ESPINOSA E A BÍBLIA

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    Baruch de Espinosa e a Bblia:Notas margem do TratadoTeol6gico-Polftico

    Antonio Gouva MendonaSinopse

    recorrente na vasta literatura filosfica a preocupao com a religio, seja quanto ssuas origens, seja quanto sua influncia nas instituies humanas. Seu peso nas insti-tuies polticas, econmicas e sociais tem sido estudado pelos principais pensadoresdesde a antiguidade at os dias de hoje. Este trabalho procura pr em evidncia a crticaque Baruch de Espinosa faz maneira como as ortodoxias religiosas, crists e judaicas,usavam, na Europa do sculo XVII, a Bblia como justificativa para a ao politica. Nesseaf, o filsofo acaba se antecipando futura crtica literria da Bblia que se iniciaria nosculo seguinte.Palavras-chave: Bblia; crtica bblica; puritanismo; judaismo; politica.

    AbstractThe concern with religion, whether it be directed to its origins or to its influence onhuman nstitutions, has long ago beco me a commonplace of mankind's vast philosophicalIiterature. Religion's bearing on political, economical and social institutions has beenthe object of the studies by many important thinkers from ancient through contemporarytimes. This paper seeks to shed some Iight on Baruch Spinoza's critique of the ways bywhich 17 th century, European forms of religious orthodoxy, both Christian and )ewish,used the Bible in order to justify political action. Due to his strong concern with this

    Doutor em Cincias Humanas pela USP; pesquisador no Programa de Ps-Graduaoem Cincias da Religio da Universidade Presbiteriana Mackenzie, So Pau lo-S P.

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    issue, the philasapher figures as a farerunner af ali future Iiterary criticism af theBible, anly to be really initiated in the fallawing century.Key-words: Biblei Biblical criticismi puritanismi )udaismi palitics.

    1 IntroduoEm todas as entrevistas de Jorge Amado que li, perguntaque quase todos os jornalistas fazem aos seus entrevistadosescritores, isto , qual ser o seu prximo livro, o escritorrespondia: estou planejando um que se chamar frie o Ver-melho. Ttulo estranho e, ao mesmo tempo atraente. Quemseria esse Eric, o Vermelho? No sei se Jorge Amado, afinal,escreveu esse livro. Creio que no. Ficou na cabea dele ou,no mximo, em algumas possveis notas em algum canto doseu arquivo.No h, entre os escrevinhadores, algum que no tenhana cabea um livro, um artigo, um ensaio, que jamais chegaao papel. Digo isso porque h anos venho desejando darum curso aos meus alunos sobre Espinosa e a Religio.ComoJorge Amado, dei logo nome a uma criana ainda nem concebida. Se me perguntarem o porque desse desejo, a primeira resposta seria "no sei". Mas, bem no fundo encontroalgumas motivaes porque no h desejo sem objeto, objeto que pode ter atrs de si origens ainda confusas, masinsistentes. No meu caso, seriam experincias religiosas oucrises institucionais de um passado no distante? Mas, voltemos s motivaes primeiras.

    Uma delas seria a minha simpatia por toda sorte deimanncia, mesmo que sob a capa da metafsica; outra, teriasido o xtase provocado por um conferencista que empolgou minha adolescncia intelectual, um ex-jesuta chamadoHuberto Rohden (1893-1981) e, por fim, a influncia que recebi de Lvio Teixeira (1902-1975), meu professor de FilosofiaModerna na Universidade de So Paulo, hoje muito respeitado como expositor de Espinosa. O curioso que exatamente o pai de Lvio Teixeira, o telogo presbiteriano Alfredo

    28 Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, juiz de Fora, v. 7, n. 2, p. 27-57

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    Borges Teixeira (1878-1975), foi quem saiu em defesa da teologia contra o monismo de Espinosa incorporado porRohden. Este, imerso num espiritualismo mstico, ficou margem do mundo intelectual, embora seus livros, algunsainda editados, continuem empolgando um ou outro leitorafeito espiritualidade mais intelectual do que institucional.Mais tarde tentei aproximar-me de Plotino, intentandomesmo fazer uma dissertao de mestrado sobre sua teoriado belo. Meu orientador, como quase todos os demais doDepartamento de Filosofia, foi para o exterior por causa doclima gerado pelo clebre Ato Institucional n. 5 do governomilitar. Abandonei ento meu primeiro amor, a filosofia. Assumi outro, que cultivo por dever de fidelidade; sigo, porm, sondando o primeiro, visitando-o quando posso, massempre com arrependimento e timidez. isso que estou fazendo agora, batendo de novo porta da grande manso da filosofia, pedindo licena para entrar e dialogar com um dos seus mais nobres, mas tambmo mais humilde de seus moradores, o calmo, simples e bondoso Baruch de Espinosa (1632-1677). Gosto de Espinosapor Espinosa.

    Bertrand Rl.lssell (1872-1970), na sua pouco lida, ou aomenos pouco citada Histria da Filosofia Ocidental, publicadaem 1946, ao tratar de Espinosa, diz que ele foi o mais nobre eo mais amvel de todos os filsofos, assim como supremona tica. Mas, como em quase tudo no mundo, essas qualidades to desejveis em todo ser humano fazem saltar vista o grande paradoxo da vida de Baruch de Espinosa. DizBertrand Russell, o lgico matemtico do positivismo: "Durante toda a sua vida e at um sculo depois de sua morte,foi considerado um homem de espantosa perversidade".lContinua Russell: judeu de nascimento, os judeus o excomungaram; os cristos ortodoxos, apesar de sua filosofiadominada pela idia de Deus, acusaram-no de atesmo. Emsuma, no foi aceito pelos judeus nem pelos cristos. Ecomo

    RUSSELL, Bertrand. Histria da Fifosofia Ocidental, p. 94. [Para referncias bibliogrficas completas deste e dos demais titulas cf. as Referncias Bibliogrficas abaixo.]

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religo l Juiz de Fora, v. 71 n. 2, p. 27-57 29I

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    em sua poca religio no se desligava da poltica - aliscomo ainda hoje! -, Espinosa teve problemas a vida toda e,por isso, no viu publicada a maior parte de seus livros,inclusive a tica, sua principal obra.Preferindo independncia, recusou ctedra na Universidade de Heidelberg e ganhou sua subsistncia, como judeudestinado ao rabinato, polindo lentes para aparelhos ticos evivendo como hspede de pessoas humildes. Mesmo assim,no teve paz nos seus poucos anos de vida. Viveu e morreusolitrio,s consolado pela sua imensa correspondncia. Nem,como Voltaire, teve jardim para cultivar. Mas, feliz.Enquanto seus hospedeiros estavam na igreja, num domingo, Espinosa morreu nos braos de seu amigo mdico.Antes, trancara o manuscrito da tica numa escrivaninha edera a chave ao dono da casa com a instruo pa raencaminh-la ao editor em Amsterd. Cercado e perseguidopelos telogos que o no perdiam de vista, desistira de publicar a tica em vida. Foi impressa alguns meses aps suamorte, em ]677.No universo rigorosamente dualista do cartesianismo,Espinosa prope e defende a imanncia monista de Deus ecombate com vigor os construtores de verdades, antecipando em quase trs sculos os acres debates entre conservadores, fundamentalistas e liberais que fizeram e fazem, das religies, particularmente do cristianismo, palco de conflitos,perseguies e excomunhes.Como foi dito de incio, minha proposta era estudaraqui a posio crtica de Espinosa quanto religio. Senti,contudo, que a tarefa era demasiado grande para o fim quetinha em vista. Decidi, ento, limitar este trabalho crticabblica de Espinosa que antecede em dois sculos a crticamoderna, chamada crtica histrica, crtica da forma ou, maiscomumente, alta crtica. Como Espinosa, os modernos crticos da segunda metade do sculo XIX e primeira parte dosculo seguinte sofreram perseguies, foram execrados eexcomungados em ambos os lados do mundo cristo. Dolado protestante, o prottipo William Robertson Smith(1846-1894) que foi processado pela Igreja Presbiteriana daEsccia por expor a 11alta crtica" em artigo publicado na 9aJO Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, 1/. 7, n. 2, p. 27-57

