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O JORNALISMO COMO FERRAMENTA DE RECUPERAÇÃO DA HISTÓRIA: As crônicas de Francino Silveira Déda e as memórias de Paripiranga (1920-1960) Ana Maria Ferreira de Oliveira 1 1 Introdução Os jornais são fontes de representação, expectativas e posturas. As publicações e os discursos implícitos, no que tange à representação social, exigem um tratamento diferenciado das fontes, considerando que os discursos possuem um lugar onde são produzidos. O jornal pode ser compreendido como um produto social, no qual pode ser observadas posturas e manifestações de valores, conceitos e ações bastante significativas que constituem- se em ricas fontes de conhecimento sobre a população em estudo. Na Paripiranga do início do século XX, ler jornal era um hábito impregnado de significados, e o principal deles era que a esmagadora maioria dos leitores eram brancos, alfabetizados e pertencentes à camada mais abastada da população. O jornal nesse sentido, não apenas transmite informação, mas também dissemina ideias e reflete pensamentos de forma implícita ou explícita. A História se debruça sobre os jornais para ampliar o campo de visão sobre o passado, e reconstruir várias margens, contribuindo para a formação do imaginário, e do conjunto de hábitos, tecnologias, ações e valores que compõem a visão social de um povo, no caso desse estudo, do povo de Paripiranga entre 1920-1960; período de existência dos seus dois principais jornais: os semanários O Paladino e O Ideal; que circularam e períodos diferentes, sendo que o segundo sucedeu o primeiro; de modo que ambos cumpriram sua função de principal órgão informativo da cidade. O desenvolvimento do estudo se deu a partir da análise das publicações dos jornais O Paladino e O Ideal, nos quais observou-se o papel social da imprensa, e sua contribuição para a historiografia local; destacando a coluna do Jornalista Francino Silveira Déda, como principal responsável pelo processo de resgate e preservação das memórias.

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O JORNALISMO COMO FERRAMENTA DE RECUPERAÇÃO DA HISTÓRIA:

As crônicas de Francino Silveira Déda e as memórias de Paripiranga (1920-1960)

Ana Maria Ferreira de Oliveira1

1 Introdução

Os jornais são fontes de representação, expectativas e posturas. As publicações e os

discursos implícitos, no que tange à representação social, exigem um tratamento diferenciado

das fontes, considerando que os discursos possuem um lugar onde são produzidos.

O jornal pode ser compreendido como um produto social, no qual pode ser observadas

posturas e manifestações de valores, conceitos e ações bastante significativas que constituem-

se em ricas fontes de conhecimento sobre a população em estudo.

Na Paripiranga do início do século XX, ler jornal era um hábito impregnado de

significados, e o principal deles era que a esmagadora maioria dos leitores eram brancos,

alfabetizados e pertencentes à camada mais abastada da população. O jornal nesse sentido,

não apenas transmite informação, mas também dissemina ideias e reflete pensamentos de

forma implícita ou explícita.

A História se debruça sobre os jornais para ampliar o campo de visão sobre o passado,

e reconstruir várias margens, contribuindo para a formação do imaginário, e do conjunto de

hábitos, tecnologias, ações e valores que compõem a visão social de um povo, no caso desse

estudo, do povo de Paripiranga entre 1920-1960; período de existência dos seus dois

principais jornais: os semanários O Paladino e O Ideal; que circularam e períodos diferentes,

sendo que o segundo sucedeu o primeiro; de modo que ambos cumpriram sua função de

principal órgão informativo da cidade.

O desenvolvimento do estudo se deu a partir da análise das publicações dos jornais O

Paladino e O Ideal, nos quais observou-se o papel social da imprensa, e sua contribuição para

a historiografia local; destacando a coluna do Jornalista Francino Silveira Déda, como

principal responsável pelo processo de resgate e preservação das memórias.

