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O Livro da aquisição da Terra Santa (1309 ) Ramon Llull (1232-1316) Trad.: Prof. Waldemiro Altoé (Ufes ) Prólogo [1] Deus, com Tua graça e bênção inicia-se o livro que trata da aquisição da Terra Santa [f. 544r]. Para adquirir a Terra Santa exigem-se maximamente três coisas: sabedoria, poder e caridade, pois estas três coisas estão juntas no sujeito no qual todas estas coisas podem estar dispostas e possíveis para elas, principalmente quando são dadas pelo Espírito Santo, da pessoa mais comum que possui a união mais comum. Digo isso, porém, em favor do senhor papa e também em favor dos senhores reverendos cardeais. A sabedoria dispõe, ordena, delibera, indica, julga e gera a justiça e a prudência. O poder possivelmente edifica e conserva, distribui e tem em abundância, e gera a fortaleza e a temperança. A caridade opta, apressa, implora e faz as coisas próprias comuns, causando a paciência e a humildade. Por estes três primeiros princípios e por aquelas coisas que a eles competem, como foi dito, entendemos proceder neste livro à demonstração do modo e do débito pelos quais a Terra Santa pode ser adquirida. Digo isto porque desejo o bem público, e também porque digo a verdade. Pois se calasse, teria a consciência e se digo e nos fatos não coloco tudo o que posso, me habituo à hipocrisia e aguardo as perpétuas penas infernais, pois Deus não pode ser coagido e decepcionado, sendo sumamente Sábio e Onipotente. Sobre a aquisição da Terra Santa, já compus um livro que foi apresentado ao papa Clemente quinto [2], mas por causa da questão dos templários, convém variar a matéria de outro modo neste livro. Divisão deste Livro [f. 544r.] Divide-se este livro em três distinções, a primeira das quais versará sobre o modo de guerrear, a segunda sobre o modo de pregar, e a terceira sobre os exemplos. Na primeira distinção mostraremos o modo pelo qual se faz a organização para conseguir a vitória com as armas. Na segunda mostraremos o modo pelo qual se obterá a verdade pelo intelecto iluminado e pela vontade santa.

O Livro Da Aquisição Da Terra Santa

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Raimundo Llúllio.

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Page 1: O Livro Da Aquisição Da Terra Santa

O Livro da aquisição da Terra Santa (1309) Ramon Llull (1232-1316)

Trad.: Prof. Waldemiro Altoé (Ufes)

Prólogo [1]

Deus, com Tua graça e bênção inicia-se o livro que trata da aquisição da Terra Santa [f. 544r].

Para adquirir a Terra Santa exigem-se maximamente três coisas: sabedoria, poder e caridade, pois estas três coisas estão juntas no sujeito no qual todas estas coisas

podem estar dispostas e possíveis para elas, principalmente quando são dadas pelo Espírito Santo, da pessoa mais comum que possui a união mais comum. Digo isso,

porém, em favor do senhor papa e também em favor dos senhores reverendos cardeais.

A sabedoria dispõe, ordena, delibera, indica, julga e gera a justiça e a prudência.

O poder possivelmente edifica e conserva, distribui e tem em abundância, e gera a fortaleza e a temperança.

A caridade opta, apressa, implora e faz as coisas próprias comuns, causando a paciência e a humildade.

Por estes três primeiros princípios e por aquelas coisas que a eles competem, como foi dito, entendemos proceder neste livro à demonstração do modo e do débito

pelos quais a Terra Santa pode ser adquirida. Digo isto porque desejo o bem público, e também porque digo a verdade. Pois se calasse, teria a consciência e se digo e nos fatos não coloco tudo o que posso, me habituo à hipocrisia e aguardo as perpétuas penas infernais, pois Deus não pode ser coagido e decepcionado, sendo

sumamente Sábio e Onipotente.

Sobre a aquisição da Terra Santa, já compus um livro que foi apresentado ao papa Clemente quinto [2], mas por causa da questão dos templários, convém variar a

matéria de outro modo neste livro.

Divisão deste Livro

[f. 544r.] Divide-se este livro em três distinções, a primeira das quais versará sobre o modo de guerrear, a segunda sobre o modo de pregar, e a terceira sobre os

exemplos.

Na primeira distinção mostraremos o modo pelo qual se faz a organização para conseguir a vitória com as armas.

Na segunda mostraremos o modo pelo qual se obterá a verdade pelo intelecto iluminado e pela vontade santa.

Na terceira lembramos a audácia pelos exemplos, evitando perigos para a nau de São Pedro.

Declaradas e demonstradas todas estas coisas, embora seja indigno, suplico o quanto posso ao sumo pai, santíssimo senhor Clemente V e a todos os senhores reverendíssimos cardeais que recebam este livro, o vejam com caridade, ouçam, conheçam e me concedam, se lhes agrada, uma audiência, é o que intenciono.

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Primeira DistinçãoDo modo de guerrear

[f. 544r.] Esta distinção está dividida em quatro partes.

A primeira tratará da vantagem que os cristãos têm contra os sarracenos.

A segunda tratará do modo de adquirir a Terra Santa com a cidade de Constantinopla.

A terceira trata da conquista da Barbária com a cidade de Ceuta.

[f. 544v.] A quarta trata da perseverança da continuidade da guerra até que toda a terra seja adquirida. E inicialmente falaremos da primeira parte.

Da Primeira Parte da Primeira Distinção

Pretendemos dividir esta parte em seis partes menores. Primeiramente quanto às galeras, e isto assim: os cristãos possuem galeras em maior abundância que os

sarracenos, e no mar são mais audazes que os sarracenos. Por essa razão, a Igreja Romana pode vetar aos sarracenos que ousem navegar por mar ou ter subsídios de outros pérfidos cristãos, e que os cristãos com as galeras possam perturbar o litoral

marítimo, queimando o trigo e roubando seus animais e muitos outros danos, unindo um lugar após o outro, e assim muitos lugares nos quais os sarracenos

presentemente não possam se prevenir contra eles.

Em segundo lugar, quanto às balistas [3], pois os cristãos possuem maior abundância de balistas e balisteiros, que são tanto infantes quanto eqüestres, e são os melhores dentre todos porque as usam habilmente. Na verdade, os sarracenos

possuem arcos e também arqueiros, mas não ousam esperar os golpes dos balisteiros.

Pela terceira, quanto às lanças e aos dardos, pois os cristãos possuem a máxima abundância de lanças e dardos. E de perto, com lanças e dardos, os balisteiros

vencem os arqueiros e de longe também a espada e as próprias máquinas.