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    edio da Enciclopdia Britnica. Mesmo assim, Smith usa a"alta crtica" em suas obras posteriores. Quanto ao ladocatlico, o exemplo Alfred Loisy [1857-1940) que, por causa de seu livro L'vangile et I'glise (1902), foi excomungado.Tudo, desde o comeo, por causa da Bblia.A posio crtica em relao Bblia assumida porEspinosa no sculo XVII tem sido reconhecida por vriosautores, e recentemente por ). Samuel Preus, que aponta emEspinosa as origens dos mtodos modernos de interpretao bblica.2

    2 Tratado Teolgico-PolticoToda e qualquer aproximao do pensamento de Espinosatem de levar em conta que ele pe diante de si o magnoproblema da filosofia: o infinito, o absoluto, enfim Deus.Afastando o dualismo cartesiano, Espinosa constri umpantesmo natural-racionalstico. Contudo, assume o primeiro princpio do mtodo cartesiano: nada aceitar comoverdadeiro que no se evidencie como tal. Isto trouxedificuldades para a religio de Espinosa, toda fundamentada no Antigo Testamento e no Talmude. Ficou margem dos seus familiares e amigos mais prximos, assimcomo do poder poltico representado pela ala conservadora do puritanismo.No Tratado Teolgico-Poltico esto as implicaes da tica,ento ainda no publicada. Para entender o Tratado necessrio ter em mente que Espinosa, ao se esforar por harmonizar as mutaes da realidade com a rigidez lgica de suametafsica, nega a distino entre ser e existir, pois que, paraele, essncia e existncia se identificam em Deus. Ser existir.A metafsica espinoseana assume o clssico axioma ordo ideanimest idem ac rerum, assim como o conceito de causa sui, isto ,que Deus a causa de si mesmo. A diferena entre Deus e omundo estriba-se em que Deus se concebe como razo danatureza (natura naturans) e o mundo como organizado por2 PREUS, J. Samuel. 5pinoza and the Irrelevance of Biblical Authority.

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    Deus (natura naturata). Deus e mundo so uma s coisa. Essasubstncia nica possui atributos e modos, isto , as formasde percepo dela por parte do intelecto. Os atributos soid quod intellectus de substantia percipit tanquam eius essentiamconstituens, e os modos id quod in alio est, per quod concipitur (osatributos so aquilo que o intelecto percebe da substnciaenquanto constituinte de sua essncia, e os modos aquiloque est em outro pelo qual se concebe).A substncia divina, por ser infinita, constitui-se de infi-nitos atributos dos quais s conhecemos dois: a extenso eo pensamento. Aos atributos tambm correspondem infini-tos modos. Em suma, o mundo de Espinosa um mundoconstitudo por razes de necessidades, no havendo lugarpara contingncias. Logo, no h bem nem mal, nem certonem errado, mas tudo segue rigorosamente uma ordem l-gica. Deste ponto que parte a crtica de Espinosa Bblia.Mas, em que universo histrico-poltico vive e escreveBaruch de Espinosa, particularmente o Tratado Teolgico-Poltico? Por pouco no nascido em Portugal, pois que h diver-gncias quanto ao pas do qual seus pais foram expulsos,Portugal ou Espanha, Espinosa acabou vindo luz naHolanda.Sob todos pontos de vista, diferenas enormes havia en-tre os trs pases. Apesar do poderio espanhol ainda presen-te no sculo XVI, a Holanda fervia de navios e empreendimentos comerciais. A riqueza favorecia o desenvolvimentodo esprito e das artes. A Holanda transformara-se em po-tncia mundial. Ao lado das artes, prosperara uma atmosfe-ra intelectual vibrante de controvrsias e idias, e talliberdade de pensamento que transformara a Holanda em refgiode espritos rebeldes. O prprio Descartes escreveria em al-gum lugar:

    No h um pais onde a liberdade seja mais completa,a seguranamaior, o crime mais raro e a simplicidade de costumes antigosmais perfeita do que aqui.Taine, outro francs, escreveu em sua Philosophie de 1'Art(1882) que "no h hoje em dia uma provncia que goze de

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    tanta liberdade quanto a Holanda". Universidades prsperas e sbios estrangeiros elevavam a cultura holandesa aospncaros, apesar da decadncia do latim, lngua em que escreviam, lngua j agnica; assim como do holands, queno saa dos seus limites geogrficos. Depois da Grcia clssica, mais uma vez se provava a verdade histrica de que acultura e o cultivo do esprito correm paralelos prosperidade social.Contudo, se Espinosa nasce e vive sua curta vida nesseambiente to farto de liberdade espiritual, como entender eexplicdr as dificuldades que ele teve com seus escritos, asacusaes que sofreu, assim como a excluso do seu ambiente natural, da sua prpria grei?S podemos entender o que aconteceu com o doce,mas tambm s vezes duro Baruch de Espinosa - dureza ques vezes se v no teor de algumas de suas cartas -, quando ocolocamos na perspectiva da religio. Apesar de tanta liberdade, a que se gozava na Holanda seiscentista, religio eraum caso parte. que a religio insistia em laborar com oconceito de verdade absoluta. E Espinosa no foi capaz dedobrar-se aos sistemas em que verdades eram buscadas eafirmadas com todas as conseqncias advindas. Embora naHolanda a liberdade de pensar fosse to decantada, era impossvel no haver redutos de intolerncia religiosa.Assim, aintolerncia religiosa infestava tanto a sinagoga como certasreas do puritanismo que chegara ao poder poltico.O protestantismo calvinista, triunfante nos Pases Baixos, semelhana de outros lugares na Europa, no conseguia afastar-se adequadamente do poder poltico. No casoda Holanda, particularmente o partido arminiano, que predominava, apoiava-se no Estado e, por conseqncia, notinha como no defender interna e externamente aquiloque chamaramos "discursos verdadeiros". Para JeanDelumeau, no sculo XVII alguns dos mais importantes doutores da Reforma agiam sem que se dessem conta, como osultramontan istas catlicos. De fato, "as igrejas oficiais foram3 DELUMEAU, Jean. Nascimento e Afirmao da Reforma, p. 353-355.

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    na maior parte das vezes tmidas em relao ao Estado nodecorrer dos sculos XVI e XVIl".3Por que no dizer o mesmo em relao aos judeus queencontravam na Holanda um refgio contra as perseguiesna Pennsula Ibrica e ali podiam, inseridos naquele intensoprocesso de desenvolvimento econmico, desenvolver seusnegcios sem o risco de serem pilhados periodicamente pormonarcas que dilapidavam constantemente seus prprioserrios e se valiam, para recuper-los, do saque aos bens dosjudeus expulsos de seus pases? Afinal, nada tinham a per-der ao apoiar o poder, porque sua liberdade e seguranaestavam garantidos.

    Em suma, se ho havia perseguies, banimentos ou fo-gueiras, boa dose de intolerncia religiosa era visvel. Reli-gio e poder sempre caminham juntos e se assentam emmtua concepo de verdade, cabendo religio a incumbncia de garantir, sob ameaa das penas eternas, verdadesque, secularizadas, so instrumentadas pelo poder poltico.Esse tipo de ultramontanismo medra de maneira particularnas "religies de Escrituras Sagradas inspiradas por um Deusnico".4 Neste caso, grupos de poder elegem uma leiturado texto sagrado, inerrante e plenamente inspirado, decla-ram como absolutamente verdadeira em si e, a partir da,julgam como heterodoxos os que opinam por leituras dife-rentes. Isto se d tanto na amplitude das alianas polticascomo na particularidade dos prprios grupos religiosos.Ora, na Holanda do tempo de Espinosa estefundamentalismo latente, praticado tanto pelos puritanoscomo pela sinagoga, no deixou o filsofo em paz. A reaode Espinosa a esse estado de coisas, embora constitua ainteira razo do seu Tratado Teolgico-Poltico, est presenteem toda a sua obra e implcita fortemente na tica.Como nos chama a ateno Marilena Chau5, Espinosafoge logo da linha da racionalidade cartesiana, isto , daleitura bblica em busca da verdade ou verdades e, surpreendentemente, parece seguir a exegese que vigora at hoje nos4 PIERUCCI, Antonio Flvio. Ciladas da Diferena, p. 196.5 CHAU, Marilena. Politica em Espinosa, p. 30ss.

