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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ TIAGO BONATO O habitante do sertão sob o olhar iluminista: uma expedição científica setecentista pela América portuguesa Bolsista: 8° período do curso de História, bolsista PIBIC/CNPq no edital 2006/2007 e 2007/2008. Orientador: José Roberto Braga Portela – DEHIS Projeto: “Descripções, memmórias, notícias e relações”: estudo metodológico de relatos científicos e de viagem no iluminismo português. BANPESQ/THALES: 2001008916 CURITIBA AGOSTO / 2007

O habitante do sertão sob o olhar iluminista - uma expedição científica setecentista pela América portuguesa

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

TIAGO BONATO

O habitante do sertão sob o olhar iluminista: uma expedição científica setecentista pela América portuguesa

Bolsista: 8° período do curso de História, bolsista PIBIC/CNPq no edital 2006/2007 e 2007/2008. Orientador: José Roberto Braga Portela – DEHIS Projeto: “Descripções, memmórias, notícias e relações”: estudo metodológico de relatos científicos e de viagem no iluminismo português. BANPESQ/THALES: 2001008916

CURITIBA AGOSTO / 2007

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01 – RESUMO

Em Portugal, o século XVIII caracterizou-se por uma intensa exploração científica dos territórios ultramarinos por viajantes naturalistas. Fruto do pensamento iluminista que se difundiu pela Europa nesse século, as expedições portuguesas, em sua maioria, eram conduzidas por intelectuais luso-brasileiros, formados na Universidade de Coimbra já reformada pelo Marquês de Pombal. As viagens filosóficas – como eram chamadas – tinham por objetivo descobrir meios para uma melhor exploração do potencial natural dos territórios. Após um período de esquecimento, a historiografia recente tem voltado atenção ao estudo dos viajantes luso-brasileiros do iluminismo. Mesmo assim, algumas das expedições exploratórias ainda permanecem inéditas, como é o caso da viagem filosófica de Joaquim José Pereira e Vicente Jorge Dias Cabral pelos sertões das capitanias do Maranhão e Piauí, nos últimos anos do século XVIII. Esta viagem faz parte da segunda vaga exploratória promovida pela coroa portuguesa. Os relatos deixados por esses estudiosos caracterizam-se pelo seu teor racional e rígido, típico da tradição iluminista: nos diários e memórias escritos pelos naturalistas, nenhuma surpresa, nenhuma novidade, nenhuma análise que fuja do exame empírico e utilitarista dos elementos da natureza. O sertão percorrido apresenta-se quase deserto. A figura do habitante do sertão passa despercebida pelos cientistas, já que sua atenção estava voltada ao salitre natural – matéria-prima da pólvora –, objetivo principal da viagem. Analisando outras viagens do período, pelos mesmos sertões, a ausência de referência aos habitantes é notável, com algumas pequenas exceções. Em períodos posteriores, é possível notar uma inflexão nas formas de narrar a região. No século XIX, após a instalação da Coroa portuguesa no Brasil, alguns viajantes naturalistas estrangeiros conseguem autorização para realizarem viagens exploratórias pelo interior do Brasil. A partir desse momento, a natureza brasileira passaria, já, a ser descrita com um olhar próprio do Romantismo. A exaltação do exótico é visível nessas narrativas. Os viajantes não mais estão percorrendo sua terra natal com fins estritamente científicos e, portanto há uma ênfase narrativa naquilo que é diferente, muitas vezes visto como fantástico. A excitação com a paisagem trás análises mais profundas do conjunto da natureza e mesmo do habitante do sertão, que passa a receber o desígnio de sertanejo. Com essa comparação entre um olhar iluminista e outro romântico do interior do nordeste brasileiro, percebe-se que começa a ser construída a idéia de um sertão nordestino, com a presença marcante da seca e do sertanejo.

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02 – OBJETIVOS

Pretende-se analisar a viagem dos naturalistas pelas capitanias do Maranhão e Piauí como

parte de um projeto maior, uma estratégia da Coroa portuguesa e uma rede de circulação de

informações, como aponta a historiografia. Como foco principal, o trabalho tem o intuito de analisar o

olhar iluminista ao sertão da América portuguesa e como foi se configurando e modificando esse

olhar, de maneira a ter-se hoje uma idéia de sertão como específica, construída a partir dos relatos

dos viajantes. Verificar a existência de uma mudança de interesses entre as viagens iluministas do

setecentos e o movimento posterior com os viajantes estrangeiros do século XIX e a ciência

naturalista desse século, utilizando para tanto outras viagens do período. 03 – INTRODUÇÃO

No que diz respeito ao universo colonial português, o século XVIII caracterizou-se pelo esforço

de estabelecer a exploração científica dos espaços ultramarinos. No intuito de conhecer mais

detalhadamente as colônias, uma série de expedições foi organizada pela Coroa com a finalidade de

observar e analisar empiricamente as potencialidades dos seus domínios. As viagens filosóficas –

como ficaram conhecidas as expedições – que partiram de Portugal para suas colônias estão

inseridas em um conjunto mais amplo que atinge praticamente toda a Europa no século XVIII.

Estudar as mudanças que ocorreram nos planos teóricos e práticos durante esse processo é

perceber um aumento significativo da importância do prático, do empírico, do racional, do objetivo em

depreciação ao subjetivo e – por que não – religioso, metafísico e mesmo da matemática pura. Muitos

homens das ciências faziam e trocavam experiências que seriam marcadamente significativas para a

humanidade. Dentro desse bojo de novos interesses, as ciências naturais – com todos os mistérios

de origem e funcionamento da natureza, suas leis e conseqüências – ganharam espaço. “A ciência

seria a da natureza; e, com efeito, a história natural foi posta em primeiro plano, a geometria em

segundo.”1. O fascínio pelas ciências naturais residia no fato de que ela viria de encontro às novas

inquietações e vontades: era algo objetivo, que poderia ser estudado a partir da observação empírica

e racional e, no mais das vezes, seria algo útil para uma aplicação prática.