Pela quarta, quanto ao escudo, a loriga e o elmo, pois os cristãos possuem muitos e usam deles muito mais que os sarracenos. Por esse motivo, espadas e máquina de ferro, os cristãos rapidamente podem vencer e dispersar a espada e o gládio dos

sarracenos, pois há grande vantagem na guerra do homem armado contra o homem desarmado.

Pela quinta, quanto aos infantes guerreiros que os cristãos têm na Espanha, na Catalunha e também em Aragão e nas fronteiras, audaciosamente assim

alimentados e que não temem entrar por três, quatro ou seis léguas na terra dos sarracenos, invadi-los e retornar com a rapina e a presa; estes se chamam

almograves [4] que, entre outros infantes, por razão da magnanimidade, fortaleza e valor, são escolhidos para isso, e os tais sarracenos não têm nenhum.

Pela sexta, quanto às máquinas e outros instrumentos bélicos que os cristãos possuem em abundância e com todos os artifícios, cautelas, maneiras,

administrações, provisões e doutrinas que não usam nem prevêem bem os sarracenos nos castros [5] e cidades em guerra.

Dissemos da vantagem das armas que os cristãos possuem contra os sarracenos. Esta vantagem a sabedoria dispõe, organiza, delibera e indica no sujeito no qual

está habituado e gera justiça e prudência e o mesmo do poder e também da

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caridade, conforme o que foi dito no prólogo deste livro. Mas se o sujeito é rebelde, não age conforme as supracitadas disposições e estabelece que o poder que não se

transforma em ato é inútil. Assim, a sabedoria, o poder e a caridade clamam, porque não têm sujeito no qual subsistam, e o sujeito aguarda perpetuamente as penas infernais, pois Deus, que é Justo, Poderoso e Sábio, não pode ser coagido

nem enganado.

Da Segunda Parte da Primeira Distinção

Foi demonstrado que a cidade de Roma e Constantinopla devem se posicionar contra os infiéis, por que outrora o imperador romano, com a cidade de

Constantinopla, obteve a vitória contra os inimigos. Assim, é necessário que os impérios concordem para a aquisição da Terra Santa, e que a cidade de

Constantinopla se submeta à Igreja Romana, como a filha à sua mãe, e que o cisma dos gregos seja destruído. Tal destruição é a causa possível da ciência do intelecto e da fortaleza da espada do venerável senhor Carlos [6] e do reverendo mestre dos

Hospitalários [7]. Isso pode ser feito facilmente com os bens da Igreja, pois a sabedoria dispõe a matéria que é abundante pelo poder, mas espera rapidez e

caridade.

Com a aquisição de Constantinopla, a Terra Santa pode ser conquistada de bom modo e facilmente, mas sem ela, pesada e lentamente.

Feita a aquisição de Constantinopla, o sultão do Egito não poderá ter os mamelucos, que são homens com os quais ele principalmente possui sua terra, e por ela podem ser destruídos [8], os quais também podem abrir caminho até a

Armênia por terra e tomar Antioquia, que está próxima da Armênia, destruir aquele principado de gregos e armênios e fortificar a cidade com latinos. Com isso, todo o reino da Síria poderia facilmente ser conquistado, pois o sultão do Egito dista muito da Antioquia e as galeras fariam grande dano em Alexandria e por todo o mar além

de Antioquia. Deste modo e finalmente, o sultão não poderia permanecer no principado de Antioquia e no reino da Síria.

Conquistada a Síria, povoada e fortalecida, o sultão não poderia recuperá-la, pois estaria fatigado com a perda de Constantinopla e da Síria, e a Alexandria seria

finalmente destruída, e também Damieta e a ilha que se denomina Raycet [9] e, conseqüentemente, todo o reino do Egito. Assim, quem poderia calcular quantos

latinos concordariam e viriam para isto?

O que disse da Síria e do reino do Egito só será possível se se buscar a sabedoria, o poder e também a caridade; elas responderão que não esperam, a não ser que o

sujeito das mesmas esteja habituado, sustentado e interessado em dar as mensagens do Espírito Santo. Pois quem despreza tais mensagens age mal,

principalmente depois que a matéria está ordenada e preparada pelo Espírito Santo.

Da Terceira Parte da Primeira Distinção

Esta parte fornece a doutrina para se adquirir Ceuta. No entanto, ela não pode ser adquirida se não se conquistar antes o reino de Granada.

Sobre a aquisição de Granada não pretendo falar muito, pois o intelecto facilmente pode conhecer o caminho pelo qual esse reino logo pode ser adquirido, já que quatro nobres reis que estão voltados para as partes ocidentais, se quiserem, concordarão virilmente com isto. [10] A sabedoria na verdade existe há muito

tempo, a qual dispôs e ordenou a matéria e o poder colocou a possibilidade: mas a caridade foi lenta pela falta de objetivo. Portanto, digo que é bom que se dê fama

para que os reis proponham estar somente nisto até que seja adquirida, que o

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poder crie a própria fama permanente mediante a sabedoria e a caridade e que o passo seja fortalecido com galeras de tal modo que o rei de Granada não possa ter

subsídio nem ajuda de outros sarracenos.

Parece-me que, para conquistar Ceuta, seria bom que, ordenados pelo senhor papa, pelos senhores cardeais e pelos reis [f. 545], fossem apressados e escolhidos pela caridade os gastos possíveis e disponíveis pelo poder e pela sabedoria, segundo o

que o Espírito Santo já dispôs ao dar-lhes poder, como está claro, e que com os gastos as galeras se mantivessem ativas e também os soldados e os infantes em número devido e proporcional, até o tempo em que a cidade estivesse totalmente

conquistada e fortalecida, erigida por dentro e por fora e consolidada nos seus contrafortes. Cientes os sarracenos ceutas que tal exigência seria feita, eles

temeriam o perigo e a fadiga por causa da prolixidade do tempo, e assim, muito sabiamente, eles dariam as costas em fuga.

É conveniente também que passem soldados em grande quantidade, o mesmo de infantes, isto rápida e simultaneamente até que possam obter a batalha com os

sarracenos. Porém, mil soldados e dez mil lançadores, entre os quais muitos seriam cavaleiros, e dez mil com lanças e escudos, poderiam guarnecer o campo contra

trinta mil soldados sarracenos, além de outros.

Não deve haver preocupação com os infantes sarracenos, que nada valem, e disto já se tem experiência contra os sarracenos, pois os cristãos resistem a eles na

guerra fazendo defesas e fortalezas, refúgios e castros.