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    crculos protestantes conservadores de erigir a Bblia comointrprete de si mesma. Neste diapaso, os pontos obscurosso entendidos a partir dos mais claros. o princpio da SolaScriptura. Contudo, a leitura bblica que Espinosa prope em(Jltima instncia aponta e prefigura, como foi dito, a moderna crtica bblica.Marilena Chau encontra visvel contradio no mtodoSola Scriptura de Espinosa, pois assinala que o filsofo s sevale dele no VII captulo ,do Tratado Teolgico-Poltico, enquanto que os seis primeiros "so o puro exerccio da razosobre as matrias religiosas".6 Concordo com essa Autora,mas no entrarei neste assunto. Minha ateno ficar adstrita questo da leitura e interpretao da Bblia conformeEspinosa a prope. Na parte final farei uma tentativa de apontar as intenes polticas de Espinosa a partir da religio.

    3 Religio e imanncia necessrio lembrar o que Espinosa entendia por Deus ereligio e a relao entre esta e o poder poltico.

    sugestivo que Espinosa lIse como epgrafe do TratadoTeolgico-Poltico o texto bblico que aparece na la. Epstolade Joo, capo 4/ V. 13:Per hoc cognoscimus quod in Deo manemus, et Deus manet innobis, quod de Spiritu suo dedit nobis.?

    Est evidente aqui que o Tratado Teolgico-Poltico seguiaa rota e inspirao da tica, a esta altura j quase pronta.Espinosa ultrapassava os limites do transcendentalismo jconsagrado na religio, em favor de um imanentismo cujasconseqncias teolgicas levariam Espinosa execrao.Espinosa comea o Tratado afirmando que a religio sealimenta do medo e da superstio, o que significa que ascertezas, o conhecimento, tornariam desnecessria a religio.Do mesmo modo, quando os homens esto bem, quando67

    Ibid."Nisto reconhecemos que permanecemos nele e ele em ns: ele nos deu o seuEsprito" [Traduo da Biblia de Jerusalm).

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    todas as coisas esto certas, os homens abandonam os sacerdotes e adivinhos e nem mais ouvem conselhos. Cita o exemplo de Alexandre, que temeroso s portas de Susa, invocaadivinhos; por sua vez, to logo vencido Dario abandona-os.Para Espinosa, a religio assim concebida tem logo umalarga conseqncia poltica ao comparar a conduta dos homens numa monarquia e numa repblica. Na monarquia,um homem visto como um deus, um protetor poderosode todas as desgraas e, por ilao, deve-se combater, derramar o sangue por ele, uma vez que ele o salvador. Oendeusamento do rei sustentado pela religio na qual ossditos so contidos. Em uma repblica livre, ao contrrio, inconcebvel conter ou sufocar com preconceitos a liberdade dos homens, o seu livre discernimento.Mas ento, pergunta Espinosa, porque h perseguiespor motivo de religio mesmo em governos republicanos?Responde: simplesmente porque idias originadas de puraespeculao transformam-se em leis mediante as quais asopinies divergentes so consideradas crime e, por isso, condenadas. J nos tempos de Espinosa os "acordos silenciosos"sacrificavam os defensores das idias no alinhadas, no emfavor do bem pblico, mas "apenas ao dio e crueldadedos adversrios".8Espinosa segue dando graas a Deus por viver numarepblica e, por isso, como todos, ter a liberdade de pensar ehonrar a Deus da maneira que quisesse. Aduz que a piedade, isto , a vida religiosa, deve caminhar lado a lado e semconflitos com a vida social. Esta era a fundamental inquietao de Espinosa: como viver em paz a f religiosa, como serlivre para entender Deus sob o ngulo mais desejvel e favorvel a cada um sem que algum se arrogue o direito dedizer, com prepotncia, o que Deus e como deve ser venerado. Essa a razo, diz Espinosa, de ter escrito o Tratado.O filsofo mostra-se espantado por ver cotidianamentecristos, que deveriam viver em amor, alegria e paz, mostrarem-se, no convvio, mais pelo dio do que por aquelessentimentos. Paradoxalmente, os terrveis conflitos entre pes8 ESPINOSA, Baruch de. Tratado Teolgico-Poltico, p. 8.

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juz de Fora, v. 7, n. 2, p. 2 7 ~ S 7

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    soas e grupos parecem identificar os cristos, e no aquelasqualidades que dizem possuir e defender. Em resumo, o queEspinosa queria dizer que o que caracteriza os cristos mais o dio do que o amor. Parece que sim, tal o assombrode Espinosa diante do que via e sentia, s vezes em suaprpria carne.O Tratado Teolgico-Poltico um libelo contra toda opresso de pensamento, contra tudo o que representa poder emnome da religio. No sem razo, o Tratado foi proibido porum edito do Estado holands, em 1674, por ser consideradocontrrio religio do Estado. O Estado holands expunha,desse modo, aquela caracterstica to prpria de que, quando o Estado elege uma religio, elege com ela uma "verdade"que, por sua vez, originada de um grupo, torna-se verdadepara todos. Em sntese, o Estado seculariza dogmas religiosos transformando-os em leis.Espinosa diz, enfim, no ser mais possvel distinguir cristos do turco, judeu ou pago, a no ser pela roupa queusam. Viviam todos da mesma maneira. Se era assim, porque ento se confessavam ser desta ou daquela religio se nose distinguiam uns dos outros pela forma de conduzir a vida ede se relacionarem uns com os outros? Conclui que os interesses eclesisticos, isto , cargos e poder politico, eram os principais incentivos para a pertena a esta ou quela religio.A religio deixou, diz Espinosa, de ser o amor a Deusque algo interno, da conscincia, para ser uma prticaexterna alimentada por crendices e preconceitos, coisas inventadas para obscurecer "a luz da razo e a capacidadepara distinguir o verdadeiro do falso".9 Os que se dizempossuidores da luz divina para conhecer a Deus, abominando a razo e o entendimento, enchem a religio de mistriosabsurdos a fim de submeter os incautos ao seu poder.Investe Espinosa contra os intrpretes da Escritura que,para ele, apesar de se referirem sempre aos profundos mistrios do texto sagrado, nada mais fazem do que repetir asespeculaes dos aristotlicos e dos platnicos - parece aquique Espinosa se refere s duas grandes linhas teolgicas que9 ESPI NOSA, Baruch de. Tratado Teolgico-Poltico, p. 11.