O movimento de intelectuais crescia na medida em que novas obras iam sendo lançadas e

novas descobertas eram feitas. O campo mais promissor parecia ser mesmo o das ciências naturais

com a premissa de estudar os três reinos da natureza: animal, vegetal e mineral. Todos agora

observavam mais atentamente e com olhar científico o que antes passava despercebido. O volume

de novas espécies que estavam sendo descobertas chegava a ser assustador: “já não era possível

contá-las, os números apontados hoje tornar-se-ão falsos amanhã; as pessoas sentem-se como que

1 HAZARD, Paul. O pensamento europeu no século XVIII. Lisboa: Presença, 1989. ppp.127

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soterradas por este aluvião incessante” 2. Esse movimento tinha sentido duplo: ao mesmo tempo em

que os homens da ciência eram tomados pelo espírito de observações em lugares distantes e saem

de suas províncias, reinos e até continentes, descobre-se o saber de laboratório, onde muitos se

reúnem para discutir o observado. Muitas discussões são feitas a respeito do qual era o verdadeiro

cientista: o que de fato vivia a experiência e saía para observar e coletar espécies ou os que as

estudavam mais profundamente nos laboratórios.

E se o novo pensamento espalhou-se por grande parte da Europa ele chegou também a

Portugal, com seu grande império ultramarino construído nos séculos anteriores. As novas potências

européias, porém, iam despontando – notadamente Inglaterra, França e Holanda – e o grande

império estava em crise, econômica e militarmente, correndo risco de perder seus domínios, e ainda

diplomaticamente com a escravidão em suas colônias sendo discutida e criticada pelos intelectuais

europeus. Uma figura importante do Iluminismo português e que se destaca na historiografia é o

ministro de Dom José I, Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal3. Seguindo os

ideais iluministas, uma série de reformas foram levadas a cabo pelo ministro. Dentre elas, a reforma

educacional, onde se insere a reforma da Universidade de Coimbra, que é de suma importância para

esse trabalho. A reforma trouxe a implementação do curso de história natural e a obrigatoriedade de

cursá-lo antes de se iniciar qualquer outro curso ofertado pela universidade. Várias políticas foram

adotadas no intuito de chamar filhos da elite colonial brasileira – já que nessa época o Brasil era a

colônia mais importante - à universidade. Sabendo que a colônia brasileira constituía a melhor parte

do Império e receosa de que as idéias revolucionárias que se espalhavam com a independência dos

Estados Unidos e eclodiam também pela Europa pudessem contaminar seus “homens bons”4, nada

mais sensato que educá-los na própria metrópole, vigiando e censurando, de certa forma, suas

idéias.

O número de alunos brasileiros em terras portuguesas mostra o sucesso de tais medidas.

Entre 1772 e 1822, período limitado pelo início da reforma pombalina no ensino superior e pelo fim o

período colonial, 866 brasileiros matricularam-se na Coimbra reformada, grande parte deles optando

pela formação naturalista5. A participação desses brasileiros é essencial nas viagens promovidas pela

2 HAZARD, op. cit., pp. 130 3 O título de Marquês, entretanto, lhe foi concedido apenas em 1769, quando Pombal contava com 71 anos de idade. É importante ressaltar, porém, que esse título não lhe foi dado como herança, mas como recompensa pelos serviços prestados a Portugal. Dez anos antes, Pombal havia sido nomeado conde de Oeiras – pequena cidade à margem do estuário de Tejo –, onde possuía uma propriedade – esta sim lhe deixada como herança. Construiu em Oeiras, após 1750, uma grande casa de campo com jardins elaborados, vinhas, amoreiras e aquedutos extensos e dispendiosos. MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal Paradoxo do Iluminismo. São Paulo: Paz & Terra, 1997, pp.2. 4 CRUZ, Ana Lúcia R. B. da. As viagens são os viajantes. Dimensões identitárias dos viajantes naturalistas brasileiros do século XVIII. História: Questões & Debates, Curitiba, n.36, pp. 61-98, 2002. Editora UFPR. 5 CRUZ, op. cit., pp.66.

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coroa. Além da política de cooptação das elites coloniais, PEREIRA6 coloca ainda, como motivo da

grande participação de naturalistas brasileiros nas viagens, a maior resistência dos brasileiros “às

agruras do clima africano” e, consequentemente, aos trópicos em geral. O autor diz ainda que para

muitos europeus, qualquer cargo administrativo nas colônias era como uma sentença de morte,

sendo isto facilmente observado na documentação da época. Esse fato, portanto não deveria passar

despercebido pelos “olhares atentos dos altos escalões administrativos”7.

A primeira grande viagem filosófica foi planejada pelo italiano Domingos Vandelli em 1778. O

naturalista chegara a Portugal na década de 1760, contratado para o Real Colégio dos Nobres, mais

um dos projetos de Pombal, onde ocuparia as cátedras de Historia Natural e Química8. Vandelli não

chegou a lecionar já que o projeto não correspondeu às expectativas e foi fechado anos depois9.

Vandelli ficou no reino e em 1772 assumiu as mesmas cadeiras na Universidade de Coimbra10, fato

que o colocou a frente do ensino da filosofia natural, em Portugal. A primeira viagem contaria com um

grupo de brasileiros recém formados em Coimbra: Alexandre Rodrigues Ferreira, Manoel Galvão da

Silva, Joaquim José da Silva e José da Silva Feijó. Seria realizada uma grande expedição à

Amazônia, porém por motivos administrativos11 a viagem foi dividida e os naturalistas mandados para

várias partes do império: Alexandre Rodrigues seguiu mesmo para a Amazônia – em uma das mais

conhecidas e divulgadas viagens filosóficas – enquanto que Feijó foi para Cabo Verde e os Silva para

Angola e Moçambique, respectivamente, onde acumulavam cargos de naturalistas e secretários de

estado 12.

