TODOS 118 SNTESE 123

    CAPTULO 4 - O GOVERNO LULA E O LEGADO DO MARE: O QUE FOI FEITO COM A AGENDA DOS ANOS 90 124

    OS CONFLITOS INTERNOS 126 CONSOLIDAO E RECUO 131

    Uso das polticas gerenciais da Nova Administrao Pblica: a consolidao 131 Alguns recuos na agenda dos anos 1990 135

    SNTESE 143

    PARTE 3 ALGUMAS POSSIBILIDADES EXPLICATIVAS PARA AS AMBIGIDADES 145

    SOBRE AS POSSIBILIDADES EXPLICATIVAS 146 CAPTULO 5 - O DESLIZAMENTO DO PARTIDO AO CENTRO 148 CAPTULO 6 - O CONDOMNIO DE INTERESSES 155

    RELENDO O GOVERNO LULA A PARTIR DO PRESIDENCIALISMO DE COALIZO 155 CONDOMNIO DE INTERESSES: OS CONFLITOS MINISTERIAIS 168 CONDOMNIO DE INTERESSES: O CONFLITO ENTRE AS POLTICAS 174

    CAPTULO 7 - A AUSNCIA DE UM PROJETO DO PT 180 CAPTULO 8 - A SOCIOLATRIA 186

  • SNTESE 199

    CONCLUSO 201

    REFERNCIAS 207

  • 14

    Introduo

    Este trabalho, no princpio, estava previsto para ser um desdobramento da

    dissertao de mestrado, na qual desenvolvi um balano acerca do governo Fernando

    Henrique Cardoso e de sua capacidade de fechar o grande ciclo chamado pelo ex-

    presidente de Era Vargas. Dentre as vrias polticas setoriais, a reforma do Estado e,

    especificamente, a reforma administrativa haviam me tomado mais a ateno. O balano

    rendeu a concluso de que vrias das marcas do varguismo persistiram, algumas na

    forma de problema para a administrao pblica federal.

    No doutoramento, pretendia simplesmente verificar a eventual capacidade que

    aquela reforma empreendida pelo Ministrio da Administrao Federal e Reforma do

    Estado (MARE) teria de se perpetuar numa gesto petista em muito comprometida com

    novos ideais e procedimentos. Durante a pesquisa, um sem-nmero de analistas se

    debruava sobre as aes do governo para interpret-lo, sempre motivados pela

    inquietao a respeito das novidades trazidas por um governo cujo ineditismo da origem

    poltica animava as especulaes. As concluses preliminares da pesquisa se

    aproximavam de uma parte minoritria das anlises publicadas em vrios veculos

    miditicos, e ainda, uma parte residual se ocupava particularmente da questo

    administrativa.

    Havia ento uma interrogao a ser respondida: teria havido acomodao e em que

    nvel? O fato de as reformas do Estado e administrativa terem entrado com tanta fora

    na segunda metade dos anos 1990 e, na seqncia, terem mergulhado no ostracismo,

    inclusive na gesto recente do Executivo Federal, apresentava-se como uma pista. O

    silncio da mdia, do partido do governo e de vrios intelectuais sobre o legado do

    MARE poderia insinuar a acomodao passiva do instrumental inaugurado sob a

    direo de Bresser-Pereira.

    Se houvesse acomodao, ela teria ocorrido nas costas dos grandes carros-chefe

    do governo a poltica macroeconmica, a reforma previdenciria e o fome zero. Ao

    consultar os arquivos de jornais na internet foi possvel constatar a abundante ocorrncia

    dos termos reforma do Estado e reforma administrativa na mdia, que mostra picos

  • 15

    at 1998 e sua tendncia decrescente at os dias de hoje1. As pistas indicavam a

    manuteno do modelo anterior e reverberavam uma das interpretaes mais recorrentes

    acerca da natureza continuista do governo Lula. Na verdade tais interpretaes tinham,

    normalmente, a questo macroeconmica como mote.

    Vieram de todos os lados as anlises nessa linha. Simbolicamente relevante a

    manifestao do ex-ocupante da cadeira presidencial. Ao ser entrevistado por uma rdio

    gacha, em 2005, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso2 afirmou no ver

    nenhuma mudana estrutural distintiva entre o seu governo e o de Luis Incio Lula da

    Silva. Fundamentalmente porque Lula teria mantido a poltica econmica que, na viso

    do socilogo paulista, estava no caminho certo. Este posicionamento se soma a um sem

    nmero de outros que, desde 2002, antes mesmo da posse, tentaram interpretar o

    governo Lula a partir do dilema continuidade-descontinuidade. Balanos de polticas

    setoriais, anlises sobre as polticas macroeconmicas, leituras sobre a composio dos

    ministrios e autarquias instrumentalizaram as interpretaes.

    Intelectuais como Ricardo Antunes (2007), Leda Paulani e Reinaldo Gonalves3

    foram alm e diagnosticaram que o governo empossado em 2003 no s representa

    continuidade, como aprofunda e consolida o neoliberalismo no Brasil, produzindo uma

    verso provavelmente mais radical do que a tucana.

    Houve tambm aquelas anlises que apostam em diferenas notveis entre as

    gestes em comparao. Boito Jr. (2005) reconhece mudanas na poltica econmica e

    na poltica social, embora no admita que elas tragam transformaes substantivas

    vida da populao trabalhadora e s condies de dependncia do pas. Pelo contrrio,

    elas tendem a dar sobre-flego ao modelo vigente de capitalismo.

    Paul Singer (2007), Sallum Jr. & Kugelmas (2004) apostam num grau de mudana

    relativo que impede a anlise de apontar resolutamente que o governo Lula seja uma

    coisa ou outra. A palavra-sntese esquizofrenia. Sem sntese possvel, perdido num

    emaranhado de polticas dissonantes e inconciliveis, o governo pode tanto ser chamado

    de direita como de esquerda para o Secretrio da Economia Solidria.

    1 Para esta afirmao se pesquisou o Jornal Folha de So Paulo, constatando que a expresso reforma administrativa ocorreu 1105 vezes em 1997 e apenas 79 em 2005. 2 FHC diz: No vejo nenhuma inovao de base estrutural. O Globo, Rio de Janeiro, 13 abr. 2007. Disponvel em: . Acesso em: 24 abr. 2007. 3 POLTICA econmica impede investimentos sociais. Jornal do MST. So Paulo, 9 jan. 2006. Disponvel em: . Acesso em: 11 nov. 2007.

  • 16

    Por fim, encontramos tambm perspectivas mais otimistas e confiantes de que no

    primeiro mandato e tambm no segundo, assistimos a uma ruptura lenta e gradual com o

    modelo neoliberal. Em virtude de inmeras dificuldades legadas pelo referido modelo, a

    transio no consegue ganhar velocidade, mas visvel. Assim se posicionam o PT, o

    PSB, pela voz de seu vice-presidente Roberto Amaral (2007), e o PC do B, todos na

    base de sustentao do governo.

    Essa diversidade de posies, no obstante digladiando a partir de critrios

    mltiplos ou de mltiplas polticas setoriais, no abordava a questo administrativa.

    Com exceo de escolas especializadas em administrao pblica (a exemplo da

    ENAP), normalmente os analistas negligenciavam o legado do MARE. Em boa medida,

    esse foi um importante estmulo para o desenvolvimento desta pesquisa.

    Outro importante estmulo estava vinculado ao que objetivavam as interpretaes.

    As anlises, regularmente, limitavam-se ao dilema continuidade-descontinuidade, sem

    se preocuparem em explicar as razes para que tal cenrio se expusesse. Isto , se o

    atual governo rompe, reproduz, aprofunda ou se perdeu em relao agenda de

    reformas dos anos 1990, chamada de agenda neoliberal, podemos associar causalmente

    esse fenmeno a o qu? O que se podia ler com alguma freqncia apontava para a

    traio de classe como motivao principal para a manuteno ou aprofundamento da

    lgica anterior. Esse um argumento que tem muito impacto nos boletins sindicais, mas

    exige um grande esforo para se sustentar cientificamente, sobretudo porque ignora a

    histria e aborda a suposta mudana de postura do Partido dos Trabalhadores como algo

    repentino.

    Em sntese, havia uma lacuna: carecamos de uma anlise sobre o tratamento dado

    pelo governo Lula ao legado do MARE. Na mesma medida conhecer as possveis

    causas para o esse tratamento. Para colaborar com a resoluo de tal lacuna, a pesquisa

    foi desenvolvida. Primeiramente resolveu-se por delimitar o objeto de pesquisa ao

    primeiro mandato do Governo Lula. Os prazos do doutorado e as mudanas nas

    caractersticas das gestes trariam enormes problemas para a concluso esperada. Ento,

    tratava-se de abordar uma poltica setorial (administrativa) do governo federal entre os

    anos 2003-2006 em perspectiva comparada em relao primeiro mandato de Fernando

    Henrique Cardoso.

    Para tanto foram estabelecidas as fontes de consulta que substanciariam os

    argumentos. Utilizou-se de fontes diversas. Foram necessrias consultas aos

    documentos oficiais dos governos Fernando Henrique e Lula e do Legislativo Federal.

