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O ladrão que estudou Espinosa

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Livro de Lawrence Block, colecção Gato preto

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Lawrence Block

O LADRÃO QUEESTUDAVA ESPINOSA

tradução de

Maria Helena Rodrigues de Souza

Cotovia

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Título original: The Burglar who Studied Spinoza

Copyright © Lawrence Block, 1980Publicado mediante acordo com o autor

(Baror International, Inc., Armonk, Nova Iorque, E.U.A.)© Edições Cotovia, Lisboa, 2011

Tradução: Maria Helena Rodrigues de SouzaRevisão e adaptação ao português de Portugal:

Fernanda Mira Barros

ISBN 978-972-795-304-2

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Para a Caryl Carnow

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Lá pelas cinco e meia pousei o livro que estava a ler e come-cei a enxotar os clientes para fora da loja. O livro era de RobertB. Parker e o herói um detective particular chamado Spenser,que compensava a falta de nome próprio com um cuidado exa-gerado com o físico. A cada dois capítulos lá estava ele a fazerjogging por Boston inteira, ou a levantar pesos, ou a fazer a cortea outra maneira qualquer de ter um ataque de coração ou umahérnia. Eu já estava exausto, só de ler sobre as actividades dele.

Os meus fregueses eram facilmente enxotáveis; só um paroupara comprar o livro de poesia que estava a folhear, o resto dis-solveu-se como uma geada muito fina numa manhã ensola-rada. Trouxe para dentro a minha banca de promoções(“Todos os livros a 40 centavos/3 por 1 dólar”), apaguei asluzes, saí, fechei a porta, tranquei-a, corri as grades de ferroque protegem as portas e janelas, tranquei-as, e a Livros Barne-gat estava recolhida, pronta para dormir.

A minha loja estava fechada. Hora de começar a trabalhar.

A loja fica na rua 11 Leste, entre a University Place e aBroadway. Duas portas à esquerda fica a Cães & Companhia.Entrei e fui anunciado pelo tilintar do pequeno carrilhão naporta, e a cabeça da Carolyn Kaiser apareceu por trás da cor-tina dos fundos. — Olá, Bern — disse ela. — Fica à vontade.Saio já, já.

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Instalei-me num sofá com almofadas e comecei a folhearuma publicação comercial chamada “O Criador de AnimaisDomésticos”, que era exactamente o que se esperava quefosse. Pensei que talvez encontrasse ali uma fotografia de umBouvier des Flandres, mas não tive tal sorte. Ainda não tinhadesistido quando a Carolyn apareceu com um cão muitopequenino ao colo, cor de bourbon Old Crow com soda.

— Esse não é um Bouvier des Flandres — comentei.— Não me digas! — respondeu a Carolyn. Largou o ani-

malzinho em cima de uma mesa e começou a afofar-lhe o pêlo.O cão já me parecia bastante fofo sem aquilo. — Este é o Prín-cipe Valente, Bernie. Um Poodle.

— Não sabia que um Poodle podia ser tão pequeno.— Estão a fazê-los cada vez mais pequenos. Este é um

miniatura, mas na verdade é ainda menor do que os miniaturascomuns. Parece que os japoneses estão a entrar neste ramo.Acho que andam a fazer coisas estranhas com transistores.

A Carolyn geralmente não faz piadas sobre gente baixota,com medo de atirar a primeira pedra. Se ela usasse saltos altostalvez chegasse a um metro e cinquenta e cinco, mas não usa.Tem o cabelo castanho-escuro cortado a direito abaixo dasorelhas e com franja, olhos de um tom azul de Delft, e a estru-tura óssea dela segue mais ou menos as linhas de um hidrante,o que não deixa de ser apropriado a quem trabalha no ramo deembelezamento de cães.

— Pobre Príncipe! — disse ela. — Os criadores pegam emanimaizinhos cada vez mais pequeninos e fazem cruzamentosaté conseguirem uma coisa como este aqui. Claro que tambémtentam criar novas cores. O Príncipe Val não é apenas um miniPoodle. É um mini Poodle damasco. Onde é que a dona delese meteu, afinal? Que horas são?

— Um quarto para as seis.— Está quinze minutos atrasada. Mais quinze, e tranco tudo.— E que vais fazer com o Príncipe Valente? Levá-lo para

casa contigo?