Em 1796 assume o cargo de ministro do ultramar – já de D. Maria I – D. Rodrigo de Sousa

Coutinho, “incansável homem de projetos e reformas”13, que constituiu uma equipe de cientistas que

“passaram a se agitar em torno dele”14. A idéia dos cientistas brasileiros gravitando ao redor do

6 PEREIRA, Magnus R. de Mello. Um jovem naturalista num ninho de cobras. A trajetória de João da Silva Feijó em Cabo Verde em finais do século XVIII. História: Questões & Debates, Curitiba, n.36, pp. 29-60, 2002. Editora UFPR. 7 PEREIRA, op.cit., pp.30. 8 A contratação é provada através de uma carta, de 16 de maio de 1764, do cônsul português em Genova, Nicolau Piaggio, em que informa que o portador da mesma é o Doutor Domenico Vandelli que parte para Lisboa com destino ao Real Colégio. CARVALHO, Rômulo de. A História Natural em Portugal no Século XVIII. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1987. 9 O Real Colégio não correspondeu às expectativas de Pombal no que diz respeito ao ensino científico e o ministro mandou encerra-lo em 1772, com apenas seis anos de vida, limitando-o ao ensino das disciplinas humanitárias. CARVALHO, op. cit., pp.49. 10 Quatro anos antes, Vandelli havia sido encarregado pelo Rei, D. José, de estabelecer um Jardim Botânico junto ao palácio Real da Ajuda, também em Lisboa. CARVALHO, op. cit., pp.49. 11 O próprio Pereira trata dos motivos e da divisão dos viajantes, no texto já citado. (PEREIRA, op. cit., pp.30) 12 O problema do acúmulo de cargos administrativos com tarefas científicas era constante na rede de naturalistas luso-brasileiros mandados às possessões portuguesas. PEREIRA, op.cit., pp.32. 13 DIAS, op. cit., pp.117. 14 DIAS, Maria Odila da Silva. Aspectos da Ilustração no Brasil. Revista do IHGB, vol. 278, pp. 105-170, primeiro trimestre: 1968. (pp. 117)

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ministro vem de seu grande – e público15 – interesse pela colônia brasileira e por inúmeros projetos e

incentivos dados às pesquisas e explorações no território16. O ministro colocou em prática uma

política de renovação da agricultura e da introdução de novas técnicas rurais17, além de organizar

várias expedições científicas, já com naturalistas formados de uma segunda geração de brasileiros

em Coimbra. Hipólito da Costa foi enviado aos Estados Unidos da América, ao mesmo tempo em que

o naturalista pernambucano Manuel Arruda da Câmara passa a viajar pelo sertão nordestino. Em

outra viagem conhecida, o paulista Francisco José de Lacerda e Almeida procura fazer a travessia da

África – entre Angola e Moçambique. Também João da Silva Feijó é incumbido de estabelecer a

produção de salitre – matéria prima da pólvora – no Ceará.

Pelos sertões do Maranhão e Piauí

Apesar do conhecimento dessas viagens e da atenção dada a esse período pela historiografia

recente, algumas viagens do período permanecem no esquecimento. É o caso da viagem dos

naturalistas Joaquim José Pereira e Vicente Jorge Dias Cabral, enviados por Souza Coutinho a

explorar o salitre e a quina – árvore com propriedades antifebris – nos sertões das capitanias do

Piauí e Maranhão, em fins do Setecentos.

Em posse do ofício de 04 de setembro de 1799, enviado pela Coroa portuguesa, e dos cem

mil réis recebidos como ajuda de custo, o vigário colado da Vila de Valença, Joaquim José Pereira,

demorou-se apenas três dias na capital São Luis do Maranhão até iniciar o cumprimento das ordens

reais: viajar pelos sertões dessa capitania e da vizinha Piauí. Joaquim, conhecido também como

Vigário de Valença, já era conhecedor dos sertões da Capitania do Maranhão, tendo escrito, a pedido

do ministro D. Rodrigo de Souza Coutinho, uma memória da descrição física e demográfica da

capitania, no ano de 179818. No mesmo ano, ele ainda escreveria sobre a condição de extrema

pobreza e sobre as secas nos sertões nordestinos19. Dessa vez, os objetivos da viagem eram outros,

demonstrando o interesse científico e empírico do Iluminismo luso-brasileiro, no sentido de conhecer,

em seus pormenores, as potencialidades naturais da colônia brasileira. Em mais um dos projetos do

15 Em um de seus discursos à frente do ministério, D. Rodrigo de Sousa Coutinho deixou claro sua preferência pelo Brasil, que era a parte mais importante do Império, segundo ele. Sendo assim, se fosse para se perder uma parte do Império, deveria ser a metrópole Portugal e não a colônia Brasil. 16 Mais uma vez o trabalho de DIAS, já citado, dá um grande panorama sobre os incentivos e projetos do ministro luso com seus naturalistas e cientistas. (pp. 119) 17 DIAS, op. cit., pp.117 18 PEREIRA, Joaquim José. Memória que contém a descripção e problemática da longitude e latitude do sertão da capitania geral de São Luiz do Maranhão.... .Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 20, pp. 165-169, 1904. 19 PEREIRA, Joaquim José. Memória sobre a extrema fome e triste situação em que se achava o sertão da Ribeira do Apody. RIHGB, v. 20, pp. 175-185, 1857.

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ministro, o vigário parte de São Luiz e deixa explícito, em carta remetida à Coroa em 19 de fevereiro

de 1803, que seus objetivos eram explorar as muitas e diversas terras salinas do continente desta Capitanîa do Piahuy e Maranhão dos domínios de V. Alteza Real para descobrir outros muitos sais, que estavão nelles como ocultos aos chymicos, e seu uso e intresse [sic] públicos 20.

Partindo da capital, o padre viaja com quatro soldados21, figuras que permanecem anônimas

nos diários e memórias, com exceção do furriel graduado João da Cruz, da 5ª Companhia de

Caçadores, que aparece raras vezes nos relatos. Depois de subir o Rio Muni em direção ao leste da

capitania, e visitar algumas vilas durante os primeiros meses da viagem, Joaquim chega a cidade de

Aldeas Altas, onde, a doze de abril de 1800 encontraria o bacharel Vicente Jorge Dias Cabral, com o

qual viajaria nos próximos dois anos.

