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Títulooriginal:Lavoiedelacolère
Copyright©2013porBragelonneCopyrightdatradução©2018porEditoraArqueiroLtda.
Todososdireitosreservados.Nenhumapartedestelivropodeserutilizadaoureproduzidasobquaisquermeiosexistentessemautorizaçãoporescritodoseditores.
tradução:DorothéedeBruchard
preparodeoriginais:SuelenLopes
revisão:FláviaMidorieLuisAméricoCosta
projetográficoediagramação:ValériaTeixeira
imagemdecapa:LarryRostantviaArtistPartnersLtd.
adaptaçãodecapa:MiriamLerner
adaptaçãoparae-book:MarceloMorais
CIP-BRASIL.CATALOGAÇÃONAPUBLICAÇÃOSINDICATONACIONALDOSEDITORESDELIVROS,RJ
R763L Rouaud,Antoine
Olivroeaespada[recursoeletrônico]/AntoineRouaud;traduçãodeDorothéedeBruchard.SãoPaulo:Arqueiro,2018.
recursodigital
Traduçãode:LavoiedelacolèreFormato:ePubRequisitosdosistema:AdobeDigitalEditionsMododeacesso:WorldWideWebISBN978-85-8041-812-5(recursoeletrônico)
1.Ficçãofrancesa.2.Livroseletrônicos.I.Bruchard,Dorothéede.II.Título.
17-46903 CDD:843CDU:821.133.1-3
Todososdireitosreservados,noBrasil,porEditoraArqueiroLtda.
RuaFunchal,538–conjuntos52e54–VilaOlímpia04551-060–SãoPaulo–SP
Tel.:(11)3868-4492–Fax:(11)3862-5818E-mail:[email protected]
www.editoraarqueiro.com.br
AGreg,meuamigo,meuirmão,
cujoapoioeamizade,apesarda
distância,fizeramcomque
eununcaparassedeescrever.
ParteI
1
Umcheirodelavanda
Chegaumdiaemnossavida,
ocruzamentodaquiloquefomos
comaquiloquesomoseaquiloqueseremos.
Nessemomento,aotérminodetudo,
équedecidimosqualseráonossofim.
Comorgulhoouvergonhadatrajetóriapercorrida.
Esitallae,Esitalleen,Esitallarae.“Oquefoste,oqueés,oqueserás.”Esseeraolemadacidadeportuária.Poucoimportavaqual
haviasidoseuverdadeirosignificado:omaishumildedosviajantesoconhecia,mesmosemnuncaterestadoali.Aosuldosantigosreinos,Massáliasempreforaacidadeondetudoerapossível.
A começar por sua posição geográfica. Situada nos confins do mundo, distante da cidadeimperial, constituía o derradeiro vestígio de civilização antes do oceano do Oeste, até entãoinexplorado.DeseuportozarpavamdiversosnaviosmercantesrumoàsilhasSúdiasou,costeandoolitoral,emdireçãoàscidadesdoNorte.
E tambémporsuahistória.Acidade fora tantasvezessitiada,epor tantosreinos,que jánempossuía arquitetura própria. Cada bairro trazia a marca de sucessivos governos, desde as altastorresquadradasdoperíodoAztene, caracterizadaspor seus cimosornadosde chifresdedragão,até as altivas casasdadinastiaCagliere e suas sacadas floridas, semesquecer as três catedraisdaOrdem de Fangol, duas delas erguidas sobre os despojos ainda fumegantes de templos pagãos.Poucoimportavadeondevocêvinha,quemera,oquepodiaviraser.Massáliaerafeitadahistóriadetodososreinosantigos.
Algunsdiziam:“Ricooupobre, fracooupoderoso,vocêque fogedorestantedomundopodeestarcertodequeaqui,naencruzilhadadospovos,sótemaganhar.”
Nada era capaz de abalar os sonhos que uma simples menção aMassália suscitava. Nem a
chuva forte que desabava sobre as telhas vermelhas. Nem a lama que ela arrastava pelas vielasestreitas. Emuitomenos a fachada de pedras gastas daquela estranha construção, cujas janelasabertaspermitiamouviraalgazarradeanimadosbeberrões.
–Temcertezadequeéaqui?–perguntouumavozrouca.Por baixo do grande capuz, Viola ergueu ligeiramente a cabeça para observar a porta da
taberna.Gotasde chuva escorreramdevagarpelas lentesde seusóculos redondos, embaçando avisãodasjanelasiluminadas.Elaassentiueavançou.Asbotasafundaramnalamacomumchiadodesagradável. Sua sombra esbelta na porta demadeira de repente foi encoberta pela do homematrásdela.Violahesitou,amãonapesadamaçanetadeferro.Filetesdechuvaescorriampelometalnegrosalpicadodeferrugem.
Vocêquefogedorestantedomundo...Elanãopodiamaisrecuar.Estavacomabocaseca,masnãopodia.Sabiaquenaquelataberna
encontrariaquemprocurava.Opigarrearde seucompanheiroadespertoudodevaneio.Comumgestobrusco,agarrouemoveuamaçaneta.
...podeestarcertodequeaqui,naencruzilhadadospovos,sótemaganhar.Oarfrescosedissipounasespiraisdefumaçaacrequesubiamatéoteto.Acadênciadasgotas
caindonochãodesapareceuaosomdasvozesedosrisos.Umrelâmpagolançouumfugidiovéusobreosombroscorpulentoseacabeçacalvadohomem.ElefechouaportaantesdeseguirViola.Por fim, surgiu à luz dos lampiões a óleo. Uma criada parou diante dele, por pouco nãoderrubando a bandeja. Observava, estupefata, as tatuagens que cobriam sua pele morena,serpenteandograciosamentepelasmínimasprotuberânciasdorosto.Elesustentouoolharporuminstante,atéqueelaresolveuservirumamesapróxima.Osvelhosmercadoresdetrajessemgraçaaplaudiramachegadadacriada.
Ostemposhaviammudado.Osnâagasjánãoassustavamninguém.Afinal,oquehaviadetãosurpreendente em um Selvagem estar naquela cidade, ainda mais na periferia? Se o Império seconstituíra apenasdehomens civilizados, aRepública se gabavade abrir asportasparaqualquerum...ouqualquercoisa.
Elepercorreua salacomumolhardesconfiado.Emboraosviajantes fossem,emsuamaioria,mercadoresdepequenascidadesdoOeste,emMassáliaapenasanegócios,tambémhaviaoutros,deumtipobemdiferente.SoltouumgrunhidoaoverViolaabrindocaminhoentreosclientessemsequeresperarporele.Conheciaaqueles lugares,osbandidosqueali seentocavam,operigoqueumsimplesolharmalinterpretadopodiadesencadear.
Quandoaalcançou,elajátinhachegadoaobalcãoemostravaumpedaçodepapelamassadoaumhomemderostoredondo.Enquantooajeitavaparalermelhor,otaberneiropassouamãonatestacalva,peroladadesuor,efezumacareta,perplexo,deixandoàmostraostrêsdentesquelherestavam.
–Dun...Dun...–pensouemvozalta.–Ah, claro, équeagente falaDan!Éumsujeito ládoOeste.Eunãoestavaentendendo...Porqueagente falaDan,masescreveDun.TípicodopessoaldoOeste.Vaientender,elesnãosãocomoagente.
–EsseDun...eleestáaqui?–perguntouViola.
Otaberneiroarqueoua sobrancelhaeexaminouprimeiroamoça,depoisonâaga,que,à suadireita, apoiava os cotovelos no balcão. Aquele rosto tão sombrio e as serpentes tão negras quepareciamdançarnapele lisadeixavam-nopoucoàvontade.Nãoseacostumavacomaquilo,maspor que deveria rejeitar um novo cliente ou arriscar uma briga? Com um gesto nervoso, tentouajeitaracimadaorelhaumamechadocabelogrisalhoemaranhado.Amulheraindaestavacomograndecapuz,umasombraocultandoapartesuperiordeseurosto.Malsevislumbravaoclarãodeumlampiãorefletidonaslentesdosóculos.
–Quemsãovocês?–resmungou,fitandoocabodaclavaqueseprojetavaacimadascostasdogigante.–Nãoqueroconfusãoporaqui.
–Nãoviemoscriarconfusão–garantiuViola.–Rogantéapenasmeu...protetor–acrescentou,tirandoocapuzlentamenteeesboçandoumsorriso.
Adesconfiançado taberneiro se desfez ao ver o rostode traçosdelicados. Por trás das lentesdospequenosóculosredondos,osolhoseramamendoadoseverde-escuros.Nasmaçãsdorosto,sardassalpicavamapele leitosa,deumabrancuraquerealçavaocabelodeumvermelhointenso,presoemcoque,duasmechasrebeldesjuntoàsorelhas.
–O senhor certamente entende que, sem ele nesta parte da cidade, quem pode semeter emconfusão...soueu.
Ela era bonita, tinha apenas 20 anos. Uma presa fácil para algum crápula escondido naescuridão das vielas. Nas bordas de sua capelina havia finas ondas douradas caprichosamentebordadas.SenãoeraumasobreviventedoexpurgoqueseseguiraàquedadoImpério,entãofaziapartedosemergentesrepublicanos.
– Dun é apenas um velho – explicou o taberneiro enxugando as mãos úmidas num panoimundo.–Émeiomaluco,masnuncafezmalaninguém...
–Eujáfaleiquenãoviemosaquiparacriarconfusão...–Tudobem.Eledizquejáfoisoldado,masnãoéperigoso,sabe...–Eusóqueriaconversarcomele–insistiuViolasuavemente,pronunciandobemcadapalavra.– Lembro que, cinco anos atrás, também quiseram “só” falar com um cara como o Dun –
rebateuotaberneirocomumolharsevero.–Esabeoqueaconteceu?Nodiaseguintefoienforcadoempraçapública,soboclamordamultidão.
–Oexpurgoacabou–garantiuamoça,comarconstrangido.O taberneiro trocou um olhar com o nâaga. Nada em seus olhos negros indicava qualquer
artimanha.–Éoquedizem–murmurouohomem.Ele enxugou a testa e aguardou um instante, como se avaliasse as consequências de uma
eventual delação. Como se questionasse se não era melhor mentir. Quando ergueu a cabeça,pareciatristonho.Elepróprioderacomalínguanosdentesaomencionaropassadodovelho.
–VocêssãodeÉmeris,apostominhacabeça.– Não cortamos cabeças – afirmou Viola, contendo um estranho sorriso. – E também não
enforcamosmaisninguémsemjulgamento.–Mas...algunsimperiaisaindaestãosendoprocurados...
Otaberneirosecontraiu.–Sim–admitiuelacomumtomquesepretendiatranquilizador.–Alguns.Masnãoéporisso
que estou aqui. Não acredito que Dun tenha cometido algum crime, estava apenas cumprindoordens. Só quero conversar com ele. Basta nos dizer se ele está aqui e... juro que não vamosincomodaralémdonecessário.
–Nadadeconfusão,hein...–advertiuotaberneiro,lançandoumolharparaRogant.–Sóconversar–repetiuViola.O taberneiro jogou o pano sobre o ombro e procurou entre as pessoas uma figura familiar.
Quando a avistou, sentada a umamesa, apontou-a com a cabeça.Viola se virou e levou algunssegundos para ter certeza de que era ele. Trocou um olhar com o nâaga, que não lhe foi denenhumaajuda.Rogantselimitavaavigiar,meioapreensivo,osmovimentosdaclientela.Amoçase despediu do taberneiro com um gesto e se embrenhou entre os clientes. Alguns olharesmaliciososaacompanharameoshomensassobiaram.Aoredor,ascriadasseapressavamlevandoumajarraemcadamão.Ressoavamasrisadasexageradasdosmercadores.Eaquelecheirodesuormisturado com a pungência da fumaça se espalhava por todo o local. Ficou pior quando ViolachegouàmesadeDun.
– Só umas moedinhas, Dun... Eu devolvo em dobro – suplicava um homem pequeno,segurandoumchapéucomforça.
– Já disse que não quero mais ver sua cara imunda na minha frente! – vociferou o sujeitosentadoàmesa.
Ocabelogrisalhoestavasalpicadodesujeira;nanuca,haviaumamanchaescura.Sesuacamisaalgumdiaforabranca,restavamnasmangasapenasunspoucosvestígiosdacororiginalsobumacamadacinzentaemarrom.Seugibãodecouroestavatodorachadonascostas.
– Eu posso me recuperar. Quatro homens estão vindo de Serray e não entendem nada decrapô...Dun,vocêmeconhece,possoganhardelavada.
–Vocênãodevia ter faladocomigodesse jeito.Euaté teriaadiantadoalgumparavocê jogar.Masninguémfalacomigodesse jeito–retrucouosujeito,apontandoumdedoacusatórioparaohomenzinho.
Depoismoveuobraçonumgestoqueofezcambaleareindicou-lheumamesaemquequatrogaiatoscomgrandesmantospúrpuracantavamaplenospulmões.
–PoisváfalarcomessessujeitosdeSerraydojeitoquefaloucomigo–resmungou–elogovocêvaiestarlambendoochão.Talvezfinalmentepercebaqueeusoubastantegeneroso.Sumadaqui.
Cabisbaixo,ohomenzinhovirou-seedesapareceuentreosclientes.ViolasentiuapresençadeRogant às costas. Moveu rapidamente a cabeça e, por sobre o ombro, eles se entreolharam. Onâaga assentiu. Ela então contornou a mesa e se postou na frente do velho. Com as mãossegurandoumlargocaneco,eleergueuassobrancelhasaonotá-la.Duntinhaumrostomarcadopelotempoeumabarbaincipienteemvoltadoslábiosrachados;umagrossacicatriztraçavaumacurvaembaixodoolhodireito.Correspondiaperfeitamenteàdescrição:umhomemrude,cujavidaseresumiraaumalongasequênciadebatalhas.
–Dun?
Elenãorespondeu.–Possomesentar?–perguntouela,amãonoencostodacadeira.Ovelhonãoreagiu.–Nãovoutomarmuitodoseutempo.Elebebeuumgoleenquantoelasesentavaequaseengasgouaoverqueonâagaseinstalavaà
suadireita.–O que esse Selvagem está fazendo àminhamesa? – resmungou, lançando um olhar feroz
paraViola.–Rogantéumnâaga–explicouelasecamente.–NãoéumSelvagem.Eamaioriadelesagora
é sedentária, sabia? São criaturas iguaizinhas a mim e ao senhor. – Ajeitou os óculos com oindicadorantesdeacrescentar:–Eleestámeacompanhando.
–Umtatuadosedentário,é?–Dunsuspirou.–Eissoláédesculpaparasesentarcomigosemserconvidado?
Elasustentouseuolharcomtantafirmezaqueeleodesviouparaonâaga.Lutaratantasvezescontra eles que achava insuportável que aRepública os tolerasse. Esses bárbaros incultos tinhamqueimado cidades e agora vinham se estabelecer semque ninguém se importasse. Infiltravam-secomo as serpentes que tanto veneravam. E um deles estava ali sentado ao seu lado. Sua mãocomeçouatremer.Elecerrouopunho.
–DizemporaíqueosenhorserviunoexércitonostemposdoImpério.–DizemcoisasdemaisemMassália–declarouDun,esorveutodaabebidadocaneco.–EunãosoudeMassália–retorquiuViolaesorriu.Uma criada substituiu a jarra vazia, trouxe mais dois canecos para Rogant e Viola e depois
desapareceu.– Não... é claro que não –murmurouDun, fitando-a. – Você usa roupas finas, trabalhadas,
cobertasdeumalevecamadadepoeira...Andouviajando...etemberço.–NãoexistemaisissodeterberçodesdequeoImpérioacabou–corrigiuViola.– Ah, é mesmo! – ironizou ele, servindo-se de vinho. – Para a República, pouco importa o
sangue.Qualquerumcomdeterminaçãosuficientepodechegarláemcima.Jáouvifalarnessas...–eletomouumgole–...baboseiras...–concluiucomumgrunhido.
Viola trocou um olhar decepcionado com o guardião. Um breve sorriso surgiu em meio àstatuagensdeRogant.
–MeunomeéViola.SouhistoriadoranoGrão-ColégiodeÉmeris.–Edaí?–zombouDun,virando-separaelacomumsorrisoforçado.–Vocêspodiamesperara
minhamorte antes de começarem ame estudar como se eu fosse uma relíquia.Nomeu tempo,tinha-semaispaciência.
–Eunãovimestudarosenhor–retrucouViola,comumaexpressãodenojo.Elemeneou a cabeça, as sobrancelhas erguidas. Ela era bonita, embora um tanto jovem.Os
óculosdeintelectualeocabelocordesanguecomasduasmechasroçandoapeledemarfimnãoodeixavamindiferente.Maisqueisso,elaexalavaumdeliciosocheirodelavandaquereavivavaneledocesrecordações.Comojuízoembotadopelaembriaguez,porummomentosentiu-seatraenteo
bastanteparaconquistá-la.Esqueceu-seatédesuadesconfiança.–Estouàprocuradeumacoisaeachoqueosenhorpodemeajudaraencontrá-la–explicou
Viola.–Percorriosantigosreinos,converseicommuitosmercadores,viajantes...atéqueumdelesmencionouumantigosoldadoqueconheceraemMassália.
Ele suspirou, asmãos segurando o caneco, o olhar enevoado. Voltou-se para o nâaga e seurostoenrijeceudeimediato.Roganteratãodiscretoqueovelhoquaseseesqueceradele.
–Edaí?–indagouDun.–E daí que ele disse ter ouvido, da boca desse antigo soldado, umahistória surpreendente –
prosseguiu ela. –Revelouque o senhor contou sobre a quedado Império e como, destacado emÉmeris,teriafugidodacidadeimperial...
Violainspiroufundo,baixandoosolhos,comoseprocurasseaspalavras.Dunolhavaparaelaenquantotomavamaisumgole.
–...levandoaEspadadoImperador–acrescentouViola.Ele ficouparado, o caneco escondendo a parte inferior do rosto, o vinho escorrendodevagar
doslábios.Eracomosetivessesurgidoumaluztriste,umclarãofugazemseusolhos.Aalgazarradatabernapareceuseatenuar,poisemsuacabeçaressoavaotumultodeumabatalha.Aagitaçãoambiente logo o trouxe de volta à realidade, mas seu coração estava batendo mais forte. Umapontada no peito, dura e seca. Respirou profundamente enquanto largava o caneco namesa, oolharvagueandopelasranhurasdamadeira.
–VocêsestãoprocurandoEraed...–EstamosprocurandoEraed–confirmouViola.–Eachamqueelaestácomigo.Dunsorriu.–Não–respondeuViola.Ela afastouumadasmechas com amão enluvada. Então pegou a jarra e pôs-se a encher os
canecos trazidospela criada.Overmelhodovinhocaiu sobreoocredoscanecos feito sanguenaterra.Comumolhardébil,Dunpassouamãopelabarba.
–Osenhorsabeondeaescondeu...–Esenaquelanoiteeuestivessementindosóparameexibir?–sugeriuDun,coçandooqueixo.–Achoquenão.Violasorriu.–Vocênãosabe–rebateuele.– Tenho certeza. Disseram-me que o senhor se referiu aos territórios do Leste, para além de
Vershã.Foiláqueaescondeu,nãofoi?–VamossuporqueeuestejacomEraed.OqueissointeressaàRepública?–Essaespadaserviuàfamíliaimperialdurantemuitosanose,antesdela,àsfamíliasreaisdos
Caglieres,dosPerthuis,dosMajoranos...Possocontinuar,sequiser.–NãosouumgrandeapreciadordeaulasdeHistória–confessouele.–Jáimaginava.Dundesviouoolhar,perplexo.
– Essa espada representa tudo que essa sua República detesta – argumentou ele, tornando aencararViola.
–Essaespadasupostamenteémágica.Residiunabainhademuitosheróis...combateudragões.Fazpartedahistóriadestemundo,sejaelegovernadopeloImpériooupelaRepública.
OsolhosdeDunseestreitaram,oslábiosestremeceram.Inclinou-separatráscomumasonoragargalhada, chamandoa atençãodasmesasvizinhas. Sentadanocolodeumvelhomercadordeaspectofrágilcomoumgravetoseco,umamulherforteseesforçouparaouviraconversa.Logofoidissuadidaporumolharsombriodonâaga.
–Heróis?–Dundeuumarisada.–Dragões?Vocêestáouvindooquediz?Serumherói,matardragões,éacoisamaisfácildomundo.Vocêsabeoqueéumdragão?Jáviualgum?
Violahesitouantesdebalançaracabeça,umpouconervosa.Nãoestavagostandodazombariadovelhosoldado.Masprecisavaaguentar.Tinhasidoavisada.
– Sãomeros lagartos – ironizouDun. –Uns lagartões idiotas... comoos que esse seu cão decaçaadora.–Virando-separaRogant,prosseguiu:–Deixe-meadivinhar.VocêeesseSelvagemvãopedirque euvá atéos territóriosdoLestebuscarEraed.E,no caminho,queperigos teremosqueenfrentar? – Seu tom oscilava entre o deboche e o desprezo. – Lutar contra monstros de queninguém nunca ouviu falar, salvar castelos sitiados, matar dragões, rá rá... Você é jovem. Melembraumapessoa.Sempresonhando,acreditandoemgrandesfaçanhas,imaginandoumdestinoaserescrito.Éissoquevocêsfazem,aliás,nessasua...República.Omundolhespertence,vocêsnãotêmmedo de nada, se jogam com tudo.Na verdade, não sabem quase nada domundo que oscerca... e quando a realidade surge... – bateu asmãos, cerrando os dentes – ... ela esmaga vocêscomosefosseminsetosatrevidos.Acreditamemlendaseseesforçamtentandoescreveradevocês.Achamquepodemtudo,aindanaauroradavida,porquedetêmAVerdade.Poisvoulhedizerumacoisa...
Comumgesto,convidouViolaaseaproximar.Inclinando-se,sussurrou:–Aescolhanãoésua.Issoésedarimportânciademais.Estáconvencidadequeseudestinolhe
pertence,quecriarosmelhoresmomentossódependedevocê.Poissaibadeumacoisa:odestinodos homens nunca passou de um murmúrio dos deuses. – Sem tirar os olhos de Viola, ele seendireitou, balançando a cabeça. – Nada mais que um murmúrio. Os deuses selaram nossosdestinosjánacriaçãodestemundo.Sóquevocês,comessasideiastãograndiosas,seesqueceramdisso,nãoé?Nãoacreditamemmaisnada.Atémeespantaqueaindanão tenhamqueimadoasigrejas.
–Penseoquequiser,masaOrdemdeFangolvemsendorespeitada.–Vocêsdesconhecemosentidodapalavra“respeito”–criticouDun,balançandoacabeçacom
ardedesprezo.–VocêsseesqueceramdoLivro.Vocêsorenegaram.–Cadaumdenósélivreparaacreditarounão.Esteéummundonovo.–Nãoéomeumundo–confessouele,fazendocaretaelançandoumolharparaonâaga.Elanãotinhaamenordúvidadequeaqueleeraohomemqueprocurava.Talvezprecisasserever
suaestratégiaemexercomseuspontosfracosparaqueelebaixasseaguarda.–Quemestádizendoisso?Osimplessoldadobemdistanteda linhadefrenteouobêbado?–
perguntou.–Ouambos,quemsabe?Achodifícildistinguir.Osdoissãotãocovardes...Osemblantedovelhoseenrijeceu.–Estámeofendendo–murmurou.– Émesmo,Dun?O quemais eu poderia saber a seu respeito, além de que fugiu de Émeris
roubandoEraed,aEspadadoImperador?Elenãoestavabêbadoapontodesedeixarlevarpelaraiva,nemlúcidoobastanteparamedir
as consequências de seu gesto. Estendeu amão e, sem que seus dedos encostassem em nada, ajarradeslizoupelamesa.Violaficousemfala,osolhosarregalados.Ajeitoubemdevagarosóculos,como se para se certificar de que estava enxergando direito. Rogant ficou paralisado, os braçoscruzados.
OSopro.SomentegrandescavaleirosdoImpériosouberamusaroSopro.E,desdesuaqueda,poucosaindaeramcapazesdedemonstrá-lo.Odomtinhaseperdido.
As risadas na taberna já não passavam de ecos distantes e as pessoas eram vultosfantasmagóricos. Só a jarra atraía a atenção de Rogant e Viola. Tinha mesmo se mexido. Dunafinal se deu conta de quanto aquele gesto o prejudicara. Ele, que vivia contando sua vida desoldado, revelara sua verdadeira face para umamoça vinda doGrão-Colégio de Émeris. ElamalconheceraoImpério.Oqueiapensardele?Queeraumdessesaçougueirosdosantigosreinos,uminimigo da República que ela defendia? Ela, que vinha para aquelas bandas escoltada por umbárbaro,uminimigoemsuaantigavida,saberiadarmostrasdediscernimento?
–Osenhornãoéumsimplessoldado–balbuciouViola.–Éumcavaleiro.–Ora–disseDun,desviandooolhar–,acavalariamorreujuntocomoImpério...Dun.Ela repetiuonomementalmente, tentando relembrar suas aulasdeHistória.Dun... era
umnomefamiliar.–Dun-Cadal–murmurou.Osolhosdovelhobrilharamdetristeza.–OsenhoréDun-Cadal,ogeneralDun-Cadal,dacasaDaermon–prosseguiuViola.–Dun-
Cadal,ogeneraldabatalhadasSalinas,que...–Estavadistantedalinhadefrente,comoumcovarde?–interrompeueledesupetão.Viola não soube o que responder. A batalha das Salinas tinha entrado para a História não
apenas por suas consequências, mas também, e talvez fosse o principal motivo, por suainacreditável violência. Poucos tinham conseguido se salvar. Quanto ao general, vagueara pormeses em território inimigo, até cruzar sozinho a demarcação e conseguir chegar a Émeris.Realizaragrandesfaçanhas,masesseato,entretantos,foioqueficaragravadonamemória.
–AespadaestánosterritóriosdoLeste.Poisvábuscá-laeparedemeimportunar.VábuscaroquerestoudoImpérioeaexibaparatodos.
–Entãoosenhoradmitequeaempunhou...Elepareciaalheio,oolharfixonovazio,aspálpebraspesadas.–Euadmitomuitacoisaquandobebo.Falocoisasdemais!–vociferou.–Vá,vádespejarseufel
sobre a lâmina de Eraed, e o cabo vai parecer sem brilho comparado com sua arrogância –murmurou,comoqueparasimesmo.
Elenãotinhanadaavercomela,nemcomonâaga,nemcomoqueelepróprioforaumdia.Naquele lugar era apenasDun, e isso já eramaisque suficiente.Violaoobservava comatenção,reparando em cada detalhe do seu rostomarcado pelo tempo, nas rugas que percorriam a facemorena.Ele,ogloriosogeneral,escondidonaperiferiadeMassália.Dunnãovieraàquelacidadeembuscaderenascimento,masdamorte.Elaentãonotouqueeleestavasentadodecostasparaaporta.Qualquerumpoderiasurpreendê-lo.Aocontar,noiteapósnoite,quetinhasidoumsimplessoldado do Império, talvez esperasse que alguém viesse se vingar, dando então um fim ao seusuplício.
–Osenhorestáaquisóesperandoamortechegar–disseViola.–Nãoesperonadaquenãopossammedar.Comomaisumajarra.Quetal?Comum sorriso tristenos lábios, ajeitou comamão trêmula o recipiente vazio. Lançouuma
estranhaexpressãoaogigantesentadoàsuadireita.Comodecostume,Rogantnãoreagiu.–Precisoda suaajuda– suplicouViola.–Essa espadaémuitomais importantedoquepode
imaginar.Tenhoqueencontrá-la.Noentanto,emmeioàalgazarradataberna,seupedidopareceunãoserouvido.Passou,entre
elaeovelho,afumaçavindadocachimbodeumhomemgordosentadoaumamesavizinha.–Porfavor,Dun-Cadal...Quasesemar,eleafastouaespessanuvemdefumaçacomummovimentorápido.Eraperdade
tempo.Nãoestavamaisouvindo.Rogantseinclinouparaelaeseuolharfoieloquenteobastanteparaelenãoprecisarfalar.Violapassouasmãosenluvadaspelacapelinaquemaltinhasecadoeselevantou.
–Muitobem–declarou.–Achoquenãoadiantaficarimplorando.Puxouocapuzlentamente.Apenasobrilhodeseusolhosaindaeravisívelemmeioàsombra
quetomouseurosto.– Pensei que estava falando com o grande general Dun-Cadal,mas pelo jeito estava errada.
Olhesóparao senhor...Nãoénema sombradoque foiumdia.Nãopassadeumacascavazia,semnenhumadignidade,quesósabeerguerocopocomamargura.Édifícilacreditarque tudooque feznabatalhadas Salinas seja verdade.Olhandoparao estadodo senhor, é impossívelnãoduvidardequetenhasidoumgrandehomem.
EmmomentoalgumeleergueuosolhosparaViola.–É...Osenhorveioparacáesperaramorte.Sónãopercebeuquejáestámorto.Pormaisque
tenteesconderaidentidadeparanãomacularsuaantigaimagem,nãoadianta.Quandoomundosoubernoque se transformouDun-CadalDaermon... a única lágrimaderramadanão vai ser detristeza,masdepena.
Nãoesperoupelarespostaedesapareceuentreaspessoas,seguidapelonâaga.Enquantooarfriodavielaamenizavaosodoresdeálcoolesuor,aindaseperguntavasetinhaconseguidoatingirospontosfracosdele.Debaixodachuva,diminuiuopasso.
–Confie–aconselhouRogant.Confiar? Nemmesmo tinham se dado ao trabalho de avisá-la que se tratava de Dun-Cadal
Daermon,enãodeumsimplessoldado.
–Euconheçoessehomemhámaistempoquevocê–continuouRogant.–Elesabeoquefaz.Então,comoseparaconfirmarsuaspalavras,umavozsoouatrásdeles:–Ei!Viola virou-se devagar. Em pé junto à porta da taberna, Dun-Cadal parecia ainda mais
lamentávelqueàmesa.Achuvaescorriaporseurostoetalvezsemisturasseaalgumaslágrimas.–OquesabesobreDun-Cadal?–rosnou,avozoscilando.–Vocêvemaqui, senta-seàminha
mesaecospenoquefui.Noquesou...noqueserei...–Titubeante,elecerrouospunhos.–Oquevocêrealmentesabe?–exaltou-se.–OquefoiqueaRepúblicalheensinou?!
Andou alguns passos e encostou-se num muro. O clarão de um raio iluminou seu rostoenrugado.Pareciatão...destruído.
–Oquesabedaminhahistória?–perguntou,erguendoosolhosparaocéu.–Oqueeuvi,oqueeufiz?OquesabedabatalhadasSalinas?
Violanão semoveu.Limitou-sea ficarolhandoparaohomemrecostadona fachadadeumacasa, as botas cobertasde lama, o gibãode couro rachado, asmangasda camisamanchadasdevinho,eporfimdisse:
–Poisentãomeconte.
2
AbatalhadasSalinas
Minhainfânciaacabou
nodiaemque,pelaprimeiravez,
euhesitei.
Estavafresco,apesardocéucinzento.Noentanto,algoestrondava.Umsomquenãoparavadeaumentar, sobrevoando o capim alto dos pântanos. Não havia trovoada, apenas o brilho depesadasnuvens brancas, arrematadas com toquesde cinza como se para acentuar seu contorno.Nãoeraprecisosolparacegaroshomenspostadosnatrincheira.Bastavaobrilhodasnuvens.
Nãohaviatrovões,nemmesmoira,apenasosentimentodeestarcumprindoseudever.Acontecerahaviaquinzeanos.–Émelhorrecuar,Dun-Cadal–aconselhouumavoz.Umasombranegracruzouocéu formandoumarcoperfeito, seguidaporumsilvoestridente.
Antesmesmodeo som se tornar grave, a balade rocha e estopa revestidade graxa espatifou-seaospésdocavaleiro,semqueelesequeresboçasseumgestodedefesa.
–Émesmo?–murmurouDun-Cadalfitandoohorizontecomolhosfaiscantes.Diante dele se estendiam as salinas e os charcos, tão largos e extensos que o horizonte
estremeciacomovéudocalor.Malconseguiadistinguiroscontornosdoacampamento inimigo.Aoolhar para a cratera que efervescia a seus pés, contemplou os filetes de fumaça que saíamdabaladecanhãoaindaquente.Chutou-acomabotaparavirá-la.
–Négus–disse,pensativo–,tenhoaleveimpressãodequeopessoalestáficandoimpaciente.Entãovirou-se,comumsorrisozombeteiro.–Seráquevamosterquesergrosseiros?Ohomenzinhoroliço,engolidoporsuaarmadura,revirouosolhosantesderesponder:–Grosseriamaiorseriamorrerantesmesmodocombate.Éissoquevocêquer?Faziaduas semanasque aguardavamnas cercaniasdas Salinas semquenemumgolpe fosse
desferido. Apenas tiros de balista que nunca atingiam o alvo. O exército imperial, por sua vez,aindanãoseutilizaradaartilharia.Namedidadopossível,arevoltadasSalinasdeveriasercontidasemderramamentodesangue.Oimperador,noconfortodoseupalácioemÉmeris,achavaqueomedo inspiradoporseusregimentosbastariaparaos insurgentesdeporemasarmas.Mas, seemduas semanas ninguém desembainhara uma espada, tampouco alguma tinha sido abandonadanocampodebatalha...
Dun-Cadalaproximou-sedeseucompanheirodearmaseafagou-lheoombrocomfirmeza.–Nãotema,Négus.Eusempresintoocheirodamorte.Tirandoosal,nadaporaquitemfeito
minhasnarinascoçarem.Tinhacabelocastanhoecurto,queesvoaçavaaovento.Umabarbaralaemolduravaos lábios
estreitos, e seu rosto, embora aindabastante jovem, já trazia asmarcasdemuitasbatalhas.E elesabiaqueaquelanãoseriaaúltimaaenfrentar.Malchegaraefizeraquestãodeavaliarasituaçãoantes que outros generais a apresentassempor ângulosmais promissores. Puloupara dentro datrincheiraeesperouoamigoantesdeseguirandando.
Perderaascontasdequantoscombatestinhamatravessadojuntos,desdesimplesescaramuçasaté grandes camposdebatalha.De todosos generaisdo Império,Négus sempre fora seu amigomais próximo, seu igual, aquele que ignorava os boatos que circulavam sobre ele e suapersonalidaderude.ElepertenciaàcasaDaermon,cujanobrezaremontavaaapenasumséculo.Jáa famíliadeNégusestiveraao ladode todosospoderososdestemundo,dosprimeiros reinosaoImpério.Noentanto,AnselmeNagoléEgos, vulgoNégus, afávelpornatureza,nãovianissoummotivoparadesprezaraqueleque,inúmerasvezes,protegerasuavidanomeiodocaos.Aamizadedeles, conhecida por todos, não possuía fragilidades, era profunda como os vales dos territóriosselvagens, resistente como a pedra das minas de Kapernevic. O perigo só a fortalecera. Estavapróximadeumaverdadeirafraternidade.
Aolongodatrincheira,ossoldados,comalançaaolado,espreitavamohorizonte.Àpassagemdoscavaleiros,fizeramquestãodepareceremleaisapesardatensãoecumprimentaram-noscomopunho juntoaopeito.TodosconheciamDun-Cadal e sua intrepidezemcombate.Todosnutriamporeleumaestimasincera.Vê-locaminharaoladodeNéguspoderiareconfortá-los.Mas,emborafosseumbálsamoparaseuscorações,amerapresençadosdoisnãobastava.Estavamaflitoscomasituação, tão penosa que beirava a tortura, como bem demonstrava o cheiro dos excrementosestagnados no fundo da trincheira. Estavam ali havia duas semanas e o acampamento já seressentiadasmáscondiçõesdasSalinas.Pântanoelamaimpediamoshomensdeevacuaremsuasimundícies.
–Estãoapavorados–observouNégus.–Atéquenãodemonstrammuito.–Melhorassim.ElespertencemàunidadedocapitãoAzdeki.–OsobrinhodeAzinn?Aquelepatife?–espantou-seDun-Cadal.–Opessoaldafronteiranãooavisou?Jáfazdoisanosqueeleéresponsávelporestaregião.É
elequeatemcontroladodesdeoiníciodarevolta.–Controlado!–zombouDun-Cadal.–Esseidiotanãocontrolanemasimesmo.
–Aindanãohouvenenhumabatalha– retorquiuNégus enquantogalgavaapequenaescadaescavadanaterraqueconduziaaoacampamento.–Pode-sedizerquetemcontrolado.
Émesmo?ÉtienneAzdeki,sobrinhodobarãoAzinnAzdeki,dosbaronatosdolestedeVershã,nãoeraconhecidoporsuasabedoria,muitomenosporseutalentocomoestrategista.Ofatodeoimperadortê-loencarregadodaregiãodasSalinaspodiaservistocomoumsimpleserro,mas,comumaguerradespontandonessasterras,viravaumautênticodesafio.ÉtienneAzdekiforanomeadocapitão sem nenhuma experiência de guerra. Agir como era preciso nunca fizera parte de suasprerrogativas.Emcompensação,agircomobementendiaerasuaúnicalinhadeconduta.
–Nãoimporta–declarouDun-Cadal.–Fuienviadopeloimperadorparacoordenarastropas.OtaldeAzdekivaiterqueseconformaremfazeroqueeumandar.
–Vocêestásempretãosegurodesi,nãoé,Daermon?–Négussorriu.–Aquime sinto como se estivesse nos braços de uma cortesã! – respondeu o outro comum
largosorriso.–Aguerraécomooamor,eoamorécomoaguerra!Dezenas de milhares de tendas verde-escuras se espalhavam pelos pântanos, em meio aos
juncos e ao capim alto. Por todos os lados, cavaleiros de armadura se exercitavam em combatesingular no centro de rodas de espectadores atentos. A espera era mais perigosa que a própriabatalha.Otédioentorpeciaossoldados.Dava-lhes tempodesobraparapensarnoperigoqueosameaçava.Eracapazdeacabarcomsuaespontaneidadenahoradoenfrentamento.Duassemanaspodiamserpoucotemponumaguerra,maseramobastantequandonenhumaescaramuçavinhaquebrara inação.Dun-Cadalreceavaqueos insurgentesdasSalinascontassemcomessa letargiaparaimporseupróprioritmo.
Quando afastou as cortinas cor de púrpura da tenda do estado-maior, no centro doacampamento,soubequeeratardedemaisparacontrolararevoltarapidamente.
–Éprincipalmenteaquiqueestãoconcentrados...DebruçadosobreumaamplamaquetequerepresentavaasSalinas,umcavaleirodearmadura
pretamostravaumalinhaquemargeavaumapequenafloresta.Nasuafrente,umhomemdeuns30anos,de rostomacilento,narizaquilinoeos lábios finoscontraídos, escutavaatentamente, asmãos unidas às costas. No plastrão prateado da armadura, uma altiva águia segurava umaserpentecomasgarras.Eraoemblemada famíliaAzdeki,aherançadesuaconsagraçãoàépocadas grandes batalhas que haviamoposto a civilização do Império aos nômades nâagas até estesseremsubjugados.
–Nossosbatedorestentaramseaproximarparadescobrirquantasbalistaselestêmexatamente,masforamflagradostodasasvezes.Doisdelesnãoretornaram.
Eram cinco cavaleiros ao redor da sumária representação do território, todos vestindoarmaduras com as cores de suas casas, uma nobreza regional que, jurando lealdade à famíliaimperial, mandava seus filhos à academia militar para que servissem honrosamente no grandeexército. Somente osmais experientes alcançavam a patente de general.Devido à suanomeaçãocomocapitãodocondadodeUster,ÉtienneAzdeki tinhaabsolutaautoridadesobreospresentes.Eles não passavam de um reforço, todos submissos ao seu comando, embora fossemhierarquicamentesuperiores.Todos,excetoDun-Cadal.Aovê-lo,ojovemnobreretesou-se.
–Azdeki,multipliquepordois as balistas que vocês chegarama ver enquanto investigavamasituação – declarou Dun-Cadal, indo em sua direção sem ao menos conceder um olhar aoscavaleirosqueosaudavam.
–GeneralDaermon–cumprimentouAzdekiemtomríspido.Eleseinclinoumuitolevemente.Essesimplesgestopareceulhecustarmuito.–Azdeki–respondeuogeneral,sorrindo,antesdesedirigiraosdemais:–Éumprazertornara
vê-los,etãodispostosachutarotraseirodecamponeses!–Vocênãoperdeutempo–observoualegrementeohomemdearmadurapreta.–Vimomaisdepressaquepude,Tomlinn,ecustoaacreditarqueasituaçãonãoevoluiunada
desdeoiníciodoconflito.Dun-Cadal,comumaolhadela,reparouqueocantodabocadeAzdekiseerguianumamargo
sorriso. O imperador tinha mais respeito pelo general do que por qualquer outra pessoa.Circulavam boatos sobre os motivos do apoio, mas eram poucos os que podiam se gabar desaberemporquê.Amera ideiadeumaamizadeentreSuaSenhoriaeumemergente,mesmoquefosseumgeneral,eratãoimpensávelquenempassavapelacabeçadamaioriadosnobres.Emvezde ficar chateado, Dun-Cadal se vingava daquele desprezo contido não poupando comentáriosácidos.Ninguémiriasequeixar.
EstavaaliapedidodeSuaMajestadeImperialafimdeconsertarumasituaçãoextremamente...embaraçosa.
–Eagorameexpliquemdireitooqueestáacontecendo–pediuDun-Cadal.O tomdesuavoz seabrandara.Emboranão fosseestimadopelosgenerais,Dun-Cadal tinha
por eles uma intensa admiração. Dois deles tinham inclusive sido seus colegas de academia, demodoquenutriaporelesumaespéciedeafeto.Osentimentonãoera recíproco,masDun-Cadallidavabemcomisso.Sabiaqueeramtalentososnocampodebatalha,eeraoquelheinteressava.Tomlinn,dearmadurapreta,cabeçacalvaeumaenormecicatrizriscandoorosto,tomouapalavra,andandoaolongodamaquete.EraumdospoucosquesentiaalgumasimpatiaporDaermon.
–OcondadodeUsterestáclamandoporindependência.EorestantedaregiãodasSalinasseuniuàsuareivindicação.
–Eufizoqueprecisavafazer–interveioAzdekiimediatamente.Houveumsilênciopesado,quesuavoztrêmulaseesforçouparaquebrar:–Fazdoisanosquevenhotentandocontrolararegião,masessescamponesesnãoaceitamo
fatodeteremsidotraídospelocondedeUster.Estouapenasaplicandoalei!Pouco importava a Daermon que Azdeki tivesse agido por ordem do imperador, e não lhe
interessavam os motivos nem a forma como o caso tinha sido conduzido. Somente asconsequênciasmereciamsuaatenção.
–Esses camponeses formaramumexército que está enfrentando vocês e quenão se intimidadiantedaforçadoImpério–interrompeuDun-Cadal.
–Acheimelhornãoatacar–argumentouAzdeki.–Alémdisso,o imperadorconfiounomeudiscernimento.Nãosounenhumaficionadoporguerras.
–Nãotenhoamenordúvida–zombouogeneral.
–Daermon...–Négussuspirouatrásdele.Eretofeitoumposte,asmãosunidasàscostas,Azdekipareciaemebulição.Poruminstante,o
generalatéachouqueiaresponderàzombaria,maseleaguentouotrancoerespiroufundo.–Essaestratégiaaindapodefuncionar–admitiuNégus.–Quandoelessederemcontadeque
temos no mínimo cemmil soldados e mil cavaleiros capazes de usar o Sopro... certamente vãoentenderquequalquerbatalhaseriainútil.EmanteremosoImpériointactosemverterumagotadesanguesequer.
