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JANIRA FELICIANO POHLMANN O ILUSTRE DIÁLOGO DE QUINTO AURÉLIO SÍMACO EUSÉBIO COM A TRADIÇÃO PAGÃ E COM HOMENS PÚBLICOS CRISTÃOS CURITIBA 2009

o ilustre diálogo de quinto aurélio símaco eusébio com a tradição

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JANIRA FELICIANO POHLMANN

O ILUSTRE DIÁLOGO DE QUINTO AURÉLIO SÍMACO EUSÉBIO

COM A TRADIÇÃO PAGÃ E COM HOMENS PÚBLICOS CRISTÃOS

CURITIBA

2009

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JANIRA FELICIANO POHLMANN

O ILUSTRE DIÁLOGO DE QUINTO AURÉLIO SÍMACO EUSÉBIO

COM A TRADIÇÃO PAGÃ E COM HOMENS PÚBLICOS CRISTÃOS

Monografia apresentada como requisito para obtenção do diploma de graduação em História, Departamento de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Professor orientador: Dr. Renan Frighetto.

CURITIBA

2009

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ÍNDICE

ÍNDICE .................................................................................................................................... 3

AGRADECIMENTOS ................................................................................................................. 4

RESUMO ................................................................................................................................. 5

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 6

Metodologia....................................................................................................................... 7

Tipologia da fonte............................................................................................................ 10

CAPÍTULO I - UM PANORAMA TARDO-ANTIGO ...................................................................... 13

CAPÍTULO II - SÍMACO E A DEFESA DA TRADIÇÃO................................................................. 18

O senador Quintus Aurelius Symmachus Eusebius ........................................................ 18

A defesa da tradição pelo illustris Símaco....................................................................... 19

CAPÍTULO III - ALGUNS ASPECTOS NEOPLATÔNICOS: O MOS MAIOTUM E A ORATIO................ 26

O mos maiorum: o testemunho da tradição ..................................................................... 26

O poder da oratória preservado e desejado no diálogo entre paganismo e Cristianismo

durante a Antiguidade Tardia Ocidental.......................................................................... 30

A oratória de Quinto Aurélio Símaco Eusébio ....................................................... 32

A oratória entre o paganismo e a cristandade........................................................ 37

O poder da oratória preservado e desejado ........................................................... 40

ALGUMAS CONCLUSÕES ....................................................................................................... 42

REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 45

Fontes .............................................................................................................................. 45

Estudos ............................................................................................................................ 45

Site visitado ..................................................................................................................... 47

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AGRADECIMENTOS

Tenho consciência de que este é apenas o início de um longo caminho que decidi

percorrer. Mesmo assim, este trabalho é resultado de quatro anos de muito estudo. Período

no qual recebi muito apoio e incentivo. Por isso, sou imensamente grata:

ao Prof. Dr. Renan Frighetto, pela prudente orientação e amizade; pelo estímulo e

questionamentos constantes que me impulsionavam a mais leituras e novas aventuras em

busca do aprendizado. Agradeço, acima de tudo, as várias conversas descontraídas,

intercaladas por discussões historiográficas e histórias de vida;

a Prof. Dra. Fátima Regina Fernandes, pela amizade, troca de idéias e pela alegria

que emanava de nossas conversas, seja no Núcleo de Estudos Mediterrânicos (NEMED) ou

no Café com Bolachas;

ao amigo Otávio Luiz Vieira Pinto, pelas intermináveis discussões historiográficas;

pelo apoio nas horas de desespero perante as dezenas de trabalhos exigidas ao longo do

curso e pela fiel companhia na participação de eventos;

aos membros discentes do Núcleo de Estudos Mediterrânicos (NEMED), pelas

dicas, troca de experiências e sugestões de leituras que enriqueceram meu caminho e

esclareceram dúvidas contextuais e metodológicas;

dedico uma menção especial a minha família: ao meu amado marido Ewagner, pela

paciência, por entender minhas ausências – mesmo quando eu estava em casa, mas imersa

em afazeres e leituras que tomavam meu tempo e minha mente; aos meus queridos pais

que, mesmo residindo longe, acompanhavam meus esforços e apoiavam

incondicionalmente meus passos;

por fim, agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e

Tecnológico (CNPq) pelo financiamento de minha bolsa de Iniciação Científica que me

ajudou a integrar o cenário de discussões e pesquisas em eventos pelo Brasil.

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RESUMO

Dentre as diversas transformações levadas a cabo durante a Antiguidade Tardia, destaca-se o fortalecimento do Cristianismo em detrimento da filosofia pagã. Contudo, percebemos que os representantes destas culturas religiosas não deixaram de estabelecer diálogos constantes: enquanto cristãos procuravam estabelecer as bases de sua teologia, pagãos desejavam resguardar e fortificar seus espaços de representatividade.

Neste contexto, a defesa do costume dos antepassados (mos maiorum) e a arte da oratória (oratio) foram princípios norteadores daquela sociedade romana que se re-elaborava diante das novas conjunturas, mas que resguardava os saberes do passado e o propagava através da oratória. Enquanto o mos maiorum refere-se à conservação da tradição, do culto aos deuses, à busca incessante pelo conhecimento, à manutenção das virtudes, dos costumes dos antepassados, a oratio é a capacidade de “falar bem”, falar com conhecimento de causa, não apenas com desenvoltura e elegância na expressão. Estes conceitos, comuns no cotidiano pagão, eram também caros aos cristãos, pois auxiliavam na preservação e na propagação da “mensagem de Jesus Cristo”. Uma vez que estes preceitos incluíam momentos de orações, a busca do saber, a salvaguarda das virtudes e a defesa do bem comum, e era a prática diária destas ações que garantiam a hegemonia e a eternidade de Roma. Portanto, para compreender melhor as especificidades do período tardo-antigo, esta pesquisa considera o prolongado diálogo entre a cultura pagã greco-romana e a cultura cristã.

A investigação de documentos da segunda metade do século IV e início do V, em especial os Informes, Discursos e as Cartas (Livros I – V) de Quinto Aurélio Símaco Eusébio, realizada nessa pesquisa constatou a riqueza desta época de modificações e interações culturais. Estes escritos comprovaram os diálogos existentes entre pagãos e cristãos, ao menos no ambiente político-adminitrativo romano e a estima de determinadas práticas tradicionais para importantes personagens da época, tanto cristãos como pagãos. Para tanto, foi efetuada uma análise minuciosa do interesse pelos exemplos advindos do passado – através do mos maiorum – e das competências emanadas da arte da oratória, princípios estes explícitos nos documentos históricos selecionados para este estudo. A fim de aprimorar a compreensão e a contextualização das expressões latinas, também foi empregada a linguística histórica, entre outras técnicas de trabalho. Além disso, a leitura de bibliografias referente ao assunto apoiou a contextualização do período em questão.

Palavras-chave: Antiguidade Tardia, Mos Maiorum, Oratio.

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INTRODUÇÃO

Os chamados períodos “transitórios” são ricamente constituídos de aspectos

próprios que marcam, concomitantemente, rupturas e continuidades. Contudo, geralmente,

são estudados apenas como “intermediários”: fim de um momento histórico e início de

outro. Suas peculiaridades se perdem entre outros dois “grandes períodos”. Esta noção de

“período intermediário”, sem características próprias, não faz jus a momentos repletos de

particularidades.

A fim de compreender melhor o período tardo-antigo, no qual ocorreu o

fortalecimento do Cristianismo, essa pesquisa se propõe a esclarecer especificidades deste

momento histórico e percebê-lo como um momento de transferências culturais e não

somente como um período de crises ou de transição entre a Antiguidade e a Idade Média.

Quanto mais estudamos e conhecemos a Antiguidade Tardia, mais se dilui a tradicional

imagem do fim do Mundo Antigo que Edward Gibbon defendia em sua obra Declínio e

queda do Império Romano, com o primeiro volume publicado em 1776 e o último em

1788. Por conseguinte, percebemos a Antiguidade Tardia como um momento no qual a

tradição clássica se mesclou às novas realidades para construir algo original e particular.

Em especial, verificamos de que maneira e por que a cristandade se apropriou de conceitos

pagãos para fundamentar sua ideologia.

A polêmica Cristianismo-paganismo era intensa desde os primeiros séculos de

nossa era. De um lado, pagãos defendiam que o apogeu do imperium Romae se devia aos

deuses do paganismo:

Vuestra Eternidad debe mucho a la Victoria y aún le deberá más [...], no abandonéis vosotros un patrocínio favorable a los triunfos.1

He aquí una prueba de la buena disposición que hacia los romanos albergaba la divinidad mientras el culto sagrado fue objeto de observación.2

Do outro lado, cristãos acreditavam que estes antigos deuses eram, sim,

responsáveis pela decadência deste imperium, por isso, o mais justo seria abandonar as

1 SÍMACO EUSÉBIO, Quinto Aurélio. Informe – Discursos. Introducciones, traducción y notas: José Antonio Valdés Gallego. Madrid: Editorial Gredos S.A., 2003, Informe 3, 3, p. 38. 2 Zósimo, escritor pagão, foi atuante na vida pública romana no final do século V e início do século VI. No trecho selecionado para estudo, o autor refere-se a um povoado de Áfaca (situada entre a atual Baalbek e Biblos, em territórios atualmente libaneses) que, enquanto cultuou a Afrodite de Áfaca foi protegido por ela. Porém, pouco a pouco as homenagens foram esquecidas e, conforme Zósimo, isto fez com que a comunidade se rendesse aos bárbaros – não denominados pelo autor. In: ZÓSIMO, Nueva História, Libro I, 4, p. 150.

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falsas divindades e obedecer ao verdadeiro Deus (o cristão). Conforme podemos observar

em alguns excertos selecionados:

Ese Dios autor y doador de la felicidad, porque sólo él es el verdadero Dios, es el mismo que da los reinos sobre la tierra a los buenos y a los malos [...] según un orden en las cosas y en los tiempos, orden que es desconocido para nosotros, pero conocidíssimo para Él.3

[...] en la opinión de casi todos los filósofos que gozan de gloria ilustre, hay un solo Dios aunque designado con múltiples nombres [...] Y si el mundo está regido por una providencia y gobernado por la voluntad de un solo Dios, no debe la antigüedad ignorante, deleitada y cautivada por sus falsas historias, inducirnos al error de seguirla.4

Entretanto, mesmo neste contexto de conflitos de crenças religiosas, notamos

diversos intercâmbios culturais ocorridos em um período que mesclou a formação dos

dogmas cristãos, através dos concílios, e o convívio – prático e respeitoso – com

representantes de outras ideologias, no caso em estudo, o pagão Quinto Aurélio Símaco

Eusébio.

Neste ínterim, essa monografia apresenta estudos a respeito do diálogo entre pagãos

e cristãos em tempos de fortalecimento do Cristianismo, tema escasso na historiografia

brasileira. A ênfase nas perseguições contra os cristãos nos primeiros séculos de nossa era

e a posterior legislação Teodosiana contra os pagãos são temas recorrentes no estudo da

História Antiga e Tardo Antiga, no Brasil. Todavia, estas pesquisas ressaltam as querelas

entre estes dois universos religiosos, não as interações culturais. Sendo assim, esse estudo

lança um novo olhar sobre o mundo político-administrativo e religioso da Antiguidade

Tardia.

Metodologia

Orientam essa pesquisa duas correntes historiográficas distintas. A primeira,

expressa na tese de Eustaquio Sánchez Salor sobre o diálogo entre os defensores de

distintas crenças, ressalta os problemas existenciais e vivenciais enfrentados por pagãos e

3 Agostinho de Hipona, um dos mais conhecidos doutores da Igreja, viveu entre 354 e 430 Sua obra mais famosa é A cidade de Deus, na qual defende a ideologia cristã. O trecho destacado para estudo faz parte desta obra. AGOSTINHO. La ciudad de Dios, 26. Apud: SÁNCHEZ SALOR, Eustaquio. Polémica entre cristianos y paganos a traves de los textos: problemas existenciales y problemas vivenciales. Madrid: Ediciones Akal S.A., 1986, pp. 213 – 214. 4 Minucio Félix viveu entre os séculos II e III. Foi autor do diálogo Octauius, no qual as superstições pagãs são atacadas e as acusações contra os cristãos são refutadas pelo interlocutor que leva o nome do diálogo. MINUCIO FELIX, 20 ss. In: SÁNCHEZ SALOR, op. cit.,p. 96.

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cristãos5. Os excertos de documentos apresentados pelo autor em seu livro possibilitam ao

leitor verificar as diferenças de pensamento e as disputas travadas entre os representantes

do paganismo greco-romano e do Cristianismo, no intento de defender os deuses antigos e

os ensinamentos de Jesus Cristo, respectivamente. Já a segunda corrente, exemplificada

nessa monografia pela obra de Eric Robertson Dodds, apesar de também apontar as

distinções e os conflitos entre estes indivíduos, evidencia a existência dos diálogos, embora

não descarte as polêmicas6.

Certamente Sánchez Salor propõe um diálogo, entretanto, enfatiza as desavenças.

Por outro lado, Dodds salienta a conversação entre os membros da ecclesia e os pagãos.

Sem discordar dos embates religiosos presentes no cotidiano romano, esse trabalho

monográfico se detém em confirmar o diálogo entre o paganismo e o Cristianismo em

torno de um objetivo comum: a aeternitas imperii romanorum.