Dias Cabral esteve entre os brasileiros matriculados na Universidade de Coimbra reformada,

possivelmente no final da década de 1780. Fazia parte do novo grupo de intelectuais luso-brasileiros

que, mesmo formado e exercendo a profissão de advogado estava à disposição da Coroa portuguesa

como mais um naturalista pronto a oferecer seus serviços: Sempre ancioso de empregar-me no serv.º de S. Mag.e segui a Carreira das Letras indo estudar na Universid.e de Coimbra; e ali me apliquei a Philosophia fazendo Formatura nesta Sciencia, como tão bem no Direito Civil, querendo facilitar o emprego, já pelo meio das Sciencias Naturaes, já pelas positivas.22

Além de advogado estabelecido há mais de dez meses na capital maranhense, Vicente era

responsável pelo Horto Botânico da cidade de São Luis, não mantendo-se, portanto, afastado de

seus estudos naturalistas. Porém, como ele mesmo relata, sua profissão de bacharel de direito o

impossibilitava de realizar as “observaçoens e experiencias sobre milhares de objectos dignos de atensão de

Philosophos, principalm.te no que toca ao Reino vegetal, havendo m.tas plantas utilissimas p.a as artes, que se

podem empregar em tinturarias, medicina, massames de navio, e cordoarias”. 23

Como se percebe, o bacharel estava envolvido na rede de informações dos funcionários da

Coroa, a que se refere Angela DOMINGUES24. Justamente esse acúmulo de cargos de naturalistas e

ao mesmo tempo funcionário régio construiu uma rede por onde circulava informação científica no

século XVIII. A importância desse projeto ultrapassa o caráter científico, ganhando relevância no

conhecimento e administração dos espaços ultramarinos portugueses. Nascido em Tejuco

(Diamantina), Minas Gerais, Vicente torna-se um exemplo típico do jovem da elite brasileira que

20 Arquivo Histórico Ultramarino – AHU, Maranhão, Caixa 127, n. 9555. 21 AHU, Maranhão, Caixa 108, n. 8487. 22 AHU, Maranhão, Caixa 128, n. 9574. 23 AHU, Maranhão, Caixa 128, n. 9574. 24 DOMINGUES, Ângela. Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais: a constituição de redes de informaçã no Império português em finais do Setecentos. HISTÓRIA, CIÊNCIAS, SAÚDE, v.8.(suplemento), 2001. pp.823-838.

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estuda em Coimbra e volta exercer suas funções em seu país. Sobre o padre Joaquim José Pereira,

pouco se sabe. Nasceu em Carnoza Correa, como ele mesmo relata em suas memórias, mas a

própria localização desta localidade é uma incógnita. Ao que parece não estudou em Coimbra,

recebendo sua formação naturalista provavelmente em algum seminário, que também divulgavam os

saberes científicos nesse período no Brasil. Lembremos que, no Nordeste, a reforma do Seminário de

Olinda, seguiu os novos parâmetros iluministas. No seu artigo já citado sobre a seca no sertão

nordestino, o padre se tornará o primeiro a observar essa problemática e apontar para a construção

de uma imagem do sertão nordestino mais próxima da que se tem hoje, ao qual está intimamente

associada a aridez. Desde os primeiros contatos portugueses até o século XIX, sertão designava toda

porção de terra longe da costa. No caso brasileiro, o sertão correspondia a maior parte do território.

Os dois viajantes passam a percorrer juntos, a partir daí, as aproximadamente 500 léguas de

viagem pelas duas capitanias. Visitam as freguesias de Santa Maria do Icatú, Aldeias Altas, Oeiras,

Valença, Marvão, Parnaiba, Campo Maior e retornam praticamente pelo mesmo itinerário até São

Luis do Maranhão, onde chegam novamente na véspera de Natal do ano de 180225. A última remessa

das “diligencias incumbidas ao Bacharel (...), e ao Vigario de Valença”26– já que é provável que elas

tenham sido feitas sistematicamente durante a viagem, mesmo que na documentação utilizada não

apareçam – acompanhadas pelos “Diarios por eles feitos em todo o tempo das suas execussoens, e

nos quaes V. Ex.a verá [uma] recapitulasão geral das Memorias, discursos, produtos, e dezenhos”27

foi remetida de São Luis de Maranhão, através do governador do Estado do Maranhão, D. Diogo de

Souza ao Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, João Rodrigues de Sá e Melo Soto Maior,

Visconde de Anadia, no dia 22 de março de 1803. O papel do governador do Estado do Maranhão

torna-se relevante na medida em que faz o papel de mediador entre os naturalistas e a Coroa. Além

disso, no mesmo dia 04 de setembro de 1799, quando as ordens reais chegaram ao Maranhão, D.

Diogo de Souza enviou a todos que lhe era subordinados, ordens para que prestem todo o posivel auxilio e socorro que pelo Bacharel Vicente Jorge Dias Cabral lhes for requerido seja para (…) viagem que por Ordem Minha em conformidade das de Sua Magestade vai fazer pelos Sertoens deste Estado acompanhado do Vigario de Valensa o Padre Joaquim Jozé Pereira, e quatro soldados.28

Além disso, o governador também é o responsável por obter as “Licensas necessarias para [o

padre Joaquim] poder estar fora da sua Rezidencia decorrente o tempo que se empregar na

mencionada diligencia”29, em ofício mandado no mesmo dia 04 de setembro ao bispo D. Joaquim

25 Dados retirados do Mappa Geral Itinerário, feito pelo vigário. Dentro de cada freguesia foram visitadas várias localidades, especificadas nos diários da viagem. AHU, Maranhão, Cx.127, doc. 9556. 26 AHU. Maranhão. Caixa 127, doc. 9555. 27 AHU. Maranhão. Caixa 127, doc. 9555. 28 AHU, Maranhão, Caixa 108, n. 8487. 29 AHU, Maranhão, Caixa 108, n. 8487.

