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O laboratório do romancista: a crónica como "ensaio de romance"
Justamente considerada como "oficina do romance", a crónica
saramaguiana surge-nos como um exercício de aprendizagem,
como um registo paraficcional, anunciadores, em larga medida,
das temáticas, das figuras e do uso da linguagem do romancista.
A crónica, na aceção moderna da palavra, surge, em Portugal,
no séc. XIX, com o Romantismo e com o desenvolvimento da
imprensa periódica. Narrativa curta, ora se assume como o
registo formal de um acontecimento real comentado e ou
recriado pelo cronista, ora se baseia numa figura ou num
acontecimento imaginado pelo autor. No primeiro caso,
aproxima-se do jornalismo; no segundo, da literatura.
Considerando ainda a etimologia da palavra crónica -"cronos"
que, em grego, significa tempo- poderemos ainda considerar
uma terceira modalidade discursiva: a da História. Trata-se,
pois, de um discurso híbrido, fusão de uma realidade objetiva
com uma realidade subjetiva, assente no circunstancial, no
quotidiano, no episódico, numa experiência vivida ou observada.
A crónica é um registo efémero e breve. Porém, pode dizer-se
que, a partir dela, se escreve a "petite histoire" do mundo e do
ser humano, pois o cronista usando uma lupa ora terna, ora
irónica, recompõe, crónica após crónica, o modo de pensar e
sentir uma época. No momento da sua produção e receção, a
crónica cumpre uma tripla função: ensinar, comover e deleitar,
ou seja, exerce uma ação simultaneamente pedagógica,
catártica e lúdica.
Deste mundo e do outro e A bagagem do viajante reúnem
parte das crónicas de José Saramago publicadas,
respetivamente, pela primeira vez, no jornal A Capital em 1968
e 1969 e no semanário Jornal do Fundão entre 1971 e 1972. Ao
todo, são cento e vinte cinco crónicas, cento e vinte cinco
"pretextos, ou testemunhos", um conjunto caracterizado pela
"paraficcionalidade", pois anunciam o romancista Saramago e
subentendem as linhas temáticas, as figuras e o uso da
linguagem aí presentes; registo "paraficcional" ainda porque
manifestam um desejo de transfiguração da realidade e, nesse
sentido, quase podem classificar-se como "pequenos contos" ou
"fábulas".
Através da leitura das crónicas, revela-se a certeza de "que
todas as vidas são extraordinárias, que todas são uma bela e
terrível história". Com efeito, são as figuras anónimas, as suas
pequenas histórias que mais prendem o olhar e a atenção do
cronista numa antecipação dos heróis construídos em romances
como, por exemplo, Levantado do chão, Memorial do convento,
Todos os nomes ou A caverna.
As figuras referidas e, em grande parte, ficcionalizadas, nas
crónicas, sem nome próprio, identificadas por um ofício ou modo
de viver (o sapateiro, o amola-tesouras ou o cego do harmónio)
são, a seu modo, casos humanos selecionados pelo cronista
como amostra de um passado evocado ou de um quotidiano
observado, fugindo à condição de personagens aparentemente
típicas. Este anonimato das personagens/figuras escolhidas
manter-se-á, como é sabido, nalguns romances do autor,
nomeadamente, Manual de pintura e caligrafia, onde as
personagens importantes são identificadas por iniciais (H., M.,
S.) ou Ensaio sobre a cegueira, onde nenhuma personagem tem
nome ou ainda Todos os Nomes, onde só o
protagonista é nomeado.
Voltando às crónicas, o
título Deste mundo e do outro
contém uma dualidade que
condensa, por um lado, um
propósito programático de
relações entre o real e o
imaginado, entre o natural e o
fantástico e traduz, por outro,
uma convergência entre o
mundo do sujeito de escrita e
o mundo de um outro
implícito e, finalmente,
remete para o tempo
presente, para o mundo onde
se vive e um tempo
desdobrado num passado (a infância, os antepassados,
coletivo) e num futuro profeticamente antecipado (os
demonstrativos presentes no título poderão fundamentar esta
nossa leitura). Desta relação do sujeito com o outro (S., os
senhores da Lapa, Adelina, o grupo de amigos, M.) e com o
tempo (passado, presente e futuro), se trata, embora de um
modo mais complexo, no romance Manual de pintura e
caligrafia. Segundo Maria Alzira Seixo, o título A bagagem
do viajante "pressupõe a noção de um 'homo viator'".
