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SCRUTON, Roger. Espinosa

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Vida e obra de Espinosa.

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Copyright1998 by RogerScruton Ttulo original em ingls:Spinoza,publicado em1998 pela Phoenix, umadiviso da Orion Publishing GroupLtd. Copyright1999 da traduobrasileira: Fundao Editora da UNESP(FEU) Praa da S,108 01001-900-SoPaul o-SP Tel.:(Oxxll)232-7171 Fax:(Oxxll)232-7172 Home page:www.editora.unesp.br E-mail:[email protected] Dados Internacionaisde Catalogaona Publicao(CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Scruton,Roger Espinosa /Roger Scruton; traduo deAnglika Elisabeth Knke. -So Paulo: Editora UNESP, 2000. -(Coleo Grandes Filsofos) Ttulo original:Spinoza. Bibliografia. ISBN85-7139-316-8 1.tica2.Espinosa, Benedictus de, 1632-16773.Espinosa, Benedictusde,1632-1677-CrticaeinterpretaoLTtulo.IL Srie. 00-2917CDD-199.492 ndices para catlogosistemtico: 1.Filosofia holandesa199.492 2.Filsofos holandeses: Biografia e obra199.492 Editora afiliada: S U L E S DI g l l Asociacin dcf-^ditorialesUniversitriasAssociao Brasileirade de Amrica LaUna yel CaribeEditorasUniversitrias V I D AEO B R A BaruchdeEspinosa(1632-1677)nasceu,viveuemorreu naHolanda,ondesuafamlia,queera judiae procedentede Portugal,havia se refugiado da I nquisio.Educado na f ju-daica,acabousendoexcomungadoporcausadasopinies herticasqueadquiriucomoestudodaobradeDescartes (1596-1649),ofundadordafilosofiamoderna,que,apesar de ser francs, tambm passou a maior parte de sua vida cria-tivanaHolanda.GraasaDescartes,aoscartesianoseli-berdadeintelectualque prevaleceuna RepblicaHolandesa nosanosqueseseguirambem-sucedi darevoltacontraa Espanha,a Hol anda do sculo XVII foi, durante algumaspre-ciosasdcadas,umcentrodevidaintelectualeaprimeira sede doI luminismo. Aliberdadedepensamentoseperdemaisfacilmentedo que se ganha e, coma ascenso do calvinismo,o regimetole-rante da Repblica chegouaofim.Em1670,Espinosapubli-cou oTratadoteolgico-poltico semcolocaro seunome,masa obralogoficouconhecidacornosua.Essapublicaodefen-diaumgovernosecular,asoberaniadaleiealiberdadede opinio,eerafartamenteilustradacomexemplosbblicos quenoescondiama hostilidadedo autoremrelaoaogo-vernodossacerdotesefariseus.OTratadofoi banidoeseu autor,exiladode Amsterdporumbrevetempo. Comoreaoaesseconfrontocomasautoridades,Espi-nosa passoua viver retirado,entre cristos dissidentes.Con-ti nuouinteressadoempoltica,fazendo vriasarriscadasin-cursespela vida pblica.Comeoutambma trabalharem umsegundo tratado poltico, que no chegoua concluir.No publicou mais nada, porm sua obra-prima. tica, a qual,antes de sua morte,circuloudurantealguns anosentrevidoses-tudantes,foi publicadapostumamente,sendoprontamente banida. Espinosa levou uma vida casta e estudiosa, tendorecusado a oferta de umprofessorado emHeidelberge desenvolvidoo seupensamentoemcorrespondnciascomoutrosescritores cientficosefilosficos.Seusinteresseseramdiversificados, abrangendopoltica,direito,estudosbblicose pintura,bem como matemtica e cincias fsicas. Realizou experimentosde ptica, tendo o polimento das lentes para essesexperimentos talvez contribudo para enfraquecer a sua sade,levando-oa morrer cedo, pormem paz. Era estimado por todos que o co-nheciame amado por muitos.Escreveu,numacarta: No que est em mi m, valorizo, acima de todas as coisas fora do meucontrole,o amigvelapertode mosentrehomensamantes da verdade. Acredito qu, dentre as coisas que esto fora donosso controle, nada no mundo traga mai s paz do que a possibilidadede umrel aci onamentoafetuoso comtaishomens. impossvelque o amor que temospor eles possa ser perturbado... da mesmafor-ma como impossvel que a verdade, uma vez percebida, possano seraceita. Essa visodaamizade,aliada buscadaverdade,irradia em todos os escritos de Espinosa. Ele acreditava que a amiza-dee a buscada verdadecontribuemparaa nossametamais elevada:o amor intellectmllisDei,o amorintelectualdeDeus. AfilosofiadeEspinosafoi umatentativadereconciliaressa perspectiva,profundamentereligiosa,coma visocientfica dohomem. ATI CA Espinosa escreveu em latim, adotando termos medievais e cartesianos,forjando o seu prprio estilo,esparso e desador-nado,mas,ao mesmotempo,solene e impositivo.Os aforis-mos ocasionais saltam da pgina com grande fora, vistoque emergemdeargumentosapresentadoscomexatidomate-mtica.S temosespaoaquiparaanalisara maiorobrade Espinosa,tica,cujo contedodetalrelevnciaintrnseca que,passadostrssculosdesuapublicao,ospensadores tmtaiita razo paraconheceras suasprincipaisconcepes quantoas que viviam no tempodoautor. A tica se divide em cinco partes, cada uma configurada ao modo da geometria de Euclides, iniciando com as definies e os axiomas e deduzindo os teoremas, por demonstraesabs-tratas.Osaxiomassopresumi doscomoauto-evidentes [self-evident]eosteoremas,comodeduesvlidas.Assim, todaa filosofia noserias meramenteverdadeira,masne-cessariamente verdadeira -como necessariamente verdadeira amatemtica.Aimprobabilidadedissonodevenosdeter. Mesmo que as demonstraesno sejam firmes e osaxiomas sejam obscuros, h um grande tesouro intelectual a ser tirado deles, e - julgado como umtodo e da perspectivade seupro-grama subjacente -a filosofia de Espinosa est mais perto da verdadequequalqueroutraquetenhaconsideradoasmes-masquestesdedifcilaprofundamento.So perguntasto importantes para ns quanto o eram para Espinosa. A diferena que ns raramenteestamosconscientes delas. So elas: 1Porqueascoisasexi stem? 2Comosecompeomundo? 3Oquesomosnsnoesquemadascoisas? 4Somoslivres? 5Comodevemosviver? Nossaincapacidadeatualpararespondera essaspergun-tasexplicanossarelutnciaemenfrent-las,oque,porsua vez, explica nossa profunda desorientao.A chamada"con-diops-moderna"toemvoga,naverdade,acondio das pessoas que se rendems suas ansiedadesfundamentais, achando mais fcil disfar-las. Elas nosabem mais porque e como ter esperana. No h terapeuta melhor para essa con-dioqueEspinosa,nemmaiordefensordavidaespiritual para aqueles que perderamo desejo de voltar at-la. As cinco perguntas que listei sofilosficas;no podemser respondidas pela observao e por experimentos,massomen-te por meio do raciocnio. Os cosmologistas discutem sobre as "origens do Universo"; alguns defendem a teoria do BigBang, outros, a da lenta condensao. Mas ambas as teoriasdeixami semrespostaumaquestocrucial.Mesmosechegamos conclusode queoUniverso partiudo nada,numdadomo-mento,humaoutracoisaqueprecisaserexplicada:quais eram as "condies iniciais" que ento prevaleciam? Notem-po zero, alguma coisa podia ser dita do Universo,ou seja,que este grande evento estava para existir e gerar efeitos deacordo com leis que nesse instante inicial j ti nhamlugar. E qual a explicao para isso? Essa uma verso da primeira pergunta listada.Nenhuma teoriacientfica capazderespond-la.Ora,seela notem resposta,entonadatem,realmente,umaexplicao.Pode-mosdescrevercomofunciona oUniverso,masnoporque ele est a. De fato, a existncia de umuniversoquefunciona, umuniversoque admi teexplicaescientficas, ummist-rioaindamaiorqueaexistnciadeumcaosaesmo.Que mosouolhosimortaispuderamarmaressaassustadorasi-metria?Ou isso simplesmenteaconteceu? Nesse caso, comoe por que issoaconteceu? Espinosa viveu numtempoemque a cincia modernaco-meava a emergir do cenrio das especulaes teolgicas.Foi um pensador cientfico consumado,que antecipou muitos as-pectos da modernafsicae cosmologia. Mas ele noadmitiria uma ciso entre cincia e filosofia. Para ele, como para Descar-tes, a fsica tem por base a metafsica, e um cientista queigno-raasquestesfundamentai snosaberealmenteoqueest fazendo.Essasquestesftindamentaisnopodemserres-pondidaspor meio de experimentos. a razo, e no a expe-rincia,quepodenosguiarparaarealidadesuprema.Por pensarassim, Espinosa considerado umfilsoforacionalis-ta(e noempirista,isto,quefundamenta todooconheci-mento na experincia).E por isso ele adotouo "mtodogeo-mtrico",poisa razonoconheceoutromtodo.Todasas verdadesdarazoousoauto-evi dentesousoderivadas deverdadesauto-evi dentes,pormei odecadeiasdeargu-mentosdeduti vos. A adoo do mtodogeomtricofaz que afilosofiadeEs-pinosa,primeiravista,pareaintoleravelmenteaustera.E comum que osfilsofospartam de enigmas restritos e depois avancem,gradativamente,atchegaraumquadroabstrato da realidade. Descartes, a princpio, perguntoua si mesmose existia alguma coisa da qual no pudesse duvidar,e foi cons-trui ndo uma teoria metafsica que finalmente resolveriatodas as suas dvidas. Espinosa tem como ponto inicial o que para os outrospensadoreseraopontofnal,ouseja,osaxiomasde umateoriaabstrata.Eleentodesce pordegrausrealidade humanaeaosproblemasquesuateoriaseproperesolver. Chegara isso j por si uma grande conquista;consegui-lo maneiradeEspinosa,quefornece soluesparaasquestes perenes,no est longedeser ummilagre. DE US Aprimeirapartedaticadedica-sesduasprimeirasde nossas perguntas: Por que as coisas existem? e Como se com-peomundo?Espinosa,comomui tosdeseusprecursores, estava convencido de que o Universo no poderia ter umaex-plicao,a noserquehouvessealgoquefosse acausa de si mesmo,ouseja,cuja naturezafossesimplesmenteexistir.A explicao de uma tal coisa deve ser encontrada nelamesma: ela obrigatoriamentetem que existir, caso contrrio, ela estaria violando a sua prpria definio. Tal coisa que existenecessa-riamentee porsua naturezaintrnsecachama-setradicional-mente Deus, e a primeira parte da tica tem justamente o ttulo "De Deus". Aqui esto as definies, um pouco resumidas,com as quais ela comea: Dl :Por sua causa entendoaqui l o cuj a essnci aenvolve aexi stn-cia,ouaqui l ocuj a naturezanopodeserconcebi dasenocomo exi stente. D2:Umacoisadiz-sefinitaemseuprpri ogneroquandopode ser l i mi tadaporumaoutradamesmanatureza.' D3: Por substnci aentendoo que emsi mesmoe o que conce-bi do porsi mesmo,i sto, aqui l ocuj o concei