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CONTEMPLAR O PAR AÍSO O JARDIM DE SANTA CRUZ DE COIMBR A Marco Daniel Duarte

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CONTEMPLARO PAR AÍSOO JARDIMDE SANTA CRUZ DE COIMBR A

Marco Daniel Duarte

Marco Daniel Duarte é diretor do Serviço de Estudos do Santuário

de Fátima, onde dirige o Museu, o Arquivo e a Biblioteca da instituição,

e do Departamento do Património Cultural da Diocese de Leiria-Fátima.

Doutorado em História da Arte pela Faculdade de Letras

da Universidade de Coimbra, tem desenvolvido a sua investigação

no âmbito dos estudos da iconografia e da iconologia, áreas sobremodo

ligadas à arte sacra antiga e contemporânea, e, bem assim, no âmbito

de diferentes temáticas relacionadas com o pensamento humano

no contexto da história de Fátima.

Pertence à Academia Portuguesa da História, como académico

correspondente, é sócio efetivo da Associação Portuguesa

de Historiadores da Arte, membro da Sociedade Científica

da Universidade Católica Portuguesa e investigador do Centro

de Estudos Interdisciplinares do Século XX, da Universidade de

Coimbra. Entre 2012 e 2016, integrou o Seminário dos Jovens Cientistas

do Instituto dos Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa.

Em 2009, foi nomeado para integrar o grupo técnico coordenador

do projeto «Rota das Catedrais», cujo protocolo foi celebrado

entre o Ministério da Cultura e a Conferência Episcopal Portuguesa.

Entre 2015 e 2017, integrou a Comissão Histórica do Inquérito

Diocesano da Causa de Beatificação e Canonização da Serva de Deus

Maria Lúcia de Jesus e do Coração Imaculado.

Autor de vários estudos publicados em revistas científicas e editados

em livro, alguns deles premiados, tem também comissariado diversas

exposições científicas subordinadas às temáticas da sua especialidade.

FICHA TÉCNICA

Contemplar o Paraíso: o Jardim de Santa Cruz de Coimbra (do século xviii ao século xxi)

AUTOR

Marco Daniel Duarte

FOTOGRAFIA

Rui Gonçalves Moreno (2013)

REVISÃO DE TEXTO

Imprensa Nacional-Casa da Moeda

DESIGN

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IMPRESSÃO E ACABAMENTO

Imprensa Nacional-Casa da Moeda

1.A EDIÇÃO

Setembro de 2017

ISBN

INCM: 978-972-27-2215-5CMC: 978-989-8039-35-4

DEPÓSITO LEGAL

359 890/13

EDIÇÃO N.º

1019574

Imprensa Nacional-Casa da Moeda, S. A.Av. de António José de Almeida1000-042 Lisboa

www.incm.ptwww.facebook.com/[email protected]

© 2017, Marco Daniel Duarte, Câmara Municipal de Coimbra, e Imprensa Nacional-Casa da Moeda

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Índice

9 Aos Conimbricenses!

10 Prefácio

13 Antes da entrada, nos umbrais do jardim

25 O Pórtico, primeira encenação

39 O Jogo da Pela, exercício de recreio e metáfora da vida

45 A Cascata, primeiro discurso sobre a água

57 Subindo o escadório que leva à água primordial

67 O recinto da Fonte da Nogueira, lugar da água esponsal

83 O grande Lago, circular clareira de água

91 Por entre as árvores: o bosque, as alamedas e o labirinto

99 Depois dos crúzios, uma leitura histórica

133 A obra de arte continua: o jardim dentro do jardim

143 Antes da saída, novamente nos umbrais do jardim

151 Fontes (documentação e estudos)

159 Tábua de siglas e abreviaturas

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<Pormenor do painel de azulejos, sobre o tema da água, extraído do Livro do Génesis FOTOGRAFIA: RUI GONÇALVES MORENO

Aos Conimbricenses!

Coimbra, esta fantástica e encantada cidade, tem nos seus jardins uma marca indelével da sua identidade e urbanidade. Os nossos jardins são um bem cultural e ambiental que devemos saber preservar, promover e valorizar.