Escritas por um sujeito, contador de histórias, as crónicas
constituem, no fundo, uma bagagem preenchida em
andanças reais ou imaginadas, em experiências vividas,
fantasiadas ou observadas nos outros, flagrantes do real dos
outros, nem sempre lisonjeiros, muitas vezes irónicos.
Nos dois volumes de crónicas, esboça-se um percurso que
virá a ser ampliado nos contos e nos romances. A viagem,
explicitada no título de um e tematizada nos dois, é, a nosso
ver, uma aprendizagem e pode e deve ser entendida como
processo real e mental. Nesse sentido, um dos mestres é
Garrett. Não por acaso o título de uma das crónicas de
Saramago é precisamente Viagens na minha terra. O próprio
Saramago, em entrevista a Manuel Gusmão, afirma o
seguinte: "O Garrett para mim é uma referência
fundamental”2. Com efeito, no texto acima referido, a citação
é por demais evidente, inclusive no plano discursivo. Eis um
exemplo: "Neste ponto, descubro que me afastei do propósito
inicial. É costume velho de que não penso emendar-me: no
corredor do pensamento, uma coisa puxa outra, e, se não
ponho mão em mim, acontece como agora, partir da
literatura e cair na construção civil", simulacro de "neste
despropositado e inclassificável livro das minhas viagens, não
é que se quebre, mas enreda-se o fio das histórias e das
observações por tal modo, que, bem o vejo e sinto, só com
muita paciência se pode deslindar e seguir em tão
embaraçada meada." Inclassificáveis são-no também as
crónicas de Saramago, pois o cruzamento de discursos é
plural (o lírico, o dramático, o narrativo-ficcional, o epistolar
e o jornalístico todos estão presentes). Existe, porém, entre
um e outro "cronista", uma diferença assinalável. É que se o
segundo faz a promessa (não cumprida) de se retificar, o
primeiro declara o propósito de se não emendar e, de facto,
esse pendor digressivo acentua-se no romance saramaguiano
e torna-se uma das suas singularidades notáveis.
O eco garrettiano faz-se ainda sentir nas crónicas de
Saramago por outras vias. Ambos os autores empreendem
uma viagem mental pelo universo português, contemplando
as figuras, a situação político-social do seu tempo, a história,
a cultura, as tradições. Nos romances, nomeadamente em
Manual de pintura e caligrafia, essa viagem alarga-se e
estende-se ao domínio universal com as referências às obras
de arte que o narrador comenta, por exemplo, nos "cinco
exercícios de autobiografia", a filmes como "Morte em
Veneza" e "Lawrence da Arábia", a romances como Robinson
Crusoe e Memórias de Adriano ou ainda a passagens do
Evangelho segundo São Lucas. E neste ponto, cabe recordar
que três das crónicas incluídas em A Bagagem do Viajante
("Criado em Pisa", "O jardim de Boboli" e "Terra de Siena
molhada") antecipam o relato da viagem a Itália, os tais
"cinco exercícios de autobiografia" em Manual de pintura e
caligrafia.
2 in "Entrevista com José Saramago", Vértice, 14, maio 1989, pp. 97-98
A reflexão feita pelo cronista Saramago, a partir do
universo português é, à semelhança de Garrett, amarga,
umas vezes, crítica e irónica noutras. A relação de Saramago
com Garrett não se fica por aqui. Recordemos Viagem a
Portugal cujo título evoca ainda Viagens na minha terra de
Garrett.