A fim de identificar se efetivamente existiu um contínuo diálogo entre estes

grupos, essa monografia é norteada pela análise de algumas adaptações ideológicas e

conceituais da antiga virtude pagã dos mori maiorum em princípios cristãos e pelo

minucioso exame dos elogios de destacados representantes do Cristianismo a oratio de um

senador pagão. Enquanto o mos maiorum refere-se à conservação da tradição, do culto aos

deuses, dos costumes dos antepassados, a oratio é a capacidade de “falar bem”, falar com

conhecimento de causa, não apenas com desenvoltura e elegância na expressão. Estes

conceitos, comuns no cotidiano pagão, eram caros aos cristãos, pois auxiliavam na

preservação e na propagação da “mensagem de Cristo”. Conforme afirma Pereira, as idéias

morais e políticas da tradição greco-romana foram um importante legado cultural para os

séculos vindouros7. Por isso, a autora destina um capítulo inteiro de sua obra para analisar

algumas destas virtudes. Explanação que foi o passo inicial para a leitura executada ao

longo dessa monografia, pois o estudo destes conceitos permite a melhor compreensão das

conjunturas políticas e religiosas da época. Desde a Antiguidade, era necessária a

observação de inúmeros aspectos para ser considerado um cidadão romano, quer fosse em

tempos de paganismo ou de Cristianismo. O bom cidadão, então, deveria possuir mais

destaque do que o comum, ou seja, deveria ser possuidor de virtudes. Aqueles que as

5 SÁNCHEZ SALOR, Eustaquio. Polémica entre cristianos y paganos a través de los textos: problemas existenciales y problemas vivenciales. Madrid, Espanha: Ediciones Akal S.A., 1986. 6 DODDS, Eric Robertson. Paganos y Cristianos en una epoca de angustia: algunos aspectos de la experiencia religiosa desde Marco Aurélio a Constantino. Tradução para o español: J. Valiente Malla, Madrid, Espanha: Ediciones Cristandad, 1975. 7 PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Idéias morais e políticas dos romanos. In: Estudos de História da

Cultura Clássica. II volume – Cultura Romana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, s/d.

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desfrutavam podiam ser grandes administradores e, com a ajuda da sorte e da Fortuna, um

imperator. Todavia, os significados das palavras são amplamente explorados e utilizados,

podendo ser entendidos de maneiras distintas em contextos diferentes. Sendo assim, os

conceitos apresentados nesse trabalho foram estudados a partir de seu respectivo universo,

através de pesquisa sobre o momento histórico, da análise das fontes e do ambiente no qual

o escritor estava inserido.

Notamos que as adequações, ocorridas durante a Antiguidade Tardia, caracterizam

o período como um momento de transição, de mudanças, não como uma época obscura e

de crise. Para nortear este ponto de vista, recorremos a três historiadores brasileiros:

Cláudio Umpierre Carlan, Norberto Luiz Guarinello e Renan Frighetto. O primeiro deles

esclarece que, durante o século IV8, as alterações ocorridas no orbe dos romanos oscilaram

entre reconstrução, decadência e apogeu. Muitos territórios perdidos durante a anarquia

militar do século anterior, foram recuperados pela Tetrarquia instaurada por Diocleciano.

Constantino reorganizou a administração e as finanças de Roma9. Deste modo, o autor

enfatiza que muitos imperatores tiveram um governo estável, apesar das conjunturas de

crise, e promoveram o renascimento da vida social e pública romana. Guarinello, a par e

passo com esta perspectiva, distingue este momento como “pleno de experimentações, de

inovações”10. Noções defendidas também por Frighetto, o qual considera a Antiguidade

Tardia como um período de significativa “riqueza para uma abordagem histórica e

historiográfica exatamente porque caracteriza-se como uma época de transição entre a

Antiguidade Clássica e a Idade Média”, mas assinalada por uma identidade própria11. Em

tempos de dificuldades fiscais, conflitos internos, desavenças religiosas e ameaças externas

(impostas especialmente pelos povos germânicos e pelos persas, conhecidos como

bárbaros), as forças atuantes no imperium romanorum redefiniram a unidade imperial e

provocaram mudanças na estrutura social romana. Portanto, o foco destes historiadores são

as transformações e re-adaptações ocorridas antigo. Mudanças, estas, que inseriram no

8 As datas apresentadas nesse estudo referem-se à época posterior ao nascimento de Jesus Cristo, por isso, não lançarei mão continuamente da expressão "d.C.". Quando se fizer necessário destacar algum acontecimento anterior a Cristo, enfatizarei com o enunciado "a.C.". 9 CARLAN, Cláudio Umpierre. O mundo romano no século IV : decadência ou reestruturação. Fênix - Revista de História e Estudos Culturais. vol. 4, ano IV, n. 1, Janeiro/Fevereiro/Março de 2007. Disponível em: <www.revistafenix.pro.br/vol10claudio.php > Acesso em: 05/02/2009. 10 GUARINELLO, Norberto Luiz. Prefácio. In: SILVA, Gilvan Ventura da. Reis, santos e feiticeiros : Constâncio II e os fundamentos místicos da basiléia (337 – 361). Vitória, Brasil: Edufes, 2003, p. 12. 11 FRIGHETTO, Renan. Cultura e poder na Antiguidade Tardia Ocidental. Curitiba: Juruá Editora, 2000, p. 21.

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universo político-adminitrativo romano, até então exclusivamente pagão, destacados

indivíduos que professavam a fé em Cristo.

Este novo cenário propiciou o diálogo entre pagãos e cristãos e, consequentemente,

proporcionou constantes “migrações” entre as idéias da antiga filosofia e da nascente

teologia cristã. Portanto, a noção de “interação cultural”, proposta por Arnaldo

Momigliano12, permeia as páginas dessa monografia, visto que este conceito enfatiza as

relações de influência mútua entre os representantes das culturas religiosas aqui

consideradas. Propõe o diálogo, além de continuidades e mudanças ocorridas

concomitantemente. Permite ao pesquisador observar que estas interações culturais

ocorreram em um período que mesclou a formação dos dogmas cristãos, através dos

concílios, e a reafirmação da cultura antiga.

Com base, principalmente no referencial teórico abordado, a investigação de fontes

da segunda metade do século IV e início do V, em especial os Informes, Discursos e as

Cartas (Livros I – V) de Quinto Aurélio Símaco Eusébio, realizada nessa pesquisa

constatou a riqueza desta época de modificações e interações culturais. Estes escritos

comprovaram os diálogos existentes entre pagãos e cristãos, ao menos no ambiente

político-adminitrativo romano. Evidenciamos o prezar pelo conhecimento e o esmero pela

erudição, heranças da era clássica perpetuadas neste universo tardo-antigo.

Tipologia da fonte

As Cartas (Livro I – V) de Quinto Aurélio Símaco Eusébio apresentam atividades

cotidianas de um senador romano, tanto no que se refere a questões político-

adminsitrativas como a sua contínua busca pelo conhecimento e pela preservação dos

costumes dos antepassados, dos melhores cidadãos romanos, o mos maiorum. Grande parte

dos destinatários das Cartas deste autor são personagens que ocupavam cargos de

relevância no ambiente romano. Por isso, a análise destes documentos permite o melhor

conhecimento e entendimento do cenário político, administrativo e social daquele

momento.

Este epistolário foi dividido em dez livros, sendo que os sete primeiros apresentam

os destinatários. O restante, sobretudo o último deles, já não possui esta informação. Nessa

monografia, o estudo restringe-se aos cinco primeiros livros traduzidos diretamente do

12 MOMIGLIANO, Arnaldo. Os limites da helenização...

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latim para o espanhol por José Antonio Valdés Gallego, pela Editora Gredos, sendo esta a

primeira tradução para tal idioma.

De acordo com Gallego, o próprio Símaco conservou exemplares de suas cartas,

classificados por destinatários, com o propósito de publicá-las. Talvez tenha conseguido

editar o primeiro livro. Depois da morte de seu pai, coube a Quinto Aurélio Memio

Símaco, filho do autor, a publicação dos seis outros livros (ou dos sete, caso o primeiro não

tenha sido editado pelo próprio escritor). As obras remanescentes foram publicadas ao final

do século V por alguém vinculado à família dos Anicios, família cristã e protetora da

cultura romana13.

Além das Cartas, os Informes de Símaco permitem o aprofundamento dos estudos

sobre o mundo senatorial romano do século IV, principalmente, porque os destinatários

destes documentos eram os imperatores. Esclarecem-se, então, demandas sociais e

comerciais sob responsabilidade do magistrado, bem como sua relação com os principes.

Assim como para a pesquisa sobre as Cartas, a edição selecionada dos Informes faz parte

da coleção da Editora Gredos e foi traduzida pelo mesmo escritor14. Conforme Gallego,

devido à preservação destes Informes, a Prefeitura Romana de Símaco é o mandato mais

conhecido de um magistrado durante o período tardo-antigo15, o que torna incontestável a

importância da análise destes documentos.

Quanto às publicações dos Informes na Antiguidade, os autores defendem

diferentes teorias sobre o número de edições. O. Seeck acredita que foram duas: uma do

próprio autor e outra de seu filho. Já Matthews defende a existência de uma única edição

feita por Memio16.

Enquanto as Cartas eram destinadas a indivíduos que ocupavam diferentes cargos,

todos os Informes são destinados aos imperatores, pois estes documentos são

correspondências oficiais escritas durante a magistratura de Símaco como Prefeito da

Cidade de Roma (384 – 385). Quando não possui um cabeçalho com os destinatários, estes

13 GALLEGO, José Antonio Valdés. Introducción General. In: SÍMACO EUSÉBIO, Quinto Aurélio. Cartas (Libros I – V). Introducciones, traducción y notas: José Antonio Valdés Gallego. Madrid: Editorial Gredos S.A., 2000, pp. 22 - 24. 14 Nesta edição encontram-se os Informes e os Discursos de Símaco, também sendo esta a primeira tradução destes documentos para o espanhol. 15 GALLEGO José Antonio Valdés. Introducción. In: SÍMACO EUSÉBIO, Quinto Aurélio. Informe – Discursos. Introducciones, traducción y notas: José Antonio Valdés Gallego. Madrid: Editorial Gredos S.A., 2003, p. 9. 16 Ibid., Informes..., p. 26; e Ibid, Cartas, p. 27.

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são conhecidos nas primeiras linhas do documento por expressões como: “senhor

imperador”, ou “senhores imperadores”17.

Os outros escritos de Símaco que fundamentam esta pesquisa são os Discursos, os

quais reforçaram a fama de “orador eloquente” deste magistrado – característica que

também pode ser observada em muitos de seus Informes, marcados por traços emotivos e

por tons de discurso. Conservaram-se para a atualidade apenas oito de seus Discursos,

descobertos em um manuscrito palimpsesto repartido entre a Biblioteca Ambrosiana de

Milão e a do Vaticano18.

Nestes documentos o estilo de escrita “grandiosa” deste senador pode ser

observado detalhadamente. São registros mais extensos do que suas Cartas e Informes,

portanto, oferecem mais liberdade à tinta do autor, o qual tem maior superfície para

expressar suas idéias. Contudo, os Panegíricos, que são seus maiores Discursos, devem ser

analisados com cautela, devido à intenção glorificadora carregada por eles. Como a

natureza da própria fonte propõe, o discurso laudatório e legitimador produzido nestes

escritos é muito mais forte do que em qualquer outro documento deixado por Símaco.

Ainda em tempo, além das versões mencionadas, o estudo de todas estas fontes foi

realizado paralelamente com os documentos latinos19 disponíveis na Monumenta

Germaniae Historica20.

Conforme esclarece Gallego, Símaco não foi um autor muito lido nem traduzido.

Provavelmente devido à dificuldade de sua língua ou por pertencer a uma época em que o

Cristianismo triunfante gerou grandes nomes como Ambrósio de Milão21. Entretanto, os

escritos deste destacado senador, considerado o último grande orador romano pagão,

remetem o pesquisador ao ambiente senatorial da segunda metade do século IV e

apresentam um cenário de diálogo permanente entre indivíduos que ansiavam pela

perenidade de Roma, promovida através do poder de mando do imperator e de princípios

norteadores daquela sociedade.

17 Expressões como estas não são encontradas apenas no Informe 45. Neste caso o autor enuncia o destinatário como “vossa Eternidade” (expressão empregada somente para imperatores). 18 GALLEGO, Informes..., op. cit., pp. 161 – 162; e GALLEGO, Cartas, op. cit., p 29. 19 Cartas: Q. Aurelli Symmachi V.C. Consulis ordinarii espistulae Informes: Q. Aurelli Symmachi V.C. praefecti urbis relationes

Dircursos: Q. Aurelli Symmachi V.C. orationum quae supersunt

Disponíveis em: <http://mdz11.bib-bvb.de/dmgh_new/app/web?action=loadBook&bookId=00000794> 20 Monumenta Germaniae Historica: < www.dmgh.de > 21 GALLEGO, Cartas, op. cit., pp. 29 – 30.

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CAPÍTULO I

UM PANORAMA TARDO-ANTIGO

Nos séculos IV e V, uma imensa quantidade de concílios formataram os dogmas e

as ideologias da cristandade. Estas passaram, então, a ser empregadas por Constantino I e

por seus sucessores como um instrumento de unidade e de universalidade do poder do

imperator. O fortalecimento da fé cristã e, em especial, sua utilização política pelo

governante do imperium romanorum modificaram profundamente a sociedade tardo-

antiga. Ao estudar este contexto, algumas hipóteses podem ser sugeridas: a tradição pagã,

tão arraigada a Antiguidade Clássica e aos cidadãos romanos, foi constantemente adaptada

por pensadores cristãos até se tornar ideais convenientemente cristianizados; os defensores

de ambas perspectivas religiosas (paganismo e Cristianismo) mantinham constante diálogo,

o que propiciou a interação entre suas idéias; este diálogo, por sua vez, tinha como

principal objetivo a preservação da aeternitas Romae.

Estudar este processo de interação cultural, como salienta Arnaldo Momigliano, é

inevitável ao abordar as relações entre indivíduos – no caso estudado, pagãos e cristãos.

Interação, esta, que combina o antigo e as novidades22. Uma vez que as situações se

modificam lentamente e entrelaçam antigas perspectivas e nascentes realidades, não se

pode pensar em rupturas de pensamentos e de atitudes quando se procura compreender

pessoas. A partir deste ponto de vista, em nosso estudo, verificamos constantes

“migrações” entre as idéias da filosofia pagã e da teologia cristã em formação,

concomitantemente, a reafirmação da cultura antiga, proclamada por pagãos e adaptada aos

preceitos da assembléia dos fiéis (ecclesia23).

Neste cenário tardo-antigo, portanto, observamos que o debate entre o paganismo e

o Cristianismo não era estático. Havia uma troca contínua de idéias entre os fiéis aos

antigos deuses e os seguidores de Jesus Cristo. Não pretendemos, contudo, omitir as

disputas e os desentendimentos em nome da fé, mas nosso foco é o diálogo, quer seja

amistoso e respeitoso, ou adverso e hostil. Conforme Dodds, este diálogo aconteceu em

diversos níveis intelectuais e sociais. Homens cultos dedicaram-se a ele, porém, também

eram frequentes as discussões em assembléias, nos mercados e no interior das casas. 22 MOMIGLIANO, Arnaldo. Os limites da helenização: a interação cultural das civilizações grega, romana, céltica, judaica e persa. Tradução para o português: Claudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 1991. 23 Do grego εκκλησια (assembléia). Do latim: ecclaesia. Contudo, optou-se pela utilização da expressão do latim tardio ecclesia.