  • 17

    Assim como se recorreu aos originrios dos partidos polticos como o PSDB e o PT, e

    no caso do ltimo, at mesmo aos trabalhos produzidos por sua assessoria de bancada

    na Cmara dos Deputados Federais. Foram consultadas tambm fontes bibliogrficas

    concernentes temtica e enorme quantidade de artigos de jornais impressos ou

    eletrnicos que colaborava com os detalhes e o calor das aes polticas. Fez-se uso

    tambm de uma entrevista do ento secretrio-adjunto da Secretaria de Gesto

    vinculada ao Ministrio do Planejamento, Oramento e Gesto, Alexandre Kalil Pires.

    Por fim, recursos pouco usuais como emails de importantes personagens do enredo

    completam as fontes de consulta.

    Posteriormente foram estabelecidos dois objetivos que contemplem lacuna

    percebida:

    a) O primeiro diz respeito avaliao do tratamento dado pelo governo Luis

    Incio Lula da Silva, principalmente em seu primeiro mandato, agenda

    dos anos 1990, em particular questo administrativa. Pretende-se avaliar

    o que se preservou daquele quadro de transformaes trazido pela

    Emenda Constitucional n 19/98 e as leis complementares e decretos,

    pelos novos procedimentos e pela orientao geral da reforma.

    b) Posteriormente, buscar as provveis causas para tal comportamento. Ou

    seja, resultando o reconhecimento de que parte, tudo ou nada da reforma

    administrativa do MARE foi mantido, ser necessrio investigar porque o

    governo procedeu de tal forma.

    Para responder o mais adequadamente possvel a esses dois objetivos, organiza-se

    o texto em trs partes. Na primeira parte, apresenta-se a emergncia e a consolidao de

    um modelo neoliberal de gesto no Brasil. O captulo inaugural destaca o terreno sob o

    qual as reformas neoliberais, em especial a administrativa, se desenvolvem. As

    condies para a sua manifestao esto ligadas diretamente ao processo de

    reestruturao produtiva, crise do modelo fordista-keynesiano na Europa e

    globalizao. Um conjunto de transformaes econmicas, polticas, sociais e culturais

    se encarregaram de preparar o ambiente para que os setores neoconservadores e suas

    polticas ocupassem o lugar do welfare state europeu ou do nacional-

    desenvolvimentismo latino-americano.

    Tais transformaes requeriam uma nova administrao pblica compatvel com a

    desregulamentao dos mercados, com as privatizaes e com uma atuao cada vez

    mais tmida do Estado. Inspirada nos procedimentos e princpios oriundos da gesto

  • 18

    privada das grandes empresas, emerge a Nova Administrao Pblica (NAP). Ela ser a

    guia para os reformadores neoliberais modernizarem suas administraes. A partir dela,

    a mquina pblica ser posta a servio da estabilidade econmica, com inestimvel

    ajuda na realizao do ajuste fiscal. Bem como, se definir o controle por resultados, se

    desenvolver a descentralizao e desconcentrao das atividades estatais. Se

    formalizaro contratos de gesto com Organizaes No Governamentais (ONGs) e

    Agncias Executivas, as terceirizaes e a concorrncia administrada.

    Ainda na primeira parte, o segundo captulo procurar analisar como a

    transformao na gesto pblica atingiu o Brasil. Durante o primeiro mandato de

    Fernando Henrique Cardoso foi criado o MARE que se responsabilizar por empreender

    a reforma gerencial. A incorporao dos procedimentos modernizadores da NAP teve

    relativo sucesso, seja para o ajuste fiscal, seja por criar novas figuras jurdicas, ou, por

    fim, por assentar novos padres ideolgicos de conduo da poltica administrativa. Ao

    final, disporemos de um panorama amplo daquilo que se chama de agenda dos anos

    1990 para a administrao pblica, sabendo qual o legado com que se defrontar a

    gesto petista.

    Na segunda parte do trabalho, se proceder por dois movimentos consecutivos.

    Primeiramente, no captulo 3 se far o balano da recepo pelo Partido dos

    Trabalhadores e pelo governo Lula, em seus documentos, dos princpios da NAP.

    Poder-se- perceber que mesmo antes do governo ser empossado, documentos do PT j

    apontavam para uma assimilao de parte da agenda da dcada passada. No que tange

    particularmente questo administrativa, j havia por parte de intelectuais relevantes

    para a construo dos programas de governo o caso do ex-prefeito de Santo Andr,

    Celso Daniel enorme simpatia pelas ferramentas surgidas na reforma do MARE.

    Todavia, ser igualmente possvel reconhecer que a assimilao no era absoluta e que

    muita crtica se avolumava desde os primeiros momentos em que o MARE inaugurou

    todo o processo. notvel a coleo de pareceres tcnicos assinados pela assessoria de

    bancada revelando a natureza da reforma, tanto quanto a posio crtica do programa

    governamental de 2003 chamado Gesto Pblica de um Brasil para Todos, que

    pretendia corrigir a rota aberta por Bresser-Pereira no sentido de revitalizar e reforar o

    Estado brasileiro.

    Mas no se trata exclusivamente de um conflito de documentos. No captulo 4 se

    perceber que as polticas do governo foram igualmente conflitantes na medida em que

    faziam conviver os princpios e polticas da NAP com polticas administrativas no

  • 19

    alinhadas ao iderio liberal e conservador. Aqui destacam-se a retomada dos concursos

    pblicos, a reviso das terceirizaes, a politizao das agncias reguladoras, a

    paralisao das privatizaes, etc. As polticas ora recuam na reduo do tamanho do

    Estado, ora jogam contra a construo do ajuste fiscal. A crtica originria dos setores

    mais comprometidos com a NAP apareceu no Congresso Nacional e comprova o

    conflito.

    Desse modo, esse trabalho se sintoniza com as interpretaes que visualizam no

    governo Lula uma confuso ou uma esquizofrenia em sua conduo. Nada que

    apague ou esconda o interesse dominante em suas entranhas, claramente continuista e

    neoliberal. Mas que, ao mesmo tempo, impossibilita uma leitura uniforme sobre esse

    interesse, como se ele fosse tambm unssono. Na perspectiva que se construiu durante

    a pesquisa, esse governo pode ser reconhecido como atravessado por conflitos no

    resolvidos, no coordenados, tolerados ou estimulados. No nem meramente

    neoliberal, nem aprofundou o neoliberalismo no pas. mais. confuso, ambguo,

    vacilante e perdido, visto que no aponta para o futuro com uma sada. Apesar de no

    ser possvel encontrar nenhum governo cuja gesto no seja contaminada por algum

    grau de conflito, acredito ser o governo Lula especial, pois os conflitos se apresentavam

    com natureza, volume e administrao inditos. Na ausncia de uma centralizao que

    aparasse as arestas, os conflitos operavam e manifestavam os interesses de grupos

    antagnicos socialmente. Essa marca o ncleo duro do governo no tentou apagar.

    Contudo, a caracterizao de tais conflitos carece de uma explicao acerca de suas

    causas.

    Tais causas sero buscadas na Terceira Parte e num lugar que usualmente no se

    vasculha: a face interna dos partidos polticos. A procura tambm poderia ocorrer nas

    condies especiais oferecidas pela conjuntura internacional e nacional. Afinal a

    reestruturao produtiva, a queda do bloco socialista e a crise do sindicalismo jogam

    muita luz sobre as transformaes ocorridas recentemente nos partidos de esquerda.

    Mas, creio que a origem e a natureza do PT sejam esclarecedoras do tipo de conduta

    ambgua que se percebe no governo Lula. por isso que procuro explorar quatro

    hipteses explicativas extradas do surgimento ou da trajetria do PT, divididas em mais

    quatro captulos.

    No Captulo 5 tentar se provar que o PT deslizou politicamente para o centro.

    Desde sua fundao, em 02 de fevereiro de 1980, suas bandeiras histricas foram

  • 20

    gradativamente substitudas e, medida que isso ocorria, o partido aderia na mesma

    velocidade a pontos da agenda dos anos 1990 ou atenuava a crtica a eles.

    No Sexto Captulo, se ver que o governo Lula se omitiu, permitiu, tolerou ou

    incentivou a permanncia de grupos antagnicos em seu interior, em parte trazendo para

    a gesto algumas bandeiras histricas, em parte reproduzindo o iderio anterior. Sua

    ampla e diversa coalizo reflete a forma com que o prprio PT tratava a diversidade no

    partido e tambm o deslizamento ao centro. Assim, polticas ambguas poderiam ser

    vistas num mesmo governo ou at numa mesma pasta, sem que isso representasse

    instabilidade e crise.

    Por outro lado, no Captulo 7, se ver reveladora a ausncia de um projeto de

    sociedade que orientasse o partido. Apesar da intensa discusso no PT para a construo

    do socialismo e da democracia, constituindo peas-chave na definio do horizonte

    almejado, o longo prazo petista sempre esteve nublado e impreciso, sem definies

    capazes de assegurar aos programas de governo a condio de passo fundamental para

    um objetivo maior. Na ausncia de um projeto de sociedade, o partido se submeter

    dura tarefa de administrar as contingncias, apagar os incndios do curto prazo, se

    render ao pragmatismo, sempre se adaptando conjuntura. Nesses termos, preservar

    parte do instrumental anterior passa a ser necessrio para quem no tem com o que

    substitu-lo.