–OcondedeUstererabastanteestimado.HáquemdigaqueeletraiuoImpério–acrescentouTomlinn,aproximando-sedeDun-Cadal.
–Elesnãoconfiammaisemnós–completouumhomemcorpulentocomumaarmaduracordesangue.EmpéaoladodeAzdeki,elemoveuumblocodemadeiraquerepresentavaumalegiãodo Império. – O sentimento de revolta enche-os de coragem,mas, quando perceberem quantossomosexatamente,vãoadmitirseuerroetudovaivoltaraonormal.
–Issoéoquevocêsesperam,eaíéqueestáoerro.Vocêsdeviamteratacadodesdeo início–afirmouDun-Cadal,afastandoosblocosdemadeiracomamão.–Deviamtermostradoanossaforça, general Kay, em vez de esperar que eles a notassem. Não é nada disso. Eles estãoentorpecendovocês.Acreditem,pressintoessetipodecoisa.
Kaydeuumpassopara trás, cabisbaixo. Já fazia algum tempoque conheciaDun-Cadal e eraumdosquesemprehaviamcriticadosuasatitudes.Segurodemais...tãoarrogante.Ofatode,maisdeumavez,eleterrazãonãojustificavaafaltadetato.Omundoestavamudandoeelepareciasero único a não acompanhar a corrente, arraigado demais em suas certezas, confiante demaisnaquilo que, até então, estabelecera sua força e sua fama. Todos ali, ao contrário de Daermon,descendiamdealtaslinhagens.Eleeraumemergente,umpretensioso...maseramelhortê-locomoaliadodoquecomoinimigo.
–Oproblemapoderiaestarresolvido.Vocêshesitaramemagir.Hesitarameestãocomplicandoascoisas...enquantoteriasidotãosimplesatacarprimeiro.Brincadeiradecriança.
–Esehouveroutrojeitoalémde...–arriscouKay.–Vocêsdiscutemmuito!–bradouDun-Cadal.Ouviu-seumassobioqueaumentavadeintensidade,forte,estridente,quevarouseustímpanos.–Chegadediscussão–aconselhou,dentescerrados,antesdegritar:–Abaixem-se!O tetoda tenda foi rasgado.Todos se jogaramno chão,mãosna cabeça, coraçãodisparado.
Umabaladecanhãoatingiuamaquete,espalhandochamasvorazesnaslateraisdatenda.Algunssegundosbastaramparaolocalvirarumaautênticafornalha,aschamascorrendopelasestacasdemadeira feito ondas. De bruços, Dun-Cadal cuspiu a terra que engolira ao cair. Virou-se numaguinadaecontemplou,impassível,aarmadilhaqueosenvolvia.Àdireita,viuaarmaduravermelhadeKayselevantar,cambaleante.
–Kay!Venhacomigo!–ordenou,enquantoláforatrovejava.Emmeioàfumaçapretaqueseespalhava,via-seovultodoroliçoNégusajudandoTomlinne
Azdekiaselevantarem.Dun-Cadalcuspiuoutraveze,maisautoritário,repetiuseuchamado:–Kay!
–Estouaqui–respondeuestefinalmente,comavozembargada.Comoele,ogeneraluniuasmãose,inspirandoprofundamente,levou-asàvirilhadireita.Uma
ardênciaterríveltomoucontadeseuspulmões.Abstraindo-sedador,ambosprojetaramosbraçosà frente, expelindo todo o ar que podiam. Um vento violento afastou as chamas, rasgando ospanosdatendaqueaindasemantinhamdepé,equebrouasestacasaomeio.Ofogocontinuousepropagando pelo que restava do abrigo,mas o ar ardido das Salinas já dispersava a fumaça.Oacampamentointeiropareciaemsobressalto.Ossoldadoscorriamparaastrincheirasaosgritos,oscavaleiroscomasespadasemristeapontandoocaminho.Docéu,despencavambalasdecanhãoinflamadas.DessavezosinsurgentesdasSalinasestavamacertandoapontaria.
EnquantoNégusescoravaAzdeki,aindaatordoado,Dun-Cadalpassouporelescomamãonopunhodaespada.
–Vocêstinhamqueteratacadoprimeiro!–bradou.–Eles...Elesnãosãomuitos–balbuciouAzdeki,osolhosavermelhados.Emmeioaosgritosdossoldados,umsomsecofoiouvido,parecendooandardeumgigante.–Umruargue...–sussurrouKay,desembainhandoaespada.Não,nãoeraumruargue.Eramunsvinteruargues,ospelosnascostascurvadaseriçadoscomo
farpas escuras, a enorme boca toda melada de uma baba branca, as compridas e fortes patasdianteirasmartelandooscharcosnumacorridaensandecida.Atrásdascriaturasfuriosasseerguiaum paredão de chamas. Os insurgentes das Salinas tinham enfumaçado seus covis para tirá-losdali,despertandoentãoaquelafúriadestrutiva.Oscamponesescertamentenãoerammuitos...maseraaregiãointeiraqueserebelava.
–Unsbons3metrosdealtura–constatouNégus,afastando-sedeAzdeki.–Seistoneladasdefúria.
DesembainhouaespadaepôsamãocomfirmezanoombrodeDun-Cadal.–Ah,meuamigo,quevidaboaanossa!Trocaramumsorrisoantesdesedirigiremparaastrincheiras.Delá, trataramdeorganizaras
linhas de defesa. Os ruargues eram apenas uma prévia. Atrás deles vinham as tropas inimigas.Alguns cavaleirospermaneceramna retaguarda, coordenandooshomens incumbidosde apagarosincêndios.Asbalasdecanhãorevestidasdeestopainflamadavinhamininterruptamente.Então,desúbito,restouapenassilêncio.Sobasnuvensbrancasseinsinuavaumvéuescuro,camadasdefumaçasemovendoaosabordovento,logovaradasporumasaraivadadeflechas.Empoleiradosàbeiradastrincheiras,osarqueirosmaisumavezsearmavam.
–Levantar!–ordenouTomlinn,quesemoviaatrásdelesbrandindoaespada.–Atirar!Silvos, rugidos, crepitações... nenhum som chegava a encobrir as batidas do coração dos
soldados, que viam, horrorizados, os vultos dos ruargues correndo para cima deles. Já estavampróximos demais para os arqueiros terem tempo de armar mais uma flecha. Mesmo queconseguissem, o pelo das criaturas era tão grosso que seria preciso mais que um pedacinho demetalparalhesfurarapele.Silvos,rugidos,crepitações...eosgritosqueacompanharamobarulhoensurdecedordasbestaspulandonas trincheiras, a caraamassadacontorcidade raiva.A fumaçapreta sedispersavaem filetes espiralados, entreosquais semesclavaobrancodasnuvenscomo
cinzada ferragem,ascouraçascintilantesaomarromdas sobrevestes.Atéovermelhodo sangueapareceremancharaterra.
Aolonge,osomdosinsurgentesqueseaproximavam...Alguns ruargues não conseguiram transpor a linha dos soldados, seus ventres imberbes e
crivadosdelanças.Osquecruzaramastrincheirasserefestelaram,criaturasselvagenssedentasdesangue mordendo, esmagando, arrancando tudo que estivesse ao alcance de suas mandíbulas.Preso na bocarra de um dos monstros, um soldado deu um urro de rebentar as cordas vocais.Lançadoaosares,caiupesadamentealgunsmetrosadiante. Jánãovinhamaissomdeseucorpoestraçalhado. E, à palidez de seu semblante, juntou-se um fio de sangue escorrendo-lhe peloslábios.
Osruarguesquesemeavamocaosentreasfileirasdaqueleexércitoerammovidosapenaspeloterror das chamas. Criaturas tão apavoradas quanto apavorantes. A maioria conseguiu escaparpelospântanos,arrastandoconsigo,enganchadosnaspatas traseiras,pedaçosde tenda,carroçasquebradas...e,vezououtra,cadáveresdesconjuntados.
–Saiam!Saiamdepertodele!–ordenouDun-Cadalquandoumruargueseviucercado.Acriaturamostravaaspresas,suaslargaseproeminentesnarinassefranziam,estremeciam,o
pelopreto seeriçavanascostascurvadas.Porummomento, seusolhos seestreitaram.Eentãooruargue atacou. Mal deu tempo para Dun-Cadal se esquivar afastando-se para o lado. Os trêssoldadosqueaindaestavamemseucaminhonãotiveramamesmapresteza.Umapatadaviolentaosvarreucomosefossempalha.
Arodalogotornouafechar-seemtornodoanimaleDun-Cadalescolheuoflancoparadesferiro golpe.Nem chegou a arranhar sua couraça.O ruargue soltou umurro e firmou-se nas garrasparasevirar.Ogeneralrecuoucomumsalto.Lançasatingiramaespessapelagemdomonstroesequebraram, o que só o deixou ainda mais furioso. Ele arremeteu, rompendo o cerco. Algunssoldados foram pisoteados, outros, dilacerados por bruscas mordidas, até que a criatura,desafiadora, se ergueu apoiando-se nas patas traseiras. Dun-Cadal vislumbrou-a em meio àfumaça. O ponto fraco. O ventre. A única solução possível. Um golpe bem dado, por baixo dacriatura, ali onde a pele,mais fina, revelava grossas veias roxas. Inspirou fundo, prendeu o ar elançou-seemdireçãoaoanimal.
SintaoSopro,sejaoSopro.Sinta,Rã!Seucoraçãobatia tãodevagarquemalconseguiaouvi-lo.Cadagesto,cadaacontecimentoao
seuredortornou-selentocomooandardeumalesma.Aíéqueestáamagia.NesseSoproquevocêexala.Oruarguetornouaseerguer,abocarraescancarada.Écomomúsicatocando,Rã...Nãobastaescutar.Sinta...legato...Jogou-se no chão de joelhos, resvalando na terra úmida, vergando o capim alto. O tempo
parou. Brasas estavam estagnadas no ar, seu vermelho vibrante sob o branco imaculado dasnuvens.
Staccato...Asbrasas rodopiaram,oscapins seendireitaram,ocoraçãodogeneraldisparou.Sentia tudo,
percebia cadamovimento, previa cada ação. Inclinando o corpo para trás, com a lombar quaseencostandonocalcanhardasbotas,avistouoventreexpostodacriatura.Expeliuoardospulmões,apontandoaespadaparaapeleescuraeestriadadeveias.
SintaoSopro,Rã.Respirecomoavida.Respirenoseuritmo...eataque!Oruarguevoltouabocarraemdireçãoaocéu,urrandodedorquandoa lâminaperfurouseu
corpo.Dun-Cadalrolouparaoladoparanãoseresmagado.Omonstrodesabouemmeioaumaagonialancinante.
–Lávêmeles!–Retomemsuasposições!Alabardeiros!Queroosalabardeiros!–Mantenhamsuasposições!Mal conseguiam ouvir as ordens sob o rufar dos tambores. De joelhos na lama, Dun-Cadal
fitava o cadáver ainda quente do ruargue. Antesmesmo de se levantar, uma flecha cravou-se apoucoscentímetrosdoseupédireito.
–Dun-Cadal!–chamouNégusatrásdele.–Dun-Cadal!O general juntou-se ao amigo na borda das trincheiras. À frente, milhares de soldados
desaparelhados avançavam ao ritmo do tambor de um jovem. Atrás, ressoou o ruído seco dascordasdos arcos.Ergueu-seuma saraivadade flechas, rasgando asnuvensde fumaçanum silvoestridente. A primeira leva se abateu sobre os soldados, perfurando as armaduras, crivando osescudos,cravando-senaterraúmida.
FoiesseobatismodabatalhadasSalinas.Oprimeiroconfrontoentreosdoisexércitos.Breve,mas sangrento. O Império primava pelo número, e os insurgentes, pelo efeito-surpresa. Adebandadadosruarguesabrirainúmerasbrechasnasfileirasdatropa,obombardeiodaartilhariacausara incêndios no centro do acampamento. Os rebeldes tiravam vantagem de um caossabiamente orquestrado. Os cavaleiros precisaram de sangue-frio para reorganizar os soldados.Estrondo, trovão,choquesdeespadas,corposse jogandounssobreosoutros,gritos...estrondo...trovão... E o Sopro... Era isso que os insurgentes não tinham, e sabiam disso. Assim que osgeneraisrecorreramaoSopro,bateramemretirada.
Nototal,aprimeirabatalhadasSalinasnãoduroumaisquedezminutos.Dezmerosminutosemqueforamabatidosdoismilsoldados.Depénabeiradadeumatrincheira,observandoaluzdosolcairsobreoscorposimóveisemmeioaodeterioradocapimalto,Dun-Cadalpraguejavacontraa hesitação de Azdeki. Haviam sido criadas todas as condições para que o Império sofressetamanha humilhação. Em uma semana, metade dos reinos saberia do levante das Salinas.Camponeses enfrentando o maior de todos os exércitos. O povo adorava histórias desse tipo.ContantoquenãotomasseopartidodasSalinas.Conteraregiãojánãopareciasernadafácil:seoutroscondadosoubaronatostambémviessemcomveleidadesdeindependência,asituaçãologose tornaria impossível de administrar. Já não seria uma simples revolta, mas uma revolução.
Empoleirado na armadura partida de um cadáver, um enorme corvo negro bateu as asas aomergulharobiconumaferidaaberta.
–Océuestávermelho...–começouNégus.Dun-Cadalassentiu,deixandooolhardevanearpelassalinas.Sobasnuvenscinzentas,aluzdo
sol poente tecia um instigante véu acobreado logo acima do capinzal. Négus parou ao lado dogeneral, os polegares enfiados no cinturão, um grande corte ainda vermelho numa das faces econcluiu,suspirando:
–...comoacontecemuitasvezesnoentardecerquesesegueaumabatalha.–O que eles querem? – perguntouDun-Cadal de repente. –O que estão buscando?Guerra?
Porqueistojádeixoudeserumasimplesrebelião.–Játivemoscombatesmaisdifíceis.Eelesacabarambatendoemretirada.Daquiadoismeses
ninguémmaisvaifalarnoassunto.–Não,Négus,meuamigo–retrucouogeneral,balançandoacabeça,umaexpressãodenojo
em seu rosto. – Eles venceram. – Fitou o olhar perplexo do homenzinho teso em sua armaduramanchadade lama.–Elessabemoqueestão fazendo,acredite. Istoésóocomeço.TodomundovaiselembrardabatalhadasSalinasporqueelesvãoconseguirhumilharoImpério.
Atrásdeles,oacampamentoaindafumegava, tendasrasgadasesoldadosclaudicantes...Tudoeraumacompletadesordem.
Nos dias seguintes, Dun-Cadal tentou retomar o controle da situação colhendo todas asinformaçõesdisponíveissobreasforçasadversárias:Quem?Oquê?Como?Depoisdacondenaçãodo conde de Uster, Étienne Azdeki ordenara a dissolução do corpo da guarda do condado dasSalinas.Comisso,econsiderandoaestratégiaempregadapelosinimigos,imaginavaqueoantigocapitão Meurnau assumira a liderança da revolta. Durante dois meses foram alvo de ataquesligeiros,escaramuçasqueos impediamdeavançarpelospântanos.Os inimigosusaramrepetidasvezes a mesma tática, enfumaçando os gigantescos covis dos ruargues e impelindo as criaturasapavoradasparaospostosavançadosantesdedarogolpedemisericórdia.Perdidonocapinzal,oexército imperial tentava a duras penas, se não avançar, ao menos não recuar. Por conta dospântanosprofundosqueossoldadosdesconheciam–enosquaisseafogavaminúmeroshomenslastrados por suas armaduras –, dos ruargues que se deliciavam com sua carne e da perseguiçãodastropasadversárias,abatalhadasSalinasnãodemorouaatingirumatristenotoriedade.
OinfernoestavanaTerra...eardianospântanos.OgeneralKayecinquentadeseushomensmorreramtentandoconstruirumapontesobreorio
Seyman. Ele foi apenas um dos primeiros generais a cair. Além dos combates, tinham queenfrentar as doenças trazidas pelos mosquitos das Salinas e a água pútrida dos charcos. Poucoimportavamosuorescorrendonorostodossoldadosouseuolharfixoefebril:eraprecisoestardeprontidão.
–Queroessascatapultasconsertadasquantoantes!–ordenouocapitãoAzdeki.Diante dele, três soldados doentes davam mostras de exaustão. Havia dois dias que não
dormiame,emestadofebril,consertavamasduascatapultasavariadasnoúltimoataque.DesdeachegadadogeneralDaermon,Azdekiprocuravaafirmarsuaautoridadeatodomomento.Eissoos
soldadospercebiammuitobem.– Elas têm que estar em condições de funcionar no final da tarde – continuou Azdeki, com
expressãotensa.–Sim,capitão–respondeuumsoldadocomvozfraca.–Nadadedescansarantesde...–Façamtrêshorasdepausa!Azdeki virou-se de repente. Acompanhado de Négus, Dun-Cadal passou por trás dele sem
dirigir-lhenemumolhar.Preferiadarsuaatençãoaossoldadoscambaleantes.–Vocêsmalseaguentamempé–constatouDun-Cadal.–Vãodescansar.Azdeki,ascatapultas
terãoqueesperar,oshomenssãonossaprioridade.Ossoldadosnãoconseguiramconterumsorrisoaliviado,quemaldisfarçaramquandoAzdeki
osfuziloucomoolhar.–GeneralDaermon!–chamouele.NemDun-CadalnemNégus,queoseguia,detiveramseuspassos.–GeneralDaermon!–repetiuAzdeki.Os dois homens entraram numa grande tenda roxa que ostentava os símbolos dourados do
estado-maior,umafinaespadacercadaporumacoroadelouros.Comospunhoscerrados,eletambémentrounatenda.Sentadonumapequenapoltrona,Dun-
Cadal,praguejando,tiravaasbotasenlameadas.Négus,aumcanto,serviadoiscanecosdevinho.–GeneralDaermon!–bradouAzdeki.–Comquedireito...– Relaxe, Azdeki – interrompeu Dun-Cadal num tom tremendamente calmo. – Está tão
vermelhoquesuacabeçavaiexplodir.–Explodir?Explodir?!–indignou-seAzdeki,abrindoosbraços.–Estápassandodoslimites!–Vocêestásobmeucomando.Etambémvaitirartrêshorasdedescanso.Négus,numcantoescuro,esboçouumsorrisoenquantolevavaocanecoaoslábios.–Nãotenhotempoparadescansar!Ninguémaqui...temtempo...paradescansar,Dun-Cadal.
E exijo que, na frente dosmeus homens, vocême chame pelaminha patente: capitão Azdeki. –Estava furioso. Também estava sem dormir, ou dormira muito pouco, havia vários dias. – Vocêchegaaquiporordemdo imperador, altivo e arrogante,me rebaixana frentedosmeushomens,contestaminhasordenssabe-seláporquê...
–Talvezporquenãosejamboas–sugeriuDun-Cadal,tirandoalamadeumadasbotas.–Ora,porfavor,mepoupe!–exaltou-seocapitão,apontandoparaelecomumdedoacusador.
– Minha família também é próxima do imperador e sei bem como e por que você galgou tãorapidamente todosessesdegraus!Nuncaseesqueça,Dun-Cadal!Nuncaseesqueçadeondevocêvemnemdoquefezparasetornargeneral.Nãofoi,demodoalgum,porsuahonra.
Dun-Cadalnãofranziuassobrancelhasnemmesmolevantouacabeçaoupareceuseimportar.Limitou-seatiraroexcessodelamadocourodesuasbotascomodorsodamão.Concentradonatarefa,falounumtomassustadoramenteseco:
– E você nunca se esqueça de que é apenas um capitão... Azdeki. E de que estamos nestasituação,comtantoshomensmortos,porculpasua.Nãoseesqueçadeque,senãotivessebrincado
nocolodoseutioquandocriança,vocênemestarianestatendafalandocomigo.ParoudeesfregarabotaquandoospanosdaentradadatendaesvoaçaramàsaídadeAzdeki.–Vocênãodeveriaterditoisso–observouNégus,trazendo-lheumcanecodevinho.–Araivadelevaipassar–resmungouDun-Cadal.–Nãose trataderaiva,meuamigo...–Négusse inclinouparaelecomar tristonho.–Vocêo
humilhou...Era muito pior. Estavam lidando com insurgentes, e criar tensões no meio das tropas,
principalmentenopróprioestado-maior,equivaliaasuicídio.Eracomoadmitiraderrota.–Eleésuscetíveldemais–minimizouDun-Cadal.–Deveserporcausadaconsanguinidade.Négus achoumelhor não responder e, a passos lentos, foi se sentar num velho baú, o olhar
perdidoemseucaneco.AsquerelasentreasantigasfamíliasdoLesteeasdoOeste,recentementenobilitadas, eramcorriqueiras.EntreDaermoneoúltimodosAzdekis,oproblema ia além.Maisdiamenosdia,haveriasanguederramado.
– É tão difícil para você engolir que ele foi pessoalmente condecorado pelo imperador? –perguntouNégusemtombaixo.
Dun-Cadalficouuminstantesemresponder,tirandocautelosamenteasluvasdeaço.Quandoterminou,deixouescaparumsuspiroantesdesevirarparaoamigocomumaexpressãoafetada.
–Meuavôcomeçoucomocapitão,vocêsabia?ContraoreinodeTule.–Umsorrisoestranhofezde suabocauma linha, enquantooolharpercorria o interiorda tenda. –Oprimeiroda casaDaermon...Ah,osTules...Essesdescrentesforamdurosnaqueda...
Umamissãodivina:foraissoatomadadoreinodeTule.LevaraelesaluzdosdeusesedoLivroSagrado. Emocionava-se ao imaginar seu ancestral pegando em armas e guerreando por umacausajusta.OsDaermonstinhamconquistadosuanobrezacomsacrifício.
–QuandoTulefoitomada,eledescobriuláumabibliotecagigantesca–prosseguiuDun-Cadal.– Eles próprios escreviam seus livros, sabia? Davam-se esse direito! Que... – Sua voz ficaraembargada. – Ele queimou todos aqueles livros – prosseguiu, meneando a cabeça. – Queimou.EntãounssoldadosdeTulevieramparacimadeleedeseushomens.Eleperdeuumbraço.
–Bem,seiquantoseuavôsededicouaoImpério,Dun-Cadal,nãoéessa...–É,sim!–interrompeuogeneralemtomseco.–Aquestãoéjustamenteessa.AfamíliaAzdeki
tevegrandescavaleiros,alémdegrandesestadistas,masÉtiennenãoéumdeles!Poracasoele játinha desembainhado a espada antes de vir para as Salinas? Já tinha provado sua coragem? Afamília dele combateu as grandes invasõesdosnâagas,mas ele foge quandoos vê. Sãohomensdesse tipo,Négus,queumdiaaindavãoacabarcomoImpério.Nemtodonobreéumcavaleiro.Todocavaleiroprecisamereceressetítulo.
– Ele cursou a academia militar – rebateu Négus, mantendo a calma. – Como todos nós. –Tomouumgole de vinho fitandoDun-Cadal, que estava cabisbaixo, trincandoosmaxilares. –Acondecoraçãodelefoimerecida.
–Háhomensmorrendosobasordensdele.–Sobassuastambémjámorrerammuitos.–Masnãoàtoa–garantiuDun-Cadalcomveemência.–Vocêcolocariaasuavidanasmãosde
ÉtienneAzdeki?Colocaria,emplenabatalha?Responda,Négus...Porfim,fitouosolhosdoamigo.Airaenfimseatenuavaportrásdeseuarconfiante.Eletinha
certezadeestarvencendoadiscussão.–Não...–confessouNégusdebilmente.–Homemnenhumfariaisso–concluiuDun-Cadal.–Nenhum.Elenãotemcarismasuficiente
paraqueoshomensosigam.Esempreirátomardecisõeserradasemcasodeperigo.
Somente algumas semanas depoisDun-Cadal compreendeu a que ponto estava enganado arespeitodeÉtienneAzdeki.Issofoiantesdeeleconhecerogaroto.
EmboraKaynãotivesseconseguidoconstruirumapontequepermitissecruzarorioSeymaneavançar pelas terras das Salinas, a ideia não havia sido descartada. Foi despachada uma novaexpedição,lideradaporTomlinn,AzdekieopróprioDun-Cadal.Sequisessemdarfimaoconflito,precisavamtomaracidadedeForted’Aed,queficavadooutroladodorio.
Movendo-secomcuidadopelospântanoshavia,nomínimo,sessentahomens,dosquaiscercademetadepuxavaospedaçosdaponte.Ostrêsoficiais,acavalo,andavamdeumladoparaoutromotivandoseushomens.Rarasvezes sepermitiamumpalavrão, conscientesdeque se tratavadeumaárduatarefa.Jácarregandoopesodasarmadurasedasarmas,ossoldadosaindatinhamquearcar com o peso da madeira. E a esse esforço se somava o cheiro pestilento do lodo. Naquelelugar,assalinassemisturavamaoscharcos.
Estavam a apenas uma hora de caminhada do rio quando algo entre os juncos chamou aatençãodeDun-Cadal,queseguiaàfrentecomobatedor.Puxouasrédeasdamontariaparafazê-larecuaretrotouatéTomlinn,quevinhaàfrentedocortejo.
–Estãonosobservando.–Também tive essa impressão– concordouTomlinn, como semblante sério.–Achaque são
quantos?–Seilá...talvezunsdez.Batedores–sugeriuDun-Cadalemvozbaixa.A oeste, sob os raios escarlate do sol poente, alguns juncos oscilavamdemodo estranho em
meio ao capim alto, como se alguémos apartasse com extrema precaução. Só havia um jeito deconferir.Dun-CadallançouumolhardedivertimentoparaTomlinnantesdeesporearosflancosdeseucavalo.GalopouatéocapitãoAzdeki,naoutrapontadafileirae,tãologooalcançou,avisou:
–Movimentaçãoaoeste.Mantenhaaformaçãocerrada,masprepare-ospararevidar.–Estamos contornandoo inimigo, generalDaermon...Devem ser apenas animais selvagens.
Seriaperdadetempo–protestouAzdeki.–Éumaordem–murmurouDun-Cadal,osmaxilarestrincados–,capitãoAzdeki–acrescentou
comumsibilo.Embora tivesse certeza de estar com a razão, o jovem capitão limitou-se a obedecer e,
avançandoenquantoogeneralseguianadireçãodeTomlinn,alertouseussoldados:
–Fiquemdesobreaviso.Perigoaoeste.Sejamrápidosquandochegarahora.Animais selvagens... ou insurgentes. A possibilidade de Azdeki ter razão nem passou pela
cabeça do general. Esse rapaz presunçoso sempre fizera as escolhas erradas. Por que agora seriadiferente?AcompanhadoporTomlinn,apartou-seda tropa.Seucavaloreagiu,comosecientedaproximidadedoperigo.Umtapinhanopescoçofezcomqueeleretomasseamarcha.Nocapinzal,nãohavianadaqueparecesseumaameaça.Algunsmosquitoszumbiramemseusouvidos,ocheirodolodoestavaquaseinsuportável.Masnemsinaldeinimigos.
Oscascosdoscavalos seatolavam, tornandoamarchacambaleante.Maisalgunsmetrose jánão conseguiriam se livrar da armadilha natural do lamaçal. Embrenharam-se nos charcos, ocapimalto tornandoa fechar-se atrásdeles comum leve farfalhar.Logoos soldados ao longe jánãopassavamdevultos,paraalémdosjuncosdeformadospelocalor.
O vento se intensificou, curvando o capim alto, traçando sulcos na água estagnada. E, juntocomabrisa,ouviu-seumlongorugido.
–Dun-Ca...Um vulto negro irrompeu do pântano, arrastando Tomlinn sem que este tivesse tempo para
reagir.Semseucavaleiro,ocavaloempinou, relinchandoantesde fugirparaoeste.Umrosnar, eoutro,emaisum, serpenteandoentreos juncos.Desembainhandoaespadanumgestoprecisoesegurandoasrédeascommãofirme,Dun-Cadalsentiasuastêmporasmartelaremfeitotambores.Viuosvultosbalançandoosombrosnocapinzal.
–Azdeki!–berrou.–Azdeki!Masseuchamadoficousemresposta.Nummovimentobrusco,forçousuamontariaadaruma
meia-voltaarriscada.Oscascosafundaramaindamaisnolodo.–Azdeki!–voltouabradar.Aolonge,ocapitãoordenavaaosseushomensqueavançassem.–SantaMiséria!–praguejouDun-Cadal.Por fim enxergou-os com mais clareza. Três ruargues, de pelagem verde malhada de preto,
soltaramumsomcomaresdebravata.–Tomlinn!–chamouele,cortandooarcomaespada.–Tomlinn!Um grito de dor se ouviu a poucosmetros dali, sob as costas curvas e agitadas de uma das
criaturas.–AZDEKI!Oimpactofoi tãoviolentoqueelequasechegouaouvirasprópriascostelassequebrando.As
mandíbulas do ruargue se fecharam em seu antebraço, as presas por pouco não perfuraram ometalantesdearrastarogeneralemsuaqueda,ejuntodeleocavalorelinchavadepavor,osolhossobressaltados,duasbolotasdeazevicherodeadasdebranco.
Houve um choque, seguido de um som que lembrava um pano sendo rasgado, quando oruargueestripouocavalonochão.UmestalidosecoeDun-Cadalsentiusuapernasequebrarsobopesodamontaria.Preso,orostomergulhadono lodofétido,elevislumbravaocimodocapim,quedançavalentamenteaovento.
–Azdeki!
Estavatudotãocalmolongedosresmungosdoruarguequeiniciavasuarefeição.Suavecomoofiletedesanguequeabriaumsulconalama,mesclando-seàáguaimundadoscharcosparalhedaraaparênciadovinho...
Rã...Vouchamá-lodeRã...UmvinhoamargoerascanteaondularnocanecodeumvelhocavaleiroperdidoemMassália.
Bem longedos charcosdas Salinas.Ogostodo lodo, porém, ressurgia em suaboca.Tomouumgoleparadissolverasrecordaçõesnabebida.
–Rã...
–Rã?–perguntouViola.Comoolhar perdido,Dun-Cadal balançou a cabeça, sem saberdireitopara onde se virar. Já
não haviamuita gente na taberna.Há quanto tempo estava falando?Tempo demais para o seugosto.Mais uma vez, deixara-se levar pela embriaguez. Emoutramesa, osmercadores de Serraycantarolavam, quase no fundo do poço, pálpebras pesadas, jarras vazias. O homenzinho quesuplicaraaDun-Cadalseaproveitavadadesatençãodelesparaesvaziarseusbolsos.
–Hã?–O senhor disse: “Eu chamei Azdeki com todas asminhas forças, Azdeki, Azdeki” – relatou
Viola.–Eentão,donada,osenhorfalou“Rã”.Emboraatabernaestivessequasevazia,umadensanuvemdefumaçaaindapairavanoar.–Ah.–Dun-Cadalsuspirou.Entãoacrescentou,comumtomenvergonhado,umsorrisotristee
sofrido:–Rãéogaroto.Ogarotoquesalvouminhavida.Seria a fumaça irritando seus olhos a ponto de deixá-los vermelhos? O semblante dele se
endureceuemseguida.Sim,tinhaconversadodemais,faladodemais,contadodemais.–Nãoénada...Melhoresquecerissotudo–declarou,comexcessodesalivanaboca.– Ele bebeu demais – afirmou o taberneiro, que recolhia as jarras vazias da mesa vizinha. –
Vocêsdeviamacompanhá-lo.Surpresa,Violaergueuassobrancelhas.–AtéacasadeMildrel,acortesã.Ficaaduasruasdaqui.Éondecostumamdeixá-loquandojá
nãopassadeumbarrilambulante–explicou,antesdevoltarparatrásdobalcãoapassospesadosecansados.
Dun-Cadal inclinava-se perigosamente para a frente, o nariz batendo no caneco, olhossemicerrados.
–Ogaroto...–disseViola,pensativa.E,comosenãotivesseperdidoseuvigor,ocavaleirolevantouacabeça,umbrilhoestranhoem
seusolhosarregalados,talqualocintilardeumalâmina.–Omaiorcavaleiroqueestemundojáviu.
3
Ferida
Todaferidaacabasefechando.
Ficamascicatrizesparanoslembrardesuaexistência.
E,emboraadorsetornemenosintensa,
nuncadeixadeserprofunda.
Eledeviaterdormidobastante,maspoucoimportaotempodesonoquandoacabeçaruisobopeso do vinho. Endireitou-se na cama desfeita com uma dor de cabeça lancinante e a penosasensaçãodeuma lâminaperfurandosuanuca.Os intensos raiosdo sol atravessavamascortinasmarrons, compondo colunas luminosas no assoalho encerado, fortes demais para seus olhossonolentos. Ergueu umamão diante do rosto para ocultar a luz, resmungando palavras que elepróprionãocompreendia.Umacoisaeraesquecerquemagenteeraseafogandonoálcool.Outraeravoltara lembrarcomasensaçãodeacabeçatersidoesmagadaporumabigorna.Estavasembotas e sem gibão, mas ficoumais sossegado ao ver que ainda estava vestido, até se sentir umtantofrustradoaoreconhecerolocal.Apoucosmetros,haviaumtanque,juntoaumtoucadorcomumespelhocomprido.Ligeiramente inclinado,oespelhorefletiaumaimagempálidadocavaleiroqueumdiaelefora.
Aporta do quarto abriu-se devagar, revelandoumamulher, bela apesar da idade, os cabeloscacheadoscaindonosombrosdesnudos.Usavaumvestidoverdejustonacinturaeumcorpetequerealçava delicadamente seu colo, sobre o qual repousava um pingente em forma de espada. Aspoucas rugas que sulcavam seu rosto e o canto dos olhos azul-oceano em nada alteravam suabeleza.Dirigiu-seà janela edepositouabandejaque trazianasmãosnamesabanhadapela luz.Comagargantaseca,Dun-Cadalsentou-senabeiradadacamaemassageouanucacomamãoentorpecida,naesperançadequeomal-estardesaparecesse.Ocheirode lavandaquese insinuoufezcomque,porumbreveinstante,eleseesquecessedador.
–Imaginoquenãoselembredenada–disseelaenquantopegavadabandejaumcestodepão,
maçãs,umajarraeumcopo.Pelotomdesuavoz,decertonãoeraportimidezquemantinha-sedecostasparaocavaleiroe
com o rosto inclinado na direção da bandeja. Não era a primeira vez que ele acordava ali, semnenhumalembrançadecomochegaraatéacama.
–Foiamoçadecabeloavermelhadoqueotrouxe–explicouela,enchendoocopocomsuco.–Aliás, ela não, o nâaga. Ele teve que carregá-lo até aqui, de tanto que suas pernas estavamdormentes.
O nâaga... Viola... sua memória ia voltando aos poucos. Com ela, um gosto horrível deremorso.
–Eufalei...–sussurrouele.–Demais?Ela ergueu a cabeça, inclinando-a levemente de lado, de talmodo que o sol pareceu dar um
beijodouradoemsuaface.Assim,pareciaservinteanosmaisjovem.OcoraçãocansadodeDun-Cadaldisparoueelesoubequenuncasesentiriatãovivoquantosesentiacomela.
–AsSalinas–respondeu.–Eusei.Elasevirou,osemblantecontraídoemumairacontida.Amenorpalavrainfeliz,omenorerro
faria comque ela explodisse.Conhecendo-a,Dun-Cadal sabia que eramelhor não enfrentar suafúria.
–ElaperguntousobreRã–disseamulheremtomferino.–Fiquetranquilo,vocêjánãoestavaemcondiçõesdefalarsobreoquequerquefosse.
–Mildrel...–sussurrouele,comoseprocurasseumadesculpa.Elatrouxeocopoelheofereceusemdelicadeza.–Beba.ÉsucodefrutasdeAmauris.Ele tomou um gole sem se fazer de rogado e, apesar da acidez da bebida, conformou-se em
tomartodoosucodeumasóvez.–Seiqueogostonãoébom,masvaiaomenospreveniradordeestômago.Tambémtrouxe
pãoeumasmaçãs.–Mildrel...–repetiuele,segurandoamãodela.Ergueu os olhos para amulher e a sensação foi pior que um golpe de espada no peito. Ela
permaneciaimóvel,oolharfixonaparede,oslábioscontraídos.Nãoprecisavacensurá-lo,mesmoporque elenão teria o que retrucar.Conheciam-sehavia tanto tempoqueomenor gesto já diziatudo.Farejandooar,Dun-Cadalesboçouumsorrisocansado.
–Lavanda.–Eleriu.–Elacheiravaalavanda,igualavocê...–ElaédaRepública.VocêsabeoqueaRepúblicafezcomosgeneraisquenãoficaramdoseu
lado–respondeuela,melancólica.–Porqueconversoucomela?Oquefoiquelhedeu?Atéagoravocêselimitavaamentir.Destavez,vocêsedenunciou!
–OqueeutenhoavercomaRepública?Nãomeinteressa.Elapuxouamãonumgestobruscoelançou-lheumolharirritado,comoseelenãopassassede
ummeninolevadoqueandoufazendobobagem.
–Elapodemandarprendervocêaqualquermomento...–Quemseimporta?–Elesuspirou,levantando-se.Caminhou com dificuldade até o tanque do outro lado do cômodo, satisfeito por ver que já
estavacheiodeáguaquente.Abriudelicadamenteosprimeirosbotõesdacamisaeentão,sentindobrotarcertaimpaciência,tirou-apelacabeça.
–Eumeimporto–confessouMildrel.Continuava nomesmo lugar, ao lado da cama desfeita, mãos unidas. Olhando por sobre o
ombro,eleaviu,aureoladapelaluzdosol,tãolinda,tãodignaemsuairacontida.–Eunão significomais nadaparaninguémaqui – retorquiu ele. – Já faz tanto tempo...Que
perigoeupossorepresentarparaeles?Essamoçasabedisso.Inclinou-sesobreo tanque,mergulhouasmãosnaáguaemolhouacabeça.Ocalordaágua
relaxouapelemarcadadeseurosto,acariciandoaspálpebrasdoloridasporcontadoálcooledosoldomeio-dia.AslembrançasdeseuexpurgoemseguidaàquedadoImpériopareceram-lhetãotênues como o vapor que saía da água. Tantos cavaleiros haviam sido julgados pela República,tantos homens direitos e altivos tinham sido condenados, tanta honra fora ultrajada emjulgamentospúblicossujeitosàpressãopopular.Elesobreviveraàquilotudofugindofeitoumcãodos arautos de uma República incipiente, chegando a se esconder por dois anos nas matas donorte.Depoisdisso,Dun-CadalDaermonetodosquetinhamservidoaomalditoimperadorforamcaindonoesquecimento...
–Éverdade.Vocênãorepresentaperigonenhumparamaisninguém,anãoservocêmesmo.Ehámuitomais tempodoque você imagina.Não foi a quedado Império quederrubouo grandeDun-CadalDaermon.
Elesedeteve,osbraçosapoiadosnabordadotanque,aáguaescorrendopelorosto.Aimagemdogarotooassombravae,todavezquepensavanele,vinhaamesmasensaçãodequedaededor.Asrecordaçõesdovelhoguerreirojánãopassavamdeumachagaabertaeputrefata.
–FoiaperdadeRãqueacaboucomvocê.–Vocênãosabeoqueestádizendo–murmurouele.–Seráquenão?–Elaestavaquaserindo,maseraumrisozombeteiro,pérfido...desdenhoso.–
E você por acaso sabe o que diz para desconhecidos? Por acaso parou para pensar no que essamulherqueria?
Mildrel andouapassos lentos emdireção àporta, sem tirarosolhosdas costasdesnudasdovelhoguerreiro.Umalargacicatrizriscavaumadasomoplatas.Recordaçãodeumaantigabatalha,obeijodeummachado,daépocaemque,decorpoealma,eledefendiaseuidealdeumagloriosacivilização.Comoelahaviagostadodesentiressacicatrizsobseusdedos...
– Ela é uma historiadora de Émeris – explicou Dun-Cadal, voltando a se lavar. – QueriaconversarcomumsoldadodoImpério.
–Etopoucomvocêporpuroacaso–ironizouMildrel,abrindoaporta.–Sóparaocasodevocêter esquecido, não é bom ostentar saudade dos tempos antigos aqui em Massália. VáriosconselheirosforamconvidadosparaaNoitedasMáscaras.
Ela aguardou uma reação, mas Dun-Cadal permaneceu calado, o olhar perdido no tanque.
Desde que chegara a Massália, sua única preocupação havia sido encher o caneco. Mildrel nãoaguentavamais.Quandoelaenfimfechouaportaaosaireosomdeseuspassostornou-seapenasumecodistante,eleseendireitou.
Nãopodiaculpá-la,sóestavapreocupadacomele.Sempreforaassim.E,oqueépior,tambémsempretinharazão.EledisseracoisasdemaisparaatalViola,semsabernadasobreelaousobresuasreaisintenções,seéqueelaastinhaomitido.Foradefatoaprimeiravezque,emseusdelíriosdeébrio,ele falaraaverdade.SupondoqueelaestivessemesmoàprocuradeEraed,aceitaria suarecusaou iaameaçardenunciá-lo?E,mesmoele sendoDun-CadalDaermon, seráqueseunomeaindainteressavaaosaugustosconselheirosdajovemRepública?
Ele já não era nem sombra do que fora... A cavalaria se dissolvera junto com o Império. OSoprohaviasidoesquecido.E,oqueparaDun-Cadaleraaindamaisfunesto,tinhaaimpressãodeque mais ninguém acreditava no Livro do Destino e que os deuses, aos poucos, vinham sendorenegados. Sim, os tempos estavammudando, era algo que seu corpo dolorido constantementevinha lhe lembrar, principalmente o suplício que percorria sua perna direita. Pôs amão trêmulanela,comosequisesseacalmá-la,masnãoadiantou.Fitouopróprioolharnoespelhodotoucador.
Azdeki!Volteaqui,suaimundície!Adornãoeraapenasfísica;averdadeiraferidaeraoutra,interna.Azdeki!Ele carregava uma cicatriz, a pior de todas, aquela que não se vêmas que se sente, intensa,
ardida,atéocoraçãobaterpelaúltimavez.Azdeki!Tomlinn!
–Azdeki!–berravaele,caídonopântano.Naquele instante, a ideia de que o capitão pudesse tê-lo abandonado à própria sorte não
passava de uma estranha e assustadora hipótese. Atordoado pela queda e pelo peso do cavaloesmagandosuaperna, jánãoraciocinava,aliperdido,ocorpoinertenagrossa lamadasSalinas.Atraídoporseusgritos,oruarguesurgiuacimadacarcaçadocavalo,abocarracheiadesangue,aslargasnarinasseabrindonoritmodapesadarespiração.
–Venha...–murmurouDun-Cadal.Nomomento,aadrenalinaanestesiavatodaador...aadrenalinaeafebresúbita.Empésobre
ocadáverdocavalo,oruarguedominavaocavaleiroferido,seusmúsculossobressaindosobapelecoberta por longos pelos verdes e pretos. Sem tirar os olhos da criatura,Dun-Cadal remexeu nalama,nervoso,procurandoaespada.Oruargueestreitouosolhos,abrindodevagarabocarraparaexalar um hálito fétido e então soltar um urro.No capim alto, o cavaleiro percebeu o ruído dosoutrosdoismonstrosavançandolentamenteemsuadireção,atraídospelocheirodeseusuor.Suamãobatianalamasemencontrarnemrastrodaespada.
–SantaMiséria...–praguejouentredentes.