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Todavia, são poucas as fontes que permitem ao estudioso “alcançar” o diálogo ocorrido

nestes níveis24. Portanto, nessa pesquisa optamos por estudar esta conversação no ambiente

senatorial e administrativo romano, tendo em vista que esta comunicação pertencia a um

universo mais refinado e que ditava as regras sociais, morais e políticas daquela sociedade.

Nos primeiros séculos de nossa era, não havia, ainda, uma clara distinção entre a

doutrina oficial e as variantes de interpretação dos ensinamentos de Cristo. De acordo com

Doods, ao final do século II, o pagão Celso foi o primeiro a considerar o rápido

crescimento da nova doutrina como uma ameaça à estabilidade e a segurança do imperium.

Celso expôs suas opiniões em um livro chamado O Logos Verdadeiro (Alêthês Lógos). O

propósito do texto era opor-se à expansão do Cristianismo e persuadir os cristãos de que

deveriam ser melhores cidadãos, para tanto, necessitavam seguir a tradição romana da

busca pelas virtudes e do respeito ao governante. Esta obra, provavelmente publicada no

tempo de Marco Aurélio, não chegou até nossos dias; notícias de sua existência foram

passadas apenas através de menções em outros documentos. Consideramos este momento

(final do século II), como o inicio do diálogo do Cristianismo com o paganismo, visto que,

os “Padres Apostólicos”, até então, escreviam apenas para seus correligionários cristãos.

Diante do ataque de Celso, os pensadores cristãos passaram a defender, pela primeira vez,

a causa e a ideologia cristã frente ao mundo dos pagãos25. Todavia, ainda assim, os

ensinamentos de Jesus Cristo possuíam interpretações variadas que proliferavam no seio de

distintas comunidades cristãs.

Antes da intervenção de Celso, o Cristianismo era considerado mais uma das seitas

do imperium romanorum. Os cristãos estavam divididos em inúmeras comunidades que

tinham em comum, somente, a intenção de seguir os mandamentos de Cristo. Não havia

sido formulado um credo comum a todos os cristãos. Ao alertar sobre o perigo que esta

nova seita representaria para a estabilidade romana, Celso fez com que inúmeros

representantes cristãos passassem a sustentar suas ideologias diante daquela sociedade.

Deste modo, podemos estabelecer que o diálogo entre Cristianismo e paganismo iniciou-

se, sim, movido por querelas. No entanto, esta situação não perdurou por todo o tempo,

alternando momentos de discussões calorosas entre pagãos e cristãos e períodos de

comunicação respeitosa e com objetivos comuns.

24 DODDS, Eric Robertson. Dialogo del paganismo con el Cristianismo. In: Paganos y Cristianos en una epoca de angustia: algunos aspectos de la experiencia religiosa desde Marco Aurélio a Constantino. Tradução para o espanhol: J. Valiente Malla, Madrid: Ediciones Cristandad, 1975, pp. 137 – 138. 25 Ibid, p. 141.

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15

Este cenário, o qual apresentava novos personagens que buscavam espaço e voz na

sociedade romana, é marcado por fases de perseguições aos cristãos26. A “Grande

Perseguição” sob Diocleciano e Galério foi a última fase de ações contra a ecclesia e seus

correligionários, tendo sido revogada pelo próprio Galério, em 311.

Estes períodos marcados pela violência contra os cristãos, contudo, promoveram o

fortalecimento de núcleos de fiéis. Porém, estas comunidades ainda formavam seitas

propagadoras de distintas considerações a respeito dos ensinamentos de Cristo. Situação

que começou a se modificar com os concílios “ecumênicos”27, promovidos ao longo do

século IV. Aberto aos bispos de toda a comunidade cristã, estas reuniões impulsionaram e

afirmaram os preceitos da cristandade28.

No ano 313, os diarcas do Ocidente e do Oriente, Constantino I e Licínio,

respectivamente, decretaram a liberdade dos cultos através do Edito de Milão, também

conhecido como Edito da Tolerância. Conforme afirmam Simon e Benoit, o Cristianismo

passou a ser mais uma das religiões do imperium, em igualdade de condições a outras29.

Nenhuma das religiões do universo romano foi explicitamente favorecida. Entretanto, a

História demonstra que esta atitude não somente pôs fim à perseguição contra os cristãos

como, também, iniciou uma nova fase na relação entre os participantes da ecclesia e o

imperium romanorum. De acordo com Blázquez, a política religiosa de Constantino

baseava-se na unidade da nova religião como um dos pilares do imperium. A partir de

então, o Cristianismo passou a ser um suporte ideológico do poder do imperator30. Bravo,

por sua vez, destaca a progressiva implantação da religião dos cristãos “en todos los

estratos sociais y, particularmente, en el ejército y la administración”31.

Entre outros documentos elaborados em prol da cristandade, destaca-se o Edito de

Tessalônica, resultado do concílio ocorrido no ano de 380. Através deste texto, o imperator

Teodósio estabeleceu a separação definitiva entre “ortodoxia” e “heresia”. A partir de

então, os cidadãos que seguissem as normas estabelecidas neste documento seriam 26 Estas perseguições não eram contínuas, por isso, nos referimos as “fases ou épocas” de perseguições com relação aos cristãos. 27 Do grego οἰκουµένη (mundial). 28 ARNALDI, Girolamo. Igreja e papado. In: Dicionário temático do Ocidente Medieval. LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (org.). Tradução para o português: Hilário Franco Júnior (coord.). vol. 1, Bauru: EDUSC, 2006, pp. 567 – 588. 29

SIMON, Marcel e BENOIT, André. O Cristianismo e o Império até 313. In: Judaísmo e Cristianismo antigo: de Antíoco Epifânio a Constantino. São Paulo: Pioneira: Editora da Universidade de São Paulo, 1987, p. 129. 30 BLÁZQUEZ, José María. La política imperial sobre los cristianos: de la Tetrarquía a Teodosio. In: Cristianismo primitivo y religiones mistéricas. Serie Mayor. Madrid: Cátedra Ediciones. s/d. pp. 274 - 276. 31 BRAVO, Gonzalo. Historia del mundo antiguo: una introducción crítica. Madri: Alianza Editorial, S.A., 2005, p. 536.

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16

chamados de cristãos católicos32 e os demais assumiam os dogmas da heresia e seriam

castigados. Neste ínterim, o próprio princeps33

declarou-se cristão.

Observa-se, pois, que o Cristianismo, afora ter sua doutrina formatada através

destes sínodos, ganhou fôlego perante o imperium Romae, visto que os participantes da

ecclesia foram convidados a integrar o quadro político-administrativo deste imperium.

Além disso, a universalidade e a unidade propagada pela ideologia cristã passaram a ser

um instrumento utilizado pelo imperator para renovar as estruturas de seu poder e de suas

políticas. Este governante encontrou nas idéias da ecclesia novas formas de enfrentar os

problemas internos que assolavam o imperium romanorum e as pressões externas que

colocavam em risco aeternitas Romae. Ao mesmo tempo em que mantinha seu poder

centralizado, o princeps estendia a supremacia romana ao universo dos outros povos,

baseado nos conceitos de unidade e de universalidade propagados pela cristandade –

fundamentados na idéia de um único e universal Deus. Desta forma, percebemos que o

estabelecimento do Cristianismo como dogma oficial transformou, profundamente, a

realidade tardo-antiga romana. A unidade e a universalidade, propostas por uma ecclesia

cristã, agora católica, confundia-se com a proposição de unidade e universalidade do

próprio poder do imperator.

Enfim, o Cristianismo, antes tido como uma seita dentre tantas admitidas no

universo romano, atingiu o status de religião oficial e passou a fundamentar ações políticas

e administrativas no ambiente tardo-antigo. Contudo, a realidade deste cenário contradiz

uma possível ideologia cristã de exclusão ou conversão de todos os não cristãos, pós era

constantiniana ou mesmo após o Edito de Tessalônica. Aquela sociedade em transformação

permitia – e aceitava – o convívio geralmente pacífico e respeitoso entre crentes de

pensamentos distintos e se beneficiava com o diálogo produzido nesta esfera de relações.

Mesmo quando os argumentos eram contrários a determinadas crenças religiosas,

enalteciam-se as habilidades do adversário e muitas idéias eram adaptadas aos próprios

contextos. Por conseguinte, notamos a contínua influência da filosofia pagã na teologia

cristã para sustentar os dogmas cristãos nascentes nesta ocasião. Assim, não podemos

negar o intercâmbio de opiniões entre os indivíduos envolvidos nos debates, especialmente

no campo público, visto que estes pensadores formulavam as teorias balizadoras do dia-a-

dia romano.

32 Do grego καθολικός (universal). 33 Em seus documentos, Símaco utiliza tanto a expressão imperator como princeps para se referir o representante supremo do imperium. Assim, essa monografia também lançará mão de ambas denominações.

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Neste cenário de diálogo permanente, Silva entende que em situações cotidianas a

alteridade é a condição primordial tanto para a construção de identidades quanto para a

instituição de códigos que delimitam semelhanças e diferenças entre os grupos formadores

de uma sociedade. Por outro lado, períodos de crise e de conflito aberto tendem a

evidenciar as dimensões negativas do “outro” e acentuar a polarização entre “eles” e

“nós”34. Todavia, mesmo perante discrepâncias de crenças religiosas, os homens públicos

do universo romano buscavam a eternidade da hegemonia romana e a manutenção das

artes liberais e dos princípios morais norteadores daquela sociedade. Logo, neste caso, a

alteridade fortalecia os ideais destes políticos e não gerava importantes conflitos.

O pagão Quinto Aurélio Símaco Eusébio, integrante do senado romano, é um dos

exemplos de illustris cidadão romano que viveu neste período de grandes transformações.

A análise de seus escritos auxilia na compreensão de algumas mudanças morais, religiosas,

políticas e sociais ocorridas no decorrer dos séculos IV e meados do V. Portanto, nessa

monografia, não pretendemos estudar o homem público per se, mas sua interação em um

cenário de intensas mudanças e que recebe novos personagens, uma vez que os cristãos

passaram a integrar o quadro político-administrativo romano.

34 SILVA, Gilvan Ventura da. Reis, santos e feiticeiros: Constâncio II e os fundamentos místicos da basileia (337 – 361). Vitória: EDUFES, 2003, p. 279.

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CAPÍTULO II

SÍMACO E A DEFESA DA TRADIÇÃO

O senador Quintus Aurelius Symmachus Eusebius

Advogado, orador, senador e autor, Quinto Aurélio Símaco Eusébio viveu entre 340

e 402 da nossa era. A partir deste ano não se encontram mais registros de suas atividades,

portanto, a historiografia considera 402 como o ano de sua morte. Nas linhas da PLRE I, a

caracterização "autor" divide espaço com as datas em que Símaco exerceu os cargos de

Prefeito da Urbe e de Cônsul35. O que demonstra a relevância de seus escritos. Advindo de

família rica em propriedades imobiliárias, mas sem renome até então, o grupo dos Símacos

ascendeu da ordem dos equestres a dos clarissimi36 na época de Constantino.

A carreira administrativa de Quinto Aurélio Símaco se iniciou com o governo de

Brucio e Lucania (364-365). Ao final de 373 foi nomeado proconsul de África e Prefeito

de Roma de 384 e 385, cargo mais significativo de sua carreira política, pois o Consulado,

responsabilidade assumida por Símaco em 391, era apenas simbólico naquele momento.

Ao Prefeito da Urbe competia a autoridade judicial máxima da cidade, bem como as

tarefas de manter a ordem e sustentar os serviços urbanos. Além disso, dirigia o Senado e

atuava como juiz de primeira instancia em Roma e arredores37. Cargo inferior apenas ao de

Prefeito de Pretório, o Prefeito da Urbe era o governante supremo de Roma (e de

Constantinopla – desde 359), nomeado e destituído pelo imperator. Fazia parte do rol de

cargos illustres apresentados pela Notitia Dignitatum38.

Durante a vida adulta de Símaco, o Oriente teve três imperatores: Valente,

Teodósio e Arcádio. Enquanto no Ocidente, eles foram quatro: Valentiniano I, Graciano,

Valentiniano II e Honório, além dos usurpadores Magno Máximo e Eugênio. No ano de

387, Símaco apoiou Magno Máximo contra Valentiniano II39. Quando o usurpador foi

35 PLRE I, p. 1044. 36 A ordem senatorial estava dividida em illustres (grupo de maior importância), spectabiles (categoria mediana) e clarissimi (grupo de menor importância). 37 GALLEGO, José Antonio Valdés. Introducción. In: SÍMACO EUSÉBIO, Quinto Aurélio. Informes - Discursos. Introducciones, traducción y notas: José Antonio Valdés Gallego. Madrid: Editorial Gredos S.A., 2003, p. 11. 38 A Notitia Dignitatum é uma listagem dos cargos administrativos e militares da Antiguidade Tardia. Sua primeira verão não é facilmente datável, mas acredita-se que foi redigida em meados do século IV d. C. e era constantemente atualizada. Existem duas destas listas: uma referente ao Ocidente, outra ao Oriente. 39 Sobre a impopularidade de Valentiniano II entre os importantes indivíduos pagãos e o apoio de muitos deles a Magno Máximo, verificar: ESCRIBANO, María Victoria. Usurpación y religión en el s. IV d. de C.:

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19

derrotado por Teodósio, em agosto de 388 em Aquileia, Símaco refugiou-se em uma igreja

para se salvar da perseguição. Foi perdoado por Teodósio e, posteriormente, indicado para

o Consulado40.