    E, por fim, no Captulo 8, debita-se a uma marca de origem do PT parte da

    responsabilidade por constituir um governo ambguo. Trata-se da recorrente postura de

    apologia sociedade civil, seus valores, sua prtica, enfim suas virtudes, que impediu o

    partido de, primeiro, abordar o Estado brasileiro como objeto de estudo, e, segundo, e

    mais importante, de consider-lo como parte da soluo de qualquer grupo que possua

    aspiraes de governo. A opo pelo fortalecimento da prtica sindical e dos

    movimentos sociais em detrimento das coisas do Estado aproximou o PT de uma

    perspectiva liberal, simptica ao voluntria dos novos personagens sociais (o novo

    sindicalismo e novos movimentos sociais). Esse era o canal aberto para outra

    aproximao, a referente aos princpios de autonomia e desregulamentao propostos

    pela NAP. A essa apologia s organizaes sociais denomina-se, no presente estudo,

    sociolatria.

    Portanto, a conjuno dessas quatro possibilidades explicativas, relacionadas

    como complementares, consecutivas ou autnomas, nos permitir visualizar as razes

    que levaram o governo Lula a se comportar de maneira to ambgua em relao ao

  • 21

    legado do MARE. A inteno colaborar com o esforo que se empreende at hoje de

    se caracterizar o governo como um todo, no s nas fronteiras da administrao pblica.

    Espera-se, com efeito, que esse trabalho possa se somar a outros no esforo

    interpretativo do governo petista e, quem sabe, no esforo coletivo da esquerda

    brasileira de realizar um balano sobre sua existncia recente, a fim de que seus

    gargalos possam ser pensados e superados. Repensar a esquerda, os partidos polticos, o

    Estado Brasileiro, a fim de reunir os instrumentos necessrios para sanar alguns dos

    dficits sociais com os quais convivemos h tempos.

  • 22

    1 Parte A emergncia e a consolidao do modelo

  • 23

    Captulo 1 A reestruturao produtiva e suas transformaes

    O desenvolvimento do trabalho requer, antes de tudo, uma abordagem acerca das

    transformaes recentes e que se convencionou chamar de reestruturao produtiva. Ela

    nos ilustrar o novo perfil da produo mundial e seus impactos na vida extra-fbrica.

    Espera-se demonstrar a necessidade de uma contextualizao para a compreenso dos

    movimentos do governo e das hipteses que iro ser desenvolvidas, sem perder de vista

    a dialtica do processo, afinal a hegemonia vem da fbrica e, para ser exercida, s

    necessita de uma quantidade mnima de profissionais da poltica e da ideologia

    (GRAMSCI, 1991, p. 381-382). Ento se na Amrica, a racionalizao determinou a

    elaborao de um novo tipo humano conforme ao novo tipo de trabalhador e produo

    (GRAMSCI, 1991, p. 382), igualmente provvel que as transformaes recentes no

    espao fabril tenham colaborado para a constituio de um novo tipo de trabalhador, de

    sindicalista e de governante. possvel que uma nova ideologia tenha emergido para

    reorientar programas de governo e tticas sindicais, coalizes e alianas. E, portanto,

    devem jogar luz sobre as condutas de um governo capitaneado por partidos de esquerda,

    sobretudo, de uma jovem esquerda nascida juntamente no instante em que o novo

    estgio das relaes de produo se consolidava.

    Interessa, a partir daqui, caracterizar quais foram as transformaes, qual o novo

    modelo de Estado que se constituiu e que padro hegemnico de administrao pblica

    se requereu para ele. Ver-se- tambm, como o novo modelo de gesto se instala no

    Brasil.

  • 24

    Os trinta anos de ouro

    O capitalismo alcanou ndices econmicos inditos durante o intervalo que vai do

    final da Segunda Guerra at a dcada de 1970. O produto interno bruto (PIB), ou seu

    valor per capta, os nveis salariais e os de renda familiar alcanaram patamares to

    elevados que parte dos economistas que se debrua sobre o perodo costuma apelid-lo

    de trinta anos de ouro ou os trinta gloriosos. Os nmeros so mais expressivos no

    centro capitalista do que na periferia, como comprova Harvey (2000). H excees,

    como o caso brasileiro no intervalo 1968-1973 que imps nmeros de crescimento

    imbatveis ao resto do mundo. De toda forma, nos pases de capitalismo avanado,

    pode-se associar tal desempenho a um frtil casamento: de um lado um modelo de

    acumulao fordista, de outro, a ao de polticas keynesianas e social-democrticas.

    Trata-se de uma importante relao de complementariedade, em certo aspecto, que

    possibilitava compatibilizar a produo em massa com um consumo igualmente

    massivo.

    O fordismo pode ser entendido como um modelo de acumulao que impulsionou

    a racionalizao e a especializao da produo. A esteira produtiva aprofundou a

    separao entre a concepo e a execuo, alm de simplificar o gestual do trabalho.

    Entretanto as transformaes mais significativas podem ser vistas no naquilo que herda

    do Taylorismo e que ocorre no interior da fbrica, mas na sua preocupao com a vazo

    da volumosa produo. Elevaes salariais combinadas com redues da jornada

    anunciariam as novas exigncias feitas pela linha de montagem. Apesar do esforo

    fordista, as iniciativas microeconmicas de conteno da crise de superproduo no

    surtem o efeito desejado.

    O fordismo exigia uma nova forma de reproduo da fora de trabalho, novas

    modalidades de controle dos trabalhadores, nova esttica, etc.(HARVEY, 2000), e os

    trinta anos de ouro, com participao do keynesianismo, forneceram as condies para

    produzi-las. Como percebia Gramsci (1991), o fordismo exigia um novo homem.

    O Estado keynesiano responderia positivamente a algumas dessas demandas. O

    reconhecimento de que o gasto um elemento fundamental da sade econmica do

    capitalismo, levou vrios governos europeus a injetarem, na infra-estrutura ou na

    cobertura de servios coletivos, somas considerveis de dinheiro. Por seu turno, o gasto

    com infra-estrutura aplaina o terreno para o investimento privado e ao ser realizado se

  • 25

    transformar em produo num futuro prximo. As encomendas governamentais de

    construo de redes de transporte, comunicao e energia ativam, em cadeia, um sem-

    nmero de negcios, disparando um ciclo de gastos. J a prestao de servios coletivos

    em regime universal contribui para a distribuio de salrios indiretos e a elevao dos

    poderes de compra, igualmente ativadores do gasto.

    O novo homem fordista , em parte, imerso em tenses nacionais, sindicais,

    classistas e partidrias de seu tempo, assim como fiel aos valores duelantes nessas

    tenses. Como se pode v-lo reproduzindo relaes estveis, rotineiras e previsveis,

    parece prximo ao tipo ideal de burocrata weberiano. E ainda beneficirio de um

    incremento nos rendimentos familiares e das razoveis estabilidades dos compromissos

    sindicais, corporativos e estatais.

    A manuteno desse estado de coisas pressupe limites austeros produtividade e

    lucratividade empresarial, bem como produz presses constantes sobre a situao

    fiscal dos Estados. Associados intensificao das lutas sociais nos anos 1960, ao

    esgotamento do padro fordista/taylorista que se tornou incapaz de responder retrao

    do consumo (ANTUNES, 1999) e crise econmica dos anos 1970, temos os

    ingredientes para transformaes significativas na forma de produzir a vida social. O

    universo corporativo esperava uma resposta para a ascendente sindical, os lucros

    decrescentes e uma produtividade reduzida. A experincia japonesa carrega parte das

    solues para situaes semelhantes embora em outro contexto.

  • 26

    A reestruturao produtiva

    Eurenice de Oliveira (2004) nos mostra que o Japo ps-Segunda Guerra,

    sofrendo ainda a ocupao dos EUA, sem reservas energticas e minerais, e com um

    sindicalismo razoavelmente organizado, reestruturou sua produo combinando

    procedimentos fordistas com padres culturais nipnicos para gerar o toyotismo. Sem os

    mesmos mercados disponveis ao fordismo, a Toyota solucionou o impasse sobre a

    produtividade reduzindo o volume de fora de trabalho contratada. O prprio Taiichi

    Ohno, principal engenheiro da empresa automobilstica, reconhecia que

    H duas maneiras de aumentar a produtividade: uma pelo aumento constante das quantidades produzidas, a outra pela diminuio constante dos trabalhadores. A Toyota escolheu a segunda, que menos popular, mas que significa repensar em todos os seus detalhes a organizao do trabalho. (OHNO, 1997 apud Oliveira, E., 2004, p. 23).

    A opo por uma fbrica enxuta contrasta com os modelos produtivos anteriores

    que alm de ocuparem massas trabalhadoras em grandes plantas industriais, geravam

    desemprego automaticamente quando substituam trabalho vivo por trabalho morto, no

    interior do processo de inovao. Assim, o fordismo realizava, como subproduto no

    intencional, o desemprego. Desta vez, a poupana de mo-de-obra uma escolha

    corporativa. Tomada como ponto de partida, a fbrica enxuta dever compatibilizar a

    produo, a gerncia e o trabalho ao quadro reduzido de trabalhadores.