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, JUIZ de Fora, v. 7, n. 2, p. 27-57

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    emergiam da Idade Mdia, isto , o agostInIanismo e otomismo - e a forar os profetas a delirar como os gregos.Neste momento, alm de irem Escritu ra cheios de pressupostos de autoridades anteriores de interpretao, submetem-se ao axioma bsico de que a Escritura sempre verdadeira e divina, coisa que s deveriam admitir aps examerigoroso. Erro crasso de interpretao cientfica que colocauma verdade antes da verificao, em que esta s serve paracomprovar aquela. O que impressiona em Espinosa a suacondenao precoce a todo fundamentalismo, antes mesmoque se falasse nele.Espinosa chega concluso que os "os documentoshumanos passam por documentos divinos, e a crendice porf, e que as controvrsias dos filsofos desencadeiam naIgreja e no Estado as mais vis paixes, originando diosviolentos que os levam a sublevaes"}OEsse o panorama que leva Espinosa a escrever o Trata-do. Diz ele:"(...) fiquei seriamente decidido a empreender umexame da Escritura, novo e inteiramente livre, recusando-mea afirmar ou a admitir como sua doutrina, tudo o que delano ressalte com toda a c1areza".1I Cartesianamente, em quepesem suas crticas a Descartes, Espinosa estabelece seu mtodo de estudo da Escritura, ou melhor, um mtodo parainterpret-Ia. De posse desse mtodo, diz Espinosa, fez a simesmo as seguintes perguntas: o que a profecia, como serevelou Deus aos profetas, por que foram eles esco.lhidos, seo foram por seus pensamentos sublimes acerca da naturezaou de Deus, ou em virtude apenas da sua piedade.Aqui comea a crtica de Espinosa Escritura; porquanto,ao responder a estas questes, decidiu-se pela relatividade damesma porque "facilmente concluiu que a autoridade dos profetas s tem algu m peso no que diz respeito vida prtica e verdadeira virtude. A relativizao da Escritura aparece comnitidez: "Quanto ao resto, pouco nos interessam suas opinies". Em decorrncia dessa constatao, passa Espinosa a fazer

    10 ESPINOSA, Baruch de. Tratado Teolgico-Poltico, p. \0-11." ESPINOSA, Baruch de. Tratado Teolgico-Pofitico, p. 11.

    Numen: revsta de estudos e pesquisa da relgio, Juiz de Fora, v. 7, n. 2, p. 27-57

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    outras perguntas, cujas respostas iriam condicionar a maneirade fazer e responder outras indagaes a respeito da Escritura.A primeira pergunta foi: por que motivo os hebreus sedesignaram "eleitos de Deus?"Espinosa conclui que isto apenassignifica que Deus escolheu para eles uma certa regio domundo onde pudessem viver em segurana, logo as leis deDeus dadas a Moiss no eram mais do que o direito particular do Estado hebraico e, por isso, nada temos a ver comelas, e isso enquanto durasse o referido Estado.Outra pergunta que Espinosa faz e responde se possvel concluir da Escritura que o entendimento humanoest por natureza corrompido; e, se assim for, se a lei divinarevelada a todo ser humano seria discrepante com relao que a luz natural tambm ensina. Faz a mesma perguntaquanto aos milagres, isto , se eles acontecem ao arrepio daordem natural e "provam a existncia e a providncia deDeus de maneira mais clara do que as coisas que entendemos clara e distintamente pelas suas causas primeiras".'2 Emsuma, o que estava em jogo para Espinosa era se Deus, aomesmo tempo em que organizava o mundo segundo suasprprias leis, as desautorava quando quisesse.

    Espinosa afirma que no encontrara na Escritura nadaque fosse contra o entendimento e que os profetas ensinaram coisas simples e acessveis a todos. Conclui que a Escritura est livre para a razo e que todo conhecimento sobreela deve ser extrado dela mesma.Passemos, agora, a outra postura de Espinosa a respeitoda Bblia que nos parece muito atual. Refere-se aos preconceitos vulgares a respeito dela. Ele diz que esses preconceitosresultam de supersties e relquias do passado que levam ovulgo a adorar os livros da Bblia em lugar de Jesus Cristo, oVerbo de Deus. O Verbo de Deus revelado no consiste, nose esvai em determinado nmero de livros, mas em "obedecer inteiramente a Deus praticando a justia e o amor". ParaEspinosa, a Escritura se resume nisto, e foi isso que os profetas e os apstolos pregaram.Assim caminha Espinosa para uma concluso que trazconsigo forte implicao religiosa e poltica. Para ele, o co12 ESPINOSA, Baruch de. Tratado Teolgico-Poltico, p. 11.

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora] v. 7, n. 2] p. 27-57

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    nhecimento revelado completamente diferente do conhecimento natural. Cada qual ocupa seu lugar sem prejuzo dooutro e sem subordinao de qualquer natureza. Isto significa, acima de tudo, a plena separao de poderes. Um poderrevelado, religioso, e outro humano e natural.O conhecimento revelado consiste em obedecer a Deuspela vontade livre e dar valor apenas justia e ao amor. Alei divina revelada traz consigo a inteira liberdade, princpioj defendido por Lutero mais de um sculo antes. SalientaEspinosa, porm, que essa liberdade deve ser concedida semprejuzo para a paz social e o direito das autoridades soberanas.lsto significa, ento, que no se trata do direito de qualquer um fazer o que quer, mas de ser livre nos parmetrosdo conhecimento revelado e da obedincia a Deus. Significaainda que cada um responsvel pela sua liberdade e notem a obrigao de viver segundo os parmetros de outrem.Ainda, como afirma Espinosa no captulo XVI do Tratado, s verdadeiramente livre quem age sem reservas nos limitesda razo e, por isso, s faz o que lhe til, o que quer dizersimplesmente a escolha entre um bem maior e um menor,ou entre um mal menor e um maior.O que nos chama a ateno neste ponto o paralelismo,ou a no-contradio, entre a lei natural e a lei divina revelada, ambas sujeitas instrumentalidade da razoi nesta, a leitura racional da Escritura, naquela a razo limitadora dodesejo e da potncia do indivduo.Neste ponto que Espinosa justifica o Estado, alis maisou menos na linha vigente em sua poca a respeito docontrato social. Diz ele, no mesmo captulo XVI do Tratado,que todo indivduo deve transferir para a sociedade toda asua prpria potncia de forma que s aquela detenha, sobretudo e todos, o supremo direito de natureza, isto , a soberania suprema, qual todos tero de obedecer, ou livrementeou por receio da pena capital,13Mas, argumenta Espinosa, levado o indivduo a essa abdicao total do seu poder de exerccio da prpria Iiberda13 ESPINOSA, Baruch de. Tratado Teolgico-Poltico, p. 239-240.

    40 Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 7, n. 2, p. 27-57

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    de, ir-se-ia o seu direito natural e ele se tornaria escravo davontade soberana do Estado. Por isso, a repl:lblica livre seraquela "cujas leis se fundamentam na razo, porque a, cadaum, sempre que quiser, pode ser livre, isto , viver inteiramente de acordo com a razo".14Se o controle do direito natural pela razo essencialpara a existncia do Estado, o que dizer da relao entre essedireito e a revelao, ou melhor, o direito divino revelado?Se o Estado posterior ao direito natural, a religio tambmo . "O estado de natureza no deve de maneira algumaconfundir-se com o estado de religio".'s Neste ponto,Espinosa apia-se na autoridade do Apstolo Paulo lembrando que ao estado de natureza correspondem o pecadoe a injria:

    No mintais uns aos outros, uma vez que vos despistes do velhohomem com seus feitos (Colossenses 3.9).Como o estado de natureza , pela razo, limitado peloEstado, o tambm pelo estado de religio e ambos porpactos celebrados entre as partes, porque Deus tambm ce

    lebrou um contrato com os homens. Espinosa chama-nos aateno para o fato de que os pactos no surgem s emrazo da ignorncia, mas particularmente por causa da liberdade com que nascem todos os seres.Ento, at este ponto, vemos que os homens esto sujeitos a dois contratos, um com o Estado, representado porseu soberano, e outro com Deus, representado pela religio.Duas instituies governando os mesmos sditos e, comoconseq ncia, conflitos e insu bord inaes. Espinosa discorre longamente sobre esta questo no Tratado Poltico, publicado, em forma inacabada, um ano aps sua morte. Nesteponto ser necessrio recorrer tica, tambm pstuma, masque, ao tempo da redao do Tratado Teolgico-Poltico, estavaadiantada, como j foi dito.No Tratado Teolgico-Poltico Espinosa volta a tratar a religio como produto do medo e da esperana, sentimentos14 ESPINOSA, Baruch de. Tratado Teolgico-Poltico, p. 241.15 ESPINOSA, Baruch de. Tratado Teolgico-Poltico, p. 246-47.