Em um momento em que o Cristianismo começava a fortalecer suas bases e

formatar seus dogmas, este senador pagão, propagador do neoplatonismo, alcançou

prestígio devido sua habilidade de manter uma eficiente teia de relações com importantes

personagens de sua época. De acordo com Frighetto, o pensamento neoplatonismo, que

buscava respostas acerca da perfeição sagrada, ganhou cada vez mais adeptos ao longo do

século III. Esta procura pelo sagrado impulsionava o desejo da perfeição individual, logo, a

necessidade da edificação de um novo homem, portador e proclamador dos valores

clássicos, ávido pelo conhecimento, enfim, o homem modelo da ciuitas romana41.

Partidário do neoplatonismo, considerado um tradicionalista, Símaco empenhou-se

para conservar a literatura antiga, a religião e os símbolos pagãos, assim como os

privilégios da ordem senatorial, que, neste momento, já agregava integrantes cristãos.

Como exemplo de uma atitude deste senador, fundamentada na idéia neoplatônica de que a

relação com os deuses afeta o destino dos homens, é o famoso caso de sua empreitada

junto aos imperatores para restaurar, no edifício curial, o Altar da deusa Vitória42.

A defesa da tradição pelo illustris Símaco

Herança dos gregos, as virtudes foram constantemente utilizadas para caracterizar

os grandes governantes em contraposição aos vícios dos usurpadores, durante a

Antiguidade. Ao longo dos séculos, pensadores e historiadores lançaram mão destes

inúmeros princípios para construir discursos legitimadores de sua idéia, aproximando saber

paganismo, Cristianismo y legitimación política. In: GONZÁLEZ BLANCO, Antonio; MARTÍNEZ, José Maria Blázquez (editores). Antigüedad y Cristianismo: monografías históricas sobre la Antigüedad Tardía. Cristianismo y aculturación en tiempos del Imperio Romano. Universidad de Murcia, nº VII, 1990, pp. 247 – 272. 40 GALLEGO, José Antonio Valdés. Introducción general. In: SÍMACO EUSÉBIO, Quinto Aurélio. Cartas (Libros I – V). Introducciones, traducción y notas: José Antonio Valdés Gallego. Madrid: Editorial Gredos S.A., 2000, pp. 11 – 12. 41 FRIGHETTO, Renan. Historia est narratio rei gestae: la concepción de la Historia en la Antigüedad Tardía (siglos IV – VII). In: Atas do Evento El fin de la Historia. Santiago: Ediciones Altazor, 2009, pp. 237 – 250. 42 Este episódio rendeu várias correspondências entre Símaco e os imperatores. Entre as fontes estudadas, destacamos seu Informe 3, epístola muito famosa, por ter as idéias ali defendidas refutadas por importantes pensadores cristãos contemporâneos ao senador, como Ambrósio de Milão e Aurélio Prudêncio Clemente.

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e poder. Plutarco43 considerava Alexandre Magno portador da piedade, da continência e de

moderação. Otávio Augusto foi tido como modelo de clemência e também de moderação

por Suetônio44. Eutrópio destacou a modéstia, a bondade, e a defesa dos antigos costumes

(mos maiorum) como características de Constâncio II, aspectos que o fizeram merecer a

deificação45. Aurelio Víctor exaltou a piedade, a clemência, a moderação e a sapiência de

Constâncio46.

Esta tradição greco-romana forneceu a base das estruturas morais, políticas e

religiosas desde a época clássica até o século IV. Este caminho, contudo, foi composto por

adaptações, releituras, rupturas e continuidades, pertinentes ao processo histórico. Durante

a Antiguidade Tardia, por exemplo, o grupo dos uiri illustres constituía a mais elevada

ordem senatorial. Conforme Silva, a partir das reformas socieconômicas e político-

administrativas iniciadas por Diocleciano e propagadas por seus sucessores, o título de uir

illustris também era oferecido aos indivíduos que exerciam determinados cargos

administrativos. Esta titulação igualava socialmente estes funcionários da administração

imperial aos membros senatoriais47. Além disso, as transformações que perpassaram este

período forneceram o alicerce para o regime de patrocinium (observado em meados do

século VII) em que muitos illustres eram defensores das populações menos favorecidas.

Em contrapartida, estas pessoas entregavam suas terras à posse destes senhores e se

tornavam seus colonos48.

43 Plutarco foi filósofo e biógrafo. De origem grega, nasceu na cidade de Queronéia em 46 da era cristã e morreu no ano 119. Foi autor de 64 biografias, tratadas aos pares, conhecidas como Vidas Paralelas ou Vidas

Comparadas, das quais 50 chegaram até nossos dias. (In: PLUTARCO. Alexandre. In: Alexandre e César: Vidas Comparadas. Coleção Mestres Pensadores. Tradução: Hélio Vega. Editora Escala: São Paulo, pp. 17 – 78.) 44 O escritor latino, Suetônio, nasceu no ano 69 da nossa era e faleceu por volta de 141. Uma de suas obras mais famosas, e que nos chegou completa, é A Vida dos Doze Césares. (In: SUETÔNIO. Introducción General. In: Vidas de los Doce Césares. Tradução: Rosa Maria Agudo Cubas. Introdução: Antonio Ramírez de Verger. Madrid: Editorial Gredos S.A., 1992; Ibid, El Divino Augusto, Ibid.) 45 O escritor Eutropio, viveu entre 320 e 387/390. Dedicou seu Breviarium ab urbe condita ao imperator

Valente, em 369, quando ocupava o cargo de magister memoriae, sob este governante. Como o título demonstra, a obra é um breviário. Uma narrativa baseada em retratos biográficos que representam, na visão do autor, a história de Roma desde sua fundação até os dias do escritor. (In: EUTROPIO. Libro X. In: Eutropio: Breviario – Aurelio Víctor: Libro de los Césares. Introducciones, traducción y notas de Emma Falque. Madrid: Editorial Gredos S.A., 1999, pp. 140 – 142.) 46 Sexto Aurelio Víctor nasceu por volta de 320 d.C. em África e em 337 já estudava em Roma. Nascido de família pobre alcançou prestígio devido aos seus estudos. A educação recebida e a publicação da obra De

Caesaribus impulsionaram sua carreira político-administrativa. (In: VÍCTOR, Aurelio. Libro de los Césares. In: Eutropio: Breviario – Aurelio Víctor: Libro de los Césares. Introducciones, traducción y notas de Emma Falque. Madrid: Editorial Gredos S.A., 1999, pp. 251 – 252.) 47 SILVA, Gilvan Ventura da. Diocleciano e Constantino: a construção do Dominato. In: Gilvan Ventura da Silva; Norma Musco Mendes (orgs.) Repensando o Império Romano: Perspectiva Socioeconômica, política e cultural. Rio de Janeiro: Mauad; Vitória, ES: EDUFES, 2006, p. 203. 48 FRIGHETTO, Renan. Os uiri illustri. In: Panorama Econômico-social del no. de la Península Ibérica en época visigoda. La obra de Valério del Bierzo. Tese defendida em Universidad de Salamanca, Facultad

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21

Deste modo, verifica-se que os significados das palavras são amplamente

explorados e utilizados em diferentes contextos. Desde a Antiguidade, era necessária a

observação de inúmeros aspectos para ser considerado um cidadão romano. O bom

cidadão, então, deveria possuir mais destaque do que o comum, ou seja, deveria ser

possuidor de virtudes. Aqueles que as desfrutavam podiam ser um grande administrador e,

com a ajuda da sorte e da Fortuna, um imperator.

Símaco salienta que, mesmo com toda sua sabedoria, clemência, piedade e outras

características, o imperator não governava sozinho e necessitava, inclusive, do auxílio de

um grupo formado pelos melhores, a ilustríssima ordem senatorial49. O autor utiliza a

designação “ilustre” em dois sentidos. Para o exercício de um cargo “ilustre” político-

administrativo, para o qual eram necessárias uma vida de estudos e uma carreira pública

sólida. Este uir illustris é a figura integrante do ambiente político-administrativo romano e

que exerce algum cargo ilustre: praefectus praetorio, praefectus urbis Romae, magister

officiorum, quaestor, comes sacrarum largitionum, comes rerum priuatum, dentre outros50.

Por outro lado, o Senado era uma corporação ilustre, até mesmo ilustríssima51, pois é

formada por homens que buscavam o aperfeiçoamento através dos estudos e se

empenhavam para aconselhar o imperator na sua missão de bem governar o imperium

romanorum. Mais ainda, Símaco, considerado um tradicionalista, defendia a preservação

da tradição romana, sobretudo, buscava conservar os privilégios da ordem senatorial, pois

a considerava parte da história triunfante de Roma.

Um cuidado deve ser tomado ao estudarmos os Informes de Símaco, quando da

administração da Prefeitura da Urbe, apesar de desempenhar um cargo illustris no

momento em que escreve estes documentos, primeiramente intitula-se de acordo com sua

categoria senatorial, após esta apresentação, exibe seu cargo político-administrativo: “Q.

Aurelius Symmachus, uiri clarissimi, praefecti urbis. Esta formulação jurídica corrobora a

importância da ordem senatorial perante a estrutura social ocidental do século IV.

de Geografia e História. Departamento de Prehistoria, Historia Antigua y Arqueologia. 1996, pp. 195 e 196. A respeito da passagem dos pequenos proprietários livres, que sustentavam o imperium romanorum com ao pagamento de tributos e taxas, para a situação de colono, ver: FRIGHETTO, Renan. Estruturas sociais na Antiguidade Tardia Ocidental (séculos IV/VIII). In: Gilvan Ventura da Silva; Norma Musco Mendes (orgs.) Repensando o Império Romano... , pp. 223 – 240. 49 De acordo com Gallego, neste momento, o senado romano mantinha seu prestígio e Roma era um centro educativo muito importante, apesar de não ser mais a capital do império desde Diocleciano e Maximiano. (In: SÍMACO EUSÉBIO, Quinto Aurélio. Informes…, pp. 10-13.) Contudo, percebe-se que o imperator já não dividia igualitariamente seu poder com o senado. Esta parceria tão estimada por Augusto, mesmo que em teoria, já sofrera modificações e o poder pendia para os imperatores. 50 Conforme especificação da Notitia Dignitatum (Ocidental). In: http://www.pvv.ntnu.no/~halsteis/occ001.htm Acesso em: 01/11/2007 51 Expressão utilizada muitas vezes por Símaco para se referir ao Senado Romano.

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Os varões ilustres, participantes do Senado, deveriam velar pela causa comum, pelo

saber e pela tradição, alicerçada nas virtudes da sociedade romana. No Informe 5, enviado

a um dos imperatores52, Símaco solicita que o filósofo Celso seja admitido na ilustre

ordem senatorial, pois seria um prêmio digno para este cidadão possuidor de um espírito

livre do vício da cobiça e cujo pai estivera quase a altura de Aristóteles. Ao exaltar

Arquetimo, pai de Celso53, Símaco enaltece também o filho e fortalece, perante a cúria, sua

solicitação para o ingresso do filósofo Celso na ordem. Deste modo, no caso do Senado, a

palavra “ilustre” carrega o sentido de virtude, uma instituição portadora e proclamadora

das antigas virtudes romanas.

Ao seguir esta última noção – virtude – o “ilustre” é percebido como personagem

ou instituição conservadoras da tradição, dos estudos, dos costumes dos antepassados (mos

maiorum). Conforme Verger54, Suetônio em De uiris illustribus, considerava ilustres os

poetas, oradores, historiadores, filósofos e gramáticos. Cícero55, por sua vez, no livro II

Sobre el orador56, considera também ilustres os homens que se dedicavam às escritas e ao

cultivo da História, tão pouco poderia esquecer-se de incluir neste ilustre rol oradores

como Isócrates e Demóstenes. É com base nesta leitura de preservação da memória e dos

grandes feitos em benefício de Roma levada a cabo por homens ilustres que se percebe a

forja parte do conceito de uir illustris para o senador tardo-antigo Quinto Aurélio Símaco

Eusébio.

A construção deste princípio prossegue em outros documentos de Símaco. Em suas

Cartas, a figura de Virio Nicómaco Flaviano é envolta por ilustres cargos, ilustres ações

para a conservação da tradição romana e por uma família ilustre. Embora Flaviano tenha

exercido cargos denominados ilustres57 pela Notitia Dignitatum, Símaco o considerava um

amigo, uma vez que fazia parte do grupo “tradicionalista” – que tinha como um de seus

membros o próprio Símaco – e um pagão destacado, pois traduziu para o latim a Vida de

52 Não se sabe ao certo se este Informe foi encaminhado a Teodósio e Arcádio ou a Valentiniano II. 53 Segundo Gallego, “Símaco es la única fuente de información sobre estos personagens.” Uma vez que elas aparecem apenas neste Informe, com poucos dados a respeito dos indivíduos, não conseguimos conhecê-los detalhadamente. (In: SÍMACO EUSÉBIO, Quinto Aurélio. Informes – Discursos, p. 51.) 54 SUETÔNIO. op. cit., Introducción General. In: Vidas de los Doce Césares… pp. 19-20. 55 O orador latino do século I a.C. é citado inúmeras vezes nos escritos de Símaco, o que demonstra que nosso autor era leitor assíduo de suas obras. 56 CÍCERO, Marco Túlio. Sobre el orador. Introducción, traducción y notas: José Javier Iso. Madrid: Editorial Gredos, 2002,Livro II, pp. 203 – 370. 57 Conforme Gallego, Virio Nicómaco Flaviano nasceu em 334 e exerceu cargos ilustres de questor do palácio imperial em 382, prefeito do pretório de Iliria oriental no ano seguinte, de Itália, Iliria e África em 390-392, somente da Itália em 393-394 e foi cônsul no ano de 394. (In: SÍMACO EUSÉBIO, Quinto Aurélio. Cartas, p. 157.)

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23

Apolônio de Tiana58. Ressaltamos, ainda, que Flaviano advinha de uma família importante

devido aos serviços prestados à urbe59. Na Carta 69 do livro III, Símaco descreve

Nicómano Flaviano como um homem possuidor de virtudes e honras que não pode ser

excluído da justiça de Ricomeres60, tão pouco o filho deste ilustre varão, também detentor

de honra e mérito, podia ser menosprezado. Tanto nas Cartas a Flaviano, como naqueles

documentos enviados por Símaco a outros destinatários, o orador refere-se ao amigo ou a

sua família de maneira a mesclar as designações de ilustre (importante cargo público e a

virtude de ser defensor da antiga tradição).