O Jardim de Santa Cruz, em particular, também conhecido por Jardim da Sereia, erigido origi-nalmente no seio da clausura dos monges crúzios, no século xviii, viria a influenciar o imaginário de várias gerações de homens e mulheres, em Coimbra, sendo, hoje, um jardim aberto à cidade, um espaço de lazer, de cultura e de desporto. Com uma forte relação com a água, com fontes e escadarias, estátuas, caminhos e alamedas, o Jardim de Santa Cruz, no coração da nossa cidade, tornou-se uma referência mítica da Coimbra romântica. Lugar de encontros, de amores e desamores, de meditação e livre-pensamento, inspirou os versos de muitos dos nossos poetas.

Registar em livro as origens históricas deste espaço natural, de beleza excecional, a par com a sua especificidade artística, e de modo que se amplie o seu conhecimento e se aprofunde a sua relação com os cidadãos, munícipes e visitantes de Coimbra, é o objetivo fundamental desta obra.

Honrando o nosso legado cultural e a memória coletiva na edificação da nossa cidade, este livro é um contributo para a promoção do nosso património. Por isso, expressamos o nosso reconheci-mento, numa obra que nos orgulha e valoriza Coimbra!

Manuel Machado

Presidente da Câmara Municipal de Coimbra

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<Cascata do Jardim de Santa Cruz fixada num postal ilustrado como coroamento de todo o piso inferior do complexoI-BMC, PB-243, s. d.

A Cascata, primeiro discurso sobre a água

Quer as análises da historiografia atual quer os registos dos historiadores mais antigos, ao olha-rem para o Jardim de Santa Cruz, registam «o espectáculo dos jogos de água na cascata e nos repu-xos» 1, fazendo eco de que «a agua rebenta e despenha -se das rochas, imitando a natureza; e repucha [sic] de duas taças, e de um lago que recebe todo o manancial» 2. O viajante francês que visita Coimbra em 1816, no seu relato de 5 de agosto desse ano, apelida a Cascata que preside ao Jogo da Pela de «extre-midade de honra», à qual foi aposta decoração de estilo elevado e grandioso 3. Se já o pórtico adianta essa ambiência tão apreciada, «no fundo da praça, em correspondencia d’este portico, ergue -se uma cascata, com duas estatuas de mármore [sic], que representam dois evangelistas escrevendo o Evan-gelho, sentados sobre rochedos, e na parte superior [a cenografia continua] com a imagem de Nossa Senhora da Conceição, esculpida em jaspe [sic]» 4. O historiador e arqueólogo da Academia Real das Ciências de Lisboa, na sua descrição, omitiu dois dos evangelistas que perfazem o conjunto do cânone dos evangelhos, omissão repetida mais tarde, noutros lugares 5, ou por erro ou por, nessa altura, pode-rem não estar no lugar 6, mas não erra na identificação da escultura que preside ao conjunto.

É, com efeito, a imagem da Virgem Maria, evocada sob o título da sua Imaculada Conceição, a peça que preside à «magestosa cascata», construída à maneira dos dispositivos dos interiores das capelas -mores, à qual não falta um «gigantesco trono de retábulo, em degraus de concreções» 7 rochosas. Louis -François de Tollenare, erroneamente, lê a escultura como uma «bela Assunção», mas a peça contraria a nota que o livro de Tollenare contém, na qual se regista que a iconografia da escultura não apresenta qualquer sinal particular. A posição orante da Virgem, com as mãos postas à altura do peito, as três cabeças de anjo na nuvem que se faz base da imagem e, sobremodo, o cres-cente lunar aos pés da mulher figurada levam a que a escultura seja conotada, sem dúvida alguma, com a Imaculada Conceição cujo cânone se fixou na pintura de Bartolomé Esteban Murillo (1618--1682) 8. A figura ocupa um óculo elíptico, típico do alçado rococó já maduro e erudito, óculo esse que aparece vazado, deixando viver a escultura sobre o fundo de vegetação e assim proporcionando um maior contraste, ao gosto da estética do tempo. Todo o coroamento demonstra grande elegância formal, usando formas alongadas que ajudam a conferir ao conjunto uma verticalidade reforçada, quer pela moldura contracurvada que sobrepuja o nicho quer pelo pináculo que quase remataria em agulha, não fora a esfera que o encima.