    Empurrada para o mercado externo, a Toyota se ver diante de uma variedade de

    pases consumidores singulares em suas tradies e costumes, da mesma forma que o

    mundo empresarial - a partir da dcada de 1970 - ver seu mercado consumidor

    estilhaado em mltiplas identidades. Nesse sentido, tanto a Toyota dos anos 50, quanto

    as grandes empresas dos anos 70 e 80, iro se defrontar com a necessidade de orientar

    sua produo para a diversidade, produzindo por lotes e nichos de mercado. A

    orientao pela demanda exige da fbrica uma monitoria constante das oscilaes da

    preferncia do consumidor, abrindo um canal de dilogo entre quem compra e quem

    vende (recalls, Servio de Atendimento ao Cliente, etc.) para que a fidelidade marca

    no se perca. O foco o consumidor.

    O atendimento das demandas particulares (no tempo e no espao) requer da

    empresa uma organizao da produo com o objetivo de convergir todas as atividades

  • 27

    e reduzir os hiatos gestuais. Para tanto se implementou o just in time. Prescrevendo o

    estoque-zero, esse programa reduz o tempo de giro das mercadorias no interior da

    produo e acelera a produo. Tempo de giro da produo menor exige uma reduo

    no tempo de giro do consumo, isto , a durabilidade do bem deve ser reduzida para que

    sua substituio rpida seja realizada. Nestas condies veremos ser alterada a

    constituio dos produtos (pensados com uma vida til cada vez menor) e elevado o

    consumismo. A rigor, substitui-se a esttica moderna de alguma forma ancorada na

    durabilidade, por uma esttica nova, refm de uma relao tempo-espao comprimida

    que aponta para relaes cada vez mais efmeras (HARVEY, 2000). Apesar de termos

    acelerado parte das relaes humanas, isso no representa um reforo da obsesso com

    o tempo nos idos do taylorismo-fordismo.

    Neste novo modelo, a produo pode e deve ser interrompida sempre que houver a

    necessidade de se trocar o lote produzido ou que erros sejam percebidos. Tem-se a

    novidade de que o controle de qualidade pode ser feito durante todo o processo e no

    mais exclusivamente no final. Somente fiscais onipresentes seriam capazes de

    acompanhar cada momento da produo para notificar seus erros. Mas a Toyota

    resolveu a carncia por uma fiscalizao de tempo integral com poucos funcionrios,

    criando os CCQs (Crculos de Controle de Qualidade) e os programas de Qualidade

    Total, capazes de envolver o prprio trabalhador na atividade fiscalizadora.

    Percebe-se que o homem-boi taylorista (RAGO & MOREIRA, 1995), reduzido a

    uma nica tarefa, foi substitudo por um operrio multifuncional estimulado a operar,

    fiscalizar a qualidade e verificar erros. Na verdade suas obrigaes no param por ai. A

    operao de mquinas tambm mltipla, tal como ocorre nas fbricas dirigidas por

    Ohno (OLIVEIRA, E., 2004). E o comprometimento com novas idias e proposies

    reaproxima o esforo braal do intelectual, fazendo com que o trabalhador abrace

    funes de chefias mais simples e voltadas resoluo de pequenos problemas.

    A multifuncionalidade, por conseqncia, traz inmeras exigncias para o

    universo do trabalho. Inicialmente, por significar maior intensidade de trabalho ela

    transforma o ambiente fabril num espao que conjuga mquinas e ferramentas de lazer e

    relaxamento, trazendo a psicologia para transformar tenses pessoais em motivao

    laborais. Diferentemente do fordismo, que garantia a auto-coao do trabalhador atravs

    de elevados salrios, na reestruturao produtiva a motivao ocorre em outra

    dimenso.

  • 28

    Desse modo, h um imenso esforo para suavizar o espao produtivo, mas a

    contra-partida em produtividade no mascarada. No por acaso se agrega

    reestruturao produtiva o termo management by stress, que implica apelos extremados

    pelo rendimento, resultando, em alguns casos, em morte sbita ocasionada por excesso

    de trabalho, tratada pelo termo japons karoshi. Noutra dimenso, a multifuncionalidade

    contamina o universo externo fbrica quando amarra cada trabalhador em suas horas

    de lazer a processos de capacitao e multiespecializao. Novas instituies e modelos

    educacionais, atividades de tempo livre e novos valores respondem positivamente a

    essas demandas corporativas.

    H, na reestruturao produtiva, outras formas para colaborar na ampliao da

    produtividade e na reduo dos custos. Uma delas a terceirizao. Seu impacto direto

    o da reduo da planta fabril e da horizontalizao da produo em esquema de

    empresa-rede. Em decorrncia disto, aquilo que se chamava de proletariado foi

    fragmentado em pequenos grupos normalmente carentes de algum grau de solidariedade

    social que oriente uma luta nica. De forma que a fora de trabalho divide-se em

    trabalhadores internos e externos, estes ligados s empresas terceirizadas, que

    ocasionalmente prestam servios para a empresa principal. H tambm os trabalhadores

    em tempo parcial [...] (OLIVEIRA, E., 2004, p. 37-38).

    Na obra de Bihr, a fragmentao da classe tambm percebida, no entanto

    pensada em trs grupos distintos, so eles:

    1. os proletrios estveis e com garantias (que so, progressivamente, em menor nmero, com razovel ou alta qualificao, que so menos atingidos na deteriorao da remunerao da sua fora de trabalho e que, por fim, tendem a uma ao sindical mais corporativa no sentido gramsciano de econmico-corporativo); 2. os proletrios excludos do trabalho e at do mercado de trabalho especificamente ( que vivem longos perodos, s vezes permanentemente, alijados da possibilidade de vender sua fora de trabalho, dependem da seguridade social, fortes candidatos ao mergulho na pobreza e na misria); 3. os proletrios das empresas que operam por subcontratao (terceirizao) e por encomenda (trabalho precarizado em pequenas e mdias empresas, trabalhadores em tempo parcial, temporrios, estagirios, trabalhadores da economia subterrnea, que tentam escapar do desemprego trabalhando clandestinamente); (BIHR, A., 1998, p. 83-87)

    A diviso proposta por Bihr parece acertada, mas ela carrega consigo uma outra

    ordem de diviso quando se observa especificamente o terceiro ponto. Nele h uma

    gama de fragmentos agregados sob a bandeira da terceirizao, mas que igualmente

  • 29

    teriam dificuldade, entre si, de encontrar elementos solidrios para a unificao de uma

    luta.

    Harvey (2000) nos lembra que a terceirizao e a fragmentao do proletariado

    revelam uma transformao corporativa importante. Se de um lado a acumulao

    flexvel levou falncia tradicionais grupos empresariais, provocando grandes fuses e,

    portanto, um incremento em oligopolizao, por outro fez renascer os pequenos

    negcios familiares e artesanais. Eles esto localizados na base da pirmide produtiva

    cujos blocos so presos pela terceirizao. Para cada empresa-rede h uma srie de

    intermedirias (terceiras) que se interconectam em atividades complementares, cujas

    ramificaes mais capilares so representadas pelas produes familiares. Nestas as

    relaes de trabalho tendem a ser mais precrias e a possibilidade de associao

    classista mais difcil.

    Em sntese, a reestruturao produtiva ou acumulao flexvel, se apia

    Na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padres de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produo inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de servios financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovao comercial, tecnolgica e organizacional. A acumulao flexvel envolve rpidas mudanas dos padres do desenvolvimento desigual, tanto entre os setores como entre regies geogrficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego do chamado setor de servios, bem como conjuntos industriais completamente novos em regies at ento subdesenvolvidas (..). Ela envolve tambm um movimento [...] de compresso do espao-tempo (..). Esses poderes aumentados de flexibilidade e mobilidade permitem que os empregadores exeram presses ainda mais fortes de controle do trabalho, [...] o trabalho organizado foi solapado, [...] [implicando] [...] nveis relativamente altos de desemprego estrutural (em oposio a friccional), rpida destruio e reconstruo de habilidades, ganhos modestos (quando h) de salrios reais [...] e o retrocesso do poder sindical [...]. (HARVEY, 2000, p. 140-141).

    Aps essa caracterizao, e retomando a afirmao de Gramsci j mencionada

    nesse texto, segundo a qual o fordismo implicava um novo homem, poder-se-ia

    perguntar: qual o homem resultante da reestruturao produtiva? Quais so as novas

    condies para se reproduzir a vida social ou, mas especificamente, quais so as novas

    condies de reproduo da fora de trabalho? As respostas exigiriam uma abordagem

    ampla o suficiente para extrapolar os limites desse trabalho por se tratar de uma

    investigao da mudana cultural concernente reestruturao produtiva. Mas

    apontamentos sobre um cenrio sinttico so possveis como so desejveis e permitiro

  • 30

    pensar as aes recentes de partidos polticos e governos, fundamentalmente aqueles

    ligados esquerda e que se comprometeram em algum nvel com as transformaes e

    conservaes da gesto.

    As transformaes observadas at ento do conta de um momento corporativo,

    mas que para se efetivarem carecem de seu desdobramento em um momento tico-

    poltico e em projeto de classe. Sendo assim,

    Nesse processo no esto em jogo apenas os novos padres e as novas formas de domnio no campo econmico, necessrios reestruturao do capital, mas tambm a necessidade de socializao de novos valores e novas regras de comportamento, para atender tanto a esfera da produo como a da reproduo social (SIMIONATTO, 1998, p. 49).