Outro exemplo desta situação ocorre no caso do Informe 11 destinado a

Valentiniano II e provavelmente também a Teodósio e Arcádio, uma vez que o autor

utiliza o tratamento “señores emperadores”61. Neste documento, Símaco notifica aos

imperatores a morte do Prefeito do Pretório Vetio Pretextato, “un varón ilustre [...],

semejante a los antiguos, un varón con todas las virtudes”62. A PLRE I, nos informa que

Pretextato faleceu em 384, quando ocupava o cargo de Prefeito do Pretório, mesmo ano em

que Símaco assumiu a Prefeitura de Roma. Esta mesma bibliografia, ainda cita inúmeras

tarefas desempenhadas por Pretextato na sua propagação e proteção da cultura pagã:

pontifex Vestae, pontifex Solis, curialis Herculis, sacratus Libero et Eleunisis, entre

outros.63

Na epístola de Símaco aos imperatores, novamente um ilustre cargo (Prefeito do

Pretório) está presente neste contexto, bem como a valorização da tradição, visto que

Pretextato, para este autor, foi portador de virtudes e, consequentemente, defensor dos

antigos costumes. No Informe 12, encaminhado aos imperatores, o remetente destaca os

valores de Pretextato:

58 A Vida de Apolônio de Tiana, de autoria de Flávio Filóstrato (século III), é a biografia do mago e filósofo grego Apolônio de Tiana, considerado um “santo pagão” contemporâneo a Jesus. 59 SÍMACO, Libro II, Carta 91. “[…] su padre, ilustre en todos los sentidos y dignos de ser objeto de una

veneración singular por mi parte, ha dado pruebas del mayor respeto y atención hacia mi casa”. O pai de Virio Nicómaco Flaviano era Nicómano Flaviano. 60 Conforme Gallego, o pagão Flávio Ricomeres foi comandante da guarda imperial com Graciano (377-378). Em 383, com Teodósio, foi chefe do exército do Oriente e em 384 assumiu o consulado. Em 388-389 foi nomeado conde e chefe das duas armas (infantaria e cavalaria), do exército do Oriente e participou da recuperação do Ocidente. No ano de 393 foi recomendado para conduzir a cavalaria frente a Eugenio, mas morreu antes do início da campanha. (In: SÍMACO EUSÉBIO, Quinto Aurélio. Cartas, p. 258.) 61 SÍMACO, Informe 11, pp. 65-66. Na fonte latina encontramos a expressão domini imperatores também no plural, o que torna maior a crença de que o Informe tenha sido mandado a mais de um imperator e, como de costume em seus escritos, quando Símaco enviava correspondências a Teodósio, também as remetia a Arcádio. Portanto, acreditamos que os três governantes receberam este documento. 62 SÍMACO, Informe 11, p. 65. 63 PLRE I, p. 723.

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[…] moderado con los demás, severo consigo; accesible sin producir desdén, venerable sin infundir terror; cuando le correspondió algún bien en una herencia, lo devolvió de inmediato a los más allegados al testador; no se abatió por la prosperidad de nadie, no se rió de las adversidades de nadie; aquel a quien siempre siguieron los honores sin quererlos, desconoció la liberalidad deshonrosa, el lucro injusto: todos los vecinos confiaron a su equidad sus linderos.64

Neste Informe, Símaco cita aspectos importantes para se obter as virtudes que

Pretextato alcançara. Visto que este Prefeito do Pretório desempenhava ações honrosas,

possuía características virtuosas e, com tudo isso, zelava pelos princípios norteadores da

sociedade romana, era digno de confiança. Esta sede pela causa comum deveria ser

ambicionada por aqueles que aspiravam ser portadores de virtudes e bons cidadãos. Para os

varões dignos de cargos administrativos, isto era indispensável.

Outros aspectos tradicionalistas de Símaco são observados nos Informes 1 e 2,

encaminhados aos imperatores na ocasião da sua nomeação ao cargo de Prefeito da Urbe.

O primeiro Informe foi enviado a Valentiniano II, o segundo, a Teodósio e Arcádio. Estes

escritos estão repletos de agradecimentos aos principes. Em ambos os documentos, Símaco

declara, ainda, que em favor dos imperatores, os bons magistrados velam pela causa

comum e dão glória a uma época65. Segundo Pereira66, a glória envolve três condições: o

amor da multidão, sua confiança (fides) e a admiração merecedora de honrarias (honor).

Em sua proposição, Símaco aproveita para reforçar seu pedido de apoio aos imperatores,

para que consiga exercer bem suas funções de Prefeito, e exaltar, novamente, a importância

do Senado como alicerce para um bom governo, para o bem comum e para a perpetuação

das virtudes.

Através da Notitia Dignitatum conhecemos os cargos “ilustres” e o estudo do caso

de Símaco nos confirma ocasiões em que esta titulação está sujeita à carreira pública

romana. Por outro lado, a análise destes mesmos documentos atesta que a designação

“ilustre” pode estar vinculada a uma importante virtude, a observância dos costumes dos

antepassados, e às ações que auxiliavam a permanência da tradição romana. Neste caso,

aos olhos de Símaco, Virio Nicómaco Flaviano e Vetio Pretextato eram portadores desta

virtude e merecedores da alcunha de “ilustre”.

Verificamos que, por mais que Símaco estimasse demasiadamente a amizade de

Ausônio, nas Cartas do livro I, remetidas ao amigo não se refere a ele como ilustre. O

64 SÍMACO, Informe 12, p. 67. 65 SÍMACO, Informe 1, 2, p. 34: “Sin duda es el favor de los príncipes lo que hace buenos magistrados y siempre fluyen desde vuestro carácter las virtudes de os dirigentes.” Informe 2, 3, p. 35: “A vuestro numen le corresponderá velar por la causa común, pues con buenos magistrados la fama de la época adquiere una gloria mayor que la lograda por los gobernantes.” 66 PEREIRA, Maria Helena da Rocha. op. cit., p. 333.

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trata, sim, como amigo, virtuoso, como “el hombre más notable de cuantos hay en la

tierra”67. Mas não ilustre. Ainda, na Carta 17 (livro I), também enviada a Ausônio, o

prefeito da Urbe demonstra sua admiração por Ambrósio e o trata como “uno de los

abogados más importantes de la provincia [...], un hombre inmejorable”, porém, mais uma

vez não temos indícios do uso da expressão “ilustre”.

Em suma, o conceito de uir illustris, na Antiguidade Tardia, é resultado de uma

trama de noções administrativas, políticas, religiosas e sociais. Quinto Aurélio Símaco, por

exemplo, tanto exercia um cargo illustris, como era um cidadão illustris devido sua

proteção às antigas virtudes e à instituição senatorial. Mais ainda, um uir illustris por

defender a aeternitas Romae e a glória do imperium romanum. Símaco compartilhou estas

ações illustres com membros da cristandade que, neste contexto, já integravam o Senado e

ocupavam cargos administrativos, como o pensador cristão e Bispo de Milão Ambrósio.

Por isso, reforçamos a pertinência de nosso estudo ao analisarmos o diálogo entre pagãos e

cristãos em torno do desejo comum de preservar as virtudes – base da moralidade e da

política daquela sociedade – e, consequentemente, perpetuar a hegemonia romana.

67 SÍMACO, Libro I, Carta 37, p. 107.

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CAPÍTULO III

ALGUNS ASPECTOS NEOPLATÔNICOS: O MOS MAIOTUM E A ORATIO

O mos maiorum: o testemunho da tradição

No que se refere à cultura religiosa, o antigo culto comum agrupava os indivíduos

da sociedade romana, instaurava e fortificava vínculos sociais. Conforme cita Marrou

“cada família tinha sua religião doméstica; cada cidade, sua religião nacional, seus heróis,

seus deuses protetores”68.

Silva afirma que os ritos em homenagem aos deuses estabeleciam o equilíbrio entre

os homens e as divindades, desta forma, estabelecia-se a pax deurum (paz dos deuses) 69.

Logo, o principal objetivo da antiga cultura religiosa greco-romana era o estabelecimento

desta paz com os deuses e, em contrapartida, a garantia das graças de uma existência

tranquila e bem-sucedida para os homens. A observância dos cultos tradicionais sustentava

a estabilidade entre homens e deuses. Neste ínterim, entendemos o cuidado permanente dos

membros do Senado – ao menos daqueles que defendiam esta tradição religiosa – em

manter o panteão romano isento das influências que viessem a ameaçar o mos maiorum, ou

seja, os costumes ancestrais que amparavam a ciuitas70. Uma vez que estes costumes

incluíam a honra aos deuses, a busca do saber, a manutenção das virtudes e a defesa do

bem comum, a prática diária destas ações garantiria a hegemonia e a eternidade de Roma.

Perante a constante supressão que os cultos greco-romanos vinham sofrendo,

Quinto Aurélio Símaco Eusébio se destacou como uma das vozes que sustentavam

elegantemente as idéias neoplatônicas, baseadas no mos maiorum, mesmo diante da

expansão dos ideais cristãos. Em seu documento mais conhecido e polêmico seu Informe 3,

68 MARROU, Henri-Irénée. Decadência romana ou Antiguidade Tardia? Tradução para o português: Henrique Barribaro Ruas. Lisboa: Editorial Áster, 1979. p. 41. 69 SILVA, Gilvan Ventura da Silva. A orientalização do Império Romano: aspectos religiosos. In: ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira (coord. Geral). Relações de Poder, Educação e Cultura na Antiguidade e Idade Média, estudos em homenagem ao Professor Daniel Valle Ribeiro: I CIEAM, VII CEAM. Santana de Parnaíba, SP: Editora Solis, 2005. p. 198. 70 De acordo com Silva, só podiam participar dos cultos públicos da antiga religião romana os cidadãos. Deste forma, religião e “cidadania” estavam interligadas. In: SILVA, Gilvan Ventura da Silva. A orientalização do Império Romano... p. 201.

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escrito no ano de 384, ao ao imperator Valentiniano II71, Símaco reclama a reposição do

altar da deusa Vitória na cúria senatorial72:

Por consiguiente reclamamos la situación de los cultos que durante mucho tiempo fue beneficiosa para el Estado. No hay duda de que podrían enumerarse príncipes de una y otra doctrina, de una y otra creencia. De ellos, los más antiguos practicaron los ritos de nuestros padres, los más recientes no los suprimieron. Si el culto de los antiguos no sirve de modelo, que sirva el disimulo de los más próximos. ¿Quién es tan allegado a los bárbaros que no reclame el ara de la Victoria? Somos precavidos con respecto al futuro y evitamos los portentos producidos por cambios de situación. ¡Que por lo menos se devuelva a su nombre el honor que se ha denegado a su numen! Vuestra Eternidad debe mucho a la Victoria y aún le deberá más. [...] no abandonéis vosotros un patrocinio favorable a los triunfos. Ese poder es apetecido por todos. 73

Ao solicitar a restauração do altar da Vitória, o Prefeito de Roma destacou que o

culto aos deuses fazia parte da tradição e era responsável pelos triunfos romanos. O

descumprimento ao mos maiorum desrespeitaria os deuses, colocaria em risco o equilíbrio

homens-deuses e poria fim aos louros do imperium. O autor insistia em ter o culto dos

antigos como modelo, mas isso não fosse possível, a tolerância entre as diferentes culturas

religiosas e a aceitação de distintas crenças seriam o bastante para conservar a concórdia

daquela sociedade. Deste modo, atitudes contrárias ao mos maiorum impossibilitavam a

aeternitas Romae aos olhos deste eloquente orador e igualaria romanos e bárbaros. E a

convivência de várias culturas poderia promover a manutenção dos costumes dos grandes

cidadãos do passado.

Esta convivência pacífica entre as culturas religiosas, reclamada pelo autor, também

pode ser observada em outras passagens deste mesmo Informe:

8. Lo cierto es que cada uno tiene sus propias costumbres, sus propios ritos: la inteligencia divina ha asignado a las ciudades cultos diversos para su protección; como las almas entre los que nacen, los Genios del destino se distribuyen entre los pueblos. […] 10. [...] Contemplamos los mismos astros, el cielo es común a todos, nos rodea el mismo mundo. ¿Qué importancia tiene con qué doctrina indague cada uno la verdad? No se puede llegar por un solo camino a un secreto tan grande. Pero éste es un debate propio de desocupados; ahora exponemos ruegos, no controversias. 74

Como seguidor do neoplatonismo, nestes trechos Símaco destaca sua defesa da

pluralidade dos cultos e das crenças religiosas. Compreendia que a verdade divina era

71 Apesar deste Informe ter sido encaminhado a Valentiniano II, no decorrer do texto, Símaco clama pelos três imperatores (Valentiniano II, Teodósio e Arcádio): “[...] señores emperadores nuestros.” In: SÍMACO, Informe 3, 1, p. 37. 72 O altar em homenagem a deusa Vitória foi instalado na Cúria Senatorial por ordem de Augusto no ano de 29 a.C. 73 SÍMACO, Informe 3, 3, p. 38. 74 SÍMACO, Informe 3, 8, p. 41; 10, p. 42.

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muito complexa para tentar ser entendida por uma só via. Por isso, esclareceu que as

discussões religiosas eram próprias dos desocupados, não dos homens públicos, que

tinham como objetivo governar os romanos em prol do bem comum. Diante disso, seu

Informe não propunha controvérsias, apenas solicitações que impulsionariam a boa

administração do imperium romanorum. Poder este que, do ponto de vista do orador pagão,

seria mais bem amparado quando assentado em crenças diversas que conduziam por

caminhos esclarecedores. Caminhos sim, no plural, não único e simples de ser percorrido,

já que o segredo divino é imenso.

Ainda em seu rico Informe 3, Símaco defende fervorosamente os costumes antigos,

desta vez, apoiado no apelo aos benefícios propiciados às futuras gerações romanas:

Y si no fuera legítimo evitar este presagio {o abandono dos patrocínios favoráveis aos triunfos dos romanos pelos deuses], lo apropriado hubiera sido abstenerse por lo menos de tocar los ornamentos de la curia. Conceded, os lo ruego, que en nuestra vejez, dejemos a la posteridad lo que recibimos de niños. 75

Neste caso, Símaco enfatiza a obediência às leis, visto que era ilegal subtrair

ornamentos dos edifícios públicos. Além disso, o autor exprime seu grande amor pela

preservação da tradição ao pedir, em nome da “posteridade”, que sejam mantidas as obras

que sua geração recebeu. A glória romana somente seria mantida caso o mos maiorum

fosse cultivado, nas palavras de Símaco: “tal gloria es más importante desde el momento

en que entendéis que no es lícito hacer nada contrario a la tradición de nuestros padres”76.