Feita tal passagem pelos cristãos para cercar o campo, que os cristãos façam três muros ou três edifícios contra eles, certamente dois próximos do mar. Estando

Ceuta no meio, e um em terra, estejam assim próximos de tal modo que os militares e os infantes possam atravessar de um lado para o outro em um dia; digo

isto para que se evite que subsídios entrem em Ceuta.

As três construções acima mencionadas podem ser feitas rapidamente. Feito isto, façam-se muros de grandes peças, trazidas em galeras e em canais.

Posteriormente, entendendo que o exército dos sarracenos estaria contra o exército dos cristãos fora da cidade, que nesse meio tempo as galeras lutem nas margens

do mar por uma ou por outra parte, impedindo os sarracenos e dando-lhes desânimo e perigo ao seu exército; o perigo seria para eles um grande terror, razão

do qual seu exército se dividiria e não seria mais permanente nem constante por muito tempo.

Os sarracenos nada valem à noite. Os almograves sim, pois podem saber a língua, explorar e ter ciência da chegada de alimentos vindos para o exército dos

sarracenos; então, o exército dos cristãos poderia roubar aqueles alimentos no lugar e na hora devidas.

Muitas outras coisas poderiam ser ditas sobre eles, mas as que dissemos são mais necessárias e visíveis.

Ceuta assim adquirida, memorável desconfiança teve certo Miramamolim, rei e senhor de Marrocos, contra todos os cristãos que adoravam a cruz, que lhes

concedeu certo tempo e lugar próximo a Ubeda [11], onde houve três reis, a saber, de Aragão, de Castela e de Navarra, que venceram Miramamolim em uma guerra

com a ajuda de Deus [12] e com a conjugação perfeita da sabedoria, do poder e da caridade. Portanto, no lugar deles, eu indigno, indico essa reunião sempre

mencionada. Seria um grande bem para a honra de Nosso Senhor Jesus Cristo, que por nós foi um verdadeiro guerreiro e obteve a vitória, que o senhor papa e seu

colégio, com os reis cristãos, desconfiassem de todos os sarracenos que crêem em

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Maomé, e em um tempo determinado lhes dessem um lugar perto de Ceuta cercada; se houvesse a guerra, sem dúvida os cristãos venceriam. Isso é

confirmado por causa da sabedoria, do poder e da caridade, pois a sabedoria promete disposição e ordem, o poder promete possibilidade e suficiência, e a

caridade promete devoção, comunidade e também santidade.

Realizada a guerra e obtida a vitória, o exército dos cristãos logo poderia adquirir o reino de Marrocos e também os outros três reinos de Tunis, Bougie e Tlemcen [13]

até Trípoli da Barbária, que está no reino e nos confins do Egito.

Da Quarta Parte da Primeira Distinção

A vida é breve e a constância possui muitos inimigos, principalmente quando é boa. Por conseguinte, digo que o senhor papa, com seu Colégio, tendo conselho com

sabedoria, poder e caridade, deve ordenar a guerra permanente contra os sarracenos até haver um só vitorioso, mestre geral militar e religioso sob o qual

todos os soldados sejam religiosos; e morto um, que se ponha outro em seu lugar, e assim sucessivamente. Com os reis isso não é assim, pois morto um certamente seu filho não terá a mesma devoção para com a Terra Santa que o pai possuía;

também alguns optam por adquirir a terra por causa dos filhos. Um mestre geral, soldado religioso não pode fazer isto, porque não está na sua razão nem em sua

ordem.

O soldado e mestre religioso deve estar habituado pela sabedoria, pelo poder e pela caridade, tanto quanto os mesmos hábitos possam ser suficientes para guerrear

contra os sarracenos e para conservar a devoção, e não somente contra os sarracenos, mas também contra todos os outros infiéis. Porém, isto não pode ser feito a não ser pelo senhor papa e seu Colégio, pois a sabedoria não é suficiente

para dispor e preparar a matéria, nem o poder para pôr possibilidade e abundância, nem a caridade para apressar e reconduzir a comunidade.

Portanto, as mesmas destinam-se ao supremo Colégio para que, a respeito dos bens da Igreja, esse mencionado mestre tenha suficiência, e a própria sabedoria,

poder e caridade tenham calma suficiente, dispostas e ordenadas para a sabedoria, para o poder possível, para a caridade desejada e para o tesouro próprio de São

Pedro.

Porém, digo que o próprio mestre geral, soldado religioso, seja feudatário do senhor papa, obedeça a ele e naquelas coisas que adquirir se multiplique o tesouro da

Igreja de São Pedro, para multiplicar o poder contra os infiéis e para que se recuperem as terras que a Igreja perdeu.

Para todas essas ordens, façam-se decretos pelos quais, morto um papa, outro papa deva manter a mencionada ordem para que a sabedoria, o poder e a caridade,

por justiça, sejam para conservar e multiplicar o tesouro da nave de São Pedro.

Do mesmo modo, quanto à sabedoria, o poder e a caridade, digo que, como a Ordem dos Templários tenha sido destruída, que seus bens sejam passados ao mestre geral, ao soldado religioso supracitado, para que o tesouro da Igreja se multiplique contra os homens infiéis. Isto é [f. 545v.] digno e justo porque os

mesmos bens foram iniciados e por um ato tirados para se adquirir a Terra Santa, e isto é atestado pela sabedoria, pelo poder e pela caridade, que o bem-aventurado

Pedro em outra vida recolhe, entende e ama.

Os fatos da predita ordenação requerem que sejam confirmados no Concílio Geral de Vienne [14], previsto para setembro, em um ano, e que o mestre geral, soldado por si e por seus substitutos, prometa sempre estar nas fronteiras contra os infiéis,

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com toda a sua posse, e mantenha algumas galeras, alguns soldados e infantes de acordo com a exigência dos bens já mencionados.

Segunda DistinçãoDo modo de pregar

[f. 545v.] Esta distinção trata da proclamação do debate com os infiéis, e está dividida em seis partes.

A primeira parte trata da ordenação. A segunda dos sarracenos.

A terceira dos judeus. A quarta dos hereges.

A quinta dos cismáticos.A sexta dos tártaros ou gentios.

E primeiramente falemos da primeira parte.

Da Primeira Parte da Segunda Distinção

Esta parte tratará da ordenação, evidentemente, para que o senhor papa e seu reverendo colégio façam três monastérios, isto é, um em Roma, outro em Paris e outro em Toledo, nos quais homens sábios e devotos estudariam várias línguas e

depois iriam pregar o Evangelho por todo o mundo, como está preceituado, desejosos de morrer por Cristo como faziam os apóstolos, e que aqueles

monastérios teriam uma renda perpétua com a qual os estudantes pudessem viver. E assim bem instruídos, após serem mandados de dois em dois, que outros dois

fossem recebidos até certo número marcado. Por esta ordenação, a fé seria exaltada, pois se a Igreja fizesse o que pode fazer para a exaltação da fé, Deus daria Sua graça, especialmente a sabedoria, o poder e a caridade através do

Espírito Santo.