    O desdobramento superestrutural fecunda a sociedade civil e a sociedade poltica

    inaugurando novos padres relacionais, novas concepes e novos compromissos. A

    novidade aparece com razovel sintonia e sinergia nas mais distintas dimenses da vida

    social. Algumas dessas dimenses sero tratadas a seguir como forma de esboar um

    possvel novo homem da reestruturao produtiva. Ao que tudo indica, as

    transformaes carregam em si componentes fragmentadores e degeneradores tpicos de

    uma crise, referidos por vrios autores como sendo marcadores de um tempo de

    horrores econmicos e polticos (FORRESTER, 1997; GNREUX, 2000).

  • 31

    A reestruturao produtiva e suas transformaes

    A reestruturao produtiva um fenmeno que no pode ser concebido como

    universal ou homogneo (HARVEY, 2000), dadas as resistncias particulares

    encontradas em cada espao, bem como o grau de insero de cada pas na crise do

    modelo fordista-keynesiano. De qualquer forma, as transformaes heterogneas no

    centro capitalista e em boa parte da periferia impem sociedade civil e sociedade

    poltica a necessidade de responderem, em suas condies de relativa autonomia em

    relao estrutura, s novidades do mundo corporativo. As respostas no so meras

    reaes automticas, fiis em natureza e fora em relao ao estmulo condicionante.

    Mas elas so capazes de condicionar, promovendo um dilogo criador entre a estrutura e

    a superestrutura.

    Assim possvel pensar que as novas configuraes da sociedade civil e do Estado

    (strictu sensu) tm uma ntima relao com o que se processou nas fbricas (no mundo

    do trabalho, na financeirizao do capital produtivo e na diviso internacional do

    trabalho) nos ltimos trinta anos. Valores e polticas pblicas, arranjados em razovel

    sintonia denunciam o cumprimento de papis formadores de uma renovada direo

    intelectual e moral. O alinhamento do individualismo extremado com as manifestaes

    de exaltao do privado e negao do pblico so claras evidncias de que um consenso

    se ergueu e produz um novo homem. Vejamos algumas das marcas deste consenso,

    primeiramente na sociedade civil e, posteriormente no Estado.

    As transformaes na sociedade civil

    Antes de tudo, pertinente partir da condio dos trabalhadores estveis,

    informais, de tempo parcial, precrios, cooperados etc. que estrearam as recentes

    instabilidades responsveis por impactos negativos nas condies de sobrevivncia.

    Foram obrigados a procurar outras formas de sustento ou outras habilidades sem que

    nenhuma delas significasse algum acerto a priori. Disposto a retalhar sua semana em

    jornadas parciais e em empregos parciais ou subempregos, o trabalhador mergulha num

  • 32

    ambiente em que o risco est sempre presente e as apostas corajosas so requeridas com

    cada vez mais constncia. Cada um que desempenha tarefas semelhantes as suas

    representa um concorrente ou adversrio, dificilmente um companheiro. A identidade de

    classe nunca foi, como saudosos do fordismo podem crer, automtica ou imediata. Os

    processos de estranhamento que sempre marcaram a produo capitalista. Todavia, a

    novidade o estabelecimento de uma concorrncia cida entre trabalhadores por postos

    de trabalho, geradora de posturas cada vez mais individualistas. Na viso de Harvey se

    trataria de

    Um individualismo muito mais competitivo como valor central numa cultura empreendimentista que penetrou em muitos aspectos da vida. Esse aumento de competio (tanto no mercado de trabalho como entre os empreendimentos) se mostrou, verdade, destrutivo e ruinoso para alguns, mas sem dvida gerou uma exploso de energia que muitos, at na esquerda, comparam favoravelmente com a ortodoxia e a burocracia rgidas do controle estatal e do poder corporativo monopolista. [...] Hoje, o empreendimentismo caracteriza no somente a ao dos negcios, mas os domnios da vida to dispersos quanto a administrao municipal, o aumento da produo do setor informal, a organizao do mercado de trabalho, a rea de pesquisa e desenvolvimento, tendo at chegado aos recantos mais distantes da vida acadmica, literria e artstica (HARVEY, 2000, p. 161)

    O empreendimentismo e sua manifestao especfica, o individualismo, agem

    transformando perspectivas de diferentes setores sociais. As transformaes tm um

    aspecto social combinado com um aspecto pessoal: a corroso do carter, tal como

    percebe Sennett (2000). O novo capitalismo opera sobre as bases da incerteza,

    carregando uma nova dimenso do tempo para o qual no h longo prazo.

    Necessariamente, o curto prazo existindo como nica possibilidade para o

    desenvolvimento de laos e associaes quebra a espinha dorsal da confiana,

    reservando aos indivduos um terreno movedio para assentar seus ps. A bem da

    verdade, as incertezas sempre existiram, todavia sua singularidade contempornea

    emerge de sua capacidade de aderir ao cotidiano sem que nenhuma catstrofe factual,

    uma revoluo ou um desastre histrico se avizinhe. O sentimento vigente o de deriva,

    de instabilidade e de no envolvimento. As responsabilidades e os valores atemporais

    no demonstram tanta vitalidade quanto h meio sculo atrs.

    Desse modo, aquilo que chamvamos de rotina estar sob ataque enquanto as

    efemeridades avanarem. O ataque se manifesta de forma assistemtica atravs das

    transformaes lentas introduzidas pelo novo capitalismo e de forma sistemtica atravs

    das correntes de administrao privada e pblica que apontam sempre para a quebra de

  • 33

    tudo aquilo que se possa conceber como rgido. Seja como for, o flexvel o que se

    demanda para o ser humano do novo capitalismo. Ele poderia ser visto como uma

    possibilidade de realizar de forma mais ampla a liberdade graas fuga da gaiola de

    ferro weberiana, no entanto as formas de controle adquirem uma modelagem flexvel.

    Assim, trabalhar fora do escritrio, em jornadas no fixas, com funes oscilantes e sem

    rotina projeta o controle para fora do ambiente produtivo, atravs das mesmas

    ferramentas de comunicao de que a acumulao flexvel se utiliza para superar num

    sentido dialtico o fordismo.

    Acerca das novas modalidades de controle, Sennett considera que

    Estas, pois, so as foras que dobram as pessoas mudana: reinveno da burocracia, especializao flexvel de produo, concentrao sem centralizao. Na revolta contra a rotina, a aparncia de nova liberdade enganosa. O tempo das instituies e para os indivduos foi libertado da jaula de ferro do passado, mas sujeito a novos controles do alto para baixo. O tempo da flexibilidade o tempo de um novo poder (SENNETT, 2000, p. 69).

    Durante o perodo de hegemonia fordista-keynesiano, os controles apareciam na

    forma de compromissos e estavam normalmente agregados a protees mais ou menos

    amplas. Durante a acumulao flexvel, os controles so menos evidentes, nem por isso

    menos fortes, mas esto desacompanhados de mecanismos de proteo. Isso implica a

    convivncia constante com o risco e a vulnerabilidade. Essa afirmao pode sofrer

    objees que afirmem ser o risco uma marca constante da vida empresarial e, por isso,

    do capitalismo. O investimento, o deslocamento geogrfico, a concorrncia, tudo isso

    envolve grande risco. No entanto, o risco atual salta da vida de empresrios e

    aventureiros para a vida das massas. Expandidos seus limites, o trabalhador empregado,

    precrio ou desempregado est sob constante risco de ser desempregado, de no

    conseguir manter seu oramento domstico, de adoecer sem coberturas da seguridade

    social etc. Por falta de melhor expresso, poder-se-ia dizer que o risco das massas

    parece mais dramtico, afinal sua sobrevivncia imediata que est em jogo.

    O risco se apresenta como uma realidade universal e, a partir da ao dos

    profissionais da poltica e da ideologia, passa a ser assumido como condio desejvel

    para o progresso, para a mudana, para a no acomodao, para o sucesso pessoal no

    trabalho e nos negcios. Ele se incorpora personalidade coletiva e individual, fazendo-

    nos repelir comportamentos, profissionais e classes que demandem a estabilidade.

    Talvez o grande alvo seja o funcionrio pblico. Para esse novo pensamento, na

    ausncia de grandes riscos, a promoo de suas habilidades e o desenvolvimento de

  • 34

    faculdades emperram. Ele, portanto, personifica o avesso do que o novo capitalismo

    deseja construir em termos de ser humano. E as instituies que amparam a estabilidade

    entram como alvos de mesma importncia; ento aquilo que estatal e afasta o risco

    fatalmente ser demonizado por se associar ao privilgio, baixa produtividade, aos

    desvios e estagnao.