O cronista, consciente da efemeridade do género escolhido,
anuncia o exercício da crónica como uma antecipação da
ficção romanesca: "essa terra que é minha, que não conheço
toda, que mal conheço, de que tão pouco sei, onde há gente
que fala a minha língua, gente para quem escrevo estas
crónicas, que são como pontes lançadas no espaço vazio à
procura de solo firme onde possam assentar a sua esperança
de duração", "o silêncio de quem reflete, de quem pesa e
mede as suas forças. O silêncio de quem se acha colocado no
arranque de uma estrada e convoca as forças preciosas que a
viagem lhe vai exigir.". Esta passagem poderá confirmar,
quanto a nós, o exercício da crónica como uma
aprendizagem, fase preparatória de outro fôlego narrativo, o
exigido pelo conto e pelo romance. Em Manual de pintura e
caligrafia persiste esse processo de aprendizagem, visível, por
exemplo, na cópia de textos alheios ou na palavra "caligrafia"
presente no título. E mais ainda no modo "incerto",
"oscilante" como a história do protagonista nos é contada.
A crónica é também um modo de (re)conhecer a terra e a
gente a que se refere o cronista e, simultaneamente se auto
(re)conhecer como uma parte desse todo anónimo. No nosso
entender, um dos movimentos mais significativos da ficção
saramaguiana é o que relaciona o singular e o coletivo, o
universal e o particular. Esse movimento ocorre,
recorrentemente, por via da história ou não fosse o cronista
(e também o narrador saramaguiano) um ser "que tem o
vício de pensar historicamente". O interesse histórico
descobre-se em crónicas como, por exemplo, "As memórias
alheias", "Ir e voltar" ou "A nua verdade". Nesta última, o
cronista é ainda um aprendiz e, enquanto tal, empreende a
sua escavação arqueológica, imita nos processos e nos
métodos um outro mestre, Fernão Lopes. Tal como Fernão
Lopes, Saramago procede a um trabalho de consulta e
revisão crítica das fontes. Desse trabalho, porque a crónica é
também um relato da aprendizagem, dá conta em "As
memórias alheias": "metera-se-me na cabeça fazer obra de
historiador, escavar os textos e as memórias dos outros até
encontrar o veio de água livre, a verdadeira puríssima". Se tal
como em Fernão Lopes, é a "arraia-miúda" o herói
privilegiado nos romances de Saramago, o que se sublinha,
por outro lado, é a não existência de uma verdade nua. A
reescrita da história é sempre a emergência de uma outra
verdade como acontece, por exemplo, em Memorial do
convento.
A manifesta vontade de reescrever, ou melhor, de contar de
outro modo está patente no facto de muitas das crónicas se
iniciarem com uma frase negativa (lembre-se a este propósito a
importância de um "não" em História do cerco de Lisboa).
Aprender é também negar ou pelo menos interrogar o que nos
foi imposto. Assim o faz também H., protagonista de Manual de
Pintura e Caligrafia, que, no início do seu processo de
crescimento enquanto
sujeito, começa por
interrogar os preceitos
aprendidos no manual,
questionando
igualmente a sua arte
enquanto pintor de
retratos e acaba por
enfrentar os senhores
da Lapa, recusando-lhes um quadro inacabado, mas testemunho
de aprendizagem e de crescimento, de um homem, de um
pintor de retratos novo.
Em algumas crónicas, a fronteira que separa este género do
conto, a verdade da ficção, apaga-se por completo. Tomemos
como exemplo a crónica intitulada "História do rei que fazia
desertos". O título constitui uma síntese narrativa e
praticamente condensa a situação ficcionalizada. A fórmula
inicial, "Era uma vez", introduz-nos, de imediato no universo do
conto tradicional, num universo ficcional. O dístico que se repete
- "E quem isto ler e não for contar, // Em cinza morta se há de
tornar" -, no final de cada unidade narrativa, remete-nos para
outras formas da literatura popular, embora o seu significado se
alastre com o cunho moralizante pressentido pelo leitor. O conto
constitui-se como uma réplica narrativa de uma fala citada
recorrentemente na produção saramaguiana, a do Velho do
Restelo, mais precisamente do primeiro verso: "Ó glória de
mandar, ó vã cobiça!".