Tais homens assim devotos e dispostos seriam encontrados se o senhor papa fizesse uma perquirição pelas províncias e reinos; muitos seriam encontrados, e que

deste negócio um ou dois cardeais sejam encarregados.

Da Segunda Parte da Segunda Distinção

Os sarracenos são outros na Filosofia: bem letrados, são homens bem racionais, mas sobre a essência de Deus e de Suas dignidades pouco sabem. Portanto, que

nas disputas, o católico disponha-os para entender a Deus e os atos intrínsecos de Suas dignidades. E tendo dito que Deus seja perfeito e que suas raízes tenham atos

intrínsecos, especialmente Sua bondade em bem-fazer, Sua grandeza em engrandecer, e outras coisas como conseqüência, concluam que Deus é Trino e o

mesmo sobre os atos extensos que possuem nas criaturas, das quais se seguem as conseqüências que Deus é encarnado. E eu mantinha com eles esse modo de

discursar enquanto estava no cárcere de Bugia, fazendo-lhes proposições insolúveis e resolvendo aquelas que me faziam sobre a Santa Trindade e a Encarnação.

A fé católica é muito elevada e sutil e a credulidade dos sarracenos é grossa e sensível. Por isso, eles imediatamente dizem que a Trindade e a Encarnação são

impossíveis, porque se deve recorrer a altas considerações, procurando-as com atos de razões divinas intensiva e extensivamente, como foi dito acima, e imprimindo na

inteligência deles pelo máximo uso proposições comuns até para católicos, de tal modo que também se tornem comuns para eles. Depois destes dados em

seqüência, sigam-se as conseqüências pelas quais eles concluirão que racionalmente não poderão negar a Trindade e a Encarnação em Deus.

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Os sarracenos bem letrados não acreditam verdadeiramente que Maomé seja profeta, pois no Alcorão, no qual está sua lei, encontram muitos inconvenientes

contra a santidade e a verdadeira profecia, e procuram a nossa fé católica com os mercadores cristãos que estão entre eles. Mas como aqueles mercadores são

leigos, não conseguem satisfazê-los. E assim interrogam os judeus a respeito de sua lei, que não sabem satisfazer a eles racionalmente por serem grossos e rudes. Por

isso, tais sarracenos filósofos permanecem sem lei. Logo, se os católicos bem letrados disputassem com eles mantendo um modo comprovativo, eles se

converteriam à nossa fé, e isto se confirma pela sabedoria, pelo poder e pela caridade dados pelo Espírito Santo e, convertidos eles, outros iletrados sarracenos

também seriam convertidos.

Se se perguntasse a qualquer filósofo sarraceno se porventura é homem ou pedra, ele racionalmente negaria que é uma pedra, pois sabe que a pedra não é sensata e

o homem sim; e se se perguntasse se o homem é um cavalo, ele racionalmente negaria que não, pois o cavalo não é racional e o homem sim. Digo isso porque o

mesmo sarraceno não pode saber se o homem é pedra ou cavalo, mas que o homem é sensato e racional. Por isso, na disputa com um inteligente, exige-se a

prova verdadeira, primitiva e necessária, pois a própria sabedoria dispõe a prova, o poder a faz abundar e a caridade a exige.

Os sarracenos estão próximos da fé católica porque crêem que Cristo é filho de Deus e o Espírito de Deus [15], que foi o melhor homem que existiu e que a bem-aventurada é santa e foi virgem antes e depois do parto; acreditam ainda que os

apóstolos são santos e estão no Paraíso. Todavia, não crêem que Cristo é Deus nem que Deus é Trino. E assim outra coisa não convém a não ser que se mostre a eles

que Deus é Trino e Encarnado. Tal prova está disposta, ordenada, possível e inteligível por causa da sabedoria, do poder e da caridade. E como isto é

verdadeiro, obrigo-me a mostrar e a provar pela fé e pelo mérito permanentes. Assim, se os sarracenos se convertessem, todos os homens do mundo poderiam

facilmente ser convertidos, pois os outros homens, respectivamente, não têm ciência além de saber que existem cristãos e sarracenos.

Os sarracenos dizem que o Alcorão também foi feito por milagre, pois dizem que nenhum homem do mundo poderia fazer uma obra tão bela, nem os anjos. Assim, supõem que foi dado por Deus, e esse dado é verdadeiro. Desse modo, pretendem provar que sua lei é verdadeira. Portanto deve-se responder a isto que a norma do Alcorão é muito bonita. Todavia, a matéria ser subordinada é péssimo, pois trata de coisas viciadas, obscenas, furtivas e luxuriosas, e a sabedoria, o poder e a caridade

clamam que não é delas, mas proveniente do Diabo.

Os sarracenos dizem que Deus é justo e assim dá no Paraíso a união, o alimento e a bebida para remunerar o corpo que lhe fez serviços nessa vida. Mas contra isso se

deve dizer que, tal recompensa dos corpos não acontece quando existem tais vícios, e sim na visão, na participação, na audição e na natureza corporal de Nosso

Senhor Jesus Cristo, conjuntos com a divina natureza, que é a mais alta recompensa sensual que pode haver no homem. Da união do alimento e da bebida não deve ser

dito nada, pois importam muitíssimas conseqüências torpes com as quais a sabedoria, o poder e a caridade não podem consentir.

Os sarracenos defendem que os Evangelhos do cristianismo foram mudados e que estes Evangelhos que temos são falsos, embora antes fossem verdadeiros. Dizem isso porque os Evangelhos que temos repugnam e contradizem seu Alcorão, e os primeiros Evangelhos estavam de acordo com ele [16]. Dizem que Deus pune os

cristãos, subtraindo-lhes a Terra Santa e outras terras que possuíam antes do advento de Maomé, dando-as a eles porque possuem o Alcorão e a verdadeira lei.

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Mas quanto a isso se deve dizer que é algo inconcebível, pois conviria que todos os cristãos ao mesmo tempo e no mesmo lugar destruíssem os verdadeiros

Evangelhos e recebessem os falsos; e quanto ao fato de perderem as terras, deve-se responder que, no tempo de Maomé, ou antes, a sabedoria, o poder e a caridade

não apresentaram ajuda por causa da deficiência do objeto, o que muito se deve lamentar, pois constitui grande dano e infortúnio. Na verdade, a sabedoria, o poder e a caridade mutuamente afirmam que a justiça de Deus é grande e que Deus não

pode ser enganado nem coagido.