Adorsubiapelapernaquebrada,cadavezmaisesmagadapelopesodocavaloagorasomadoaodoruargue.Acriaturarugiu,desafiadora,esticandoopescoçonadireçãodapresa.Pensaremalcançaraespadaeretalharacaradoruargueerapurailusão.Sórestavaumasoluçãoantesqueadorficasseinsuportáveleeledesmaiasse.Inspirandoprofundamente,puxouasmãosparasi,umacaretadedorcontorcendoseurostoconsteladodelamaesuor.Precisavaseconcentraremescutaromundo,sentircadavibração,fundir-senoare lertudoaoseuredor... lereveroquenãopodiaser visível. Sentia o Sopro, transformava-se no Sopro. Sua perna voltava à vida, seus ossosquebradosrompiamacarnefeitonavalha.
O ruargue sedebruçou sobre elede talmaneiraquepoderia, numa rápidamordida, arrancarsua cabeça. No entanto, algo parecia impedi-lo. Incrédulo, omonstro observava aquele homemencurralado,oscabelosimersosnaáguaestagnada,olhossemicerrados,feiçõescontraídasdedor.No instante em que ele estendeu as mãos, a criatura furiosa finalmente abriu as mandíbulas,mostrandoaspresasafiadas.Nãopodiaalcançá-lanemferi-lacomasmãosnuas.Aindaassim...umaforçamagistralaimpeliuparalonge,juntocomacarcaçaescavadadocavalo.
SóentãoDun-Cadalteveasensaçãodequeseucorpointeirosaíadeumsonoprofundo,cadamembro,cadaparterememorandoaviolênciadaqueda.SónessemomentoDun-Cadalsoltouumberrodedeslocaromaxilarquefoidiminuindoatéeleperderossentidos.
Aolonge,soouumestranhorugido.Quandoabriuosolhosdaprimeiravez,avistouumarãqueoespiava,piscandorapidamente,a
gargantaseinflandodemodointermitente.Da segunda vez, já não havia rã alguma, somente o capim alto que parecia avançar
vagarosamente pelo pântano. Gotas de chuva cavavam crateras na lama negra. Estava tudo tãosombrio.Masnãotãosombrioquantoaescuridãoquenovamenteoinvadiu.
Moveu as pálpebras lentamente.A imagemdo capinzal lhe pareceumais brilhante, banhadaporumsolcintilante.Curiosamente,sentia-se...seco?
–SantaMi...–resmungoucomumavoztremendamenterouca,agargantapegandofogo.Fezumacaretaenquantoerguiaacabeçaatéondeconseguia.Seupescoçoestavarijocomoum
pedaço de pau velho, mas não era nada comparado ao restante do corpo. Percebeu que estavadeitado em um velho cobertor puído em cima da terra rachada, à beira do pântano, debaixo deumacarroçavelha,caídaeescoradaemduastorasdelenha.Umatalaimprovisadafeitadegalhose capim abrigava sua perna quebrada, deixando àmostra um tecidomanchado de sangue seco.Comovierapararali?Quemotrouxera?Faziaquantotempo?
–Mexa-sedevagar–disseumavozinfantil.–Suapernaestálongedeestarcurada.Eufizoquepude,masagorasórestadartempoaotempo.
Sentado debaixo da carroça, as pernas dobradas junto ao corpo, estava ummenino. Braçoscruzadossobreosjoelhos,fitavaocavaleirocomolhoscinzentoseumjeitosério.
–Suapernaestáfeiaàbeça–continuou.–Tãofeiaassim?–sussurrouDun-Cadal.–Tinhaossosaparecendo–confessouomeninocomamaiorcalma.–Entãofoivocê...
Sua cabeça latejava, ele semexia comdificuldade, entorpecidopor vários dias de inação.Aospoucos,noentanto,estavavoltandoasi.
–Foivocêquemmetrouxeparacá...Omeninoassentiu,aindasemmostraraparteinferiordorosto,escondidapelosantebraços.–Ocavalo–disseele.–Comocavalo.Tinhaumrosto redondo, recém-saídoda infância,ocabelodesgrenhadoeapeleclara.Dun-
Cadal se recostou, sem fôlego, a cabeçapesada e a visão consteladade estrelinhas efêmeras.Poruminstanteocéudeanilpareceuturvado,entãosefirmou.
–Jádisse,vácomcalma–insistiuomenino.–Fazoitodiasquenãoselevanta.–Oito...oitodias...–balbuciouocavaleiro.Tentouengolirasaliva,masestavacomagargantamuitoseca.Aovê-loassim,comacabeça
inclinadaparatrásfeitoumpeixeforad’águatentandorespirar,omeninoachougraça.Levantou-seeseaproximoudeDun-Cadalapassoslentos.
–Eudeixeiáguaali–disse,apontandoparaumpequenocantilfeitodebarrigadeovelha.–Foisóoqueencontrei.Poraquihámaiságuasalgadaquedoce.
Examinando o garoto, Dun-Cadal sentou-se com dificuldade, levando a mão às costelasmachucadas.Não sabiaque idade tinha... 12, 13... 14anos talvez,nãomaisque isso.Usavaumasimplescamisabegeabertanocolarinho,umacalçapretasurradaebotasreforçadascompedaçosde corda.Cachos negros caíam em sua testa, a sujeiramanchando seu rosto como se ele tivessemergulhadodecaranalama.
–Obrigado...–balbuciouDun-Cadalenquantopegavaocantilcomamãoansiosa.Bebeuumgoleeporpouconãocuspiutudo.Aáguatinhagostopodre,massuasedeeratanta
queseobrigouaengolir,fazendocareta.Deesguelha,avistousuaespadacravadanochãojuntoaummontedecaixasemestadoprecário,parcialmenteencobertasporumvelhopanoverde-escuro.
–Osenhorécavaleiro,nãoé?UmcavaleirodoImpério–disseogaroto,desfazendoosorriso.Dun-Cadal fez um meneio breve de cabeça em assentimento. Seu pescoço ainda estava rijo
demaisparasemovernormalmente.–Evocê,quemé?–perguntou.O garoto, contudo, não respondeu.Mantinha os olhos na terra seca, afagada por uma brisa
levequerolavapedrinhasentresuasbotas.Dun-Cadalesperou,masnãosurgiunadaparaquebrarosilêncio.Aproveitouparaobservarapaisagem,embuscadealgumapistaquelheindicasseondeestava.Ogarotoobviamenteo arrastarapor váriosmetrospara tirá-lodopântanoonde estiveraatolado.Delineavam-se,ao longe,oscarvalhosda florestaquemargeavaorioSeyman.Dooutrolado, havia apenas charcos espetados de capim verde e juncos balançando ao sabor do vento.Acimadelespairavaumaestranhaefinabrumadecalor.Perguntou-seseAzdekiconseguiraarmaraponteeatravessarorio...eentãoveioamemóriadeAzdekioabandonandoeafúriavoltou.
–OImpérioatravessouoSeymanjáfazquatrodias–anunciouogarotoenquantoiafuçarnascaixasnofundodacarroça.
Portanto,Azdekitinhaconseguidoconstruiraponte.–QuerdizerquenóstomamosForted’Aed.–Dun-Cadalsuspirou.
A revolta fora reprimida e o capitão Azdeki tornara-se o herói da batalha das Salinas. Umsorrisoamargodesenhou-seemseuslábiosrachados.Queironia...
–Não–rebateuogaroto,voltandoparajuntodelecomumaestranhacaixanasmãos.Sentou-seemposiçãodelótusaoladodocavaleiro,comacaixanomeiodaspernas.–Elestentaram,masnãoconseguiram–disse,evasivo,antesdeadotarumtomautoritárioque
nãocombinavacomele:–Agoramepasseocantil.–Comoassim,tentaram?Percebendo que Dun-Cadal não lhe daria o cantil enquanto não obtivesse uma resposta, o
garotooarrancoudesuasmãos,exasperado.–Oquevocêvaifazer...–Não vou envenená-lo – tranquilizou-o com um resmungo. – É que o senhor precisa beber
algumacoisaparamelhoraroununcavaiconseguirficardepéatempo.É claro que ele não ia envenená-lo. Dun-Cadal tinha visto sua espada cravada em um local
adiante.Emoitodias,ogarotopodiatê-lomatadoàvontade.Mastantocuidadocomumprovávelinimigoodeixavaintrigado.Aregiãoestavaemguerra...Nãopodiasedaraoluxodeesqueceressefatoeconfiaremqualquerum;e,nasuasituação,prevaleciaadesconfiança.
–VocêédasSalinas?–perguntou.–Sou.Puxou a tampa da caixa e enfiou rapidamente a mão lá dentro. Quando tirou, no punho
fechado se remexia uma forma verde. Ao colocá-la em cima do cantil, impediu qualquercomentário:
–Maseuosalveidosruargues.–Dequejeito?–indagouocavaleiro,intrigado.–Issoésegredo.Deseupunhofechadoescapavamduaspatascompridasquenãoparavamdesemexer.Eledeu
umapertãoeumlíquidoamarelo,fumegante,escorreunogargalo.Dun-Cadalsedeucontadoqueeleseguravae,comnojo,desviouoolharantesdeexclamar:
–SantaMiséria...éumarã...Vocêestáfazendoumarãmijarnocantil!–ÉumaAshalaMachal,umarãdosjuncos–explicouogarotocomoquemrecitaumalição.–
Elasurinamquandoestãocommedo.Émuitobomparaquemestádoente.–Issoéasqueroso.–Talvez.–Elesorriu,devolvendoarãàcaixa.–Masfoioquelhedeidebeberessetempotodo
emqueesteve inconsciente,e foigraçasa issoquea febrebaixou.Comomucodapeleeufizumunguentoparaasuaperna.Osaldoscharcos já tinhacomeçadoacavara ferida.Esseunguentoabrandouador.Eaurinaéumfortificante,paraosenhorsesentirmelhor.
Dun-Cadalengoliuemseco. Já tinhatomadocoisas infamesao longodesuacarreira,masseconformaremingerirmijo...erapedirdemais.
–Evocêquerqueeutomeisso...–Osenhorpreferemorreraqui?Desafiaram-se como olhar enquanto o garoto lhe oferecia o cantil.Não, é claro que ele não
queriamorrer ali. Também não queria ficar ali para sempre. Nos olhos cinzentos do garoto, viuumadeterminaçãoqueofezsorrir.Omolequefariaqualquercoisaparavê-lobeberaquelamisturae,nasuacondição,recusarnãoeraumaboaideia.Eledecertopoderiasedefenderouatématarogaroto,apesardeseuferimento.EraumgeneraldoImpério,enãoumqualquer...
Noentanto,algumacoisanoolhardomenino,umavontade,umaira,odeixavacurioso.Tomouumgoleeentãoentendeudeondevinhaoestranhogostopodredaágua.–Falandosério–sussurrou,estreitandoosolhos–,quemévocê?Ogarotodeixouoolharseperdernabrumadistanteenquanto juntavaalgumaspedras junto
aospéseasjogavanocapinzalsemmuitaconvicção.–Vocêdeveterumnome.Comochamamvocêporaqui?–Nãotenhonome.–Nãotemnome?–espantou-seDun-Cadal.–Nãotenhomais.Perdi–irritou-seomenino.Estavajogandoaspedrascommaisenergia.–Eseuspais?–Morreram.Estamosemguerra,casonãotenhapercebido–ironizou,lançando-lheumsorriso
amarelo.–JáfaztempoqueeufugideForted’Aed...–Porquê?Ele pareceu refletir por um instante. Estaria recordando algum fato doloroso? Ou pensando
numa resposta que soasse plausível? O general tinha emmente que seu jovem salvador era umfilhodasSalinas,umprovávelinsurgente,umpossíveltraidordoImpério.Umacoisaeraelenãootermatado,outraeraganharsuaconfiançacomumobjetivoespecífico.
–Porcausadaguerra...eeuestavacommedo.Dun-Cadalexaminou-oeseobrigouatomarmaisumgole.–Eacarroça?Erasua?–Não...Éumacarroçavelha–respondeuele.–Emeservedecabana.Euestavaescondidoaqui
e,umdia,vivocêspassarem.Eentãoforamatacadospelosruargues...eaquiestáosenhor.Paroudejogarpedrinhas,masmanteveosolhosaolonge,parecendoalheio.–Eleseramtrês–recordouDun-Cadal.–Vocêlutoucomostrêsruargues...sozinho?–Jádisse,éumsegredomeu.–Levantou-secomumpulo.–Osenhorprecisadescansar.Vou
tratar de achar algo para a gente comer à noite. Há por aqui umas rãs enormes, rãs-colmeia, écomosãochamadas.Têmumacarnemacia,quenemadofrango.
E,enquantoeleiaatéofundodacarroçapegarumalforje,Dun-Cadalointerpelou:–Menino!Soumuitogratopor suaajuda,deverdade,masprecisome juntar àminha tropa,
ela...Ogarotosevirouenquantocolocavaoalforjeatiracolo.–Aindanão.Estáfracodemais.Edesapareceuatrásdacarroça.–Menino!Ei,menino!Volteaqui!–chamouocavaleiro.Pormaisquegritasse,nãoobteveresposta.Cansado,deixou-secairnocobertorefoicerrando
aspálpebras, sentindo a cabeçapesarmais emais.Até tentoupensarnoquedeveria oupoderiafazer para encontrar o acampamento do Império, mas a fadiga levou a melhor e ele acaboudormindováriashoras.Quandoabriuosolhos,osoljáestavasepondoatrásdacarroçainclinadaeo garoto acendiauma fogueira.Comdificuldade,Dun-Cadal apoiou-senumcotovelo.Tinha asensação de que seu corpo inteiro fora pisoteado pelos cascos de um cavalo furioso. Sua pernamachucadalembravaconstantementesuapresença,apertadanumcurativoquecomeçavaaexalarum fedor de carne podre.O garoto viu que ele havia acordado,mas não disse nada. Aliás, nãotrocaram nenhuma palavra até ele trazer uma pequena tigela de madeira cheia de coxas de rãassadas.Vendoacaradenojodocavaleiro,conteveumarisada.
–Estáachandograça,é?–Ohomemsuspirou.–Vendouminvasortendoquesesubmeteraosseus...gostosculinários...
–AsSalinassempre fizerampartedoImpério–rebateuomenino,voltandoasentar-se juntoaofogo.
Surpresocomaresposta,ogeneralquasederrubouacoxaderãquelevavaàboca.–Ficofelizdeouvi-lofalarassim–disseDun-Cadalantesdedarumamordidanacarne.Tinha de fato um gosto muito parecido com o do frango. Abstraindo-se do aspecto pouco
apetitoso do batráquio, até que não era ruim. Anoitecera e só o clarão das chamas vacilantesiluminavaorostodomenino.Seuolhar,emgeraltãosevero,pareciamaissuave.
–Foigraçasaissoqueeusobreviviporaqui–explicou,apontandoodedoparaopratoderãs.–Existemcatorzetipos,sónooestedasSalinas.Naregiãotoda,devehaverumas...trinta,quarentaespécies diferentes de rã.Cadauma tem sua serventia.Comalgumas se faz veneno, comoutras,remédio...Comapele,ababa,aurina...
ApontounovamentecomoindicadorparaatigeladeDun-Cadal.–Eoutrassecomem...–ÉissoqueseaprendenasescolasdeForted’Aed?–ironizouDun-Cadalenquantomastigava.Ogarotobaixou a cabeça, pensativo, segurandoumgalho e enfiando-odevagarnomeiodo
fogo.–Bem,menino...medigaoquevemdepois.–Depois?– É, depois. Vocême salvou dos ruargues, cuidou demim domelhor jeito que conseguiu. E,
emboraachequeasSalinas sempre fizerampartedo Império,vocêé, e continua sendo,um filhodasSalinas.Então,oquepretendefazerdepois?Eusouseuprisioneiro,aoqueparece...
Omeninolargouopedaçodemadeiraemchamasedesviouoolhar.–Ocavalodoseuamigo...estáatrásdacarroça.Dun-Cadal se endireitou, firmando-senoscotovelosparapouparapernaquebrada, e avistou
asorelhasdamontariadeTomlinndespontandoatrásdacarroça.–Émesmo...Entãofoiassimquevocêmearrastouatéaqui...–deduziu.–Euenroleiumacordanasuacintura–explicouogaroto,mostrandocomgestosdequeforma
otinhaamarrado.–Enasaxilas.Prenditudonocavalo...eaquiestáosenhor...–Eaquiestoueu–repetiuDun-Cadal.
Fitouomeninoenquantoterminavadecomerascoxasderã.Nãoestavarealmentecomfomeapesar dos vários dias sem comer, decerto por causa da dor. Ao ingerir a carne tenra, foirecobrandooapetite.
–Vocêéummolequedanado–declarou.Pelorestododia,Dun-Cadalbemquetentoufazê-lofalar,masficoucomasensaçãodeestar
conversandocomasparedes.Aomergulharnosono,seuúltimopensamentofoiterrível...Eseamanhãogarotooentregasseaosinsurgentes?Essa ideia o afligiu nos dias que se seguiram. Sua perna não estava totalmente curada, suas
costelas ardiame cada respiração erauma tortura.Todavezque tentava levantar,pensavaque iadesmaiar. O garoto trocou seu curativo três vezes e, nas três, ele pôde constatar o tamanho doestrago.Chagasfundaseinflamadashaviamsidocosturadasàspressasemváriospontos,aliondeosossos,aosequebrarem, tinhamrasgadoapele.NãoeraobradenenhumgrandecirurgiãodoImpério,masogarotofizeraopossível.
Muitasvezesocavaleiro tentoudescobrirmaisa respeitodele, emvão.Tinhamaishabilidadecom a espada do que com interrogatórios. E com frequência o garoto saía do acampamentoimprovisadomontandoocavalodeTomlinn,rumoaalgumaaldeiadasSalinas.
Nasuaausência,Dun-Cadaltentavaseconformar,remoendopossíveisestratégiasparaocasode o garoto traí-lo.Mas por quê, então, faria tanto esforço para curá-lo? Esse paradoxo era umverdadeiroquebra-cabeça.Tentouresolvê-loelaborandoumasequêncialógicaafimdeadivinharoobjetivodogaroto.Atéqueafinal resignou-seadeixaras coisasacontecerem:odestino já estavaescritoeelenãotinhacomocontrolarofuturo.Osdeusestinhamcolocadoaquelemeninoemseucaminho,eassimdeviaser.Nãohavianenhumfatalismonessepensamento,nenhumadesistência,apenasumaforma...deaceitarosfatos.
Os dias foram passando. Nenhum insurgente apareceu para prender o general ferido. Ogaroto,emborapoucofalasse,seesforçavaparacuidardeledamelhorformapossível.Dun-Cadalse contentava com isso. Quando se sentiu forte o bastante para ficar de pé, com uma tábua dacarroçaservindodemuleta,ocavaleirorefletiuquejápassaratempodemaisnaquelepântano.
–Pareceumpernalta...–caçoouumavozàssuascostas.–Dun-Cadaltentavaseequilibrarnapernaboa.–Melhornão–aconselhouogaroto,enquantoocavaleiropenavaparaarrearocavalo.
Toda vez que apoiava sua perna convalescente no chão, uma flecha de fogo subia-lhe até ocoraçãoesuatestapareciainflamar-se.Ocavalopastavatranquilamenteatrásdacarroçaeparecianãogostarqueumpernetatentassepôrumaselanoseulombo.
–A guerra continua semmim. Já estou restabelecido para irme juntar aosmeus,menino –afirmouDun-Cadal.
Noentanto,seurostomolhadodesuoresuasfeiçõescontraídasdedorafirmavamocontrário.–Nãovaiconseguirmontarcomapernadessejeito–avisouogaroto.–Pernaltanãomontaa
cavalo.Osenhorficaengraçadoassim,seequilibrando.Vaiacabarcaindo.–Vocêacha,é?–zombouocavaleiroenquantodavaumúltimoapertãonacorreiasoboventre
docavalo.Porpouconãocaiuaorecuar,atábuacomprimindosuaaxilaapesardacotademalha.Nãovia
ahoradeselivrardela!Comumadasmãosnoarçãodaselaeaoutraatrás,soltouamuletaparaiçar-sepenosamentenamontaria.Fezváriastentativasatéconseguirerguerapernamachucadaàalturadolombodocavalo.Então,gemendo,deixou-adeslizarpelasela.Abainhadaespadabateuna armadura deslustrada. Pensou que ia desabar quando sua perna, sustentada pela tala demadeira, esbarrou no estribo vazio. Uma vez firme na sela, as mãos segurando as rédeas,conseguiurecobrarofôlegoeaospoucosaplacarador.
–Vocêacha...–repetiunumsussurro,fitandoaolonge.O pântano estava coberto por uma névoa de calor, e o céu, coberto pelas mesmas nuvens
brancasqueohaviamrecebidonaquelaregião.–Precisomejuntaraosmeus–acrescentouele.Manobrandoasrédeas,forçouocavaloaavançar.Atalabateunocourodaselaeessesimples
gesto arrancou-lhe uma careta de dor. Se precisasse cavalgar assim por horas, com uma únicapernaboa,aquiloeraapenasumapréviadoqueteriaqueaguentar.
–Equantoamim?–preocupou-seomeninoatrásdele.–Você?Fiqueaquiotempoquequiser,feliznomeiodasrãs,efaçaopossívelparasedesviarde
homensarmados.Acoisapodeesquentar...Tenhoumacidadeparatomar.–OsenhorserefereaForted’Aed?Ogarotocaminhavaaoladocomocavalo,tentandoapanharasrédeas.–OsenhornãosabeoqueaconteceuemForted’Aed...Secontinuasseassim,iaacabarparandoocavalo.Dun-Cadalcerrouosdentesecutucou-ocom
oscalcanharesparadarinícioaotrote.Ogarotofoiobrigadoadarumpassoparaoladoparanãoserderrubado.Ocavaleirorespondeuàexpressãozangadadomeninocomumsorrisozombeteiro.
–ImaginoqueoidiotadoAzdekinãosoubetomaracidadeetevequedarparatrás.Conteve uma risada, suas costelas repuxando a cada sacudida. A dor lhe dava vontade de
vomitar,massuavontadefoimaisforte.Precisavaencontrarsuastropas,precisavalevaralutaatéofimereprimirarevolta.
–Elesperderam.Osenhormesmodissequeaguerracontinuousemosenhor.Dun-Cadalpuxoulevementeasrédeas.Ocavalodiminuiuopasso.–OImpérioperdeuasSalinasquatrodiasatrás–contouomenino.Comumadasmãos,fezocavalodarmeia-volta.Apoucospassosdali,ogarotoestavaparado,
punhos cerrados próximo às coxas. Seu rosto recobrara a expressão raivosa dos primeiros dias.Havia algo infantil namaneira como franzia o cenho, como se tivesse sido castigado e estivesseprestesadefendersuacausacomunhasedentes.Dun-Cadaldeviaacreditarnoqueeledizia?UmacoisaeraAzdekinãoterconseguidotomarumacidade.Outraeraele,oscemmilsoldadoseosmilcavaleirosfazendousodoSoproteremsidoderrotados,algosimplesmenteimpensável.
–Forted’Aedfoiumaarmadilha.Elesderrotaramseuscompanheiros...eemseguidalançaramumgrandeataque–explicouogarotoemtommelancólico.–Seuexército ficou tãosurpresoquenãoreagiuatempo...ebateuemretirada.
–Comoassim...?–perguntouDun-Cadalcomosemblantecontraído.Estava atordoado. Ele, o homem de armas tão altivo e arrogante, vacilando sobre uma
montariaesquelética.–Parasejuntaraosseus,vaiterquecruzaraslinhasinimigas–confessouogaroto.–Osenhor
estáperdidodiantedosinsurgentesquecontrolamasfronteirasdasSalinas.Dun-Cadal se inclinou sobreopescoçodo cavalo, umbraçono arçãoda sela.Estavamesmo
encurralado,sozinho,semninguémsaberqueaindaestavavivo.– Você devia ter dito isso antes – esbravejou Dun-Cadal. – SantaMiséria, devia ter dito isso
antes!–Eoqueteriamudado?–Oinsolentelhedirigiaumestranhosorrisoquecontrastavacomseu
olharsevero.–Vaiprecisardemim.–Nãodiga!AlémdesalvarminhavidavocêaindaquermeajudarasairdasSalinas?Dun-Cadal tinha elevado a voz, denotando algo entre a raiva e o desespero. Tentava pensar
direito, achar uma solução, uma saída. Só que sua perna ardia de forma atroz, a dor subia pelacoxa, varava seus intestinos e atingia, intensa, o coração. O garoto estava certo: ele não estavasuficientementerecuperadoparacavalgar.
–Osenhoréumcavaleiro.–LançavaaDun-Cadalumolhardecidido.–Meensinealutar.–Oquê?–espantou-seogeneral.–MeensinealutareeuoajudoafugirdasSalinaseencontrarsuastropas.–Porqueachaquevamosconseguircruzaraslinhasinimigastãofácil?–provocouDun-Cadal.Levou a mão às costelas doloridas. Se ficasse mais tempo naquela posição, ia acabar
desmaiando.–Issopodeserfeito–respondeuomenino.–Osenhornãosabedoqueeusoucapaz.–Eunãoseinadasobrevocê!Nemseicomosechama!–Ésómedaronomequequiser–rebateu.–Meensinealutar.Nãovaisearrepender.Não semovia nem um centímetro, ali parado, o rosto ligeiramente abaixado, o olhar severo
erguidoparaocavaleiroqueeleenfrentavasemmedoalgum.–Lutar?Pegaremarmasnasuaidade?–Voumetornarcavaleiroantesqueosenhorperceba.–Quantacerteza!Sercavaleirolevatempo,menino.–Eupossofazerisso.–Vocênãovaiserdenenhumaserventiaparacruzaraslinhasinimigas.–Eupossofazerisso–insistiuemvozbaixa.Cadavezqueocavaleiroelevavaotom,omeninorespondiaemvozbaixa,masfirme.–Menino,vocêestácomeçandoameirritar!–vociferouDun-Cadal,puxandoasrédeas.–Você
aindaéumacriança!Reconheçaoseu lugare tentenãosonharqueémaiordoqueé.Asituaçãoestácomplicadademaisparaeuaindaterquecuidardevocê.
–Eunãosoumaiscriança!–Apontouparaeleumdedoacusador.–Osenhornãovai longedessejeitoesabedisso,masprefereatentarosdemôniosaficaraquicuidandodoseuferimento...Enquantoisso,podiameensinaralutar,masnão,prefereselançaràmorte,sozinho,sendoqueeusei onde estão os insurgentes, quantos são e por onde devemos seguir! Juntos podemosconseguir...–Semfôlego,baixouosbraços,abocacontorcidaderaiva.Estavatrêmulo,apontode
chorar.–...eeunãosoumaiscriança–repetiu.O cavalo relinchou.Tambémparecia cansado.Dun-Cadal, a contragosto, acabou aceitando a
ideiadequenãopodiaseguirviagemsozinho.–Vocêsabemanejarumaespada?–perguntou.Omeninoassentiutimidamente.Entãovoltaramparajuntodacarroça.Dun-Cadalprecisoude
ajudaparaapeare,comumbraçoapoiadonosombrosdeseujovemsalvador,voltoucapengandoparaacama.Aodeitar, adornapernadiminuiu...porumtempo.Descansou-a sobreumacaixavelhaparaosanguecircularmelhoreopénãoinchar.
–Meajudeatirarasbotas.–Elesuspirou.Observouenquantoomeninoobedecia,tentandovislumbraremsuafisionomiaalgumindício
quelhepermitissesabermaisaseurespeito.Umacicatriz,umaexpressão,umdetalhenoqualnãotivessereparado...algo,mesmomínimo,quedesseaogarotoaomenosasombradeumpassado.Qualquer coisa eramelhor do que aquele vazio absoluto. Depois de tirar as botas, ele veio parapertodocavaleiroetirouarãdacaixaparaextrairsuaurina.
–Voulhedarumnome–anunciouDun-Cadalerguendooqueixoparaele.–Fiqueàvontade–respondeuomenino,chacoalhandoocantilparamisturaraurinacoma
água.–Vejamos... Vocême apelidou de Pernalta, não foi?Vou lhe dar o troco. Já que você parece
gostardessesbichos...Vaiser...Rã...Vouchamá-lodeRã...Pensouqueogarotofossesemagoar,maselese limitouamenearacabeçaenquantoabriae
lheofereciaocantil.–Pormim,tudobem...–sorriutristonho–Pernalta.Ouseja,eletopavaqualquercoisaparaalcançarseuobjetivo,atémesmoumapelidoridículo.–CavaleiroRã...VocêquerserocavaleiroRã?–ironizouDun-Cadal,pegandoocantil.O olhar que cruzou o seu arrancou-lhe toda a segurança. Brilhava, naqueles olhos cinzentos,
umavontadeinquebrantável.Suaspalavrasforamdoces,massecas,ummurmúrioqueficouparasempregravadonamemória,tãofortequantoumgrito:
– Um dia o senhor vai entender. Pode ter certeza. Ainda vou ser omaior cavaleiro que estemundojáviu.
4
Oassassino
–Atacarpelascostas?
Issoélutarsemhonra!
–Nãohánenhumahonraemmatar,menino.Nenhuma.
Poucoimportacomovocêdáogolpe.
Nãoháglórianenhumaemtirarumavida.
Tudoqueelasabiadomundoaprenderanoslivros.AnosdeestudonoGrão-ColégiodeÉmeristinhamajudadoViola a adquirir uma cultura impressionante,mas tudo aquilonuncapassarademeras palavras. Para as quais, nesse momento, ela descobria algum sentido. Diante dela,finalmente tomavamcorpoasobras escritas, copiadas e recopiadashavia centenasde anospelosmongesdaOrdemdeFangol,aquelesservosdosdeusesqueeram,atéentão,osúnicosdetentoresda escrita. A escrita... a voz dos deuses que, séculos atrás, fora registrada no Livro Sagrado.DesaparecidooLiaberDest,depostooImpério,mudaramasregrasdojogo.Osaberjánãopodiaser privilégio de uma elite. Com a República, uma jovem camponesa como Viola podia estarpreparadaparaahistóriadeseumundoeparaomododerelatá-lacomumapenamergulhadanatinta. O que ela tinha visto de fato? Visto com os próprios olhos? As trilhas arborizadas de seuvilarejo natal tinham dado lugar às amplas e extensas avenidas de Émeris, a cidade imperial. Ealémdisso?Apenaspalavrasnoslivrosdescrevendoosantigosreinosdeformapoética.
Assim,osimplesfatodepisarnasruaspavimentadasdeMassáliaeraparaelacomoumanovaetapa da vida. Viola enfim pudera percorrer as terras, viajar até a cidade do fim do mundo.Andandoemmeioàheterogêneamultidão,tomavaconsciênciadariquezadaRepública.Portodaarua,mercadoresconvidavamostranseuntesadescobriremseusmaravilhososprodutos:legumes,especiariasquepinicavamasnarinas,colarestrançados,tecidosrendadoseatécarne-secaouaindasangrentadeumporcoabatidoalimesmo,juntoàsbancadas...
Osolapinobanhavaacidadecomumaluzocreepairavanoarumaromapesadodealmíscar
e citrinos. Nos tempos do Império,Massália fora a única cidade onde quem sonhava com algodiferente podia alcançar seu objetivo. Agora que a República regia o destino dos povos, aprerrogativa dessa cidade se espalhara feito um vento de esperança, demodo inesperado, pelosantigos reinos. Disso a própria Viola era um exemplo: filha de um ferreiro, ela se destacara noGrão-Colégio,outrorareservadoànobreza.Quefuturoseabriadiantedela?Odeumahistoriadoradiantedasobrasantigasdeumabiblioteca?Ouodaarqueólogasaindomundoaforaembuscadeantigos artefatos e outros ídolos?E a quemela ia amar?Comquem ia fundaruma família?Quelugar ia ocupar naquele novo capítulo do mundo, agora que o povo tinha a oportunidade deescolherumamanhã...?
Faziaa simesmaessasperguntas semde fatoesperarumaresposta.Apossibilidadedehavermuitasrespostaseraboademais.Seuspaisnãohaviamtido,emmomentoalgum,aoportunidadede pensar no futuro. Seu pai havia sido ferreiro, tal como o pai de seu pai, e assim por diante.Quantoàsuamãe,malsabiaescreveropróprionome.Emboraensinassemasletrasparaalgumaspessoas,osmongesfangolinoscuidavamdemanterocontrolesobreaescrita.
–Senhorita,experimenteessesaromasdasilhasSúdias!Especiariascomonuncaprovouantes–chamouumhomembembarbeado, de pelemorena, a barriga roliça quase apoiada na bancadarepletadesacosdeespeciarias.
Elaesboçouumsorriso,meneouacabeçacomarpoucointeressadoepassoupordoishomensque brigavamnomeio da rua sem que ninguém se importasse. Tinhamais o que fazer além deperambular pela cidade. Haviam-lhe confiado uma missão e ela fazia questão de cumpri-la.EncontrarEraed,aEspadadoImperador,nãoeraumcapricho,masumdesejodenãodenegriropassado.Eraed...eramuitomaisqueumsímbolo:eraumaespada lendária, forjadano iníciodostempos.
Aosairda ruadocomércio,avistouumchafariz secoqueseerguianomeiodeumapracinhapavimentada de vermelho e branco. Ali, emmeio às altas casas burguesas de sacadas floridas eamplasjanelas,ficavaamansãoondetinhadeixadoDun-Cadal.Nãoeradifícilreconhecê-laàluzdodia.Eraaúnicaconstruçãocujascortinascontinuavamfechadasediantedaportacaminhavammulheres comos ombros desnudos.Vestidos longos batiam em seus pés descalços, finos tecidosqueseajustavamperfeitamenteàscurvasdocorpo.Vendiamseusencantosaquempagassemais.E não poderiam ter mestra melhor. Comentava-se por aí que Mildrel fora uma das maisprestigiadascortesãsdoImpério,partilhandosegredosdealcova,destilandobeijoseconselhosnapenumbradossalõesprivados.
Violaajeitouosóculosantesdesesentaràbeiradochafariz.Nocentro,erguia-seumanjinhodepedra comas grandes asas abertas, um joelhodobrado como se estivesse prestes a alçar voo.Observou os transeuntes: mercadores que vinham a Massália a negócios, viajantes enlameadosandandoapassoscansados,puxandosuasmontarias,ounâagasqueestufavamorgulhosamenteopeitoaoconversar.Deesguelha,porfimavistouovultofamiliardeumvelhocavaleirodebarbamalfeita.
Dun-CadalestavasaindodacasadeMildrel,amãodireitaerguidaemfrenteaorostoparaseprotegerdo sol.Namão esquerda seguravaumamaçãque levou àbocaparadarumamordida.Duasmulheresquecaminhavamdiantedaportacumprimentaram-nocomumlargosorrisoeumadelas deu-lhe um beijo no rosto antes de ele se despedir estreitando os olhos. A luminosidadeintensa o cegava, refletida no pavimento. Para alguém com as pálpebras pesadas de álcool, eradifícilsuportaraluzdosol.
–Fiqueicomreceiodequenuncamaisfossesairdessacasa–disseumavozàssuascostas.Olhouporsobreoombro,aindamastigandoumpedaçodamaçã.Viola,atrásdele,andavaa
passos ligeiros,mãos nas costas, duasmechas rebeldes de cabelo esvoaçando acima das orelhasmiúdas.Entãoamoçadecabelosvermelhosnãoiadeixá-loempaz.Examinou-adacabeçaaospésfazendoumacareta.
–Você...–sussurroucomvozrouca.– Sentiu minha falta? – Ela sorriu, balançando-se feito uma criança. – E olhe que, em se
tratandodecompanhiafeminina,achoquenãotevedoquesequeixarnanoitepassada.Dun-Cadal,resmungando,recomeçouaandar.Violafoiatrás.–Parecetãosimpáticoquantoontem–observouelaemtomzombeteiro.– Aquele seu Selvagem não veio junto? – vociferou o cavaleiro. – Está ocupado desenhando
coisasfeiasnacara?–Ah,seestásentindofaltadele,nãosepreocupe,logovaivê-lo.–Nãofaçoamenorquestão...Eleapertouopasso,mordendoamaçãcomcertonervosismo.Ser importunadoassim,pouco
depois de acordar, era insuportável. Tão insuportável quanto omartelo que batia dentro de suacabeça. A isso ainda se somavam os ruídos de Massália, seus camelôs, seus pregoeiros... suasgaivotas planando no céu sem nuvens. Dun-Cadal usou os ombros para abrir caminho entre amultidão.Violanãodesgrudavadele.
–Vocêvoltouparameameaçar?–provocouDun-Cadal.–Ameaçar?Comquê?–Agoraquejásabequemsou...–Não estou interessada em julgá-lo – interrompeuViola, alcançando-o e passando a andar
juntodele.Ummercadorquevinhaemsentidocontráriocarregandoumbarrilquaseesbarrounela.Viola
seesquivoudandoumpassoparaoladoerecomeçouaandaratrásdocavaleiro.Ohomemseguiuemfrente,assobiando,aparentandoindiferença.
–Nãoquerovingança,oquequeroéoutracoisa–acrescentouela.–Nãovouajudá-laaencontraraespada.–MaselapertenceàHistória!–EessaHistóriajáacabou...Nofinaldaruasemoviamosmastrosdosnaviosancoradosnoporto.Umamultidãoparecia
seguirpara lá.Aflitoparaescapardaquelaagitaçãoesentar tranquilodiantedeumcanecocheio,Dun-Cadaldobrouàdireita.Àentradadavielahaviaumgigante tatuado,debraços cruzados,o
cantodabocaerguidonumestranhosorriso.Seusolhares secruzarame,pelocenho franzidodovelhogeneral,nãoforamnadaamigáveis.
–EufaleiquelogoiaverRogantdenovo–sussurrouViolaatrásdele.Dun-Cadaldeumeia-voltaeresolveudesceremdireçãoaoporto.Viola foiatrásantesqueele
sumissenamultidão.–Dun!Dun!–chamou.–Esperepormim!–Porquedeveria esperar?– indagouele em tom firme.–Só estou esperandoahoradevocê
trazerosguardasdaRepública.– A guerra civil acabou, general – retrucou Viola. – Ponha isso na cabeça. Acha que vou
denunciá-losóporesperançadeque,naprisão,finalmentedecidafalar?–Podeser.–Ora,issoseriaidiotice.–Tambémpodeser–ironizouocavaleiro.Naenseadaestavamatracadosbarcosgrandeseimponentes,oscilandolevementenaágua.De
umdelesdesciaumacuriosaescoltadeguardasusandocouraçasvermelhaseazul-celeste,alabardana mão, espada na bainha. À frente do cortejo, dois soldados de armas mais leves portavamestandartescomascoresdosrecém-chegados.Osconselheiros...Oqueouviradizerseconfirmava.Conheciaváriosdeles.Estacouesentiu,atrásdesi,ocorpofrágildeViolajuntoaoseu.
– Por que iria denunciá-lo se aqueles que, bem mais que o senhor, se beneficiaram com oImpériosemnemsequerdefendê-losãohojerepresentanteseleitospelopovo?–murmurouela.
Eramquatro,quasetodosvelhoseenrugados,usandoamplosmantosvermelhossalpicadosdelírios dourados e orlados de pele creme. Dos quatro, Dun-Cadal reconheceu três. O duque deAzbourt,umhomemcruelcomorostomarcadopelasrugas,corpulentoapesardaidadeavançada,que por muito tempo se refugiara em seu ducado no Norte, deixando de se importar com osfavores do imperador.Omarquês deEnain-Cassart, homenzinhode voz fina, peruca empoada efisionomiasorridente,queandavadebengala,vaguearadurantemuitotempopeloscorredoresdopalácio de Émeris, jurando até o fim sua lealdade ao Império. Por meio de que negociaçãoconseguira se firmar como candidato ao cargo de conselheiro de sua região?Um dos principaismotivoseradecertosuafortuna.Vinhaemseguidaumdesconhecido,bemmais jovem,quetinhaumacicatriz abaixodoolhodireito, eDun-Cadalnão teveamenordúvidadequeera ligadoaosdoisprimeiros.Quantoaoúltimo...Dun-Cadalmeneouacabeça,cerrandoosmaxilares.
–Nãoseisetornouavê-lodepoisqueeleoabandonounasSalinas–disseViola.–OfatoéqueÉtienne Azdeki é atualmente um dos conselheiros mais eminentes da República. Outros aindadevem chegar, para aNoite dasMáscaras. Se o povo virou essa páginado seupassado, por quenãofariaomesmoemrelaçãoaosenhor?
Ela veio para o lado dele e seu olhar percorreu a multidão que se aglomerava em volta docortejo.EletinhasedesinteressadodaRepública,queriaesqueceromundonaesperançadequeseesquecessemdele.Paraquemconhecerapessoalmenteo imperador, essesqueagoragovernavamtinham pouquíssima importância, a ponto de ele ter a impressão de estar vivendo em outrarealidade.AlgunshaviamsereerguidodasruínasdoImpério.
– Parabéns, general, está percebendo que este mundo não é nem preto nem branco, bemdiferentedoquepensavanostemposdoImpério...
Algumacoisaestavaerrada.Umasensaçãovaga...vagademaisparaeleentenderomedoquebrotavaaospoucos.IssoinfluenciouarespostaquedeuaViola,quesooucomoumaameaça.
–Nãofaçaessejoguinhocomigo–aconselhouemtommordaz.–Eutambémseiserirônica.Sóquetenhoduasvantagens.–Quais?–Alémdenãotercheirodesuor,eusou...bonitinha.Dun-Cadal não conseguiu conter o sorriso, embora o ar lhe parecessemais pesado, como se
houvesseumatragédiaanunciada.Sim,algode fatoestavaerrado.Masaquelecheirode lavandapor um instante o apaziguou. Principalmente porque ela nãomentia aomencionar seu rostinholindo.
–Nãolhedesejonenhummal,general,podetercerteza.Encarou-ocomseusolhos tãobonitos, tãoverdes,orladosdecílios finose longos.Seubrilho
mal se turvava com as lentes dos óculos. Como resistir ao doce encanto que ela exalava, àquelavontadecontidanumaluvadepelica?Eletinhaa impressãodequeelaoafagavacomofariacomum velho lobo que se quer amansar. No fim das contas, isso não o desagradava. Chegou até aimaginarqueelapoderiaserfilhadeMildrel.Aquelecheirodelavandacombinavadeliciosamentecom as duas. Semdizer nada,mordeu amaçã com força, arrancando umpedaço como se fossecarnegrudadanumosso,edesviouoolhar.
A sensação estavamais nítida. Era, para ele, evidente. Seus sentidos de guerreiro ordenavamquetivessecuidado.
–Não saia daqui –disse, enquanto seguia comos olhos o cortejo quedeixavao cais e agoraatravessavaapraça.
Na frente de um prédio grande enfeitado com altas colunas de mármore branco, quatrocarruagensaguardavamosrecém-chegados.
A multidão se aglomerava ao redor dos conselheiros, heterogênea, divertida, curiosa...opressiva. Somente o corredor de honra formado pelos alabardeiros impedia osmais afoitos decumprimentarem seus representantes no Conselho. EnquantoAzdeki, Azbourt e o desconhecidoconcediam um interesse questionável ao povo que os recebia, Enain-Cassart se deliciava com acalorosaacolhida.Omarquêsnãohesitavaemseaproximar,esgueirandoamãoraquíticaentreossoldadospararetribuirosafetuososcumprimentosdopovodeMassália.Umsorrisoiluminavaseurostoenrugado.E,emboraa luzdosolno lajedodapraçaoobrigasseaestreitarosolhos,quemolhavaparaelepercebiaumbrilhodealegriapelafrestadesuaspálpebras.