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Ferreira de Carvalho. Diogo de Souza tem então suas funções divididas entre governar a capitania e

colaborar com a missão científica da Coroa portuguesa nos territórios brasileiros.

04 – MATERIAIS E MÉTODOS

As fontes utilizadas no presente estudo são constituídas de todo o material encontrado sobre

a viagem em questão. Os diários de viagem dos naturalistas, bem como as “Memórias” – monografias

sobre um tema específico – por eles escritas e mais uma série de documentos diversos – sobre o

início e fim dos trabalhos; o envio de produtos naturais a Lisboa; a parte administrativa da expedição;

os ofícios trocados entre o ministro de ultramar e os governadores das províncias exploradas; e

análises botânicas de algumas espécies – foram analisados. A documentação utilizada foi transcrita a

partir de fotografias dos originais, obtidas no Arquivo Histórico Ultramarino, em Portugal. Com o

intuito de uma melhor visualização o material pode ser dividido em:

- Diário ou Memória, Setembro de 1799, Cidade do Maranhão, escrito pelo P. Joaquim José Pereira,

contando 82 páginas no original;

- Memória sobre as produções nativas e discurso preliminar e histórico sobre o clima da Capitania do

Maranhão e Piauí em geral, P. Joaquim José Pereira, 29 páginas;

- Memória sobre o Salitre Natural (cópia do diário do P. Joaquim José, com algumas alterações), com

58 páginas;

- Memória sobre as nitreiras naturais da parte inferior da Capitania do Piauí, escrita por Vicente Jorge

Dias Cabral, 37 páginas;

- Continuação das observações feitas sobre os diversos sais na parte inferior do Piauí desde junho de

1800 até março de 1801, também escrita por Vicente Jorge Dias Cabral e que contém memórias

sobre: Sal de Glauber ou Sulfato de Soda; sal aluminoso; alúmem farináceo ou mina aluminosa

vulcânica de solfatara; nitrato aluminoso; e ainda Memórias de Mineralogia dos diferentes metais

achados: chumbo nativo, ferro e sobre as minas metálicas do Engeitado e das Porteiras. 28 páginas;

- Memória ou Adendo à continuação do diário em crédito da quina-quina do Piauí, de Joaquim José,

15 páginas.

- Documentos e cartas diversas, incluindo a análise botânica da quina do Piauí (Porthandia

Hepandria), escrita por Vicente Jorge, com 39 páginas;

- Documentos e cartas diversas, dos dois autores e Análise Botânica do Velame Grande, escrita por

Vicente Jorge Dias Cabral, 30 páginas;

- Documentos e cartas referentes ao envio das memórias, diários e produtos naturais à coroa, de

Vicente Jorge, com 8 páginas.

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Todo o material da viagem foi por mim transcrito no decorrer da pesquisa. Ele é composto por

um total de 326 páginas no original e se encontra digitalizado no CEDOPE – Centro de

documentação e pesquisa dos domínios portugueses..

Além disso, foi utilizado na pesquisa outra fonte manuscrita, o diário da “Viagem Filosófica na

Serra de Ibiapaba, capitania do Siara Grande” feita por Joze Machado Gaio, de 1784.

Foram fotografados da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro outros relatos de

viagem do mesmo período pelas capitanias do Maranhão e Piauí. Ligados de alguma maneira às

novas inquietações em relação ao conhecimento pormenorizado da colônia, elas descrevem as

viagens de militares, religiosos e viajantes anônimos pelo sertão.

05 – DISCUSSÃO O habitante do sertão sob o olhar iluminista

A escrita de diários de viagens científicas torna-se, segundo BOURGUET, uma das tarefas

cotidianas, “executadas com uma minúcia repetitiva e habitual, fastidiosa, por vezes esgotante,

interrompidas por momentos de perigo ou de medo.”30

No caso da viagem analisada, a notável rigidez da escrita faz com que só estejam presentes

os elementos necessários ao cumprimento da tarefa científica e exploratória. Mesmo que tenham sido

visitadas fazendas e vilarejos, à procura de informações sobre salitre e quina do Piauí, nota-se na

leitura dos diários uma ausência de referências às casas, ou às pessoas. Não há referências sequer

aos números totais de habitantes, como no caso da memória sobre o Maranhão, do padre Joaquim,

já citada. Nesse texto, Joaquim José Pereira constrói um “Mappa Geral do sertão da capitania de S.

Luiz do Maranhão”31 onde são arroladas as freguesias, sua população total e tamanho. Nos diários da

viagem pelo Maranhão e Piauí enviados a Portugal em março de 1803, pode-se notar apenas

referencias a pessoas doentes ou nas quais se utilizou alguma das plantas medicinais da colônia

como remédio, no caso a quina do Piauí – que também era objeto de interesse da viagem. Não se

fala das pessoas sadias, portanto. Sobre isso, aliás, é interessante o que observa Alexandre

Rodrigues Ferreira quando de passagem pelo Mato Grosso em sua conhecida expedição pela

Amazônia. Segundo Maria da Fátima Costa, analisando as memórias do naturalista, “em Mato

Grosso não havia possibilidade de se estar sadio”32. O relato sobre a passagem de Alexandre pela

então capital da capitania, Vila Bela, demonstra o quão insalubre eram aquelas paragens e as terras

sertão adentro do Brasil. A omissão da representação das pessoas torna-se uma característica

30 BOURGUET, Marie Noeile. O Explorador. In. VOVELLE, M. O Homem do Iluminismo. Lisboa: Presença, 1997. 31 PEREIRA, Joaquim José. Memória ... , pp.169. 32 COSTA, Maria de Fárima. Alexandre Rodrigues Ferreira e a capitania de Mato Grosso: imagens do interior. História, Ciências, Saúde . Manguinhos, vol. VIII (suplemento), 993-1014, 2001. (pp. 1002)

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marcante da viagem analisada, acompanhando os relatos científicos do final do século XVIII. Nas

décadas seguintes, adentrando o século XIX, os relatos dos viajantes tendem a apresentar

descrições, por vezes minuciosas, da população e seus costumes.