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— Brincas? Os gatos haviam de comê-lo ao pequeno--almoço. O Ubi talvez fosse capaz de coexistir com ele, mas oArchie estripava-o só para se manter em forma. Não, se ela nãoaparecer até às seis, o Príncipe vai para o Canil Dannemora.Pode muito bem passar a noite numa jaula.

Esta deveria ter sido a dica para o Val dar um graciosolatido de protesto mas limitou-se a ficar ali parado como umamúmia. Sugeri que a cor dele era menos parecida com umdamasco do que com um bourbon com soda, e a Carolyn res-pondeu: — Céus, nem me lembres isso ou começo já aqui ababar-me como um dos mais bem treinados do Pavlov! —Nesse momento o carrilhão da porta soou e uma mulher decabelo branco meio azulado e andar empertigado entrou parair buscar o bichinho.

Voltei para o “O Criador de Animais Domésticos” enquan-to elas acertavam a conta do Val. Depois, a proprietária doPoodle prendeu-lhe uma das pontas de uma trela cheia de pe-dras de fantasia na coleira. Saíram juntos; mal chegaram à cal-çada, viraram para a direita, provavelmente rumo a StewartHouse, um grande condomínio de apartamentos muito apre-ciado por senhoras de cabelo azulado, com ou sem Poodles da-masco ao lado.

— Poodles! — disse a Carolyn. — Eu nunca teria um cãopor causa dos gatos mas, se não tivesse gatos, também não teriaum cão e, caso tivesse, não seria um Poodle.

— Que há de mal com os Poodles?— Não sei. Na verdade, não há nada de mal com os Pood-

les padrão. Os Poodles pretos, grandes e de pêlo sem tosquiasão simpáticos. Claro que se toda a gente só tivesse Poodlespretos, grandes e de pêlo sem tosquia eu podia pendurar astesouras e fechar a loja, o que, pensando bem, talvez não fossea pior coisa do mundo. Tu eras capaz de viver com um daque-les, Bernie? Com um Poodle miniatura?

— Bem, eu não...

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— Claro que não eras capaz! — disse ela. — Nem tu, nemeu. Há apenas dois tipos de pessoas que viveriam com um cãodaqueles. No caso, exactamente os dois tipos de seres huma-nos que nunca fui capaz de entender.

— Quais?— Homens gays e mulheres hetero. Será que podemos sair

daqui? Tenho a impressão de que me faria bem um brandysour cor de damasco. Uma vez tive uma amante que bebia isso.Sei lá, também posso beber o bourbon com soda que mencio-naste. Mas acho que o que eu quero mesmo é um martini.

O que ela tomou foi uma Perrier com lima.Mas não sem protestar. A maior parte do protesto foi mani-

festada ao ar livre, mas quando, ao virar a esquina, fomos sen-tar-nos à nossa mesa do costume no Bum Rap, a Carolyn estava,se não feliz, pelo menos satisfeita. A empregada perguntou sequeríamos o de sempre e então a Carolyn fez uma careta epediu a àgua gaseificada francesa, o que, até em sonhos, estavamuito longe de ser o que pedia sempre. Também não era o queeu pedia no fim de um dia de trabalho, mas o meu dia de tra-balho ainda não tinha terminado. Também pedi uma Perrier, ea empregada lá se foi, coçando a cabeça.

— Vês, Bern? Comportamento fora do usual. Levanta sus-peitas.

— Eu não me preocuparia com isso. — Não sei por que não posso tomar uma bebida verdadeira.

Aquilo de hoje à noite é para muito mais tarde. Se eu tomasseum copo agora, já me teria livrado do efeito muito antes dahora H.

— Tu conheces as regras.— Regras.— Sem elas, a sociedade ruía. Seria a anarquia. Crime nas

ruas.— Bernie...

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— Claro — continuei — que eu podia fazer tudo sozinhohoje à noite.

— Podias, uma ova!— O serviço não seria muito mais difícil com uma pessoa

em vez de duas. Eu cá me arranjaria.— Primeiro: quem foi que descobriu este serviço?— Foste tu — respondi —, e os teus cinquenta por cento

estão garantidos de qualquer maneira; podias ficar em casaesta noite que ias ganhá-los na mesma. Para quê correr riscossuplementares? E assim podes beber o teu martini. Ou três ouquatro, e...