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2 A imprensa interiorana no início no século XX e o nascimento da imprensa em

Paripiranga

Segundo Sodré, a imprensa chegou o Brasil muito tardiamente; somente no século

XIX, com a vinda da família real para o Brasil. Não estava nos planos da Coroa, o

desenvolvimento social intelectual da colônia. Os serviços de imprensa desenvolvidos no

Brasil colônia eram, em sua maioria, de cunho burocrático, restritos, e bastantes escassos;

alcançando apenas os grandes centros urbanos. Por outro lado, não era possível evitar a

crescente circulação de livros, folhetos, tipografias e de jovens universitários que cada vez

mais se interessavam por literatura, ciência, política e informação. Se havia equipamento

tipográfico e leitores, haveria imprensa.

No início do século XX, o alcance da imprensa jornalística se expande para as regiões

mais longínquas do país. Nas pequenas cidades do nordeste as tipografias já trabalhavam na

produção dos semanários que circulavam na internamente e na vizinhança, mantendo a

população leitora e não leitora;informada dos principais acontecimentos da cidade,

redondezas e até do Brasil e do mundo. Assim, os jornais interioranos vão se proliferando e se

desenvolvendo segundo as necessidades geográfica e social de cada região. Em fim, no início

do século XX, devido a aspectos econômicos ou partidários, muitos periódicos não passaram

da fase "artesanal", e logo desapareceram com o surgimento da televisão e modernização

estrutural e metodológica da imprensa anos 50 e 60.

O jornalismo do interior é, provavelmente, o que mais se encaixa e pratica os

elementos que envolvem a proximidade entre a fonte e o jornalista, e esse é tido como um

fator facilitador de todo processo. Os veículos dos grandes centros, além de não conhecerem a

realidade de cidadãos interioranos, também estão muito distantes geograficamente. no âmbito

local, normalmente as fontes estão ao alcance, ou vão ao encontro do jornalista que se

abastece do que ocorre na cidade; envolvendo-se nos eventossociais locais e regionais e leva a

população aatualizar-se sobre os fatos. Gustavo Barreto2 ressalta que o jornal local

desempenhou um importante papel na construção e identidade cultural de determinadas

regiões, com a promoção da discussão dos interesses comuns, o fortalecimento da identidade

cultural e a preservação suas memórias.

Nesse contexto, muitas cidades do interior tiveram no jornal uma forma de construção

e preservação da história e da cultura local.

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Os jornais interioranos têm uma outra importância que, aos poucos, deixa de

ser negligenciada: a da aceitação de sua colaboração na constituição dessa

história e de sua preocupação em resgatar, com o auxílio das novas

tecnologias e de uma boa organização, os documentos que registram os fatos

constituintes de suas matérias, bem como os jornais em que foram

registrados3.

Diante do exposto, compreende-se que os jornais interioranos do inicio do século XX

podem oferecer material histórico de riqueza ainda pouco mensurada e explorada por

pesquisadores; material esse que poderá contribuir na construção da identidade cultural da

comunidade.

Alberto Dines definiu ojornalismo como “a técnica de investigar, arrumar,

referenciar, distinguir circunstâncias”4 sendo que a partir das circunstâncias, possa-se

adentrar ao passado mediante exploração dos registros jornalísticos, na busca constante pela

compreensão de determinada realidade. Nessa perspectiva, os fatos e situações mais simples

do dia-a-dia ganham importância bastante relevante, e podem ser “tão minuciosamente

devassadas a ponto de se tornarem lapidares sobre a época e as próprias forças da

história”5.

O jornalismo desenvolvido na Paripiranga do inicio do século XX se encaixa

perfeitamente no contexto apresentado por Barreto e Dines, no que tange à contribuição para a

construção de identidade e registro de memórias; principalmente pelo aspecto ufanista

voltado, quase que em sua totalidade, pra a apresentação ou a discussão de assuntos referentes

á sociedade local.

A cidade que no inicio de sua formação recebeu a denominação de Patrocínio do

Coité, contou com dos veículos de imprensa escrita que circularam e períodos distintos, mas

que tiveram igual importância na vida social e cultural da cidade. O Paladino e O Ideal; dois

jornais de circulação restrita, construídos de forma artesanal, com a utilização de recursos

tipográficos economicamente compatíveis com o poder aquisitivo de uma cidade do agreste

baiano do inicio do século XX; que atualmente configurarem-seem ricas fontes de memórias

acerca do passado de Paripiranga.