tonorequerocon-ceitodeumaoutracoisa,daqualtenhaqueserformado. D4:Poratri butoeuentendooqueoi ntel ectopercebedeuma substnci a,comoconsti tui ndoasuaessnci a. D5:Pormodoeuentendoasmodi fi caes(affectiones)deuma substnci a,ou aqui l oque emoutrae pormei odaqualeletam-bmconcebi do. D6:PorDeuseuentendoumserabsol utamenteinfinito,isto, umasubstnci aconsi sti ndode umainfinidade de atributos,cada umdosquai sexpressandoumaessncia eternae infinita. D7:chamadalivreumacoisaqueexisteto-somentepelane-cessidadedesuanaturezae determi nadaa agirsomenteporsi mesma. Mas chamada de necessria, ou mesmo de coagida,uma coisa que determi nada por outraa existir e a produzi rumefeito de manei racertaedetermi nada. D8:Poreterni dadeeuentendoa existnciaemsi,namedi daem queela concebidacomoresul tandonecessari amentedadefini-o decoisaeterna. Sorarasasgrandesobrasdefilosofia queseiniciamde maneira to proibitiva. Boa parte da viso de mundo de Espi-nosa jseencontrasugeridanessasoitodefinies,e a difi-culdade da tica, em grande parte, consiste em conseguirdeci-fr-las. A Definio1 tirada de Moiss Maimnidas,umpensa-dor judeu do sculo XII que foi um dos que mais influenciaram afilosofiamedieval. Conforme j disse, para Espinosaparecia que s poderia haver uma resposta para o enigma daexistn-cia se existisse umser cuja natureza verdadeira existir,um ser cuja existnciaseria auto-explicativa.Tal ente precisaser autoproduzido[self-produced], ou seja, ser "causa de si mesmo". Da a definio. Do mesmo repertrio de idias teolgicas vem a distino de Espinosa entrefinitoe infinito. Coisas finitas, ele acredita, tmlimites,seja noespao,notempoounopensamento.E umacoisacomlimiteslimitadaporalgumaoutracoisa: semprese pode conceberumacoisa maiorou maisduradou-ra. Nemtudo pode ser comparado com(e, portanto,limitado por)outras coisas. Um grande elefante no maior oumenor que umgrande pensamento. Em geral, coisasfsicas(corpos) so limitadas por coisas fi'sicas, e coisas mentais(idias),por coisas mentais. Da a expresso "finita em seu prprio gnero", na Definio 2. II ADefinio3introduzoconceitobsicodafilosofiade Espinosa,doqualdependemosseusargumentosmetafi'si-cos. "Substncia"era umtermofilosficocorrentenosculo XVII, mascada pensadorutilizava-o sua majieira. Deacordo com Espmosa, a realidade se divide entre as coisas quedepen-demdeoutrascoisas,ousoexplicadasporestas,eaquelas que nao dependem de nada seno de si mesmas. Assim, a crian-a provm de seus pais, que, por sua vez, provm de seuspais que, por sua vez... A cadeia da reproduo humana umaca-deiadecoisasdependentes.Nososubstncias,umavez que, para formarmos umconceito verdadeiro de suanatureza (uma explicaosobre o quee por queelas so), nsprecisa-mos conceb-las relativamentes suas causas."Substncia" otermoqueEspinosareserva paraas coisasnasquaistodoo resto est inerente ou das quais depende. Substnciasso con-cebidas no por suas causas, mas por si mesmas. Seres que so "menores",! que so dependentes,so "modos" dassubstn-cias.NaDefinio5,elechamaessascoisas"menores"de "affectiones".termolatinoquesignifica, grosso modo,"osmo-dos pelosquai sassubstnci assoafetadas",comoumpe-daodemadei raafetadoaoserpi ntadodevermel hoou como uma cadeira afetada ao ser quebrada.(Se umacadei-ra fosse umasubstncia,entoo fato deestarquebradaseria ummodo da cadeira. Mas j podemos ver que, pordefinio, nada to singelo e contingente como uma cadeira poderiaser umasubstncia.) A Definio 4 controversa. Aqui se encontra, grosso modo, o que Espmosa tinha em mente. Quando compreendemosou explicamosumasubstncia, porqueconhecemosasuana-turezaessencial.Maspodehavermaisdeumamaneirade "perceber"essanaturezaessencial.I magineduaspessoas umocuhstaeumcrticodearte,ol handoparaumquadro pi ntado sobre uma tela. Voc pede para que descrevam o que 1Aspas minhasno termo"menores".(N. T.) 12 esto vendo.O oculista organiza o quadro em dois eixos e o descreve como segue: "Em x=4 e y =5,2, existe umaman-cha amarelo-cromo; ela segue ao longo do eixo horizontalat X = 5,1,quandomudapara azul-da-prssia".O crticodir: " um homem de casaco amarelo, com uma expresso depri-midaeolhosdeaoazuis".Vocpodeimaginarqueessas descries sejam completas, to completas que permitiriam a umaterceirapessoareconstruiroquadrousando-ascomo umconjuntodeinstrues.Noentanto,asduasdescries no tm absolutamentenada em comum. Uma sobrecores dispostasemumamatriz,aoutrasobreacenaquevemos nela. Voc no pode passar de uma narrativa para outra e con-tinuarsendo compreensvel: o homem no est paradoperto de uma mancha azul-da-prssia, mas perto da sombra deum carvalho. O azul-da-prssia no est situado prximo de uma mangadecasaco,maspertodeumamanchadeamarelo-cromo. Em outras palavras, as duas descries no podem ser comparadas,soincomparveis:ofragmentodeumano podeaparecernomeiodaoutrasemquedissoresulteum contra-senso.No entanto,nenhumadas descries deixade mencionarumacaractersticaqueesteja na outra.Isso se-melhantequiloqueEspinosatinhaemmentecomoseu conceitode atributo:umadescriocompletadeumasubs-tncia que no exclua outras descries,que sejam incompa-rveis, de uma e da mesmacoisa. ADefinio6deEspinosaintroduzo"Deusdosfilso-fos", o Deus familiar de inmerasobras da teologia antiga e medieval, que se distingue de todas as coisas "menores"pela completudee plenitude de seu ser. Ele contm"uma infini-dadedeatributos";emoutraspalavras,delepodeserdada uma quantidade infinita de descries, cada qualtransmitin-do uma essncia infinita e eterna. A idia do eterno explica-da na definio final, em que, numa firase adicional,Espinosa faz uma distino entre a eternidade e a durao. Nada do que seja concebido no tempo pode ser eterno -no melhor dos ca-sos ele persiste sem limites. A verdadeira eternidade a eter-13 nidadedosobjetosmatemticos,comoosnmeros,edas "verdades eternas"que os descrevem,Ser eterno estarfora do tempo.Nessaacepo,todasas verdadesnecessriasso eternas,comoosoasverdadesdamatemtica.Quandoa existnciadealgumacoisademonstradaporargumentos deduzidos desua definio, ento o resultado umaverdade eterna.Deus eternoexatamentenessesentido. A Definio 7 nosdiz quecoisasdependentesedetermi-nadas noso livresna acepo prpria da palavra.Somente coisasautodependentes[self-dependent], isto,coisasquees-to de acordo coma Definio1 podemserverdadeiramente livres. Tendo nos dado essas definies, Espinosa passa aosaxio-mas,quesosupostamenteaspremissasauto-evidentesde suafilosofia.Soeles: Al :Tudoo que, ou emsi,ou emoutro. A2:Oquenopodeserconcebidoporoutracoisatemqueser concebido porsimesmo. A3: De umadada causa determi nadasegue-senecessari amenteo efeito; e, i nversamente,se no houverumacausa determi nada, impossvelseguir-seumefeito. A4:Oconheci mentodeumefeito dependedoconheci mentoda causaeenvolve-o. A5: Coisas que no tm nada em comumentre si tambm nopo-dem ser entendi das umas pelas outras,isto , a concepo deuma noenvolvea concepodaoutra. A6: Uma idia verdadeira tem que estar de acordo com o seu objeto. A7: Se uma coisa pode ser concebida como no existente,a sua es-sncianoenvolveexistncia. Os axiomas so s um pouco menos proibitivos que as de-finies.Espinosati nhaconscinciadisso,eaconselhouos seusleitoresaacompanharoraciocniodealgumasdasde-monstraes,para que o significado e a verdade dosaxiomas 14 fossemgradualmenteentendidosporeles.Noocasode negar a auto-evidncia dos axiomas,mas mostrar a dificulda-deparaatingira perspectivacombasenaqualsurgeaauto-evidncia. I sso vlido tambm para a geometria e a teoria do conjunto, emque os axiomasmui tas vezesso menosclaros que osteoremas. De qualquer forma, os primeiros dois axiomasnecessitam deelucidao.ParaEspinosa,"B estemA" omesmoque dizerqueAaexplicaodeB. Nessecaso,B temqueser consideradotambmcomo"concebidopor" A, o que signifi-caquenenhumadescrioadequadadanaturezadeB pode deixar de mencionar A(da o Axioma 4). De fato, os dois pri-meirosaxiomasdividemo mundoemdois gnerosdecoisa. Oprimeirosoas coisasquesodependentesdeoutras(as suas causas)e que precisamser concebidas por meio desuas causas.Osegundoso ascoisasquesoautodependentese soconcebidasporsimesmas.Conformedeveserbvio, combasenasdefinies,essaadistinoentremodose substncias. Para entendercompletamenteos axiomas, precisamossa-beroqueEspinosadeseja provar.Aprimeirapartedatica consiste de 36 Proposiese suas demonstraes,bemcomo de extensas passagens de comentrio. Elas constituem a argu-mentao para a viso de Espinosa de que existe uma e somen-teumasubstncia,e queestanicasubstnciaDeus,por-tanto,infinito e eterno. Tudoo mais existeem Deus,isto , ummododeDeuse,comotal,dependenteDele.Ade-monstraodestanotvelafirmaosegueummodel ofa-miliardesdea filosofia medieval:o model odo"argumento ontol gi co"daexistnciadeDeus,comoKantochamaria mai starde.Uma vez queDeus definido comoumsercom infinitos atributos,entonadaexistequepoderialimitarou tirara suaexistncia -emtodosos aspectos,ele semlimi-tes. A no-existncia umacarncia,umalimitao,elano pode ser predicado de Deus. Portanto, a essncia de Deus en-volve existncia; ele , pela Definio 1, "causa de si mesmo". 15 No entanto,conforme argumentaEspinosa,seentendermos corretamenteesseargumentotradicionaldaexistnciade Deus,temosque verqueisto nos provaqueDeusexiste, mastambmqueEleabarcatodasascoisas,ouseja,nada pode existir ou ser concebido fora Del. Se existe alguma coisa quenosejaDeus,elaouemDeusedependenteDele,e, nesse caso, ela no umasubstncia,massimplesmenteum modo de Deus, ou ento(Axioma 1) ela fora de Deus.Nesse casoexistealgumacoisaqueDeusnoseja,algumaspecto em que Ele limitado e, portanto,finito (Definio 2), oque impossvel(Definio 6). Dessa forma, existe no mundoso-menteumasubstncia,e essasubstnciaDeus. Todas as coisas finitas seguem-se umas s outras, emuma cadeia infinita de causa e efeito, e cada uma determinadaa ser o que pela causa que a produziu. Como coloca Espinosa: Proposio29: Nanaturezanohnadaconti ngente,mastodas as coisas foram determi nadas,a partir da necessi dade danatureza divina,a existire a produzi rumefeito de umacertamanei ra. Essa substncia nica ao mesmo tempo Deus e Natureza, podendoserconsideradanoscriadorlivre,mastambm autocriador{Naturanaturans)easomadesuacriao-a somadascoisasquesoem Deusequesoconcebidaspor meiodele{Naturanaturata).Nosentido metafsico,somente Deus livre(ver Definio 7).Dasesegue: Proposio32: Avontadenopodeserchamadadecausalivre, massomentede causanecessria. Disso tudo,segue-seque Proposi o33: Ascoisasnopoderi amtersidoproduzi daspor Deusdeoutramanei ra,e emoutraordem,daqueforamprodu-zidas. 