— Ok, já entendi.— Só pensei...— Eu disse que já entendi, Bern. Parámos de conversar enquanto a empregada serviu as duas

Perrier. Na jukebox, Loretta Lynn e Conway Twitty cantavamem dueto sobre uma mulher do Mississippi e um homem daLouisiana. Talvez fosse o oposto. Não importa.

A Carolyn envolveu o copo com uma das mãos e olhou-me,ameaçadora. — Eu vou! — disse.

— A decisão é tua.— Claro que a decisão é minha, que raio! Somos sócios, lem-

bras-te? Estou metida nisto até ao fim. Ou pensas que só por-que sou um raio de uma mulher tenho de ficar em casa a velarpela manutenção da porcaria do sagrado espírito doméstico?

— Eu nunca disse...— Não preciso de nenhum raio de martini nenhum! — Er-

gueu o copo. — Ao crime, porra! — Bebeu como se fosse gin.Todo o projecto tinha arrancado no Bum Rap, àquela mesma

mesa. Eu e a Carolyn geralmente encontramo-nos para umcopo depois do trabalho, a não ser que um dos dois tenha umcompromisso, e algumas semanas antes tínhamos estado atomar uns copos, nenhum deles com água Perrier.

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— É curioso como as pessoas escolhem os cães — dissera aCarolyn. — Tenho uma cliente... chama-se Wanda Colcannone tem um Bouvier.

— Muito curioso.Fitou-me. — Não estás interessado em ouvir a história, Bern?— Desculpa.— O caso é o seguinte: quando ela entrou com o cão, pen-

sei imediatamente que os dois eram o par perfeito. Ela é umaloura alta e severa, nascida do sonho de um masoquista. Usavestidos de alta-costura. As maçãs do rosto saíram directa-mente da revista “A Sociedade Elegante”. Toneladas de classe,percebes?

— Hum, hum.— E o Bouvier é um cão cheio de classe. Está muito na

moda hoje em dia. A raça só foi reconhecida pelo Clube deCanicultura Americano há uns dois anos. São cães caros erevelam toda a sua classe mesmo que se desconheça quantocustam. Então, aparece-me aquela loura de pernas enormesnum casaco de couro, com um Bouvier negro como azevicheao lado, e pareciam feitos um para o outro.

— E daí?— Ela escolheu o bicho por causa do nome.— Qual era o nome dele?— Dele, não; dela. O bicho é uma cadela.— Isso também está muito na moda. Ser cadela.— Ah, isso nunca sai de moda! Não, na verdade o nome do

animal é Astrid, só que esse é o nome que a Wanda lhe pôs.Mas foi por causa do nome da raça que ela escolheu a cadela.

— Porquê?— Porque o nome de solteira da Wanda é Flanders.— O nome de solteira da Jackie Kennedy era Bouvier —

comentei. — Não sei que tipo de cão a Jackie tinha, e acho quetambém não me interessa. Perdi o fio da meada algures. O queé que Flanders tem a ver com Bouvier?

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— Ah, pensei que soubesses. O Bouvier é originário da Bél-gica. O nome completo da raça é Bouvier des Flandres.

— Ah!— Foi por isso que ela se interessou pela raça e acabou por

comprar um filhote há uns anos, o que foi a escolha perfeita.Ela é louca pela Astrid e a cadela é inteiramente fiel à dona.Além de ser um animal de classe, a Astrid é muito inteligente eum grande cão de guarda.

— Fico muito feliz pelas duas.— E deves ficar. Há já um ano que trato da Astrid. A dona

leva-a lá à loja para o banho rotineiro e, de dois em dois meses,para aparar o pêlo; depois, além disso, a Astrid recebe um tra-tamento completo antes das exposições. Os donos não a exi-bem muito mas de vez em quando ela desfila numa exposiçãoe já recebeu um monte de fitas, inclusive uma ou duas azuis.

— Que bom para ela.— Para a Wanda e para o Herb também. A Wanda adora

passear com a Astrid. Sente-se segura nas ruas quando estácom ela. E tanto ela como o marido ficam muito tranquilos porterem um cão daqueles a guardar-lhes a casa. Não se preocu-pam com ladrões.