Em 26 de outubro de1919 surge O Paladino; um semanário idealizado e organizado

por Manoel Coelho Cruz, o mais influente e próspero comerciante da então Vila de Patrocínio

do Coité; um lugar ainda precário em termos de desenvolvimento social, mas que crescia a

cada ano em termos estruturais e sociais, pelo que consta nas páginas do Paladino. A

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montagem da estrutura, conteúdo e distribuição do jornal contavam com a técnica da

composição manual dos tipos.

Em termos estruturais, o Paladino compõe-se de 04 páginas, sendo que a primeira é

sempre destinada ás notícias referentes ao cenário nacional e mundial, cuja competência da

pesquisa e construção textual ficou a cargo do seu redator chefe, o Professor Francisco de

Paula Abreu; a segunda e a terceira página destinam-se a crônicas sempre voltadas á

sociedade local, informativos da Intendência e do juiz da comarca. bem como sessões de

charadas, concursos de beleza, pesquisas de opinião sobre assuntos de interesse público, notas

fúnebres e natalícias; todas em microtextos. A última página era destinada ás propagandas dos

colaboradores, cujos produtos aparecem em xilogravuras e com a colaboração das pessoas

consideradas mais intelectualizadas da cidade.

A escolha do nome surge como forma de expressar da proposta do jornal, que seria a

imparcialidade e a variação de notícias de modo a atender a todos os paladares. O jornal

enfrentou dificuldades materiais desde o início, e resistiu à duras penas á falta de recursos, ao

restrito número de assinantes, sendo que muitos eram inadimplentes e de sustentou graças ao

poder aquisitivo e ao sucesso comercial do Armazém Coelho Cruz e de seu proprietário, como

grande entusiasta da imprensa escrita. Tanto que nos primeiros anos, O Paladino foi impresso

em papem de má qualidade e m tamanho reduzido, dada a falta de recursos para investimento

em material e melhoria do formato.

O Paladino surge com dificuldades, afinal não devia ser fácil construir manter uma

tipografia e um jornal circulando em uma pequena vila do interior da Bahia, cuja maior parte

da população não sabia ler nem escrever. Os seus idealizadores tinham consciência das

Foto: páginas 01 e 04 do Paladino. Ano I. maio de 1920. Fonte: Acervo digital

do LEPH - UniAGES

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dificuldades a serem enfrentadas; mas a necessidade de existência de um veículo de

comunicação escrita era considerada eminente e demandava urgência; como forma de

promoção do desenvolvimento social e cultural da Vila em fase de expansão.

As dificuldades financeiras e o seu impedimento na modernização do formato do

jornal foram expressas por seus redatores na edição comemorativa do primeiro ano de

circulação; em texto publicado com exaltação das conquistas alcançadas por conseguirem

manter o semanário circulando por um ano, mesmo com problemas de capital; e atentando

para a necessidade de aperfeiçoamento do modelo oferecido:

Quando iniciamos esse tentamen, não nos iludimos em relação a dificuldades

a sobrepujar, as desilusões, os dissabores a sofrer. Essas considerações de

ordem moral e material não nos conseguiram demover do nobilíssimo

intento de dotar essa localidade com um jornalzinho, cuja falta se fazia sentir

de modo sensível.

Dificuldades de ordem material superiores aos nossos desejos, não nos

permitiram ainda o alongamento do formato; todavia, não desanimamos,

esperando no decorrer do novo ano, dar plena satisfação aos nossos leitores6.

Os problemas financeiros fizeram com que o Paladino saísse de circulação em 1929;

voltando a circular pelo período de um ano em 1939, mas não resistindo à falência do

armazém Coelho Cruz, cujo proprietário já avançado em idade, não mais conseguia os

mesmos feitos comerciais de outrora. Com o desaparecimento de o Paladino, Patrocínio do

Coité perde sua capacidade de imprensa, que só veio a ser resgatada em maio de 1953, com o

nascimento de outro jornal, intitulado O Ideal.