Da Terceira Parte da Segunda Distinção

Esta parte trata dos judeus. Na disputa, eles, na verdade, procuram as autoridades da antiga lei e têm nossas interpretações anexas. Assim, tal disputa feita entre nós e eles não é útil por causa da razão dos variados sentidos históricos e alegóricos.

Logo, deve-se recorrer à disputa pelo intelecto, como dissemos no capítulo supradito.

Os sarracenos e os judeus asseguram que estão no caminho da verdade e, por isso, a lei lhes foi dada por Deus através do profeta Moisés. Mas, para isso, aduzo este exemplo: na árvore estão a primeira e a segunda intenção: a primeira consiste no

fruto no qual está o repouso e o último fim, e no grão do fruto consiste outra árvore e seu poder para a espécie; raízes, tronco, ramos, folhas e flores constituem a

segunda intenção. Portanto, o fruto vem primeiro, o tronco, e outros elementos, por último e tudo constitui uma árvore composta de duas intenções, mas pouco vale a

segunda intenção sem a primeira. De modo semelhante, digo que a lei velha é como a segunda intenção e a lei nova como a primeira [17].

Os judeus afirmam que o Messias veio e que no seu tempo existiram reis e as riquezas deste mundo, mas Ele não veio para redimi-los do pecado original. No entanto, os cristãos dizem que o Messias veio, principalmente Cristo, que nos

redimiu na cruz, e por causa da sabedoria, do poder e da caridade atesta-se que inconcebivelmente o advento do Messias seja primeiro para os judeus e depois para

os cristãos.

Os judeus são homens sem ciência, e quando o católico discute com eles racionalmente, não entendem as razões. Portanto, seria bom que o senhor papa,

através de seu Colégio, ordenasse que eles se propusessem a responder às razões aprendendo ciência, e que não aprendessem hebraico, mas nosso latim vulgar, e

pregassem nas sinagogas. E se assim fossem usá-lo, facilmente poderiam ser convertidos, mas se finalmente não se convertessem, que o senhor papa ordenasse que nenhum deles permanecesse entre os cristãos, pois eles são mais contrários à lei dos cristãos que os outros, já que certamente dizem que Cristo foi o pior homem

que existiu e existirá, e cotidianamente O blasfemam nas sinagogas.

A respeito da bem-aventurada Virgem Maria eles também falam torpezas, o mesmo a respeito dos apóstolos, razão pela qual a sabedoria, o poder e a caridade afirmam

que é bom que se eles não se converterem, que sejam expulsos da terra dos cristãos, do contrário, a justiça não seria atributiva nem a prudência geradora, a

caridade seria lenta e o poder ocioso, e o mesmo da sabedoria, no sujeito deficiente.

Da Quarta Parte da Segunda Distinção

Os heréticos são homens grosseiros e rudes. Sendo assim, reputam-se sub-úteis, mas não têm o auxílio da sabedoria, do poder e da caridade, que foram dadas pelo

Espírito Santo. Assim, quando crêem expor o texto, caem no erro. Logo, para disputar com eles, devem-se reduzir ao seu conhecimento três hábitos primitivos, o

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mesmo dos outros atos das divinas razões. E assim, mantendo-se tal modo, eles podem ser convertidos racionalmente.

Alguns heréticos dizem que Deus é Uno e Bom, outros dizem que é mau, e que o Bom causa o bem e o mau causa males. Assim, deve-se recorrer à conversão da sabedoria, do poder e da caridade, que se convertem no Deus bom, e que não

poderiam se converter se Deus fosse mau, pois Ele oporia a Si mesmo; mas como são convertidos, tanto pode quanto entende, quer e se converte. Está claro,

portanto, que é impossível que Deus seja mau.

Mais adiante, supondo que um Deus seja bom e outro seja mau, como Deus bom teria suas próprias razões, co-iguais e co-naturais a Si, especialmente a bondade, a

magnitude, a eternidade, o poder, o intelecto, a vontade, a virtude, a glória e a perfeição, o Deus mau teria seus opostos, especialmente a malícia, a pequenez, a novidade, a impotência, a ignorância, a malevolência, o vício, a falsidade, a pena e

a imperfeição. Tal Deus não deve ser mencionado nem pode existir, pois o Deus bom não permitiria que ele existisse.

Os heréticos rejeitam principalmente os sete sacramentos, que são sinais da divina ordenação e da divina bondade, grandeza, etc. Assim, deve-se recorrer ao ato de suas divinas razões, como está claro na Eucaristia, com a qual Cristo tem conosco

grande participação em relação à Sua essência ou Ser, em vista de Suas dignidades. E após a sabedoria e a caridade se converterem em Deus, pode-se

entender o acidente sem substância, pode-se querer que o acidente não exista na substância, e que Cristo esteja no Céu e sacramentalmente no altar. O poder torna isso possível, e como dissemos da Eucaristia, pode-se também falar do Matrimônio,

etc.

Da Quinta Parte da Segunda Distinção

O cisma existe principalmente por causa dos gregos, dos nestorianos e dos jacobinos. Os gregos, porém, dizem que o Espírito Santo não procede do Filho, mas

somente do Pai. Assim, na disputa com eles deve-se recorrer às divinas razões e seus atos, nos quais estaria sua deformação correlativa, posto que os próprios

gregos dizem ser verdadeiro, pois o bonificar não procederia do bonificável, mas só do bonificante, o mesmo magnificar do magnificante, entender do inteligente, amar

do amante, e o mesmo dos outros. Donde se seguiria que agir e produzir não existiriam igualmente entre o agente e o agível, o producente e o produzível, e assim se geraria na essência de Deus uma prioridade e uma posteridade e uma

desigualdade, o que é impossível.

Os nestorianos dizem principalmente que em Cristo há duas pessoas [f. 546]: a pessoa divina e a pessoa humana. Assim, na disputa com eles deve-se recorrer às divinas razões e seus atos e olhar as conseqüências e ordenações, pois, posto que existisse, como eles dizem, não se poderia verificar esta proposição no homem: o corpo é alma e a alma é corpo, a alma é homem, o corpo é homem, o homem é alma e é corpo, isto porque o todo é maior que sua parte. Assim, não se pode verificar esta proposição: Deus é Cristo, o homem é Cristo, Deus é homem, o

homem é Deus, Cristo é Deus e Cristo é homem, pois se seguiria a destruição da conjunção da natureza divina e humana, e conseqüentemente, da Encarnação.