— É compreensível.— Se é! A Astrid é o seguro deles contra roubo. Deve entrar

em cio dentro de semanas e desta vez vão cruzá-la. A Wandaestá preocupada, com medo de que a experiência da materni-dade lhe retire algumas das qualidades de cão de guarda, masdecidiu ir em frente mesmo assim. O reprodutor escolhido éum famoso campeão. Vive no campo, no condado de Berks, naPennsylvania. Ali para os lados de Reading, acho. Enviam-lhecadelas do país todo para se cruzarem com ele e ele é pagopara isso. Quer dizer, o dono dele é pago para isso.

— Mesmo assim, é uma óptima vida para um cão. — Não é? Mas a Wanda não vai enviar a Astrid. Vai, com o

marido, levá-la pessoalmente. Quando se quer cruzar dois ani-mais, deve-se deixá-los juntos dois dias seguidos para se ter a

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certeza de que o período máximo de ovulação é bem aprovei-tado. Por isso, vão de carro com a Astrid até ao condado deBerks, ficam lá uma noite e, ao fim do segundo dia do cruza-mento, voltam para casa.

— Vai ser uma viagem agradável para os três.— Especialmente se o tempo estiver bom.— Isso é sempre importante — respondi. — Mas o que eu

sei é que há um motivo para tu me estares a contar tudo isto.— Raciocínio rápido, não? Eles vão passar a noite fora e a

Astrid também, e ela é a protecção deles contra ladrões. Sãosuficientemente ricos para comprar vestidos de estilistas e cãesde raça pura, no auge da moda. E para o marido se dar ao luxode manter o seu pequeno hobby.

— Que pequeno hobby?— Coleccionar moedas.— Ah! — murmurei, e fiz uma careta. — Disseste-me o

nome dele. Não é Flanders, esse era o nome dela de solteira,como a cadela. Colcannon. Mas não me disseste o primeironome dele. Espera aí. Disseste, sim. Ele chama-se Herb.

— Tens uma excelente memória para detalhes, Bern. — Herb Colcannon. Herbert Colcannon. Herbert Franklin

Colcannon. Ele é o Herbert Colcannon?— Quantos é que tu achas que há?— Andou a comprar ouro certificado num leilão da Bowers

and Ruddy no Outono passado, e há uns meses comprou qual-quer coisa numa venda especial da Stack’s. Não me recordo oquê. Li sobre o assunto no “Mundo da Moeda”. Mas apostoque guarda tudo no banco.

— Têm um cofre de parede. Mantens a aposta?— Com menos certeza. Como é que sabes que têm?— Ela mencionou isso um dia. Que uma noite queria usar

uma jóia e não pôde porque o cofre estava fechado e ela não selembrava do segredo e o marido estava a viajar. Eu quase lhedisse que tinha um amigo que poderia tê-la ajudado, mas depoisachei melhor ela não saber nada a teu respeito.

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— Sábia decisão. Talvez ele não guarde tudo no banco. Tal-vez algumas das moedas dele façam companhia às jóias dela nocofre. — A minha mente começava a disparar. Onde mora-vam? Como era a segurança da casa? Como poderia eu anulá--la? Que poderia eu trazer de lá, e quem iria ter a bondade deme ajudar a trocar tudo muito rapidamente por dinheiro vivoe de origem desconhecida?

— Moram em Chelsea — prosseguiu a Carolyn. — Bastanteafastados da rua, numa casa com entrada circular para carros.Não estão na lista telefónica, mas eu tenho o endereço. E onúmero do telefone também.

— Boas coisas para se ter.— Hum, hum. E têm a casa inteirinha só para eles. Não têm

filhos. Nem empregados internos. — Interessante.— Também achei. Pensei logo que isto soava a um trabalhi-

nho para a Dupla Dinâmica. — Bem pensado — respondi. — Vou pagar-te um copo só

por essas palavras.— Já estava mais que na hora.

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Uma invasão de domicílio é muito menos suspeita sob oolhar generoso e morno do sol. Vizinhos bisbilhoteiros, quetelefonariam para a polícia se nos vissem depois do anoitecer,limitam-se a imaginar que, finalmente, aparecemos para arran-jar aquela torneira que pinga. Dêem-me uma prancheta ouuma caixa de ferramentas e uma hora entre o meio-dia e asquatro da tarde, e o mais implacável e anti-crime cidadão dasredondezas abrir-me-á a porta desejando-me um bom dia. Se

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tudo correr bem, a melhor altura para assaltar uma residênciaé o meio da tarde.