O semanário O Ideal em 03 teve sua primeira edição impressa e posta em circulação

no dia 03 de maio de 1953. O semanário surge pela iniciativa da elite intelectual da cidade,

composta por jovens antenados com os acontecimentos do mundo exterior; e ávidos por maior

movimentação e diversidade das atividades sócio interativas que compunham a vida social e

cultural de Paripiranga, fundaram em 1946,o Grêmio Social e Esportivo Vitória; e foram nas

reuniões dessa agremiação que tive inicio a proposta de retomadas as atividades jornalísticas

na cidade; como forma preencher a lacuna deixada pelo Paladino e promover a interação

social e melhoria da comunicação com a população.

O Ideal,de propriedade de Jonathas Lima de Menezes; personalidade ilustre e das mais

abastadas da cidade em seu tempo; foi produzido com a mesma estrutura técnica e

metodológica do paladino; e as semelhanças não se resumem apenas ao modo organização e

de produção.A base na equipe de redação e produção também a mesma. Ao professor Abreu

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cabia novamente à reportagem de capa, com informações sobre o Brasil e o mundo; abusando

sempre de sua linguagem rebuscada e de seus vastos conhecimentos nas mais diversas áreas,

bem como do latim e do inglês e do francês.

O jornal retoma ainda as cessões de opinião pública e os concursos de beleza, que

alvoroçavam e mobilizavam os leitores e a sociedade como um todo; mesmo a parcela da

população que não dominava a leitura, se debruçava sobre as notícias semanais, lidas e

transmitidas por outrem.O Professor Abreu volta a assumir suas funções como redator chefe e

responsável pelas reportagens de capa, nos moldes anteriores, com a última página destinada

sempre ás propagandas de produtos e casas comerciais da cidade,bem como de regiões circo

vizinhas.

A proposta de criação do semanário o Ideal e a própria escolha do nome é relatada por

Francino Silveira Déda, em uma de suas crônicas publicadas no mesmo jornal, em 10 de maio

de 1953:

Ainda que não pertença ao “Grêmio Vitória” esta realização, não podemos

negar que a idéia surgiu no seio daquela sociedade.

Por isso, é com justa razão que os fundadores deste hebdomadário

homenageam aquele punhado de moços que sonhou com êste

empreendimento.

Assim, escolhendo êste título d’“O IDEAL” para nosso semanário,

prestamos um tributo de gratidão e de reconhecimento.

Em resumo registramos a breve notícia sôbre a origem do título do nosso

hebdomadário7

O ideal circulou ate meados de 1961, até entrar em declino, por consequência da

expansão de outros veículos de comunicação mais modernos, como o rádio e a TV, que

começam a chegar a uma maior parcela da população. Durante o período de existência, o

jornal foi distribuído também em cidades vizinhas da Bahia e de Sergipe, para os filhos da

terra que residiam em outas cidades e até em outros estados e faziam questão de assinar e

receber os seus exemplares pelo correio, como forma de manter os laços com as suas origens.

Atualmente, os exemplares de colecionadores, que contemplam quase que toda a

trajetória dos semanários o Paladino e o Ideal, e que foram doados para o Centro universitário

UniAGES, em Paripiranga; encontram-se Laboratório de Ensino e Pesquisa da instituição, em

processo de digitalização e catalogação para disponibilização como fonte de pesquisa em

História Local e Regional.

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3 Sininho e suas crônicas históricas sobre Malhada Vermelha e Patrocínio do Coité

A Crônica enquanto gênero literário é considerada híbrida ou fronteiriça, por sua

aproximação e intimidade com a História e o Jornalismo. Esse fenômeno se dá em

determinados aspectos da crônica, que estabelecem links com a realidade social e históricaque

aproxima o texto do fato histórico e do jornal. Assim, o cronista atua não como repórter, mas

sim como ficcionista do cotidianoque intenciona extrair dos acontecimentosreais do cotidiano,

seu olhar poético e com doses de fantasia.

As crônicas de Francino Silveira Déda, publicadas desde 1953, no semanário O Ideal,

possuem como tema base as suas memórias de infância e juventude em malhada Vermelha e

depois Patrocínio do Coité, (primeiras denominações de Paripiranga). Em cada um de seus

textos, Déda revela momentos da História de Paripiranga, e descreve com riqueza de detalhes,

aspectos sociais, culturais, econômicos e políticos que compunham a estrutura organizacional

de Paripiranga, desde a sua fundação em 1846, às primeiras décadas do século XX.