–General?–arriscouViolanumsussurroconstrangido.Eleergueuamãoparapedirsilêncioecaminhounadireçãodapraça,buscandoqualquercoisa
de incomum na multidão. Podia sentir, intuir... a morte, escondida em algum lugar, prestes aatacar. Quem? O quê? Ainda não tinha condições de dizer, mas sentia sua presença. Quandoreparounovultocurvadousandoumcasacovelhoremendadoeumcapuzdedobrasondulantes,ele soube. Tinha a aparência simples de um velho mancando emmeio aos curiosos, a atenção
concentradanomarquês.Ogeneralalcançoufinalmenteamultidão,osaplausosmartelandosuacabeçaaindacansada.
Deu uma últimamordida namaçã e deixou-a cair no chão.O talo foi pisoteado em seguida.Ovultoavançava.Gritosdealegria.Risos.Umalarido,algunsmetrosmaislonge.Trocadeinjúriasepalavrões.Algunsalabardeirosdeixaramaformaçãoparaprestarauxílioaoscolegas.Umabrigasearmavajuntoaocortejo, leve,massuficienteparachamaraatenção.Quantomaisseaproximava,maisseussentidosentravamemalerta.Logoaconteceria.
O vulto de casaco tropeçou num guarda, que quase se desculpou, mas seu sorriso se desfezquandoaspernascederamsobseupeso.
Logo,logo...O velho amparou o corpo do soldado por alguns segundos, então o deixou cair sem ruído e
saiu andando às costas do marquês. A poucos passos dali, os alabardeiros apartavam trêsmarinheiroseoquepareciaserumnâagafurioso.
Agora.Ovultodovelho se endireitoude repente,numgestoquepareceuestranhamente lento.Com
ummovimentodeombros,deixoucairocasacoremendado,revelandoumhomemdecapaverde,umfinocapuzencobrindoseurosto.Emseucinturão,duasadagaseocabofoscodeumaespada.Nos punhos, pulseiras de couro. Em sua desenvoltura, a prova indiscutível de que tinha sangue-frio.
Dun-Cadal sedeteve imediatamente, semfôlego.Aprenderaaobservar, identificar,perceberaaproximaçãodeumassassino.Haviaprotegidoo imperador, tornara-se sua sombra, espreitaraomenormovimentonacorte.QuandoomarquêsdeEnain-Cassartvirou-se lentamente,soubequeeratardedemais.
–Então,meurapaz,você...O sorriso encantador do conselheiro se extinguiu quando a lâmina perfurou-lhe a garganta.
Não houve grito, nem uma palavra sequer, apenas bolhas de sangue saindo pela boca eestourandonoslábios.
Rápido.Preciso.Ligeiro.Esemnenhumremorsooulamento,nemmesmoasensaçãodedevercumprido.Oqueaquelehomemsentia,Dun-Cadaleracapazdeadivinhar.Elepróprio trabalharaassimduranteanos.Paradefenderoimperador,àsvezeseraprecisoatacarprimeiro...
Enain-Cassart desabou de lado sem ter tido tempo de notar que a vida o abandonava. Osaplausossecalaramcomasurpresa.Poruminstante,nãomaisqueotempodeumrespiro,ouviu-seapenaso somdaondaquebrandoao longe.Eacapaverdebatendonasbotasdoassassinoehipnotizandoogeneral,nomesmoritmodosangueemsuastêmporas.
Matar.Muitasvezeselefizeraexatamentedaquelejeito.Osenhorjáfoiumassassino?Antesdeoimperadorautorizá-loatreinarseusucessoreantesdeserpromovidoageneralem
retribuiçãoaosserviçosprestados.Eleentregarasuatúnicaaoseualuno...ÀdireitadeDun-Cadal,umamulherdecabelosujoepreso,facesrosadascheiasdeveiazinhas
vermelhas,permaneciaboquiaberta.Quandoelaenfimconseguiupronunciarumapalavra,suavoz
ressoounapraçasilenciosa.–Assassino...Peguemele!–gritou.A multidão se alvoroçou, gente apavorada fugindo da praça enquanto os alabardeiros
escoltavamàspressasostrêsconselheirosparaascarruagens.Sozinho,depéjuntoaocadáverdomarquês, o assassino parecia sentir prazer em assistir à debandada. Mal se moveu quando osguardasocercaram,lançasealabardasapontadasparaele.
Dun-Cadal tinha esquecido aquela túnica no exato momento em que outro a tinha vestido.Deixara-a para trás, como um legado. Uma simples capa verde... um fantasma do passado. Ogeneral respirava pesadamente, lançando olhares rápidos para as pessoas que continuavam apoucos passos da cena, curiosas e assustadas. Durante anos a fio ele tentara afogar suaslembrançasnoálcool,eagora,empoucashoras, suahistória inteiravoltavaà tona.DeEraedatéRã...deAzdekiàquelequeosucederajuntoaoimperador.
–Deponhaasarmas!–Dejoelhos!Vamos,ajoelhado!–Deponhaasarmas!As vozes autoritárias dos soldados mal cobriam o alarido. As lanças apontavam para o
assassino. E ele,muito à vontade, encarava um a umos homens que o ameaçavam. Seus lábiosfechados não estremeceram. Estava calmo demais. Por quê? Por que se comportava assim?Qualquer assassino teria cometido o crime da maneira mais discreta possível e aproveitado amovimentaçãocoletivaparafugir.
Quandoumsoldadoousouseadiantar,eleenfimreagiu,segurandosualançacommãofirmeepuxando-a para si num gesto preciso. O coitado nem teve tempo de reagir e o assassino já lheenfiavaumaadaganacotademalhacomtalforçaqueaatravessoueperfurouoabdômen.
Era um recado. Um aviso. Uma ameaça dirigida a todos os conselheiros. Ao subir em suacarruagem,Azdeki acompanhou a cena com o olhar.A roda de soldados se fechou ao redor doassassino.Nocentro,duasadagascortaramoar.Ouviu-seotilintardelâminasearmaduras.Anteo olhar estupefato do velho general a poucos metros dali, emergiu o vulto do assassino. Umaadagaemcadamão,eleafastouossoldadosecorreucomagilidadeparaapraça.
Ele...oprotetordeReyes,oassassino...aMãodoImperador...Masporquê?Como?Dun-Cadalse sentia em um turbilhão. Sentimentos, perguntas... nenhuma resposta plausível, nenhumconforto.Eleprecisavasaber,precisavadetê-lo.Foicorrendoatrásdosguardas.Diantedofugitivo,amultidãosedispersouaosgritos.Nenhumhomem,nemomaisforteentreeles,ousouinterferir.Numaruaquedesciadapraçadoporto,umesquadrãodesoldados,confiante,sepreparavaparadeterocriminoso.Elenãotinhacomoescapar,repetiaovelhoparasimesmo.
Oassassinonãodiminuiunemumpoucoamarchaaoveroparedãodelançasnoaltodarua.Também não pareceu preocupado com os soldados que ganhavam terreno atrás dele. Com ummovimento dos quadris, enveredou para a direita, apoiou-se num barril que estava embaixo deuma goteira enferrujada e pulou para a sacada florida de uma casa do outro lado da rua. Ossoldados,atônitos,sedetiveramsubitamente.Atrásdeles,Dun-Cadal,tossindo,entrounumavielaqueavistouàsuaesquerda.Faziatemposquenãocorriatãodepressa,masnãoimportavamador
quesentiaacada inspiraçãonemsuacabeçapesadadeálcool.Olhandonadireçãodos telhados,avistouovultodoassassinogalgandocomagilidade.
–Pegue-o!Pegue-o!–Elefoiporali!–Nãopodemosperdê-lodevista!Umaviela, uma rua, emais outra...Dun-Cadal quase esbarroudiversas vezes em transeuntes
surpresos. Buscava com o olhar o assassino, que pulava de um telhado para outro. Seu ombroencostou numa mulher que passava carregando um cesto de roupas. Com uma careta, tentoumanter o equilíbrio, ignorando os insultos, e continuou a correr. Passados cinco minutos, umapontadareduziuseuspassos.Levouamãoaocoração, recostou-senummuro,ouvindoosgritosdistantes dos guardas.Ofegante, o rosto em brasas, inspirou fundo para se recompor. Tudo emvolta rodopiava.Aprópria ruaestava forade foco.Fechouosolhose suspiroudevagar. Jáestavalonge a época em que ele também fugia pelos telhados, saltando cheio de vigor, recorrendo aoSopro.Tinhasidoumdosmelhorescavaleiros.Eagora?
Não passava de um velho louco, perdido emMassália, esperando uma morte violenta numbotecodacidadebaixa.Sóquenão,nãoforaamortequevieraaoseuencontro.Foradescobertoporumamoça ruiva e, junto comela, seupassado inteiro ressurgia...Olhos cerrados,ouviuumavoz,umsussurro...
Estoupronto!Deixou-secair,deslizandopelomuro,atestaencharcadadesuor.Estoupronto!Não.Enãosefalamaisnisso,Rã.Eraoqueogarototinhajuradohaviatantotempo,poucoantesdeuniremseusdestinos.Com
inesperadafirmeza,elelhegarantiraqueestavaprontoparadeixarasSalinas,cruzaraslinhasdosinsurgentes, lutar ematar. Bem distante de uma simples brincadeira de criança com pedaços depau,Rãsejulgavaprontoparacometeroirreparável.Jáqueumavidanãopodeserdevolvida...
–Ontemosenhordissequeeutinhaprogredidomuito!–Paraummaneta,aprenderamanejaraespadacomospéséumprogressoenorme–rebateu
Dun-Cadalcomumsorrisoirônico.–Nãosignificaqueeleécapazdederrotarumexército.Apoiando-se numa muleta improvisada, foi mancando até a carroça. Fazia dois meses que
estavaalieeraaprimeiravezquefinalmenteconseguiaficarmaisdeduashorasempésemsentirdor.
–Osenhoréum...babaca!–vociferouRãcerrandoospunhos,atestafranzida.Cansado, o general se sentou devagar sobre um caixote e largou a muleta junto à madeira
carcomidadacarroça.Aolonge,osolestavasepondoebanhavacomumacorsanguíneaocapimaltodasSalinas.Estavahabituadoàinsolênciadogarotoequaseaachavaengraçada.Aceitavaque
eleochamassedePernalta.Ninguémnuncaseatreveraalhedarumapelido.Masessatolerâncianãotinhaavercomofatodeeleestarafastadodoexército...Aquelegarotoeraalguémque,semdúvidaalguma,sobreviveriaaele,eraumapartedele,doseusaber,e...Não,maisdoqueisso,eleeraaquilocomquetantasvezessonharaenãosouberadarparaMildrel.Aovê-loparadoapoucospassos do fogo, punhos cerrados junto às coxas numa atitude de fúria emburrada, não searrependiadeteraceitadolheensinaraartedaguerra.Ogarotovinhasesaindobeme,sobretudo,ardianeleumapaixãoporaprenderqueseriacapazdeconsumi-lo.Quandoera jovem,ogeneraltambémpassaraporisso,masnuncaaesseponto.Sóprecisavaapagarofogodevezemquando.Rãaindatinhamuitascoisasparaaprender.Entreelas,apaciência.
–Soubabacaporquerermantervocêvivo?Tudobem,aceitoacrítica.–Osenhornãoentende...–Ogarotosuspiroueemseguidasesentou.– Entendo que você tem pressa de sair daqui. Imagine eu! Você me alimenta com o que
conseguefurtaremForted’Aed.Umaporcaria,sim...masumpoucomaissaborosodoqueoquevocêcaçaporaqui...Aliás...–Apontouodedoparaelefazendoumacaretadenojo.–...essasrãs-colmeiaandamrevirandocadavezmaismeuestômago.Tenteencontraroutracoisa.
–Aíéqueestá!Estánahoradeirembora!–afirmouRã.–Não.Vocênãoestápronto...nemeu–garantiuDun-Cadal,baixandoodedoparasuaperna
estendida.Elaagorapareciamaisfirme,tantoqueeletinhatiradoatala,masaindaprecisavacriarmassa
muscularantesdetentarqualquercoisa.Maisummêsserianecessárioantesdeelesejogarnumafugaalucinadaatravésdaslinhasinimigas.Conformara-secomessaideia,umavezquenãotinhaescolha.Eoqueoconvenceradequeesseera,dosmales,omenor fora justamenteavontadedeRã. Tinha começado a treiná-lo sem muita convicção. Até observar que, depois de escurecer, ogaroto continuava treinando e treinando, pensando que o professor dormia. Vira seu vultobrandindoopedaçodepauque lhe serviade espadade exercício e, comopassardosdias edasnoites,aespadadocavaleiro.Rãsósepermitiaumaspoucashorasdesonoenuncasequeixava.Não,issoerasegredodele.Noiteapósnoite,iatreinandoasequênciademovimentos.
–Amanhã...amanhãvamosaprenderalgonovo–disseDun-Cadal.Pegouocantilqueestavaaseuspéseoabriudevagar.Rãveiosentar-seaumcantodacarroça,
reclamando.–Vocêsabedeterumgolpee jáaprendeuadarumasestocadas.Amanhãvamosvercomose
atacaalguémpelascostas.–Atacarpelascostas?–espantou-seRã,puxandoosjoelhosparajuntodopeito.Aquelaerasuaposiçãopreferida,comacabeçaescondidaatrásdaspernas.Talcomoquando
Dun-Cadalovirapelaprimeiravez.–Issoélutarsemhonra!–resmungouRã.Dun-Cadalseobrigouatomarumgole.OestranhoremédiodeRãtinhaprovadosuaeficácia,
mas ele ainda precisava conter o vômito cada vez que o ingeria, mesmo que apenas uma gota.Engoliuantesdeseinclinarparaogaroto.
– Não há nenhuma honra em matar, menino. Nenhuma. – Sua voz de repente ficou séria,
pausada:–Poucoimportacomovocêdáogolpe.Nãoháglórianenhumaemtirarumavida.Ouvia-seapenasocrepitardofogonocrepúsculoeseusolharesnãoseapartavam.Porfim,Rã
baixouosolhosparaosprópriosjoelhos.–Osenhornãofoisempreumcavaleiro,nãoé?Dun-Cadalcolocouocantildevoltaaseuspéseestalouosdedos,bocejando.–Não.Comopé convalescente, esfregouo chãodiantedele, pensativo.Ogarotonãomerecia saber
maisaseurespeito.Seacabasseseabrindocomele,ascoisasseriamdiferentes.Podiaconfiarnelea esseponto?Afinal, eraum filhodasSalinas...um inimigoque salvara suavida e, emvezde serefugiaremForted’Aed,rebelava-secontraosseus.Nãoseriacapazdeentenderatrajetóriadeseumentor.
–Osenhorjáfoiumassassino?–perguntouRãsemnenhumconstrangimento.Surpreso,Dun-Cadalolhouparaele.–Nasuaopinião,qualadiferençaentreumassassinoeumcavaleiro?Perplexo,Rãatiçouofogo.–Ummatapordinheiro,ooutro,pordever–disseeleporfim,incerto.–Você temumavisãobastante simplistadisso tudo.–Dun-Cadal respirou fundo.–Acredite,
umdiavocêvaientender.Jantarampoucodepois, saboreandoumcoelhoqueRã furtaranodiaanteriornomercadode
Forte d’Aed. Como era bom dar um tempo das rãs-colmeia! Naquela noite, trocaram palavrassimples,chegaramquaseabrincarumcomooutroeadormeceramcomamentecalmaeserena,longedotumultodarevolta.
O mês seguinte foi, com poucas diferenças, igual aos anteriores. Rã estava aprendendo omanejo da espada, os ataques furtivos, as defesas. E toda noite, quando julgava que seumentorhavia adormecido, repetia os movimentos estudados durante o dia. Enquanto a perna de Dun-Cadal se fortalecia, o garoto ganhava olheiras escuras. Mas o general nunca fez qualquercomentário.Viaqueelepenava,aguentava, seesfalfavaatécairde joelhos,o rostomarcadopeloesforço.Rã,acadavez, tornavaa levantarsemqueomentorprecisassepedir.Atéondeeracapazde ir? Assim como não o criticava, Dun-Cadal tampouco o elogiava. Limitava-se a ensinar-lhe,calandosuaadmiraçãoquandoogarotoencadeavaosmovimentoscomumacaretaeosmúsculosdoloridos.
Ogeneraljátiveraalunosmaistalentosos,masnenhumcomaquelaforçadevontadepróximada loucura, que compensava todos os seus defeitos. Rã estava certo de que se tornaria o maiorcavaleiro que omundo já tinha visto. Passados trêsmeses, Dun-Cadal começou a achar que eletinhatodasascondiçõesparaisso.
–Braçoestendido.Faleiparaestenderobraço.No meio do capinzal, com o semblante fechado, o garoto apontava a espada do general à
frente.O solbrincavade esconde-esconde compesadasnuvensbrancasorladasde cinza.Nodiaanterior, uma patrulha vinda de Forte d’Aed passaramuito perto de onde acampavam. O cercoestavasefechando.
–Maisereto–disseDun-Cadal,erguendoobraçodeseuaprendizcomopedaçodepau.Rãdirigiu-lhedeesguelhaumolharsombrio,masrapidamentevoltouaatençãoparaafrente.–Aparar!Nummovimentosúbito,esticouumapernapara trás, flexionouaoutraepuxouaespadaem
direçãoàcabeça.–Cortar!Eleagirouegolpeouoflancodeuminimigoimaginário.–Seuspés,menino,presteatençãonaposiçãodospés.– Estou prestando atenção – rebateu ele, relaxando a postura para descansar os músculos
doloridos.Faziacincohorasquecortavaoarcomsualâminasemfazerumaúnicapausaeeraaprimeira
vez que se queixava. Dun-Cadal vinha esperando o momento em que ele daria mostras deimpaciência.Sabiaqueogarotoeraconfiantedemais,segurodemais,prontoparasejogarnabocado lobo.As linhas inimigas não haviam avançado.O Império não estavamais recuando. E elesiamsobrevivendo,ali,nomeiodopântano.
–Émesmo?–Dun-Cadalsorriu,usandoopedaçodepaucomosefosseumaespada.Girou-onoarenquantolentamenteiaseposicionarnafrentedomenino.–Entãoretomeasuapostura–ordenou.
Comumsuspiro,Rãobedeceu.–Aparar!–gritouogeneral,brandindoaespadademadeiraàsuafrente.Rãaparouogolpe,mas sentiuumapontadaviolentanamão,no exato localondeogeneral
tinhabatido.–Estocar!Antesmesmodeconcluirseugesto,Dun-Cadaljádavaumpassodeladoemergulhavaemsua
direção golpeando a perna estendida. Rã flexionou o joelho, reprimindo um grito. O pedaço demadeiraoatingiuatrásdacabeçaeemseguida,batendoemseuombro,derrubou-odelado.
Commetadedorostonalama,ogarotopraguejou,ofegante.– Suaperna estava esticadademais.Ou seria cortadaporuma espada, ouquebradaporuma
clava–disseDun-Cadalcomcalma.–Levante-se.Rã levantou-secomumacareta.Sua fúriacrescia.Pelaprimeiravez, foi tão fortequearruinou
suapaciência.–Estiquebemobraço...–Paraque tudo isso?– fulminouogaroto.–Meubraçoesticado?Meuspésaquiouali?Para
quê? O senhor faz isso só para adiar nossa partida. Porque está commedo. Não é um grandecavaleiro.Salveisuavidaàtoa.–Jogouaespadanochãocomumarenojado.–Teriasidomelhordeixarqueosruarguesodevorassem–resmungou,desviandooolhar.
–Entãofoiporisso...AfisionomiadeDun-Cadalpareceuseabater,ummagrosorrisoriscandoseuslábios.Ogaroto
era ummistério para ele, e não via a hora de descobrirmais a seu respeito. Algo finalmente sedesvendava.Curiosamente,percebeuqueissonãoodeixavaindiferente.
–Foisóporissoquevocêmesalvou.Rãestavadecostasparaele,asmãosnosquadris,contemplandoopântanoaolonge.–Paraqueeuensinassevocêalutar,fugirdasSalinas...edepois?–acrescentouDun-Cadal.Ele falava calmamente, o olhar fixo naquele garoto que salvara sua vida por interesse. Ficara
tanto tempode sobreaviso, fizerade tudoparanão seapegar,mas, comopassardosdias, tinhaaprendidoagostardele.DoqueéqueelefugiaparateraqueleimensodesejodesetornarcavaleirodoImpério?
–Rã,oquevocêvaifazerdepois?–Depoisdoquê?–exaltou-seomenino.–Depoisqueagenteatravessaraslinhaseencontrarmeuexército...Rãseviroudevagar,oolharaindafurioso,massuafisionomiajárelaxandoaospoucos.–Eudissequeiaajudá-loacruzaraslinhas.– Não foi para isso que você me pediu para treiná-lo. – Ele pareceu ficar incomodado e o
general perguntou: –Do que você está fugindo...? –O garoto já não sabia para onde olhar, derepenteficoutriste.–Rã...
–Nãotenhomaisnadaaqui...–declarou.–Maisnada.Dun-Cadaldeixouqueosilêncioseestendesse,naesperançadequeogarotooquebrassecom
umaconfissão.Masnãohouvenadaalémdosomdoventobatendonocapimalto.– Você quer lutar paramatar pessoas, é isso – Rã não reagiu, então o general continuou: –
Estoulheensinandoasemantervivo.Vocêvêdiferençaentreumassassinoeumcavaleiro.Sóque,agindodessejeito,oquevocêquerésetornarumassassino.
–Não,Pernalta...Nãoéisso,é...–Desde o começo estou lhe ensinando a semanter vivo porque amanhã, quando tentarmos
cruzaraslinhas,nãoqueroperdervocê.–Osenhornãoentende,é...–Derepentesecalou,surpreso.–Oqueosenhordisse?–exaltou-
se.–Acaboudedizerque...– Você salvou a minha vida. Quase não se queixou, aguentou esses exercícios como poucos
cavaleirosconseguiramfazerantesdevocê.–Osenhoracaboudedizerque...–Eurespeitoisso,garoto.Mas,sevocênãomeescutar,vaiacabarmorrendoemcombate.Eeu
nuncairiameperdoar.Rãficouquieto.Tinhaouvidomuitobem.Aovê-lodaquelejeito,Dun-Cadalpercebeuquehavia
encontradoaspalavrascertasparaobrigá-loarefletirumpouco.–Amanhã.Vocêestápronto–disseevoltou-se.AvozdeRãodeteve:–Não.Dun-Cadalvirou-seesurpreendeu-seaoverogarotocomaespadanamão,obraçoestendido.–Meensinemais–pediuRã.Oventonocapimalto,osoldeslizandoportrásdasnuvens,ocoaxardeumarãaolonge...As
Salinasestavamvivas,tranquilas,semsepreocuparemcomosdoishomensperdidosdentrodelas.
Semnemnotaremqueuma relaçãoacabavadenascer,uma relaçãoque iriamudarahistóriadomundo.
–Meensine...Eunãoestoupronto.
5
Luvasdesangue
Sehouveumúnicoherói
nasSalinas,
gravemapenasestenome:
Dun-CadalDaermon.
Amão segurava o bastão para conferir a pegada. A madeira não podia nem escorregar dopunho fechado nem se quebrar ao bater. Com um movimento do pulso, girou-o no ar e emseguidaodetevenumgestopreciso.Amadeiravibroucomosetivesseesbarradoemalgumacoisa.Satisfeito,o cavaleiro aproximouobastãode sua armaduragasta epôs apalmadamão sobre apontaaguçada.Aarmaestavaafiadaobastanteparaperfurarocourodeumboi.Tirouamãodaponta e seu olhar avistou o reflexo de umhomem cansadona água estagnada.Tinha as feiçõesmarcadasdesaleorostoqueimadodesol.SuabarbadenunciavaosmesespassadosnasSalinas.Sentadoàbeiradopântano,jáquasenãoreconheciaasimesmo.
–Nemvaidarparafurarumaarmaduracomisso–lamentou-seRãatrásdele.–Oobjetivonãoéesse–respondeuDun-Cadalcalmamente.Levantou-se, contendo um gemido quando sua perna parcialmente recuperada foi
transpassadaporumadorcomoadeumpunhalraspandoofêmur.Seusossosiamaguentar.Eleainda não estava velho. Era um general, tinha enfrentado outras batalhas, outras guerras. Seusossosnãoiamsequebrar.
De pé junto ao cavalo, Rã mantinha os olhos baixos, nervoso. Segurava as rédeas semconvicçãoedavaa impressãodequererestaremqualquer lugar,menosali.Noentanto,algumashoras antes semostraramais animado ao deixarem o acampamento. Dun-Cadal deduziu dessamudança de humor que ele tinha pressa de começar a lutar.O garoto ardia de impaciência e, àmenorcontrariedade,fechava-secomoumaostra.Sebemqueostrasnãoficamsequeixando.
–Temosquenosapressar,tambémnãovamosficaraquiodiainteiro.
–Vamosesperaranoitecerantesdefazerqualquercoisa–rebateuDun-Cadalaosejuntaraele.Jogou-lheaespadademadeiracomumgestopreciso.Semdificuldade,Rãapegounoar.Ele
eraágil.Ansioso,maságil.Issoerabom.–Obosqueestá a apenasumahorade caminhada!– insistiuRã.–Emduashoras,podemos
sairdaregião!Hápoucossoldadosporesteslados.Jádisse,vaiserbrincadeiradecriança.Dun-Cadal avançou a fim de encará-lo. Esperava que ele tornasse a baixar os olhos, mas o
garoto estavadecidido a se fazer ouvir.Comum fino sorrisonos lábios, o general falou em tomsuave:
–Embrincadeiradecriançadificilmentesecravaumalançananucadeumhomem.–Mas...–Quandoescurecer–insistiuDun-Cadalmontandoocavalo.O animal perdera sua soberba, os ossos estavam salientes sob a pelagemmarrom, as patas
secas feito pedaços de gravetos velhos. Ainda assim, aguentara o tranco naqueles meses nasSalinas,transportandoRãváriasvezesatéForted’Aed.Nessasviagens,omeninonãoselimitaraaroubar para comer, tinha também colhido informações importantíssimas sobre o andamento darevolta. Chegara a descobrir a localização exata das forças inimigas. E, depois de representar aslinhascomramosepedrasnacarroça,esperoupelaopiniãodocavaleiro.
Dun-Cadal avaliou a situação e soube imediatamente por onde atacar. Para se garantirem,precisavam agir no escuro. Depois de rechaçar Azdeki e seus homens, os insurgentes tinhamestendido suas forças por todo o norte das Salinas, constituindo uma muralha de váriosquilômetros de acampamentos. Embora naquele exército improvisado somente poucos milharesfossem soldados aguerridos, o povo que pegara em armas não era menos temível. O grandenúmero impedia Dun-Cadal de contar com uma entrada discreta. E foi com imenso alívio quevislumbrouumapossívelbrechanoalinhamentodemadeiraepedrasquerepresentavaalinhadefrente. Ali estava ela, tão evidente! No local exato em que eles guardavam suas catapultas. Semgrandeproteção,umpoucoafastadadosacampamentos,ofereciaopontodepassagemideal.
–Vamospararaqui–ordenouDun-Cadal.Tinham finalmente chegado ao limite do bosque. Acima das copas se elevavam volutas de
fumaçacinzenta.Osacampamentosdos insurgentesatiçavamsuas fogueirasàmedidaqueocéuescurecia.Algumasestrelasbrilhavamnocrepúsculo,poucoincomodadascomasnuvensfinasquese moviam suavemente diante delas. Ao canto das corujas que acordavam somava-se o docefarfalhardasfolhastocadaspeloventodanoite.
Dun-Cadaldesceudocavaloesepôsadesselá-lo.–Elesestãologoatrásdestebosque–afirmouRã,olhandoaoredorpreocupado.Temiaqueumapatrulhaosdescobrisse.Dun-Cadalachougraça.Omeninoprecisavaaprender
aserpacienteeausaropoucodequietudequeaindatinhamparaaplacarsuaansiedade,queseria
capazdeparalisá-lonahoradocombate.–Eusei–murmurouocavaleiro.Jogou a sela ao pé de uma árvore, tirou as cilhas do cavalo e deu-lhe um tapa na garupa.
Quando o animal se tornou apenas um vulto galopando rumo à escuridão dos pântanos, Rã seaproximoudeseumentor.
–Osenhorgostavadele?–Erasóumpangaré.–Dun-Cadalsorriu.–Não...nãodocavalo.Seu sorriso se desfez à lembrança deTomlinn sendo abocanhado por um ruargue. Seu olhar
vagueouaolonge,sombriocomoseuspensamentos.–Ele era umbomgeneral, umnobre cavaleiro... –Virou-se bruscamente e, pondoumamão
pesadanoombrodogaroto,acrescentou:–E,antesdemaisnada,erameuamigo...Apassoslentos,galgouapequenacolinaembrenhadanobosque.Rãoseguiu.– Estávamos cientes do perigo. Só que eu achava que ele ia morrer sob uma saraivada de
flechas,enãoentrerelescaninos.Quandoseencostounumaárvorepararecobrarofôlego,reparounaexpressãopreocupadade
seudiscípulo.Presoaocinturão,opedaçodemadeiratalhadapendiacomoumaespada.Ummeropedaço de pau... para enfrentar armaduras. De esguelha, observou sua própria arma, cujo caboreluzia junto a seu corpo. Seria possível saírem assimdas Salinas? Será que realmente acreditavanisso?Umcavaleiroaindamancoeum...molequedospântanosquetinha,comoúnicaarma,umaespadademadeira.
–Vocêsabeoqueoesperaporlá?–perguntoucomvozrouca.–Eu...sei,nósvamoslutarpara...–Nãoéisso–interrompeuocavaleiro,balançandoacabeça.–Vocêestáprontoparamatar?–
Fez-seumlongosilêncio,tãopesadoqueRãdesviouoolhar.–Nãoexistenadapior,Rã,nadapiorque ver alguém morrendo. O último sopro, o último brilho de um olhar fitando o seu. Não ébrincadeira.Nãotemnadadeinofensivo.
–Euestoupronto.–Nãosãosóelesquevocêvaimatar.Qualquerquesejaomotivodos seusatos,quervocêos
justifiqueounão,nuncahaverádesculpaparaceifaravidadequemquerqueseja.–Euestoupronto–repetiuRã,insistindo.– Escute o que estou dizendo! – bradou Dun-Cadal, afastando-se da árvore em que estava
recostado.O garoto fez um súbito gesto de recuo, espantado com o clarão de ira que viu nos olhos do
cavaleiro.–Vocêéapenasummenino.Comovaisesentirquandoenfiaressepedaçodepaunacarnede
umhomem?Vaidesmoronar?–Nunca!–exclamouRãentreosdentes.–Vocêvaimatarsuainocênciatambém,meurapaz.E,acredite,quemmaislamentaissosoueu.
–Comumolharhesitante,ogarotoassentiueDun-Cadalcontinuou:–Poroutrolado,comovocê
mesmodisse,agentepodeconseguir...eeusouloucoosuficienteparaacreditaremvocê.Compulsofirme,bateunacascadeumpequenofreixo.Nãoqueadúvidaoestivesseinvadindo
antesda louca investida,masomedo ia aospoucos lhedandoumnóno estômago.Quantos jánãovira,poucomaisvelhosqueele,partir cheiosdebrioparaabatalhae caíremde joelhos, aosprantos,nomeiodaluta?Comoseriacomseupupilo?Erasóummoleque...apenasummoleque.
– Não tenho mais nada para fazer aqui – declarou Rã. Sua voz estava fraca, mas seu tomcontinuavafirme.–Aqui...eunãosoumaisnada.
Dun-Cadalvirou-separaele,pensativo.Aoportunidadeeraboademais.–Eantes...quemvocêera?Rãlançouumrápidoolharparaospântanosbanhadospeloanoitecer.– Ninguém interessante – revelou, como quem faz um comentário sobre o tempo. – Um
menino...quenãodavamuitocerto.Nuncativegrandestalentos.–Eagoratem?O menino lançou-lhe um olhar capaz de fazer estremecer o mais corajoso dos homens.
Determinado,ardente,intenso...ninguémpoderiadetê-lo.–Pelomenostentodaromelhordemim.O que mais poderia lhe pedir?, pensou o cavaleiro. Uma coruja pairou acima deles. O vento
aumentou, curvandoo capimraloquepisavam.O somdaáguadopântano jánãopareciamaisqueummurmúriodistante.As terrasdosantigosreinos,dasquaisapenasa linhade insurgentesos separava, se estendiam para além da floresta. Dun-Cadal sentou-se ao pé do freixo maispróximoeergueuosolhosparaocéu.
–Vamosesperaraqui.Atacaremosnomeiodanoite,quandoestiveremcomavigilânciameio...sonolenta.
Esboçou um fraco sorriso enquanto Rã vinha para junto dele. O garoto hesitou, como seesperasseapermissãodeseumestreparasesentar.Ogeneraldesviouoolhar,arrancouumtalodecapim num gesto curto e o levou à boca. Mascando, deixou o olhar vagar sobre as sombrascrescentesnolimitedafloresta.Rãseacomodouàsuadireita,comumarausente.Opiardacorujarompeuosilêncio.
–Lembraoqueeulheensinei?–perguntouDun-Cadalderepente,semnemencará-lo.–Lembro–respondeuRã,indolente.–Lembraoqueeulhepediparafazer?–Lembro.–Comobraçoesquerdo, fezumgestodequeagarravaalgoe fingiudarumgolpe
comamãodireita.–Quandoatacarumguardapelascostas,tenhoqueimobilizá-loedesfecharumgolpe,umsó,debaixodaomoplata.
–Eamão?–Ponhonabocadeleparaabafarogrito.Tudoaomesmotempo.– Muito bem. – Dun-Cadal suspirou. – Nada além disso, nada de confronto direto... – De
soslaio, observou o garoto, que, cabisbaixo, puxava casualmente a grama entre as pernasafastadas.–Vocênãogostadisso,nãoé?
Esperouuminstantepelaresposta.Comoogarotosemantevecalado,ocavaleirocontinuou:
–Vocêqueriaumataquemaisgrandioso.Queriaenfrentá-los.Estouenganadoouessaéaideiaquevocêtemdoscavaleiros?Bravos,corajosos...Éisso?Enfrentá-loscomoseenfrentaamorte...
–Façooquesenhormemandarfazer–murmurouogaroto.–Muitobem.–Dun-Cadal parecia satisfeito.Observou as estrelas que se iluminavam,uma a
uma, no céu cada vezmais escuro. – Está vendo estas luvas? – Sem tirar os olhos do espetáculoceleste,estendeuparaRãasmãosenluvadasdeferro,certodequeacuriosidadeoimpeliriaaolhar.–Nãoparece,masestãocobertasdesangue.Dasbatalhas,doscombates,masnãosó.
–Nãovejosanguenenhum–observouRãcomvozfraca.–Não?Équenãodámaisparanotar,maseusinto.Nofimdascontas,éoqueimporta.Nunca
seeximir,assumiroquesefaz.–Osenhornãofoisemprecavaleiro,certo?O garoto já lhe perguntara isso uma vez. Na verdade, eramais uma afirmação do que uma
pergunta.–Não.Antesdesercavaleiro,eufuialgoquevocênãoiaquererser.–Virou-separaomenino,
curiosoparaversuareação.–Umassassino–confessou.Rãnempestanejou.Sustentouseuolhar,sobrancelhas levementefranzidas,esperandoqueele
continuasse.–Nãovigrandediferençaentreosatosquecometicomoassassino...–continuouogeneral–e
osqueperpetreicomocavaleirodoImpério.Acadavez,avitóriaouosucesso,chamecomoquiser,exigia que eu matasse algumas pessoas. Pessoas que certamente tinham família, amigos...obrigações.–Suavozestavaficandorouca,otom,maisgrave,eseuolhar,cadavezmaisesquivo.–Então,quediferençafazmataraspessoasdefrenteoupelascostas?Desdequesejarápidoebem-feito,semqueelastenhamquesofrerantesdeirparaocéu...Façarápidoebem-feito,Rã.
Fitou-odemoradamente.–Voufazer–prometeuogaroto.Semtirarosolhosdeseumentor,calçouas luvasdelãremendadasqueroubaradiasantesde
umcomerciantedeForted’Aed.Sua tranquilidade fingida não enganava um homem habituado à guerra como Dun-Cadal.
Quantasvezesjánãovirajovenssoldados–atémesmomaisvelhosqueRã–ostentaremamesmarigidez, esperando com isso disfarçar omedo que os abalava por inteiro.Não, ele não se iludia,muitomenosaofitarasmãoscomluvasdelãqueogarotonãoparavadeesfregarumanaoutra.Isso não tinha a ver com frio. Rã tentava se acalmar do jeito que dava, e o general sabia disso.Assimcomoadivinhavaoverdadeiromotivodesseroubo:as luvasdecertoevitariamqueasmãosdogarotoficassemmanchadasdesangue.
Vãesperança.As horas que se seguiram pareceram dias. Quando finalmente Dun-Cadal se levantou, uma
faixabrilhantecruzavao firmamento,comoqueparaconduziroshomensdeumladoaoutrodaTerra. Nenhuma nuvem turvava o cintilar das estrelas. O vento balançava as folhagens demansinho.Ouviu-seumestalidoseco.Dun-CadalolhouporsobreoombroeviuRãimóvel,umpéaindapousadonumgalhoquebrado.
–Cuidadoondepisa.Nãopodemoserrar.–Virouacabeça,oqueixoroçandooombro,olhossemicerrados.–Nãovouesperarporvocê–sussurrou,antesdepuxaraespada.
Em silêncio, embrenhou-se na floresta. Dava o sinal da partida sem tê-lo claramenteanunciado.Havia uma única recomendação importante: “Cuidado onde pisa.” Um só passo emfalsoeramortenacerta.Insistiramuitonesseponto.Oplanohaviasidocompreendido,repassadoe decorado nas últimas semanas, principalmente naquele último dia. Rã lhe dera todas asindicaçõespossíveis sobreonúmerodesoldados, seuposicionamento,a trocadaguarda.Muitoshomens, apenas de passagem por Forte d’Aed, tinham se mostrado tagarelas nas mesas dastabernas.Paraquesobrecarregaressemomentocompalavras inúteis?Sóaansiedadejápesavaosuficiente. Ele observara Rã treinar exaustivamente, vira quanto omenino progredira num curtoperíodo. Era supérfluo encorajá-lo, seu orgulho lhe bastava. Embora continuasse a chamá-loafetuosamentede“moleque”,jáoconsideravaumsoldado.Umhomemdeguerranãoprecisavadetantoscuidados.
Restavaapenasosomdoventonavegetação,esuasroupasroçandoosgalhossemesclavamfacilmente comele.Ninguémos escutaria chegar.Umacorujabateu asasnervosamente antesdealçar voo. Depois de meia hora se esgueirando silenciosamente na floresta, chegaram aos seuslimites. Dun-Cadal se ajoelhou e, fazendo um rápido gesto, ordenou a Rã que se abaixasse. Aalguns passos dali, ao pé de uma última faia, começava uma fileira de tendas cinzentasremendadas. O acampamento se estendia à esquerda e à direita, ocupando uma área larga ecomprida salpicada de inúmeras fogueiras.Vultos armados de lanças andavam lentamente pelasveredas.Seriamtãonumerososassim?Comoerapossível?NãopodiamsertodosdasSalinas...Ouentão eram de fato todos os habitantes, crianças, velhos e adultos, que se insurgiam contra seuImpério.Dun-Cadalafagouagramacomapontadosdedos.Aquelaeraaúltimachancederecuar,mudardeideia,adiaraquelamaluquiceparaodiaseguinte...Ali,naqueleinstante,ofuturoestavasendodecidido.
Àsuafrenteseerguiamcercadecinquentacatapultas.Quatrohomensapenaspareciamvigiá-las, armadosde lanças fabricadasàspressas.Apoucosmetrosdali, contudo, se estendiaamaiorpartedo acampamento.Abrigadospor tendas iluminadas,maishomens faziama vigilância.Porsorte,ossoldadosdecarreira,quedefatoentendiamdecombate,encontravam-semaisadiante.Oshomensnascatapultaseramnovatos.Eidiotas.Dun-Cadalsurpreendeu-seaoverosbraçosdelesdobradosà luzdas tochasaltas.Osreceptáculosestavamcarregadoscombolasdepedrasujasdegraxa.Seucorpointeiroseretesouaoavistaratochaqueiluminavaoconjunto.Cretinos...Estavampreparados!Ascatapultasestavamprontasparaatirar!Sórestavaumasaída,umjeitopossíveldeescapar.
Bemdevagar,ogeneralavançoucurvado.Oprimeiroguardanãopercebeunada.Malsentiualâmina perfurar seu músculo, subindo atrás da omoplata, quando uma mão pesada cobriu suabocaparaconteraexclamaçãodesurpresa.Ocavaleirodesceucuidadosamenteocorpoatéochãoe,comoolharfixonosdoisoutrossoldadospostadosaopédacatapulta,fezsinalparaqueRãseaproximasse.Mostrou-lheentãooúltimosoldado,queurinavajuntoaopostedeumatochaalta,eapontou com um dedo autoritário a cerca que circundava o acampamento. Na noite clara,
distinguia-seclaramenteocontornodoscavalospastando.Tudoestavacorrendomelhordoqueoprevisto.ParaDun-Cadal,osdoisguardas juntoàcatapultae,paraopequeno,oúltimosoldado,que,assobiando,tratavadefecharocinturão.
Tal qual um predador cercando cuidadosamente a presa, ele avançou lentamente, as costasinclinadas, os joelhos flexionados. Atrás dele, Rã adotou a mesma postura e se dirigiu para oguarda ao pé da tocha. Sómais alguns passos.Como canto do olho,Dun-Cadal viu omeninosegurandoopedaçodemadeiracomtodaaforça,enquantosuaoutramãotremia.Torceuparaelese lembrar dos gestos tantas vezes repetidos nosmínimos detalhes.O braço à altura do pescoçoparasufocaroinimigo,umgolperápidologoabaixodaomoplata,subindoemdireçãoaocoração.Rápido.Preciso.Discreto.Nãovacilar.Não recuar.Nãohesitar.Dessavez elenãoestaria aliparaprotegê-lo.Aospoucos,foisedistanciandodeRã.
Ovultodocavaleirodeslizourenteàsenormesrodasdascatapultas.Suasombrasedividianamadeiramaciça da base dasmáquinas.A luz das tochas criou um brilho fugaz na ponta de suaespada.Dun-Cadalolhouparaochão.Asrodastinhamsulcadoaterranumacurva.Umacoisaeraeles terem armado as catapultas para poderemusá-las omais rápidopossível,mas posicioná-lasdaquelamaneira, semperceberquenenhumadelas apontavapara a linhade frente, eraumerrogrosseiro.
Deteve-se por um momento, percorreu o acampamento com olhos habituados a espreitarqualquermovimentosuspeito,entãofezseuaprendizparar.
Rãporpouconãotropeçounumaraiz.Santa Miséria, o foco, mantenha o foco e olhe para a frente!, praguejou Dun-Cadal em sua
mente.Apoucospassosdo garoto, o guarda tornava a pegar sua lança, encostadanoposte emqueacabaradeurinar.
Não vacile,menino.Não recue, repetia o general para simesmo, como se esperasse que seuspensamentos influenciassem o comportamento de Rã. Era omenino que, naquelemomento, iamostrardoqueeracapaz.Seuvalor seria julgadonoexato instanteemquecravasseopedaçodemadeiraentalhadano...
–Ei!Dun-Cadal estacou juntoauma larga rodademadeira, à sombrada catapulta.Mal esboçara
um movimento, já prestes a se jogar sobre os soldados, quando Rã deixou-se cair ao seu ladoenfiando a cara na grama. O general se conteve para não intervir, mão crispada no punho daespada.