16 Deus,a substnciainfinita que abarca todasas coisas, o nicoserlivrenosentidodefinido naParte1 datica,uma vez que somente ele determinacompletamentea suaprpria natureza.Todasasoutrascoisasestoligadasnacadeiada causao,cujo l ti mofundamento Deus. fcil entenderpor queEspinosafoi consideradoumhe-rtico to perigoso. Ele se props provar a existncia e a gran-deza deDeus.Mas nasletrasmidasele nosdizqueDeus idntico Natureza, e que nada no mundo livre. Para o cren-te perplexo,queanseiaporumafilosofiaqueele possacon-traporcinciamoderna,issoumatraio.Ainexorvel mqui nada natureza tudoo que existe,e nssomosescra-vosdela.E o fato dea naturezaser"causadesi mesma",ou seja, o fato de que ela existe pornecessidadee no poderiaser deoutraforma, somenteaumentaodesastre. 17 A T R I B U T O SDEDE US Espinosa teria rejeitado tal interpretaodesuafilosofia. Ela deixa de considerar uma de suas afirmaes maisimpor-tantes e originais, qual seja, que Deus tem uma infinidade de atributos, dos quais somente um estudado pela cincia fsica. Doisdessesatributosnossocompletamentefamiliares:o pensamentoeaextenso.Otermo"extenso",usadonas cincias poca de Espinosa, refere-se ao espao e seus conte-dos; em outras palavras, ao mundo fsico. A extenso um atri-butodeDeus,tendoemvistaqueumateoriacompletado mundofsico(das coisasextensas) umateoriade tudoo queexiste.Atesseponto,acinciamodernaconcordaria com Espinosa. Mas, enquantoa fi'sica, quando completa, a verdade sobre o Todo, ela no a verdade toda. PorqueDeus pode ser concebido de outras maneiras. Por exemplo, ele pode serentendidosoboatributodopensamento.Issosignifica queDeusessencialmenteumacoisapensante,damesma forma como ele essencialmente uma coisa extensa. E ao es-tudarmosanaturezadopensamento,investigamosDeus como ele emsi mesmo,avanando em direo a umacom-pleta teoria do mundo, justamentecomo quandoestudamos a natureza daextenso. Umaoutramaneiradeexpressaresseponto dizerque tudo o que existe,todoe qualquermododa substnciadivi-na,podeser concebidode duasmaneirasincomparveis,ou seja, comofsicasou mentais. Em relao a mim, tenhouma noo do que isso significa, poissei que tenhoumamentee umcorpo; a primeira,composta de idias(sendo "idia"um termogeralparatodasasentidadesmentais),asegunda, composta de partculasno espao. A sugestode Espinosa 18 que a relao entre mentee corpo que percebo em mi mmes-mo reduplicada por toda a natureza, isto , tudo o que fsico temo seu correlatomental. Mas o que a relao entre mente^e corpo? Esseproblema vinhaatormentandoosfilsofosdesdetemposremotose chegouao auge na poca de Espinosa,por influncia deDes-cartes.Navisodessefilsofo,souumasubstnciamental distintadomeucorpo,conectadaaelede maneirasomente contingente.Emcontrapartida,a Parte 2 daca,"DaNatu-reza e da Origem da Alma",^descreve a relao entre corpo e alma como umarelao deidentidade: Parte2,Proposio21,esclio:Amenteeocorposoumaea mesmacoisa, a qual concebida ora sob o atributo dopensamento ora sob o atributodaextenso. Espinosapensaquesuateoriadosatributospermite-lhe afirmar isso, pois implica no s que a substncia nicapode ser conhecida de duas maneiras, mas que essas mesmasduas maneiras de conhecimentotambmse aplicam aos modos. A menteummodofmi todasubstnciainfinita,concebida comopensamento.Ocorpo ummodofmi to dasubstncia infinita,concebidacomoextenso.E umaoutramaneirade fdizerisso(Parte2, Proposio13) afirmar que a mente a I"idia" do corpo, ou seja, que os dois modos so de fato uma e Imesmarealidade,concebida deduas maneirasdiferentes. IEssa uma afirmao impressionante e tem mui tasconse-;qncias surpreendentes.Para Espinosa,todo e qualquerob-jjeto no mundofsicotemo seucorrelato mental,comoqual ele idntico,da mesmamaneiraquea mentee o corposo 2Nooriginal,"therelationbetween mindandbody".Tradicionalmente, usa-seobinmio"corpoe alma".Emtodaa traduo,mantiveos termoscomoos usao autor,ouseja,mind comomente,soul como alma.(N. T.) 3Cf. Coleo"Os Pensadores",1997,traduode J oaquimFerreira Gomes.(N. T.) idnticos em mi m. A idia de todas as coisas fsicas jexiste; nonecessariamenteemalgumamentehumana,masna mente de Deus, que abarca o todo da realidade sob oatributo do pensamento. Alm disso, no h nenhuma interaoentre a mentee o corpo,apesar de sua identidade,pois ainterao implicacausae efeito, e, nopensamentodeEspinosa,Aa causa de B somente se B tiver que ser concebido por meio de A. Mas nada originado sob um atributo pode ser explicadocomo (ou seja, concebido por meio de) algo originado sob umoutro atributo. O mundo pode ser umas substncia, mas no exis-te nenhuma nica teoria de sua natureza, e, em particular,no h nenhumamaneira de reduzir o mentalaofsico. Essa teoria parece menosestranhase esquecermosonos-so prprio caso e olharmos para a mente dos outros.I magine queeuveja J ohnacenandofreneticamentedooutroladode umcampo.Perguntoa Helen,que est ao meulado,porque J ohnestacenando.Ela responde,"osimpulsoseltricosde seucrebroestoativandoosneurniosmotoresdobrao, produzindo espasmos musculares de umtiportmico".Muito bem,isso verdade.Masno essarespostaqueeuqueria. Volto-mepara J imerepitoapergunta.J imresponde:"Ele esttentandonosalertarsobreumperigoqualquer-talvez um touro". A resposta mais pertinente, mas no mais ver-dadeira que aoutra. Nesseexemplo,tantoHelencomo J imderamexplicaes verdadeirassobreoqueobservamos.Masumaseenquadra nombitofsico,a outranombitoment^.Umamenciona processos dentro do corpo, a outra cita concepes namente. Poderamosdizerqueumadascausasfsicasdaaode J ohneaoutra,assuasrazes mentais.Eeumerefiromais prontamentesegundaexplicao,poiselamecausauma percepodoque J ohnestquerendo dizer-emoutraspala-vras, do seu estado mental,que tem uma conexo diretacom as mi nhas prprias intenes. Helen poderia ser a melhorneu-rofisiologista do mundo e dar uma explicao bem maiscom-pletadoacenode J ohndoquequalquerinsinuaodeJ im. 20 Masprovavelmenteestaramosmortosantesdeterminara explicao. Almdisso,asduasexplicaesnosocomparveisen-tresi. Voc no podesomarfragmentos dadescriodeHe-len a fragmentos daquelade J ime obterumadescriocom-pleta, ou mesmo qualquer outra, do comportamento de J ohn. Voc temqueescolherumaououtrarotade explicaopara aquilo que voc est vendo. E isso o que Espinosa queria di-zeraoafirmar que"ocorponopodedeterminara mentea pensar,nema mentepode determinaro corpo apermanecer em movi mento ou em repouso"(tica, Parte 3, Proposio 2). E quantoquelesmodosfinitos -rochase pedraservo-res,mesasecadeiras,laudase xcarasdecafcoisasque normal menteconsideramosinanimadas?Espinosadiriaque elas noso nemumpouco inanimadas,e quese eu asvisse como Deus as v, eu estaria to ciente quanto ele de seus cor-relatos mentais,da mesma maneira como estou ciente da mi-nha prpria mente e suas idias. I sso no to absurdoquan-topossasoar.Considereoseguinteexemplo.Quandoouo msica, ouo umaseqncia de sons, que se distinguempela sua agudeza, pelo seu timbre e pela durao, que soeventos no mundo fsico. Umfsico pode dar umadescriocompleta dessessonscomovibraesdoaredizerexatamenteoque eles so em relao a "movimento e repouso"(para usar a ter-minologiadeEspinosa)dascoisas noespao.E isso oque ouoquandoescutoamsica.Maseutambmouoesses sonsde umaoutramaneira,umamaneiraque nocaptada peladescriofsica. Ouo umamelodia,quecomea napri-meira nota,cresce porumadimensoinvisvele diminuino-vamente.Uma nota responde outra nota nessa melodia,as-simcomoumpensamentorespondea outro pensamentona conscincia.Ummovi mentomusicalcontinuapeloespao musical,pormei odaseqncia,emboranenhumsomse mova no espao descrito pelo fsico. Umcrtico,aodescrever amsica,estdescrevendoosmesmosobjetosqueo fsico quedescreveossons;noentanto,eleestinterpretando-os 21 no mbito mental, vendo a inteno que anima a Unha musical e leva a melodia at sua concluso lgica. A msica no ese-paradadossons. Mais propriamente,ela ossons,oquese L endepelas concepes que usamos quando descrevemosa vida mentaldas pessoas. E porisso, incidentemente,a musi-ca to importante para ns: ela fornece umrepentinoinsight na alma do mundo. Esses raros vislumbres da alma das coisas torna-noscapazdeentenderoqueseria veromundocomo Deusov,econhec-lonosomentecomoextenso,mas tambmcomopensamento. 