Francino Silveira Déda filho de José Antônio de Carvalho Déda e Olívia Silveira

Déda; nasceu em 03 de junho de 1897; baiano de Patrocínio de Coité, que passou a

Foto 02: Francino Silveira Déda

Fonte: Imagem extraída do Jornal O Ideal e melhorada

digitalmente. Acervo digital do LEPH - UniAGES

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denominar-se Paripiranga, a partir da publicação do Decreto Estadual n° 07.341, de 30 de

março de 1931.Ali passou toda a sua infância e juventude; quando mudou-se com a família

para a vizinha Simão Dias, de onde escrevia os texto publicados no jornal o Ideal.

Além do Ideal, escrevia também para o Jornal A Semana de Simão Dias, de

propriedade de seu irmão mais novo, o afamado jurista, político e também escritor, José de

carvalho Déda. O “Seu Sininho”, como era carinhosamente chamado, era um homem versado

nas letras. Jornalista formado; Déda agregava aos seus textos elementos narrativos e literários

recheados de realidade, humor irônico e ficção. Os elementos fictícios se fazem presentes nos

personagens criados para dialogar com o autor em suas narrativas; como se vê na crônica,

Retrato de Minha Terra, publicada na edição de 05 de julho de 1953 do Ideal; em que Sininho

descreve de forma romanceada, elementos da paisagem e da história da Patrocínio do Coité de

sua infância e juventude, dialogando com uma personagem criada por ele, e que participa

desta e de ouras crônicas como a personificação da memória que insiste em não se apagar:

[...] A gentil amiguinha não quiz saltar e logo apontou o meu logar ao seu

lado; ajeitei os restos dos meus cabelos grisalhos, atirei for o charuto e entrei

no carro aromatizado pela presença daquela flor em embrinhão. Não se pode

imaginar aí um quadro de “amor e Psiqué”, porque ai mais parecia uma

netinha ao lado do vovô; e o carro rodou para o lado o ocidente; em 15

minutos de boa prosa, estávamos a 500 metros acima do nível do mar, no

alto da Praça da Matriz de Paripiranga. Saltamos em frente da Igreja. A

jovem entrou no templo aproximou-se do genuflexório, fez o sinal da Cruz,

disse baixinho uma prece, repetiu o sinal e voltou ao meu encontro dizendo:

- Sim senhor, bem pitoresca a sua cidade! Que bela arborização!?...

- Sim minha amiguinha, estamos na Praça Rui Barbosa; devemos essa

arborização ao ex-prefeito Ismael Trindade; ali está o Fórum, obra antiga d

ex-prefeito Olavo Lima, quisera ter aqui uma rotunda, para contemplarmos o

panorama completo; mas vamos olhar do alto das janelas do templo. O sol já

estava pleno, com seus raios luminosos.

- Veja na direção de leste e do norte; ali está a nossa encantadora Simão

Dias; baixo naquele pontinho branco, está Lagarto; um pouco obliquo ao

norte e dali aonde nossa vista posa alcançar, naqueles altos verdejantes, são

terras que pertenciam o Eng. Coité do meu bisavô o Cap. Joaquim José de

Carvalho; aquelas terras mediam 3 léguas de comprimento e uma de largura,

adquiridas por compra ao Dr. Duarte Marques de Araújo Gois, da cidade de

Salvador e a herdeiros do major José Antônio de Menezes; terras que foram

registradas pelo Padre Caetano Dias da Silva, em 16-2-1857, hoje.[...].8

No texto acima, Déda trata das transformações da paisagem da cidade, desde a sua

fundação até 1953, perpassando por suas memórias adquiridas e vividas ao longo do tempo.

Os elementos de ficção literária presentes no texto; surgem como estratégia e ferramenta de

escrita para a apresentação da realidade histórica que surge por detrás da narrativa.

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Massaud Moisésnos traz a sua compreensão da crônica a partir da definição do termo,

derivado do grego chronikós, que se refere à estreita relação entre tempo e memória.Já

Antônio Candido, identifica a crônica como um gênero menor, por sua proximidade com a

realidade e com o leitor “ala fica perto de nós e ―elabora uma linguagem que fala de perto

ao nosso modo de ser mais natural”9. (CANDIDO, 1992, p.13). Assim, o autor vê a crônica

como “amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais diretas e também nas suas formas

mais fantásticas, - sobretudo porque quase sempre utiliza o humor”10. (CANDIDO, 1992, p.