–Foiassimquelheensinaramamontarguarda?–bradouamesmavoz.O garoto desaparecera nomeio do capim, o que eramuito bom, já que os dois insurgentes
estavambempertodele.–Oquê?Eusóestavamijando...Perto,tãopertodele...Nãodistinguiram,porém,ocontornodeseucorpoestendidonoescuro.
Dun-Cadalobservavaoshomensenquantoconsideravatodasaspossibilidades,desdeumataqueinconsequenteporpartedeseuaprendizencurraladoatéaeventualidadedeeleficarparalisadodemedo. Independentemente do que acontecesse, o general estava pronto para agir, sua mão
apertandoopunhodaespadacomtantaforçaquejánãosentiaapontadosdedos.–Nuncasaiadoseupostosemavisarosoutros!–repreendeuohomem.–Chegamos ontem, capitão – defendeu-se o soldado, insolente. –Não sabemos o que fazer,
ora.Sónosmandaramalinharascatapultas.–Deondevocêssão?–DeAvrai,capitão.Somosquinze.Mesmodelonge,Dun-Cadalnotavaobrilhodasbotaslimpas,massurradas.Osoldadodevia
pertencer à guarda do falecido conde de Uster. Dun-Cadal tinha certeza disso. Encostou-se nacatapultaeexaminouohomemforte,comumalargaespadanocinturãodecouro,querepreendiaoguardaamador.Fomentarumarevoltacomapoiopopulareraumacoisa.Outra,bemdiferente,eramanterdentrodaordempessoasparaquemessarevoltanãoeranemvocaçãonemdever.
Traçou com o olhar a trajetória da bala e seu sorriso ressurgiu, mesclado a uma estranhaanimosidade.Oacampamento...
– Vocês têm sempre que... – tentou prosseguir o oficial, mas sua voz se embargou quandoreparounoinacreditávelalinhamentodascatapultas.–Oquefoiquevocêsfizeram?
–Agentealinhouascatapultas,ué.O oficial deu um passo à frente. Só um. Na penumbra, seu olhar experiente vislumbrou o
contorno de um corpo caído. Ao som da espada sendo puxada da bainha, o aprendiz de Dun-Cadal reagiu.Medo ou coragem?Tanto fazia. Ele rolou para o lado, apanhou alguma coisa e selevantou.Comocoraçãodisparado,Dun-Cadalesperou.
Vai,menino...vai...–Você...?!–espantou-seohomem.–Mascomo?Estava com a espada namão, pronto para estender a perna e atacar o intruso,mas ficou ali
parado,surpreso.Tinhaombroslargos,acabeçacalva,olábiocortado.Noseurosto,umacicatrizpartiadoolhodireitoeterminavanolábiosuperior.
Agora, suplicavaDun-Cadal, andando rente à catapulta sem tirar os olhos deRã.É agora oufuja.
–Oquevocê...?A madeira perfurou a garganta com tamanha violência que nem a vítima nem seu colega
tiveram tempo de reagir. Rã berrou e, movido por uma fúria ensandecida, largou o ferido e oempurroucomumpontapé.Agitandofreneticamenteasmãos,ooficialtentavaarrancaropedaçodemadeiraenfiadoemseupescoço.Arrotavasanguecomumacareta,acabeça jogadaparatrás.Em convulsões, desabou no chão aos pés do soldado aturdido, que reagiu desajeitadamente,apontandoalançaparaogarotocommãostrêmulas.Seuolharpareciaperdido.Pingavasuorpordebaixodocapaceteamassado,riscandolinhasimperfeitasnapelemorenadatesta.Suor...igualàslágrimasqueescorriamsinuosasdeseusolhosembotados.
Dun-Cadalnãopodiamaisesperar.Inspirouprofundamente,fazendoumacaretapeladorquelhe dilacerava o peito, e imaginou a tocha partindo-se aomeio.As chamas lamberam a bola degraxaemseureceptáculo.
Nocercado,oscavalosseagitaram.Nochão,ocapitãoestavaimóvel,oolharvidrado.–Toqueoa...–começouumavozaolonge.Orestantedafrasefoiencobertoporumestalidosecoseguidodeumsilvo.Umaboladefogo
subiu aos ares formando um arco perfeito e se precipitou rumo às tendas centenas de metrosadiante. Vieram as chamas e, com elas, os gritos. Uma sombra corria por trás das catapultas,precedida pela queda das altas tochas. Quando caíam, seu fogo abrasava as balas dentro dosreceptáculos.Oscavalosrelincharam.
Dun-Cadal controlava melhor a respiração, puxando à sua frente um fio invisível como seagarrasse as tochas.Usavao Soproparamovê-las, sumirna escuridão feitoum fantasma e, semdesferirumgolpesequer,acionarobraçoarmadodecadabalista.Quando julgou já tersemeadocaos suficiente no acampamento, pulou sobre a roda de uma das catapultas. Abaixo dele, doisguardasolhavam,estupefatos,ogarotoenfrentarumdossoldadosàluzdaschamasquetomavamoacampamento.Nãotiveramtempodeentenderoquecaíraemcimadeles.Umaespadafurouaaxiladeum,noespaçoentrealevearmaduraeobraço,antesdedescreverumcírculoavermelhadodesangueeabrirumtalhoprofundonagargantadooutro.
–Menino!–berrouogeneral.Poucos metros adiante, no limite do acampamento, Rã estava desamparado. Diante dele, o
soldado já estava sem nenhum aprumo, hesitante, a lança tremendo nas mãos. Tentou umainvestida. Rã imediatamente recuou e caiu sentado. No fundo escuro das tendas lambidas porchamas amarelas coroadas de vermelho-sangue, esboçaram-se os vultos trêmulos de soldadosacorrendo.Asurpresajápassara.
–MENINO!–bradouDun-Cadalcorrendoatéele.Oguardavislumbrou,naescuridão,umaformaopacavindoemsuadireção.–Estamos...estamos...–gaguejou.–ESTAMOSSENDOATACADOS!Foionecessárioparaomedoobrigá-loafugir.Largoualançasemsepreocuparcomogaroto
edesapareceuporentreastendas.Surgiramvozesaolonge.Homensseaproximavameotilintardasespadasnasarmaduras ressoavacomoumcarrilhão.Aoseaproximardodiscípulocomumadas mãos na perna, Dun-Cadal conteve um gemido. Tinha se esforçado demais, seus ossos emúsculosvinham lembrá-lodequeaindanãoestavacurado.Ao se ajoelhar, segurouobraçodogarotoeosdoisselevantaramcambaleando.
–Venha!–ordenouogeneral.–Venhacomigo!Empoucospassos,alcançaramacerca.Umaflechapassouzunindopertodeseuouvido.–Suba,garoto!Depressa!Abriuaporteira e empurrouRãnadireçãodoscavalos.Uma flecha se cravounochãodiante
dos seus pés. Viu, num relance, um arqueiro próximo às tendas armando outra flecha, sua finasilhueta aureolada pelas chamas. Mais soldados surgiam, meros vultos, meras sombras sedestacandono acampamento abrasado.Rã se agarrou aopescoçodeumdos cavalos emontou;
porpouconãocaiuquandooanimalempinourelinchando.–Corra!–ordenouDun-Cadalcomumaexpressãosombria.–Mas...eosenhor...–gaguejouomenino.–Corra!–berrouogeneral,cheiodefúria.Háumalendaquediz...Comamão firme, deuum tapana garupado cavalo emqueRã estavamontado e o animal
disparounumgalope.Nãoéumalenda,euestavalá,nasSalinas,eeuvi!Noite adentro, o cavaleiro logo transformou-se num vulto confuso. E Dun-Cadal deu meia-
volta.Eutambémestavalá,eeleestavaali,sozinho.Eramunsvinteoumais,correndoenquantoelemancavaemdireçãoàscatapultas.Grunhindo,
aparouumaflechacomumgolpedaespada.–Fazmeses...mesesqueestouaqui.Vocêsnão iamquererqueeucedesseagora,nomais...–
resmungavaele.Háumalendaquedizqueumhomem,sozinho,enfrentouasSalinaseincendiounossoexército.Eleparoudiantedascatapultas,forçandoarespiração,apernarebentandodedor.–EusouDun-CadalDaermon,dacasaDaermon!Gravemestenome!–clamou,enquantoos
vultosselançavamsobreele.Sem semover 1 centímetro, aparou um golpe à esquerda, outro à direita. Sua respiração foi
ficandolenta,suave, frescacomooventoacariciandoarelva.Sentiaavidaaoredor,cadagrama,cada árvore, cada coração que dava vida ao que o cercava. Rechaçou as investidas, em seguidagolpeando,cortando,talhandocomalâminaafiada,batendocomopunhodaespada.Chegavammaishomens, sempremais, e ao longehavia a sombrados arqueiros erguendoos arcos em suadireção.
Seu coração desacelerou, sua visão se tornoumais clara, e foi como se ele estivesse em todolugar aomesmo tempo, intuindo cadamovimento, ouvindo cada respiração, até sentir o sangueescorrerdasferidas.Eleestavapronto.
Nãoéumalenda,euluteicontraele...efugicomotodososoutros.Ajoelhou-se e bateu no chão com o punho da espada, um golpe, apenas um. E um potente
Soproseestendeu,talumaondacausadaporumapedralançadanumrio.Aquelesqueoatacavamforam jogados a uns 10 metros de distância. As flechas se voltaram contra seus arqueiros, aschamasaumentaram,astendasoscilaram,ascatapultastombaramdelado.
Ele causou mais estragos do que dez mil de seus homens no cerco de Forte d’Aed! Dele nóssentimosmedo...Nãosetratavadeumsimplesgeneral...
Mais adiante,na relva, soldadosgemiam.Alguns estavamapenas atordoados;ogeneral,porsuavez,juntouasúltimasforçasparairatéocercado.
SehouveumúnicoheróinasSalinas,gravemapenasestenome...Lançou-senumgalope,correndoigualaumfantasmanoiteadentro,deixandoparatrásuma
paisagemdechamasvorazesecorposatordoados.Quandochegaramosreforçosàquelapartedo
acampamento,ossobreviventes,comosrostoslívidos,asmãostrêmulas,tinhamapenasumúniconomeadizer:
Dun-CadalDaermon.
6
Umfilho
Queironia...
Eusempresoubedaramorte...
nuncasoubedaravida...
–Palavrassãocomofitasemtornodeumembrulho,sabe...As velhas mãos tarimbadas seguravam um caneco de vinho. Seu olhar se perdia no líquido
vermelho-sanguenaesperançadeafogarsuas lembranças,essas imagens fugidiasmascortantes,essesvultosquetinhaodiado,amado,detestado,protegido...
–Fala-semuitacoisa,masaspalavrasestãobemlongedaverdade.Ouviu-seumrangidoquandoViolapuxouumacadeiraparasesentar.Foratãofácilencontrá-
lo de novo, naquela taberna onde tinham conversado no dia anterior. Depois de perseguir oassassino,Dun-Cadal tinha ido para lá, sentindo calafrios. Ali estava o que poderia acabar comsuasdoresmoraisefísicas...oupelomenosentorpecê-las.Jáestavanasuasegundajarradevinho.Alémdeleedamoça,sóhaviaumpobrevelhosentadoaumamesapróximadajanela,dispondocartasdetarôemsilêncio.
–Aspalavrasrevestemtudo.Comascostascurvadas,ergueuorostoesuafisionomiaseabrandouaocruzarolharescoma
moça,seusolhosverdeseserenos.Elaeratãocalma,doceebonita,pequenassardasconstelavamsuaface.Oslábiosrosadosseentreabriram,masnenhumapalavrasurgiu.Elaapenasoescutava,ele,oremanescentedeumaépocagloriosa,inútilcomoumaespadaembotada.
–Ouvidizerquequando fugidasSalinasenfrenteinadamenosque trezentoshomens–disseelecomumrisoestranho.Baixouosolhos,pensativo,meneandoacabeça.–Maseucontei,sabe.Sempre soube contar depressa... – Falava sem esperar resposta, como se conversasse consigomesmo.–Eramquinze.Quinzegarotosdeuns20anosnomáximo.Nemumpoucotreinadosparaa luta. Quinze, sendo dois na retaguarda disparando flechas. – Fitou mais uma vez o olhar
impassíveldeViola.–Efoiassimquemetorneiumalenda...Semganharbatalhanenhuma.Sódeiumsustoneles.Essahistóriacorreudebocaemboca,dealdeiaemaldeia.Feitoumflocodeneveque acaba virando avalanche. As palavras revestem tudo. Uma história de nada ganha umaamplitude...gigantesca...
Fezumapausaelevouocanecoàboca.Comabordaencostadanoslábiosrachados,fezumacareta.
–Eestaésuafigurahistórica,Viola-não-sei-do-quêdacidaderepublicanadeÉmeris...Esvaziouocanecocomumsógoleelargou-onamesacomumgestobrusco.Tudoneleparecia
desmoronar e seu corpo estava tão ressecado que já não era nem capaz de chorar ao pensar naprópriasorte.
Meensine...Eunãoestoupronto.Seuspensamentosseperdiamnumpassadodespedaçado,dilacerado...aindasangrento.–Mataramum conselheiro. Emplena luz do dia – contouViola. –Massália está em pânico.
AssassinaramumhomemdaRepública.–Enãovaiseroúltimo–resmungouDun-Cadal.–Aguardarepublicanaestánoencalçodoassassino.–Evaicontinuaratrásdeleamanhã...Ela pôs delicadamente as mãos na mesa e piscou como quem tenta aplacar uma irritação
qualquer.–Osenhorsabequemfoi,nãoé?–indagou.–Oconselheiro?–Não,oassassino...Ele se recostouno espaldarda cadeira, perplexo.Aquilo estavamuito alémdas atribuiçõesde
umahistoriadora.Seráqueelaestavadescobrindoemsimesmaumapaixãopelajustiça?–Mesmoquesoubesse,oqueissomudaria?–Temalgoavercomasuahistória,nãotem?–Elafezummuxoxo,umbrilhomaliciososurgiu
emseuolhar.–Eusou...historiadora–acrescentou.–Eaespada?–Osenhorvaientregá-laparamim,eusei serpersuasiva–afirmouela, inclinando-sede leve
sobreamesa.–Suahistóriatambémmeinteressa.Elepegouajarraeencheuseucaneco,suspirando.–Eporqueachaquevouquerercontá-la?–Porquejácomeçou...Fitandoovazio,elecolocouajarranamesa.Elaestavacerta.Terrivelmentecerta.Seucheirode
lavanda o enfeitiçava. Tinha vontade de confiar nela sem pensar nas consequências. Mildrel ohavia alertado,mas ele não se importava. Algo nela despertava sua confiança. Ou então estavamesmocomvontadedeconfessartudo,deextravasaralgoqueeraumgrandepeso,queoimpediadeseguiremfrente.Pensativa,elafitousuasmãosunidas.Sempressa,avaliavacadapalavra.Dun-Cadalaobservava,curioso,enquantoelahesitava.
–AspessoasaindaacreditamnoLiaberDest.Eununcasoubedireitosedeviaacreditarounão.
SouumacriadaRepública,nãoémesmo?–disseelaporfimelançou-lheumsorrisosemjeito.–Oqueeuseiéque,depoisquefuiemboradaminhaaldeia,conhecipessoasquesereferiamaoLivroSagrado.Sempreacheiestranhoqueelas...acreditassemnumacoisasemteremnenhumaprovadesua existência. Para mim é mais... complicado ainda, agora que sou historiadora. A Ordem deFangolnãogostadaideiadequepodemos...reestudaraHistória,essaqueatéentãosóeleseramautorizadosacontar.Chegaramadizerqueandavamquerendo...comoeramesmo?...Ah,sim,queandavamquerendo“reescreveraHistória”...
Viola conteve uma risadinha nervosa. Dun-Cadal a escutava com paciência, sem entenderaonde ela queria chegar. Observava enquanto ela procurava as palavras certas. E não sentianenhumprazernisso.Simplesmenteesperava,apático.
–Emsuma... issotudoparadizerquenãotenhodefatoumaopiniãoformadasobreoLiaberDest, nem sobre as suas crenças – continuou ela. –Mesmo sabendo perfeitamente que alguémcomo o senhor sempre teve fé.Quer dizer, se o que dizem sobre oLiaberDest for verdade, se odestinodoshomensestámesmoescritonele,entãojáestátudodecidido,nãoé?EstavaescritoqueograndeDun-Cadalacabariaaqui,àbeiradamorte.
–Vocêachaqueestouàsportasdamorte?–zombouele.Umarápidaolhadaparaocopocheiotrouxearesposta.Oqueveioemseguidaencerrousuas
reticências.– Pelomenos as chaves o senhor tem – respondeu ela com objetividade. – Após esses anos
todos, depois da quedado imperador e da sua vida errante, nunca sonhou em conhecer alguémcomoeu?Nuncateveaesperançadequealguémpudesseseinteressarpelosenhor?Portudooquefez? Pois o senhor foi importante. Se chegasse esse momento, se chegasse alguém disposto aescutá-lo, iriadeixaraoportunidadepassar?Nãoachavaqueestavaescritoque,umdia,ogeneralDaermoniriapoderdizerasuaverdade?
Eledesviouoolhar.Violatinharespostaparatudo.Oqueelepodiarebater?Haviaanostentavaesqueceraquiloqueforaeaquiloquesetornara.Eelaexigiaqueelealevasseatéaantigaespada,símbolo de um Império destruído. Mesmo tendo a espada como objetivo, também estavainteressadanohomem.Comcertezaelenegariasealguémoquestionassesobreoassunto,masointeressedelamexiacomele.NinguémsepreocupavacomDun-Cadal,comexceçãodeMildrel,eoqueerapior,ninguémemMassáliaseimportavacomtudooquetiveraqueenfrentaremsualongavida.
–E,seeudecidirlhecontaraminhahistória–elesuspirou–,porondedevocomeçar?–QuetalcomeçarcomRã?Os olhos verdes deViola o enredaram; ele tinha a impressão de não ver nada além deles.A
tabernasumira, seusanguecorriaquentenasveias, seucorpo inteiroestavaenvoltoemalgodão.Somente aquele olhar brilhante pareciamantê-lo acima damaré, tal qual um farol guiando ummarinheiroperdido.
–Rã–repetiuele,assentindolentamente.Eentãocomeçouacontar.Contouseuencontrocomogarotonospântanos,osmesespassadosnasSalinascurandosua
pernaferidaatéaloucaescapadaduranteumanoiteestrelada.Relembrousuafuga,semseateradetalhes que lhe pareciam inúteis, contou como tinha ido ao encontro de Rã na planície que seabria alémda floresta.Tudovoltavaà suamemória comose tivesseacontecidonavéspera.Reviaclaramente o semblante de seu jovem aprendiz, contorcido de dor. Não, o sofrimento não erafísico. O garoto tinha matado um homem e não conseguia esquecer sua expressão de espanto,imobilizadapara todoosempre,apontadeumaespadademadeiracravadanopescoço,acarnerasgada da qual brotava um jorro vermelho ininterrupto, um líquido fumegante e gosmento. Ogeneral sabia quanto essa imagem do sangue escapando do corpo e, com ele, a vida de umhomem, manchava a mente para sempre. Relatou em poucas palavras a viagem dos dois atéÉmeris,mencionandorapidamenteaparadaemGarmaret,ondeoexércitoimperialseposicionaradepoisdeserrechaçadodasSalinas.
Não,sóoqueimportavaeraachegadadelesaÉmeris...
–Dequetamanhoelaé?–indagouRã.–Dequetamanho?–Omentorriu.Fazia um ano que se conheciam. Cavalgando numa trilha margeada de carvalhos, pareciam
dois viajantes exaustos, com suas amplas capasnegrasmanchadasde lama.Ovulto franzinodorapazestavamaisencorpadoehaviaquemvisseneleoprenúnciodeumhomem;omeninoficaranasSalinas, juntocomocorpodocapitãocalvo.Sobocapuz,seuolharcontinuavasombrio,massuasfeiçõestinhamsesuavizado.
Dun-Cadal também havia mudado. Seu rosto encovado pelos meses de fome nos pântanostinhamreadquiridosuaformabruta.Abarbaincipientemostravaquevoltararecentementeparaaestrada,depoisdeumaparadaquelhepropiciaraummínimodeconforto:banhoquente,comida,camamacia...
Haviamsepassadodoismesesdesdeafuga,ummêsdesdeaescalanofortedeGarmaret.Nasúltimassemanas,tinhampercorridoosantigosreinosepercebidoquearevoltaseespalhavafeitogangrena,devorandoosquatrocantosdeumImpérioenfraquecido.
Lutaram, enfrentarammuitos perigos...mas só o que contava era sua chegada a Émeris. Aolongodotrajeto,eleeomeninotinhamaprendidoagostarumdooutro.
Dia após dia, o menino progredia. Dia após dia, chegava mais perto de se tornar o queprometera a simesmo.E,dia apósdia,Dun-Cadal sentiaumorgulhoquedisfarçavapor trásdosemblanteduroeautoritário.Nenhumelogio,nenhumestímulo,apenasalgunsacenossatisfeitos.Omeninonãodavamostrasdeseincomodarcomisso.
–ÉduasvezesmaiorqueForted’Aed?–perguntouRã.Porsobreoombro,Dun-Cadallançou-lheumsorrisozombeteiro.–Três?Dezvezes?–sugeriuogaroto,cadavezmaisespantado.–Vocêmesmovaidizer,menino.
Em meio às arvores, que lembravam um corredor de honra, o caminho sumia à frente. Àmedida que avançavam, voltou a aparecer a trilha sinuosa, descendo por uma colina arborizadafeitoserpenterastejandoentreoscarvalhos.Maisabaixo,renteaumafalésiadaqual jorravaumatorrente nebulosa, erguia-se uma cidade imensa, altiva e cintilante, com altas torres prateadasdominando círculos e mais círculos de elevadas construções. No topo do prédio mais altotremeluzia o clarão do sol do meio-dia. Rã ficou sem fala. Desde a fuga das Salinas, tivera aoportunidade de conhecer cidades do Oeste que eram o dobro de Forte d’Aed – a cidade natalainda era sua única referência. Mas essa... essa superava, sem dúvida, tudo o que era capaz deimaginar.Quedas-d’águaborbulhavamaospésdacapital.Revoadasdepássarosdeasas imensasacompanhavam o curso do rio e mergulhavam junto às margens; então tornavam a subir esobrevoavamavastaflorestaqueseestendiaporquilômetrosatéasmontanhas.
– E então? – provocouDun-Cadal, surpreso. – Perdeu a língua?Ou está calculando quantasForted’Aedcaberiamdentrodestacidade?
Rindo, pôs o cavalo a trote esporeando-o comos calcanhares.QuandoRã conseguiu tirar osolhosdeÉmeris, o cavaleiro já descia a colina ziguezagueandopor entre as árvores.ComoDun-Cadalprevia,ogaroto,semfôlego,oalcançou.
–É...É...imensa–balbuciou,aoaproximar-sedomestre.–Existeoutrapalavraparadescrevê-la–respondeuDun-Cadal.Recordava-sedaprimeiravezquecruzaraapontesobreatorrente.Nuncaesqueceriaavertigem
que o oprimiu enquanto transpunha as portas da cidade, entre as muralhas brancas que acercavam. Tinha mais ou menos a idade de Rã... e deixara a casa Daermon, nos territórios doOeste,paranuncamaisvoltar.
–Quepalavra?–indagouimediatamenteoaluno.–Imperial...–murmurouomestrecomumavozsurpreendentementesériaerespeitosa.Sim, podia facilmente entender o que o garoto estava sentindo, pois ele próprio conhecera
aquela cidade em circunstância similares. Seu tio omandara para a academiamilitar, realizandoassimseudesejode ir emboradoOeste.Tal comoRã, fugiradeumavidaquenão lhe convinha,umavidade castelão semglória a reinar sobreum território semmagnitude, emmeio apessoassemambição.AcasaDaermonerarelativamenterecente–suahistóriasóremontavaaseuavô–euma de suas características era uma espécie de humildade que Dun-Cadal associava à covardia.Quanto menos a casa Daermon se fizesse notar, menos risco corria de atrair a fúria da famíliaimperial. Ainda criança, atiçara os próprios sonhos até não poder mais e, quando finalmentesurgiraaoportunidadedeservirdignamenteaoImpério,fezdetudoparaqueseutioomandasseàmelhorescola.Entãosedescortinoudiantedeleumcaminhoglorioso,queeledecidiu trilharcomsegurançaeostentação,fazendopoucodascostumeirasreticênciasdosmembrosdesuacasa.Derainício ao seudestino emÉmeris, cidade-símbolodo sucesso,pois era láque sedecidia a sortedomundo:ocoraçãoeocérebrodeumImpérioimortal.
Passaramatrotepelasruasenlameadasdosbairrospobres,queeramcomoumacoroadecasascom telhados de colmo. Quando os cascos tocaram o pavimento, as casas se tornaram maisarrogantes, comamplas janelas.Rã ficou calado. Sebemque...mesmo sempalavras, sua atitude
comunicava o enlevo. Ao entrarem no palácio, pareciamenos tranquilo. Nos grandes salões deamplasjanelas,entreosgeneraisquesaudavam,eleseretesou,baixouacabeça,seuolharfugidiosempre em movimento como se procurasse alguém. Dun-Cadal o apresentou brevemente,esquivando-seassimdasperguntasdeseusirmãosdearmas.
Sua epopeia nas Salinas dera o que falar. Provocava, na cavalaria, um misto de orgulho einveja.Contava-sepor todaparte que ele, sozinho, tinha acabado como exércitode insurgentes.Emboraparecessenão lhedarqualqueratenção,ocavaleiroestavadeolhoemseuaprendiz.Nãotantoporcontadeseucomportamento,maspeloquedeviaestarsentindo.Comoeraapertartodasaquelasmãosaocruzar,nosvastoscorredores,comumaquantidadedegentequenuncadeviatervisto?
Puravertigem...Paraummeninodointerior,estaralinomeiodaqueleshomenscomarmadurascoloridas,que
exibiam os antigos símbolos de suas casas, já era bastante intimidador. Adentrar o antro dacavalaria, descobrir brasões e armaduras, espadas antigas penduradas nas paredes comorespeitáveisrecordações,erainebriante.Alireuniam-seosmaioresdefensoresdafamíliaReyes,osmaisvalorososcombatentes,cujoselmosestavamorgulhosamenteexpostos.Asarmadurastinhamse tornadomais leves como passar dos séculos, e as espadas,mais aprimoradas.DaermonnãotinhadúvidadequeRãpoderiaseguirogloriosoexemplodeseuspredecessores.Massódepoisdeaprenderasuperaraprópriaansiedade.
Dasbrancasparedesdopalácioaosgigantescosvitraisqueornavamossalões,dosguardasdecapacetes dourados e lanças reluzindo ao sol ao respeitoso silêncio das damas de vestidosacetinados, tudo era novidade para quem até aquelemomento tinha vividonos pântanos.Ali, ocheiroderosasegramarecém-cortadasemesclavaaosmaisfascinantesaromas.
–Éaprimeiravezquevemaqui,nãoé?–perguntou-lheumhomemdetúnicabrancacomumpanovermelhocaídosobreoombro.
Seguiram o homem por um longo corredor revestido de espelhos. Dun-Cadal o apresentoucomo o intendente do imperador. Este, ao saber de sua chegada, mandara chamá-los quantoantes.Rãse sentiaperdidonomeiode tantosgenerais, capitães, condesebarõesqueavistaraaoentrarnopalácio.Ele,quemaisdeumaveztinhasidoinsolente,mostrava-setímidoereservado.Aissosesomavaovisívelnervosismo,cujosefeitosseumestreconstatouaoseaproximaremdeumalargaportaduplaenvernizadacomdobradiçasdouradas.Apeledorapazestavamolhadadesuor,seusgestospareciammaisbruscosesuarespiração,maisabafada.
– Você é mudo? Não disse nada até agora – perguntou o intendente. – Ouvi falar de você,sabia?SeunomeéRã,nãoé?
–É...–Rã...–repreendeuDun-Cadal.–Sim,Excelência–corrigiuogaroto.–Meurapaz,suadedicaçãoaoImpériomerecetodaanossaatenção...erespeito.–Obrigado,Excelência–respondeuRã,numtomsubitamenteseco.Dun-Cadalcompreendiaperfeitamenteainquietaçãodeseuaprendiz.Elepróprionãotinha,ao
chegaraliesedepararcomopaideAsham,disfarçadosuaapreensãocomumafalsasegurança?Rã ainda era jovem demais para se fazer de pretensioso. Quando o intendente abriu as portas,ouviu-seumdemoradorangido.Numvastosalãocompisodemármoreestriadodepretoerguiam-sedezenasdecolunas lisas, reluzentes.Nenhummóvel,nenhumassento,nemmesmoumtrono.Apenas uma fina cortina vermelhaperto de uma sacada, atrás da qual farfalhavamas copas dasárvores. Escondidapelo tecido, uma sombra estranha, imponente, parecia estar sentada emumaenormetinadaqualsubiamnuvensdevapor.Vultosfemininosvertiambaldesdeáguanobanho.
Rãseretesou.–Vá–ordenouDun-Cadalempurrando-o.–Esófalequandoelelhedirigirapalavra.A sombra se curvou, como uma criança prestes a passar mal. Com um gesto, o intendente
pediuqueoseguissem.–VossaMajestadeImperial–anuncioucomvozforte–,ogeneralDaermon,queretornoudas
Salinas,eseujovem...protegido.–Trouxeumfilhodelá?–zomboualguém.–Porissodemoroutanto?À medida que se aproximavam, Dun-Cadal notou que o andar do garoto ia ficando mais
decidido. Estava mais ansioso que antes. Cenho franzido, feições contraídas, tinha apertado opassoecaminhavaaoladodointendente.Maisalgunspassosnesseritmoeseriaoprimeiroaseapresentardiantedoimperador.Decertoiadesacelerarnoúltimoinstante.Ogeneralesboçouumsorriso.Estavaprestesaresponderquandoumruídoofezlevaramãoàespada.Umalâminazuniunoareparoujuntoàgargantadogaroto.Ointendentedeuumpassoparaolado,surpreso.
–Paz,Daermon–sussurrouumavozgrave.Dun-Cadalseretesou.Davaparaverobrilhodesuaespadaentreabainhaeopunho.Hesitou
empuxá-lanumgestobrusco,mastinhareconhecidoohomemesabiaqueeramuitoveloz.SoboqueixoerguidodeRã,aMãodoImperadorencostavasualâmina.
–Elenãoéinimigo!–bradouDun-Cadal.–MasvemdasSalinas...Avoztinhaumtimbreextremamentedesagradável:umamisturaderouquidãoechiados,como
sehouvessepedregulhosemsuagargantaqueobstruíamarespiração.– Esteja pronto para me defender, Logrid – disse a sombra atrás da cortina, enquanto uma
serva voltava a verter água em seu banho. Volutas de fumaça deslizaram pelo pano. –Mas nãocreio que ummenino fugindo de sua região em guerra tenha vindo de tão longe paramatar oimperador.
O assassino inclinou de leve a cabeça, feito um predador observando minuciosamente suapresa.Olhouparaamãodogaroto,queostensivamentesedirigiaparaopunhodaespada.Pareciahaveruma lágrimanocantode seuolhodireito,que inchava juntoàpálpebra,prestes a escorrerpelo rosto contraído de medo. Sob o grande capuz do assassino, nada se via de seu rosto. Noentanto,elecertamenteoanalisavaeseriacapazdejurarqueogarotodesafiavaseuolhar.
–Deixe-oempaz,Logrid!–bradouDun-Cadal.Logrid baixou a espada. Aproximando-se do general, enfiou-a na bainha que pendia de seu
cinturão.
–Éassimquesomosrecebidos–murmurouDun-Cadal,enquantoooutroorodeava.–Sóestouseguindoseusensinamentos...Daermon–respondeuoassassinoemvozbaixa.–Omolequenãorepresentanenhumaameaçaaoimperador,Logrid....Ohomemdirigiu-lheumestranhosorriso,atravessouasaladiscretamenteedesapareceuatrás
deumacoluna.Deixavaparatrásumjovemparalisadodemedo...ouhumilhação.–Rã...–TalvezsejamelhorosenhorconversarcomSuaMajestadeImperialemparticular–sugeriuo
intendenteaoouvidodogeneral.Dun-Cadal assentiu. Que bicho tinhamordido Logrid para investir daquele jeito contra uma
criança?SabiaquearebeliãodasSalinasestavalongedetersidoreprimida,masdaíasuspeitardeum simplesmenino... Suspirou, enquanto o intendente conduziaRã até porta.O garoto, com aremburrado, nem sequer dirigiu-lhe umolhar. Era tão orgulhoso... Tinha sentidomuitomedonafrentedapessoamaisimportantedomundo.E,oqueerapior,forahumilhadosempodermostrarseus supostos talentos. Isso ia lhe ensinar a ser paciente, pensou o general; ia lhe ensinar a serhumilde.Haveriaumahoraemque,controlandosuaira,elefatalmenteserevelariaaomundoemtodo o seu esplendor. Por ora, o importante era a guerra, e a ideia de que o menino pudesseinfluenciarseucursodeviapassarpelamentedoimperador.Nomeiodocaos,brotavaaesperança.Quando a porta se fechou, Dun-Cadal se encaminhou para a cortina vermelha, certo de quetrouxeradasSalinasumaautênticapedrapreciosa.Asombraestavasaindodobanhoemmeioauma curiosa ondulação na água e foi imediatamente coberta pelos vultos delgados. Parecia umanjo fechandoas asas, assistidopor vestais.Ouumdemônio.A formadeumacabeça ergueu-selentamenteeasmulheresseafastaram.Porfimapareceram,passandopelacortina;eramjovensebelas, e usavam longas túnicas verdes bordadas de ouro. Quatro delas carregavam a tina aindafumegante. Lançaram um olhar curioso para o general antes de sumirem por trás das colunas.Uma porta bateu, então só restou o chiado de uma respiração. Oculto pela cortina, um vultopermaneciaimóvel.
–Elesalvouminhavida–disseDun-Cadalderepente.–Eu sei– respondeuo imperador.–PerdoeLogrid.A revolta temsemeadoa inquietaçãoaté
aquiemÉmeris.Quemsãonossosamigos?Quemsãonossosinimigos?Difícilsaber.Fezumapausa,movendo-seumpoucoparaolado.–Logrid...sóquermedefender.Comovocê,muitotempoatrás.Deu a impressão de estar procurando algo a seus pés, abaixou-se e pegou o que, no escuro,
pareciaserumbanquinho.– Foi muito bom saber que você está vivo, Dun-Cadal! É um prazer ter você por aqui –
confessouenquantosesentava.–Prazeraindamaioréomeudeestarvivo,VossaMajestadeImperial.Sónãotenhocertezade
queocapitãoAzdekisejadamesmaopinião.Oimperadorconteveumarisada.–Sim,andeiouvindoalgumascoisas.Não sepreocupe.Apesardas súplicasdo tio,mandei-o
paraoutra linhade frente. Foi omáximoquepude fazer.Ele afirma terpensadoque você estava
morto.Equempodeprovarocontrário?Todosnóspensamos.Aproxime-se–pediu.–Venhaparapertodemim...
O general obedeceu sem dizer nada, sua espada batendo na coxa. Lá fora, os passarinhoscantavam.
–Ébonito,nãoé?OcantardomeuImpério...–disseoimperadoremtomsonhador.–Oqueacontecequandoalgunsficamdissonantes?–Desúbito,suavozficoumaisrouca:–VocêesteveemGarmaret,nãoé?
–EncontreiNégusporlá,depoisquefugimosdasSalinas.Elemecontou.–Ah,é?Contouoquê?–Quearevoltatinhaalcançadooutrasregiões,VossaMajestadeImperial.Atrásdacortina,asombrameneouacabeça.–Feitoumrastilhodepólvora.–NégusmeinformouqueassuspeitasrecaíamsobreofilhomaisnovodeUster...–Sim–admitiuoimperador.–Sim,éoqueeuacho.LaertedeUster,osegundofilhodeOratio
de Uster... O pai foi julgado e enforcado por traição. O pérfido denegria meu poder em seusescritos!DenegriaoLiaberDest,denegriaaOrdemdeFangol...Queriadestruirtudoaquiloemqueacreditamos.Imaginoqueofilhoestejadispostoatudoparasevingar...inclusivecolocarumpovointeirocontramim.Essepovoporquemdouaminhavida,essepovo...nãopassadeumbandodecriançasingratas!Souopaidelas,eelassevoltamcontramimsempensar.EsseLaerteprecisaserjulgado,comoOratio foi!Eleestá incentivandoomeupovoa sedilacerar!E todossãocúmplicesnosanguederramado.
–VossaMajestadeImperial...–murmurouDun-Cadal.Haviairanavozdoimperador.Tambémhaviaumaestranharesignação.Comose,afinal,tudo
aquilonãofosseinesperado.– Eu também posso derramar sangue se for preciso. Possomemostrar intransigente, sabia?
Não sou mais o menino que você protegia, aprendi muita coisa. Oratio de Uster achava que oImpérionãopodiaperdurar,queeraprecisomudar,queeunãoeradigno!FoipelopróprioLiaberDest queminha família se tornou imperial! Eu sou e continuarei sendo umReyes, pelos deuses!Apesardoque todaessagentepossadizer.Nãosoudigno,eu?Dignodequê?Degovernarumacortedelínguasviperinas,deaduladoresbuscandominhaproteçãoemtrocadefalsoselogios...
A sombra de uma espada se ergueu, perfeita, fina e reta, cujo punho parecia envolvida pelamãofechadadoimperador.Acortinaonduloudeleve.
– Eles estão aqui,Dun-Cadal,meu amigo – declarou ele, brandindo Eraed. –Os verdadeirosinsurgentes estão aqui. Aqueles que estão na origem disso tudo. Esfregam-se feito cobras nasminhaspernas.Elesmebajulam,meseduzemeachamqueeunãopercebo.
Havianojoemsuaspalavras.Aquilooafetavamaisdoqueelequeriaadmitir.Portrásdaquilosurgiaumaafliçãoquesóogeneraleracapazdenotar.ConheciaAshamIvaniReyeshaviamuitotempo.Elebaixouaespada,quedesapareceuemumabainhaqueseguravacomasmãostrêmulas.
–ComofoinasSalinas?–perguntoudesúbito,comoseogeneralestivessevoltandodeumaviagemapasseio.
Desconcertado,Dun-Cadalpensouantesderesponder.–Úmido...–Umano–murmurouoimperador.–Teriapreferidoficarbemmenosporlá–reconheceuogeneral,entãomudoudetom:–Nãose
deixe abater, Vossa Majestade Imperial. Essa revolta não significa nada. Se teme ser derrotado,maisvalerender-seagoramesmo.
–Gostodisso...–respondeuoimperador.–Vocêéoúnicoquefalaassimcomigo.Fez-seumsilêncioantesdeavozabafadadoimperadorressurgir:–Mas não é perto demimquemais preciso de você. É na linha de frente.Você causouuma
forte impressãonasSalinas.Eles levaramdiasparaserecuperaremdasuafuga.Imaginesó...umcavaleirosozinho...
–Maisummenino,VossaMajestadeImperial.–Piorainda.–Oimperadorriu.–Umsimplesmenino...–Eletemtalento.Vaisetornarumgrandecavaleiro, tenhocerteza.Queriapoderapresentá-lo
commaisdemora.Eleestavaansiosíssimosódepensaremconhecê-lo.–Vouparabenizá-loquandovocêsvoltarem...–Oimperadorsuspirou.–Osdois...BastouessafraseparaDun-Cadalentenderqueseuaprendizhaviasidoreconhecidoecolocado
sobsuaexclusivaproteção.Omeninooacompanharia,casoeleassimdecidisse.Reyesselevantoudevagareasombradesuacabeçadiminuiucomoseestivessesevirandoparaasacada.
–Sintomuito,meuamigo,setãodepressaomandodevoltaparaaguerra.Um farfalhar de asas ressoou dentro da sala. Para além da sacada, as copas das árvores se
agitaramquandoumbandodepardaislevantouvoo.
OImpériotremiaemseusalicerces,asregiõesse incendiavamumaapósoutra,nãosetratavade uma simples revolta.Nunca antes o poder estivera ameaçadodessa forma. E a quempodiamacusar?Opovoéqueestava,aospoucos,se insurgindocontraoseusenhor.“Crianças”,disseraoimperador,criançasfuriosas.Enquantoandavapeloslongoscorredoresdopalácioimperial,Dun-Cadal tentava entender. A maioria das pessoas tinha o que comer. Os impostos não eraminsustentáveis e os camponeses não dependiam de um nobre arrogante: deviam lealdade aoImpério, enãoaumcondequalquerdementirinha.O imperadorcuidavaparaque todos fossemrespeitadosea justiçafosseassegurada.Osdeuseshaviamescolhidosuafamíliaeescritoparaelaum destino fora do comum. Expressar alguma dúvida quanto à legitimidade de seus atos, àinteligênciadesuasdecisões,eraomesmoqueinsultaraescolhadivina.
Quandoabriuaportademadeiraquehaviatantotemposonhavaemtranspor,jánãobuscavarespostasparaessasperguntas.Sóoquelheimportavaeraumcheirodelavanda.
–Soubequevocêtinhavoltado.Masnãoacreditei–declarouumavozseca.Elecruzouocômodocompassosdecididos,espremendoamulhercontraajanelaparabeijá-la.
Praguejando,elaorechaçou.Poruminstante,eleaindatentoumantê-lajuntoaseucorpo,masabofetadaquedeixouseurostovermelhoodissuadiu.
– A acolhida aqui em Émeris não émais como antigamente – resmungou ele, esfregando orosto.
–Seufilhodamãe!–exaltou-seela,rapidamentedirigindo-seatéaportaparafechá-la.–Nemlheocorreumemandarumacartaparamedeixartranquila!
– Tranquila com quê? Pelo que estou vendo, você andou muito entretida durante a minhaausência.
Finalmente reparou no quarto onde tinha entrado sem cerimônia. Uma ampla cama comdossel, ladeada por dois criados-mudos finamente esculpidos; nas paredes, tapeçarias de umvermelhointensoorladasdeouro.QuandosedespediradeMildrel,elaeraapenasumacortesãemmeioatantas,semgrandesrendimentosouaparatos.Nasuaausência,tinhasetransformadonamais apreciada pelos nobres, na mais odiada por suas semelhantes. Aos olhos de Dun-Cadal,porém,aindaeraúnica.
Elasemoviaaolongodacama,deslizandoosdedospelocobertorverdebrilhante.–Eunãopertençoavocê,Dun-Cadal.Vocêsabia,desdeocomeço,qualeraaminhaíndole...–Vocênãomepertence...massentiuminhafalta.–Ogeneralsorriu,seaproximando.–Nãoédissoquesetrata–respondeuelaemtomamargo.Asmãosdele,emgeraltãofortes,roçaramospulsosdamulhereentãoseusdedossefecharam
carinhosamente sobre a pele delicada. Ela nem esboçou qualquer gesto. Os cachos do cabelocastanhocaíamsobreosombrosdesnudos,os lábioscarnudoseramdeumvermelhosuave.Seusolhosdelineadosdepretoofitavamsempestanejar.
–Umanosemternotícias,umanoemquetodosojulgavammorto...seu...–Seuoquê?–sussurrouele,inclinando-selentamentenadireçãodela.Mildrelnãoconseguiu terminara frase,de tão longaque foraa espera.Os lábiosdosdois se
uniramdemoradamente... atéqueoabraçoos fizesseesquecer tudoeos levassepara longe,bemlonge,daguerraqueurgia,damortequerondava.Haviamficadotantotemposemsever.Agoraseuscoraçõesbatiamrápido,forte,juntos,namesmacadência.