22 C O N HE C I ME N T OEE R R O Para entender o que Espinosa est tentando dizer,precisa-mos voltar para a sua teoria do conhecimento.Ela estconti-da naParte2 datica, Definio 4,quetemoseguinteteor: Poridiaadequadaentendoumaidia que,enquantoconsi-deradaemsimesma,semrelaocomumobj eto,temtodasas propri edadesoumarcasi ntr nsecasdeumaidiaverdadei ra. E ele acrescenta, guisa deexplicao: Di go i ntr nsecaspara que eu possa excluir aqui l o que extr n-seco,i sto,a concordnci adaidiacomoseuobj eto. Essa marca extrnseca da verdade havia sido usada no Axio-ma 6, Parte 1, como definio da verdade. Cada idia,entendi-dacorretamente,estemcorrespondnciaexatacomoseu objeto, uma vez que cada idia nada mais que umaconcep-o do seu objeto sob o atributo do pensamento.Conseqen-temente: Parte 2, Proposi o33: Noexi ste nada de posi ti vo nas idiasque permi tacham-l asdefalsas. Nentanto,nemsemprealcanamosa relao entreuma idia e oseuobjeto. Naperceposensvel,e emoutrasfor-masde"imaginao",asnossasidiasseguem-seumass outras de acordo como ritmo do corpo,e no de acordocom sua lgica intrnseca,pois "a mentehumana no percebene-nhumcorpoexternocomoexistenteemato,anoserpor 23 meio de idias de modificao de seu corpo"(Parte 2, Propo-sio 26). Espinosa d umexemplo: Parte2,Proposio35,esclio:...quandool hamosparaoSol, i magi namosqueeleestejaaumadistnciadeapenasduzentos psdens.Esteerronoconsistesomenteemtalimaginao, mas no fato de que, enquantoi magi namosisso,i gnoramosacau-sa dessaimaginao... nsnoi magi namosoSolcomoestando perto porque i gnoramos a verdadeira distncia, mas porque a mo-dificao do nosso corpo envolve a essncia do Sol, na medi daem queo nossocorpo afetado porele. A minhaimagemdo Sol o correlato mental(a idia)de um objeto fsico. Mas este objeto no o Sol; ele umamodi-ficaodomeucorpo-umprocessocerebral,talvez.Ao transferir a imagem ao Sol, eu caio em erro. E isso umpara-digma da falsidade, que consiste "numa privao do conheci-mento, resultando de idias inadequadas ou mutiladas e con-ftisas"(Parte 2, Proposio35). Podemosobterconhecimentonosomentepormeiode idiasadequadas,isto,idiasquegarantemasuaprpria verdade. A procura por tais idias a meta comum dosfilso-fos racionalistas; e a falha comum deles que no explicamo que poderia ser uma marca "intrnseca" da verdade. A defini-odeEspinosameramentesubstituiumtermomisterioso ("adequado")porumoutro("intrnseco"),esomenteno curso de sua argumentao que podemos ter alguma compre-enso do que ele querdizer. Espinosa, porm,tem umexemplo: a matemtica. A pro-posio de que duas linhas retas num plano se encontramno mximo somente uma vez um axioma da geometria euclidia-na, e parece ser auto-evidente. Sua verdade visvel, to logo ele compreendido.E quandoestamosexplicandoumade-monstraomatemtica,vamosde proposioaproposio, procedendo por passos que podem ser reconhecidos como v-lidosporqualquerpessoaqueoscompreenda.Emuma,*-monstrao assim, no s apreendemos a verdade das proposi-24 es envolvidas, mas tambma sua necessidade. E o resultado umparadigmado conhecimento"adequado". Espinosa argumentaque Deus, por conter o todo da reali-dade,somentetemidiasadequadas,poisemDeusnoh "privao" de conhecimento. Ns, no entanto, no somosto afortunados. Precisamosnos esforar para aperfeioar onos-so pensar,demodoa substituiras nossas percepesinade-quadas e confusas(que, de acordo com Espinosa,se devem "imaginao ou opinio")por noes mais adequadas da rea-lidade. Voltando ao nosso exemplo: o Sol no pode ser conhe-cido adequadamente pelas modificaes em nosso corpo,mas somentepela cincia,a qual procura fornecer umaidiaade-quadado Sol. Essegnerode cincia,que opera coma refle-xo racional com base nos primeiros princpios, envolve idias adequadase"noescomuns".Umanoocomum aidia dealgumapropriedadequecomumatodasascoisas,e "aquelas coisas que so comunsa todas as coisas e queesto igualmente numa parte e no todo somente podemserconce-bidasadequadamente"(Parte2,Proposio38).Essasno-es so comuns tambm em outro sentido, qual seja, que to-dosnsaspossumos,umavezquetodosnsparticipamos da natureza comumque elas expressam.Por exemplo,temos umaidia adequadade extenso, j queextenso,quesees-tende por todas as coisas, tambmse estende por ns. E por isso que podemos reconhecer os axiomas da geometriacomo auto-evidentes. Espinosaadmite,ainda,umoutronvel deconhecimento superior,aoqualelechamade"intuio"{scientiaintuitiva) (Parte 2, Proposio 40, esclio^2). A intuio acompreen-soimediatadaverdade,quesedquandoapreendemosa proposio e a sua demonstrao em um nico ato de ateno mental.Conformeeleexplica,somentetemosumaintuio quando raciocinamos tomando por base "uma idia adequada 4No texto de Scruton consta "note".(N. T.) 25 da essncia formal de Deus"; em outras palavras, quandons vemos uma relao exata entre uma coisa e a substncia divi-na da qual eladepende. Para Espinosa, portanto,existem trs gneros deentendi-mento: a imaginao ou opinio; a cincia racional queopera por meio de noes comuns e idias adequadas;e a intuio. O entendimento do primeiro gnero " a nica causa de falsi-dade", ao passo que "o entendimento do segundo e do tercei-ro gneros necessariamenteverdadeiro"(Parte2,Proposi-o 41). Do nosso ponto de vista, portanto, a verdade de uma idia dada em seu encadeamento lgico no sistema de idias adequadas,e no meramentena sua correspondnciaextrn-secaaoseuobjeto.Oavanodoconhecimentoconsistena constantesubstituiode nossas percepesconfusas eina-dequadas por idias adequadas, at que, no limite, tudo o que pensarmosprovirdeumaidiaadequadadaessnciade Deus. 26 AN A T U R E Z AH U M A N A Na perspectiva puramentemetafsica da Parte1, a tica de Espinosa parece deixar pouco espao para o ser humanocomo parte distinta da criao de Deus. Seja como menteseja como corpo, no sou mais do que um modo fmi to da substnciadi-vina.Ento,emqueconsistea mi nhaindividualidade? Apenasnumsentidoproblemtico quese podefalar de Deuscomodeumindivduo,como"umousingular",pois umindivduo algo limitado e fmito. Que lugar teria na filo-sofia de Espinosa algo assim, ou a distino que fazemos nor-mal menteentre umindivduoe suaspropriedades? Considere a vermelhido desse livro minha firente. Na teo-ria de Espinosa, isso um modo de Deus. Ento por que deve-ramos atribuir a vermelhido aolivro e no a Deus, e porque nsrelutamosem ver o livro como umapropriedade deDeus, da mesmamaneiraquea vermelhido umapropriedadedo livro? Certamenteporque ns vemos o livro como umindiv-duoindependente,enosimplesmentecomoumestado transitriodasubstnciadivina qualele inerente. Existeumsentidonoqualosmodosfinitos,navisode Espinosa,podemserautodependentes,damesmamaneira queDeus autodependente.Considereumbonecodeneve. Ele se derrete, se fragmenta, refeito e modificado, e no ofe-recenenhumaresistncia.Nohnenhumarazorealpela qualnsdeveramosconsiderartalcoisaumindivduoem seuprpriodireito,emvezdeumamontoadodeneve,que por sua vez nada mais que uma massa slida de gua.Como contraste, existem modosfinitosresistentes a danos, fraturas ou fuso. Em alguns casos, eles se restauram quando feridos eseprotegemquandoameaados.Elesseesforam,como 27 coloca Espinosa,em persistiremseu prprioser. Esse esfor-o(conatus) o princpio causai em relao ao qual nsexpli-camosa persistnciae as propriedadesdo objeto queopos-sui.Quantomaisconatustemumacoisa,tantomaisela autodependente,tanto maisela "em"simesma. Osorganismossoexemplosbviosdisso.Considereos animais: ao contrrio das pedras, eles evitam ferimentos,pro-tegem-sequandoele[conatus] est ameaadoe curam-sea si mesmosquandoele ferido -a noser que o ferimento seja to srio que destrua inteiramente o seuconatus. Por essemo-tivo,nsatribumosaosanimaisumaautodependncia [self-dependence]e umaindividualidadeque raramenteconfe-rimos a coisas inanimadas.I sso confirmado pela nossama-neiradedescrev-las.Umapedraumpedao depedra,um lago umapoa de gua,umboneco de neve um amontoado de neve. Mas,at que esteja morto,umgato umgatoindi-viduale noumpedaodegato,e,quandomorto,jno maisgatocoisanenhuma,massimumpedaodecarnede gato.Aindividualidadeeaautodependnci adeumgato, comoasdeumhomem,so partedesuanatureza,edividir umgato em dois criar no duas metadesde gato,masdois pedaosinteirosdeoutracoisa.Ogatoesfora-se paraper-sistir como uma coisa, e existe somente enquanto esse esforo "garantido",conforme o termo de Espinosa. Pela Definio 2, da Parte 2, portanto, o conatus de uma coisa tambm a sua essncia: Parte 2, Definio 2: Pertence essncia de uma coisa aquiloque, quandogarantido,necessari amenteenvolve a existncia dacoisa, e que,quandoremovido,necessari amenteenvolvea remooda coisa;ouque,semaquelacoisa... nopodenemexistirnemser concebido. Oesforo do corpo tambmumesforo da mente.Con-cebido no mbito mental, esse esforo o que queremosdizer por vontade.s vezes,referimo-nostantoao corpo quanto 28 mente ao descrever o conatus de uma criatura, e ento falamos de"apetite";s vezes-especialmentequandodescrevemos pessoas -queremosenfatizar o el ementoda conscinciaque leva as pessoas no somente a ter apetites, mas tambma es-tarcientedeles:usamosentootermo"desejo"(cupiditas) (Parte 3, Proposio 9). Em todos os casos, no entanto,esta-mos nos referindo mesma realidade: aoconatus, que faz que umorganismo esteja separado de seu entorno, numaautode-pendnciapersistentee ativa. Hverdadenessavisodenossacondio,poisseolha-mosparao mundocomosolhosdesapaixonadosdacincia, descobrimosnelemui topoucosindivduosgenunos.Sobo impactoda teoria cientfica, as coisas fragmentam-se nama-triadaqualelassocompostas,que,porsuavez,sefrag-mentaemmolculase tomos,e finalmente emenergiadis-tribudanoespaoenotempo-o"movimentoerepouso" que forma a base da fsica de Espinosa. Somenteorganismos parecem introduzir,em nosso mundo,algumas formas de in-dividualidadesduradouras e resistentes;e, dentre osorganis-mos,somenteaquelescomumavidaconscientee comauto-compreenso[self-mderstanding]parecemcomportar-sede maneirasimilar a Deus. A tais coisas atribumos nomespr-prios,umaidentidadequeatravessaostemposeumaexis-tnciaautodependente.Equantomaioroseuconatus,mais elas parecemsimilaresa Deus,umavez quea atividadepela qualelasse esforam empersistiremseuser pressiona-sa entendera suacondio e a tomarconta dela. Essa anossa natureza,e esse o nosso lugar no esquemadascoisas. Estamosnatural mentepropensosanosenganar,pois"a mentehumana,todasas vezes queela percebeumacoisana ordemcomumda natureza,notemumconhecimentoade-quado nem de si mesma, nem do seu corpo, nem dos corpos ex-teriores,massomenteumconhecimentoconfuso emutilado" (Parte2,Proposio29).Edessaspercepesconfusasderi-vam mui tas das nossas crenas ordinrias,incluindo a crena na vontadelivre. Da sesegue: 29 Parte 2, Proposio 35, esclio: Os homensenganam-se quandose consideram livres, e esta opinio depende somente do seguinte:de que eles so conscientes de suas aes e i gnorantes das causaspe-las quais elas so determi nadas.Esta, portanto, a sua idia de li-berdade:queeles noconhecemascausasdesuasaes.Porque quandoeles di zemqueas aes humanasdependemdavontade, essassopalavrasdasquai selesnotmnenhumaidia,jque nenhumdelessabeoquevontadeecomoelamoveocorpo; aqueles que se vangloriamdo contrrio e i nventamuma moradae habitculosparaa al ma provocamourisooudesgosto. I ssoforteenoalmejatornarEspinosaagradvelaos seus devotosleitores.Noentanto, umresultadoinevitvel da teoria constante da Parte1 e umresultado que confrontou Espinosacomoseu maiordesafio comomoralista:comore-construira vida moralsem que a noo populardeliberdade desempenhenisso umpapel. E j podemosentrever,empar-te, a sua brilhantesoluo. A liberdadeabsoluta,definidana Parte1,Definio7,somenteexisteemDeus.Masexiste uma outra idia de liberdade, uma idia mais relativa,sugeri-dapelateoriadoconatus.EmborasomenteDeusexistapela necessidadedesuaprprianaturezae tudoomaisdependa dele como sendo a causa que tudoabrange,os modosfinitos podem conter, em maior ou menor grau, as causas de suaati-vidadeepersistnciaemsimesmos.Emboratodacausao devaserreconduzidaessnciadivina,ascadeiasquenos prendem podemser ou externas, operando sobre ns desdeo lado de fora, tal como as causas que afetam uma pedra, ouin-ternas, operandodentroe atravsde ns,como asoperaes do desejo. E quantomaioroconatus, maisinternasso as ca-deias. Ao j untarmosasnossascadeiasemnsmesmos,tor-nando-nos conscientes de sua fora sobre ns, tambm nos li-vramosdelas,obtendoa nica liberdadequens podemose devemosdesejar. Paraentenderessaengenhosaidia,devemosretornar brevemente teoriadoconhecimento. 