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 7, n. 2, p. 27-57 41

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    humanos que facilitam o domnio do Estado sobre as pes-soas em prejuzo de sua liberdade. O Estado, que freqentemente se confunde com a religio, usa aqueles sentimentoshumanos a fim de exercer sobre as pessoas um domnioparcial ou mesmo total. Esse tipo de dominao decorre dotipo de teologia desenvolvido pelo cristianismo a partir dadoutrina da transcendncia aliada ao neoplatonismo doPseudo Dionsio Aeropagita '6 e causalidade ema nativa, nosomente dele, mas de Plotino e outros.A causalidade emanativa postulou a teologia poltica deforma hierrquica a partir do princpio de que o poder uma ddiva divina e emana diretamente de Deus, passandopelos anjos, tambm hierarquizados. a hierarquia celeste.Quanto ao poder terreno, o governante o recebe tambmde Deus e dele emanam, em seqncia, os poderes que che-gam ao ltimo degrau onde no h poder algumP Este odireito natural objetivo em que o lugar de todos os seres nouniverso decorre da mente de Deus. Essa hierarquia, sendodivina, absoluta. Todo o pensamento e a organizao s-cio-poltica medievais se fundam nesse princpio.Mais tarde, nas lutas da Reforma, os reformadores seviram em dificuldades diante de magistrados superiores ti-ranos que ameaavam o sucesso da prpria Reforma. Afir-mando ser a Bblia a ltima instncia em questes de f eprtica, no tinham como no obedecer ao que Paulo haviadito aos romanos:

    Todo homem se submeta s autoridades constitudas, pois no hautoridade que no venha de Deus, e as que existem foramestabelecidas por Deus (Romanos 13.1).Hierarquia de poderes calcada na Bblia, eis o grandedilema da crescente e permanente confuso entre o direitonatural revelado, ou divino, e o direito natural humano. Emsuma, mistura entre religio e estado em que este, com o

    16 Pseudo Dionsio Aeropagita escreveu quatro livros e dez epstolas. Dois de seus livrostratam da hierarquia celestial e da eclesistica e datam de fins do sculo V ou princ-pios do VI.17 CHAU, Marilena. Poltica em Espinosa, p. 87.

    42 Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 7, n. 2, p. 27-57

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    instrumento da superstio e do medo, domina os sLlditos,sonegando deles a liberdade.H outras formulaes hierrquicas que no cabem noespao deste trabalho, mas em todas, como afirma MarilenaChau "prevalece uma mesma concepo de Deus sem a quala poltica no consegue ser pensada".'8 Para Espinosa, omodelo de todas essas concepes a teocracia hebraica.Dotado de intelecto e vontade, Deus pessoa e sujeitodo direito, proprietrio do mundo. rei. Completa MarilenaChau : "O Estado, encarnado no governante, persona mystica,e a poltica teocrtica. Mesmo que se elimine a mystica,permanece a persona que, por definio jurdica entendidacomo proprietria legtima do imperium, do dominium e dopatrimonium". 19Esse verticalismo do Estado patrimonial ainda presentede uma maneira ou de outra, mesmo naqueles consideradosos mais distributivos no sentido do poder, volta a ser estudado em nossos dias, estando em jogo a tese de que asinstituies politicas continuam sendo na essncia religiosas, embora na linguagem estejam secularizadas. Os exemplos contemporneos mostram que repblicas patrimonialistas se aproximam muito dos estados teocrticos. Decisese atos de presidentes, de grande alcance, s vezes internacionais, so tomadas e executadas em nome de Deus e do combate ao mal.Voltando ao Tratado Teolgico-Poltico, vemos que Espinosavai criticar todo o sistema teocrtico que, a partir da autoridade supostamente divina concedida aos governantes, comete toda sorte de injustias sempre com base nas leiturasadrede preparadas pelos telogos e na subservincia medrosa do vulgo. Essa crtica parte da leitura bblica que ele vaipropor.O esquema do Tratado Teolgico-Poltico abrangente:comea com um estudo sobre os profetas e a profecia, passapor um longo trabalho de crtica interna da Bblia, isto ,dos livros que a compem; pelos fundamentos do Estado e18 CHAu, Marilena. Poltica em Espnosa, p. 88.19 CHAU, Marilena. Poltica em Espinosa, p. 89.

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, juiz de Fora, v. 7, n. 2, p. 27-57 43

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    das instituies hebraicas; e conclui com uma proposta paraum Estado livre.Vamos acompanhar o roteiro de Espinosa, fazendo opossvel para resumir a minuciosa e intricada linguagem dofilsofo.

    4 Profecias e profetasEspinosa comea o primeiro captulo do Tratado TeolgicoPoltico por definir profecia. "Profecia ou Revelao o conhecimento certo de alguma coisa revelada por Deus aoshomens. O profeta, portanto, o que interpreta as coisasque Deus revela para aqueles que delas no podem ter umconhecimento certo e que, por isso, s pela f as podemperfilhar".20 Em suma, o profeta o intrprete de Deus, eprofecia a revelao de Deus atravs do intrprete.Na realidade, Espinosa reserva o captulo primeiro profecia. No segundo que ele vai tratar do profeta. Vemosnisso a prioridade da profecia, ou da revelao, em relaoao profeta. A profecia Deus falando; o profeta to-somente um intrprete.Espinosa afirma, desde logo, que a profecia no passa deconhecimento natural, embora as pessoas comuns (o vulgo,como diz ele) sempre desejem ver nelas coisas misteriosas eextraordinrias. Afinal, os profetas no tinham nenhumamente divina, eram homens como ns. Podemos compreender o que eles dizem no mesmo grau de certeza que elestm, isto , no apenas pela f. Mas h tambm coisas queultrapassam os limites do conhecimento natural, e tudo quese refere a isto deve ser procurado exclusivamente na Escritura.Assim, profecia aquela revelao de Deus interpretadapelo profeta e que excede os limites do conhecimento natural. Como no temos mais profetas restam-nos, portanto, aspginas sagradas das Escrituras, diz Espinosa. Contudo, devemos nos precaver quanto a certas coisas que na Bblia no20 ESPINOSA, Baruch de. Tratado Teolgico-Po/tico, p. 15.

    44 Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 7, n. 2, p. 27-57

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    so profecias, embora ela diga que Deus falou. Isso decorredo hbito judaico de tudo atribuir a Deus, de abolirintermediaes de qualquer natureza. Insiste Espinosa emafirmar que profecia deve ser vista como tal onde as Escrituras afirmam expressamente que se trata de revelao de Deus,ou o contedo da narrativa o torna evidente, como a prpria voz de Deus dirigida a Moiss como, por exemplo, emExodo 25.22:Ali, virei a ti e, de cima do propiciatrio, do meio dos doisquerubins que esto sobre a arca do Testemunho, falarei contigoacerca de tudo o que eu te ordenar para os filhos de Israel.

    Espinosa chama a ateno para os enganos quanto verdadeira profecia, como em I Samuel 3, quando Samuelconfunde a voz de Deus com a de Eli, que ele conhecia bem.A voz que Samuel ouviu era imaginria. O mesmo aconteceu com a voz que Abimeleque ouviu, como em Gnesis20.6:Respondeu-lhe Deus em sonho: Bem sei que com sinceridade decorao fizeste isso; da o ter impedido eu de pecares contra mime no te permiti que a tocasses.