Osol jáestavasepondoquandoDun-Cadalaproximou-seda janela.Sobos lençóis,deondeescapava uma perna desnuda, Mildrel o observava, pensativa. Ela então inspirou fundo, maldisfarçandoadecepção.
–Vocêjávaiemboradenovo,nãoé?Dun-Cadal não respondeu. Concentrava sua atenção na parte do palácio que avistava dos
aposentos da amante. Um colorido azinhavre ia substituindo o dourado dos telhados e, maisabaixo,erguiam-seasaltascasasbrancasdacidade.
–Comoeleé...?Elevirou-separaela,oolharausente.–OmeninodasSalinas...Aspessoascomentamporaqui, você sabe–prosseguiuMildrel em
tom zombeteiro. – Nunca param de contar sua façanha. Dun-Cadal, o general, transformou-senumautênticomito.NãobastavavocêlutarpeloImpério...aindatinhaqueficargravadonamente
daspessoas...–Ascoisasnãosãocomoparecem.–Estavaescritoquevocêtrariaconsigoummenino...–Mildrel...–...escritonumlivrodoqualninguémjamaisleuumapágina!–exclamouelacomsecura.Eleficoucaladouminstante.OLiaberDestsempreforaamaiorcausadedesavençaentreeles.
Elanunca tinhaacreditadonoLivroSagradoenãoperdiaaoportunidadedecriticarsua fé,pois,semprequeconfessavaalgumreceioàsvésperasdeumcombate,elejustificavaosriscosquecorriacomasimplesfatalidade.Paraacortesã,ofatodeascrençassefundamentaremnumlivroperdidoerasinaldeignorância.Pragmáticacomoera,aceitavaosrumoreseodissemedissedacortesemseinteressarpelasorigensdomundo.Elaexperimentavaadoçuradodivinonumleitodecetim.Asideias,ossonhos,deixavaparaaquelesquenãoeramcapazesdeamar.Essadiferençadeposturaentreelesnãodeixavadeafetarseuamor,que,noentanto,eraprofundodemaisparaacabarporcausadessasbrigas.
–Éassimqueé.Elesdecidiramanossavida.NãosepodenegaraexistênciadoLivroSagradosóporqueeledesapareceu.Quervocêqueira,quernão–disseogeneral.
–Eogaroto?Estavaescritoquevocêiabuscá-lonumpântano?–Elefranziuatesta.Mildrelseendireitounacama.–Nãovejoahoradeconhecê-lo.–Elasorriu.
Haviatristezaemseusolhos.Elesabiaoquelhedoía,masnãopodiatocarnoassunto.Elanãoestavainteressada.
–Eleéapenasmeudiscípulo.–Nãosabiaquevocêeratão...compassivo.TirarumórfãodasSalinas,ensinar-lhetudooque
sabe,cuidardele,zelarporseubem-estarcomoumpa...–Preciso ir– interrompeuele,num tomneutro.–Ainda ficoalgunsdias emÉmeris antesde
pegaraestradaparaVershã.Agentesevê.Pegouacamisanacamaeavestiu.–Oqueeletemqueosoutrosnãotêm,Dun-Cadal?Mediga!–Eleprecisademim...–Eutambém.Nãoquerosercortesãpelorestodavida...–murmurouMildrel.–Vocênãomepertence.–Maspodiapertencer.Segurando o plastrão da armadura na mão, ele ficou parado, então lançou-lhe um olhar
estranho.Elabaixouosolhos,dobrandoaspernas juntoa si comoumacriança flagradaemsuatravessura.Semdizernada,Dun-Cadalvestiuasváriaspartesdaarmadura.Assimqueseaprontou,foiatéaportae,comamãonamaçaneta,olhouparaelaumaúltimavez.
–Agentesevê.Esperouuminstante,naesperançadeelaconfirmarumpróximoencontroousuplicarparaele
ficarumpoucomais.Noentanto,nadaaconteceu.Sempreforaassimesempreseria.Nãopodiamficarumsemooutro,mastodomomentopartilhadotinhaqueterminar.Eleiavoltarparaaguerraenãohavianadaqueelapudessefazer.Sórezarporeleeporsuasalvação.Muitasvezes,depoisde
ele partir, ela levaria as mãos ao ventre esperando sentir a vida crescendo ali lentamente, paraassimpoderterumapartedeleparasempre...
Dun-Cadal vagueou certo tempo pelos corredores do palácio, desfrutando de umatranquilidadequehaviadoisanosnãosentia,atéqueseuspassosoconduziramaumvastopátiointerno cercado de corredores abertos margeados de colunas. Deteve-se um momento,relembrandoquandochegaraalimuitojovem.Assistiraàsaulas,tinhaaprendidoaartedaguerra,até ser considerado inaptoparaocomando.Umsorriso surgiuemseus lábios.Queatípicahaviasidosuatrajetória!Quecaminhosnãotiveraquetrilharparaalcançaramaisaltapatentemilitar...
Alguns alunos conversavam junto a uma fonte. Usavam um gibão vermelho e branco quetraziadesenhadanopeito,numescudodeprata,umaespadaaltivaefinacompunhotrançado.AmíticaEraed,aEspadadoImperador.
Dun-Cadalavistouumrapaz sentadoàbeirada fontequeenxugava intensamenteonarizdoqual escorria sangue.Estava comum ladodo rosto inchado, o lábio inferior cortado.Acontecerauma briga pouco antes. O general aproximou-se dele a passos lentos, certo de que todos oobservavam com alguma deferência. À medida que foi sendo reconhecido pelos alunos, não seouviumaisumapalavrasequer.Anãoserasdogeneral,quemaleramaudíveis.
–Vocêjáfezamizades...–murmurouparaogaroto.–Nãofoinada–resmungouRã.Ointendenteotrouxeraali,deixando-oaoscuidadosdomestredearmasdeplantãoparaque
lhe fosse dado umquarto.Durante a breve estadia emÉmeris, não seria um escudeiro igual aosoutros.Eali,maisdoqueemqualqueroutro lugar, todonovatoprecisava imporrespeitodesdeoprimeirodia.ForaoqueRãamargamentedescobrira.
Sempreédifícilencontrarnossolugar...Dun-Cadal deixou seu olhar percorrer o grupo de alunos. Tinham empalidecido. O general
Daermonestavaaliempessoaeogarotoquealgunsdelestinhamsurradosemnenhumpudoreraseuprotegido.Dun-Cadalnemprecisoudizernadaparaqueos culpadosdesviassemoolhar.Elehesitouporumlongoinstante.Seráquedeviapuni-los?
Sempreédifícildescobrirdoquesomoscapazes...Mostrarissoparaosoutros,então...Alémdisso,violêncianãoéasolução.Vinho,taberneiro!Maisvinho!
Dun-Cadallimitou-seafitá-loscomumolharferoz.–Venhacomigo–dissecomumsuspiro.–Vamoscuidardisso.Etireamãodonariz,elenão
vaicairsóporcausadealgunsmurros.Dun-Cadal,jábebeudemais.Rãselevantoufungando,olhosbaixos,maxilarcontraído.Seguiu-oapassosrápidos,passando
entre os alunos sem nem olhar para eles. A poucosmetros dali, um jovem nâaga os observavaenquantoentravamnaacademia.
Meucaneco!Eunãotermineimeu...meucaneco!Seuladrão!
–Dun-Cadal!Parecomisso!–Meucaneeeeco!–General!Elaelevaraavozcomonunca tinha feito.Ficou tão surpresaquantoovelho,que tamborilava
na porta da taberna. Teve que reconhecer que sua repentina autoridade funcionavamaravilhosamente bem. De bêbado gritão, Dun-Cadal se transformou em ummenininho pegocomabocanabotija.
–Elenãoquermaisatendê-lo.Jáescureceu,osenhordeveriairdormir.Violaoajudouaseafastardaporta.Dentrodataberna,aanimaçãorolavasoltaeDun-Cadal
podiaouvir,emboraabafadospelaporta,osrisoseamúsicadepífaroseflautins.Desviouoolharacontragosto, titubeandoao ladodamoça.Odiapassara tãodepressa,aosabordesuahistória,regadoacanecoscheios.Nãoerasónopassadoqueeletinhamergulhado...
–Vamos,Dun-Cadal,vouacompanhá-lo.–Vaimeacompanhar...–zomboueleentre soluços.–Maseusouumherói!Evocê,quemé?
Umaama-seca...rárá...umaama-seca...–Osenhorestáfedendo...Elepesavanoseuombro,ospésquase falseandoacadapassoquedava.Naviela lamacenta,
maliluminadaporlampiõesaóleopenduradosnassacadas,sealguémcruzassecomaquelamoçafrágilsustentandoumhomemcorpulentocomoDun-Cadal,iaachargraça.Ouficarinteressado...
Três homens, escondidos na escuridão de uma rua adjacente, os avistaram. Era bom demaisparaserverdade.Aproximaram-seemmeioarisadinhas.
–Ei!–chamouomaismagrodostrês,segurandoumpedaçodepaucravadodepontasafiadas.–Aondepensaquevai,minhalinda?Seuavônãoparecemuitobemdaspernas.Vocêsnãoteriamalgumdinheiroparanosdarnestanoitetãobela?
Violaparoude imediato.AcabeçadeDun-Cadal, semenergia, caiu sobre seuombro.Ele fezumacaretaeseusolhossereviraram,comoseprocurasseumpontoparafitar.
–Oqueé...isso...?–resmungou.–Temoscompanhia...–murmurouViola,avozrepentinamentetensa.No escuro, os vultos distintos não pressagiavam nada de bom. Um parecia gigante; outro,
provavelmente o chefe, era magro como um espeto; e o terceiro era roliço como uma bala decanhão. Os três usavam calças marrons remendadas e camisas da mesma cor com gola em V.Somenteomaismagro sepermitiraumgibãode couro semmangas eumcurioso chapéu caídoparaolado.
–Meliantes!–berrouogeneral,empurrandoamoçacomumacotovelada.–Salafrários!–Foiparacimadeles,quaseseestatelandováriasvezes.–Podemvirparaabliga,patifes!
–“Bliga”?–debochouomaisroliço.–Eleestácaidaço–comentourindoogigantedevozrouca.–General!–gritouViola.Ele ainda tentou dar ummurro furioso no primeiro bandido,mas esse simples gesto bastou
paradesequilibrá-lo.Játinhapassadoportantasbatalhas,travadotantoscombates,mas,naquelanoite,Dun-CadalDaermonnãoeramaisqueumbêbadoseesborrachandonochão.Ali...ridículoeatônito,opoucodelucidezquelherestavaferiuseuamor-próprio.Ali...sentadonalama.
Houvetrocademurros,fortes,rápidos.Houvegritosdeespanto,umbraçoestaladoquandoonâaga,surgidodonada,agarrouumdosbandidos.Dun-Cadaltentouenxergaralgumacoisa,masnãoconseguiamanteracabeçaerguida.Eramsóvultosvagosesonsiguaisaecosrodopiandoemsuamente.Atéqueosilêncioseseguiuàdisparadadosbandidosemfuga.Elebaixouacabeça,oestômago embrulhado, um aperto no peito. Podia ter feito picadinho deles. Podia ter usado oSopro, tê-los desafiado como outrora desafiara os maiores guerreiros... Uma mão muito friasegurouseupulsoeoajudoualevantar-se.
–Agoravenha–disseumavozrouca.Havianelacerta...compaixão?Umpulsofirmeopuxava.Opulsodeumgigantetatuado.–Vo-Você–gaguejouDun-Cadal,ameaçador.– Sim – respondeu Rogant com um estranho sorriso nos lábios. – O prazer é todomeu em
tornaravê-lo,velhofantasma.–Euainda...não...morri!–resmungouele.Atrásdogeneral,surgiuavozdeViola,seca:–Obrigadaporterintervindo.Dun-Cadaltentousevirareolharparaela,masosonopesavaemsuaspálpebrasecadagesto
se tornava mais penoso. Imaginou, por um breve instante, que ela olhava para os telhadostentandoavistaralgoláemcima.
Eentãoapagou.
7
Recobraradignidade
Lutarcomumaespadaéfácil.
Mas,paravencerosprópriosdemônios,
alâminanãotemqualquerserventia.
Você,queestáaídejoelhos,jásemorgulhonenhum,
levante-se,mesmotrêmulo,erecobresuadignidade.
Poiselaédefatoaúnicaarma
queoprotegedospoderosos.
–Fleechaaas!O grito desesperado logo foi encoberto por um silvo ensurdecedor. Uma nuvem escura se
abateu sobre os soldados da infantaria, golpeando as couraças e capacetes dos mais sortudos,trespassandoassobrevestesdecourodosdemais.Aossonssecosemordazesdometalsucederam-se o som, pungente e pesado, de carne dilacerada e, em seguida, os gritos roucos dos soldadoscaindoaochão.Afunestasinfoniadeulugaraumsilêncioassombroso.Asprimeiraslinhasnãosedispersaram,oshomenssereerguiamemmeioaoscompanheiroscaídos.Tinhamquemantersuasposiçõesnaplanície.Faziamaisdeumasemanaquevinhamseesforçandopara isso,emuitos jáhaviamlutadoantes.Arevoltaseespalharapordiversasregiões,mas,encurraladaaopédeVershã,estavafraquejando.Embreve,astropasvindasdoLeste,comandadaspelocapitãoÉtienneAzdeki,ajudariam a fechar o cerco e a tranquilidade voltaria a reinar. Só precisavam aguentarmais umpouco.
–Mantenhamalinha!Mantenham!–ordenouumavozgraveatrásdeles.De pé sobre o cavalo, Dun-Cadal Daermon exortava suas tropas, os cascos da montaria
martelando o solo a cada vaivém. Alguns soldados retomaram seus postos, o semblante aindatensodemedo.Outrospermaneceramimóveis.Dooutroladodaplanície,atocaiadosjuntoàmataaopédasmontanhas,osarqueirosinimigospreparavammaisumasaraivada.
–General!GeneralDaermon!Um jovem cavaleiro vinha galopando em sua direção e parecia nervoso. Sua armadura,
salpicadade entalhes e fissuras,denunciavamuitasbatalhas.Um filhodeboa família totalmentefiel ao Império, um daqueles que haviam seguido a escolha de seus pais sem expressar qualquertipodedúvida, justificando sua inquestionável submissão como respeito às tradições.Emoutrascircunstâncias,orapazseriadecertoeleganteecortês,dariamostrasdeerudiçãoeatédeumcertosenso de humor nos banquetes de Émeris. No entanto, mal saíra da academia militar e já foramandado para os campos de batalha. A guerra o transformara a tal ponto que, nos festejosseguintes, se limitaria a levar a taça aos lábios, concordando com os comentários de quem nãohaviaabraçadoacarreiramilitar.Dun-Cadalsópodiarespeitarumjovemcavaleirocomoele,queestava aprendendo a arte da guerra e a dominar uma força tão delicada como o Sopro. Dessabatalha,umjovemassimprecisavasairvencedor,poisumdia,quemsabe,talvezsalvasseavidadeseugeneral.Ocavaleiropuxouasrédeasnumgestosecoeocavalosedetevebufando.
–General, a cavalaria estáapostos.As tropasdocapitãoAzdeki contornaramVershãe estãoaguardandosuasordens.
Eleassentiu.Erachegadaahora.–Aomeusinal–dissecomvozgrave.Comoscalcanhares,pôsseucorcelnumtroteportrásdaslinhasdainfantaria.Eraomomento
deatacar,aesperajáseestenderademais.Oimperadornãoomandaraaliparatomarcontadeumpedaçodeterra,maspararetomarumcondado.Desceuumapequenacolinaejuntou-seaogrossodoexércitoeacentenasdecavaleirosprontosparadefenderseuImpério.
–Estánahora!–gritou,desembainhandoaespada.Pertodaplanície, a infantaria aguentavamaisuma saraivadade flechasquando,de súbito,o
chãocomeçoua tremer.Orugidofoicrescendocomosealgoseaproximasse.Oscapitãesagiramimediatamente, berrando ordens. Os soldados, reagrupando-se em perfeita sincronia, formaramlargas fileiras.E, surgindodacolinaatrásdeles, a cavalariadesabaloupelasalamedasmargeadasporsoldadosapé.
Namataaosopédasmontanhas,poucosconheciamaartedaguerra.Alguns tinhamservidoao Império, outros haviam se destacado como mercenários, mas a maioria não passava decamponesesoumodestosartesãosdascidadesdasredondezasealgunsburguesesseduzidospelaideiade“mudança”.Aoouviremaqueleestrondo,ocoraçãodelesbateumaisforte.Aoverapoeiracrescente, alguns sentiram um aperto no peito. Ocultos pelas nuvens de poeira erguidas pelacavalaria,ossoldadosdoImpérioavançavam.Assimquerompesseaslinhasinimigas,ainfantariaimperial abriria suas defesas. Embora alguns covardes fugissem, abandonando armasimprovisadas eopoucoorgulhoque tinham,amaioria se resignouamorrer ali, emVershã.Eleslutavam por uma nova visão de mundo. As mãos se agarraram nas lanças, nos punhos dasespadas, nos cabos dasmaças, como se fossem seu último recurso antes da queda. E, por contaprópria,semqueninguémordenasse,lançaram-sedeencontroaosatacantesemmeioàconfusão.Oferrogolpeouacarne,pontasafiadasrasgandoapele.Acavalariarompeuas linhas,oscorposvoaram...efez-seocaosnolimitedafloresta.Osqueficaramparatrásnãoperderamporesperar.
Surgindodamontanha,ossoldadosdeAzdekiatacaram.Os insurgentes já não tinham nada a perder. Não podiam baixar as armas, haviamuito em
jogo. Queriam transformar uma simples revolta numa autêntica revolução. De pé, resistiam. Dejoelhos,aguentavamfirme.Nochão,aindalutavam.Nadaosfariadesistir,nadaanãoseramorte.
Dun-Cadal alcançara a floresta. Com o braço armado açoitava o ar, talhando, cortando.Atéqueumalançaatingiuopescoçodeseucavalo.Oanimalrelinchoue,comaspatascedendo,jogouo general ao chão.Ohomem se levantou rapidamente, aparandoumgolpe emais outro comodorsodaespada.Comamãolivrerechaçouoadversáriosemencostarumdedonele.Oinsurgentefoiprojetadonoar, chocando-seemseguidacomo troncodeumaárvoree fazendoumbarulhotremendo.Apoucospassosdali,umrapazsedetevederepente. JáviraseumentorusaroSopro,tinhainclusiveaprendidoasprimeirasnoções,masparaeleerasemprecomoumchamado.
Dun-Cadal bem que desconfiava, de modo que, em pleno combate, procurava vigiá-lo desoslaio. Viu Rã dar um passo para o lado, esquivando-se da ponta de uma lança. Um homemgrisalhoarqueavaascostas,espantadopornãoteratingidooalvo.Oaprendizcortouoarcomsualâminaeacravounoombrodohomem,quesoltouumurroantesdecaircomumacareta.Poucotempoantes,ogarotopodiaterseimpressionado.Nocalordaação,porém,aprenderaaesquecertoda e qualquer humanidade. Seus gestos tinham se tornado mecânicos, simples respostas aosataques, esquivas e estocadas repetidamente ensaiadas. Quanto a isso, Dun-Cadal estavasossegado.Ogarotosabiasedefender.Quandodoishomensselançaramemcimadele,nãotevenenhuma dificuldade em reagir, sem qualquer tipo de remorso. Era ele ou eles. As espadasgolpearam a dele.O garoto se inclinou,mergulhou a lâmina no ventre de um dos oponentes eentão, girando, esquivou-se do ataque do outro. Derrubou-o com um pontapé nas costelas. Oinfeliz viu a espada se afundar em seu corpo. A lâmina transpassou seu torso com um ruídoestranho,pungente.
–Rã!Nãoseafaste!Dun-Cadal também estava lutando firme. Rechaçando energicamente sucessivas investidas,
ainda assim permanecia de olho em seu aprendiz. Embora se preocupando mais de uma vez,sentia-se mais tranquilo ao ver a desenvoltura do garoto com a espada. Rã não só reproduziaaquiloqueele lheensinaracomo,nãosatisfeitoembeiraraperfeiçãoemcadaumdeseusgestos,improvisavasemnenhumacerimônia.Todaasuaraivaexplodianocampodebatalhae,aindaquepudesseatrapalhá-lo,conferiaaosseusmovimentosumaprecisãodignadosmaioresesgrimistas.Umúnicogolpelhebastavaparaderrubarumoponente,eeracomigualdestrezaquelidavacomoseguinte.
–Nãoestoumeafastando–queixou-se,repelindoumhomemcomumacotovelada.Dessavezeraumsoldado,provavelmenteumantigomercenáriodoNorte,ajulgarporsuacota
demalhaeseucapacetedepontas.Masafirmezadogarotonãobastaria,poisoutrosmercenáriosjávinhamemseuauxílio,correndoentreasárvores,pesadamentearmados.
Ogeneralprecisouselivrardedoisinsurgentes,maishabituadosamexercomaterradoqueacombater,comodemonstravaotremordeseusbraçosacadagolpequedesferiam.Eleaparouumalançacomaespadaedeuumsoconorostodeumdeles.Ohomem,atordoado,caiudejoelhos,os
olhossemicerrados.Então,comummovimentodopulso,Dun-Cadalfeza lâminarodopiarantesdeatacareperfuraramãodooutro.Urrandodedor,ocamponêslargouaarmaefugiu.
Rã, por sua vez, resistia como podia ao ataque de quatromercenários, hábeis e precisos comsuas armas. Dois deles usavam uma clava de pontas e por pouco não partiam a espada a cadagolpe.Rãentãotentouoimpensável.
Seumentorcompreendeuimediatamentequandooviudeolhosfechados,recuandoumpasso.Deviaestartentandoacalmarocoraçãodisparado,respiraresentiromundoemredor...parausaro Sopro.No entanto, até então elemal conseguiramover um pote de barro e só esse esforço odeixara esgotado, à beira do desmaio. Como podia se achar capaz de dominar uma força comoaquela?Rãesquivou-sedapontadeumaespadagirandoocorpoeparou,dejoelhos,comumadasmãosestendidanadireçãodosquatroinimigos.
–Rã!Não,não,não!–bradouDun-Cadal,correndonadireçãodomenino.O generalmoveu a lâmina no ar para abrir caminho.O garoto reprimia uma careta, o peito
agitadoporsobressaltos.Estavaaguentandofirme.Estava...Nãoviuchegarogolpe.Umaclavabateunopulsodogaroto.Suaespadavooupelosaresesecravounosoloaalguns
metrosdali.Adornobraçodesarmadoarrancou-lheumgrito,atéqueumreflexoofezinclinar-separatrás,seesquivandoporpoucodeumalâmina.Ogume,zunindo,roçouapontadeseunariz.Eleentãorolounotapetedefolhasdaflorestaesepôsnovamentedejoelhos.
–Rã!–gritavaDun-Cadalàssuascostas.O general jamais chegaria a tempo, a menos que usasse o Sopro. Mesmo assim, será que
conseguiria? Seus pulmões ardiam; mais um esforço tão rápido com certeza o mataria. Só lherestavaomaistrivialdosmétodosdecombate.Dun-Cadalpassouamãonumaespadaqueestavaporalifincadanosoloe,comumalâminaemcadamão,abriucaminhoentreoscombatentes.Osinsurgentesaoseuredorcomeçavamasedispersar.AstropasdeAzdekiestavamchegando.
– Seus cachorros! – bradava ele, correndo, cortando o ar com suas armas, partindo aomeio,rechaçandoosinfelizesqueviapelafrente.–Safados,imundos!
Apoucosmetros,tendoporúnicadefesaumaarmaduraleveeamassada,Rãjánãosemexia.Havia quatro soldados prestes a se lançar sobre ele. O garoto pulou para o lado, evitando oprimeirogolpe.Masosoutrostrêsatacantesmanejavamtãobemsuasarmasqueelenãoteriaumasegundachance.Umaclavaeduasespadasvoaramemsuadireção.Impotente,julgouterchegadosuahora.Nãoouviu o ruídodos cascosno chão batido, como tambémnãopercebeu a chegadarepentinadacavalariadeAzdeki.Apenasvislumbrouofiodeumalâminaseesgueirandoentreeleeosmercenários,detendo-osemsuacorrida,entãoderrubandoasespadasnumgestorápido.Ohomemqueseguravaaclavafoijogadonochãoporumaforçainvisível.
E,comoqueparaarremataraobradocavaleiro,surgiuDun-Cadalatrásdosdoisespadachinsecravou-lhesasarmasnascostas,enquantoderrubavaoterceiro,queselevantavameiozonzo,comumpontapénorosto.Ohomemcaiuparatrás,onarizensanguentado,osolhosrevirados.
– Um homem sem uma arma não é nada – disse uma voz. – Sua arma é tudo, inclusive adignidade.
A espada junto à coxa, a mão segurando o cabo com firmeza, o corpo ereto e orgulhosoconfortavelmenteacomodadonasela...aqueleolhardedesprezoeonarizaquilino.NãofoidifícilparaDun-Cadalreconhecê-lo.Deleitando-secomaprópriaarrogância,Azdekiexaminavaogarotocomumolhartorto.
– Seu mentor nunca lhe ensinou nada? Você talvez não tenha escolhido o mestre certo –declarou,antesdeesporearamontariaesairagalope.
PorpouconãoderrubouDun-Cadalaopassar.–Capitão!–vociferouogeneral.O cavaleiro, contudo, já desaparecia entre as árvores. Ao redor, os insurgentes fugiam.
RestavamapenasossoldadosdoImpérioe,esparsosentreasfolhassecas,abatidosjuntoàsraízessalientes,centenasdecorpos.Otumultodabatalhaiaaospoucosseacalmando.Pairavanamataumcheirodesangueesuor.Rãagorapodiaouvirosgalhosestalandosobospassosdogeneral.
–Oquefoiquevocêfez,seupeste?–esbravejouDun-Cadal.–Queméaquelehomem?–perguntouogarotocomigualveemência.–Noquevocêestavapensandoquandobaixouaguarda?–Onomedele...Qualéonomedele?–insistiuRã.–Mediga!Desafiador,orostofranzidoderaiva,avançouparaDun-Cadal.Amãodomentorodetevepelo
ombroantesqueRãdesseumpassoalémdaconta.–Acalme-se,imbecil!Acalme-se!–Queméele?–exaltou-seRã.–Azdeki!–respondeuDun-Cadal.–CapitãoÉtienneAzdeki,eemboramesejamuitodifícil...
Acalme-se,pelosdeuses!Ogarototentavapassar,masDun-Cadalquaseoagarravapelopescoçoparaimpedi-lo.–Rã!Rã,olheparamim!Aquele era, a seu ver, o pior defeito de seu discípulo. Queria ter enfrentado aqueles homens
sozinho, semninguémpara ajudar, emuitomenos para salvar sua vida. Tinha fracassado. Forahumilhado.
–Olheparamim,garoto–repetiuDun-Cadalemtommaissuave.–Acalme-se...Conseguiu, por fim, prender sua atenção.Ao redor, homens do Império acudiam os feridos.
Gemidossemisturavamaocantodospássaros,queaospoucosressurgia.–Está querendo calar a boca dele, não é? – perguntouDun-Cadal. –Pelos deuses, olhe para
mim!É issoquevocêquer?Eu tambémquero fazer isso,acredite,mas, sejaqual forosentimentoquedespertaemvocê,AzdekiéumcapitãodoImpério,é filhodeumadasmaisantigase ilustresfamíliasdacorte.Vocêlhedeverespeitoporisso.
–Cachorro...–resmungouRã.–Você lhedeve respeito!– insistiuDun-Cadal.–E,mesmoquemecustedizer isso, ele estava
certo.–...imundo...–continuouogaroto,baixandoosolhos.–Eleestavacerto,seucabeça-dura!Oquevocêestavatentandofazer?Mediga!Tentouusaro
Sopro?
OolhardeRãfaiscou,desafiandoogeneral.–Tentei–admitiu,comcaradepoucosamigos.–Vocênãoestápronto.–Euconsigo!–defendeu-seogaroto.Dun-Cadalosoltouderepentee,depoisdeumsilêncio,osemblantecontraído,recuoualguns
passossemtirarosolhosdele.–Issoéoquenósvamosver...–sussurrou.–Semdúvidaalguma.Desafiavam-secomoolhar.Dun-Cadalsevirousemdizermaisnada.OImpérioacabavaderetomarovaledeVershãeaestratégiaforaobrasua.Noacampamento,
houve festa ao redor das fogueiras. Alguns soldados foram despachados para a cidade maispróximaafimderestauraraordem,masamaioriapôdedesfrutardeumdescansobemmerecido.Dun-Cadal e Azdeki evitavam um ao outro. Era óbvio que o capitão se ressentia por ter sidoafastado do comando das Salinas. O castigo teria sido outro caso ficasse provado que tinhadeliberadamenteabandonadoogeneralnasgarrasdeumruargue.Masninguémconseguira–ouseatreveraa–afirmarissoaoimperador.Demodoque,entreosdoiscavaleiros,existiaumatréguaforçada.Osrancoresmútuosseriamumentraveparaobomandamentodaguerra.E,bem...pelomenosdessavez,Azdekinãofugira.
No dia seguinte, ao nascer do sol, os homens dormiam em suas tendas, junto às fogueirasextintas, espalhados por todos os lados, num sossego que mal era perturbado pelo pio dospássaros. Uma névoa matutina envolvia o acampamento silencioso. Deitado de lado, junto aocercadodoscavalos,braçosdobradosjuntoaopeito,Rãdormia.Sobressaltou-secomumpontapéemsuascostas.Viroubruscamenteacabeçacomumacareta.Umvultoimponenteseerguiadiantedele, envolto pela aurora numa estranha luz descorada, sem que ele conseguisse distinguir seurosto.
–Depé.LevoualgunssegundosparareconhecerDun-Cadal.–Oquefoi...?–resmungou,esfregandoosolhos.Aindaestavacomsono.–Levante-se–ordenouDun-Cadal.Ao ver a seriedade do rosto de seumentor, o garoto entendeu que nenhuma queixa o faria
mudardeideia,poisnãodisseramaisnada.Levantou-se,aspálpebrasaindapesadas,conformadoemnãodormirumpoucomais.
Dun-Cadalcomeçouacaminhar.Estremecendoao friodamanhã,Rãoseguiuacontragosto.Passaramentreastendas,serpenteandopelossoldadosadormecidos.Persistiaocheirodeálcooledecarnedeporcoassada.Ogarotoprendeuarespiração:aquelecheirolhedavanáuseas.Quando
chegaramaoslimitesdobosque,oarsefezmaisfresco,maisagradável.–Mestre?Silêncio.Embrenharam-senoescurodasárvores,osgalhossecosestalandosobseuspassos.Os
pássaros cantavam. Passado algum tempo, Dun-Cadal enfim se deteve e, de costas para seuaprendiz,pôs-searefletir.
–MestreDun-Cadal...?–OSopro–começouomestrecomvozabafada.–Oqueeulheensinei?Rã hesitou.O que o general esperava que ele dissesse?Depois de ser acordado daquele jeito,
nãoconseguiarespondercomdiscernimento,portantoquemfalavaerasuadecepção.–Poucacoisa...-queixou-se.–Poucacoisa?–repetiuogeneralcomumrisocontido.Entãoseviroueseusemblanteporum
momentopareceumaisrelaxado.Atéaseveridadevoltaracontrairsuasfeições.–Nãopergunteioquevocêacha.Pergunteioquevocêsabe.Então,oquefoiqueeulheensinei?
Rã, naquelamanhã, não conseguiu sustentar o olhar domestre. Lutava contra a vontade defecharosolhos,dedormir,deenfimdescansarsemcombate,semmedo,semnadadisso.Apenasfecharosolhosenãopensarmais.
–Tudorespira–respondeuporfim.–Oquê?–indagouogeneral,pondoumamãoatrásdaorelha.–Tudo está emmovimento, comouma respiração. Isso é o Sopro– explicouo garoto, como
quemrecitauma lição,edeuumpassopara trás,nadefensiva,quandoDun-Cadal seaproximoudesembainhandoaespada.
–Foisóissoquevocêdecorou...etemapretensãodeseacharcapazdeusaroSoprotãofácilassim.–Omentorsuspirou.–Muitobem.Medesarme.
–Como?–Medesarme!Afastouosbraços, convidando-oadara estocada.Umestranho sorrisopercorreu seus lábios
enquantoobservavaareaçãodoaprendiz.Ogaroto tremia.Seriaporcausado friodamanhãoudaangustianteperspectivadeenfrentá-loemumduelo?Poucoimportava,naverdade.Dun-Cadalsabiamuitobemoquefazer.QuandoRãlevouamãoaopunhodaespada,seusorrisocongelou.
–Semaespada–ordenou.–Osenhorestálouco?Nãovou...–Medesarmesemaespada.JáquesabeusaroSopro,vamoslá,surpreenda-me.Emboranãodeixassetransparecer,Dun-Cadalexultava.Àsuafrente,orapaznãosabiaoque
fazer.Hesitava,perdido,bemdiferentedoarrogantequeoenfrentaranodiaanterior.–Estouesperando–murmurouDun-Cadal.Rãestendeuobraço,comamãoabertanadireçãodomestre.Eogeneralaguardou.Viucomo
ele aos poucos se retesava, os músculos do braço se contraindo a ponto de vibrarem feito umpedaçodemadeira,masnadaaconteceu.
–VocênãosabeoqueéoSopro–concluiu,embainhandosecamenteaespada.Ogarotobaixouobraçoeosolhos,mortificado.Todaasua iravoltavaaborbulhar,prestesa
explodir. Uma raiva cujo únicomotivo era a sua evidente derrota. Dun-Cadal estava certo. Nãoesboçounemumgestoquandoogeneralparoujuntodele,encarando-oduramente.
–OSoproétransmitidodecavaleiroparacavaleiro,nãoéumdom.Éparaquemsabeentenderamaneiradeusá-lo.Entãoaprenda.Sintaascoisas,Rã.Vocênãoprecisaabrirosolhosparavê-las.Bastasaberqueelasexistemàsuavolta.Senti-lasvivas...
O garoto, no entanto, virou a cabeça como se não quisesse escutar. Seu orgulho beirava ainsolência.
–Fecheosolhos!–bradouogeneral.Nãoprecisourepetir.Eletalvezfosseinsolente,masnãoera estúpido. – Muito bem... Agora – disse, com a voz repentinamente mais mansa – procureescutaro somdovento... Siga-opelas árvores...Voe comele...Escuteospássaros... não, o cantonão... –Pôs amãonoombrodeRã e se inclinou junto ao seuouvido.– ... obatimentode seuscorações...
OsemblantedeRãrelaxou,suarespiraçãoficoumaiscalma,maisvagarosa.–Aterra...omundointeiroécomooarindoevindo.OSopro...arespiraçãodomundo.Todo
mundo pode ouvi-la... mas sentir, controlar? Já é mais difícil... É preciso estar atento... seconcentrar...SintaoSopro,sejaoSopro.
O peito do garoto agora semoviamais depressa.Quando viu que ele franzia o cenho,Dun-Cadalsoubequeotinhaconduzidoaondequeria.Oritmodesuaspalavraseatranquilidadedavozohipnotizavam.
–SintaoSopro,sejaoSopro–prosseguiudevagar.–Sinta,Rã!Respirecomoavida.Respirenoseuritmo.Aíéqueestáamagia.NesseSoproquevocêexala.Écomomúsica tocando,Rã...Nãobasta escutar. Sinta... legato... staccato... Imagine, visualize a árvore ali na nossa frente... Estáimaginando?
Jánãohaviaraiva,ofensa, tensão.Rã,aoseu lado,seaprumavaconfiante.Dun-Cadaldeixoupassarumtempoantesdeelevaravoz:
–SintaoSopro,Rã...eataque!Nummovimentosúbito,ogarotoesticouobraçoe,nisso,sobreveioumsomigualaogritodo
ventona tempestade.As folhas secas se ergueramnum turbilhão, um sulco se abriu até o pé daárvore com incrível rapidez. A casca voou sobre as raízes protuberantes, então se grudou unscentímetrosacimacomumestalidosemelhanteaogemidodeummoribundo.
Só então Rã abriu os olhos.O general estava preparado, asmãos nos ombros do garoto. Jápassarapor isso, conheciaadorque se segueaoprimeiroautênticousodoSopro.Quandooviuabrir bem a boca, a respiração entrecortada, recordou a ardência no peito, osmúsculos que, derepente, pesavam feito chumbo. Rã foi se inclinando, cedendo ao próprio peso. Seu mentor oamparoueajudou-oaseajoelhar.
–Calma...calma...calma,menino–murmurava,apertando-ojuntoaopeito.Eu...euprometo...Eo garoto tossiu, com tanta força, tanta energia, queparecia literalmente estar botando, aos
prantos,ospulmõesparafora.Rã...
–OSopro,Rã... seaprende...Entendeuagora?Umdiavocêvaisaberusá-lo.Euprometo.Emtroca,prometaparamimquenuncamaisvaitentarumaloucuracomoessadeontem.
...aindaestádormindo,nãopodeacordá-lo.Comocorposobressaltado,pigarreandocomforçaparaarejarosbrônquios,Rãassentiu.Aindaestádormindo!–Eu...eu...euprometo–conseguiuarticular,entredoisacessosdetosse.Acorde-o.
–Eleaindaestádormindo.–Acorde-o,precisofalarcomele.Emboraasvozesfossemabafadas,conseguiaentenderclaramentecadapalavrapronunciada.–Peçoqueseretire–aconselhouumavoz.–Nãopretendoiremborasemantesfalarcomele–respondeuoutravoz,comigualenergia.Veio a luz, finalmente. Aos poucos, suas pálpebras começaram a se mover, os olhos
embaciados.Acimadele, os ornamentos desbotados do teto se embalavamnum estranho clarãodourado.Tentouviraracabeça,maspareciahaverumabigornaalojadaemseucrânio,aspontasbatendoemsuastêmporasaomenormovimentomaisbrusco.Fazendoumacareta,endireitou-sena cama. A casa de Mildrel. Estava de volta à casa de Mildrel. As imagens do dia anteriorcomeçavama lhevoltar àmente. Seguroua cabeça comasmãos, amaldiçoandoa simesmoporainda estar vivo.Comoquerianãoacordar, jánão sermaisque esquecimento,nemmesmoumasombra,nadaalémdeumvazio.
–Asenhoranãoestáentendendo!Éimportante!Eraumavozjovembastantedeterminada.–Vocênãoébem-vindaaqui,fuçandoopassadodaspessoas.Não foi difícil reconhecerMildrel. As duas vozes vinham de trás da porta fechada do quarto.
Através das cortinas cerradas, os raios de sol, já bem fortes, vinham se dissipar junto à paredeopostaàjanela.Nocômodoaolado,MildreleVioladiscutiam.Obviamente,tudoopunhaasduasmulheres. Uma cortesã que passara a vida seduzindo para galgar os degraus da alta sociedadepareciatermuitopoucoemcomumcomumajovemrepublicana.
–Deixe-oempaz...Não era uma ordem; na verdade, era uma súplica. Sentando-se numa poltrona com braços
revestidosdeumadouraduradesbotadapelotempo,Mildrelsuspirou.–ÉEraedquevocêquer,nãoé?–Sim,foiporissoqueprocureiDun-Cadal–respondeuViola.–ElefugiudeÉmeriscomela.E
essaespadafazpartedahistóriadestemundo,minhasenhora.Juntoàportadasaleta,Violaestavadepé,mãosunidasàfrentedocorpo.Mesmoelevandoo
tomparasefazerouvir,aomencionaraespadapareciavoltaraserumamenininhatímida.
–Eraedfoiforjadaparaosreisdestemundo.Háquemdigaqueelaémágica,capazdequebrarasmaisdurasrochas,defurarapeledosmaioresdragões...
Calou-se por um instante, ajeitando uma mecha ruiva atrás da orelha. Pelas lentes de seusóculosredondosbrilhavaolampejodeumdevaneio.
–Oquequerqueestejapensando,minhasenhora,oquemetrouxeaquifoialgobemdiferente–concluiu.
–Elenãotemnadaavercomoassassinatodoconselheiro–garantiuMildrel,antecipando-seàacusaçãoquetemia.
Violameneouacabeça.–Euseidisso.Estavacomelequandomataramoconselheiro.Maseleconheceoassassino.Se ficou surpresa com a informação, Mildrel não demonstrou. Aprendera a disfarçar suas
emoções.Umacortesãtinhaqueserboaatrizparaarrancarcertossegredose,maisqueisso,fingirquenãoosconhecia.
–Tenhocerteza.Elemencionoua...MãodoImperador.Mildrel baixou o olhar. A luz do sol que entrava pela janela atrás dela aclarava seus ombros
nus.Emsuanuca,caíamdelicadasmechascacheadas.QuandoViolaavirapelaprimeiravez,eranoite.Aochegar,naquelamanhã,tevetempodeobservá-lamelhor.Entendiaoquetinhamlheditosobreela:umaflorqueo tempocustavaamurchar... Já imaginavaqueMildrel iasecolocarentreelaeDun-Cadal.Estavaatépreparada.
– Você acha que pode tudo só porque nós servimos ao imperador Reyes, não é? – indagouMildrel em tom ácido. – Você, com seus estudos, sua História, seus oculozinhos redondos, suajuventudeloucaearrogante,vemfuçarnopassadodaspessoas,cutucarasferidasmaisprofundaspara atingir seu objetivo... A liberdade que essa sua República lhe dá é a liberdade de julgar osoutros.Sóisso...–Numgestonervoso,espanouovestidoantesdeselevantar.–Nãovoupedirdenovo. Saia da minha casa. É um lugar que acolhe muitos cavalheiros de Massália. Alguns medevem favores e não hesitariam em cuidar de você... dentro domais absoluto respeito por essaRepúblicaquevocêtantoaprecia.
Passaraparaasameaçaspoucoveladas.Violasentiusuasmãosseumedeceremàideiadequepudesse lhe acontecer algo doloroso. Só precisava cuidar de Dun-Cadal até que ele,espontaneamente,alevasseatéEraed.
–Senhora,éumaquestãodevidaoumorte...–ParaogeneralDun-Cadal?Duvido.Paravocê,certamente.–Precisofalarcomele.– Basta eu enviar umamissiva ao chefe da guarda deMassália – avisouMildrel, unindo as
mãos.–Nãovaifazernadadisso–interveioumavozrouca,quaseinaudível.Aportadoquarto fora aberta semelasperceberem.Dun-Cadal estreitavaosolhos,umamão
apoiadanobatenteparamantero equilíbrio.Deuumpasso incerto, fazendoumacareta.Aqueladordecabeçanãoquerialhedartrégua.Haviabebidoquaseodiainteiro.Pigarreouparaclarearavoz.
–Nãovai fazernadadisso– repetiu–porquenãopode, e sabedisso.Quemvemvisitar suasmeninasnãosãoosburguesesdaRepública,sãoosmarinheirosdepassagem...
–Caleaboca!–indignou-seMildrel.Dun-CadalnãoseimportavadereduzirapótodooesforçodeMildrelparaprotegê-lo.Osdois
viviamnopassadoeviamofuturocomouminimigo.–Pormaisque tenteassustaramoça,achoquenãovai conseguir.Elaestádeterminada,não
está?Virou-separaViola,queassentiucomumbrevemovimentodacabeça.–OsenhorontemmencionouumtaldeNégus–disseViolasemesperar.–Umamigoseu.–Sim–respondeuDun-Cadal,lacônico.–Umconselheiro–acrescentouela.Oolhardovelhogeneral seperdeunovazio. Suagarganta estava seca.Négus tambémhavia
traídoaquiloquepassaraanosdefendendo.SeuvelhoamigoNégus...Adordecabeçaficoumaisforteeelepôsapalmadamãoúmidanatesta.