14).

As visões de Moisés e Candido revelamaspectos essenciais da crônica enquanto

gênero; como o uso de linguagem informal, que ajuda a estabelecer intimidade com o

cotidiano do leitor; onde o dia-a-dia da vida social é abordado e explorado com doses certeiras

de humor e a necessária informalidade, que denota, por vezes, uma poeticidade particular,

revelada no olhar do cronista para o cotidiano.

Embora figure constantemente em livros, a crônica tem no jornal o seu espaço

originário. A híbridade que lhe é característica provoca divergências entre estudiosos no que

concerne à sua definição. Enquanto Antônio Candido a percebe como menor, efêmera.

Massaud Moisés aponta para a existência ambígua irredutível entre jornalismo e literatura,

pois, segundo o autor, a crônica se desenvolve oscilando sempre entre a reportagem e a

Literatura;que se configuram no relato impessoal de um fato trivial, e ou na recriação da

realidade por meio da fantasia. Tais elementos são perceptíveis nas crônicas de Francino

Silveira Déda, no modo como o autor retoma os fatos de sua infância e outras reminiscências,

além dos fatos e dos comentários, que extrapolam muitas vezes a sua vivência, inseridos nessa

narrativa, contribuem para a literalidade.

A subjetividade presente nos discursos do narrador é favorecida tanto pela

fragmentação da memória, que permite que o narrador extrapole os limites da realidade,

como, também, pelo uso da crônica. Sendo uma crônica de memórias voltada não somente

para a concretização de lembranças, mas sim para rememoração carregada de lirismo. Por

esse último aspecto, outra questão é recorrente quando se pretende apontar características que

definam narrativa desse tipo;trata-se da temporalidade.A partir de sua própria terminologia, as

marcas temporais do contribuem para afirmar afirmam sua historicidade, na medida em que

está plantado no real imediato em seu movimento dinâmico, porém, essa fugacidade do tempo

implica na própria efemeridade do texto; que é mais perceptível quando a crônica tem por

suporte o jornal.

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Nessa forma, o coloquialismo presente nos textos de Déda alia-se ao literário,

ultrapassando qualquer simplificação de linguagem e de estilo, permitindo uma interação

entre o leitor e o narrador, além de apresentar elementos culturais da sociedade e da época,

como podemos verificar na crônica intitulada:A preta do Salgadinho;publicada no ideal de 17

de setembro de 1953:

[...] Fui ao alto do novo agrupamento de casas que ladeiam e se confronta

com a nova igreja, lá para os lados do ocidente, acima da fonte “Escondida”

e dei em primeiro plano com a casa que foi do velho Calixto. O sanfoneiro

referido na crônica do dia 26 de julho de 1953, encravada onde depois foi o

sítio do Capitão Jacinto; recordei as casinhas velhas de “sopapo”, uma do

velho jagunço de Antônio Conselheiro, um ferreiro velho albardeiro que

chamávamos de morfa, de “Ferro Podre” e a outra de Lúcia Preta, dois

vizinhos cheios de picuinha que se não estavam aos sopapos, de hora em

hora brigavam entre paredes, e, mais adeante a casinha tipo “Chalet”,

acaçapada á margem do mato, da roufenha Mirena Teles; logares onde fica

hoje várias e confortáveis habitações; mas, continua ainda, em seu primitivo

logar, ainda intacto, o casebre de taipa e telha onde residia a minha boa e

querida madrinha Ana, que nós chamávamos em casa , Ana do

“Salgadinho”, pela circunstância de ter sido ela escrava de meus avós no

Sítio “Salgadinho”; escrava que gosava de tal estima dos senhores que

mesmo livre , nunca deixou a casa do “Salgadinho”; tão estimada pela

família dos “amos” que raro era o membro daquela família que não tivesse

um filho levado a pia de batismal pela preta Ana do “Salgadinho”11.

O estilo do texto cronístico agrega características da escrita jornalística e da literária.