Os jacobinos dizem que em Cristo há uma natureza e não muitas, uma vontade e não muitas, e assim das outras. Portanto, ao disputar com eles, deve-se recorrer às

divinas razões e seus atos, e convém concluir com eles, pois como no homem a natureza do corpo e a natureza da alma não podem ser convertidas na mesma natureza, já que a alma é superior e o corpo inferior quanto às qualidades, em

Cristo não se podem converter a divina bondade, que é infinita e eterna na mesma natureza, com a bondade, que é finita e nova, e assim com outras coisas. Todavia,

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elas podem se conjugar, como a alma e o corpo, que se unem no homem, e a bondade espiritual com a bondade corporal, etc.

Dissemos dos cismáticos e supraditos, segundo os mesmos doutrinamos e o mesmo podemos falar de outros.

Da Sexta Parte da Segunda Distinção

Os tártaros e os gentios são homens rudes e sem lei. Por isso, na disputa com eles deve-se recorrer à moral, especialmente as virtudes, os vícios e aos próprios

iluminados, deve-se recorrer às divinas razões e seus atos como modo de induzi-los à lei, sem a qual as virtudes não seriam suficientes para adquirir o caminho do

Paraíso e não evitar o caminho do Inferno, nem a sabedoria, o poder e a caridade podem ter em nós sujeito habituado por ele. De tal modo, o homem os reconduziria a crer que a lei é necessária para o bem-estar. Por isso, deve-se recorrer às leis dos

cristãos, dos judeus e dos sarracenos, e provar que convém que aquela lei seja verdadeira, na qual as divinas razões podem mais exercer seus atos e pela qual o

homem poderia dispor-se mais a conseguir as virtudes e evitar os vícios. E esta é a lei dos cristãos, e isso por si só está claro, embora já tenhamos provado isso no livro

que fala do gentio [18] e no livro acerca da disputa do cristão Raimundo com o sarraceno Hamar [19].

Dissemos da Segunda Distinção, onde foi dado o modo e a doutrina pela qual todo o mundo pode ser reconduzido a um bom estado. Assim, a Igreja de Deus forte e rapidamente abra os seus tesouros, especialmente o pecunial, o corporal e o

espiritual, como acima foi tocado.

Terceira DistinçãoDe exemplos

[f. 546v.] Esta distinção se divide em duas partes, especialmente nos exemplos e nos perigos. E primeiramente falemos da primeira.

Conta-se que certo cristão religioso, bem letrado em árabe, foi a Tunis para disputar com o rei que se chamava Miramolim [20]. Na verdade, aquele irmão provou-lhe,

através de costumes e exemplos, que a lei de Maomé era errônea e falsa. O mencionado rei sarraceno, que era sábio em lógica e ciências naturais, entendeu

que suas provas eram verdadeiras, e assim concordou com suas palavras, dizendo: “De agora em diante não quero ser sarraceno, e, prova-me tua fé, pois quero

tornar-me cristão e quero o mesmo para todos os homens de meu reino; que todos se tornem cristãos, sob pena de decapitação.” Então, disse aquele irmão: “A fé dos cristãos não pode ser provada, mas eis um símbolo exposto em árabe: crê nele.”

Isto disse aquele irmão, porque embora fosse literato e moral, era somente positivo, não provado com razões. Então o rei disse: “Eu não ordenaria crer por crer, mas

crer por causa da verdade, e entender de boa vontade. Assim, fizeste mal, porque reprovaste a lei que eu tinha sem poderes provar a tua com razões. Deste modo, ficarei sem lei.” Então, fê-lo expulsar desonestamente do reino com todos os seus

companheiros. Eu mesmo vi este irmão e seus companheiros.

Posteriormente, este irmão, que sabia falar hebraico, com outros discutia freqüentemente com certo judeu muito letrado em hebraico e com o mestre de

Barcelona. Muitas vezes o judeu me disse que falara àquele irmão que, se entendesse a fé que ele acreditava, tornar-se-ia cristão. Mas o irmão respondia que

não a tinha podido entender. Assim, o judeu permaneceu como estava, desprezando nossa lei como improvável e não verdadeira.

Narrei todas essas coisas por causa disso: pois se o supradito religioso soubesse dar razões conclusivas e indissolúveis a respeito de nossa lei ao citado judeu, ele teria

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se tornado cristão e, por conseguinte, muitos outros, como disse. Tais razões são possíveis de se encontrar novamente, como estou certo e preparado para

demonstrar.

Acontece ainda que certo sarraceno quis ser cristão, mas por causa dos cismáticos, não sabia se porventura se tornaria grego, jacobino ou nestoriano, católico ou romano. Depois, vendo que os judeus não têm muitas seitas, fez-se judeu para

evitar dúvida. Digo isto, porém, porque seria bom ter razões contra os cismáticos, como está expresso na Segunda Distinção acima.

Conta-se que certo cristão e certo judeu discutiam com as autoridades, e de nenhum modo tinham podido convir, porque qualquer texto da Sagrada Escritura

expunha seu propósito. Então, vendo isso, o cristão disse que omitidas as autoridades, que eles disputassem com razões prováveis. Respondendo-lhe, disse o

judeu que discutir acerca da fé com raciocínios não era lícito aos cristãos, pois corria a fama entre eles que nossa fé não pode ser entendida nem provada. Assim,

ele não admitiu disputar com razões. Tal infâmia muito oprime a santa fé.

Muitos outros inconvenientes, exemplos e resistentes à sacrossanta fé poderiam ser ditos, mas silencio por causa da prolixidade ou fastio que deve ser evitado. Todavia,

em todos eles se poderia acrescentar algum remédio, que envio ao poder, à sabedoria e à caridade.

Da Segunda Parte da Terceira Distinção

Esta parte mostra os perigos para a nau de São Pedro, e primeiramente assim.

Entre os cristãos, há, por acaso, muitos segredos a respeito dos quais poderá haver uma horrível revelação do que pode acontecer aos templários. Assim, remeto isso

ao poder, à sabedoria e à caridade, ou ao sujeito no qual estão habituados. Também digo isso abertamente a respeito de algumas coisas torpíssimas e sentidos

manifestos por causa dos quais periclita a nau de São Pedro.

Entre os infiéis há cristãos ignorantes que juram pela mãe de Deus e por Deus que está morto, pelo corpo de Deus, e assim dos outros, como aqueles que dizem que

Deus fez três partes de Si mesmo. E sob tais sacramentos os cristãos são caluniados, pelos infiéis os quais ignorantes convivem com eles. Por isso, não sabem expor-lhes [f. 547] a fé como convém. Assim, os infiéis recebem mal

exemplo a respeito de nossa fé.