    Caminhando na mesma linha, pode-se dizer que a dissipao das relaes estveis

    e de longo prazo estaria minando as bases que sustentam os vnculos sociais da

    modernidade. As geraes recentes vivem o tempo da efemeridade e, por conseqncia,

    desejam com muita impacincia o imediato. Aprioristas ou de curto prazo, as relaes

    sociais contemporneas chocam-se com o planejamento, que compunha o arranjo

    burocrtico de empresas, Estados e outras instituies que operam com hierarquias. Os

    indivduos ficam a deriva, sem o amparo das instituies tradicionais e da prpria lei,

    para buscarem suas sobrevivncias no mercado. Nesses termos, a luta pela vida

    estabelece a competio como uma marca natural dessa poca e condio para o

    progresso pessoal e coletivo. A percepo da efemeridade compartilhada por outros

    trabalhos que detectam que

    A forma de pensar desagregada, fragmentria e particularista no se configura apenas no modo de ser das classes sociais das primeiras dcadas deste sculo. Tais caractersticas tambm marcam a cultura do final do sculo e inscrevem-se no processo mesmo do movimento do capital, portador de novas contradies no interior das classes sociais. A imediaticidade da vida social, o efmero, o descontnuo, as aes individuais e corporativas ressurgem sob novas aparncias. (SIMIONATTO, 1998, p. 51).

    Nota-se que Simionatto v a transcendncia da efemeridade do espao da

    produo, do modo de ser das classes sociais, para a esfera da cultura. Isso possvel, a

    partir dos referenciais utilizados pela autora, num momento em que as condies de

    produo fazem emergir universalmente um contedo tico e poltico. Esse contedo

    ocupar as entranhas da vida social, encaminhando os indivduos a aderir ao imediato e

    buscar resultados a curto prazo, no lugar do planejamento de longo prazo que marcou

    at pouco tempo as polticas estatais e parte do comportamento humano geral. Para o

    caso especfico do Estado, seus procedimentos pblicos requerem tempo para seu

    efetivo exerccio e, portanto, apresentam-se novamente como vtima preferencial dos

    ataques da cultura do novo capitalismo.

    Noutros aspectos da vida social, outras mudanas de mesma orientao esto a

    brotar. No universo da educao, importante para a reproduo da fora de trabalho, a

  • 35

    reestruturao produtiva operou desestabilizando institutos tradicionais. No h escola

    que no matricule com a promessa de uma educao generalista, pronta para preparar

    um sujeito de mltiplas habilidades e para toda a sorte de risco. Nesse sentido, a

    interdisciplinaridade, demanda progressista daqueles que se opunham a uma formao

    especialista, agora aparece, remodelada, nos projetos polticos pedaggicos de vrias

    instituies de ensino. Elevada potncia, ela promete condenar at mesmo a existncia

    de disciplinas, permitindo um trabalho mais temtico e, portanto, mais flexvel. A crtica

    progressista, que a interdisciplinaridade sempre carregou, foi trocada por uma crtica

    genrica capaz, meramente, de habilitar pessoas a trabalhar em equipe, liderar grupos,

    detectar erros, agir criativamente, improvisar e apresentar solues (CATANI et ali,

    2000).

    No que tange aos instrumentos legais e de representao, igualmente importantes

    para o mesmo fim, podemos dizer que a reestruturao produtiva introduziu fortes

    demandas conservadoras pela flexibilizao da legislao trabalhista. Para tanto,

    tradicionais institutos legais de amparo ao trabalho foram substitudas por novos, cuja

    lgica aponta para a reduo da proteo e da cobertura, como pode ser exemplificado

    no caso brasileiro a incorporao de banco de horas como instituto facultativo de

    remunerao das horas extras (KREIN, 2001). De outro lado, a precarizao empurra os

    trabalhadores para o informal e o ilegal. Alm da ampliao do controle sobre o

    trabalho, a insegurana e a ausncia de vnculos laborais oficiais impedem a

    participao em entidades de representao de classe. Conseqentemente, a

    reestruturao produtiva arrasta consigo leis e sindicatos, debilitando destes ltimos a

    resistncia e encaminhando sua perspectiva para a direo da participao e parceria.

    No por outro motivo, algumas centrais sindicais resolvem chamar para si a

    responsabilidade de garantir certa empregabilidade aos seus filiados e a desempregados.

    Numa mostra clara de que a radicalidade das posies pretritas no tem espao num

    mundo da cultura da crise (MOTA, 2000). Assim,

    As formas coletivas de organizao e representao vm, desse modo, sendo erodidas atravs de um progressivo processo de esvaziamento e fragmentao de suas protoformas de luta e de seus referenciais polticos de classe. Tanto a crise do Welfare State quanto o esgotamento do padro fordista-keynesiano, bem como a queda do socialismo real [...] tm atingido diretamente os diferentes institutos representativos das classes trabalhadoras. Despolitiza-se o trabalhador, principalmente atravs do alardeamento da "ideologia do medo", pelo fechamento de inmeros postos de trabalho e pela desmontagem das formas jurdicas de resoluo dos conflitos trabalhistas, fazendo com

  • 36

    que no mais se respeitem garantias e direitos conquistados. Essa fragmentao vai, sorrateiramente, destruindo as possibilidades de construo de uma "vontade coletiva", de um momento "tico-poltico", trilhando o caminho de volta para o que Gramsci denominou de momento "econmico-corporativo". Essa nova hegemonia fragmenta os sujeitos coletivos, quer do ponto de vista material, reflexo da reestruturao produtiva do capital, quer do ponto de vista poltico-cultural, atravs de valores particulares e individuais que desorganizam as classes em relao a si mesmas e as articulam organicamente em relao ao iderio do capital. O "pertencimento" de classe cede lugar ao individualismo e ao "desencantamento utpico" (SIMIONATTO, 1998, p. 58-59).

    Temos aqui um conjunto de caractersticas o risco, o combate rotina, a

    efemeridade, a lgica do curto prazo, o no rgido, o no burocrtico, o no estvel, o

    empreendimentismo e o individualismo que poderiam bastar para uma rpida

    passagem pelo panorama da cultura no novo capitalismo. Para o fim que se reserva a

    presente pesquisa seria importante reconhecer que elas se associam para definir quem

    so os viles e os heris do sculo XXI. Em boa medida, essas caractersticas guardam

    severa crtica ao Estado, sobretudo em virtude dele representar elevado grau de

    antagonismo com o que elas significam. O Estado, suas funes, prticas e funcionrios

    personificam a negao de tudo o que se apresenta acima.

    Diante de todos emerge um pensamento de duplo aspecto: apologtico da

    sociedade civil e repulsivo em relao ao Estado que poderia ser batizado de sociolatria.

    O termo latria, derivado do latim latrea, induz-nos a pensar numa adorao, culto,

    venerao ou servio a algum ou a alguma coisa, que neste caso estaria relacionado

    sociedade, ou mais especificamente sociedade civil. No significado estrito do termo

    latino, perde-se a duplicidade que se quer atribuir composio.

    No obstante esse termo retornar pginas frente para ganhar mais substncia,

    desde j acomodaria bem as percepes de outros e outras analistas. Sobretudo nos

    trabalhos que destacam o apelo a um ativismo voluntrio disposto a resolver mazelas

    insolveis pelas instituies oficiais. neste caso que podemos enquadrar o

    entendimento de Simionatto quando capta o reclame para que a sociedade civil cumpra

    papis sociais. Diz a autora que

    As estratgias de desmonte das organizaes coletivas so enfeixadas no discurso enganoso sobre a sociedade civil, remetendo-se a esta a responsabilidade no encaminhamento de projetos para dar conta dos complicadores das novas expresses da "questo social". Mas aqui a sociedade civil tomada ao avesso do sentido gramsciano, na medida em que deslocada da esfera estatal e atravessada pela racionalidade do mercado, sendo, em ltima instncia, a expresso dos interesses de instituies privadas que controlam o Estado e negam a existncia de

  • 37

    projetos de classe diferenciados. Tomada em sentido transclassista, convocada, em nome da cidadania, a realizar parcerias de toda ordem, sendo exemplares os projetos de refilantropizao das formas de assistncia (como o Comunidade Solidria), em face das seqelas da "questo social". Ocorre, assim, um progressivo esvaziamento da sociedade civil, cujas formas de protesto irrompem, muitas vezes, atravs da violncia, do racismo, da xenofobia e de fundamentalismos de diversos tipos, que anunciam a busca da felicidade, da liberdade e do sucesso financeiro. Esse discurso turva a conscincia e interfere na vida concreta das classes e, portanto, na criao de uma viso de homem e de sociedade crtica e coerente (SIMIONATTO, 1998, p. 59).

    O mesmo se pode dizer sobre a constatao de Atlio Born (1995) a respeito dos

    impactos do dilvio neoliberal sobre a sociedade civil. No interior do diagnstico ganha

    destaque a exaltao que se faz do mercado e averso ao Estado como marcas do

    pensamento contemporneo. Note-se que Born sublinha o mercado e no a sociedade

    civil, mas a aproximao em relao idia contida nesse trabalho pode ser feita. A

    constatao da satanizao do Estado e da opo pelo no-institucional aparecem

    tambm nos escritos de Nogueira (1998, 2004), Barreto (2000), Behring (2003) e de

    Vianna (2006). A todo o conjunto de instituies que se agregam ao Estado ou que

    compuseram com ele o cenrio da modernidade, um fim semelhante foi reservado. Este

    o caso da prpria prtica poltica. O descrdito a que foi lanada, assim como a

    democracia e suas instituies, provocam as leituras que vislumbram sua crise. Nesse

    sentido, admissvel pensar que

    em duas dcadas, produziu-se um generalizado enfraquecimento da legitimidade dos governos, dos parlamentos, dos partidos, das ideologias, dos processos eleitorais, dos movimentos sociais, com o desinteresse pela poltica, o desprestgio dos polticos, o esvaziamento dos debates polticos, a intranscendncia da produo cultural sobre a esfera pblica e o enfraquecimento de todo tipo de elaborao e de ao coletiva (SADER, 2003, p. 312).