    Samuel imaginou e Abimeleque sonhou. Deus tambmse revelou aos homens por imagens, e Espinosa cita, entreoutros exemplos, o episdio da viso de Isaas no templo(Isaas 6.1-8), viso que mostra a misria poltica e moral emque Israel se encontrava.Na parte final do captulo Espinosa desenvolve, de maneira mais extensa, o que podemos chamar de revelaopelo Esprito. Toma como exemplo principal Cristo, a quema revelao foi dada sem mediao, quer dizer, imediatamente, sem palavras, sonhos ou vises. Diz Espinosa no ter lidoem parte alguma que Deus apareceu a Cristo, ou que lhefalou, "mas sim que ele, Deus, foi revelado por Cristo aosapstolos".Espinosa declara que no pretende negar o que as igrejas ensinam sobre Cristo, o que, alis, confessa no entender.Para ele, a nica coisa que sobre isso viu na Escritura que

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    a sabedoria divina, que superior do homem, assumiu emCristo a natureza humana fazendo dele o caminho para asalvao. Neste ponto Espinosa sela a negativa de Cristocomo Deus salvador, vez que por uma faculdade superior,Cristo, sem intermediaes, foi mera ponte entre o homem eDeus para a salvao.As ltimas pginas do captulo primeiro do Tratado sodedicadas por Espinosa explicao dos sentidos que naEscritura se podem atribuir ao conceito de Esprito de Deus.Espinosa apresenta aprofundada exegese da palavra hebraicaruah, geral e superficialmente, diz ele, traduzida por alma ouesprito. Ruah foi posteriormente traduzida em grego porpneuma, como o princpio do homem raconal e da vidaimortal, e possui razo, vontade e conscincia. necessriodizer que Espinosa nem menciona a vulgar traduo de ruahpor alma, que, em hebraico, nephesh.Seria exaustivo, e talvez fora de propsito, alongarmonos aqui na exegese que Espinosa faz, acompanhada de numerosos exemplos da prpria Bblia,da palavra ruah, traduzidapor Esprito de Deus. Basta-nos, para o propsito deste trabalho, registrar que na parte final Espinosa conclui que,embora no de maneira exclusiva, ruah pode ser traduzidapor "mente divina revelada na lei, quer dizer, por aquilo deque o profeta, conforme j estava determinado na Lei osveio advertir", conforme Levtico 19.17.21 Entende-se que aLei, na medida em que exprimia a mente de Deus, era designada por mente ou Esprito de Deus, e que os profetas, pelassuas qualidades, eram capazes de perceb-Ia e, por conseqncia, a inteno de Deus.

    A concluso de Espinosa a respeito da profecia nos surpreende ainda hoje, sendo fcil imaginarmos o que teriaacontecido com ele prprio se no morasse na Holanda.Conclui o filsofo que a profecia no passava de produto daimaginao dos profetas mediante palavras ou imagens queeram, ora reais, ora imaginrias. Pelos seus dotes, o entendimento dos profetas era superior aos limites do senso comum e, por isso,eram vistos como intrpretes de Deus. Como21 ESPINOSA, Baruch de. Tratado Teolgico-Politico, p. 29.

    46 Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora! v. 7, n. 2, p. 27-57

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    conseqncia, a profecia era aceita como lei de Deus, alis,uma das possveis tradues da palavra ruah.No h como no admitir, em Espinosa, que a profeciano passava de imaginao. Mas por que, ento, falavam osprofetas com tanta convico?No captulo 11 do Tratado principia, de novo de maneirasurpreendente, por definir o profeta de acordo com o sensocomum: o profeta aquele que, tendo em menor grau acapacidade para entender as coisas de maneira puramenteintelectual tem, em contrapartida, uma imaginao mais frtil e vigorosa. Essa a regra: capacidade de entender e imaginao funcionam na razo inversa uma da outra. Grandeshomens da cincia, e Espinosa cita alguns do seu tempo,no foram profetas, ao passo que homens rsticos e at"mulherzinhas" (sic) como Agar, serva de Abrao, tiveram odom proftico.Continua Espinosa no mesmo tom: "Esto, portanto, nocaminho errado os que procuram a sabedoria e o conhecimento, quer das coisas naturais quer das espirituais, noslivros dos profetas".22Tal desqualificao da profecia e dos profetas nas Escrituras nos exime de ir muito adiante; nesta parte Espinosa seprope a tratar somente do problema da certeza nos profetas. Por que tinham eles certeza do que proclamavam?Ora, a certeza no se firma em nenhuma forma de imaginao. Nem mesmo os prprios profetas se fiavam na revelao pela prpria revelao, mas buscavam confirm-lapedindo um sinal, uma identificao do prprio Deus.Espinosa d vrios exemplos da prpria Escritura, como apromessa feita a Abrao de que seria possuidor da terra(Gnesis 15.8-18) e a Gedeo que queria ter a segurana deque era Deus quem falava com ele (Juzes 6.17); O problema,como deixa claro Espinosa, no era o contedo da revelao, mas a procedncia divina que lhe dava certeza e validade. Como o profeta no podia ver a Deus, pedia-lhe um sinalextraordinrio.22 ESPINOSA, Baruch de. Tratado Teolgico--Poltco, p. 30.

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    Com ousadia Espinosa conclui: a profecia inferior aoconhecimento natural, que no precisa de nenhum sinal.Sua prpria natureza j implica em certeza. Ainda, as profe-cias so freqentemente discrepantes entre si, pois dependem da ndole de cada profeta e de suas condies intelectuais e histricas. Critica os rabinos, que pretendiam querepresentaes distintas fossem absolutamente idnticas.Concluindo, a relativizao da profecia e do profeta levaEspinosa a afirmar que a profecia no estabelece certezas,mas to-somente uma validez moral, portanto, normativa.

    5 Os milagresEntre os captulos que Espinosa dedica profecia e aos pro-fetas e a extensa parte reservada crtica bblica, o filsofointercala um espao para cuidar dos milagres.Espinosa, como de hbito, comea por definir milagre:"uma obra cuja causa o vulgo desconhece os homens cos-tumam chamar divina ou de Deus"Y Ainda, por ilao, todos aqueles que querem explicar o inslito por causas naturais so ateus ou, ao menos, negam a Providncia.Espinosa argumenta que a inveno dos milagres vemdos primeiros judeus, que queriam, com isso, mostrar aosvizinhos inimigos e belicosos a superioridade do seu prprio Deus, cuja funo era exclusivamente a de proteg-loscontra eles, crentes em deuses fracos e inconstantes.Da pretensa exclusividade dos judeus, Espinosa passa acriticar os modernos - os cristos, sem dvida - que, gos-tando muito do que leram na Bblia, passaram a inventarmilagres"para fazer crer que Deus os ama a eles mais do queaos outros e que so a causa final que levou Deus a criar e areger continuamente todas as coisas".24O que, em suma, diz Espinosa a propsito dos milagresnarrados na Bblia? Aps afirmar que as coisas no soexplicadas na Bblia pelas suas causas prximas, "descreve-aspela ordem e com as frases mais adequadas para incentivar23 ESPINOSA, Baruch de. Tratado Teolgico-Poltico, p. 81.24 ESPINOSA, Baruch de. Tratado Teolgico-Poltico, p. 82.

    48 Numen: revista de estudos e pesquisa da religio} Juiz de Fora} v. 71 n. 21 p. 27-57

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    os homens, principalmente o vulgo, devoo. Por essemotivo, ela fala com bastante impropriedade de Deus e dascoisas, uma vez que no pretende convencer a razo, masimpressionar e ocupar a fantasia e a imaginao dos homens".256 Da interpretao das Escrituras

    Dissemos no incio alguma coisa sobre o mtodo queEspinosa prope para a leitura das Escrituras. Porm, vale apena firmar mais alguns pontos a partir do que Espinosadiz a esse respeito.Espinosa aponta para uma questo bsica: "A Escriturano d definies das coisas de que fala, da mesma formaque a natureza as no d. Por isso, tal como temos de concluir as definies das coisas naturais a partir das diversasaes da natureza, assim tambm necessrio extra-Ias dasdiversas narraes que a Escritura apresenta de cada fato."uEstabelece, ento, Espinosa, a regra universal a ser seguida nas interpretaes da Bblia: "no lhe atribuir outrosensinamentos alm dos que tenhamos claramente conclu

    do pela sua histria". As regras que ele prope so nitidamente cartesianas. Em resumo:A.lncluir a natureza e as propriedades da lngua em que foramescritos os livros da Escritura e na qual seus autores falavam habitualmente;B.Coligir as opinies contidas em cada livro e reduzi-las aos pontos principais,de forma que se encontrem todas as que se referemao mesmo assunto;C. Registrar todas as que so ambguas ou obscuras ou que parecem contradizer-se;D. Descrever os pormenores de todos os livros dos profetas, a vida,os costumes e a lngua em que escreveram.

    o captulo que trata da Interpretao da Escritura umdos mais difceis do Tratado Teolgico-Poltico, principalmentepara os que so pouco versados em lingstica e na lngua,25 ESPINOSA, Baruch de. Tratado Teolgico-Poltico, p. 107.26 ESPINOSA, Baruch de. Tratado Teolgico-Poltico, p. 100.