Com este texto, a crónica afirma-se, à semelhança da ficção
romanesca, um lugar de encontro, por um lado, com a cultura
popular e, por outro, com a erudita. Trata-se de um duplo
encontro que se manterá ao longo da produção saramaguiana.
O fantástico e o maravilhoso são outras duas dominantes na
ficção de Saramago presentes nas crónicas do autor. "O
lagarto", "O crime da pistola", "A menina e o baloiço", "Um
encontro na praia" ou "Manuscrito encontrado numa garrafa"
salientam-se no conjunto pela presença do insólito, do
sobrenatural, do inexplicável, do estranho, antecipando, de
algum modo, o teor dos seis contos reunidos em Objeto quase.
Confirmam um propósito ficcional e constituem também, se
pensarmos nas datas de publicação e edição, metáforas de uma
realidade que nem sempre se podia dizer de forma clara e
aberta.
Para finalizar este excurso pelo universo cronístico de
Saramago, referimos quatro crónicas - "A cidade", "Carta para
Josefa, minha avó" e "O meu avô, também" em Deste mundo e
do outro e "Retrato dos antepassados" incluída em A bagagem
do viajante - de cunho autobiográfico, sendo que as três
primeiras foram citadas e retomadas, na conferência proferida
por Saramago, aquando da entrega do prémio Nobel.
3 José Saramago, "De como a personagem foi mestre e o autor apren-diz" in JL, nº 736, 16-29 de Dezembro de 1998, p. 10.
Nessas três crónicas, como
reconhece o autor, "Ao pintar os
meus pais e os meus avós com
tintas de literatura, transformando-
os, de simples pessoas de carne e
osso que haviam sido, em
personagens novamente e de outro
modo construtoras da minha vida,
estava, sem o perceber, a traçar o
caminho por onde as personagens
que viesse a inventar, as outras, as
efetivamente literárias, iriam
fabricar e trazer-me os materiais e
as ferramentas que, finalmente, no
bom e no menos bom, no bastante
e no insuficiente, no ganho e no
perdido, naquilo que é defeito mas
também naquilo que é excesso,
acabariam por fazer de mim a
pessoa em que hoje me reconheço: criador dessas personagens,
mas, ao mesmo tempo, criatura delas."3 Ao sublinhar o estatuto
de personagens das figuras reais que o autor evoca naquelas três
crónicas, Saramago confirma que, relato de 1ª pessoa, a crónica
contém, além do propósito autobiográfico que se evidencia em
alguns dos textos, uma intenção ficcional.
"Carta para Josefa, minha avó" pode constituir um dos
exemplos de conciliação entre esse propósito autobiográfico e a
intenção ficcional. Escrita na 2ª pessoa, a crónica encena, mais
do que uma carta, uma espécie de diálogo dramatizado entre a
figura do cronista e a personagem a quem se dirige. Diálogo
dramatizado porque a função didascálica de algumas passagens
como, por exemplo, "Estou diante de ti e não te entendo.",
"Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face
enrugada e pelos teus cabelos brancos", nos parece evidente.
Figura anónima aos olhos do mundo, a avó Josefa, pessoa real,
condensa em si a história que é sua (individual), mas se adivinha
ser também a de muitas outras mulheres da sua geração
(coletiva).