Em sua “Memória relativa às capitanias do Piauhy e Maranhão”, Francisco Xavier Machado,

personagem que viajou pelas províncias nos anos de 1810, dedica uma parte de seu texto, ainda que

pequena, à índole e caráter da população do sertão33. Suas observações são, majoritariamente,

sobre as condições econômicas da província, seus rebanhos – inclusive com o arrolamento do

número de cabeças de gado de cada freguesia – a grande escravaria que se faz presente na

capitania e a notável produção de algodão do Maranhão34, cuja exportação no ano de 1809 chegou

ao valor de 1.630 contos de réis35. Sob o título de “Caracter dos habitantes d’estes vastos sertões”, o

autor deixa escrito que a índole “d’estes povos é boa, e fáceis de levar aonde necessário for”36. Em

contrapartida, sua educação é “má, porque não tiveram de quem herdar”. São diferenciados, na

análise do viajante os “mais ricos e abundantes” dos pobres. Os primeiros vivem num sertão com

“caça, cães, espingardas, cavalos, etc.”. A descrição dos pobres é mais completa:

Os pobres são sujeitos à bebida da caxaça, a pitar, e ás danças e toques próprios do paiz, fáceis em commetter crimes, logo que a isso os induzam, desmazelados e preguiçosos: talvez a abundancia do paiz concorra para estes males, porque, actividade sem precisão, raras vezes se encontra37

Nos últimos anos da mesma década de 1810, sob as ordens de D. Leopoldina d’Austria, foi

organizada uma expedição científica para o Brasil, com a presença de inúmeros cientistas, entre os

quais destacam-se os “reais naturalistas bávaros”38 Johann Baptist von Spix e Carl Frederich Martius.

No capítulo IV, do livro V, da “Viagem pelo Brasil”39 intitulado “Viagem, através do sertão até o rio São

Francisco”, os autores fazem uma minuciosa descrição da aparência, vestimentas, hábitos e

costumes dos sertanejos:

O sertanejo é criatura da natureza, sem instrução, sem exigências, de costumes simples e rude. Envergonhado de si próprio e de todos que o cercam, falta-lhes o sentimento da delicadeza moral, o que já se demonstra pela negligência no modo de vestir; porém, é bem intencionado,

33 MACHADO, Francisco Xavier. Memória Relativa ás capitanias do Piauhy e Maranhão. RIHGB, vol. 17, pp. 56-69, 1854. (pp. 63) 34 Sobre a produção algodoeira maranhense, ver o texto de Dauril Alden. O autor traz a análise do período final do século XVIII, a que chama “renascimento agrícola” do Brasil. ALDEN, Dauril. O período final do Brasil Colônia: 1750-1808. in. BETHELL, Leslie (org.) América Latina Colonial, vol. II. São Paulo: Editora da USPP. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2004. (pp. 564) 35 MACHADO, idem. pp.68. 36 MACHADO, idem. pp.63. 37 MACHADO, idem. pp.63. 38 SPIX e MARTIUS. Viagem pelo Brasil. Belo Horizonte : Ed. Itatiaia. São Paulo : Ed. Da Universidade de São Paulo, 1981. (vol II) pp. 03. 39 SPIX e MARTIUS, op. cit. pp. 75.

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prestativo, nada egoísta e de gênio pacífico. A solidão e a falta de ocupação espiritual, arrastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sensual, no qual, incitado pelo seu temperamento insaciável e pelo calor do clima, gozam com requinte. O ciúme é quase a única paixão que o leva ao crime.40

Ainda sobre as doenças e o clima, assuntos intimamente relacionados nos relatos, é

interessante observar a descrição de outro viajante do sertão, Antonio Bernardino Pereira do Lago,

coronel do Real Corpo de Engenheiros. Viajando pelo extremo oeste da capitania do Maranhão, nos

limites com o Pará, o coronel observa a condição da Vila de Santa Helena no ano de 1820. Segundo

ele, apesar do local da povoação não ser desagradável, o excessivo calor que alli se observa (...) a superfície alagada, barrentas águas, e máo sustento de pequenos peixes, tudo isto torna S. Helena durante nove mezes em lugar só de penúria e doença41

E no período em que as águas da chuva voltam ao nível normal, deixando a mostra os corpos

dos animais mortos, “ninguém escapa a sezões (...) e muitos contam a idade pelos annos em que

têm estado doentes”42. Essa última afirmação do viajante vai de encontro ao que foi analisado por

Maria de Fátima Costa nos relatos de Alexandre Rodrigues Ferreira. Em ambos os casos, a condição

de habitante do sertão se imbrica com o estado de patologia de tal forma que os naturalistas, ao que

parece, convivem com isso cotidianamente, já que o tema ocupa tantas páginas dos relatos. E, se a

povoação de Santa Helena pode ser tomada como base, durante nove meses do ano – ou, em

apenas três meses a situação é diferente – o sertão apresenta somente “penúria e doença”.

Atestando mais uma vez as condições precárias de saúde das expedições, em ofício de 22 de

novembro de 1799 – portanto menos de três meses depois da partida dos viajantes – , o governador

do Maranhão D. Diogo de Souza escreve ao bacharel sobre ser de seu conhecimento que a

“insalubridade daquela Ribeira atacam [sic] toda cometiva” e que Dias Cabral “estivese tão infermo

como aqui me informarão algumas testemunhas oculares”43. O governador inclusive indica uma

receita utilizada pelos exércitos romanos para “para aliviarem ás currupsoens internas”.