Digo isso porque seria bom que entre eles se mandassem homens firmes e instruídos racionalmente na fé, como foi mostrado na Segunda Distinção.

Posteriormente, é costume entre eles que, se podem perverter algum cristão, lhe dão riquezas e outros agrados deste mundo, cujo oposto fazem os cristãos. E se

algum infiel é batizado, dele não cuidam posteriormente, em razão do que despertam a justiça, a sabedoria e a caridade de Deus, e os prejudicam,

promovendo a infâmia, os perigos e a vingança.

Três imperadores dos tártaros possuem mais terras que todos os cristãos e sarracenos, isso antes de passarem-se oitenta anos que eles saíram de suas

montanhas. Tal súbita multiplicação dos infiéis é muito perigosa para a nau de São Pedro, pois um deles, que se chama Carbenda [21], com toda a sua família fez-se sarraceno e senhor dos persas. Assim, ele poderia impedir a aquisição da Terra

Santa mais que qualquer homem vivente, razão pela qual seria bom que o senhor papa apressasse em criar os religiosos instruídos, citados na Segunda Distinção

acima, para convertê-lo novamente com sua milícia, de novo pervertida, antes que

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sejam endurecidos e imbuídos na seita de Maomé, e que alguns destes religiosos estejam com o hábito de religioso, soldado e mestre geral.

Os sarracenos são muito cautelosos e muitos zelam pela exaltação de sua seita ou lei, e como os tártaros são homens rudes e ignorantes na Escritura, fazem-se seus escritores e serviçais para que possam estar entre eles e convertê-los para sua lei. E como é possível que os outros dois imperadores se pervertam ao cuidado deles, a

citada nau de São Pedro estaria em perigo decuplicado [22].

Como o império de Constantinopla poderia facilmente ser conquistado dos tártaros se por eles fosse conquistado, o que aconteceria depois da passagem à Terra

Santa? Ninguém poderia fazê-los retroceder, sem que os romanos viessem posteriormente conquistá-lo. Ah, poder, sabedoria e caridade, apressai-vos

vigiando, não durmais, pois vossos inimigos estão perto, vigilantes.

Conclusão

Raimundo escreveu e terminou este livro para o louvor e honra de Deus [f. 547v.], e o apresenta ao santíssimo supremo, pai e senhor Clemente V e a seu reverendo consistório, suplicando que o vejam e o façam ver e se lembrem dele no Concílio

Geral. E se errei em alguma coisa, peço perdão, pois confesso que não erraria conscientemente.

Este livro foi escrito e concluído em Montepessulano, no mês de março do ano de 1309 da Encarnação de Nosso Senhor Jesus Cristo, a cuja custódia recomendo.

Notas

[1] Tradução de Waldemiro Altoé (Ufes) feita a partir da publicação Studia Orientalia Christiana. Collectaea 6 (P. Eugene Kamar, OFM). Edizioni del Centro

Francescano di Studi Orientali Christiani. Cairo, 1961, p. 103-131. Revisão do Prof. Dr. Josep Serrano i Daura (Universitat Internacional de Catalunya – Barcelona –

Espanha). Notas de Ricardo da Costa (Ufes).

[2] Llull alude aqui ao Liber de fine, escrito em Montpellier em abril de 1305 e presenteado ao papa Clemente V através do rei de Aragão Jaime II, em outubro de 1305. Publicado em ROL IX; CC Continuatio Mediaevalis XXXV, Turnhout 1981, p.

250-291.

[3] Catapulta, máquina romana de guerra com a qual se arremessavam flechas ou pedras (no primeiro caso, eram semelhantes à besta, ou balestra, arma portátil de

arremesso de dardos e extremamente eficiente na penetração das cotas de malhas, escudos e armaduras). A partir do século XI, a Igreja tentou restringir o uso da

besta. O papa Urbano II a condenou em 1096 como “odiosa a Deus”. Finalmente, ela foi banida pelo papa Inocêncio II em 1139, no II Concílio de Latrão, sendo

ameaçado de excomunhão quem fizesse uso dela contra cristãos. Assim, a besta foi implicitamente permitida apenas na guerra contra os muçulmanos, naturalmente

esta determinação não foi obedecida pelos guerreiros europeus.” - COSTA, Ricardo da. A Guerra na Idade Média - um estudo da mentalidade de cruzada na Península

Ibérica. Rio de Janeiro: Edições Paratodos, 1998, p. 113.

[4] Os almograves eram originários dos Pireneus e recrutados principalmente em Navarra, Aragão e Catalunha. Começaram a serem conhecidos quando colaboraram

com Jaime I (1213-1276) como tropas fronteiriças na guerra de reconquista na Catalunha. Eram soldados de fronteira que não utilizavam armaduras, somente

peles, e calçavam uma espécie de borzeguim (uma botina com um cano fechado por cordões). Carregavam praticamente as mesmas armas das legiões romanas:

duas pesadas azagaias (lanças curtas de arremesso) e uma espada curta, além de

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um protetor. MORENO ECHEVERRÍA, J. M. Los almogávares. Barcelona: Plaza y Janés, 1972; CLAROS RIVAS, Salvador. Los almogávares y Roger de Flor.

[5] Ver COSTA, Ricardo da. A cultura castreja (c. III a.C.-I d.C.): a longa tradição de resistência ibérica.

[6] Llull faz alusão a Carlos de Valois (1270-1328), irmão de Filipe, o Belo (1285-1314) (cf. BOUTARICE. La France sous Philippe le Bel. Paris 1861, p. 411-413).

Carlos foi o fundador da dinastia dos Valois (que viria a substituir a dinastia dos Capetos) através de seu filho, Filipe VI de Valois (1328-1350). Carlos foi chamado à Itália pelo papa Bonifácio VIII para destruir os opositores da igreja, quando ajudou a expulsar os guelfos brancos (Bianchi) de Florença (entre eles, Dante, que o cita no Purgatório, canto XX, da Divina Comédia). Na época, Carlos era o imperador titular de Constantinopla através de Catarina de Courtenay (1274-1308), com quem havia

se casado em 1301.

[7] Neste tempo, o mestre da Ordem do Hospital era Foulques de Villaret (1305-1309).