A crónica inicia-se como se fosse um retrato circunstancial -
"Tens noventa anos.", "És velha"-, mas o adjetivo "dolorida"
quebra o registo "fotográfico" e introduz uma outra perspetiva,
uma espécie de olhar atento ao social, que, à medida que vai
traçando o retrato, denuncia as condições de vida duras e
precárias vividas pela personagem. Assim, além do retrato,
retocado pela emoção, da avó Josefa, lê-se uma história paralela:
a da condição humana, a daqueles que trabalham e são pouco ou
nada recompensados. Afinal, esta velha que tem "as mãos
grossas e deformadas, os pés encortiçados", não sabe ler, possui
um "vocabulário elementar" e passou fome - "Da fome sabes
alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da
igreja". Apresentada como uma heroína, valorizada pela sua ação
quotidiana, pelo seu trabalho - repare-se no tom hiperbólico de
expressões como "Carregaste à cabeça toneladas de restolho e
lenha, albufeiras de água.", "De todo o pão que amassaste se
faria um banquete universal." - ou no registo metafórico de
passagens como "Trave da tua casa, lume da tua lareira" -, e
pela sua condição materna -"sete vezes engravidaste, sete vezes
deste à luz", construção paralelística, devedora da cultura
popular, que sublinha de forma lapidar o valor da figura - a avó
Josefa parece antecipar o herói saramaguiano de romances como
Levantado do chão e Memorial do convento.
De facto, tal como nos romances citados, estabelece-se o
contraste entre a ação épica das personagens e o seu anonimato
e universo reduzido (aspetos antiépicos) - "quinhentas palavras,
um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de
telha-vã e chão de barro." Esta mulher a quem o cronista
reconhece grandeza, figura da sua infância, contadora de
histórias - "contaste-me histórias de aparições e lobisomens" -,
gera igualmente a inquietação e a indignação do sujeito - "Porque
foi então que te roubaram o mundo? Quem to roubou?" - que, ao
interrogar-se, chama a atenção para a injustiça social, da qual a
avó, continua, aparentemente, alheada, guardando apenas um
apego vital à terra que a viu nascer e sofrer - "O
mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de
morrer!".
A crónica que se segue, cuja ligação com a anterior é refor-
çada pela presença da conjunção "também", retrata a figura
do avô materno do autor, nomeado por um vocativo parenté-
tico -"(perdoa a palavra, Jerónimo)". A relação do cronista
com a figura retratada denuncia-se uma vez mais com o uso
do possessivo "meu" ("minha", na crónica anterior), reforça-
do por passagens como "Recordo agora aquela noite morna
de verão, que dormimos, nós dois, debaixo da figueira", cum-
prindo estas crónicas aquela que viria a ser uma das desco-
bertas fundamentais de H., protagonista de Manual de pintu-
ra e caligrafia: "Quem retrata, a si mesmo se retrata". Perso-
nagem relacionada com a infância do cronista - "ouço-o ainda
falar da vida que tivera, da Estrada de Santiago que sobre as
nossas cabeças resplandecia (as coisas que ele sabia do céu e
das estrelas), do gado que conhecia, das histórias e lendas
que eram o seu cabedal da infância remota", o avô é retrata-
do "cinematograficamente" através da memória - "e dos tem-
pos passados vem uma imagem perdida, um homem alto e
magro, velho, agora que se aproxima, por um carreiro alaga-
do.". Trata-se, pois, de uma figura em movimento, animada -
"Mas o homem que assim se aproxima, vago, entre cordas de
chuva que parecem diluir o que na memória não se perdeu, é
meu avô.", que, tal como a avó Josefa, surgirá valorizada
pelo seu trabalho, pela sua vida difícil - "Traz um cajado na
mão, um capote enlameado e antigo, e por ele escorrem to-
das as águas do céu. À frente, caminham animais fatigados"
ou "Vem cansado o velho. Arrasta consigo setenta anos de
vida difícil, de desconforto, de ignorância". Uma vez mais, o
cronista sublinha a injustiça social - "E era um homem. Um
homem igual a muitos desta terra, deste mundo, um homem
sem oportunidades (...). Alguma coisa seria, que não pôde
ser nunca.". O cronista resgata esta personagem do esqueci-
mento, apesar de esta ser "uma imagem comum, sem bele-
za, terrivelmente anónima.", a imagem de um homem e de
bichos que caminham sob a chuva "como quem cumpre um
destino que nada pode modificar." É contra esta espécie de
determinismo social (e também estético) que o cronista e,
mais tarde, o romancista se insurgem. Heróis de crónica,
Josefa e Jerónimo, constituem-se como os antepassados dos
Mau-Tempo, de Baltasar e Blimunda. Bichos da terra, só para
recordar uma referência camoniana recorrente na prosa de
Saramago, ascendem à condição de heróis épicos, porque o
seu trabalho e o seu saber são, afinal, no entender do autor,
do tamanho do mundo.