30 AP E R S P E C T I V AD OO L H ODEDE US TodasasidiasexistememDeus,comomodificaesde seupensamento.Algumasidiastambmexistemnamente humana. Espinosa diz, portanto, que as nossas idiasexistem em Deus no medida em que ele constitui a mente humana.Inver-samente,umavezqueDeustemconhecimentoadequadode todasascoisas,asnossasprpriasidiassoadequadasna medida em que ns participamos do intelecto infinito. Esse"na medidaemque"umaquestodegraduao:quantomais adequadas forem as mi nhasconcepes,tanto mais eualcan-o, alm da mi nha condiofinita,a substncia divina da qual eusouummodo. somentecomoummododefalar quepodemosdescre-verDeuseseusatributosnaperspectivatemporal.Deus eterno,oquesignificadizer(Parte1,Definio8)queEle estforadotempoedamudana.Portanto,"ascoisasso concebidascomoatuaisdeduasmaneiras:ounamedidaem queelasexistemcomrelaoa umcerto tempoe a certolu-gar, outendo em vista que as concebemoscomo contidasem Deus e resultantesda necessidadeda natureza divina"(Parte 5, Proposio 29, esclio). Passar da perspectiva divina para a humana passardo atemporal para o temporal,e vice-versa. EmboraasmodificaesdeDeussejamentendidasporns como"duradouras"e comosucedendo-seumass outrasno tempo, essa permeao do nosso conhecimento peloconceito dotemposrefleteainadequaodonossoentendimento. Umavezqueconcebemosascoisasadequadamente,nsas entendemoscomofluindodanaturezaeternadeDeus, medi ante umacadeia de explicaesque lgica emsua for-31 ma e, portanto, livre do domnio do tempo, da mesmamanei-ra queas verdadesdamatemtica. Portanto, "est na natureza da razo perceber as coisassob umcerto aspecto da eternidade"(Parte 2, Proposio44,co-rolrio2).Umaconcepoadequadadomundoumacon-cepo "sob o aspecto da eternidade"(sub specie aeternitatis); assim que Deus v o mundo(ao qual Ele idntico), e desse modoquensovemos,namedidaemque asnossasmentes participamda viso que deDeus. Espinosaexplica que"amentehumanatemumconheci-mento adequado da essncia eterna e infinita de Deus"(Parte 2, Proposio 47), pois o que a tica seno umademonstra-o da nossa capacidade de conhecer Deus como Ele essencial-mente e de saber que, alm de Deus, no existe nada? Ao ad-quirir conhecimentosadequados, passamos a entender oque divinoeeterno.Poroutrolado,nsentendemosanossa prprianaturezaeidentidadesoboaspectodotempo-sub specie durationis -pois como modos persistentes efinitosque nsfrumosdoconatus,oqualnosdistinguedotodoauto-suficiente das coisas; e conhecer a ns mesmos comoexistncias individuais estar preso na concepo do tempo, o que leva ao conhecimentoconfuso e parcial.Acondiohumanauma condio de conflito: a razo aspira pela totalidade eterna,ao passo que as necessidadesdaexistnciasensvel nosvincula quilo que temporale parcial. As outras trs partes datica tratam de provar que a nossa salvao consiste em ver omun-do sub specie aeternitatis, como Deus o v, e em ganhar,median-te isso, a liberdade da servido dotempo. 32 A OEP A I X O A Parte 3 da tica lida com "a origem e a natureza das emo-es".Espinosacomeadeclarandoqueelepretendetratar dessetpicocomomesmorigorgeomtricoqueadotouna sua discussosobreDeuse amente: Asemoesdedio,clera,invejaetc.,consi deradasemsi mesmas,resul tam da mesmanecessi dade e da mesma fora dana-turezacomoasoutrascoi sasparti cul ares.Porconsegui nte,elas tmcertas causas pel as quai s so entendi dase tm certaspropri e-dadestodi gnasdeseremestudadasquantoaspropri edadesde qual queroutracoisacuj a contempl aonosdprazer.Portanto, vou tratar da natureza e da fora das emoes,e do poder damen-tesobreelas,como mesmomtodocomquetrateideDeuseda mentenaspartesprecedentes,e consi derareias aes humanase osapeti tesexatamentecomoseeuesti vessetratandodelinhas, pl anosoucorpos. Oargumentopartede trsdefinies: Defi ni o1: Chamocausaadequadaaquel acuj oefei topodeser percebi doclara e di sti ntamentepormei odela.Chamocausaina-dequadaouparcialaquel acuj o efei to nopodeserentendi dopor i ntermdi odel asomente. Defi ni o 2: Di go quesomos ativos quandoem ns ou fora dens ocorrealgodequesomosacausaadequada...Poroutrolado, di goquesomospassi vosquandoal guma coi sa se produzemns ... dequenosomossenoa causaparci al . Defi ni o 3: Por emoo^(affectus)eu entendoas modi fi caesdo corpo,pel asquai sa potnci adeagir dessecorpo aumentadaou 5Scrutonusou"emotion" e no"affection", na citao. Mantive a corres-pondncia de "emotion" como "emoo" em toda a traduo.(N. T.) 33 di mi nu da,favorecida ouentravada,assimcomoas idiasdessas modificaes. Aprimeiradefinio juntadoisconceitos-chave:causae idiaadequada.ParaEspinosa,acausao umoutronome para explicao; portanto,a relao entre causa e efeito euma relaointelectual, tal comoa relao entre premissaeconclu-sonumademonstraomatemtica.Aexplicaaoperfeita (adequada) tambm uma deduo. Em uma explicaao assim, o conhecimento do efeito resulta do conhecimentoda causa. Espinosa define, ento,ao e paixo: eusouativo emre-laoquelascoisasquesocompl etamenteexplicadaspor mL ha prpria natureza, e sou passivo em relao aquelas coi-sasqueprecisamserexplicadasporcausasexternas.Assim definidas, atividadee passividadeso umaquestodegrau. A definio de emoo reflete a teoria de Espinosa sobrea relao entre a mente e o corpo. Uma emoo umacondio corporal, e, ao mesmo tempo, a idia dessa condio. E aquilo que acontece dentro de ns, quando a nossa atividade e aumen-tada ou diminuda -sendo a atividade ao mesmo tempomental efsica., Partindo dessa idia, Espinosa expe a sua estranha e proi-'bitiva teoria da vida moral -uma teoria que tambmcomem algumas das mximas mais sbias j sadas da pena de umfi-lsofo.Primeiramente,eleargumentaqueamenteeativa, uma vez que ela tenha idias adequadas, e passiva, namedida em que ela tenha idias inadequadas(Parte3, Proposio1). A distino entre fazer coisas e sofrer coisas umadistino degrau,e, uma vez quesomenteDeus a causacompletae originadorade todasas coisas,somenteEle agesemqueEle soLa ao. Mas podemos assemelhar-nos mais a Deus se as-cendermos pela escada do conhecimento, colocando, no lugar de nossas percepes confusas, idias adequadas,quetrazem entendi mentoepoder. A concepo de Espinosa da atividade mentalcorresponde s remotamente nossa noo usual de vontade e efetividade 34 -idias queele, de qualquerforma, descarta como confusas. Masconsidereesteexemplo:souempurradoportrsecaio sobreosovosqueestavacarregando,quebrando-os.Neste caso, no diramos que fui eu quem quebrou os ovos, massim que os ovos foram quebradoscomo resultadode algumque me empurrou.O efeito resultoude uma causa externa. Se, no entanto,eudecidir jogarosovos nocho,soueua causade sua destruio. E quanto mais deliberada for a mi nhadeciso, mais responsvelserei. A razo,a qual med umaclaracon-cepo do que eufao, faz queeu seja a causadisso. E isso, em termos gerais, que Espinosa quer dizer por ao -um efeito que resulta de uma idia que o concebeclaramente. claro que no pensamentode Espinosa as idias notm efeitosfsicos. Masacadaidianamentecorrespondeuma modificaodocorpo.Quandoumefeitofsicodescrito como uma ao, queremos dizer que a sua causa fsica o cor-relato de umaidia mais oumenosadequada.E quantomais adequada a idia,maisacausa internaaoagente-tanto mais ela pertence ao conatus que o define. Numsentidomui to real,portanto,aadequaodeidiassignificapotncia.A pessoa racional aquela que sempre se esfora paraaumentar essa potncia, para mudar a paixo em ao e para assegurar a si mesma a alegria, a independncia e a serenidade, que so as verdadeirasmarcasdaliberdade.Paraalcanartalcondio, noentanto, precisoaperfeioar as nossasemoes,terdo-mniosobreaquiloemnossanatureza,que,casocontrrio, isso nosdominar. 35 ASE MO E S As emoes resultam do aumento ou da diminuio da po-tncia, e potncia perfeio. A alegria a paixo com aqual ns avanamos para uma perfeio superior, a tristeza a pai-xo com a qual ns descemos para uma inferior(Parte 3,Pro-posio11). A nossa essncia o esforo(conatus) com o qual procuramospersistiremnosso prprioser. Quandoessees-foro estrelacionadoapenas mente, chamadodevonta-de; quando se refere tanto mente quanto ao corpo, chamado de'apetite.Odesejo oapetiteaoladodaconscinciadesse fato(Parte3,Proposio9).Assim,odesejoaverdadeira essnciadohomem.Conformeosnossosdesejossecum-premouso frustrados, experimentamosalegria outristeza. Mas, uma vez que os objetos do desejo so variados, so varia-das tambmas ocasies de sofrimento e alegria. Emsuades-crio das emoes,Espinosaprocuraapresentarumateoria sistemtica dos desejos humanos para mostrar como asemo-es surgem deles e para nos alertar contra as paixes que vo solapar a nossa potncia.Esse tema desenvolvido na Parte 3, em que ele descreve as variadas emoes, e na Parte 4 -"da ser-vido humana, ou do poder das emoes" -, na qual ele explora 08 caminhos que ns podemos tomar para a liberao. Para Espinosa,a mentee o corpomovem-seemparalelo. Toda a mudana na potncia corporal tambm umamudan-a na potncia mental,e vice-versa. Parte3, Proposi o11: A idia dequal quercoisa queaumentaou di mi nuiaj udaouentravaapotnci adeagirdonossocorpo,au-mentaou di mi nui ,aj uda ouentrava a potnci a de pensardanossa mente. 