Mas quando é que tudo corre bem? O manto da escuridãoé um traje muito confortável para o ladrão, se é que não o étambém para o dono da casa; e, quando se gere um negóciolegítimo, hesita-se em fechá-lo abruptamente a meio do diapor um motivo que não é nada de especial. Também o planoColcannon favorecia uma visita nocturna. Sabíamos que elesestariam ausentes por uma noite e sabíamos que a casa estarialivre de empregadas e serventes logo que o sol se pusesse nalinha do horizonte.

O sol já tinha cruzado essa linha e desaparecido algures emNova Jersey quando iniciámos a empreitada. Saímos do BumRap, apanhámos várias carruagens de Metro e andámos umquarteirão até ao meu prédio, na 71 com a West End, onde tro-quei os jeans e a camisola que usara na loja por umas calças deflanela, gravata e casaco. Enchi os bolsos com uma miscelâneade coisas úteis, guardei outros itens na minha pasta de camurçae perdi um instante a recortar, com uma tesoura de unhas, aspalmas de um par novinho de luvas de borracha. Com luvas deborracha não se deixam impressões digitais denunciadoras e,com as palmas livres da borracha, não nos sentimos como senos tivessemos esquecido das mãos numa sauna. Mãos suadasjá são mal que chegue no capítulo namoro; é melhor tentarevitá-las na altura de roubar. Claro que há sempre a possibili-dade de se deixar uma impressão palmar identificável, mas umassalto não seria um assalto sem o risco ocasional, seria?

Estávamos quase a sair quando me lembrei de mudar desapatos. Na loja, eu estava com os meus mocassins de pelica,tanto por nostalgia como por conforto; mudei para um par deténis Puma, próprios para correr, daqueles com um aspectomuito eficiente. Devo dizer que não tinha intenção de andarnum ritmo mais acelerado que o de uma passada larga, masnunca se sabe o que a vida nos reserva, e os Puma, com aque-las solas de borracha e palmilhas flexíveis, permitem que eu

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me mova tão silenciosamente quanto, digamos, uma pantera;pelo menos é o que eu imagino.

A Carolyn vive em Arbor Court, uma daquelas ruazinhasoblíquas do West Village que devem ter sido planeadas poralguém sob o efeito de algo mais forte que uma garrafa de Per-rier. Até mais ou menos uns dois meses atrás ela vivia, ouquase, com uma mulher chamada Randy Messinger, mas noinício de Fevereiro tinham tido a última de uma série de bata-lhas notáveis e a Randy levou tudo o que era dela de volta parao seu próprio apartamento, na rua Morton. Agora estávamosem Maio, fins de Maio, e a cada entardecer o sol já levava maistempo a cruzar a linha do horizonte mas a ruptura entre elasnão mostrava sinais de sarar. De vez em quando, a Carolynconhecia alguém fantástico no Paula’s ou no Duchess, masamor verdadeiro ainda não tinha desabrochado, o que nãoparecia incomodá-la.

A Carolyn fez café fresco, preparou uma salada e aqueceuumas fatias da quiche que sobrara de outro dia. Ambos come-mos pouco e tomámos muito café. Os gatos lamberam os seuspróprios pratos e roçaram-se pelos nossos tornozelos até rece-berem o que sobrara da quiche, que rapidamente engoliram.Ubi, o Azul Russo, sentou-se ao meu colo e começou a ronro-nar muito alto. Archie, o seu comparsa birmanês, passeou-sepomposamente pela sala, alongando-se de vez em quando paraexibir os músculos.

Lá pelas oito, o telefone tocou. A Carolyn atendeu e acomo-dou-se para uma longa conversa de mexericos. Peguei numlivro e comecei a folheá-lo, mas não estava realmente a registaras palavras. Estivesse eu a ler a lista telefónica e daria nomesmo.