Na crónica inaugural de A Bagagem do Viajante – “Retrato
de antepassados” -, o cronista retoma as duas figuras retra-
tadas, fazendo-as acompanhar por um bisavô materno de
origem berbere e pelos pais. O retrato, resumido, não se
prende agora com minúcias, excetuando o do bisavô apre-
sentado como uma espécie de herói picaresco. Dos avós re-
corda-se o silêncio e a magreza de Jerónimo, a beleza de
Josefa e um episódio (o do casamento de ambos) que poderia
dar um telefilme. O retrato dos pais segue de perto uma foto-
grafia de ambos e sublinha a solenidade e o acanhamento,
provocados talvez pelo cenário - "Ao fundo, a tela mostra
vagas arquiteturas neoclássicas.". De passagem, o cronista
refere ainda um irmão "morto menino", acontecimento que,
de algum modo, originou, muitos anos depois, o romance
Todos os nomes.
Deixámos para o fim "A cidade". Crónica inaugural do
volume Deste mundo e do outro, o texto surge dominado pelo
signo da dualidade – homem / cidade; exterior (fora) /
interior (dentro) - e pela circularidade - o primeiro e o último
parágrafo iniciam-se com a fórmula "Era uma vez...". Ao
iniciar deste modo o primeiro texto, é como se o cronista
pretendesse sublinhar que existe entre "este mundo" (o real)
e "o outro" (o da crónica) uma fronteira. De facto, quando
lemos "Era uma vez..." o que evocamos de imediato é um
universo relacionado com o maravilhoso e o conto tradicional,
com um "mundo contado". A fórmula cria ainda uma fronteira
entre o real e o ficcional e a crónica rege-se pelo hipotético,
pelo indefinido - repare-se no uso do determinante "um
homem", nas condicionais sucessivas, no advérbio "talvez" ou
em palavras como "inconsistentes", "nevoeiro", "névoa". Só o
espaço a ser conquistado surge definido: "A cidade".
Apresentada como se fosse a história de um homem
marcado pelo exílio - "vivia o homem fora dos muros da
cidade"- a crónica configura-se como uma espécie de
narração alegórica a que não faltam referências homéricas -
"como nos poemas de Homero", simbolizando a conquista da
cidade, afinal, a luta do homem consigo mesmo, o
autoconhecimento - "a cidade era ele próprio". A cidade e o
homem são um só, aparência e essência de um mesmo ser.
Este homem só no final surge nomeado; José é o seu nome
que coincide com o do autor, coincidência esta que nos
permite suspeitar da existência de um propósito
autobiográfico. No entanto, como nas crónicas anteriores, o
registo autobiográfico emparceira com a intenção ficcional e
alegórica. Este homem, esta cidade, os "muros brancos e
altos" funcionam como metáforas. A luta deste homem,
contada no singular, pode extrapolar-se no coletivo - repare-
se no uso de possessivos e formas verbais e pronominais da
1ª pessoa do plural - "fazemos todos nós a nossa casual
existência", "Não conhecemos a força do mar enquanto ele
não se move. Não conhecemos o amor antes do amor".
Pelo que fica dito, cremos que justificámos a ideia de que
as crónicas funcionaram, a seu modo e de uma forma nem
sempre consciente, como uma espécie de ensaio para um
fôlego maior: o exigido pelo conto e ainda mais pelo romance.
Como se as crónicas fossem o laboratório onde o romancista
(por nascer ou por revelar) fosse juntando tubos de ensaio,
testando hipóteses, misturando ingredientes até à solução
final: a de um dizer mais longo, mais trabalhado, que
representasse não só um fragmento de realidade, mas um
mundo. E, parecendo ter encontrado a solução final,
Saramago daí em diante afirmar-se-á sobretudo através do
romance.
IMCC (revisto em maio 2018)