36 Assim,umferimento corporal,o qual reduz a potnciade agir do corpo,temo seu paralelo mentalna dor, que reduza nossapotnciadepensar.Anossavidaemocionalprovm dessa estreita cumplicidade entre a mente e o corpo. Amente se esfora paraimaginaraquelascoisasquefortalecem a po-tnciadocorpo,eparaapagarasimagensdeadversidadee fracasso (Parte 3, Proposies12 e 13). Mas a influncia re-cproca,e, quantomais inadequadofor o nossoentendimen-to,tantomaisocorpoeascausasexternasqueoafligem exercemoseucontrole.Tornamo-nospassivosquandoas nossasidiasseguemprocessoscorporaisdosquaistemos somente uma compreenso parcial, e a essa passividadeque nosreferimos quandofalamos deservidohumana. AposiodeEspinosatemporbasedoispoderososin-sightsdavidaemocional.Oprimeiro queas emoesderi-vam da nossa natureza como criaturas corporificadas, impeli-dasporforasquenocompreendemoscompletamente.O segundo que a emoo, apesar de tudo, uma forma de pen-samento,no qualse expressa uma maior oumenoratividade da mente. Corrupo emocional tambm corrupointelec-tual,ea pessoaque levadaporsuaspaixes umapessoa que temumconhecimentodefeituoso domundo. Por serem as emoes formas de pensamento,elaspodem ser mudadaspela razo. Ns podemosargumentarcomuma pessoa ci umentae mostrara ela queoseucime umerro, umexagero, ou que est fora do lugar. Alm disso, nspode-mosestudaras emoesemseuaspectomental,edescobrir quaisdelasso boas para ns,e quaisso ms. Dentrodesse contexto,"bom"significa "til"(Parte 4, Definio1), eso teisparansaquelasemoesque noscapacitama nosde-senvolvermosde acordo com a nossa natureza; em outras pa-lavras,aaumentarmosanossapotncia.Ebvio,portanto, quetodasas paixes,namedidaemqueso paixes,devem ser transcendidaspela obteno de umaidia maisadequada de seu objeto e de sua ligao conosco mesmos. Masalgumas emoesresistema esseato de transcendncia:porexemplo 37 o dio, que deixa de ser dio no momento em que ele com-pletamentecompreendido(Parte4,Proposio46).Omes-mo vale para todas aquelas emoes que envolvem uma dimi-nuioda potnciae da perfeio: todaselassoformasde tristeza, como a inveja, o cime, a luxria, a raiva e o medo. J as emoes que so formas de alegria envolvem a transio de uma disposio de nimo mais passiva para uma mais ativa e, portanto,esto de acordo com a razo: por exemplo,oamor. (Espinosa define o amor, no apndice da Parte 3, como"ale-gria acompanhada da idia de uma causa exterior".) Assim,o amor no exige a mesma correo que o dio. Mesmoassim, "o amor e o desejo podemser excessivos"(Parte 4,Proposi-o 44), j que o correlato fsico da alegria o prazer; o amor pode se fixar neste prazer, privando, desse modo, o corpo de sua versatilidadee potncia(Parte4,Proposio43).Mes-mo em sua forma mais poderosa, as paixes, no entanto,no tmumpodersobrensqueseja maiorqueo poderdara-zo, uma vez que "a toda ao qual somos compelidospor uma emoo que uma paixo, ns podemos serdetermina-dos pela razo,sem a tal emoo"(Parte 4, Proposio59). dessa maneira que Espinosa procura justificar o seumodo de vida preferido, no qual uma espcie de tranqilidadedivi-na supera a turbulncia da paixo, conforme a razo alinha o material desordenado da emoo com suas concepesmais adequadas. Os detalhes da "geometria das paixes" de Espinosa esto alm do nosso alcance. Mas o leitor ir perguntar, mesmo as-sim, por que alguma coisa dela deveria ser aceita. De umpon-tode vistactico,as definiessagazese asdemonstraes escorregadiaspodemparecerquesemovemfacilmentede-mais at uma concluso prvia, sem rios compelir a aceit-la. Desde Plato, osfilsofosdefenderam a ascenso domundo da paixo humana para o sereno reino da razo; sua moralida-de, no entanto, vem demasiadoa calhar; parece muitoclara-mentedestinadaa justificar o estilo de vida porelesescolhi-do,deriva muitoobviamentedeseudistanciamentodavida 38 queeles desprezam.E porqueEspinosaseria maispersuasi-vo que osoutros?AssimNietzschese referiuao hocus-pocus^ emforma matemti ca,como qualEspinosaencoura-ou e mascaroua suafilosofia-com efeito, o "amor pela suasabe-doria",paratraduzi ro termohonestae retamente-e, assim,de ums golpe, encherde terror o corao do maadorque ouselan-arumolharparaaquela invencveldonzela,PalasAtena... E acrescentou: "quanto de timidez pessoal e vulnerabilida-de no trai essa mscara de um recluso doente!"{Alm do bem e do mal,1,5). Tal censura deixa de ver aquilo que o maisimpressionan-te e original da viso de Espinosa. Ele no advoga a vitriada mente sobre o corpo e tambm no defende um modo de vida asctico.Espinosaacredita que a mentee o corpo soidnti-COS e que a sade de um est inextricavelmente ligada sade do outro. Somos essencialmentecriaturas corporificadas,de-rsejadoras, esforadas. Somos empurrados e feridos porcoisas ^ fora de ns e estamos trancados com elas dentro de umsiste-madecausaeefeito. Emtaiscircunstncias,sexisteuma nica verdadeirasabedoria,que a deaumentarapotncia, procurandoassegurar,namedidadopossvel,queascoisas queacontecemconosco tambmsejam produzidasporns. Afilosofiaconsistedepensamento.E,seEspinosaest certo,opensamentonopodemudardiretamenteocorpo, mas s a mente. Ao mesmo tempo,ao melhorara mente,ns mel horamoso corpo. uma verdade necessria que oconse-lho dofilsofoprecisa ser dirigido mente do leitor, com vis-tas a ampliar a sua compreenso.Umfilsofo umpensador enoumginasta.Somenteseaampliaodacompreenso for umaumentodapotncia,oconselhodofilsofopoder ser til. Se estivermos vendo as coisas corretamente,ento, a 6Frmulamgica, palavrassemsentido(expressocorrenteemale-mo e ingls).(N. T.) 39 ascenso pelaescada da razo, passando das percepescon-fusas s idias adequadas, s pode ser um aumento da potncia da mente. Na esfera mental, nisto que consiste a potncia: na completudedoconhecimento.OconselhoqueEspinosad, portanto, o nico conselho que jamais pode ser dado porum filsofo.E o fardo de sua metafsica mostrar que esseconse-lho se justifica. 40 oH O ME ML I VRE Espinosa nos diz que somos, essencialmente,criaturas de-sejadoras e agentes;masele tambmafirma que"umdesejo que surge da razo no pode ser excessivo"(Parte 4,Proposi-o 61). Portanto,enquanto conduzirmos as nossas vidas pe-las regras da razo, estaremos vivendo de acordo com a nossa verdadeiranatureza,alcanandoaplenitude. Ora, est na natureza da razo ver o mundosub specie aeter-nitatis,isto , sem referncia ao tempo. A razo, portanto,no faz distino entre passado,presente e futuro, e ela afetada, mui to ou pouco, tanto por coisas presentes quanto porcoisas futurasoupassadas(Parte4,Proposio62).Somentese virmoso mundosupspecie durationis quesomostentadosa nos perder na busca de tentaes presentes. Mas da durao e dascoisasdurveisspodemosteridiasinadequadas,de modoque,dando vazo "vida no momentopresente",per-demosdevistaaquiloquefazemos,enostornamosinstru-mentospassivosde causasexternas. Aquele que vive pelos ditados da razo o "homemlivre", algumque maisativo que passivo emtudoque oenvolve. A idia ilusriada vontadelivre derivade percepesinade-quadaseconfusas;aliberdade,entendidacorretamente,no entanto, no o estar livre da necessidade, mas sim a conscin-cia da necessidade,a qual temosquando vemos o mundosub speciesaetemitatise vemosa ns mesmoscomo vinculadoss suasleis imutveis.Ohomemlivre,nodiscursoelogiosode Espinosa, umtipo altaneiro e alegre, com nenhumtrao do pesar calvinista. Ele "em nada pensa menos que na morte, e a sua sabedoria a meditaosobre a vida, no sobre amorte" (Parte 4, Proposio 67). Inabalvel, ele procura o bem e evita 41 o mal forte emsuperar perigos,e tambmem evita-los,e e escrupulosamentehonesto(Parte 4, Proposio72). Masele nosozinho,pois"umhomemqueguiadopelarazaoe mais livre num Estado, onde vive de acordo com a deciso co-mumdoquenasolido,emqueelesomenteobedeceasi mesmo"(Parte 4, Proposio 73). Esse pensamentoEspinosa desenvolveuemmaiordetalhenosseusescritospolticos. Embora ele tivesse uma viso ctica das pessoas comunse da sua habilidade de viver segundo os ditames da razo, ele reco-nheceua necessidadedesua companhia.E verdadeque"um homemlivre que vive entreos ignorantesprocura,oquanto puderevitar os seus favores"(Parte 4,Proposio70);mas, comoacrescentaEspinosa,"emboraoshomenspossamser ignorantes, eles conti nuamsendo homens, que, emsituaes de necessidade, podem trazer ajuda humana, e no existe aju-da melhor que essa"(Parte 4, Proposio 70, esclio). E,em-bora"somentehomenslivressomui togratosunsaosou-tros"(Parte4,Proposio71),oshomenslivrestmtanta necessidadedeordempolticaquantoosignorantes,e,por-tanto,tmque viverdeacordocoma lei a elesimpostapela "deciso comum".. Em seuTratado poltico, Espinosa explica que "a verdadeira metadogoverno a liberdade".Por"liberdade"elenaoen-tendenema vontadelivre(quemetafisicamenteimposs-vel)nem o tipo de liberdade discutida na Parte 4 da Etica.Ele se refere habilidadedas pessoas em cuidar de seusprojetos em paz e de manter as opinies e as ambies que a razo lhes dita, sem a interferncia do Estado. A sua preocupao coma l i bekadepolticasurgiudesuadesconfianaemrelaaoas pessoas comuns,que nuncase satisfazem com crenas,hbi-tos e ambies que nosejam seus. A arte do bomgovernoe fazer quetais pessoasaceitemumregimenoqualohomem livre possa viver como lhe dita a sua conscincia. Espinosa,as vezes, louvado como umdefensor da democracia. Sename-lhor v-lo como umdefensor da constituioliberal, quepro-curava transferir aos cargos do governo a sabedoria queusual-42 menteestausentedascabeasdaquelesqueosocupam.A poltica,paraEspinosa, a artedasobrevivnciano meioda ignorncia. A polticaentranaticascomomeno.Mesmoassim, elaestmui