Quando a Carolyn desligou, peguei mesmo na lista telefó-nica para a ler, pelo menos durante o tempo suficiente paraprocurar um número, e Abel Crowe atendeu a meio do quartotoque. — Bernie — identifiquei-me. — Descobri um livro deque talvez goste. Vai estar em casa hoje à noite?

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— Não tenho planos.— Pensei em passar aí lá pelas onze, meia-noite.— Óptimo. Deito-me tarde ultimamente. — Pelo telefone

conseguia-se perceber o sotaque da Europa Central. Cara acara, quase não se notava. — Aquela sua amiga encantadoravem consigo?

— Provavelmente. — Vou abastecer-me adequadamente. Fique bem, Bernard.Desliguei. A Carolyn estava sentada na cama com uma perna

encolhida, cortando obedientemente as palmas do seu par deluvas de borracha. — O Abel está à nossa espera — informei.

— Ele sabe que eu também vou?— Perguntou especificamente por ti. Disse-lhe que prova-

velmente também irias.— Por quê esse provavelmente? Eu adoro o Abel.Levantou-se da cama, enfiou as luvas num bolso de trás.

Tinha uns jeans escovados cinza-grafite e um top de veludoverde, e acabava agora mesmo de vestir por cima o blazer azul--marinho. Ficou muito bonita e eu disse-lhe isso.

Ela agradeceu, depois virou-se para os gatos. — Fiquem poraqui, rapazes! — disse-lhes. — Se alguém telefonar, é só ano-tar os nomes. Digam que eu devolvo a chamada.

O Herbert e a Wanda Colcannon moravam na 18 Oeste,entre a Nona e a Décima Avenida. Até há muito pouco tempo,esta era uma excelente área para ser visitada por alguém queestivesse com vontade de ser assaltado mas entretanto, nalgummomento indeterminado, Chelsea tornara-se um bairro cobi-çado. As pessoas começaram a comprar velhas brownstones e aajeitá-las, transformando as casas que antes alugavam quartosem prédios de apartamentos de um só piso e os antigos edifí-cios de apartamentos em residências unifamiliares. Ladeavamas ruas plátanos, carvalhos e nogueiras-do-japão recém-planta-das, e aquilo estava a ficar de tal modo que ninguém consegui-ria ver os assaltantes com tanta árvore.

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O número 442 da 18 Oeste era uma atraente brownstone dequatro andares, com um tecto em mansarda e uma janelasaliente no andar térreo. O 444, logo à esquerda, era igual-zinho, diferenciando-se apenas por pequenos detalhes arqui-tectónicos e pelo par de lanternas de bronze de um e outrolado da entrada. Mas entre as duas casas havia uma passagemcom um arco e um pesado portão de ferro e, acima do portão,o número 442 1/2. Ao lado do número estava um sino e abaixodo sino uma placa de acrílico azul com o nome Colcannon gra-vado.

Antes, eu tinha ligado para a casa dos Colcannon de umtelefone público na Nona Avenida. Um atendedor electrónicoconvidara-me a deixar nome e telefone, convite que recusei.Agora, toquei à campainha da porta; toquei uma vez, longa-mente e com toda a força, e esperei um bom minuto por umaresposta. A Carolyn estava a meu lado com as mãos enfiadasnos bolsos e os ombros encurvados, apoiando o peso do corpoora numa perna, ora na outra.

Eu imaginava como ela se sentia. Esta era apenas a sua ter-ceira vez. Fora comigo uma vez ao Forest Hill Gardens, umenclave chique nas profundezas do Queens, e, mais recente-mente, a um apartamento nas imediações da rua 70 Leste. Eujá era macaco velho neste tipo de coisa, cresci fazendo-meentrar nas casas dos outros mas, mesmo assim, a emoção, mistode ansiedade e nervosismo, não me abandonara. Palpita-meque nunca me abandonará.

Mudei a pasta para a mão esquerda e, com a direita, tireiuma argola com chaves. O portão de ferro era o cabo dos tra-balhos. Podia ser aberto electronicamente por alguém queapertasse um botão lá de dentro da entrada para automóveis,ou então cederia a uma chave. E tinha o tipo de fechaduraantiga que aceita uma chave mestra; só existem alguns mode-los dessas chaves, eu tinha uma argola cheia. Viera dar umaolhadela à fechadura uns dias antes e, na altura, parecera-mefácil, e fácil era: a terceira chave que tentei quase funcionou, a

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quarta girou na fechadura como se tivesse vindo a este mundoprecisamente para aquilo.