Em suma, este uir illustris liderou, entre os senadores pagãos, um movimento de

preservação das homenagens aos antigos deuses, pois entendia que todas as glórias

romanas provinham da atitude respeitosa dos homens perante estas divindades que

retribuíam a ação humana com prestígios e eternidade. Assim, Roma somente seria Eterna

se fossem mantidos os costumes dos grandes cidadãos – dos antepassados. Mais ainda,

Símaco manifestou claramente seu amor à tradição, ao mos maiorum, e preveniu que os

homens de sua época não deveriam privar a posteridade daquilo que receberam, se não por

afeição, ao menos por respeito.

A apaixonada exaltação aos ritos antigos, não fez Símaco ser exilado do mundo

público romano. Ele se fazia respeitar perante seus pares e os imperatores, que o

nomearam para o ilustre cargo de Prefeito de Roma e, mesmo após a divulgação de seu

75 SÍMACO, Informe 3, 4, pp. 38 – 39. 76 SÍMACO, Informe 3, 2, p. 37.

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Informe 3, manteve-se no cargo77. Percebemos, então, que a análise dos documentos

deixados por este destacado pagão demonstra que ele, juntamente com sua busca contínua

pela tradição, manteve seu lugar na política romana inclusive em tempos de fortalecimento

do Cristianismo.

Esta retomada constante por valores antigos, tais como devoção aos deuses, busca

pelo saber, manutenção das virtudes e promulgação do bem comum, não era mérito pagão.

Apesar de algumas adaptações, é notório o estudo destas antigas tradições pelos cristãos.

Muitas das virtudes clássicas foram redesenhadas e assumidas como virtudes cristãs.

O professor de retórica Aurélio Prudêncio Clemente78, cristão e contemporâneo a

Símaco, traçou grandes elogios aos dons da oratória possuídos pelo Prefeito de Roma,

dádiva esta admirada desde a Antiguidade e preservada por Símaco com muito estudo e

respeito aos costumes dos maiores cidadãos do passado.

Outro cristão de renome, também contemporâneo a Símaco e que não deixou de

exaltar a competente oratória deste senador pagão foi Ambrósio79. Conhecedor de assuntos

diversos como ética, oratória e tantos outros, em suas Cartas XVII e XVIII (Livro I), o

Bispo rechaçou a adoração aos deuses antigos sustentada pelo político pagão, no entanto,

tomou o Prefeito de Roma como exemplo de eloquência de sua época. Este arquétipo se

engrandece ainda mais quando ressaltamos que De Officiis Ministrorum, obra de Ambrósio

dedicada aos clérigos, segue o modelo ciceroneano, o que demonstra que o Bispo de Milão

conhecia bem as obras do orador clássico e tinha consciência da beleza e do poder das

palavras. Neste caso, observamos que a admiração pelos escritos e pela oratória de Símaco

está fundamentada em um indivíduo apreciador dos antigos saberes e cristão, mas, acima

de tudo, um cidadão romano que ambicionava a preservação do imperium romanom.

Além disso, no Livro I Sobre a Penitência, Ambrósio traz a tona um conceito

demasiadamente familiar no Mundo Antigo, celebrado e conservado pelos pagãos: o bem

comum. A manutenção do bem público, princípio defendido demasiadamente por Cícero e

Aristóteles, também está presente na Carta 17 (Livro I) enviada por Símaco ao amigo

77 Cabia ao imperator a nomeação ao cargo de Prefeito da Urbe e ele também tinha o direito de destituir o escolhido. 78 Aurélio Prudêncio Clemente (348 - aprox. 405 d.C.) era hispano e nasceu na cidade de Calahorra (Calagurris). Foi professor de retórica e também advogado. Exerceu alguns cargos na administração provincial, serviu o exército e fez parte da corte de Teodósio e de Honório. Foi Prefeito de Roma sob Teodósio e, por volta do ano 400, retirou-se a um mosteiro para dedicar-se a poesia religiosa. 79 O Bispo Ambrósio de Milão era gaulês, descendente de gregos. Nascido em Tréveros (hoje Trier), sua data de nascença é assunto de discussão entre os pesquisadores (333 - 4 para uns e, para outros, 339 – 40). Foi consagrado Bispo em 374 e morreu em 397. Além de sua atividade episcopal, exerceu alguns cargos na administração provincial e ainda se dedicou a escrever sobre a ética, a oratória, o canto litúrgico e outros tantos assuntos encontrados em suas epístolas.

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Ausônio. Nela, o autor solicitava que o amigo recebesse a embaixada de Ambrósio,

considerado pelo remetente como “uno de los abogados más importantes de la

provincia”80. Símaco salientou o desejo do bem comum destas comissões, por isso elas

deveriam ser apoiadas por pessoas importantes, como Ausônio. Esta Carta evidencia o

prestígio do bem comum, todavia, outros elementos dos escritos de Símaco, também nos

levam a perceber o anseio deste homem público pagão pela busca do correto governo a

favor dos cidadãos romanos.

Ambrósio, por sua vez, percorreu o mesmo “caminho pagão” da proteção das

virtudes e do bem comum, entretanto, o ajustou ao pensamento dos seguidores de Cristo.

Ele considerava a moderação a mais alta das virtudes, visto que esta “tem por fim o

proveito da maioria”81. Para o Bispo, através desta virtude, haveria a propagação da “Igreja

adquirida pelo sangue do Senhor”82. Deste modo, é notória a adaptação da filosofia pagã à

teologia cristã, a qual constituirá a base para a propagação de ideologias cristianizadas

pregadas naquela sociedade em transformação. O bem comum – inicialmente pagão –

ganhou ares de um desejo Divino, bem como a moderação – também uma virtude pagã –

foi convertida ao Cristianismo. Atitudes como esta, de refutação e releitura de aptidões,

serão comuns no decorrer da constituição das idéias cristãs, e, paulatinamente, estes

“novos conceitos” se tornarão próprios do Cristianismo. O que também ocorrerá com o

saber, antes guardião das artes liberais pagãs e propagador de divindades protetoras da

sociedade romana, contemplará novos temas a fim de exaltar o Deus cristão através das

palavras escritas e faladas.

O poder da oratória preservado e desejado no diálogo entre paganismo e

Cristianismo durante a Antiguidade Tardia Ocidental

O antigo provérbio “scripta manent, uerba uolant”83 enaltecia a palavra falada

perante à escrita. As palavras escritas eram destinadas à leitura em voz alta, pois o som

emitido conduzia as ações cotidianas dos indivíduos. As letras do papel ganhavam vida

com a voz do leitor, assim, a voz predominava sobre a letra. Somente com a leitura em voz

80 SÍMACO, Carta 17, Livro I, 1, p. 90. 81 AMBRÓSIO. Sobre a Penitência. Introdução e notas explicativas: Raque Frangiotti. Tradução: Cália Mariana Franchi Fernandes da Silva. São Paulo: Paulus Editora, 2ª ed., 2005, Livro I, 1, p. 103. 82 Ibid, idem. 83 “A escrita permanece, as palavras voam.”

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alta as letras escritas pela tinta tornavam-se palavras e voavam com o intuito de ensinar ou

entreter. O escrito preservava a palavra, para que esta pudesse se propagar através da fala e

proporcionar aprendizagem e prazer. Em uma época em que poucas pessoas sabiam ler e o

acesso aos documentos e livros era limitado, o som procedente da leitura sugeria / impunha

os passos diários, por isso, a leitura pública fazia parte dos hábitos daquela sociedade. Ao

mesmo tempo em que esta leitura em voz alta aproximava locutores e ouvintes, ela os

distinguia.

A palavra escrita era o suporte do discurso falado e, embora eles estivessem

interligados, o suposto público de cada um era distinto. Ao escrever, o indivíduo

relacionava-se consigo próprio. Interagia com o público somente à distância, tanto no

tempo quanto no espaço84, pois a leitura do texto era futura e seu trabalho se desenvolvia

em um ambiente afastado do ouvinte. Já o discurso falado, o exercício da oralidade, exigia

do leitor a relação imediata com aqueles que o ouviam. Deste modo, a escrita e a oralidade

eram práticas que se complementavam naquele contexto, a fim de transmitir a sociedade

modelos de comportamento e de valores.

Uma vez que o domínio da escrita e da leitura estava circunscrito a um pequeno

grupo de indivíduos, aquele que lia em voz alta era o intermediário entre o escrito e o

ouvinte. Por este motivo, a mensagem transmitida deveria ser clara para que fosse

compreendida, lembrada e re-transmitida pelos próprios destinatários a diferentes

indivíduos. O texto era ouvido e guardado na memória, ou registrado pela pena de outros

poucos privilegiados que dominavam as letras. Conforme afirma Carvalho, desta forma o

registro escrito ganhava força e se integrava à memória oral e coletiva85.

Enquanto o ouvinte se entregava às palavras emitidas pelo leitor, este deveria estar

atento ao texto e se fazer ouvir e entender pelo receptor. Por isso, Cícero defendia que o

ato de ler era uma habilidade oral, enraizada na oratória. A palavra escrita tinha que ser

bem apresentada àqueles que a ouviam. A execução de um discurso, ou seja, sua leitura

pública, era “la única dueña y señora”86. Neste ínterim, a efetividade e o mérito da

execução estão, em grande parte, ligados a voz. Conforme Curtius, o exercício de cargos

84 ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de Oliveira. História e lingüística. Oralidade e escrita no Discurso Religioso Medieval. In : ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira (coord. Geral). Relações de Poder, Educação e Cultura na Antiguidade e Idade Média, estudos em homenagem ao Professor Daniel Valle Ribeiro: I CIEAM, VII CEAM. Santana de Parnaíba, SP: Editora Solis, 2005. pp. 47 – 55. 85 CARVALHO, Yone de. Oralidade e manuscrita. A perspectiva do narrador como chave de leitura do Tristan de Béroul. In : ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira (coord. Geral). Relações de Poder, Educação e Cultura na Antiguidade e Idade Média, estudos em homenagem ao Professor Daniel Valle Ribeiro: I CIEAM, VII CEAM. Santana de Parnaíba, SP: Editora Solis, 2005. pp. 57 – 66. 86 CÍCERO, Sobre el orador, Livro III, 213, p. 482.

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públicos durante a Antiguidade exigia do indivíduo o domínio da escrita de discursos e da

arte de orar. A oratória era, pois, condição prévia para uma carreira bem-sucedida87.

Atrelada a oratória, a eloquência reforçava o prestígio e poder das palavras sobre os

ouvintes. Enquanto aquela designa a arte de falar bem, com conhecimento de causa e

desenvoltura, esta se refere ao talento de persuasão, de convencimento por meio da

palavra. De acordo com Cícero, a correta disposição das palavras, o ritmo e o equilíbrio do

discurso facilitavam o entendimento, a associação e a recordação do assunto pelo

público88.

Herdada dos gregos, durante a Antiguidade, a retórica e as demais artes liberais

compuseram o patrimônio do saber da sociedade romana, tanto pagã como cristã 89. Ao

ouvir os oradores gregos e conhecer seus discursos escritos, os romanos ansiaram por se

dedicar e aprender a oratio90. Sendo rhetorica o método de ordenamento de um discurso

(que será proferido em público), a oratio é uma das partes que compõem esta arte, em

parceria com a uis oratoris (força do orador) e a quaestio (investigação, busca,

interrogatório)91. A atividade política de Roma estimulava e garantia o lugar da oratória,

que impulsionava carreiras e defendia vigorosamente as idéias daqueles que dominavam

esta prática.

A oratória de Quinto Aurélio Símaco Eusébio

Durante os séculos IV e V, os concílios ecumênicos afirmaram os preceitos cristãos

e, através de inúmeros editos como o de Tessalônica (380 d.C.), delinearam os dogmas

desta seita que passou a ser considerada oficial para o orbis romanorum. Sem dúvida, este

contexto de transformações religiosas, políticas e sociais apresenta, por um lado, a defesa

de crenças pagãs e, por outro lado, a proteção da fé em Jesus Cristo. Entretanto, textos de

homens públicos deste momento, demonstram um cenário no qual o diálogo entre as

87 CURTIUS, Ernest Robert. Retórica. In : Literatura Européia e Idade Média Latina. Tradução: Teodoro Cabral; Paulo Rónai. São Paulo: Hucitec; EDUSP, 1996. p. 102. 88 CÍCERO. op. cit., Livro III, 171, p. 457. 89 CURTIUS, Ernest Robert. Literatura e educação. In : Literatura Européia e Idade Média Latina. Tradução: Teodoro Cabral; Paulo Rónai. São Paulo: Hucitec; EDUSP, 1996. p. 71 - 91. (Eram sete as artes liberais: gramática, retórica e dialética formavam o trivium; aritmética, geometria, música e astronomia, o quadrivium.) 90 CÍCERO, op. cit., Livro I, p. 91. 91 Cf. MONGELLI, Lênia Márcia (coord.). Retórica: a virtuosa elegância do bem dizer. In : Trivium e Quadrivium : as artes liberais na Idade Média. Cotia: Íbis, 1999, pp. 73 – 111.

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culturas religiosas era constante e que mesclava, também, a hábil utilização e a admiração

pela antiga arte da oratória.

A fim de compreender melhor o diálogo entre pagãos e cristãos no que se refere ao

poder da oratória nesta contenta, esta parte de nosso estudo propõe a análise de alguns

trechos de documentos de dois destacados homens públicos do mundo tardo-antigo

romano: o pagão Quinto Aurélio Símaco Eusébio e o cristão Aurélio Prudêncio Clemente.

Em um momento em que o Cristianismo começa a fortalecer suas bases, o senador

pagão Quinto Aurélio Símaco Eusébio alcançou prestígio no cenário político-

administrativo de Roma devido sua habilidade de manter uma eficiente rede de relações

com importantes personagens de sua época, chegando a desempenhar a função de Prefeito

da Urbe92 entre 384 e 385. Advogado, orador, senador e autor, viveu entre 340 e 402 e era

considerado um tradicionalista devido ao seu empenho para conservar a literatura antiga, a

ordem senatorial, a religião e os símbolos pagãos.