topresentenamentedeEspinosaquando,em umlongo apndice da Parte 4, ele resume as suasconcluses morais.Osextratosa seguir vo transmitiralgo dosaborde sua notvele firmehomilia: Na vi da... especi al mentetil aperfeioar, na medi daemque pudermos,o nosso intelecto ourazo, e isto a supremafelicida-deoubeati tudedohomem-poisa beati tudenadamai s queo contentamentoda menteque provmdoconheci mentointuitivo deDeus. Nenhuma vi da... racional sem entendi mento,e as coisasso boas somente na medi da em que aj udam o homema gozar da vida da mente... Mas aquelas coisas que i mpedem que o homempossa aperfeioara razoegozardavidaracional-somenteessasns di zemosquesoms. J ul gandodesdeumaperspectivaabsoluta, permi ti doacada um,pel o di rei to mai selevadoda natureza,fazer aquiloquejulga servantaj oso paraele. Nada mai s til ao homem para conservar o seu ser e gozarda vida racionaldoqueumhomemque conduzi dopelarazo. Asmentes...nosoconqui stadaspelasarmas,maspelo amore pelagenerosi dade. especi al mentetilaoshomensformarassociaeseuni-rem-se pelos vnculos que mel horpodemfazer deles umspovo, e defazer absol utamenteaquelascoisasqueservemparafortale-ceraamizade. I ssorequer,porm,artee vigilncia,poi sos homenssomu-tveis-so poucososquevivemdeacordocomospreceitosda razo -e, em geral, so invejosos e mai s inclinados vinganaque compaixo. preciso, por isso,umasingular potnci a damente para lidar com cada umde acordo com a sua prpri acompreenso e para saber conter-se e guardar-se de i mi tar as emoesdaqueles comquemtemosquelidar. 43 Embora,viaderegra,oshomenssej amgovernadosemtudo pelaconcupiscncia,desuasociedadecomumresul tammui to mai svantagensquedesvantagens.Porisso, prefervelsuportar assuasfaltascomequani mi dadeezelarporaquelascoisasque produzemharmoni aeamizade. Oamorpuramentesensual...eabsol utamentetodooamor quetenhaoutracausaquenoa liberdadedamentepassafacil-menteao dio -a noser(o que pior)queele seja umaespcie deloucura. Noacabrunhamentohumafalsa aparnciademoral i dadee religio.E,emboraoacabrunhamentosejaocontrri odoorgu-lho,o homemacabrunhadoestmui topertodoorgul hoso. Porque... a vergonha uma espcie de tristeza, ela noperten-ce aoexercciodarazo. Almdoshomens,noconhecemosnenhumacoisasingular nanaturezacuj a mentenospossaalegrare quens possamosli-gar a ns por ami zade...E assim, para tudoo que h nanatureza, exceto os homens,o princpio de procurara nossa prpri avanta-gemnoexige quensapreservemos. Sendo boasas coisasqueaj udam as partesdocorpoadesem-penhara suafuno, e consi sti ndoa alegrianofato dequeapo-tnciadohomem...favorecidaouaumentada,todasascoisas que doalegriasoboas. A superstio, por outro lado, parece afirmar que bomaquilo quetraztristezae que mauoquetrazalegria. Opoderhumano mui tolimitadoe i nfi ni tamenteul trapas-sado pelo poderdas causas externas. Por conseguinte,ns note-mosumpoderabsol utoparaadaptarao nossousoascoisasque estofora dens.Mesmoassim,nssuportaremoscomequani -mi dadetodasas coisasquenosaconteceme queso contrri as nossavantagem,desdequetenhamosconscinciadeterfeitoo quedevamosedequeopoderquepossu mosnopoderi ater sidoestendi doafim deevit-las,edequensfazemospartedo todo da natureza,cuja ordemnssegui mos.Secompreendermos issodemanei raclarae distinta,entoaquelapartedensque definida pelo entendi mento -a nossa mel hor parte -estarplena-44 mentesatisfeitaeesforar-se-porpreservaressasatisfao. Porque,peloqueentendemos,nopodemosquerernadaseno aquiloquenecessrio,nemabsol utamentenoscontentarmos com al guma coisa que no seja a verdade. Por conseguinte,na me-di daemquecompreendemosessascoisascorretamente,o esfor-o da nossamel horparteestde acordocoma ordemdo tododa natureza. 45 AV I D AS U P E R I O R A quinta partea. tica, com o subttulo "Do poder do inte-lecto,oudaliberdadehumana",dedica-semaisoumenos completamente a uma discusso sobre Deus e sobre a relao entreDeuse o homem.Espinosa j havia argumentadocon-traaconcepopopulardaliberdade,segundoaqualns sempreescolhemosentrevriaspossibilidadesabertas.A mera idia de possibilidadeprovmdaignorncia. Euchamo...coi sasparti cul aresdeposs vei snamedi daem que,consi derandoascausaspel asquai selastmdeserproduzi -das,nsnosabemosseelassodetermi nadasaproduzi -l as. (Parte4,Defi ni o4) Quanto mais ns sabemos da causalidade de nossas aes, tantomenoslugarnstemosparaidiasdepossibilidadee contingncia.Noentanto,oconhecimentodacausalidade no cancelaa crena na liberdade,mas a justifica. ailusria idiadeliberdade,surgidadaimaginao,quecriaanossa :servido, pois ns acreditamos na contingncia das coisasso-mentenamedidaemqueanossamente passiva.Quanto mais vemosas coisas comonecessrias(por meiodasidias adequadas), tanto mais aumentamos o nosso poder sobre elas, e, assim, tanto mais somos livres(Parte 5, Proposio 6).Por-tanto, como vimos, o homem livre consciente dasnecessida-des que ocompelem. Assim, uma pessoa entende a si mesma e s suasemoes e tambm ama a Deus, "e tanto mais quanto mais ela entende a si e s suas emoes"(Parte 5, Proposio15). Esse amor,o, qualprovmnecessariamentedabuscadoconhecimento, 46 umamorintelectual(amor intellectualisDei) . I sso significa di-zer que a menteest inteiramenteativa quandoama Deuse, portanto,constantementeseregojiza,massempaixo,no objetodesuacontemplao.Deuspropriamentenopode experimentar nem paixo, nemalegria, nem tristeza (Parte 5, Proposio17), por isso Ele est livre de emoo,comonor-mal mentea entendemos.Ele no ama os bons e no odeia os maus: na verdade,Ele no ama nemodeia ningum(Parte5, Proposio17,corolrio) . Assim,"aquelequeamaaDeus nopodeesforar-separaqueDeusoameemtrocadisso" (Parte5,Proposio19).Oamora Deus inteiramentede-sinteressadoe"nopodeserpoludopornenhumaemoo de inveja ou cime, mas tanto mais fortalecido quantomais homens^imaginamos estarem ligados a Deus por esse lao de amor"(Parte5,Proposio20).Defato, oamorintelectual dos homens a Deus " o mesmo amor com que Deus ama a si mesmo"(Parte 5, Proposio 36). No amor a Deus, ns parti-cipamos mais pl enamentedo intelecto divino e do amoruni-versal e impessoalque l reina, pois, emboraDeus nopossa corresponderao nossoamor,Ele,mesmoassim,amaosho-mens,na medidaemque Ele ama a si mesmoeme pormeio doshomens.Esseamoreternoconstituianossa"salvao, beatitudeouliberdade". No decurso de sua discusso sobre a beatitude dohomem, Espinosa fornece uma demonstraosingular de nossaimor-talidade, ou melhor, da proposio que "a mente humanano podeemabsolutoser destruda j untocomo corpohumano, mas alguma coisa dela permanece que eterna"(Parte 5, Pro-posio 23). A obscura prova disso baseia-se na viso de Espi-nosa de que, por meio de idias adequadas,a mente pode ver o mundosubspecie aetemitatis,e, portanto,semrefernciaao 7Cf.EncyclopaediaBritannka,coleoGreatBooksoftheWestern World,1952,v.31:"...themorepeoplewe imaginetobe...",eno como consta no texto de Scruton"...themore weimagine men tobe...". (N. T.) 47 tempo.Aessnciadamenteconsistenacapacidadedeter idias adequadas.(Essncia=conatus=atividade= adequa-o.)A temporalizaodessaessncia(colocadanomundo dadurao)nopodeserexplicadaporidiasadequadas, uma vez que estas no contm nenhuma referncia temporal. Taisidiasrecebem"durao"somentepelasuavinculao ao corpo mortal,e no de maneiraintrnseca: Podemosdizer,portanto,quea nossamente persiste,e quea suaexistnciapodeserdefinida,porumcertotempo,somente tendo-seemvistaqueissoenvolvaa existnciaatualdocorpo,e istosomentena medi daemqueele tenhao poderdedetermi nar, pelotempo,a existnciadascoisase deasconcebernadurao. (Parte5, Proposio23,esclio) No devemos pensar a eternidade como durao semfim, umavezqueissoseriaconfundireternidadecomtempo.A eternidadequensatingimospormeiodopensamento como umescape do tempo para uma outra dimenso. A parte eternaemnsnopersisteapsa morte,massomentepor-queela nopersistena vida. precisoumaviso,umponto devista,umaperspectivaforadotempoedamudana,na qualnssomosumscomDeusesomosredimidospelo nossoconhecimentoDele.Esseestadoabenoadono"a recompensa da virtude, mas a prpria virtude; e nogozamos delaporquerefreamosasnossasconcupiscncias,mas,ao J contrrio,porgozarmosdela,somoscapazesderefre-las" (Parte5, Proposio42). Essas ltimas proposiesda tica so a resposta deEspi-nosasreligiesdosignorantes,cujavisodevidaapsa mortecomorecompensaoupuniopelocomportamento aqui embaixo uma opinio "to absurda que quase no vale a pena mencion-la"(Parte 5, Proposio 41). Mesmoassim. oautor usou"instantiation",verbete no encontrado nosdicionrios pesquisados.(N. T.) 48 a verdade sobre a nossa relao com Deus ao mesmotempo difcil e rdua, e no de surpreender que pessoasignorantes sejam incapazes de descobri-la. Por conseguinte, assim como a virtude a sua prpria recompensa, a ignorncia a sua pr-priapunio: no s o homemi gnorante atormentadode mui tas manei raspe-lascausasexternaseincapazdeal gumavezpossui rverdadeira pazdeesprito,maseletambmvivecomosenoconhecesse nema si mesmo,nema Deus,nems coisas; e, to logo eledeixa de sofrer,' ele deixa de ser. Por outro lado, o homemsbio, name-di da em que ele considerado como tal, dificilmente tem o seues-p ri toatormentado,mas,sendoconscientedesimesmoede Deusedascoisas,porumacertanecessidadeeterna,elenunca deixadeser,mas possuisemprea verdadeira paz deesprito. Se o cami nho que mostrei levar a essas coisas parece mui todi-fcil agora, ai nda assi m pode ser encontrado. E com certezaaquilo queencontradotoraramentetemqueserdifcil. Porquesea salvao estivesse mo e pudesseser encontrada sem grandees-foro,comopoderi asernegligenciadaporquasetodos?Masto-dasascoisasexcelentessotodifceis quantoraras. Com essas famosas palavras Espinosa conclui a sua argu-mentao,legando posteridadeo que talvezseja o livro de filosofia mais enigmtico jamaisescrito. 9Cf. Encyclopaedia Britmnica, coleo Great Books of the Western World, 1952,V.31: noescliodaProposio42,Parte5, ltimo pargrafo consta "...as somas he ceasesto suffer...".