    Sensao similar demonstra Marco Aurlio Nogueira (2001) ao tratar

    especificamente do assunto. Para o autor, a comunho de fatores objetivos

    (globalizao, novos patamares tecnolgicos e a informtica) e fatores ideolgicos (a

    hegemonia do neoliberalismo) converteram a poltica num espetculo, tirando seu eixo e

    substncia. Tal como rebaixou os valores pblicos, levou a prtica poltica ao

    pragmatismo. Nesse sentido, quanto mais se acrescenta ao espetculo, mais se retira da

    poltica.

    Provavelmente, tais sensaes de crise (do Estado, da poltica, da democracia)

    tenham aberto uma importante janela para que os estudos relativos poltica se foquem

  • 38

    no seu universo no estatal ou da micropoltica. Ento, no seria coincidncia o fato de

    que no interior da prpria cincia poltica ter ganhando cada vez mais espao o debate

    da poltica fora do Estado, arrastando holofotes para autores como Guattari (1985 e

    1986) e Foucault (1981). Isso no quer dizer que esses tericos sejam responsveis pela

    ou signatrios da sociolatria, mas que seus estudos reforam o argumento de que a

    segunda metade do sculo XX um perodo em que o Estado est em baixa.

    Todos esses estudos citados acima e que estavam atentos ao fenmeno que

    deslocou o Estado para a condio de problema, revelaram o anseio que acompanha a

    repulsa: a sada para a crise, pela perspectiva conservadora estaria na sua negativa, em

    seu desmonte, em sua minimizao. Ento, a expresso mais clara e prtica desse

    movimento o neoliberalismo. Vejamos agora o que se pode entender por

    neoliberalismo e que tipo de relao se estabelece com o advento das formas

    contemporneas de administrao pblica.

    As transformaes na sociedade poltica

    A reestruturao da produo desgua, como aponta Harvey (2000), na

    compresso tempo-espacial. Isso quer dizer que diante de um conjunto de

    transformaes materiais na produo inovaes tecnolgicas contnuas na

    comunicao, nos transportes e na informtica acelera-se a ao humana comprimindo

    o tempo e amplia-se seu alcance geogrfico comprimindo os espaos. Isso sugere o

    aumento da magnitude e da intensidade dos fluxos globais de mercadorias, capitais,

    informaes e pessoas, ou seja, sugere a existncia da globalizao. Por globalizao se

    entende

    Uma mudana significativa no alcance espacial da ao e da organizao sociais, que passa para uma escala inter-regional ou intercontinental. Isso no significa que, necessariamente, a ordem global suplante ou tenha precedncia sobre as ordens locais, nacionais ou regionais da vida social. Antes, estas podem inserir-se em conjuntos mais amplos de relaes e redes de poder inter-regionais. Assim, as limitaes do tempo social e do espao geogrfico, que so coordenadas vitais da vida social moderna, j no parecem impor barreiras fixas a muitas formas de interao ou organizao social (...) (HELD & MCGREW, 2001, p. 12-13).

  • 39

    Ao ter comprimido o tempo e o espao e ao ter ampliado as capacidades da ao

    social, a reestruturao produtiva atinge um importante pilar das organizaes polticas

    nacionais: o territrio. Vrios intrpretes da globalizao (HABERMAS, 2001; BECK,

    1999; BAUMAN, 2000) costumam enfatizar essa novidade como uma das mais

    notveis e importantes do presente momento. Sua importncia reside fundamentalmente

    no fato de que boa parte das instituies modernas - como o Estado-nao, os partidos

    polticos e a democracia - est ancorada numa base territorial. Assim sendo, se o

    territrio perdeu, em alguma medida, a sua capacidade de orient-las, suas legitimidades

    passam a ser subtradas. Mas qual seria a intenside do impacto das transformaes

    tempo-espaciais nestas instituies, especificamente no Estado nacional?

    Habermas, por exemplo, parte da compreenso de que se pode definir o Estado

    moderno (a) como um Estado administrador/fiscal e (b) como um Estado territorial

    provido de soberania que se pde desenvolver (c) no mbito de um Estado nacional (d)

    no sentido de um Estado democrtico de direito e social (HABERMAS, 1999, p. 80).

    Na medida em que se intensificam as relaes de troca, de comunicao e de trnsito

    para alm das fronteiras nacionais, a premissa segundo a qual a poltica nacional pode

    ser conciliada com o destino efetivo da sociedade nacional passa a ser questionada. Uma

    sociedade mundial, cada vez mais organizada a partir de sujeitos transnacionais pe em

    xeque a soberania estatal e, portanto, enfraquece o Estado. Algo semelhante advoga

    Ulrich Beck, ao anunciar que

    O Estado nacional um estado territorial, isto , seu poder est baseado no vnculo com um determinado espao (no controle sobre associaes, determinao das leis vigentes, defesa das fronteiras etc.). A sociedade mundial, que tomou uma nova forma no curso da globalizao [...], relativiza e interfere na atuao do Estado nacional, pois uma imensa variedade de lugares conectados entre si cruza suas fronteiras territoriais, estabelecendo novos crculos sociais, redes de comunicao, relaes de mercado e formas de convivncia. Isto fica evidente em todas as colunas da autoridade do Estado Nacional: impostos, atividades especiais da poltica, poltica externa, segurana militar. (BECK, 1999, p. 18)

    Mesmo entre os mais cticos (HIRST & THOMPSON, 1998) quanto existncia

    de uma sociedade realmente global e seus efeitos devastadores sobre o Estado,

    possvel perceber a constatao de que algo se alterou no universo institucional. No

    obstante advirtam que o discurso corrente est baseado num liberalismo anti-poltico -

    pois admite que o Estado no pode mais afetar a vida econmica e social - reconhecem

    algumas mudanas na capacidade do Estado nacional. Duas ganham relevo: a perda do

  • 40

    poder de fazer a guerra e a reduo da capacidade de controlar a comunicao e a

    homogeneizao cultural, esta ltima fundamental para a manuteno de prticas

    democrticas (HIRST & THOMPSON, 1998, p. 278-279). No entanto, diante dos dados

    reveladores da baixa mobilidade espacial dos trabalhadores, parte da soberania sobre o

    fluxo de pessoas mantido. Assim como o Estado continua sendo um sujeito essencial

    para a governabilidade econmica, criando as condies para o investimento, o

    crescimento e o desenvolvimento econmico.

    Seja como for, a reestruturao produtiva trouxe novidades para a vida estatal. Em

    qualquer destas leituras que se possa adotar, se ter que tomar o enfraquecimento do

    Estado como diagnstico e, para muitos dos casos, tambm como prognstico. Isso

    porque algumas anlises pr-globalizao, tambm chamadas de globalistas por Held &

    Mcgrew (2001), apontam a reduo do tamanho e do raio de ao como resposta

    necessria a uma crise do Estado-nao, de modo que a dimenso nacional sucumba

    definitivamente diante das dimenses local e global.

    Um Estado enfraquecido, com dficits de legitimidade e de soberania, precisaria

    ser urgentemente reformado. Por uma perspectiva mais conservadora, sua atuao,

    objetivamente reduzida pelas circunstncias globais, deveria ser revista, readequada e

    circunscrita aos limites impostos pela realidade ps-nacional. Certamente seria uma

    atuao resignada e aberta aos fluxos vitoriosos. Exige-se, por tudo isso, uma nova

    administrao pblica que a um s tempo consiga adaptar a gesto do Estado nova

    realidade e espelhar a gesto privada dos grupos privados globais bem sucedidos nas

    ltimas dcadas. certo que historicamente as polticas de gesto dos governos foram

    desenvolvidas em associao com um modelo de organizao corporativa e de Estado.

    A mais recente delas inspira boa parte da administrao pblica ocidental e responde

    pelo nome de Nova Administrao Pblica (NAP). sobre a sua presena nos mandatos

    de Fernando Henrique Cardoso e Lus Incio Lula da Silva que trata essa pesquisa, mais

    propriamente, sobre a preservao de seu instrumental do primeiro para o segundo.

    Entende-se por NAP, o conjunto de teorias e polticas de gesto de inspirao

    privada que, a partir dos anos 1980, hegemoniza-se no interior dos aparelhos de Estado

    em boa parte do mundo. O seu ponto difusor encontra-se na Inglaterra de Margareth

    Thatcher, desdobrando-se pelos EUA, Austrlia, Nova Zelndia e, na seqncia, pelo

    restante do Ocidente. Suas manifestaes nacionais revelam uma considervel

    diversidade e vrios de seus intrpretes ofereceram tipologias no raro de matriz

  • 41

    weberiana - para orientar as leituras sobre as transformaes recentes nas gestes

    pblicas.

    O contexto de surgimento da NAP coincide com a emergncia da globalizao e

    das polticas neoliberais no centro capitalista, por isso possvel ver, num primeiro

    momento, governos conservadores inaugurando procedimentos gerenciais flexveis.