As batalhas contra o clima parecem mesmo ser muitas, visto a recorrência do assunto. Logo

no início de seu “Discurso Preliminar e Histórico sobre o clima da Capitania de Maranhão e Piauh^y

em geral; origem das Serranias dos seus Sertoens, e Rezultados Salinos das Rochas da mesma;

Propriedade do seu clima para anitrificação das terras; Sobre as nitreiras arteficiais, e methodo

econômico de as fabricar em pequeno” , Joaquim José Pereira fala sobre as condições do clima no

sertão do Maranhão e Piauí:

40 IDEM, pp. 76. 41 LAGO, Antonio Bernardino. Itinerário da província do Maranhão por Antonio Bernardino Lago, coronel do real corpo de engenheiros começado em janeiro de 1820. RIHGB, v. 44-45, p. 385-422, 1872. pp. 394. 42 IDEM, pp.394. 43 AHU, Maranhão, Caixa 108, doc. 8487.

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O ar he quente e humido, paudozo, e doentio (...) as carnes frescas se corrompem em 24 horas, e as que se goardão secas crião hum gusmo, ou moncozidade (...) os que viageam, e dormem no campo achão a ropas humidas quando as querem vestir de manhã (...) o calor he perpetu-o, os corpos estão sempre em actual traspiração sencivel, e copioza.44

Mais uma vez o clima dos trópicos é dado como impróprio para se viver, diferentemente do

clima temperado europeu. O clima parece fazer com que a jornada seja dramática, longa e cansativa.

As doenças do sertão atacam às comitivas exploradoras, matando em muitos casos seus integrantes,

tornando-se presença certa nos relatos.

Outro tema recorrente nos diários e memórias de viagem é a questão do trabalho dos

habitantes do sertão. Apesar de Francisco Xavier Machado falar sobre a boa índole dos habitantes e

de serem “fáceis de levar onde necessário for”45, Vicente Jorge Dias Cabral vai perceber a dificuldade

de se recrutar mão-de-obra em sua viagem: A mão d'aobra aqui he muito cara quero dizer os jornaes dos trabalhadores. Não há q.m queira trabalhar nem por bons modos nem sendo obrigados. Se algum se rezolve atura poucos dias e não mais enunca sem o interesse da comida (...). No decurso das minhas jornadas vi em todas as fazendas homens ociozos cheos de nudez e de mizeria que senão rezolvião a plantar algodão p.ª vestir, e o pão para matar afome. Eu os convidava p.ª me ajudar no trabalho prometendo-lhes fartura seg.ª que o Serviço Real os livraria da recluta (do que no Certão há grande horror) não forão suficientes os meios lembrados. Em huma palavra só o trabalho a cavalo em perseguição dos gados fazem de boa vontade não sendo aturado por muito tempo outro qualquer trabalho, dizem elles he proprio dos escravos cativos.46

Este é um dos raros momentos em que Cabral dedica-se a tecer comentários sobre os

sertanelos. O trabalho a cavalo nas fazendas como forte inclinação dos habitantes também é

mencionado por Frei Vicente Salgado, cronista da Congregação da terceira ordem do Convento de N.

Senhora de Jesus de Lisboa. O frei é autor do “Roteiro do Maranhão a Goiaz pela capitania do

Piauhi”47, escrito em 1800, no qual se lê que os moradores tem a maior felicidade e empenho para

merecer algum dia o nome de vaqueiro.

06 – CONCLUSÕES Os diferentes sertões

A marcada ausência de análise dos habitantes do sertão no relato da viagem de Dias Cabral e

José Pereira deriva, em grande medida, dos objetivos científicos de sua viagem. Andando pelos

currais das fazendas a procura de material orgânico – que daria origem ao salitre natural, os viajantes

44 AHU, Maranhão, Cx.127, doc.9556 45 MACHADO, idem, pp. 64. 46 AHU. Maranhão. Caixa 127, doc. 9555. 47 SALGADO, Vicente. Roteiro do Maranhão a Goiaz pela capitania do Piauhi. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 99, 1891, pp. 60-161.

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não se dão conta do restante da paisagem a sua volta. A paisagem do sertão do Piauí não chama

atenção dos viajantes: ambos brasileiros. O padre já viajara algumas vezes pela província e o

bacharel, mesmo estudando em Portugal, tem sob seus olhos a terra natal48. O espanto com a

paisagem brasileira é peça chave na percepção diferenciada das paragens visitadas. Obviamente

não se pode tomar isso como regra. Mesmo dentro do bojo científico e natural de terras brasileiras,

Alexandre Rodrigues Ferreira se espanta muito em suas primeiras andanças pela Amazônia. Os

relatos apresentam até elementos fantásticos em um primeiro momento. Com o passar dos anos – a

viagem durou uma década – os olhos do viajante acostumaram-se à paisagem e a atenção voltou à

ciência.

Com os viajantes estrangeiros do século XIX que visitaram o Brasil, mudam os objetivos,

mudam os olhares. O exótico da paisagem e do habitante do sertão é descrição certa nos relatos.

Spix e Martius, em trecho citado, fazem uma descrição até psicológica do sertanejo. O próprio

sertanejo pode ser rastreado. O termo para designar os habitantes do sertão não aparece nas fontes

analisadas do século XVIII. Sua aparição se dá apenas no relato da viagem de Martius e Spix, em

fins dos anos de 1810. Além da caracterização do local de nascimento do habitante, o termo começa

a se desenhar como definindo um grupo de pessoas que partilha de uma série de hábitos e costumes

e é identificado por isso. Ao longo do século XIX, com as análises dos viajantes sobre esses

habitantes o termo vai se firmando pelo que é conhecido até hoje. Pode-se acompanhar essa

trajetória também pelos dicionários. D. Raphael Bluteau em seu Vocabulário Portuguez e Latino,

publicado em 1712, vai caracterizar sertanejo apenas como “cousa do sertão” sem nenhuma

referência aos habitantes. Um século mais tarde, no Diccionario da Língua Portugueza de Antonio de