Uma vez que o jornal é o espaço de divulgação da crônica e esse fato define seu tamanho,

considerando que o autor escreve de acordo com o espaço delimitado pelo jornal. Por outro

lado, a crônica apresenta um estilo livre das normas presentes nos textos jornalísticos; e essa

“liberdade” se expressa na escrita em primeira pessoa, e o tom totalmente parcial; fugindo à

regra de adequação normalística e imparcial,presentes no gênero de reportagem jornalística.

4 Considerações finais

A preocupação dos profissionais do jornalismo com a comunicação têmapresentado no

que diz respeito à compreensão do passado e ao resgate da memória, é legítima e bastante

aceitável, a partir do momento em que “um homem não sabe quem ele é se não for capaz de

sair dasdeterminações atuais” (Bosi, 1994, p. 81) e que constitui um ser que precisa de

referênciaspara se contextualizar e agir no mundo.

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O jornalismo de memóriaanalisa as circunstâncias, busca fontes e relata fatos, de modo

a fornecer uma visão dos fatos que ensaia tendências deforma a dar aos seus leitores um

retrato do passado e sua relação com o presente.Tais elemento são perceptíveis nos escritos de

Francino Silveira Déda, ao recriar passagens da História de Paripiranga, revisitando e

registrando suas memórias pessoais e outras que lhe foram repassadas oralmente; fornecendo

elementos para a compreensão dos aspectos históricos e socioculturais de Paripiranga, sem

desconsiderar os aspectos híbridos, líricos e fictícios característicos da Cônica.

O cronista toca o leitor pela simplicidade, pela identificação com cotidiano, pois o nos

apresenta esse lirismo reflexivo a todo o momento, nos textos repletos de poesia, humor e

também de fatos e elementos históricos.O Jornal e a crônica, nesse contexto, tornam-se um

documentos complexos de grande relevância para a pesquisa historiográfica. Pesquisar a

Histórias por meio de documentos simples ou complexos é uma tarefa importante; cabe ao

jornalismo aprofundar-se nesse potencial.

A reunião das crônicas de Francino Silveira Déda e sua organização uma pesquisa de

cunho historiográfico levará a encontrar a história nítida e compreensível ao entendimento,

dos fenômenos históricos que propiciaram as transformações da estrutura social de

Paripiranga no final do século XIX e início do século XX

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Acesso em 02/ 03/ 2016

Notas

1 Graduanda do Curso de História da Universidade Federal de Sergipe. Pós-graduanda em Ensino de Cultura

Afro-Brasileira e Africana Pela FAVENI. [email protected] 2BARRETO, Gustavo. Jornalismo regional.Disponível em

http:/www.temnoticia.com.br/noticias.asp?cod_categoria=1&cod_subcategoria+23&cod_n. Acesso em 02/ 03/

2004. 3 SILVA, Esdras Domingos da. MARTINS, Salvador Lopes. Jornalismo no interior: um desafio diário. 2004,

p.08. 4 DINES, Alberto. O papel do Jornal. São Paulo: Summus Editorial, 1986. MARTÍN. p. 18; 5 Idem. p. 19; 6 ABREU, Francisco de Paula. Nosso aniversário. O Paladino. Anno I. nº. 54. p. 01. 31 de outubro de 1920.

Acervo do LEPH - UniAGES. 7 DÉDA, Francino Silveira. Breve notícia sobre a fundação d’ “O IDEAL”. O Ideal; ano I. Nº 02. p. 01. 10 de

maio de 1953. Paripiranga. Bahia. Acervo do LEPH. UniAGES. 8DÉDA, Francino Silveira. Retrato de minha terra. O IDEAL. Ano I. Nº 10. p. 03. 05 de julho de 1953. Paripiranga. Bahia. Acervo do Laboratório de Ensino e Pesquisa em História da UniAGES. 9CANDIDO, Antônio. A Vida ao rés-do-chão. In: A Crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992. p.13. 10 Idem.p.13. 11DÉDA, Francino Silveira. A Preta do Salgadinho. O IDEAL. Ano I. nº 22, p. 05. 04. 17 de setembro de 1953. Paripiranga. Bahia. Acervo do Laboratório de Ensino e Pesquisa em História da UniAGES.