A ladear o nicho desta estrutura retabular encontram -se duas urnas que assentam em volutas sustentadas pela moldura decorrente de outras duas volutas, ainda mais escultóricas, sobre a qual,

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<A cenografia quase romântica a antecipar o sentir de Oitocentos: o bosque labiríntico que a estética rococó apreciavaFOTOGRAFIA: RUI GONÇALVES MORENO

Postal ilustrado com «um trecho do Parque de Santa Cruz» correspondente a uma parte do labirinto do Jardim de Santa Cruz I-BMC, PB-263

Por entre as árvores: o bosque, as alamedas e o labirinto

A planimetria traçada pelos Cónegos Regrantes exige que à «Rotunda do lago» 1, situado, grosso modo, no centro geométrico da zona de recreio dos cónegos de Santa Cruz, se chegue através de um labirinto que se torna mais ou menos extenso conforme nele se entra ou pelo Escadório, ou pela ala-meda dos Loureiros, ou pela alameda de Santo Agostinho.

Também presente noutros lugares do grande jardim, o conceito de natura ludens revela -se neste ponto deveras importante, uma vez que nada mais que a natureza é aqui convocado em ordem ao que a linguagem hodierna considera «bem -estar». Os testemunhos escritos que temos seguido, porven-tura sem notarem que descrevem partes desse labirinto, mostram como as árvores formam paredes, narram como existe uma rua «a que fazem parede compacta mui altos cedros tosquiados», dizem como aí «se encostam assentos de pedra, e que apenas deixam livre passagem por baixo de alguns arcos formados dos seus proprios ramos». Na mesma descrição importa -nos agora destacar a parte que observa que esses caminhos «dão sahida para outras tantas ruas orladas de arvoredo» 2.

Como vemos, estamos perante um emaranhado de percursos, se não desenhados, pelo menos visualmente intuídos. Não cremos que o labirinto que cerca o Lago tenha intuitos ligados à «com-plicação do seu plano» ou à «dificuldade do seu percurso» 3. A ideia dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, ainda que ancestral e subliminarmente ligada ao cogitado labirinto da cultura da Anti-guidade, não tem a intenção de confundir o via-jante. A sua formulação encontra -se mais rela-cionada com a ideia de bosque orgânico dentro de um jardim planimétrico, por conseguinte, de emaranhado natural dentro de uma parcela de terreno em que tudo se afigura conjeturado. Neste sentido, o labirinto foi pensado para pro-porcionar aos que nele repousam um tempo de contemplação da res natura pouco transformada pelo homem, deixando como contraponto ao resto do jardim uma ambiência rústica. O major W. Dalrymple (1736 -1807), na sua visita ao lugar em 1774, ao escrever sobre a cerca de Santa Cruz, refere -se a estas duas categorias de jardim: «os

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Erudita alegoria do Paraíso, o Jardim de Santa Cruz de Coimbra

impõe-se como um dos mais importantes lugares de recreio

e meditação construídos no seio do espaço monástico português.

Erguidos segundo o refinado gosto rococó, o Pórtico e o Jogo da Pela, a Cascata

e o Escadório que leva à Fonte da Nogueira, o grande Lago para onde confluem

as alamedas e as ruas do Labirinto falam da importância da água, elemento tomado

como imagem da fonte da vida, sublinhado pela arte da escultura, da pintura

e da azulejaria. Levantado pelos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, uma das

mais intelectualizadas comunidades claustrais da Idade Moderna portuguesa,

o Jardim mostra ainda esses especiais lugares cenograficamente pensados

segundo a mentalidade do século XVIII, não obstante o decorrer da História

o ter transformado em parque da urbe coimbrã oitocentista, inserido na malha

urbana da cidade contemporânea.

À obra dos crúzios somaram-se outras intervenções, datadas dos séculos XIX, XX e XXI,

culminando numa reflexão artística cirurgicamente colocada, de forma

metarreferencial, dentro do próprio Jardim que, afinal, nos elementos

construídos — sejam de pedra, de metal, de cerâmica, de ferro ou de água,

de terra, de verde ou de céu — se explica e celebra a si mesmo.

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