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Jujz de Fora, v. 7, n. 2, p. 27-57

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    ou Inguas, em que ela foi escrita. Mas, o que neste casoparece suficiente para entender Espinosa levar em conta aregra geral que ele estabelece, assim como as regras de corre-lao e anlise que ele prope.7 Variante da crtica interna da Escritura

    Espinosa inicia o captulo VIII do Tratado dizendo que a histria da interpretao da Escritura havia, ao longo do tempo/ se perdido. O que restava era um amontoado de preconceitos e erros dos quais os homens no abrem mo, agarran-do-se neles como se fossem a prpria religio.O filsofo diz de modo claro que seu intuito era "corri-gir e denunciar os habituais preconceitos da teologia"YComea por criticar os preconceitos a respeito dos autoresdos livros sagrados, tendo como ponto de partida oPentateuco. Contra o preconceito geral de que Moiss foiseu autor, Espinosa comea por citar Abrao Aben Esdra(l092-1l67?), considerado o primeiro comentador que, natradio judaica, levanta problemas em relao autoriamosaica do Pentateuco. A crtica extensa, mas suficientedestacar dois exemplos.Em Deuteronmio 31.9 l-se: "Esta lei escreveu-a Moiss",o que d a idia de que outro autor, e no o prprio Moissest escrevendo. Outro exem pio est em Gnesis 12.6/ emque se afirma: "nesse tempo os cananeus habitavam essaterra" ao descrever-se as andanas de Abrao por Cana.Exclui-se, assim, o tempo em que o autor escrevia, devendoter sido escrito aps a morte de Moiss. A concluso deEspinosa, aps vrias outras provas/ que o Pentateuco nofoi escrito por Moiss, mas por outro autor que viveu muitos sculos aps ele. Por razes semelhantes, nega tambmque o livro de Josu foi escrito pelo prprio. Em vriostrechos o autor do livro escreve na terceira pessoa, inclusivenarrando, no ltimo captulo, a morte do prprio ]osu.Usando o mesmo critrio do tempo em que os livros

    27 ESPINOSA, Baruch de. Tratado Teolgico-Poltico, p. 139.

    o Numerr. revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 7, n. 2, p. 2 7 ~ S 7

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    foram escritos, Espinosa vai questionando as autorias deJuzes, Samuel, Reis e outros. Ao final, Espinosa acaba aceitando a hiptese de que Esdras 2B teria sido o autor, ou simplesmente o coletor das histrias narradas nesses livros,embora no seja responsvel pelas revises finais.Judeu, vivendo num estado cristo, Espinosa no deixou de lado a oportunidade de lanar sua viso crtica aoNovo Testamento, o que faz no captulo XI do Tratado.Espinosa afirma que os apstolos foram profetas e aplica noestudo deles os mesmos princpios usados quanto aos doAntigo Testamento. Como as verdadeiras revelaes nos profetas eram bastante raras pode-se, diz Espinosa, questionarse todas as epstolas dos apstolos so revelaes ou sosimplesmente cartas particulares ou doutorais. A pergunta: nas epstolas os apstolos profetizam ou ensinam?O ponto de partida de Espinosa na crtica do NovoTestamento, no que se refere aos escritos dos apstolos, estexatamente em Paulo quando este distingue duas maneirasde pregar, uma pela revelao e outra pelo conhecimento na.Corntios t4.6).

    Agora (...) se eu for ter convosco falando em outras lnguas,emque vos aproveitarei,se vos no falar por meio de revelao,oude cincia,ou de profecia, ou de doutrina?Nas epstolas, com freqncia os apstolos declaram quefalam por si mesmos, como em ta Corntios 7.40, quandoPaulo diz que, segundo sua opinio, as vivas deviam permanecer vivas. Ainda, no mesmo captulo dessa epstola (v.6), Paulo fala que se expressa segundo suas fracas capacidades e no por "mandato".Embora Espinosa se firme em Paulo para exemplificar oque sustenta, chama-nos tambm a ateno para conflitosde idias entre os apstolos, como o caso de Tiago, queensina a salvao pelas obras e no apenas pela f. Tiago noleva em conta o que Paulo ensinava em extensas cartas, aoresumir toda a doutrina religiosa numa carta de poucas pginas. Diz Tiago:

    2B Sacerdote, escriba e perito na lei de Moiss. Forma grega de Ezra, usada na Septuaginta.

    Numen: revsta de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 7, n. 2} p. 27-57

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    Estais vendo que o homem justificado pelas obras e no simplesmente pela f (Tiago 2.24). por essa razo que Lutero recusa-se a aceitar a Epstola

    de Tiago como apostlica, pois que colide frontalmente como princpio da Reforma, da salvao somente pela f.Em concluso, como Espinosa demonstra, no possvel afirmar que toda a Escritura inspirada e in totum Palavrade Deus.8 O que, afinal, a Escritura ensina?

    o extenso ttulo do captulo XIII do Tratado resume o queEspinosa diz sobre a Escritura:Onde se mostra que a Escritura s ensina coisas muito simples eno tem por objetivo seno a obedincia; mesmo da natureza deDeus, ela no ensina seno aquilo que os homens podem imitaratravs de uma regra de vida.

    o enunciado pe em relevo o que Espinosa dissera sobre os profetas: tinham capacidade de imaginar, mas no decompreender, e que Deus no lhes revelou nenhuma complicao filosfica, mas coisas extremamente simples. Qualquer um, mesmo o mais rude, pode entender a Escritura. surpreendente, mais LIma vez, como Espinosa usa alinguagem da Reforma de um sculo antes: a Bblia nas mosdo povo, o direito de livre exame. Espinosa tentava lembraraos telogos puritanos da Holanda o quanto eles mesmos,ao trabalhar com preconceitos e instrumentos artificiais, haviam afastado a Bblia do povo, usando-a, ao contrrio, comomeio de opresso e dominao. A Escritura se transformaraem ideologia para uns e em repositrio de supersties paraoutros. Diz textualmente Espinosa:Enxergam na Escritura mistrios to profundos que se torna impossvel explic-los em qualquer lngua humana e,aJm disso,introduziram na religio tantos materiais de especulao filosfica que aIgreja at parece uma academia e a religio uma cincia.29

    29 ESPINOSA, Baruch de. Tratado Teolgico-Poltico, p. 208.

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora] v. 7, n. 2, p. 27-57

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    9 As instituies hebraicas e a poltica modernaNeste ponto, Espinosa assume a tese da influncia direta,particularmente traduzida pelo cristianismo, da configurao do estado judaico no mundo ocidental a partir da Idade Mdia. Espinosa, ao tratar das instituies hebraicas, chama-nos a ateno para alguns perodos da histria dessepovo a partir do momento em que se instala o governoteocrtico tendo Moiss como soberano e com autoridadepara, em nome de Deus, instituir e revogar leis.O perodo seguinte, o dos reis, caracterizou-se pelausurpao de poder por parte destes - e isso acima das leisde Moiss - ao decretarem todos os dias coisas novas. Degenerou-se a religio corrompendo-se o sentido e a interpretao das leis.A Escritura foi adaptada aos costumes inquos. Ospontfices no mais olhavam para Deus, mas para seus cargos.A esta altura da monarquia hebraica, os profetas, comsuas crticas e admoestaes, incomodavam os reis. Muitosdeles foram castigados ou mortos. Grande parte deles, porm/ curvou-se diante dos pontfices. Espinosa chama a ateno para a dialtica reino/ povo/ pois que a manuteno dalei e dos costumes s existia enquanto o povo mantinhasua liberdade e poder, o que se corrompia quando isso passava para as mos dos pontfices.Diante da anlise que faz da histria do povo hebreu,Espinosa aponta para quatro grandes perigos decorrentesdas relaes promscuas entre religio e Estado. Espinosaassim enumera esses perigos:

    1. pernicioso, tanto para a religio como para o Estado,conceder aos ministros do culto o direito de decretarem oque quer que seja, ou se imiscurem em assuntos polticos.Esses personagens devem limitar-se sua atividade, quer dizer/ o ensino do que tradicionalmente aceito e consagradopelo costume. Devem dar opinies s quando forem interrogados.2. u perigoso remeter questes de ordem puramenteespeculativa para o direito divino e buscar as leis em opini-

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    es sobre as quais os homens costumam ou, pelo menos,podem discutir".30 Acabam as opinies dos doutores tendomais peso do que as dos reis e, em nome delas, como sefossem leis ou verdades, se estabelecem conflitos e desordens. mais seguro para o Estado considerar como piedadee culto religioso somente o que externo, isto , as aes, oque significa justia e caridade (amor). Outras questes ficam por conta da liberdade de cada um. .3. Dada a incapacidade que os homens tm - veja--se aquesto dos profetas - de discernir o que certo e o que errado, bom para o Estado e para a religio reconhecer comodireito dos soberanos decidir o que lcito e o que no .