    Atualmente, tanto o neoliberalismo, quanto as polticas da NAP so utilizados por

    governos cujos partidos foram historicamente comprometidos com setores populares, ou

    at mesmo, com o movimento operrio.

    O Neoliberalismo

    De maneira bem sucinta se pode dizer que o surgimento da globalizao e de duas

    grandes crises (a crise do bloco sovitico e a crise capitalista dos anos 70) conduzem ao

    aparecimento e difuso da NAP. Como se viu, a globalizao acarretou ao Estado

    transformaes nas suas capacidades de atuao e exigiu, na concepo mais

    conservadora, a reduo ainda maior de seu tamanho e alcance. Por sua vez, a crise da

    Unio Sovitica e de seu regime em alguns lugares do mundo, representou, num s

    tempo, a vitria do bloco capitalista e a possibilidade de sua expanso sem rivais e, por

    outro lado, o desarme das esquerdas, a perda de suas referncias e de parte de suas

    energias. Assim, o sistema capitalista tem um terreno razoavelmente aplainado, graas

    desativao de inmeras trincheiras de resistncia. Agora no h mais a necessidade de

    mobilizar foras contra o inimigo vermelho; o nimo e o foco, resultantes da nova

    situao de tranqilidade, permitem a concentrao em respostas econmicas, polticas,

    sociais e administrativas adequadas aos problemas que resistiam desde os anos 70.

    possvel dizer tambm que a condio atordoada em que se encontravam as

    esquerdas multiplica as oportunidades para que avancem as proposies conservadoras.

    Alis, tem-se a possibilidade de que avancem at mesmo no interior das esquerdas e

    estas passem a tomar para si formulaes nitidamente distantes de sua trajetria. Com

    efeito, aquele liberalismo emergente ps-Segunda Guerra, representado por Hayek e a

    sociedade de Mont Plerin, clandestina at os anos 60 de acordo com Anderson

    (1995), viu sua rpida expanso na academia atravs das teorias da escolha pblica, das

  • 42

    expectativas racionais e dos jogos - adaptaes, em alguma medida, dos preceitos da

    economia neoclssica a outras cincias.

    Simbolicamente, o grande sucesso ocorre no Leste Europeu com a converso dos

    regimes comunistas em experincias mpares de privatizao e ajuste macroeconmico.

    Essas so condies de expanso de que jamais o liberalismo gozou, possibilitando que

    se transforme numa ideologia que consegue ser quase universalmente hegemnica

    (FIORI, 1998, p. 214). A vitria capitalista em geral, e liberal em especfico, leva mais

    gua para o moinho da crtica ao Estado interventor ou extremamente burocratizado,

    permitindo que se expanda de forma rpida e geograficamente relevante as reformas do

    Estado e das administraes pblicas orientadas pelo mercado.

    No tocante crise capitalista dos anos 1970 e em especial a retomada da

    hegemonia4 dos EUA, conforme Tavares (1998), o cenrio da dcada pode ser

    composto pela elevao dos ndices inflacionrios, pela queda das taxas de crescimento

    econmico e pela queda expressiva das taxas de lucro. A resposta veio com a ascenso

    dos conservadores Thatcher e Reagan e com um modelo de Estado neoliberal.

    O neoliberalismo uma resultante da reestruturao produtiva, de modo geral, e

    das crises dos anos setenta, em especfico. A retomada da hegemonia estadunidense,

    garantida pela diplomacia do dlar, permitiu tambm o enquadramento econmico-

    financeiro e poltico-ideolgico de parceiros e adversrios dos EUA. Isso significa que

    os dois choques do petrleo, a perda de valor do dlar e a emergncia de novas

    potncias econmicas naquela dcada, foraram o FED (Banco Central dos EUA) a

    tomar, unilateralmente, uma postura reativa. Elevou sua taxa de juros, reverteu o fluxo

    de capitais e fez explodir as dvidas externas de parte dos pases do centro e da periferia.

    Para resistir s polticas do FED, o restante da economia capitalista precisou alinhar sua

    poltica monetria e assim amarrar todas as demais polticas. Juros altos condicionam a

    poltica fiscal e o gasto pblico, visto que exigem um supervit primrio suficiente para

    honrar os passivos externos. Deste modo, os pases capitalistas da Europa, algumas

    economias socialistas e a periferia foram obrigadas a desmontar seus modelos vigentes

    de Estado: de bem estar, socialista ou nacional-desenvolvimentista (TAVARES, 1998).

    Acuada, diante do crescimento de suas dvidas, a periferia capitalista recorreu s

    instituies financeiras multilaterais para auxlios no to volumosos, mas de

    4 Por hegemonia, Maria da Conceio Tavares entende a capacidade de o pas central enquadrar as demais economias capitalistas. Portanto, no comunga do significado adotado por Gramsci e ser utilizada nos termos propostos pela autora enquanto se referir, exclusivamente neste tpico, da relao estabelecida entre os EUA e o resto do mundo durante a crise dos anos 1970.

  • 43

    contrapartidas rigorosas. Nesse momento a Amrica Latina tambm se entrega ao novo

    liberalismo (ANDERSON, 1995; TAVARES, 1998, CANO, 2000; FIORI, 1998). Da

    pode-se observar aquilo que se convencionou chamar de receiturio do FMI e do Banco

    Mundial. Esse receiturio no se aplicou homogeneamente, tampouco simultaneamente

    haja vista a disperso dos exemplos nas dcadas de 70, 80 e 90. A profundidade e o

    momento do ajuste variaram e, em alguns momentos, sua aplicao poderia no ter

    relao direta com o endividamento (ANDREWS, 2002), entretanto o que nos permite

    pens-lo como receiturio sua natureza razoavelmente unitria.

    So duas polticas econmicas centrais e um conjunto de reformas

    complementares que caracterizam esse novo modelo de Estado conforme Wilson Cano

    (2000). As primeiras objetivam, respectivamente, o controle inflacionrio e a

    liberalizao comercial. As ncoras que deteriam o processo de elevao dos preos

    seriam alcanadas com uma poltica de conteno salarial, juros elevados com restrio

    monetria e creditcea, ajuste fiscal para eliminar o dficit pblico e valorizao

    monetria para estimular as importaes. A liberalizao comercial, por seu turno,

    deveria ser lograda a partir da diminuio das barreiras administrativas, tarifrias e no-

    tarifrias.

    O sucesso dessas polticas seria possvel com o aporte de reformas:

    a. a reforma financeira: que promove a internacionalizao dos sistemas

    financeiros nacionais e fornece a infra-estrutura necessria para a atrao

    de capitais forneos (lei de patentes, lei de propriedade intelectual, acordos

    de garantias de investimento, etc.);

    b. a reforma tributria: fundamentalmente orientada para a simplificao

    fiscal, reduo de impostos diretos e sobre as transaes comerciais

    exteriores;

    c. a reforma administrativa: centrada no redimensionamento do Estado

    atravs da descentralizao (para estados, municpios ou ongs),

    desburocratizao, privatizao, demisso e corte de direitos do

    funcionalismo;

    d. a reforma patrimonial: desempenhada principalmente pelas privatizaes,

    com o duplo intuito de recuperar a sade fiscal do Estado e dar eficincia

    produtiva para empresas que nas mos do Estado no conseguem t-la.

    Entretanto, essa reforma s poderia se completar mediante o

  • 44

    estabelecimento de novos marcos regulatrios para os compradores, bem

    como a subvalorizao do patrimnio e a elevao das tarifas dos servios;

    e. a reforma da previdncia: direcionada a reduzir o suposto dficit

    previdencirio que onera o oramento pblico, atravs da contribuio de

    inativos, alterao do fator previdencirio, substituio do modelo

    contributivo por capitalizao, etc.

    f. a reforma trabalhista: apontada para a rigidez da regulamentao do

    mercado de trabalho, propondo o rebaixamento dos custos laborais,

    reduo de encargos, quebra da estabilidade, flexibilizao da contratao,

    etc.

    A reforma administrativa descrita por Cano (2000) est sustentada nos referenciais

    da NAP. Esses referenciais se constituem a partir do sucesso do processo de

    reestruturao produtiva nas empresas privadas ocorrido no centro capitalista, com

    incio desde a segunda metade dos anos 1940 no Japo. A partir deste momento, ela

    tambm passa a ser vista como uma resposta microeconmica crise capitalista dos

    anos 1970. Como se viu, alm de modificar a produo com o uso intensivo da

    microeletrnica e a robtica, a flexibilizao produtiva trouxe a produo por lote ou

    nicho de mercado, horizontalizou empresas com a terceirizao e agilizou seu

    funcionamento com o just-in-time. As transformaes gerenciais passam pelo foco no

    cliente, sustentado numa orientao da produo pela demanda, a hierarquia tambm se

    horizontaliza exigindo dos funcionrios tratados como colaboradores, associados ou

    parceiros multifuncionalidade, liderana e criatividade. O intuito envolver ao

    mximo o empregado, compromet-lo com os objetivos da empresa e, assim, extrair

    mais empenho. Objetivos so quantificados e transferidos para os crculos de controle

    de qualidade (CCQ) ou para as clulas produtivas. L o trabalho avaliado pela meta

    quantificada, o resultado. Essa sntese da reestruturao produtiva incapaz de criar um

    quadro suf