Leitor e admirador de Marco Túlio Cícero93, Símaco percebia em seu pai, Aviano

Símaco94, o tom da eloquência ciceroniana, a herança das letras antigas e a erudição dos

gramáticos.

Símaco a seu pai (375) – Livro I, Carta 3

Eres el único que en nuestra época ha impreso la moneda de la elocuencia latina con el cuño de Tulio. Sólo tú has apurado la gracia de los poetas, la gravedad de los oradores, la fiabilidad de los anales, la erudición de los gramáticos; eres un justo heredero de las letras antiguas. […] Eres un gran experto en las reglas de la épica e igualmente sabes tocar el clarín de la prosa. […] tú destacas de igual manera como orador y como poeta. 95

Como um de seus preceptores, Aviano Símaco provavelmente estimulou o filho a

conhecer a arte da oratória. Quer tenha sido por incentivo de seu genitor ou por ter

conhecido “acidentalmente” as obras de Cícero, Quinto Aurélio Símaco Eusébio tornou-se

célebre nesta arte e foi considerado o último grande orador romano pagão. Seus Discursos

reforçaram a fama de “orador eloquente” deste magistrado – característica que também

pode ser observada em muitos de seus Informes, marcados por traços emotivos e por tons

enfáticos de discurso.

92 Cargo inferior apenas a Prefeitura de Pretório. O prefeito da Urbe era nomeado e destituído pelo imperator. 93 O nome de Marco Túlio Cícero e a admiração de Símaco pelo clássico orador são encontrados ao longo de vários escritos do senador tardo-antigo. 94 Aurélio Aviano Símaco, nascido em torno de 316, desempenhou cargos importantes perante Roma. Designado para cônsul em 377, não chegou a assumir esta magistratura. 95 SÍMACO EUSÉBIO, Quinto Aurélio. Cartas (Libros I – V). Introducciones, traducción y notas: José Antonio Valdés Gallego. Madrid: Editorial Gredos S.A., 2000. Livro I, Carta 3, 2, p. 73.

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Em Sobre o orador, Cícero afirmou que somente os varões cultos, os sábios,

podiam dominar a oratio, pois apenas eles tinham a capacidade de conhecer e, em um

discurso, lançar mão do conhecimento do passado, da literatura, da filosofia, das leis e da

origem do poder dos romanos. Além destes conhecimentos, adquiridos mediante intensas

leituras, Cícero alertou que o desenvolvimento da prática da escrita aperfeiçoava e formava

o orador. Contudo, apesar da dedicação minuciosa à redação do discurso, certas vezes, a

improvisação era indispensável, mais um motivo para que a oratória fosse praticada pelos

homens cultos96.

Os requisitos da erudição desejados pelo clássico orador foram respeitados,

resguardados e sustentados ao longo dos escritos de Símaco, os quais demonstram a vasta

educação que recebeu, sua constante busca pelo saber e sua defesa eloquente da antiga

tradição.

Na Carta 1 de seu primeiro livro, Símaco dirige a seu pai considerações sobre o

dever de se dedicar à escrita e não permanecer inativo diante da pena. Encaminha ao

genitor alguns versos que compôs durante sua estadia em Baulos, na Campânia, lugar onde

sua esposa tinha uma vila. Os versos foram consagrados ao fundador dos Baulos, Acíndino

e aos seus antepassados, após Símaco observar algumas pinturas alusivas à dignidade dos

patriarcas.

Símaco a seu pai (375) – Livro I, Carta 1

[...] tus cartas proceden de un favor, las mías de una deuda. Estas y otras consideraciones me han impulsado en gran medida a no pasar por alto el deber de escribirte. […] Allí [em Baulos] consagré unos versos al fundador Acíndino y a sus antepasados, y sometí a razón las libertades de unas pinturas que otorgaban a cada uno un ropaje distinto. […] Acepta por eso un cantar trabajado con basto hilo.97

Inspirado pelas imagens da vila de Baulos, Símaco se impõe a missão de escrever a

seu pai, informando ao genitor sobre as atividades que vinha desenvolvendo. Neste mesmo

documento, Símaco ainda exercita sua habilidade na produção de cantos ao exaltar os

antepassados.

Esta primeira Carta, do livro I, escrita em verso e prosa, tem como resposta paterna

a Carta 2 (do mesmo livro), na qual o pai de Símaco elogia a elegância do estilo de escrita

do filho, bem como sua eloquência. Afirma que a composição do filho deveria ter a honra

de ser expressa em grego, porém, se algo desagradasse o autor, este deveria corrigir suas

palavras, o que não era uma vergonha, visto que uma obra necessitava deleitar o leitor. 96 CÍCERO, op. cit., Livro I. 97 SÍMACO, Livro I, Carta 1, 2, p. 66.

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Aviano Símaco aproveita a oportunidade para demonstrar ao seu herdeiro que a carta

recebida o fez refletir e produzir, também em versos, anotações sobre escritores e

personagens políticos contemporâneos a ele. Os versos de seu pai foram comparados por

Símaco aos escritos de Pitágoras, Platão e Aristóteles e às ações de Curio, dos Catões, dos

Fábios, dos Cipiões e do senado triunfante. Se aqueles resguardaram idéias que

enriqueceram os cidadãos e estes lutaram para elevar o imperium romanorum, os versos de

Aviano Símaco esclareciam “la confusión de la época más reciente”98.

Já na Carta 3, também deste livro e encaminhada ao mesmo destinatário – seu pai –

Símaco atesta que um modo admirável de viver inclui o fascínio pelas letras, a honra aos

deuses (da religião romana), o trabalho e a caridade. Estes princípios faziam parte da vida

do bom cidadão99 e, desde a Antiguidade, eram costumes dos grandes homens, eram

preceitos do mos maiorum.

Nestes primeiros documentos, percebemos a erudição de Aviano Símaco e seu

papel como preceptor de seu filho. Quinto Aurélio Símaco aborda em seus textos autores

(de escritos e de ações militares) que elevaram a dignidade dos romanos, o que demonstra

seu largo conhecimento a respeito da história. Notamos que o prezar pela leitura, o zelo

pela escrita e a constante busca pelo saber eram passados de geração em geração há muito

tempo, preservados no seio desta família e resgatados a todo momento, inclusive naquele

período de transformações. Estes aspectos, firmemente defendidos por Cícero, compunham

um orador que precisa dedicar-se fielmente ao aprendizado, porque, mesmo que tivesse

sido educado desde de criança no mundo do conhecimento, o aprendizado não

terminava100.

A fama da oratória de Símaco foi reconhecida ainda em sua época, mas perdurou

até a Idade Média, quando fora reverenciado como orator, por Sigeberto de Gembloux

(1030 – 1112) e como “orador agudíssimo” por Pedro, o Venerável (1092 – 1156). Seus

documentos foram considerados modelos de redação e de discursos artisticamente

preparados até o século XV. Seu filho, Quinto Memio Símaco, erigiu-lhe uma estátua

dedicada ao oratori disertissimo (orador eloquente)101. Destacados cristãos como

Ambrósio de Milão e Aurélio Prudêncio Clemente também admiraram o tom oratório do

senador ainda no século IV. A Epístola XVIII de Ambrósio, destinada a Valentiniano II,

98 SÍMACO, Livro I, Carta 4, 2, p. 75. 99 SÍMACO, Livro I, Carta 3, 4, p. 74. 100 CÍCERO, op. cit., Livro III, 85, p. 413. 101 GALLEGO, José Antonio Valdés. Introducción General. In: SÍMACO EUSÉBIO, Quinto Aurélio. Cartas (Libros I – V). Introducciones, traducción y notas: José Antonio Valdés Gallego. Madrid: Editorial Gredos S.A., 2000, pp. 19 – 21.

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apóia a decisão deste imperator que não cedeu as desrazões de Símaco e não permitiu a

restauração do Altar da Vitória102. Ao longo da Carta, ao debater os pretextos de Símaco

para a reposição do altar da deusa Vitória, o bispo de Milão demonstra sua preocupação

com as idéias e o poder de convencimento de senador pagão.

O extenso vocabulário, o cuidado com a escolha das palavras e os diversos

adjetivos que adornam os documentos de Símaco permitem ao leitor verificar o cuidado do

autor na elaboração de seus escritos, requisito essencial da arte da retórica. Além disso, sua

admiração pela oratória ciceroniana é repetidamente abordada nos documentos. Todavia, a

mais intensa defesa a oratio apregoada por Símaco está expressa em seu Discurso 2

(Segundo panegírico de Valentiniano I, proclamado no início de 370 por ocasião da

inauguração do terceiro consulado deste governante). Nesta circunstância, Símaco elogia o

imperator103

por ele ter restaurado à atividade forense nas tribunas o exercício da

eloquência, o que havia sido proibido anteriormente:

29. […] A ti te deben las inteligencias de todos aquello de lo que hablan. ¡Que resuene junto a ti la libertad de la elocuencia del foro, a la que has reintegrado a las tribunas cuando llevaba tiempo desterrada. El orador, fuera de servicio, se embotaba en el campo; la fuerza denegaba una función a quienes la naturaleza había dado facilitad de palabra. En ninguna parte había silencio mayor que en los santuarios de las letras. La misma enfermedad del enmudecimiento importunaba a las diversas edades, puesto que un breve fin limitaba los estudios de los que empezaban, un largo desuso arruinaba la pericia de los viejos. […] 30. [...] Ninguna de las artes está en silencio, ninguna actividad languidece. [...] Fue oportuno que restauraras la práctica de la elocuencia cuando ya tantas acciones dignas de ser descritas habías realizado. El silencio es enemigo de las obras grandes. […]104

Conforme o orador, a proibição da prática da eloquência na atividade jurídica calou

o mundo das letras e prejudicou a todos, pois a falta de oportunidade de empregar bem a

palavra limitava os estudos dos iniciantes e arruinava a perícia dos velhos, que não

conseguiam mais ser sábios, portanto, não conseguiriam tornar-se cidadãos completos.

Através da ação de Valentiniano I, a liberdade da língua foi reconstituída. Sob este

governante, nenhuma arte se calaria. A recuperação da eloquência permitiria que os

grandes feitos fossem enunciados, o que não era possível com o silêncio, inimigo das

imponentes obras romanas.

102 AMBROSIO. Epístola XVIII, 1. “Cum vir clarissimus praefectus urbis Symmachus ad clementiam tuam

retulisset, ut ara quae de urbis Romae curia sublata fuerat, redderetur loco.” “Tua clemência respondeu para o claríssimo Prefeito da Urbe, Símaco, acerca do altar da cidade de Roma que foi removido da cúria [e ele solicitou que] retornasse ao local. (T.A.) 103 Apesar de ocupar o cargo de cônsul, Valentiniano I havia sido aclamado imperator pelo exército em 364, depois da morte de Joviano. 104 SÍMACO, Discurso 2, 29 – 30, pp. 204 – 205.

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Este documento, além de louvar a eloquência – e, consequentemente, a oratória –

como imprescindível para a política, pois anunciava e reforçava o imperium romanorum

através da “propaganda” dos feitos de importantes cidadãos, ainda reforçava a ligação

entre esta arte e as virtudes romanas. Para Símaco, não existia glória quando o silêncio

prevalecia105, pois a glória estava sujeita ao reconhecimento público106. Sendo assim, esta

virtude somente seria alcançada quando ocorresse a anunciação dos bons serviços

prestados a res publica, a partir do momento em que um discurso bem elaborado e

envolvente noticiava os grandes feitos e os fixava na memória dos ouvintes. Salientamos

que, neste contexto, a res publica não é mais entendida como uma forma de governo,

gerenciada por instituições específicas. É sim a "coisa pública" que deveria ser defendida

pelo bom governante e por aqueles que o auxiliavam na empreitada de administrar

imperium para que o bem comum fosse preservado. Zelar pelo bem público e,

consequentemente, pela ordem entre os romanos era a verdadeira missão do imperator e

dos homens públicos daquela época. Quando um governante contrariava este princípio,

violava a tradição e tornava-se um tyrannus.

Portanto, ao dominar a oratio, o indivíduo podia glorificar as empresas dos

romanos, além de divulgar e preservar outros princípios norteadores daquela sociedade.

Pois, como afirmava Cícero, o orador era responsável por fomentar a virtude e manter o

vício distante dos indivíduos107. Estas missões foram abraçadas por Símaco em seus textos,

que expressam sua preocupação em conservar a literatura clássica, os símbolos pagãos e as

virtudes romanas, bem como os privilégios da ordem senatorial e da antiga religião.

Somente desta maneira, a aeternitas Romae triunfaria.

A oratória entre o paganismo e a cristandade

Mesmo em um contexto de discordâncias de fé, havia um discurso harmonioso

entre cristãos e pagãos em torno da questão da oratória. Afinal, aquela sociedade exigia a

preservação das virtudes para continuar a existir e prosperar, assim como necessitava das

artes liberais para conhecê-las, utilizá-las e as propagarem. Em uma sociedade em que

poucos conseguiam ler, a leitura pública ditava as normas cotidianas, por isso, a oratória e

o poder de convencimento advindo da eloquência eram indispensáveis, uma vez que o

105 Ibid, Discurso 2, 30, p. 205. “¿ Qué gloria hay si uno está callado?” 106 PEREIRA, Maria Helena da Rocha. op. cit., p. 333. 107 CÍCERO, op. cit., Livro II, 35, p. 217.

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ritmo e o equilíbrio empregados no discurso promoviam o entendimento e a recordação do

assunto explorado no discurso e repassado pelo leitor aos ouvintes.

Com o fortalecimento do Cristianismo, os sermões eram utilizados para instruir os

leigos e atrair fies. A pregação tinha o propósito de converter. Das palavras emitidas pelo

religioso deveriam emanar ensinamentos. Portanto, era necessário que os disseminadores

da fé aprendessem a organizar seus discursos e a pregar com veemência. De acordo com

Bealulieu, a pregação estabelecia os dogmas da verdadeira religião diante da heresia, e

impunha um modelo de Cristianismo que integrava aspectos políticos, sociais e

religiosos108. Através destes sermões, a palavra sagrada podia ser ensinada a um grande

número de pessoas, ao mesmo tempo em que propagava concepções teológicas, modelos

de comportamento, padrões morais e valores éticos. Neste ínterim, podemos afirmar que a

necessidade de fazer com que os ensinamentos cristãos penetrassem naquela sociedade fez

com que o sermão substituísse a oratio pagã, sem dispensar a arte de proferir discursos.