(N. T.) 49 C O N C L U S O Neste breve resumo,dediquei pouca ateno aosdetalhes das demonstraesde Espinosa. Basta dizer que a sua valida-de foi incessantemente colocada em questo pelos crticosdo filsofo,queoacusaramdetorcerargumentovisando conclusodesejada.Porm,quantosfilsofos soinocentes dessafalta?Seriamaisj ustoconsiderarasdemonstraes quasegeomtricasdeEspinosacomotestemunhosdesua grande elasticidade e vigor de pensamentoe de seuincompa-rvel dompara ver conexes delongoalcance. Com um m ni mo de conceitos,a maioria dos quaistirados ou adaptados da filosofia medieval e cartesiana, Espinosaem- :preendeu algo que raramente foi tentado e que nunca foi con-seguidodemaneiratoousadaouarrogante:eledelineou umadescriodetudoo queexiste, umguia detalhadode comoconvivercomisso. E aquiquedevemosnosafastar umpoucodatica eper-Iguntarmo-nosoqueissosignificaparans,quepensamos .J comoutrosconceitos,inseridosnumaeramaisctica.Aqui est,acredito,o que Espinosatema nosdizer: Omundofsico tudooqueexiste,umsistemavinculado por leis querelacionamtodasas partesentresi. Essasleispo-dem explicar o que observamos somente se o sistema comoum todo tiver uma explicao, apenas se existir uma resposta para a pergunta: por que afinal existem as coisas? Mas a causa do mun-do no pode existir fora dele, pois seno o elo entre o mundo e a sua causa seria ininteligvel. Tampouco a causa pode estarden-tro do mundo, porque ela ou uma parte do mundo, e, portan-to, incapaz de explic-lo, ou ela o mundo todo, caso em queo mundo auto-explicatvo[self-explained]. 50 i -Em outras palavras, o mundo precisa ser "causa de si mes-mo":asuaexistnciatemque resultardesua natureza.Mas quandoexplicamoso mundodessamaneira,ns noestamos comprometidoscom a cincia comum.O dentista explicauma coisa na perspectiva de outra, simplesmente assumindo uma re-lao entre elas no tempo. Quando deduzimosa existnciado mundo, no entanto, ns estamos lidando com relaes de lgi-ca, quese encontramfora do tempoe damudana. Podemosverfacilmentequeissotemqueserassim.Na natureza desse caso, nenhumateoria cientfica poderiaexpli-carporqueoUniversopassouaexistir j ustamentequando isso ocorreu, pois antes daquele tempo no havia nada, e por-tanto nada em relao aos quais este "vir a existir" poderia ser explicado.Acincia,queliga eventosemcadeiastemporais, fracassa quando no h umeventoanterior quele queprecisa ser explicado. Somentese nos colocarmos fora da esfera tem-porale virmoso mundo"sobumcertoaspectodaeternida-de",podemosteresperanaderesolveromistriodesuas origens. Existemteoriascosmolgicasque tentamevitar essa difi-culdade,esposandoaidiadequenoexisteumprimeiro momento,queo tempo umsistema fechado, como umcr-culo, que constantemente retorna a qualquer momentodado. Se isso for assim,ento nenhummomentotemmaisdireito depretenderseroincioqueosoutros.Masmesmosens pudssemosver sentido nisso(e certamente no bvioque opossamos),continuasemrespostaaperguntacrucial,ou seja, por que que,afinal, uma ordemtemporaldessasdeve-riaexistir? Esse mistrio solucionadoapenasse o sistematotal for detalmodoqueeletenhaqueexistir,poissomenteento nspoder amosterumargumentolgicoparaasuaexis-tncia,umargumentoquededuzaexistnciadosistema, sem refernci a ao tempo.Ele deve existir, argumentaEspi-nosa,porquenohnadaquepoderi aneg-lo.Osi stema totaldomundo autodependentee concebidoporsimes-51 mo.Nadaqueencontramospodetirarasuaexistncia, pois tudoo queencontramos uma partedele,e explica-do pormei odele. A causa autodependentede todas as coisas o que aspes-soas chamam de Deus, e se essa descrio se aplica aosistema total da realidadefsica,ento isso que Deus . Mas isso no tudoo queele , pois umaspecto crucial de nosso mundo deixado fora da fsica: o aspecto da mente ou conscincia. Quan-do o fsico formula as leis de movimento do Universo, ele o faz na perspectiva de espao,tempo,matria e energia(ou"movi-mentoerepouso",naspalavrasdeEspinosa).Eelereduzo mundosemsobras a todas aquelas variveisque tudoabran-gem. Onde voc e eu encontramos pensamento esentimento, eles encontraorganismoscomsistemasnervososcentrais; onde voc e eu encontramosinteno, desejo e aoracional, ele encontrasomentepadrescomplexosdeestmuloeres-posta,mediadospor algumsoftwarede processamentodein-formaes.Massolharmosdentrodensmesmospara descobrirmos que isso no tudo o que existe, que o fato cru-cial da conscincia,aquela estranha transparncia querecobre o mundo, foi deixado fora na descrio do fsico, pelasimples razoqueadescrio,comodeveser,completasemisso. Tudooquefsicofoiincludoemseuinventrio,enada maisresta. H, ainda, um outro aspecto nas coisas, e ns sabemosdis-so pela nossa prpria experincia. Tudo o que o fsico descre-ve como espacial e materialpodeser redescrito comomental -nos voceeu,masomundointeiro.Sefossesomente voceeuquepudessemosserdescritosnumaperspectiva mental,entoamenteseriaummistrio,poisnopoderia haver nenhuma explicao/sca daquilo que nos distinguedo resto da natureza(sendo a menteindizvelnafsica), etam-pouco nenhumaexplicaomental.Se que o mundocontm algumacoisamental,entoelacompl etamentemental.E ser que no sentimos,de tempos em tempos, que isso pode-ria ser assim,sentindocomWordsworth, 52 osenti mentodeSer emtudo Sobretudoo quese movee tudoo que parececalmo; Sobretudoisso,perdi doalmdoalcance dopensamento E doconheci mentohumano,parao olhohumano I nvisvel,masvivido nocorao; Sobretudoo quesaltae corre,e gritaecanta, Ouagitao ar contente;sobretudoo quedesliza Porsoba onda,sim,naondamesmo, E na poderosaprofundi dade dasguas... (The Prelude, Livro1,401-9) E quando,algumas linhas depois, Wordsworthdescreve a simesmodizendo"ComDeusea Naturezacomungando", ns precisamossomente trocar "e" por "ou", para que o pen-samentoseja o deEspinosa. Se vemos,entretanto,o mundo desse jeito, e no houtra visoqueseja verdadeiratantoparaa cincia quantoparao nosso conhecimentode ns mesmos,ento no podemoses-perar que sejamos libertados das leis naturais, ou nos colocar partedacadeiadacausalidade.Sesomoslivres,deveser numoutrosentido,numsentidomaiselevado que oprocla-madonasvelhasreligies.Aliberdades poderesidirnum pontode vista,numa maneira de ver o sistema danecessidade. Eser que,emnossosmomentosdeintrospeco,noesta-mostodosfamiliarizadoscomoqueissosignifica?Certa-mente,essa uma liberdadeque podemosalcanar: no a de sermoslibertadosdarealidadefsica, masa deentendermos a realidadeea nsmesmoscomopartedela e,assim,sermos reconcilidadoscomaquiloquesomos.Essetrabalhodere-conciliao a verdadeirareligio,e oquedevemosans mesmose a Deus dequemo nossoser flui. Se isso assim, no entanto,Espinosa est certo empensar que ns devemos nos esforar para vero mundo sob o aspecto da eternidade. No existe nenhuma outra libertao da cadeia 53 dacausalidadedo queotipode pensamentoqueolha,para alm da causalidade, para o significado e o padro do todo. E quando descobrimos esse padro, as coisas mudam para ns, assimcomomudaa paisagemquandoopintorelidaasua forma, ou os sons mudam quando eles so combinadosentre si em forma de msica. Ento, umaespcie depersonalidade brilha medianteo esquemadas coisas. Encontramo-nosface a face com Deus, no fato mesmode suacriao. Se areligiodeveserreconciliadacomacincia,issos pode ocorrer maneira de Espinosa. Ele est certo ao acredi-tar que a majestade de Deus diminuda pela idia de que as coisas poderiamter sido de outra maneira. A crena emmi-lagres no honra a Deus, pois que necessidade temDeusde interviremeventosqueEleoriginou?AsleisdoUniverso precisamseruniversalmenteobrigatriasparaquensas possamosentender,e a inteligibilidadedo Universo a pre-missa da qual parte toda a cincia e toda a religio. Tampouco devemos menoscabar a viso moral deEspino-sa, por mais remota que ela possa parecer em nossa era de in-dulgncia sensual. Espinosa est certo em acreditar que a ver-dade o nosso nico critrio, e que viver por outroscritrios render-se s circunstncias. Em todo o ser racional est im-plantadaa capacidade de distinguiro verdadeirodo falso, de pesarasevidnciasedeenfrentaronossomundosemilu-ses. nessacapacidadequeresideanossadignidade,eao ricomprometermo-noscomaverdade,nsnosafastamosde nossaspreocupaesimediatasevemosomundocomoele deve ser visto: sob o aspecto da eternidade. A verdade no pode serumaquestodemoda,mesmoqueelafreqentemente ofenda. Tomar a verdade como nosso guia ponderar, com cti-co descrdito, sobre o tempo e todos os seus servos favoritos. A nossa era mais dominada pela teoria cientfica do que a de Espinosa;massomenteumacrdula iluso nospersuade de que ela mais guiada pela verdade. Ns vimos asupersti-o triunfar em uma escala que teria consternado Espinosa,o que foi possvelsomenteporquea superstioseencapotou 54 no manto da cincia. Se as heresias de nossos tempos, como o nazismoe o comunismo,soos inimigosdeclaradosdareli-gio, isso meramente confirma, para o estudioso de Espinosa, oseucartersupersticioso,econfirma,ainda,oinsightde Espinosa de que a objetividade cientfica e o respeito pelo di-vinosoformasdeliberdadeintelectual.Espinosa,assim como Pascal,viuquea nova cinciainevitavelmente"desen-canta"o mundo.Tomandoa verdadecomoo nossocritrio, desentocamosdeseus antigos domiclios o miraculoso,o sa-grado e o santo.O perigo, no entanto,no o fato deseguir-mosesse critrio -pois no temos outromas o de s ose-guirmos at o ponto em que perdemos a nossa f, e no longe osuficiente paraquearecuperemos.Livramosomundode superstiesteis,semque o vejamos comoumtodo.Opri-midos pela sua falta designificado, nsento sucumbimosa iluses novas e menos teis,supersties nascidas dodesen-cantamento,que so to mais perigosas por tomar ohomem, e no Deus,comoo seuobjeto. Oremdio,conforme noslembraEspinosa,no retroce-der para a viso do mundo pr-dentfico, mas o de seguir mais alm no caminho do desencantamento.Perdendo tanto as ve-lhasquantoasnovassupersties,descobrimosfinalmente um significado na verdade em si. Pelo mesmo pensamento que desencantao mundo,chegamos a umnovo encantamento,re-conhecendoDeusemtudo,eamandoassuasobrasnoato mesmoemque asconhecemos. 55