Limpei as minhas impressões digitais da fechadura e daplaca de metal que a envolvia e empurrei o portão com oombro. A Carolyn seguiu-me pela passagem coberta e fechouo portão quando passou. Estávamos num túnel longo e estreito,todo coberto por tijolos e com um ar meio húmido; mas haviauma luz ao fundo e dirigimo-nos para ela como duas maripo-sas. Fomos dar a um jardim aninhado entre a brownstone emfrente e a casa com entrada escondida dos Colcannon. A luzque nos atraíra mostrava bem o jardim, com canteiros de floresmargeando um pátio central lajeado. Narcisos tardios e tulipasprematuras davam um lindo espectáculo e imagino que quandoas rosas desabrochassem aquele lugar ficaria extraordinaria-mente bonito.

Havia um banco semicircular perto do que parecia ser umlaguinho para peixes, alimentado por uma pequena fonte. Pen-sei como é que os donos da casa conseguiam criar peixes alisem que fossem devorados pelos gatos das redondezas, e teriagostado de passar alguns minutos sentado naquele banco, aolhar para o lago em busca dos peixinhos, enquanto escutavao murmurejar tranquilo da fonte. Mas o cenário era ligeira-mente desprotegido para este tipo de comportamento.

Além disso, o tempo corria. Já eram vinte para as dez. Euverificara a hora antes de destrancar o portão. Num certo sen-tido, tínhamos a noite inteira, mas quanto menos demorásse-mos melhor eu me sentiria, e quanto mais depressa saíssemosdali mais depressa estaríamos a caminho da casa de Abel Crowe.

— Iluminada como uma árvore de Natal — disse a Carolyn. Olhei. Não tinha prestado muita atenção à casa, interessado

como estava nas flores e nos peixes e, se a casa não se pareciacom uma árvore de Natal, também não se parecia nada com atípica casa vazia. Tinha três andares e imagino que antigamentehouvesse cavalos no piso térreo e criados na água-furtada,antes de alguém a ter transformado numa casa inteiramente

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dedicada à morada de seres humanos. Agora o que havia eraluzes acesas em todos os andares. Luzes que não eram a únicaorigem da iluminação do jardim — havia também uma lan-terna eléctrica montada num poste a poucos passos da fonte —,mas que eram certamente responsáveis pela maior parte da luzque nos encaminhara pelo túnel.

Em geral, as pessoas deixam uma luz ou duas para o ladrão,aquele corajoso farolzinho que brilha sem parar às quatro damanhã, anunciando ao mundo que não está ninguém em casa.Algumas pessoas aprimoram esta ideia colocando uns tempo-rizadorezinhos que acendem e apagam as luzes. Mas a mimpareceu-me que a Wanda e o Herbert tinham ido longe demais.Talvez tivessem reagido excessivamente perante a ideia dedeixar a casa sem a protecção da nobre Astrid. Talvez o Her-bert tivesse uma tonelada de lâmpadas em stock e a Wanda setivesse excedido e comprado uma montanha daquelas espe-ciais que duram cinco anos e que os cegos nos vendem pelotelefone.

Talvez eles estivessem em casa.Subi para o alpendre e encostei o ouvido à porta. Havia ruí-

dos lá dentro, rádio ou televisão, mas nada que se parecessecom uma conversa ao vivo. Toquei à campainha e escutei aten-tamente mas não houve nenhuma modificação naqueles ruídosdentro da casa. Pousei a minha pasta e calcei as luvas de bor-racha, enquanto a Carolyn calçava as dela. Fiz em silêncio umaoração pedindo para que a casa não estivesse armada com umdaqueles alarmes contra ladrão que eu desconhecesse, e endere-cei essa prece a São Dimas, que é o santo padroeiro dos ladrõese que hoje em dia anda com certeza a ouvir muitas preces.

Que não haja um alarme contra ladrões, implorei ao bomDimas. Que o cão esteja realmente na Pennsylvania. Que lá den-tro só exista o sonho mais acalentado dos ladrões e, se assimfor, em troca eu vou... eu vou, o quê?

Peguei na minha argola de gazuas e sondas e comecei a tra-balhar.

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