    4. Por fim, Espinosa chama a ateno para o perigo demudanas de regime, como de monarquia para repblica evice-versa. O povo em geral no se adapta s abruptas mudanas em que o poder vai de suas mos para os soberanos edestes para as suas. O filsofo entende que, se as circunstnciasexigirem, prefervel trocar o governante, e no o regime. Dcomo exemplo os Estados Holandeses, que nunca tiveram reisaos quais o povo tivesse transferido seus direitos, mas simcondes temporrios. A monarquia que mais tarde foi adotadapela Holanda foi sempre simblica e parlamentar.Em suma, o que vale no pensamento de Espinosa a suainsistncia em afirmar que a paz do Estado reside na manuteno, por parte das autoridades soberanas, do direito emmatria religiosa, e que o culto externo no deve perturbara paz. Nisto reside a fidelidade a Deus.Podem parecer contradio em Espinosa essas idas e vindas no terreno das relaes entre religio e poltica. Contudo, senos reportamos ao que ele afirmou sobre os profetas, as dvidas se desvanecem porque quase tudo o que se diz sobre arevelao de Deus no passa de imaginao, variando de indivduo para indivduo. Portanto, no cabe a ningum, nem aoEstado, estabelecer leis em nome de Deus e, a partir delas, obrigar a quem quer que seja a pensar deste ou daquele modo. Opoder religioso do Estado no deve ir alm de garantir a parteexterna da religio, quer dizer, o culto.30 ESPINOSA, Baruch de. Tratado Teofgico-Poftico, p. 283.

    54 Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, juiz de Fora, v. 7, n. 2, p. 27-57

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    10 Conclusoo ponto chave do Tratado Teolgico-Poltico que "num Estadolivre lcito a cada um pensar o que quiser e dizer aquilo quepensa". Essa questo envolvida, direta ou indiretamente, emoutros escritos de Espinosa, como particularmente na tica e noTratado Poltico, sempre sob as grandes colunas mestras do seupensamento: a imanncia e a liberdade.No entramos na metafsica de Espinosa, mas basta lembrar que/ sendo o homem finito, no pode ele conhecer suacausa infinita; portanto, ningum pode dizer que isto ouaquilo a verdade. Sendo assim, todos temos o direito deavanar sobre os infinitos modos do ser. Temos liberdadepara pensar, mas no para agir, porque na ordem lgica todas as aes so necessrias, no havendo contingncias. Averdade, a essncia, portanto, no atingvel, mas somente aexistncia, ou modos do ser/ por si finitos e corruptveis.Mas, voltemos por um pouco questo da interpretaodas Escrituras. Espinosa, mais de um sculo aps a ReformaReligiosa, retoma um de seus postulados centrais: o acesso dovulgo s Escrituras e o conseqente livre exame. Da a traduodelas feita por Lutero para o alemo. Pergunta-se, ento, depassagem: a vulgarizao das Escrituras j no fora a intenoda Septuaginta (sculo 1II a.c.), assim como da Vulgata (sculoV d. c.)? O fato, porm, que Espinosa insiste em que asEscrituras no so livros de mistrios e nem de filosofia, mas decoisas simples para a vida. Estava presente em Espinosa o dilema permanente do cristianismo: o monoplio doutoral dainterpretao da Bblia contra a leitura vulgar da mesma.Quanto ao mtodo que deve dirigir a leitura e a buscade sentido dos textos, Espinosa firma-se no velho e aindamuito atual princpio hermenutico-exegtico de que a B-blia explica-se por si mesma. Uma palavra ou um trechoobscuros podem ter o sentido esclarecido por outra palavraou trecho que trate, em outro lugar, do mesmo assunto.Por outro lado, h em Espinosa, nessa questo, algo queparece antecipar de um sculo, ao menos em parte, a chamada "crtica histrica", "crtica das formas", ou comumente,"alta crtica" da Bblia. a sua crtica autoria do Pentateuco,

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    assim como a distino nos profetas, incluindo-se os apstolos do Novo Testamento, entre o que realmente mandatodivino em contraposio imaginao ou opinio prpria.Dizemos um sculo porque a "alta crtica" geralmenteremonta ao mais proeminente desta alemo, Hermann SamuelReimarus (1694-1768). Sua mais controvertida obra, da qualforam publicados somente alguns fragmentos aps sua mortee por iniciativa de Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), foia Apologia Para o Culto Racional a Deus, ou melhor, Defesa de UmCulto Racional a Deus. Lessing, iniciador do mtodo histricocrtico em literatura, publicou somente sete partes das quatro mil pginas originais com o ttulo de Wolffenbtel Frag-

    mente. semelhana de Espinosa, Reimarus submete toda ahistria bblica anlise crtica racional.Ora, sabido o lugar que a "alta crtica" ocupou, e aindaocupa, nos estudos bblicos, particularmente entre os protestantes. O fundamentalismo protestante tem, no confronto permanente com o liberalismo teolgico, encarnado principalmente na "alta crtica", sua principal razo de ser.Espinosa sabia dos escolhos que seu livro teria pela frentee, por isso, no o endereou ao vulgo cheio de medos e supersties, nem queles que compartilhavam, por razes diversas,asopinies vulgares. Endereou-o aos filsofos, os que ainda socapazes de ver as coisas com a razo, porque a maioria doshomens est sujeita obstinao pelo motivo de que, em vezde ser a razo que os guia, a tendncia para louvar ou vituperar. Tanto uma como outra atitude deixam no limbo a razo.Espinosa, dirigindo o livro aos filsofos, o que faz naltima pgina do Prefcio, conclui assim:No convido, portanto,vulgo, nem aqueles que compartilhamdas suas paixes, a lerem este livro.

    Referncias bibliogrficasCHALl, Marilena, A Nervura do Real. So Paulo: Companhiadas Letras, 1999.___ o Poltica em Espinosa. So Paulo: Companhia das Letras,

    2003.56 Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 7, n. 2, p. 27-57

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    DELUMEAU, Jean. Nascimento eAfirmao da Reforma. So Paulo: Pioneira, 1989.ESPINOSA, Baruch de. Tratado Teolgico-Poltico. So Paulo:Martins Fontes, 2003._--::--'Tratado Poltico. In: ESPINOSA. (Os Pensadores). SoPaulo: Abril Cultural, 1997._--::-::-' tica. Mad rid: Aliana Editorial,1999.PIERUCCI, AnLonio Flvio. Ciladas da Diferena. So Paulo: Editora 34,1999.PREUS, ]. Samuel. Spinoza and the Irrelevance of Bblical Authorty.Cambridge: Cambridge University Press, 2001.RUSSELL, Bertrand. Histria da Filosofia Ocidental. V. 3. So Paulo: Editora Nacional, 19n.TEIXEIRA, lvio. A doutrina dos modos de percepo e o conceitode abstrao na filosofia de Espinosa. So Pau lo: UN ESp, 2001.

    Antonio G. MendonaRua Domingos Dalasta, /0017J80-000 - [email protected]