–Néguschegou,estáemMassália.–Edaí?–Elesuspirou.–Podealertarseuamigo.Eulevoosenhoratélá,elevaiouvi-lo–explicouViola.Será?Seráqueaindaeramamigos,depoisdetantotempo?Ogeneralolhouparaajovem.Era
tão determinada... Havia em seus olhos uma luz parecida com a que ele observara num certogaroto,muitotempoantes.
–Vaicontinuarsendoumfantasmapelorestodavida?–murmurouViola.–Ouvaiagircomoagiriaumverdadeiro...general?
Ele parecia tão frágil, com aqueles olhos vermelhos e aquela pele esverdeada! Duvidava queconseguisse despertar dentro dele algo que parecia estar mais morto que adormecido. Mas elaprecisavatentar.
–Comquedireitovocê...?–exaltou-seacortesã.–Mildrel–interrompeuDun-Cadal.Disseraseunomenumsussurro.Apenasolhouparaela.Umolhartriste.Tudoaquilonãoera
por acaso: a chegada de Viola, Eraed, suas lembranças mais vivas do que nunca... a Mão doImperador.Algopoderosoestavaemcurso...odivino?
–Meespereláembaixo–pediuaViola.Quando o som dos passos dela na escada se distanciou, o velho guerreiro, ainda titubeante,
atreveu-seaentrarnasala.–Vocênãodevia!–vociferouMildrel.–Nãodeviaoquê?Dizerquevocêestavainventandohistóriasparaassustá-la?–provocouele,e
entãoseapoiounumamesa,massageandoosolhoscomamãotrêmula.–Você,comotodosnós,fugiudeÉmerisedacorte!VemsobrevivendonumaRepúblicaque jánosesqueceu.Nenhumdoshomens que você corteja tempoder nestemundo.A única coisa que você ainda pensa controlarsoueu.Vocêjámeprotegeuosuficiente,minhacara.Essamoçatemrazão.Estácobertaderazão...– Ela o fitava com um olhar severo, em que ele gostaria de ver outra coisa além de censuras. –
Mildrel...–Eela?– indagoua cortesã comvoz trêmula.Umsorriso transformouseus lábiosvermelhos
emumalinha.–Oqueelatemqueasoutrasnãotêm?–Talvezsejaofatodequeelaprecisademim–sugeriuele.Foiatéaportacompassosmaisfirmes,entãosedeteve,comamãonamaçaneta.–NãoéaMãodoImperador–disseMildrel.–Esefosse?–rebateuDun-Cadal,fitandoafechadura,pensativo.–Vocêquervingá-lo,éisso?Dun-Cadal,vocênãoémaisum...– Um general? – Ele se voltou tão bruscamente que precisou se segurar na maçaneta. Um
sorrisoamargo franziu seu semblante.–Comoéquevocêmevê,Mildrel?Comoumdejeto?Umresquício?
–Nãofoioqueeuquisdizer...– Como? Como um pobre pinguço? É isso que eu sou, Mildrel, um bêbado! Passei tempo
demais afastadodomundo.Oque eu sei daRepública?Oque sei das pessoas que sobreviveramdepoisdoImpério?Se,antesdemorrer,eupuderfazeralgobom...nãoporumImpério,nãoporumaRepública,massóparasalvarvidas...Comofariaumcavaleiro.Umgeneral...
No olhar deMildrel, aureolado pelo sol forte deMassália, ele já não via nenhuma censura,nenhumairaoutristeza.Apenasafeto.
–Mediga,Mildrel.Medigacomovocêmevê–insistiuemvozdébil,antesdeacrescentar:–Éele mesmo, é Logrid, tenho certeza. Quer se vingar de todos que destruíram o Império, todosaquelesqueviraramacasaca.Sópodeserisso.–Abriuaporta.–Sintomuito.
–Porquê?–Porvocê.Porvocêepormim.Queironia...Eusempresoubedaramorte...–saiudocômodo
e,fechandoaportaaopassar,concluiucomvozrouca:–...masnuncasoubedaravida...
8
Kapernevic
Vejamos...VocêmeapelidoudePernalta,nãofoi?
Voulhedarotroco.
Jáquevocêparecegostardessesbichos...
Vaiser...
Rã...
Vouchamá-lodeRã...
Cadapassoeraumesforço,cadamovimentoreavivavaadordentrodesuacabeça,queeraigualaoestrondodeumaviolentabatalhacujoecocustavaasumir.Caminhavafazendoopossívelparamanteradignidade,masseuequilíbrioeratãoprecárioquetinhaqueandarrenteàsparedesparaseapoiardevezemquando.
–Achaqueconsegue?–perguntouViola.Naruarepletadevidaeruídos,elapareciaumfarol,luminosa,tranquila...seurostotãosuave,
emolduradoporduasmechasonduladasdeumvermelhoflamejanteafagandoasfaces.Eocheirodelavandaquepairavaaoseuredoroapaziguava.OsmurosclarosdeMassália,refletindoacrualuzdosol,eramcomoumatortura.Eleestreitavaosolhos,resmungando:
–Estátudobem...tudobem...–Faltapouco–disseelaparaencorajá-lo.Ele se apoiounuma fachada, lívido,praguejandocontra seuvício.Precisava terbebido tanto?
Veio-lheàmenteaimagemdeumcaneco,comosetomá-lofosseasoluçãoparasuador.Baixouoolhar.Suamãodireitatremia...
–Abramalas!Abramalas!–bradouumavoz.Ostranseuntesseafastaramdiantedeumatropadeguardas.Deviaseraquartaquecruzavam
desde a mansão de Mildrel. Marchavam todos no mesmo ritmo, os pés batendo no chãolamacento, as pontas das lanças brilhando acima dos capacetes. Nunca haviam sido usadas.
Aquelessoldadosdecertonuncatinhamestadoemcombate,masavançavaminfladosdeorgulho...Patético,pensou.
–ÉporcausadoassassinatodomarquêsdeEnain-Cassart–explicouViola.–Desdeontemàtardeestãovasculhandoacidade.
–Ah,é?–Dun-Cadalrespiroufundo.–Boasorteparaeles...Passaramem frente auma igreja antiga,deportas abertas, emcujopatamar encontravam-se
quatrohomensusandobaetapreta,ascabeçasraspadas.Àsombradocampanário,recitavamemcoropalavrassagradas,umlivroabertonasmãos.Dun-CadalreconheceualgunstrechosdoLiaberMoralis, um dos pilares da Ordem de Fangol. Deteve-se, pensativo. Quantas vezes escutara ossermões dos monges? Será que ainda lembrava o que era certo ou errado? Estavam quasecantando, cheios de fervor, atraindo grupos de curiosos.Houve uma época em que centenas depessoasassistiamàsmissas.A févinhaseperdendo,enquantooutrasreligiõesse instauravam.Adosnâagas,queveneravamas serpentes,voltaraa ser tolerada.Adas ilhasSúdias,quenomeavaseusdeuses,erarespeitadae,pior,corriamboatossobreum“filhodaságuas”,ummessias,queumdiaviriapurificaraTerra.Dun-CadalcresceraàsombradoLiaberDest,noqualestavaregistradoodestinoimutáveldoshomens.TinhaaprendidoadistinguirocertodoerradonoLiaberMoraliseorespeito aos deuses noLiaberDeis... Será que a República dava ouvidos àOrdemde Fangol emÉmerisou jáseesqueceradequantoosmonges tinhamtrabalhadoparaconstruirumasociedadejusta?
–Temosquenosapressar,Dun-Cadal–disseViola.Recomeçou a andar, o capuz batendo nos ombros. Por toda parte, nas ruas e nas praças,
observava-seumasurpreendentemisturaqueoImpériojamaisteriatolerado.Ospobrescruzavamcomosricos,osnâagasandavamsemouvircomentários, senhorascomlindosvestidoscoloridosestendiam a mão para jovens burgueses bem penteados. Mesmo que não trocassem mais queumas poucas palavras, todos tinham a liberdade de se falar, se elogiar ou, no pior dos casos, sexingar.Aordemderalugaraumcaosindescritível,imersonumaincessantealgazarradeidiomas,de odores ora agradáveis, ora repulsivos. Quer dizer que era naquele barro molenga que aRepúblicapretendiafundarseusalicerces,bemlongedoduroefirmecimentodoImpério?
–Entãoéissoqueésua...República!–exclamouDun-Cadal,abocafranzidaemumaexpressãodenojo.
Essamistura, essedesprezopelosmongesdaOrdemdeFangol, esse esquecimento...Por issoelefecharaosolhosportantotempo.Aquele,defato,jánãoeraoseumundo.
–Éaqui–disseViola,semsedignarareagiraocomentário.Estavamnumagrandepraçacercadadeconstruções imponentes.No frontãodeumadelasse
destacavam cabeças de lobo com as mandíbulas à mostra. A fachada do edifício ilustrava aostentação típicadoperíododos reisCaglieres, facilmentecomparáveis aosmais ferozesanimais,andando sempre emmatilhas. Durante três séculos, pouco antes do advento dos Reyes, tinhamexercido uma política de conquista, invadindo reino após reino até as longínquas ilhas Súdias.EstabeleciamasraízesdoImpério,atéqueumdelesodeclarassecomotal: foioúnicodadinastiaCagliereausarotítulodeimperador.Oúltimolobomorreusolitário.
Umaamplaescadariaconduziaaosportões,vigiadosporquatroalabardeirospoucoinclinadosaconversa.Semesperar,Dun-Cadalpassouàfrentedamoça.
–Oque...Ei!–exclamouela.Seus passos, apesar do cansaço, eram rápidos e decididos. A dor de cabeça se atenuava. Ele
parouderepente,fitando-aporsobreoombro.–VocêqueriaqueeumeencontrassecomNégus,não?–Elesnãovãodeixá-loentrar–respondeuajovem,correndoatrásdele.Tinharazão.Négusforaseuamigomaispróximo...Seráqueaindaera,agoraqueserviaàqueles
contraquemtinhamlutadojuntos?Malpôsopénopatamar,asalabardasbaixaramàsuafrentecomumestalidoseco.
–Viemos falar como conselheiroNégus– interveio imediatamenteViola comvoz trêmula. –Queremospedirumaaudiência.
–Asvisitasestãoproibidas–respondeusecamenteumdosguardas.Desdeoassassinato,asordenseramclaras.Ninguémdeveriaseaproximardosconselheirosda
República antes da grandeNoite dasMáscaras.Viola, comasmãos levantadas, se colocou entreDun-Cadaleasalabardas.
–Porfavor,perdoemmeuamigoporessaaproximaçãobrutal,mas...– Diga a Négus que um velho amigo quer vê-lo – interrompeu Dun-Cadal. – Anunciem o
homem que ele pensou ter morrido nas Salinas. – Então acrescentou, vendo a resistência dosguardas:–Elevaientender.
Comum gesto, convidou-os a abrirem os portões. Após um breve instante de hesitação, umdelesentrounoprédio,retornandounsbonsdezminutosdepois.Semdizernada,oguardaosfezentrareconduziuogeneraleViolaaumgrandesalãocomvastasjanelascoloridasdevermelhoedourado.Aopassaremporelas,osoldesenhavacuriosasteiasoblíquasnos ladrilhosacobreados.Duas fileirasde colunas se erguiamcomoumcorredordehonraatéopédeduas escadariasqueemolduravamumalargaportadecarvalho.
– Aguardem aqui – ordenou o guarda, indicando uma série de bancos dispostos abaixo dasjanelas.–OconselheiroNégusvairecebê-losemalgunsinstantes.
Quatro soldados desceram as escadas com passos cadenciados e se posicionaram em ladosopostosdaporta,amãonopunhodaespada.Nãoseriaprecauçãodemaisapenasparaelesdois?Umidosodeolhoscansadoseumamoçadeolharinocenteprotegidoporóculosfrágeis?Violafoicalmamente se sentar num dos bancos. Sua tranquilidade era fingida, Dun-Cadal percebia issomuito bem. De vez em quando, ela cerrava os punhos junto às coxas, como se para aplacar aapreensão.Eleseaproximoudela,recostando-senumacolunacomosbraçoscruzados.
–Comoestásuacabeça?–indagouViola.– Vaimelhorar – respondeu ele, erguendo os olhos para as grandes vidraças atrás dela. – A
coloraçãodasjanelasconferiaàluzdosolumbrilhodourado.–Seráque...andeifalandodemais?–inquietou-seemvozbaixa,comardistante.
Ogeneral enfrentou seuolhar, ansiosopor ver a resposta antesmesmode eladizer qualquercoisa.
–Nãotantoquantoeugostaria–respondeuelacomumlevesorriso.–SeestácommedodetermecontadoparaondelevouEraed,possogarantirquenemtocounonomedaespada.OsenhorfalouemRã.FalounabatalhaaopédeVershã.
Eleassentiu,pensativo.–Gostadele,nãoé?Dun-Cadalsemanteveimóvel,osolhossemicerrados.–DeRã–explicouViola.–Oqueaconteceucomele?AHistórianãoomenciona.Osenhor,no
entanto,aparentementeoconsideraumgrandecavaleiro.Orostodeleendureceu.–NãobastaconstarnoslivrosdeHistóriaparaterexistido–indignou-se.–Nãofoioqueeuquisdizer–defendeu-seela.–Edaí?Vocênãosabenadasobreele.Dun-Cadalseafastoudacoluna,prestesavirparacimadela.Sentadanobanco,Violarecuou
até a parede num gesto de pânico. Ele se inclinou na direção dela, o hálito ainda tomado peloálcool.
–Nada–repetiuelenumsussurro.–Nãosabenada.Eleeraomelhordentrenós,omaispuro.Osmongesdeviam ter escrito suas façanhas.Teria sidoomaior se...Teria... –Paroude súbito,oolhar vidrado, enevoado, então se endireitou, apertando o cinturão com as mãos. – O Impérioaindaexistiria.Eleoteriadefendidosozinho.Nomeutempo,eleeramuitoconhecido,sabe...masimaginoque,sobaRepública,nãosejadebom-tomlembrardisso.Eleeraconhecidoerespeitado.VocêjáouviufalarnodragãodeKapernevic?
–Oúltimodragãovermelho?–Dun-Cadalassentiu,desviandooolhar.–OmaiordragãodoNorte–explicouViola,comoquemrecitaumalição.–Duranteanoseleaterrorizouaregião,até...
– ... até chegarmos lá – reconheceu Dun-Cadal. – Os dragões, em suamaioria, são animaisestúpidosquemuitasvezesseassustamcomameraaproximaçãohumana.É fácilenganá-los.Àsvezes, até se esquecem de voar, para você ter uma ideia. Já os dragões vermelhos... Esses sãograndes, raros... e extremamente violentos. Estávamos em Kapernevic. Estávamos lá. Négustambém.Foiaúltimavezqueovi.
Ouviram, ao longe, uma porta rangendo. Os dois se viraram para a extremidade do salão eavistaramumhomembaixoeroliçoqueusavaumalongaelargatogabrancaeumpanoverdeedouradonoombro.Trocouumaspalavrascomosguardaseprocuroucomoolharaspessoasquepediamparavê-lo.
–E...?–indagouViolanumsussurro.–SenãoexistemaisdragãovermelhoemKapernevic,égraçasaRã.Apenasaele–murmurou
omilitar,semmaisexplicações.Num gesto brusco, contornou a coluna e foi ao encontro do homem baixo e roliço. Viola
levantou-seeoseguiu,asmãossuadas.–Négus!–bradouDun-Cadalemtompoucoamigável.–ConselheiroNégus–corrigiuohomem,vindoemsuadireção.–ParamimvocêsempreseráAnselmeNagoléEgos,vulgoNégus.
Osdoishomensficaramfrenteafrente.EmboraDun-Cadal,pelomenosdoispalmosmaisalto,o olhasse de cima, o homenzinho não parecia nada intimidado. Encarava-o com arrogância,confiante, umbraçodobrado sobre a barriga, o polegar esfregando a palmadamãonumgestolento.
EmKapernevic.Foiaúltimavezqueovi.– Faz tanto tempo– observouo conselheiro, semdemonstrar qualquer emoção. –Meu velho
amigo...Ficaram olhando um para o outro sem dizer mais nada. E as feições marcadas de seus
semblantesforamrelaxandoàmedidaqueumsorrisoemocionadosedesenhavaemseuslábios.EmKapernevic.–Tempodemais–murmurouNégus,oferecendoamão.Dun-Cadalolhouparaamãoestendida.Eofereceu-lheasua.Kapernevic...... amão com dedos vermelhos, o sangue espesso correndo em suas veias para enfrentar o frio
fulminantedaregião.
Afastouumramoparaapreciarmelhorapaisagemláembaixo,umvalecobertodepinheiroseatravessado por um rio congelado. Entre a ramagem desenhavam-se os telhados de colmo daaldeia deKapernevic e suas torres de vigia demadeira.Quando soltouo ramo, este estalou feitochicote,espalhandoaoredorapenugembrancaquecobriaseusespinhos.Orangidodanevesobseuspassosnãoperturbouogarotoatrásdele.
–Nãoachaquejáchega?–reclamouDun-Cadal.Próximo aos cavalos presos ao tronco de um pinheiro, Rã balançava devagar, jogando os
braços à frente ao expirar.Um sulco imediatamente se abriuno chão, indo atéumpinheiro.Emtodaparada,todoacampamento,todomomentoociosoeleseexercitava,sempouparesforços.Aospoucos,foraaprendendoausaroSoprosemsofrimento,eseseuspulmõesaindalatejavamdepoisdecadatentativa,adorjásetornarasuportável.
Os dois vestiam amplas capas pretas guarnecidas de pele, botas pretas acolchoadas queprotegiamospésdofriodoNorte.
Três anos tinham se passado desde as Salinas. A guerra prosseguia, encadeando vitórias ederrotas, dando-lhes pouca trégua. Voltaram três vezes a Émeris. Três vezes Rã não conseguiraencontraroimperador.Contudo,emboraogarotonãopudesseconfirmar,Dun-Cadalnãodeixarade tecer elogios a seu aprendiz. Asham Ivani Reyes acompanhava com interesse a evolução dojovem, chegando a levantar a hipótese de que em breve seria consagrado cavaleiro. Um órfãotornar-secavaleirojáera,porsisó,algobemraro,masoimperadordignar-seaestarpresenteemseu juramento beirava a esfera do impossível. Apenas alguns poucos nobres haviam tido essa
honra; o último fora Étienne Azdeki. O general nunca tinha lhe dito, certamente por pudor, ouparapreservarsuaauradementor,queseorgulhavamuitodele.Nenhumdiasepassavasemeleseexercitar até quase cair desmaiado. Rã não mencionava a dor. Não deixava o sofrimentotransparecer. Fazia questão de esperar até seu mestre dormir, ou se ausentar, para testar seuslimiteseampliá-losmaisemais.Porpudor,decerto...
–Parecomisso–ordenouDun-Cadal.–Ummeninocomovocêsóvaiacabarsemachucando.–Ummenino como eu seria capaz de derrubá-lo, Pernalta. –Rã sorriu,mexendoos ombros
pararelaxar.Massageou o ombro direito e fez uma careta, então tratou de soltar asmontarias. Seu rosto
estava mais seco, seumaxilar, mais quadrado, as feições, mais finas. Pouco a pouco, o homemcomeçavaasurgir.Umcavanhaqueincipientecontornavaseuslábios.Achandograça,Dun-Cadalpensouque,umdiadesses,seriabomlheensinarasebarbeardireito.
–Émesmo?Eunãoapostarianissosefossevocê.–Nãoébemassim.Porque,senãofosseeu,osenhorteriaalgunsanosamenos.Quemfoique
lutoucontraosruarguesnasSalinas?Osenhoréquenãofoi.Ficouládormindo,debaixodoseucavalo.
Dun-Cadalmeneou a cabeça, sorrindo, enquanto enfiava amãonumagrossa luvade couro.Apreciou o calor suave aquecendo seus dedos e segurou as rédeas do cavalo, pondo um pé noestribo.
–Rã,vocêestásendoatrevido.Atrevido.–Sóestoupondoempráticaoqueo senhormeensinou–defendeu-seogaroto, imitandoo
mentor.–Nãolheensineiaseratrevido.Osdoismontaramseuscorcéisesaíramtrotandopelapequenatrilhaquasetotalmentecoberta
pelaneve.Emvários pontos a terra virava lama suja e umapenugemmacia cobria os pinheiros.Reinavaosossego,perturbadoapenaspeloscascosdoscavalos.
–Issoéporqueosenhornãoimaginaasliçõesquetirosódeobservá-lo.–Bajulação também?–Dun-Cadal riu. – Está commedode que, ao chegar aKapernevic, eu
resolvalhedarumchutenotraseiro,parameelogiarassim?– Por que nosmandaram para lá? – queixou-se subitamente o garoto, enquanto puxava seu
capuzforradodepeleparaproteger-sedofrio.–AmaiorpartedaguerraestánoSul.–Nãoestágostandodapaisagem?–Pernalta,osenhoréumgeneral–indignou-se.–Jáprovamosnossovalormaisdeumavez,
nãofoi?Entãoporquenosmandarambuscaresse...alquimista?–Oimperadortalvezachequeestánahoradeacalmaresseseuímpeto–zombouDun-Cadal.Rãtinhacrescidobastante,masaindaaconteciadeenfrentarogeneralvezououtra.Deforma
mais moderada, sem dúvida, e até se dando um tempo para pensar antes de agir. Mas sua irapermaneciaintocada.“Ímpeto”,naverdade,eraumapalavraleve.Tinha16anosesecomportavaorafeitocriança,orafeitohomem.Umdiaamaturidadeacabarialevandoamelhor.
Atravessaram as florestas nevadas, desceram até o centro do vale, percorreram a galope as
clareiras cobertas por um pesado manto branco. Cruzaram com algumas carroças repletas demulheres e crianças que, com olhar fúnebre, fugiam da região. Mas fugiam para onde? Já nãohavia lugar que escapasse das chamas, não havia vale, campo ou estrada que resistisse aoderramamentodesangue.Aguerraestavaportodososlados.
ChegaramaKapernevicsobumcéudebrilhopálido.Àbeiradoriocongelado,perdidasentreflorestas de pinheiros, erguiam-se casas de madeira. As chaminés de pedra expulsavam espiraiscinzentasde fumaçaque sedispersavampelosquatro cantosda aldeia, sobrevoavamas torresdevigiaedesapareciamsobreafloresta.Osaldeõesquehaviamoptadoporficar,ouquenãopodiamse dar ao luxo de abandonar o pouco que tinham, se agasalhavam com grandes panosremendados. Vagueavam feito fantasmas, lívidos, cheios de olheiras. Junto à porta de uma casadecrépita, estava sentadaumamulherque seguravanosbraçosumamenininhade talvez5anos.Emmeioàsujeiraqueencardiaocabelodacriança,Rãdiscerniumechaslouras,reminiscênciasdetemposmais felizes. Amenina o acompanhava com os olhos, sem nenhuma expressão precisa.Limitava-se a observar de forma distante, aconchegada no colo da mãe. A vida parecia terabandonadotodoseles.
Ante o olhar impávido daquela pobre gente, os cavaleiros marcharam lentamente. Foramescoltados por alguns soldados até a torre de vigia que ficava na outra extremidade da aldeia,viradapara as colinas arborizadas aoNorte.Nenhumapalavra,nemmesmoumsussurro, acercade sua chegada. Até que o silêncio gélido foi quebrado por um riso. Descendo a escada docampanário,umhomemrechonchudoquaseexplodiadealegria.Usavaumaarmaduraamassada,pesada e apertada, alémde umapele de animal sobre os ombros. Passou amão roliça no rostoavermelhadopelofrio.Nãoacreditavanoqueestavavendo.
–Medisseramquealguémvinhabuscaro inventor,masestavaamil léguasde imaginarquefossevocê–confessouele,entrerisadas.–Você...
Apontouodedoparaogeneral,quedesciadocavalo.–Vocêporaqui!–exclamou,abrindoosbraços.–Meuvelhoamigo!–DeviamtermandadovocêparaoSul!Éporcausadofrioqueseuapetitecontinuaimenso?–
zombouDun-Cadalantesdeseabraçarem.–Euachavaqueíamosescoltarumalquimista.–Alquimista,inventor,tantofaz,meuamigo...eleéumpoucodetudo...edenada.Rãtambémdesceudocavalo,deixandoparaumdossoldadosatarefadelevarasmontariasaté
obebedouro.Algunsaldeõescomarexauridoquepassavampróximoàtorredevigiapararamparaobservá-los.O general e seupupilousavam, ao contráriodeles e atémesmodos soldados, belostrajesquenãopareciamtersedesgastadoemnenhumabatalha.Rãosexaminava,desconfiado,opolegarenfiadoentreocinturãoeavirilha,osdedosafagandoopunhodaespada.Soltando-sedoabraço do companheiro de armas,Dun-Cadal olhou para Rã de relance.O garoto estava alerta,como se estivesse em território inimigo.Oque ele temia?Aqueles pobres esfarrapados?Percebeuem sua fisionomiauma expressãoqueo entristeceu... uma expressãodedesprezo.Rãdesprezavaaquelagente.Otrabalhodeeducá-loestavalongedeterminar...
–Rã,venhacá!–chamou.–Comoelecresceu...–murmurouNégus.
– Nem por isso se tornou sensato – disse o general, antes de elevar a voz quando Rã seaproximoudeles:–Lembra-sedeNégus?DeGarmaret?
O garoto assentiu em silêncio e se inclinou levemente. A primeira parada deles, depois dedeixaremasSalinas,foraofortedeGarmaret,entãosobocomandodogeneralNégus.Éclaroqueele lembrava. Dun-Cadal, na ocasião, o vira conversando com uma moça, uma refugiada dasSalinas, e com seu olhar experiente percebera que ela não lhe era indiferente. Rã não esboçounenhum sorriso, nenhum sinal de simpatia, só o mínimo da polidez devida a um general. OsemblantedeNégusficousombrio.
–Ouvifalarmuitoemvocê–comentou.–MudoumuitodesdequenosvimosemGarmaret.–Osenhortambém,desdequeperdeuacidade–respondeuRãsecamente.Camuflados pelo capuz, seus olhos faiscavam, mordazes, encarando firmemente o general
baixinho. O tempo pareceu passar mais devagar, como se a resposta do garoto os tivesseatordoado.AntesqueDun-Cadalpudessese indignar,Négus,estupefato,suspirou.Entãovirouacabeçanadireçãodocéu,soltandoumafortegargalhadaebatendonabarrigaprotuberante.
–Nãohácomoduvidar!–exclamou.–Vocêémesmoomentordessegaroto!Imediatamenteaplacousuairritaçãocomumtapinhaamigávelnoombro.–Àsvezeseleesquececomquemestáfalando–justificouDun-Cadal, lançandoaogarotoum
olharderepreensão.Rã,porém,pareceunãoligar.– Ora... ele tem razão – concordou Négus, agitando as mãos. – Eu de fato perdi Garmaret.
Quemnãoperderia,frenteàquelarebelião?Dun-Cadalreceououvirumavozafirmandoqueelepróprionãoperderia,masRãficoucalado.
O garoto percebera o constrangimento do general. Mas havia malícia e provocação no olhardivertidoque lhe lançou.Dun-Cadal se retesou,punhos cerrados,prontoparadar-lheuma lição.Nofundo,contudo,gostavadeseutemperamento.Emoutrascircunstâncias,compessoasquenãoapreciasse,atéachariagraçaemseuatrevimento.
– Não imaginei que o imperadormandaria você – confessouNégus. – Principalmente nessepapeldesimplesescolta.Otalinventortemtantaimportânciaassim?
Pelacaretaemseurostoredondo,eraóbvioquenãotinhagrandeestimapelohomem.–Oinventor,nãosei,masonobredacortequesolicitouorepatriamento,semdúvida.–Bem...–Négussuspirou.–Seo imperadoratendeuaopedidoeconfiouamissãoavocês,é
porqueaconsideraimportante.Paraserbemsincero,pormimestáótimo.Maisalgunsdiaseeuiaacabarenfiandoaespadanessesujeito.
Desconcertado,Dun-Cadal franziua testa.Néguspercorreuaaldeiacomoolhar,observandoascasas.
–Aladzio!Aladzio!–chamou.–Ondeéqueessaantasemeteu?ALADZIO!Quandoumvultomagro,comumtricórnionacabeça,apareceunumaesquina,Négusfezsinal
paraqueseapressasse.–Aladzio!Venhacá!–E-Estouindo,general,estouindo–gaguejouorapaz.–Sómedêtempode...Ai,puxa!
Ao correr, derrubou quatro rolos compridos de pergaminhos que trazia embaixo do braço.Inclinou-separajuntá-los,ecomissounslivrosqueseguravajuntoaopeitoescorregaramdooutrobraço. Ajoelhado na neve, ofegante, tratou de juntar tudo. No ar frio, sua respiração formavanuvenzinhasquesemultiplicavamàmedidaquesuaansiedadeaumentava.
–Issoaí?Umgênio?–provocouNégus.–Faztrêsmesesqueestáestudandoumaspedrasnãoseidoquêesóoqueconseguiufoiatearfogonoceleiro.
–Talvezporacidente,não?–sugeriuDun-Cadal.–Trêsvezesseguidas?Dun-Cadalcruzouosbraçoscontendoumarisada.– Não sei que nobre da corte faz tanta questão desse imprestável, mas com certeza está
querendoincendiaraprópriacasa–acrescentouogeneralNégusbaixinho.–Aladzio!Sãosóunspedaçosdepapel,deixequeapodreçamnaneve!–reclamou.
–Deixar que apodreçam? – escandalizou-se o alquimista, enquanto desajeitadamente juntavaospergaminhos.–Estasobrasdosmongescopistas?Osenhornemimagina,general,asúmuladesabercontidanestes“pedaçosdepapel”.SeriaumaofensaàOrdemdeFangolseeuestragassesuaobra.
Assim, tiritando em seu longo manto azul, pernas unidas, veio andando passinho porpassinho.Quandochegouaopédatorredevigia,sedeparoucomRãimpedindosuapassagem,osdedos tamborilando no punho da espada. O alquimista tinha cerca de 25 anos, rosto lívido,olheiras fundas, bochechas coradas de frio. Seu cabelo cacheado esvoaçava pela nuca, protegidopor um tricórnio negro como ébano.O largomanto azul estava coberto demanchas estranhas,resíduos de experiências ou simples sujeira, era difícil dizer. Passando a língua pelos lábios finosrachados,conteveumrisosemjeito,passouporRãe,muitoconstrangido,seapresentouperanteosdoisgenerais.
–Mil perdões, eu... achei uns... uns... sim, uns achados, eu diria – gaguejou. –Umas pedrasnaquelasminaspertode...lá,nasminas...
Amassandoos pergaminhos junto ao peito, conseguiu soltar umdos braços e estendê-lo emdireçãoàflorestaatrásdatorredevigia.
–OterritóriodoshomensdeStromdag–explicouNégusvirando-separaoamigo.–Éelequemlidera a revolta em Kaperdae, Krape e nas cercanias de Kapernevic. Prometeu liberdade aosmineirosqueseuniramaele.
– As minas – repetiu Aladzio, com ar sonhador. – Há muitos achados por lá. – Um largosorriso, quase igual ao de um tolo, iluminou seu semblante. – Paramim é comoum... –Buscouumapalavraeentão,inclinando-selevemente,disseemtomdeconivência:–Sabe,comoobeijodeumamulhernumlugarmais...enfim...
Dun-Cadal desviou o olhar, ao mesmo tempo se divertindo e chocado. Quem tinha tantointeresse nesse homem a ponto demandar buscá-lo na regiãomais remota do Império? Então,comoseAladzionãoestivessepresente,ogeneralsevirouparaoamigo.
– Stromdag? – perguntou. – Não vou me demorar por aqui, mas me ponha a par dasnovidades.
–Ora,nãohánadadenovo–respondeuNégus.Andandoemdireçãoaospilaresdatorredevigia,Dun-Cadalelevouavoz:–Rã,leveAladzioparaaestalagemepreparenossosquartos.–Mas...–disseogaroto,gemendo.Dun-Cadalmalmoveuacabeça.Seutombastouparareprimirqualquertraçodeinsolência.–CuidedeAladzioenãodiscuta.Vamospartiramanhã,assimqueamanhecer.TrocouumsorrisocomNégusaoouvirogarotoresmungando.–Vamoslá–disseRãaoinventornumtomglacial.Osdoisseguirampelaruaprincipaldaaldeiarumoàestalagem.Aladzioquasetrotavaatrásdo
garoto,preocupando-seemnãoderrubarseuspreciosospergaminhos.Alguns soldados, pálidos e com olheiras, passaram perto da torre de vigia. Ometal de suas
armaduras estava manchado, bastante entalhado e, por baixo, pedaços das cotas de malhapendiamfeitopanovelhorasgado.
–Stromdag?–indagouDun-Cadal.–Queméele?– No começo, um simples ladrão – respondeu Négus. – Para a maioria dos camponeses da
região,éumaespéciedebandidodebomcoração.Pôs-se a galgar a escada que levava ao alto da torre, convidando o amigo a segui-lo, e
enquantosubiaprosseguiu:– Há pouco mais de um ano, assumiu a frente da revolta do Norte. O general anterior
conseguiurechaçá-loatéKaperdae,masissolhecustouavida.–Eelestêmmantidosuasposições,comestefrio?–perguntouDun-Cadal.Néguschegouaoaltodatorre,apoiou-senoparapeitoeiçou-separaaguarita.Toraspesadas,
amarradasumasnasoutras comcordas trançadas, compunhamumaespessaplataformacercadade tábuas. Em cada canto, pilares de madeira sustentavam um telhado inclinado. Dois guardasandavam de um lado para outro perscrutando o horizonte com um arco na mão. Um terceiroguardaestavasentadojuntoaumsacovelhoetalhavaumapontadeflechacomumfacão.AoverNégus se aproximar, endireitou-se, como que pego em flagrante. Sem dizer nada, o semblanteaustero, o general fez um gesto. O homem se afastou para deixar que se aproximassem doparapeito.Apoiandoasmãosnaborda,contemplaramaextensãodeflorestacobertaporumafinapenugemleitosa.Ohorizonteseconfundiacomocéudeumbrancoofuscante.
–Esse é o terrenodeles – observouNégus com seriedade. –Conhecemosmínimos recantos,desdeessaflorestaatéosmontes,umpoucomaisaonorte.Aquielesestãoemcasa...
–...comonasSalinas–comparouDun-Cadal.–NasSalinaselesjogaramosruarguescontranós.Aqui,prometemliberdadeaosmineiros...e
atiçamafúriadosdragões...EssesterritóriospertenciamaoImpério,masquegeneralpodiasegabardeconhecê-losbem?A
maioriahaviasidocriadaemÉmerisou,comonocasodeDun-Cadal, tinhapassadoa juventudereclusa num castelo. Se a guerra continuava, era simplesmente porque se rompera o laço que osuniaaopovo.Nemopróprioimperadortinhaconsciênciadisso.Pelaprimeiravez,emborativessepassado por tantos combates, Dun-Cadal teve a estranha sensação de que o Império estava
realmenteruindo.–Estávendoaqueladepressão?–perguntouNégus,apontandoaolonge.Davadefatoparavislumbrar,porbaixodascopasdasárvores,ovalearborizadoatéosopédos
montes.– Só por isso ainda não fomos derrotados – admitiuNégus. –Os dragões são tragados pela
floresta. Nem lhes passa pela cabeça sobrevoá-la até Kapernevic. Percebe?Quando Stromdag osexpulsa de seus antros, eles disparam por entre as árvores. É só por isso que ainda estamosaguentando.
–Animais...–grunhiuDun-Cadal.–Simplesanimais...Sabia queos dragões eramestúpidos, que agiam igual às ovelhas,masnãoque chegassema
esseponto.Osupostotrunfodosrebeldestalvezserevelasse,nofimdascontas,umpontofraco.–Animais,sim,masquefazempicadinhodosnossoshomensmesmoemterra.Imagineseum
dia algum deles resolve voar para este lado do vale... Até agora eles têm se contentado com omonte.
– Não há motivo para se preocupar – garantiu Dun-Cadal. – Com esses dragões idiotas, ésempreamesmacoisa.Seoscolocaremnumcorredoracéuaberto,vãosimplesmenteandarporelefeitoratos.Ascoisasnãomudam,meucaroNégus.
–Mudam,sim–rebateuNégusnumsussurro,osolhosbaixos.–Algumasmudam.Inspiroufundoantesdefalar,comosequisesseselivrardeumpesomorto:–Nadamaisserácomoantes.Estaguerra jáduratempodemais.Você,queestavaemÉmeris,
nãopercebeu?–Oquê?–Oninhodevíboras,meuamigo.O imperador temsidomal aconselhado.Laerte,o filhode
Uster, está desaparecido. Dizem que está em campanha para os lados de Eola. Embora hajarealmente uma revolta por lá, ninguém pode afirmar, de fato, que é comandada por ele. Pareceestaremtodo lugar,à frentede todarebeliãoqueaparece.Você sabequeprenderam insurgentesemSerray.Elesforaminterrogados.PrenderamoutrosparaosladosdeBrenin.TodoscontaramtercruzadocomLaerte,masninguémsoubedizer comoele é.Essehomemdeixoude serdecarneeosso,virouumboato.Esabeoqueacontececomosboatos?Corrematéopalácio.Lá tambémarevoltaestálatente...Aquiloquenãosevêassustamuitomais.Algunsnobresteriamsejuntadoaele.AsideiasdeOratiodeUstersãoatraentes.Aoenforcá-lo,nósotransformamosnummártir.EissoLaerteentendeumuitobem.Umaguerrapolítica,deacusações,dissemedisse...éoqueestáacontecendoemÉmeris.Umaguerraemqueaspalavrassãoaúnicaarma.
Apoiado no parapeito, Dun-Cadal deixou seu olhar vagar pela estranha e quieta paisagem.Kapernevicpareciatãosossegada.Ascopasdasárvoresdistantesbalançavamlevemente,afagadasporumventosuave.
–Existealgumsuspeito?–inquiriuDun-Cadal,comexpressãoséria.Asimples ideiadequeÉmerispudesseestar infestadaera insuportávelparaele.Opalácioera
seu refúgio, seu antro, seu coração. Ele protegera o imperador de forma inconfessável, para emseguida servir a ele do modo mais honroso. E eis que o mundo perfeito que construíra para si
vacilava feitoumapobre torrede vigia... uma torredemadeira, tão frágil quanto essa emque seencontravaagora.
– Há boatos sobre alguns nobres de famílias próximas das Salinas. Os condes de Alser, deRubegond...oduquedeErimburgo...semfalarnosrefugiadosdasSalinas...especialmentealguns.
Combater. Bater. Atacar. Isso era comum para Dun-Cadal. As brigas de influência nas altasesferas,porém,eram-lhetotalmenteestranhas.Sentia-sedesarmado.Tenso,endireitou-sedevagar.
–QuaissãoseusplanosparaenfrentarStromdag?–indagou.Eramelhorfalardeassuntosqueentendia.–Meuamigo...–Néguspôsamãonoseuantebraço,comumaexpressãoterrivelmentetriste.–
OimperadorsuspeitadosrefugiadosdasSalinasqueseencontramemÉmeris.Vocênãoentendeuissoainda?
Dun-Cadalrespiroufundo.Sim...elecompreendia.Captaramuitobemaalusão,masnegava-se a considerá-la uma possibilidade.Num gesto rápido, soltou seu braço damão deNégus e seafastoudoparapeito.
–Dun-Cadal–chamouNégus.–Não há por que desconfiar de Rãmais do que de qualquer outra pessoa – disse o general
secamente,semsevirar.Estavaprestesadesceraescada,jácomopénoprimeirodegrau.–Meescute!–implorouNégus,alcançando-ocompassodecidido.–ElenãovaitrairoImpério!–exaltou-seDun-Cadal.–Podeatéser,masfiqueatento–aconselhouNégus.–Pessoaspróximasdoimperadoracham
queeleéperigoso.Dun-Cadalrespondeuàexpressãoaflitadoamigocomumsorrisodeescárnio.Rãnãopassava
de ummenino,mas era temido pelos pérfidos conselheiros que envenenavam o imperador compalavrasvis.Eraumpontoemquetodosconcordavam.
–Elestêmrazãoemtermedodele.A ideia lhe agradava.Não entendia nada de política e não gostavamuito do jogo do poder.
Importava-lhe apenas o respeito conquistado pelos atos, não pelas palavras. Rã arriscara tantasvezes a vida para rechaçar a revolta que era insuportável supor, mesmo por um instante, quepudessemacusá-lo.
Durante o restante do dia, enquanto ele eNégus passavam as tropas em revista,Dun-CadalnãoparoudepensarnoqueesperavaporelesemÉmeris.Seráque,mesmosendobastanteíntimodo imperador, teria influênciasuficienteparadefenderseudiscípulocaso...Não,era inconcebível.QuandoseencontroucomRãnosuavecalordaestalagem,aindanãoestavatranquilo.Ogarotosegurava um cavalinho de madeira. Já o tinha visto algumas vezes contemplando o estranhobibelô, que arranjara na estrada das Salinas e lembrava um brinquedo de criança. Rã sempre opegava na véspera de um combate. O fato de ele estar com o cavalinho de madeira naquelemomentonãoprenunciavanadadebom.
–Elesparecemcansados,nãoé?–comentouRãenquantoseumentorsesentavaàmesa.Numa ampla lareira crepitavam chamas de um vermelho intenso. Dançavam sobre as toras,
consumiam amadeira, ondulando, destilando ao redor um calor generoso. À sua volta, algunssoldadossecontentavamcomumaparcarefeiçãofumegante.Outros,nobalcão,seembebedavamemsilêncio,oolharperdido,umarausente.Pairavaaliumasensaçãodecansaço.ComoseofriodeKaperneviccongelassetodososdesejos.
–Por acasonós tambémnão estávamos cansadosno sopédeVershã?–brincouDun-Cadal,juntandoasmãossobreamesa.–EemBredelet,depoisdetrêssemanaslutando?Sevocêestivesseaquiháalgumtempo,comoeles,teriaessemesmoolhar,acredite.
–Podeser–concordouRã,olhandoparaseuprato.Suacomidasedesenhavanaporcelana.Comumgestoindolente,pegouocanecofumegantee
tomouumgole.Ocheirochegouaogeneral,queidentificou,comardenojo,sucodefrutasquente.Docedemaisparaoseugosto.Desoslaio,Dun-Cadalavistouumacriadacomumimpressionantedecote enchendo uma jarra junto a um barril. Acenou para chamá-la e focou a atenção em seupupilo.Rãpareciaperturbado.
–EAladzio,ondeestá?– Foi para a casa em que está alojado... para fazer as malas. É verdade que vamos embora
amanhã?–Nós temos umamissão: levar esse inventor paraÉmeris. Ele corre perigonesta região e há
genteimportantepreocupadacomsuasegurança.–Tenhovontadedebaternele–disseRãsecamente.Dun-Cadalconteveumarisada.–Nãoria,
Pernalta–continuoucomarconstrangido.–Elenãoparadefalar...Palavrasemaispalavras.Elecorremaisperigoseficardezminutoscomigodoquesecontinuaraquiatéofimdaguerra.
– Ora... – o general suspirou – você se acostuma. A viagem não vai ser muito longa. Comcertezaseuproblemanãoéesse.Meconte.