Sendo assim, observamos a preservação da oratória pelos cristãos, bem como o desejo

destes indivíduos de dominar esta arte, afinal, os ensinamentos cristãos deveriam ser

registrados na memória dos fiéis e retransmitidos aos outros.

Neste cenário de conservação das artes e virtudes antigas, pagãos e cristãos

dialogavam constantemente. Aqueles para salvaguardá-las, estes para as re-elaborar e as

adaptar aos “ensinamentos de Cristo”. Mas, acima de tudo, tanto cristãos quanto pagãos,

com o propósito de proteger os princípios romanos.

Quanto ao desejo e a necessidade cristã de se preservar e dominar a oratória neste

período de transformações, destaca-se o caso do professor de retórica e advogado cristão

Aurélio Prudêncio Clemente, Quinto Aurélio Símaco Eusébio. Suas obras Contra Símaco I

e II são respostas ao Informe 3 do senador pagão:

Oh, lengua que fluyes de portentoso manantío de palabras, honra de la romana elocuencia, ante quien habría de ceder incluso el propio Tulio, ¡que hayan de ser éstas las perlas que derrama tu rica facundia! Boca digna de refulgir con eterno baño de oro, si prefiriera alabar a Dios [...].109

Em seu Informe 3, Símaco solicitava ao imperator Valentiniano II110 a reposição do

altar da deusa Vitória na cúria senatorial e a restauração dos privilégios dos cultos pagãos,

sem privar os cultos cristãos. Se por uma via, em seus textos, Prudêncio acusava o Prefeito 108 BEALULIEU, Marie-Anne Polo de. Pregação. (tradução: José Rivair Macedo) In: Dicionário Temático do Ocidente Medieval. vol. II. Coordenação Jacques Lê Goff e Jean-Claude Schmitt; Coordenador da tradução para português: Hilário Franco Júnior. Bauru – SP: EDUSC, 2006. p. 367. 109 PRUDÊNCIO, Contra Símaco I, 633 – 636, p. 51. 110 E aos demais imperatores, como já especificado neste estudo.

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de Roma de utilizar sua sagaz oratória para defender glórias indefensáveis, por outra, não

negava o talento empregado em seu discurso. O advogado cristão salientava que o próprio

Cícero cederia perante as poderosas palavras de Símaco e que esta aptidão seria digna e

eterna se resplandecesse a figura de Deus.

Prudêncio reconhecia suas próprias limitações perante as habilidades do senador

pagão e deixou claro que não proporia um embate de talentos, pois, mesmo sendo

professor de retórica, sabia de suas deficiências e que não venceria Símaco. Ao longo das

contestações apresentadas em Contra Símaco II, Prudêncio refere-se a Símaco como

“astuto e hábil orador”; proprietário de “palavras magníficas” que elaboram “obras de

arte”; e possuidor do “talento de um homem sábio”.

Estas consagrações, vindas de um professor de retórica, condecoram ainda mais a

destreza do orador pagão. Prudêncio afirma, ainda, que nenhum homem daquela época

possuía tão grande capacidade como Símaco111 e que suas obras deveriam ser preservadas

para que sua oratória fosse conservada112. Dados que comprovam, novamente, o desejo dos

cristãos de aprender e conservar as artes dos antigos, bem como o diálogo entre os

membros destas culturas religiosas.

Apesar de refutar a luta de Símaco pela defesa das honras devidas aos deuses

pagãos, Prudêncio não deixa de enaltecer o poder da oratória propagada pelo Prefeito da

Urbe. Exprime seu pesar por toda esta desenvoltura com as palavras não ser empregada

para exaltar o Deus Cristão. Situação facilmente compreendida a medida que esta mesma

eloquência será um poderoso instrumento para a difusão da ideologia cristã que se tornou

cada vez mais forte e legitimadora a partir do século IV. Percebemos, então, um escritor

cristão que rivalizava suas idéias de fé com as da tradição pagã romana, ao mesmo tempo

em que adaptava os princípios antigos aos difundidos pela nova religião que delineava seus

dogmas naquele momento. Ao fim e ao cabo, a oratória mantinha seu papel, reverenciado

deuses antigos ou legitimando o Deus único cristão.

111 PRUDÊNCIO, Contra Símaco II, 56, p. 54: “[...] más diserto que el cual nadie hay en el día de hoy.” 112 PRUDÊNCIO, Contra Símaco I, 649, pp. 51 – 52.

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O poder da oratória preservado e desejado

Observamos que mesmo em um contexto de discordâncias de fé, havia um discurso

harmonioso entre cristãos e pagãos que propunha, em comum acordo, a preservação das

bases morais, sociais e políticas daquela época.

Conforme Cícero, aquele que dominava a eloquência tinha a capacidade de falar

sobre a origem das coisas e sobre as mudanças que as afetaram, sobre as virtudes e o

espírito do homem; podia estabelecer costumes e dirigir a vida pública113. No século IV,

pagãos e cristãos conviviam em um mesmo cenário, no qual as aptidões enumeradas por

Cícero eram almejadas pelos homens públicos. Os letrados frequentavam as mesmas

escolas e buscavam o domínio das artes ali apresentadas.

Símaco e sua oratória se destacaram já no século IV e continuaram a ser exemplos

até, ao menos, o século XV. Considerado um tradicionalista e o último grande orador

pagão, seus escritos exaltam a antiga tradição, a literatura do passado, a religião e os

símbolos pagãos. Com esta atitude, buscava, sobretudo, defender os privilégios da ordem

senatorial e a perenidade do imperium romanorum.

Enquanto Prudêncio temia a eloquência de Símaco – pois este esclarecia e defendia,

elegante e habilmente, a antiga tradição e o imperium romanorum –, concomitantemente, o

pensador cristão contemplava os dons do orador pagão, estudava seus textos e almejava a

conservação destes documentos para o aprendizado da arte do “bem falar”. Adequava e

incorporava os preceitos clássicos a um “novo projeto” que louvava e disseminava os

ensinamentos de Jesus Cristo, mas que, também, sustentava a aeternitas Romae ao propor

a unidade e a universalidade do imperium romanorum, baseadas no único e universal Deus

cristão, protetor dos romanos.

A intensa vida pública de Roma e o esforço para a manutenção da hegemonia do

poder romano estimularam a prática da oratória. Aquele que a domina expressava com

elegância seus conhecimentos sobre história, literatura, filosofia, direito, política, religião e

sobre as virtudes que constituíam o cidadão romano – na res publica – ou o verdadeiro

cristão – na res publica christiana. Os estudos e a preparação do orador não favoreciam

somente a ele, pois, em uma época de iletrados, este indivíduo guiava sua família, seus

amigos e, até mesmo, a sociedade ao exercer a atividade pública. Seus discursos ensinavam

e/ou encantavam e influenciavam os ouvintes. Contudo, para isto, devia-se lançar mão da

113 CÍCERO, op. cit., Livro III, 76, p. 409.

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leitura pública e, acima de tudo, da arte de proferir discursos de forma convincente e

“convidativa”, para que as palavras não fossem entregues ao vento, mas, sim,

compreendias e fixadas pelos ouvintes.

A palavra escrita passava a formatar o cotidiano romano quando transformada em

palavra falada e memorizada pelos destinatários da mensagem que a integrava à memória

coletiva e às ações diárias. Por isso, quer fosse para conservar a antiga tradição, atrair

novos fiéis através de sermões, ou legitimar a aeternitas Romae, durante a Antiguidade

Tardia a oratória continuou sendo ambicionada e resguardada.

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ALGUMAS CONCLUSÕES

Diante dos casos estudados no decorrer deste trabalho monográfico, notamos que a

realidade contradiz uma possível ideologia cristã de exclusão ou conversão de todos os não

cristãos, pós era constantiniana. Aquela sociedade romana em transformação permitia – e

aceitava – o convívio geralmente pacífico e respeitoso entre indivíduos de pensamentos

distintos e se beneficiava com o diálogo produzido nesta esfera de relações.

Mesmo quando os argumentos eram contrários a determinadas crenças, enalteciam-

se as habilidades do adversário e muitas idéias eram re-elaboradas aos próprios contextos.

Percebemos, a contínua adaptação da filosofia pagã à teologia cristã que sustentará os

dogmas cristãos nascentes nesta ocasião. Assim, não podemos negar o intercâmbio de

opiniões entre os indivíduos envolvidos nos debates, especialmente no campo público,

visto que estes pensadores formulavam as teorias balizadoras do cotidiano romano.

Neste cenário, Quinto Aurélio Símaco Eusébio fora um verdadeiro amante da

tradição: defendia a conservação da literatura Antiga e evocava as honras à filosofia e aos

símbolos pagãos. Sua preocupação com a manutenção dos costumes dos maiores cidadãos

(mos maiorum), promulgada eloquentemente, buscava preservar a eternidade romana e,

consequentemente, defender os privilégios da ordem senatorial, na qual estava integrado,

juntamente com outros pagãos e, também com representantes do Cristianismo. Aos olhos

deste político, o Senado era uma ordem ilustríssima, perfeita em suas ações, guardião do

mos maiorum e estandarte da sempre Eterna Roma.

No momento, em que o conceito de humanitas do imperium romanorum se

transfigurava para o ideário da christianitas, adaptava-se o mos maiorum aos interesses

desta sociedade em transformação. Os pensadores cristãos recorreram a conceitos já

arraigados e estimados pelos indivíduos daquela comunidade para afirmar suas ideologias

no período em que o Cristianismo se fortalecia e servia como um poderoso instrumento de

unidade e de universalidade do poder do imperator romanorum.

O conjunto de virtudes que formava um bom cidadão romano e fazia com que ele

respeitasse a res publica e a família foi readaptado por pensadores cristãos. Sendo assim,

neste novo contexto que se estabelecia, o bom cristão deveria honrar a res publica

christiana e a família e este, sim, era o homem desejado para aquela nova sociedade; um

indivíduo repleto de virtudes e apartado dos vícios. Indivíduo este já ambicionado pelos

Antigos, assim como apontava Cícero ao se referir ao homem virtuoso romano, em suas

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Tusculanas: um indivíduo com “[...] aquilo que chamamos honesto, reto, conveniente,

dando-lhe por vezes o nome de uirtus [...]”114.

No tempus christianorum, o mos maiorum perdeu seu caráter de adoração aos

deuses pagãos, entretanto o respeito pelos costumes dos antepassados e a exaltação

daqueles aqueles que serviam de exemplos virtuosos não foram extintos pelos seguidores

de Cristo. Os valores cristianizados passaram então a ser propagados no lugar das honras

prestadas aos antigos deuses. Envolvida por uma aura cristã, esta virtude de salvaguarda da

tradição recebeu contornos que tendiam a exaltação do universo produzido pelo Divino:

Deus criou o mundo para os homens e estes deveriam preservá-lo, divulgar esta dádiva e

agradecer a benção recebida. A tradição, glorificada pelo mos maiorum, deixou de ser

resgatada através da Antiga mitologia e dos atos heróicos de grandes personagens pagãos,

para ter o Jardim do Éden como cenário inicial e as figuras bíblicas – em processo de

seleção naquele momento – como modelos a serem seguidos. Portanto, ainda se buscava

viver conforme a tradição – tão exaltada pelos pagãos. Porém, o próprio conceito de

tradição foi, paulatinamente, adaptado ao Cristianismo, apesar de se resguardar alguns

aspectos do paganismo como: o esmero pelo conhecimento, o zelo pela amizade, a

observância do requinte das palavras (e das artes liberais) e a insistência pelo bem comum,

atitudes que tornavam o homem – quer fosse ele pagão ou cristão – um cidadão virtuoso e

digno de respeito. Por isso, caso encontre a citação: “Então, é próprio da verdadeira

amizade dar e receber advertências, dá-las francamente e sem rudez, recebê-las com

paciência e sem mau humor [...]”, não a veja como um dito cristão, mas sim ciceroniano115

e readaptado pelo Cristianismo para estimular o querer bem ao próximo e conservar a

ordem naquela sociedade.

Desta forma, a manutenção do mos maiorum, suporte do cotidiano romano

divulgado pela oratio, abandonou a adoração às divindades pagãs. Todavia, passou a

integrar a ação dos seguidores do Deus cristão e se propagou pela mesma arte da oratio

(antes pagã) ao longo dos tempos até nossos dias, tendo deixado como legado muitas

estruturas morais e políticas. Os antepassados continuaram a ser modelos para os cristãos,

embora re-elaborações tenham sido feitas e alguns nomes tenham mudado.

Diante destas conjunturas, não podemos negar as interações ocorridas entre pagãos

e cristãos quando observarmos as discordâncias e as releituras executadas durante a

Antiguidade Tardia. Conforme destaca Frighetto, muitos autores cristãos receberam

114 CÍCERO. Tusculanas. Livro II, 13, 30. Apud PEREIRA, Maria Helena da Rocha. op. cit., p. 401. 115CÍCERO. Sobre a Amizade, XXV, p. 91.

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influências das tradições pagãs, assim como os pagãos, por sua vez, convergiram para

pensamentos cristãos que se disseminavam naquele contexto116. Portanto, quer fossem em

debates da filosofia pagã ou da teologia cristã, as virtudes e as artes liberais permaneceram

como foco de discussões, estudos e releituras, pois formatavam os costumes daquela

sociedade. Toda esta readaptação tinha como objetivo a sobrevivência do imperium

romanorum. O mesmo imperium que permitia se re-elaborar para ser preservado e

permanecer Eterno.

116 FRIGHETTO, Renan. Algumas considerações: o poder político na Antiguidade Clássica e na Antiguidade Tardia.” Stylos - Instituto de Estudios Grecolatinos Francisco de Novoa, v. 13, Buenos Aires, 2004, pp. 37 – 47.

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http://www.igrejaortodoxa.info/textos/hagiografia/arquivos/santo_ambrosio_de_milao.htm - Vida e Obra de Santo Ambrósio (de Milão). Acesso em 26/04/2008.