Moraes Silva, o termo já aparece definido como o “que vive no sertão, ou matos interiores, e longes

da costa.”49 Essa definição de sertanejo e mesmo do sertão, não mais se refere a qualquer território

longe da costa, mas especificamente ao nordestino, marcado por características idiossincráticas, as

quais foram inicialmente apresentadas pelo próprio padre Joaquim José Pereira, em memória

produzida, já citada., elaborada em suas viagens anteriores.50

A idéia de uma “ciência dos viajantes” do século XIX é apresentada pela historiadora Lorelai

Kury. Segundo ela, “para grande parte dos naturalistas do século XIX, a multiplicidade de sensações

que envolvem o naturalista em sua viagem poderia e deveria ser descrita pela ciência”51. Obviamente

48 A questão da identidade dos viajantes é tema do trabalho já comentado de Ana Lúcia R. B. Cruz. 49 SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Língua Portugueza recopilado dos vocábulos impressos até agora, e nesta segunda edição novamente emendado, e muito accrescentado. Lisboa : Typographia Lacerdina, 1813, e BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino. Coimbra : Collegio das Artes da Companhia de JESU, 1712. 50PEREIRA, Joaquim José. Memória sobre a extrema fome e triste situação em que se achava o sertão da Ribeira do Apody. RIHGB, v. 20, pp. 175-185, 1857. 51 KURY, Lorelai. Viajantes-naturalistas no Brasil oitocentista: experiência, relato e imagem. História, Ciências, Saúde. Manguinhos, vol. 8 (suplemento), p. 863-880, 2001. pp.870.

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que a noção de sensação na ciência não é dada pelos racionais naturalistas do século XVIII. Essa

diferença também faz parte da composição de um sertão diferente para cada século. Se os

naturalistas que percorreram o Maranhão e o Piauí viram apenas salitre natural, doenças e o

remédio, a quina, os viajantes do XIX buscam “descrever de modo exaustivo e profundo diversos

elementos que compõe cada lugar. (...) É como se cada parte contivesse o todo”52.

07 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FONTES IMPRESSAS: BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino. Coimbra : Collegio das Artes da Companhia de JESU, 1712. FERREIRA, João de Sousa. Noticiário maranhense (Descripção do Estado do Maranhão...). RIHGB, n. 135, p. 289-352, 1917;

LAGO, Antonio Bernardino. Itinerário da província do Maranhão por Antonio Bernardino Lago, coronel do real corpo de engenheiros começado em janeiro de 1820. RIHGB, v. 44-45, p. 385-422, 1872. MACHADO, Francisco Xavier. Memória relativa às capitanias do Piauhy e Maranhão por Francisco Xavier Machado. RIHGB, n. 17, p. 56-69, 1854; PEREIRA, Joaquim José. Memória que contém a descripção e problemática da longitude e latitude do sertão da capitania geral de São Luiz do Maranhão.... . RIHGB, v. 20, p. 165-169, 1904. PEREIRA, Joaquim José. Memória sobre a extrema fome e triste situação em que se achava o sertão da Ribeira do Apody. RIHGB, v. 20, pp. 175-185, 1857. RIBEIRO, Francisco de Paula. Roteiro da viagem que fez o capitão Francisco de Paula Ribeiro as fronteiras da Capitania do Maranhão e da de Goyaz no anno de 1815. RIHGB, n. 10, p. 5-81, 1848;

SPIX e MARTIUS. Viagem pelo Brasil. Belo Horizonte : Ed. Itatiaia. São Paulo : Ed. Da Universidade de São Paulo, 1981. (vol II) FONTES MANUSCRITAS: CABRAL, Vicente Jorge Dias. Memória sobre as nitreiras naturaes da parte inferior da Capitania do

Piauhÿ. 1801. AHU. Maranhão. Caixa 127, doc. 9555. _____.Análise botânica da planta denominada manacá. 1803. AHU. Maranhão. Caixa 128, doc. 9595. _____. Documentos diversos. AHU. Maranhão. Caixa 128, doc. 9574. _____. Documentos diversos. AHU. Maranhão. Caixa 128, doc. 9595. _____. Documentos diversos. AHU. Maranhão. Caixa 125, doc. 9471. _____. Documentos diversos. AHU. Maranhão. Caixa 115, doc. 8926 CABRAL, Vicente Jorge Dias e PEREIRA, Joaquim José. Documentos diversos. AHU. Maranhão.

Caixa 127, doc. 9555. 52 IDEM, pp. 870.

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GAIO, João Machado. Viagem Filosófica na Serra de Ibiapaba, capitania do Siara Grande. AHU. Maranhão. Caixa 64, doc. 5719.

PEREIRA, Joaquim José. Memória sobre nitros naturais, sal de Glauber, Quina e mais produções inventadas na capitania do Piauí e Maranhão. 1803. AHU, Maranhão, Cx.127, doc.9556.

_____. Diário ou Memória. 1799. AHU, Maranhão, Cx.127, doc.9556 _____. Observações deste diário ou Memória sobre as Produções naturaes. 1799. AHU, Maranhão,

Cx.127, doc. 9556. _____. Memoria ou addendo, á continuação do Diário em credito da quina quina do Piauhÿ. 1801.

AHU. Maranhão. Caixa 127, doc. 9555. _____. Suplemento á dizertação ou memoria sobre o Sal de Glauber ou sulfato de soda remetida do

Iguará no anno de 1799. 1800-1801. AHU. Maranhão. Caixa 127, doc. 9555. _____. Memoria sobre o sal aluminozo de plumas. Alumen plumosum. 1800-18001. AHU. Maranhão.

Caixa 127, doc. 9555. _____. Breve memoria sobre o alumen farinaceo, ou mina aluminoza volcanica de solfatara.1800-

1801. AHU. Maranhão. Caixa 127, doc. 9555. _____. Memorias de mineralogia dos diferentes metaes achados na parte inferior do Piauhÿ. 1800-

1801. AHU. Maranhão. Caixa 127, doc. 9555 _____. Memoria sobre o salitre natural na continuação do diario. 1801. AHU. Maranhão. Caixa 127,

doc. 9555. _____. Documentos diversos. AHU, Maranhão, Cx.127, doc.9556.

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