[8] Em latim Molucos. “Mamluk (em castelhano mameluco) é uma palavra árabe que significa “possuído”, isto é, escravo de origem não-muçulmana. Os escravos que compunham a instituição mameluca dominante tinham chegado ao Egito e à

Síria como pagãos, levados por venezianos, genoveses e outros comerciantes, para serem vendidos lá. O desprezo pelo sultão al-Alfi deve ser interpretado pelo fato dele ter custado mil dinares, enquanto o grande Baibars, chicote dos cruzados e

mongóis, custou somente quarenta dinares, porque tinha um defeito em um olho. Os jovens mamelucos comprados pelos sultões ayúbidas recebiam uma instrução

islâmica e uma boa preparação militar em escolas especiais do Cairo, e após vários anos, eles saíam completamente transformados e eram alistados no corpo dos

mamelucos reais, recebendo a liberdade, cavalos e o devido equipamento, além de uma posse de terra que lhes permitisse viver independentemente. Em sua época

áurea, o soldado mameluco da cavalaria era notável por sua habilidade equestre e o manejo das armas, especialmente o arco e a lança. As tropas mamelucas

mantinham seu alto nível de manejo das armas com um treinamento regular e exercícios em vários terrenos especialmente delimitados para isso próximos do

Cairo. A literatura que chegou até nós destes exercícios cavaleirescos (furusiyya) dá-nos descrições detalhadas dos procedimentos utilizados, com ilustrações úteis

do equipamento que eles usavam. Havia ainda exercícios coordenados de cavalaria, jogo de pólo e esgrima, luta livre e arco.” – SHAMSUDDÍN ELÍA, R. H. Los

mamelucos, guardianes del Islam. Esse comércio feito principalmente a partir do Mar Negro e que abastecia o sultão com os melhores soldados, poderia ser

interrompido por qualquer um que controlasse Constantinopla. In: Documents on the Later Crusades (1274-1580) (ed. and translated by Nourman Housley). London:

Macmillan Press, 1996, p. 48, n. 3.

[9] Raxet ou Raycet é uma pequena ilha na face de Alexandria, conhecida sob o nome de Rosetta (em árabe Rashid). Cf. Encyclopédie de l’Islam, art. Rosetta de

ATIYA Aziz Suryal.

[10] Provavelmente os reis de Castela, Aragão, Portugal e Navarra. In: Documents on the Later Crusades (1274-1580) (ed. and translated by Nourman Housley).

London: Macmillan Press, 1996, p. 48, n. 4.

[11] Vila da Andaluzia, situada na província de Jaén.

[12] Llull refere-se à batalha de Las Navas de Tolosa, em 1212. In: Documents on the Later Crusades (1274-1580) (ed. and translated by Nourman Housley). London: Macmillan Press, 1996, p. 48, n. 5. Para essa batalha, ver COSTA, Ricardo da. “Amor

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e Crime, Castigo e Redenção na Glória da Cruzada de Reconquista: Afonso VIII de Castela nas batalhas de Alarcos (1195) e Las Navas de Tolosa (1212)”. In: OLIVEIRA,

Marco A. M. de (org.). Guerras e Imigrações. Campo Grande: Editora da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMS), 2004.

[13] Três reinos da África do Norte.

[14] Na verdade, o Concílio de Vienne só se realizou em 1312, três anos depois da redação desse texto.

[15] Em várias passagens O Alcorão chama Jesus Cristo de Espírito de Deus (Surata 4, versículo 170; S 5, v. 110; S 19, v. 16; S. 21, v. 91; S. 66, v. 12), Palavra de Deus

(S 4, v. 170) e Messias (S 3, v. 44), mas não o considera Filho de Deus.

[16] Cf, O Alcorão (Suras 2, v. 38; 3, v. 64 e 5, 18). Ver también GARDET, Louis y ANAWATI, M. Introduction à la Théologie musulmane. Paris, 1948 (p. 22-23).

[17] Trata-se da teoria luliana da primeira e segunda intenção. Ver O Livro da Intenção. Na Doutrina para crianças, Llull também faz uma analogia entre o

Judaísmo e o Cristianismo e a primeira e a segunda intenção: “A Lei Velha existiu para que fosse principiada e fundamentada a Lei Nova, e a Lei Nova existiu para que fosse o fruto e o cumprimento da Velha. E isso é assim, filho, em todas as

coisas de acordo com a Lei Natural, pois o que vem primeiro convém ser o fundamento, e o que vem depois ser fruto e cumprimento.” Ver RAMON LLULL.

Doutrina para crianças, cap. LXIX. Da Lei Velha, 6.

[18] Trata-se do Libre del gentil e dels tres savis (Liber de gentili et tribus sapientibus), escrito provavelmente nos anos 1274-1276 e publicado em OS, vol. I,

p. 91-272). Tradução brasileira: O Livro do Gentio e dos Três Sábios. Petrópolis: Editora Vozes, 2001.

[19] Trata-se da Disputatio Raymundi christiani et Hamar saraceni (= De fide catholica contra sarracenos), escrito em abril de 1307 na cidade de Pisa. Publicado

em ROL 131.

[20] Miramamoli, Miramamolinus, Miramomelinus, Miramolino, etc., são deformações da palavra árabe Amîru-l-Mu'minîn, que significa "Príncipe dos

crentes", nome dado aos califas. Este exempla também se encontra em outra obra de Llull, a Disputació de cinq savis (Liber de quinque sapientibus) escrita em 1294

na cidade de Nápoles (publicada em ROL 56).

[21] Chamado por Abul-Feda de Khorbanda, e pelos persas de Gayathoddin Khodabandeh, foi o cã Oldjaitou, irmão e sucessor de Cassan (morto em 1304).

Carbenda foi batizado por seu pai e permaneceu na religião cristã até a morte de sua mãe, Uruk. Depois disso, se declarou muçulmano e perseguiu os cristãos. Ver TOURNEBIZE. “Histoire politique et religieuse de l'Arménie”. In: Revue de l'Orient

Chrétien, 1905, p. 370 e 374 (nota).

[22] Na Disputatio Raymundi christiani et Hamar saraceni, Llull fala de três imperadores dos tártaros: o principal é o Grande Cã, que possuía o território do

Preste João (ver COSTA, Ricardo da. “Por uma geografia mitológica: a lenda medieval do Preste João, sua permanência, transferência e morte”. In: COSTA,

Ricardo da e PEREIRA, Valter Pires (orgs.). História 9. Revista do Departamento de História da UFES. Vitória: UFES, 2001, p. 53-64); o outro era o imperador Cotay,

quem reinou nas regiões setentrionais do império; e o terceiro era Carbenda, citado anteriormente, que possuía a Pérsia até a fronteira com a Índia.

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