Rãhesitou.–Vamosdeixaressagentetodaaqui?–perguntou.–Néguszelaporeles...–Ouvifalaremdragões...numdragãovermelho,principalmente.Dizemqueéopiorbichodo
mundo,queatacaasaldeiassemdeixarsobreviventes.–Entãoéisso...–Dun-Cadalsorriu.Ogarotoqueriaenfrentarosdragões.Queriapartirparaabriga,agir,fazeralgoconcreto,enão
apenasservirdeguarda-costasparauminventortagarela.–Dragõessãoanimaisestúpidos.–Nãoosdragõesvermelhos...–Concordo, esses são um poucomais espertos...mais imponentes, cruéis, é preciso ter certa
maestria para derrubá-los, mas, mesmo assim, são umas bestas. Criaturas que só atacam oshomensquandoobrigadas.
– Não é o que dizem os nâagas. Eles contam que são mais do que bestas. Que sãoantepassados.
Não gostava nem um pouco de ver seu aprendiz se referir aos nâagas com tanta seriedade.Esses Selvagens cultuavam tudo o que era coberto por escamas, com o pretexto de que eram
ancestraisdahumanidade.Paraeles,dragõeseramcriaturasdignasderespeito.–Ondevocêescutouessabobagem?Rãfechouacara.–Osnâagassãounsbrutos–resmungouDun-Cadal.–Elesacreditamnopoderdosdragões,
mastambémnaforçadoshomensquandocomemosprisioneirosdesuasguerrastribais.Rã,elessão... umas bestas, assim como os dragões. Lembre-se disso. Além domais, esse dragão não éproblemanosso.ElesótemreagidoporqueestáentrenóseStromdag.Nodiaemqueestaguerraterminar, ele vai voltar para o canto dele, acredite. Por acaso o dragão atacouKapernevic?Não,nunca. As pessoas falam nele por conta do folclore. Ele só representa um perigo por causa daguerraaoredor.Evocêsabequenãopodemosficaraqui.
–Porquenão?–indignou-seRã.–Osenhoréumgeneral!Eeuseilutar.Jávencemosalgumasbatalhas.
–Etambémperdemos.–Poucas!Nósdoismudamostantasvezesocursodaguerra!–Érealmenteporessaspessoasquevocêquerficaraquiparalutar?–Osenhornãoentende...–Rãbufoucomarabatido.A criada veio até a mesa deles trazendo um caneco para Dun-Cadal, que ela encheu
imediatamente.Elefezsinalparaquedeixasseajarranamesa.Sóumcoponãoseriasuficiente.Amoçaentãotratouderecolheropratodorapaz,inclinado-sebemnaalturadosseusolhos.OolhardeRã foi inevitavelmenteatraídoparaocorpete, subiuatéovertiginosodecotee fixou-senapelelisadocolo.Dun-Cadalbaixouacabeça,amãodiantedabocaparadisfarçarumsorriso.
Rã,defato,nãoeramaisumacriança.Quandoacriadaseafastoulevandoopratodogaroto,Dun-Cadalquebrouosilêncio.
–Aídolado–zombou,mostrandoocantodoslábiosdele.–Oquefoi?–Vocêestábabando.Rã,queporpouconãoenxugou ingenuamenteaboca,nãogostoudabrincadeira.Chateado,
meneouacabeçaeguardouocavalinhodemadeiranobolsodocasacodecouro.–Essamoça...essaquevocêtemencontradoemÉmeris...–disseDun-Cadal,jásemosorriso.–
Vocêgostadela,nãoé?Rãsustentouseuolharporuminstante,entãobebeuocanecodeumasóvez.–Ora,todomundosabedisso.EmÉmeristudosesabe–garantiuogeneralemtomdivertido.
–É amoça que você reencontrou emGarmaret depois da nossa fuga, não é? Ela também é dasSalinas.Vocêjáaconhecia?
–Nãointeressa–disseorapazbruscamente,levantando-sedamesa.Atravessouaestalagemeabriuaportacomforça.Dun-Cadalficoupensativo,asmãosemvolta
docaneco.Levouoseucanecoaoslábiosetambémtomoutudonumsógole.Ovinholhedesceupelagarganta, rascante, áspero, escorrendoparaas suasveiasnumsuavecalor. Soltouocaneco,hesitou em se servir mais, então saiu. Encontrou Rã no patamar da estalagem, encostado nafachada,braçoscruzados,ocapuzcobrindosuacabeça.
Esperouantesdedescerosdegrausepisaranevecomumrangido.A luaestavaalta, cheiaeluminosa.Aaldeiainteirasetingiadeazulnanoitecalma.Noaltodatorredevigiamaispróxima,doisguardasespreitavamàluzdeumatochatrêmula.
–Lembro-medomeuprimeiroamor–começouadizer,comosefalasseconsigomesmo.–Euera poucomais velho que você. Lembro-me do desejo, da vontade... –Voltou-se paraRã. – Serápossívelumsentimentodoertantonabarriga?–Dun-Cadalriu.
Rã, porém, continuava impassível. O que o general esperava? Que ele se abrisse a ponto decontartudo?Queaconversaodeixassemaistranquilo?Négustalveztivesserazão,talvezhouvessetraidores agindo em Émeris... e uma jovem refugiada das Salinas podia estar usando Rã e suainocência.Seéqueumaprendizdecavaleiroaindapudesseserinocente.
–AmanhãvamosajudarNégusalançaroataquecontraosinsurgentesdeStromdag–decidiuogeneral.
Rã foi se afastando da parede, soltando os braços, mudo de surpresa. Como poderia terimaginado,poruminstantesequer,orealmotivodessareviravolta?Dun-Cadalsabiaqueogarotocorria muito menos perigo ali, combatendo inimigos visíveis, do que voltando para o ninho decobrasqueeraÉmeris.QuantoaAladzio,sobreviveriapormaisumoudoisdias.Umgritosoouaolonge,umaespéciedeurrorouco.
–Vocêjáviuumdragão?–perguntoutranquilamenteDun-Cadal,pensativo.No céu, bem alto sobre a floresta, quatro vultos negros subiram rodopiando. Suas asas se
abriram,seulongopescoçosefezmaisnítidoàluzdalua.Osdragõesdespertavamnanoite.No próximo anoitecer eles iriam caçá-los, a eles e a todos que tentavam se erguer contra o
Império.
9
Salvarumavida
Vaicontinuarsendoum
fantasmapelorestodavida?
Ouvaiagircomoagiria
umverdadeiro...general?
Sobre o mármore bege salpicado de preto se erguiam altivas colunas. Cercando a sala, altasjanelas coloridas conferiam à luminosidade do sol um tom avermelhado. No centro estava umhomembaixo,orostomarcadopelaidade,umaspoucasmechasgrisalhasnacabeçacalva.Apesarda corpulência, sua toga branca era larga e havia um pano verde preso no ombro. Agora eraconselheiro...Quemaindaselembravadequeeleconduziraexércitosrumoàvitória,quefizerausodoSoprocomoninguémequelutarapelaúltimavezjuntoaDun-CadalDaermonemKapernevic?
–SouViolaAguirre,conselheiroNégus–apresentou-seajovemaoapertaramãoestendidadohomenzinho,historiadoradoGrão-ColégiodeÉmeris.
Seduzidoporseuencanto,eleaobservouenquantoViolaosaudavacomumabrevereverênciaeacrescentava:
– Somosmuito gratos por nos conceder um pouco de sua atenção, tendo em vista quemalacaboudechegaraMassália.Trata-sedeumassuntodamaiorimportânciae...
–Eleestáaqui,Négus–interrompeuDun-Cadal.Oconselheirocontinuousorrindo,masderepentepareceumaisirônico.–Eeuachandoquevocêqueriafalarsobreosbonsvelhostempos...–murmurou.Dun-Cadalestavacomaexpressãoqueassumianosdiasruins,umabarbaincipientenorosto
marcado, e seus olhos, avermelhados de álcool, davam-lhe um armiserável. Quem visse os doishomensconversandonuncaimaginariaquehaviamsidoheróisumdia.
–OassuntodizrespeitoaoassassinatodoconselheiroEnain-Cassart–explicouViola.–Temosmotivosparacrerque...
–Deixe-nosasós–ordenouDun-Cadalsemtirarosolhosdeseuvelhoamigo.Ela hesitou um instante antes de assentir, virou-se e caminhou até um banco embaixo das
janelas.Sozinhosnomeioda imensasala,osdoishomensseencaravamsemgrandesdemonstrações
deafeto.Emseusolhos,porém,haviaumbrilho estranho.Era impossível esqueceroque tinhamvivido juntos. E isso tornava ainda mais insuportável o que descobriam um do outro naquelemomento.
–Penseiqueestivessemorto–confessouNégus.–Penseiquevocêfossedigno–respondeuDun-Cadalentreosdentes.Estavacontendosuaira.Vê-loostentardaquelaformaascoresdaRepúblicaoindignava.Devia
haverumaexplicação.–Ascoisasmudam,meuamigo...–Aesseponto?–indagouDun-Cadalcomvozgrave.–Apontodeesquecerporquelutavaese
oferecerparaoinimigo?– Então você veio me julgar – lamentou Négus com um sorriso triste. – Um fantasma do
passadovindomejulgar...–Não...–Dun-Cadalrespiroufundo.Balançouacabeça,baixandoosolhoscomosebuscassea
seuspésalgoparalhedarcoragem.–Não–repetiu.Teriatambémmudadoaesseponto?Jánãoreconheciaasimesmonaquelecorpoamorfoque
lheserviadebarcoparanavegardecanecoemcaneco,entreumatabernadaperiferiaeacasadeMildrel.
–EuestavaontemnoportoquandomataramEnain-Cassart...–acrescentouele.Négusnãosorriamais.Seurostoafávelsetornou,desúbito,odeumaestátua.–Euviquemfoi–continuouDun-Cadal.–Eleestáaqui.–Equemfoi?–perguntouoconselheironumsussurro.Franzindoocenho,enfimdemonstravaalgumaemoção.–AMãodoImperador...Fez-seumbrevesilêncioenquantoelesseencaravamsempestanejar.Dun-Cadalfoioprimeiro
adesviaroolhar.–AMãodo Imperador– repetiuNégus, avaliando a gravidadeda situação. –E você... então
vocêveiomeavisar.–Vimsalvarsuavida–declarouDun-Cadal.Masseurostoestavalívido,oolhardistante,suaaparência...imunda.Eleestavasujo,inspirava
pena.Négusoexaminavadacabeçaaospés,nãoconseguiadisfarçarsuaaflição.–Vocêcontinuavivendonopassado,nãoé?Logridestámorto,Dun-Cadal.Enain-Cassart foi
assassinadoporumlouco,maisnada.Orestonãolhedizrespeito.E foi tudo. A conversa não iria além disso.Mas o velho general não se conformava em ser
ignoradodessaforma,convencidodequetudoaquiloqueosoutrosfaziamquestãodeignorareraexatamenteoqueprecisavaserdito.ANoitedasMáscarasforadecretadaferiadonacional.Anoiteem que, com o rosto escondido por uma máscara, todos esqueciam sua condição, agora
comemoravaavitóriadeumpovosobreaopressão.Naqueleano,porobradodestino,MassáliaestavaacolhendoafinaflordoConselho,eapresençadeumassassinoostentandoascoresdeumImpério decaído não eramera coincidência. EnquantoNégus se virava e seguia para a porta nofundodasala,Dun-Cadalaindatentoudeterseuantigocompanheirodearmas:
–Négus,espere!Não conseguiu sequer segurar seu braço. Embora tivesse engordado, Négus nem por isso
perderasuaagilidade.Esquivou-sedandoumpassoparaolado,nummistodetristezaedesprezo.Juntoàporta,osguardasseretesaram.
–Osassuntosdestemundonãolhedizemmaisrespeito,Dun-Cadal!Vocênãoémaiscapazdeentendê-los!–exaltou-seoconselheiro.
–Entenderoquê?Quevocêsoubeperfeitamenteressurgirdomeiodascinzasdaquiloquenósdefendíamos?–dissecomvoz trêmula.–Vocêeraumcavaleiro!Umgeneral!Tinhaprestadoumjuramento!
Ira,doredecepçãofecharamsuagarganta.Eramesmoseuamigoquemestavaali,comaquelatogahorrorosafedendoaarrogância?Ouumrelesemergente?
–Nósacreditávamosemcertosvalores,Négus.OImpério...aOrdemdeFangol...–O Livro perdido, é isso? – indagouNégus, balançando a cabeça. – E se a gentemerecesse
mais do que o destino que os deuses escreveram no Liaber Dest? Foi essa decadência que elesreservaramparavocê?Dun-Cadal,vocêeragrande,masnuncaparouparapensar.
–Senãotenhomaisaquelagrandeza,medigaoquevocêfezcomasua!–Issovocênãoécapazdeentender–respondeuNéguscomamesmafúria.–Podeatémever
comoum traidor, se preferir,masme diga o que foi que aquela nossa grandeza emdefender osReyes lhe trouxe.Olhe para simesmo eme diga se servir ao Império o tornou alguémmaior. –Virou-se demodo determinado e andou em direção à porta compassos decididos. – Eu sempreservi ao povo, no passado e agora. Você, por outro lado, sempre serviu apenas a seus própriossonhos!
Aturdido,Dun-Cadaloouviubateraportaao sair, semnemrepararnapresençadeViolaàssuascostas.
–Dun-Cadal?–chamouelademansinho.–Estátudobem?Fitou-a rapidamente e sentiu-se incomodado ao ver compaixão no olhar dela.Não precisava
disso. Merecia muito mais. Um dia já não tinha sido muito mais que um bêbado assíduo daperiferiadeMassália?
–Não,nãoestá–respondeu,fitandoferozmenteaporta.Algoestavasendotramadoaliatrás.Elepodiasentiroarvibrando,feitoumacordaesticada.Você...–Vamosencontrarumjeitodeconvencê-lo–disseelaparatranquilizá-loenquantoumguarda
seaproximava.Vocêfica...Elapôsdelicadamenteamãonoseuombro.–Eu sempre soube sentir a presença damorte – afirmou ele, a voz trêmula, uma lágrimano
cantodoolho.Oguardaseaproximoudeles,prestesaacompanhá-losatéasaída.Vocêficacomigo,Rã...Négus,asarmadilhasestãoprontas?–Elaestáaqui!–bradouele.De súbito, Dun-Cadal agarrou o homem pela gola e, com amão livre, segurou o punho da
espada.Antes que o guarda pudesse esboçar qualquer gesto, empurrou-o para o chão enquantodesembainhavaalâmina.Lançou-separaaportaporondeNégustinhasaído.
Elesestãovindo...Eusinto.Saiucorrendo,jásemfôlego,ocoraçãorebentandodetantobater,acabeçaquaseexplodindo.
Suastêmporasmartelavamcomtantaforçaquetinhaasensaçãodeestarfervendopordentro.Seucorpointeiroparecianãopassardeumpedaçodecarnevelha,podre,inútil,flácida...queimada.
Osdragões...Elesestãochegando...Elecorria.Corriaporqueaestranhasensaçãododiaanterior,noporto,tornavaapinicarsuas
têmporas. Já convivera tanto com a morte que podia pressenti-la antes mesmo de ela atacar.Rebentoucomoombroamadeiradaportaedeteve-sederepente.
Négus,asarmadilhasestãoprontas?Talvezsejaanossaúltimabatalhaladoalado,meuamigo...
–Elesestãochegando.Nanoite estrelada, asbocas exalavamespessas espiraisde fumaça.O frio atingiaoshomens,
apertava-os com força, catandoqualquervestígiode calor emsuas armaduras cobertasdegeada.Estavamdeprontidão, deitadosnaneve à luzdas tochas, junto às árvores.Empé ao ladodeles,Dun-Cadalapertoucomforçaopunhodaespadaeosomdesualuvadecouroescorregandopelabainhareverberounosilêncio.
–Nãoestououvindonada–sussurrouRã,nãomuitolonge.–Confienele–disseNégus, encostadonumaárvore logo adiante, e piscouparaRã antesde
ergueralâminadaespadadiantedorosto.Haviam se agrupado num pequeno aclive no meio da mata que circundava Kapernevic,
centenasdesoldadosenregeladosporcausado frioesperandooataque,angustiados.Faziamaisdeumahoraqueosbatedorestinhamdeixadosuasposições,esgueirando-sesilenciosamenteentreasárvoresàprocuradoacampamentodosinsurgentes.Suamissãoerasimples:fingirumataque-surpresa,simularumaretiradaeatrairoexércitoinimigo,certodaprópriasuperioridade,atéolocaldesejado. Dun-Cadal elaborara o plano de última hora, com base nas informações de Négus edepoisdeconsiderartodasaspossibilidades.Aimbecilidadedosdragõeseraoelemento-chavedeseu plano, o ponto fraco da estratégia de Stromdag. Só restava usá-lo em seu favor.Estranhamente,eragraçasaAladzioqueaideialheocorrera.Chegaraahoradeversefuncionaria.
–Mantenhamsuasposições–ordenouemvozbaixa,ajoelhando-senoaltodoaclive.No escuro, elemal discernia omovimento dos pinheiros. Seria o vento curvando os galhos?
Não.Vultosvinhamcorrendoemsuadireção.A intuiçãodeDun-Cadalseconfirmava.Osomdearmaduras tilintandonumacorridaalucinada foi ficandomaisnítidoe emseguidaouviu-sealgoquelembravaumtrovão.
–Elesestãochegando!–berrouumavoz.Entãooutra:–Alerta!Dun-CadaleNégustrocaramumolhar.Tudoiasedecidirnaquelemomento:eraaúnicafalha
visíveldeumaestratégiainteiramentebaseadanacriatividadedeumhomemque,atéomomento,sóconseguirapôrfogonumceleiro.Rã,aosaberdoplano,semostrarareticente.Négus,deinício,pensaraquefossebrincadeira.
–Lanceiros!–bradouDun-Cadal.Não era brincadeira. Os primeiros soldados ergueram suas lanças. Diante deles, a apenas
poucos metros, outros homens com machados em punho tentavam controlar a ansiedade,recostadosnospinheiros,emcujotroncoalgumascordashaviamsidoenroladas.Osomdetrovão.Umestalo.Umestalo.Umsomdetrovão.
–Chegaram!–gritouumhomem,emergindodapenumbranumsalto.Atrás dele, dez batedores resfolegavam. Então rugidos ensurdecedores ecoaram na noite. Já
nãoeramaisumsomdetrovão,masumestardalhaçoinfernal,ummistodemadeiraquebradaeterra revirada. Quando o primeiro dragão abriu a mandíbula à luz das tochas, não houve uminstantedehesitação.
–Agora!–exclamouDun-Cadal,pondo-sedepé.Rápidos,brutais,osmachadosseabateramsobreascordas.Bastaramtrêsgolpesparacortá-las
esoltaraimensaredecamufladaaospésdospinheiros.Reforçadaporaramefarpado,aarmadilhasurgiu do chão, lançando ao redor o tapete de neve e espinhos que a cobria. Mais uma vez osdragõeshaviamseguido,sempensar,aprópriafúriadesabalandoflorestaadentro.Oprimeirofoiimobilizado no ato.Ali perto, seus irmãos seguiam omesmo destino. Pormais que abrissem asasastortasporreflexo,pormaisqueasbatessemcomforça,pormaisquerugissem,acabeçaestavapresaemgrossasmalhasdecordaemetal.
Os lanceiros então atacaram, aos berros, lacerando o couro dos prisioneiros. Dun-Cadalarrematou cravando a lâmina no olho arregalado da criaturamais próxima.Ao virar-se, viu Rã,braços vacilantes, mal segurando a espada numa das mãos. Estava boquiaberto diante dosenormes corpos marcados por inchaços cinzentos, as amplas mandíbulas espetadas de dentesbrilhososdebaba,asventasespessasexalandonuvensdefumaça.Dun-Cadalhavialheexplicadotudoantesdocombate.Masvê-losaliaovivo,debatendo-secomforçaparaescapardasredesqueentravavamseusmovimentos,eraalgobemdiferente.
–Rã!Ele não respondeu. Não se moveu. Nem notou os berros estridentes dos guerreiros que se
aproximavam.
–Rã!Pelosdeuses,saiadaí!Eles surgiram entre os pinheiros como uma onda tempestuosa, mercenários, soldados,
camponesesde todas as idades e tamanhos, contornandoosdragõesoupassandopor cimadascarcaças para se lançaremna confusão.A raiva era sua espuma, a valentia, seu fluxo incessante.Foi um caos indescritível, lâminas batendo umas nas outras, braços, pernas, cabeças cortadas,corpos caindo com estrondo no chão, estertores rasgando a noite. Os golpes ribombavam, osgrunhidosdosdragões aprisionadosvinhamse juntar aosgritosdos combatentes comoumeco.Era,portodaparte,amesmaanimalidade,amesmaviolência,amesmaira...
Rã aparouumgolpe e esquivououtro antesdedarumaestocada.Comamão livrebateunacabeçadeumdeseusatacantes.
–Rã!Veja!Depoisdedarogolpedemisericórdianovultoàsuafrente,virou-separaDun-Cadal,aponta
daespadacobertadeumsangueviscosoepretoqueescorrianumfilete.Ogenerallutavaapoucospassosdedistância,limitando-seaapararosgolpescomodorsodaespada.
–Odragão!–gritou.Ogarotodeumeia-volta.A10metros,umadascriaturasconseguirarasgaramalhadaredea
dentadas,esmagandocomaspatasospobressoldadosquetentavamcontê-la.Rãimediatamentecorreuemsuadireção.Otumultodoscombatescresceuatrásdele.
–Daermon!–gritouNégusaliperto.Suaespadatalhavacarnes,cortavamembros,batianaslâminasdeoutrasespadasevibrava.Ele
às vezes se limitava a abrir os braços, criando à sua volta um Sopro potente que lançava osadversáriosametrosdedistância.Apesardopeso,tinhaagilidadeparaevitarosgolpesesecurvarem seguidapara cravar a lâmina.Nenhumrosto sediferenciavadosdemais, eram todos simplessombras em movimento. Os generais estavam habituados a esse caos, um turbilhão dedesconhecidosselançandoparacimadeles,semnome,semhistória,semnadaquevalesseapenalembrar. Eles também tinham uma vida, uma família, sonhos e medos, mas pensar em suahumanidadenocalordabatalha,considerá-losseussemelhantes,seriacomocavaraprópriacova.Osgestoserammecânicos,porvezessimplesreflexos,somadeanosdeaprendizadodaluta.Dun-Cadalderrubouumdosatacantes, semnotaralguémàssuascostas.Ummercenáriobrandiaummachadoequandoestavaprestesaatacarogeneral...
–SantaMiséria!–bradouDun-Cadal,virando-seaosomdaespadaquetranspassavaocorpodorebelde.
O homem caiu de joelhos, uma expressão de espanto congelada no rosto. Atrás dele estavaNégus, crispando numa careta seus lábios rachados pelo frio mordaz. Dun-Cadal soltou umsuspirodealívio.
–Salveisuavida,meuamigo–observouNégus,orgulhoso,colocando-seimediatamenteaoseulado.
Aneveestavacobertadesangue,comoumainjúria.Os pinheiros se curvavam sob os golpes dos dragões presos na armadilha.Os vultos negros,
queastochastremeluzentesmalclareavam,moviam-senumadançamortal.Entreeles,Dun-Cadal
buscava desesperadamente o pupilo. Quando enfim o avistou, Rã abria passagem entre osrebeldes,rodopiando,rolando,saltando.Alâminadesuaespadalançavaumbrilhoavermelhadoacadagolpedesferido.Estavaaapenaspoucosmetrosdograndedragãoque, comaspoderosaseraivosasmandíbulas,destroçavaaredequeoprendiaatéosombros.
–Éodragãovermelho–sussurrouNégus.–Dun-Cadal!Aredenãovaiaguentar!Eramaior que os demais, seusmúsculos sobressaindo sob as escamas de um vermelho vivo,
dois chifres espiralados na cabeça, os olhos amarelosmarcados por umpreto brilhante.De suasventas escapavamespiraisde fumaçaquedançavamcomgraça e se entrelaçavam.Chegavaa serquasehipnótico. Seu rugido imobilizouogarotoque corria.Acriatura terminoude rasgar a redecom uma dentada, afastou as malhas e levantou a cabeça nummovimento circular. As malhaseramreforçadascomaramefarpado,deveriamteraguentado!Dragõesvermelhoseramtãorarosebelicosos que nem por um instanteDun-Cadal imaginara que Stromdag fosse capaz demandarum para atacá-los. Mesmo com o risco de a criatura se voltar contra seu exército, Stromdagconseguiratransformá-lanumaaliada.
Quandoodragãoabriuasmandíbulas,inspirando,obraçodeNégusdeteveDun-Cadal.–Rã!–urrouele.–Dun-Cadal,não!–ordenouNégus.Num gesto brusco, o dragão vermelho esticou o pescoço, a bocarra aberta, revelando uma
línguafinacomdoisganchosnaponta.Juntoàúvula,duaspregasdecarnerosadasecontraíram,entãoofogojorrou.Aschamasvorazesconsumiramoshomensmaispróximos,lançaram-secomavidez sobre os pinheiros; o incêndio foi tão repentino que Rã foi arremessado a 2 metros dedistância.Atordoado,viuacriaturabaterasasasealçarvoo,grunhindo.
–Rã!Fuja!–ordenouDun-Cadal,empurrandoNéguscomumacotovelada,prestesacorreremdireçãoaopupilo.
–Dun-Cadal!Temosquebateremretirada!Elevirou-senumgestobrusco.Ocrepitardas chamas, as chamas se tocando, tudoaquilo era
ensurdecedor.Négusprecisouergueravozparasobressairaoestardalhaço:–Temosquebateremretirada!–Nãopodemosrecuar!–rebateuDun-Cadal.Mais adiante, Rã se levantara, ainda meio grogue, acompanhando com o olhar o vulto
imponentedacriatura furiosa,quecuspiumaisuma línguade fogoantesdesairsobrevoandoospinheiros.Osgritosdossoldados,presosnasarmadurasincandescentes,quaseofizeramvacilardemedo.Astochashumanassedebatiam,devoradaspelaschamas,jogando-senanevenaesperançadeextingui-las.
–Rã!–chamouDun-Cadal.Gritos estridentes e chamadosmedonhos precederam a chegada dosmineiros. Eles surgiram
tendoporúnicasarmassuaspicaretasemriste,prontasparafuraracarneatéosossossepartirem.–Daermon!Osdoisgeneraisforamrapidamentecercadose,decostasumparaooutro,conseguiramconter
aondadoataque.Amultidãofechava-sesobreeles.Estocada,defesa,omovimentodaslâminas...
Sopro... Os mineiros voaram, espatifando-se nos pinheiros em chamas, caindo com força nasrochascobertasdenevederretendo.
Négus...meuamigo...Estavatudoperdido.Alibertaçãododragãovermelho,quesobrevoavaamatasoltandolongos
rugidosameaçadoreseroucos,acabavacomqualquercoragem.Ossoldadosimperiaiscomeçaramafugir.
As espadas fendiam o ar, aparavam, batiam, cortavam. Mercenários mais hábeis vieram sejuntaraosmineiros.
Porquantotempoprosseguiuocombate?Algunsminutos?Pareceudurarumaeternidade.Osgeneraistombavam,StromdagpodiaatacarKapernevicatiçandoafúriadodragãovermelhoparaqueeleincendiassetudoaopassar.Nenhumexércitoimperialseriacapazdedetê-lo.
Podíamos termorrido ali, juntos... Podia ter sidomelhor perder a vida ali, lado a lado, quandonãoéramostãodiferentesumdooutro.
Atéqueseouviuourro.Umsomgrave,potente,bestial.Umgritodeafliçãorasgandoanoiteeperturbando as investidas inimigas. Ao longe, acima dos cumes, a silhueta do dragão vermelhobatiacomforçaasasas,banhadaspelaluacheia.
Ládoalto,odragãoerapuxadoemdireçãoaochãoporalgoindescritível,algotãopotentequeo faziamover a cabeça freneticamente, rosnando.Omedomudoude lado.Opânico se infiltrounasfileirasinimigas.Pormaisquesecontorcesseparatodolado,acriaturaeraprisioneiradaquelaforça invisível. Era algo imenso e apavorante, que conseguia segurá-la mesmo com seussobressaltos. Dun-Cadal e Négus reconheciam aquela força, embora nunca tivessem, em toda avida,assistidoatamanhademonstraçãodoSopro.Quemerame,principalmente,quantoseramoscavaleirosdoImpérioqueestavamatuandocomtantamaestria?Sóumavontade inabalável fariacom que alguém usasse o Sopro dessa forma. Bastava um Sopro mal controlado para o corpointeiro ficarmachucado,carneeossos...Aoseuredor,omedo tomavacontados insurgentes.Astropasinimigasiamsedispersar,temendoaquedadeseutrunfo.
O dragão vermelho foi como que tragado e desapareceu entre os pinheiros. A queda foiacompanhada de um barulho de árvores derrubadas e de um ruído grave que lembrava umterremoto,breveeviolento.
–Pelosdeuses!–sussurrouNégus.Foi a viradadabatalha.Anotíciadaquedadodragão vermelho se espalhou feito rastilhode
pólvora. Os homens de Stromdag bateram em retirada. Logo restavam apenas o crepitar daschamas ainda se fartando com as carcaças, os suspiros dos sobreviventes, os gritos dosmoribundos.Pormaisquevasculhasseaflorestacomoolhar,Dun-Cadalnãoviunemsombradopupilo.Verificoucadacorponochão, cada rosto inchadoequeimado, erguendocomraivaoquerestavadoscadáveres.NemsinaldeRã.
–Dun-Cadal–disseNégusatrásdele.Não era esse corpo, nem aquele... Só restavam soldados calcinados perto da armadilha
destroçadapelodragãovermelho.–Dun-Cadal!–repetiuNéguscomforça.Agarrou-opeloombro,obrigando-oaendireitar-se.–
Aliestáele–anunciou.Sob a luz oscilante das chamas, Rã avançava na noite clara,mancando, o capuz cobrindo a
cabeça,umfiodesangueescorrendodoslábios.E,debaixodobraço,umchifre...Vocênãoestápronto.Euconsigo!...queelejogouaospésdeseumentorantesdecairdejoelhos.–Acho...Achoquevencemos–balbuciou.Négus,aoladodeDun-Cadal,estavaboquiaberto.OgarotoacabavadedominaroSoprocomo
ninguémantesconseguirafazer.Vouseromaiorcavaleiro...
Juntoàporta,Dun-Cadalfezumapausa,osdedossoltandodevagaropunhodaespada.Vocêsalvouminhavida...emKapernevic...Ali,emmeioaospergaminhosdesenrolados,aoslivrosabertosemdesordem,jaziaseuantigo
camarada,osolhosaindaabertos,masjásembrilhoalgum.Suacabeçaestavapousadanabordadalareiradepedra.
Lamentonãoterpodidosalvarasua...Cinzas da lareira voavam ao redor do cadáver, depois saíam, se desmanchando, pela janela
aberta.Finascortinasazuisesvoaçavamàlevebrisa,revelandootombegedaruavizinha.–Pare!Pare!–gritouoguarda,jánasala.Dun-Cadallevantou-secomesforço.Violaoolhavacompreocupação.Parar?Comoassassino
aindaporperto?Quesandice!Dun-Cadalcruzouogabineteapassosrápidosepulouajanelanoexatomomentoemqueosoldadoentravanocômodo.Ignorouseuchamadoedesceuparaumaviela pavimentada que dava numa avenida bastante movimentada. Seu sangue ferveu quandoavistou,esgueirando-senamultidão,asilhuetaatléticadoassassino.Osujeito,comorostoocultopor um fino capuz, um casaco verde-escuro batendo no alto das coxas, olhou rapidamente porsobreoombroeapertouopasso.
–Alerta!–gritouosoldado,aindameioatordoado,asmãosnoparapeitodajanela.Osassuntosdestemundonãolhedizemmaisrespeito...Louco de raiva, Dun-Cadal enveredou pela viela, mergulhando em seguida no fluxo
ininterruptodaavenidacomercial.Esbarrounumhomemeporpouconãolhedeuumgolpecomaespada.
Daermon!Comocoraçãoacelerado,balançouacabeçaedeumeia-volta,buscandocomoolharumsinal
de Logrid. Mas havia apenas pessoas. Centenas de pessoas, trajes finos, esfarrapados, homens,mulheres, nâagas, comerciantes, gente da alta sociedade... cheiros, especiarias, perfumes, rosas,lírios... suor. Ao sol do Sul, tudo semisturava, cores e buquês, imundícies e fedores. Sua cabeça
girava.Entãooreconheceu,correndocomagilidade,movendo-sesemesbarraremninguém.Dun-Cadalsoltouumgrunhidoesaiuemseuencalço,abrindocaminhoacotoveladas.Houvegritosàmedidaqueostranseuntesviamaespadaemriste.
Suaspernasestavamficandopesadas.Opeitoardia,ospulmõesexpeliamoarnumassobio,agargantanãopassavadeumcondutoáspero,comoseestivesseemcarneviva.Escorriamlágrimasdosseusolhos.Mascontinuoucorrendo,cadavezmais,derrubandoumabancacomestardalhaço.Perseguiu o homem por várias ruas, sempre achando que estava ganhando terreno. Ou seria oassassinosepreocupandocomadistânciaparaqueovelhonãodesistisse?
Ouvia-se ao longe o martelar das botas da guarda, junto com os gritos de pavor dosmoradores.
Estava sem fôlego, seu coração batia descompassado, saltando no peito como se prestes aescapar.Suastêmporaslatejavam.Eleiacair.
Nãocaiu.Continuou. Tinha que continuar. Um dia enfrentara exércitos inteiros, percorrera todo o
Impérioatésuasmaisremotasregiões.Nãoeraumasimplescorridaqueiadetê-lo.Oorgulhofoiatábuadesalvaçãoàqualseagarrou,eredobrouoesforçoaoentrarnumavielaàsombradedoisprédiosaltos.Lánaponta,umapilhadecaixotesestavaescoradanummuroquetinhaodobrodaalturadeumhomem.Encurralado,oassassinoestavaimóvel.
–Você!–exclamouDun-Cadal,arfando,arespiraçãosibilante.–Você!Àsvezeseu...odeiovocê.Brandiuaespadaàfrentecomumadificuldadeespantosa.Pareciaestartrêsvezesmaispesada
eprecisousegurá-lacomosdoisbraçosparamantê-laereta.–Vire-se–ordenoucomumavozfracaearranhada.–Vire-se!Era preciso,Dun-Cadal. Eu sou o imperador. Cabe amim tomar as decisõesmais difíceis. É o
meudever.Devagar... bemdevagar, o assassinoobedeceu.Não se vianadado seu rosto, escondidopela
sombradocapuz.Enacabeçadovelhoecoavammomentosdopassado,dilacerantescomoofiodeumaespada.Porpouconãofraquejouaomover-senadireçãodeLogrid.
– Por que... por quematou Négus? – perguntou, a respiração pesada. – Por que voltou dosmortos?!Puxeaespada!Puxe!
–Vocêaindaestámuitofraco–murmurouoassassinosemesboçarumgestosequer.Suavozestavaestranha,grave,forçada.
–Fraco–chiouDun-Cadal.Avançou com passos incertos, mais trêmulo de exaustão que de medo. Sua respiração aos
poucosiaseacalmando,emboraagargantacontinuassetremendamenteseca.– Não me subestime, Logrid... – aconselhou, com um sorriso ameaçador. – Eu ainda sou o
generalDun-CadalDaermon!Readquiriraalgumaforçanavoz,movidopelaraivaqueferviadentrodele.Endireitouascostas
devagar,numaatitude altiva. Seuolhar, semperderobrilhoda tristeza, de repentepareceumaisdecidido.Tinhaumobjetivo,afinal,umaluzaguiarseucaminho.Ali,nasuafrente,ocírculopodia
se fechar.Superandoobêbado,renasciaogeneral.AdescidadeDun-Cadalao infernocomeçaraquandooassassinocometeraoirreparável.Edecertoacabariaali,numasimplesvieladeMassália.Compulsoágil,levouaespadaàfrente.
–Eu sou o generalDun-CadalDaermon– repetiu baixinho, como se tentasse convencer a simesmo.–Jáfuiumdosmaiores.
À sombrado capuz, o assassinopermanecia impassível enquantoobservavao general vir emsuadireçãocompassoscalculados.
– Mesmo que o tempo tenha feito a sua parte – continuou Dun, com a voz cada vez maisáspera. – Mesmo que meu coração agora bata descompassado, cansado e partido, continuosendo...um...general.Nuncaseesqueça.
Àsvezes...–Fico contente em saber que você ainda se lembra – respondeuo assassino. –Masnão vou
lutarcontravocê.Nãoenquantoeunãotiveraespada.A resposta o surpreendeu a tal ponto que ele estacou,mas sem baixar a guarda. Eraed? Ele
estavafalandodeEraed?– Puxe a espada! – bradou Dun-Cadal, apontando a lâmina de modo desafiador para o
assassino.–Puxeaespadaevamosacabarlogocomisto!Ohomemdeuumpassoparatrás,amãosubindolentamenteparaabainha.Àsvezeseu...odeiovocê.–EutrocariacemhomensdasuaespécieporumúnicoRã–esbravejouogeneral.–Vocênão
valenada.Vocênãoénada!–Redescobriuseuorgulho,Dun-Cadal?–Oassassinopareciasorrir,acabeçainclinada.Tornou
abaixaramão.–Estádevolta,finalmente–concluiu.Dun-Cadalparalisou-sedesurpresa.Oassassinoderameia-voltacomumarapidezespantosae
jágalgavaoscaixotesempilhados.–Volteaqui–balbuciouogeneral.–Volteaqui,covarde!Ohomempulouporcimadomurosemnemolharparaele.Enquantoisso,asbotasdaguarda
republicanajáressoavamatrásdogeneral.–Euvoumatá-lo,Logrid.Pelosdeuses!Juro,juroquevoumatá-lo!Vocêmepaga!–gritou.–Parado!–ordenouumavoz.Elenãosemoveuquandoasalabardasapontaramemsuadireção.Osguardasocercaram,mas
elenemolhava.SeusolhosfitavamopontomaisaltodomuroqueLogridacabaradesaltar.–Vocêmepaga...–murmurouparaovazio.–Largueaespada,assassino!Largue!Não se defendeu quando o desarmaram. Não disse nada nem reagiu quando o conduziram
paraaprisão.Àsvezeseu...odeiovocê.
10
Logrid
Nuncaseesqueça,Dun-Cadal!
Nuncaseesqueçadeondevocêvem,
nemdoquefezparasetornargeneral.
Nãofoi,demodoalgum,
porsuahonra.
Tinham voltado para Émeris com o esplendor demais uma vitória. Kapernevic fora salva, seuterrível dragão, abatido, e os boatos sobre a identidade de quem executara essa façanha corriamsoltos. Poucas pessoas sabiam o nome do cavaleiro exemplar que havia derrotado o lendáriomonstro, mas os alunos da academia militar suspeitavam que fosse um dos seus. Aquele que,mesmopresente,continuavasendoumasombra.PormuitopoucoomisteriosoRã,oúnicodentreelesquefrequentavaoscamposdebatalha,nãofoirecebidopelo imperadorAshamIvaniReyesenãorecebeuhonrariasporsuasfaçanhas.
Semprequeogarotoretornava,acabavademonstrando,nasaulasdeesgrima,dedomíniodoSopro oude estratégia, seus talentos e a experiência adquiridana guerra. Seria por causa de suaóbviasuperioridadequepreferiamanterdistância?Aoquesesoubesse,nãotinhanenhumamigo.Naverdade,osjovensnobresdesuaturmaolhavamparaelecomciúme,cominveja,mastambémcomreceio.QuemsaberiadizerdoqueotalRã,queserviaaomíticogeneralDaermon,eracapaz?
UmdragãoforaabatidoemKapernevic.Nãoerasurpreendentequeaquelehomembrilhanteeseu aprendiz tivessem participado da batalha. E o fato de Rã ter usado o Sopro para derrubar acriatura,emboraparecesseimprovável,tendoemvistaadificuldadedogolpe,eracomentadocoma maior seriedade. Onde quer que lutassem, o relato de suas façanhas, mesmo nas derrotas,acabava chegando aos corredores do palácio. Os dois, sozinhos, talvez ainda ganhassem essaguerra...
Oque,commãofirme,seguravaaespadanograndepátiodaacademiamilitarnãoconseguia
tiraressa ideiadacabeça.Diantedele,Rão fitavacomumolhardecidido,umolhardequenadapoderia detê-lo, um olhar que fixava-se em sua presa e intuía cada uma de suas emoções.Formando um círculo em volta dos dois, seus colegas os observavam, apreensivos. As aulas dedueloeramumaoportunidadedepraticaroqueaprendiamnateoriaeamaioriaparticipavacomcertoentusiasmo.DesdequeRãnãoestivessecomeles.
–Investir!–ordenouoprofessor.As lâminas imediatamente se cruzaram num estalido. Recostado numa coluna, de braços
cruzados, Dun-Cadal observava seu pupilo se livrar facilmente do oponente. Em poucos golpesjogou-o no chão: desarmou-o comum levemeneio do pulso, se agachou e o derrubou comummovimentodaperna.Então,comoqueparaassinarsuaobra,deslizouapontadaespadasobseuolhodireito.Osangueescorreudocortefinosemqueoadversáriosedispusesseaenxugá-locomamanga. Não houve nenhum aplauso, nenhum ruído, só o sussurro do vento nas árvores quecercavam o pátio interno. O garoto se apoiou nos cotovelos e engoliu em seco, um nó noestômago.Depéeemsilêncio,Rãapontavaaespadaparasuagarganta.Oolharnãoexpressavanada,asimplesatitudeimpunharespeito.
–Muitobem.VocêsviramdequemodoRãvenceuesteduelo–disseoprofessor,andandoemdireção ao meio do círculo com as mãos nos quadris. – Já tinha vencido antes mesmo de asespadasseencontrarem.Naopiniãodevocês,porqueissoaconteceu?
Porqueelehádeseromaior,pensouDun-Cadal,sorrindo,antesdedeixaropátioepercorreroslongoscorredoresentreaacademiamilitareapraça,naqual ficavaa fonte.HaviasidonabordadaquelafontequetoparacomRã,orostoinchadologoapósumarixa,naprimeiravezquetinhamvoltado para Émeris. Contemplou-a, pensativo, um tanto agitado pelo remorso. Rã não tinha,afinal,derrotadosozinhoumdragãovermelho?Entãoporqueficavadeolhonelesemprequetinhaa oportunidade? Talvez para se parabenizar por tê-lo descoberto no meio das Salinas. Aquelemeninoeraumdiamantebruto,sóprecisavaserlapidadoparavirarumajoia.Ouseráque...ainda,esempre,sóestavapreocupadocomoprópriobem-estar?
Passouumbomtempoandandopeloscorredoresdopalácio,hesitandoiratéMildrel,dequemse despedira pela manhã apósmais uma briga. Estava pronto para estreitá-la de novo em seusbraços,mas temia que ela o obrigasse a pedir desculpas, algo que ele detestava fazer.Apesar detudo que sentia por ela, Mildrel não passava de uma cortesã. Continuou andando, até abrir aspesadasportasdacatedraldosdeuses.
Sobre os pilares que contornavamo coroda catedral havia dezenasde estátuas de semblanteimóvel,homensemulheresdetogascompridasqueemnadasedistinguiamdossimplesmortais.Os deuses, ali, tinham uma fisionomia semelhante à dos homens e só seu imenso tamanhoexpressavaocaráterdivino.Próximosdoaltardepedra,emquebatiaa luzdosolfiltradaporumenormevitralcircular,bancosdemadeiravaziosestavamalinhadosemperfeitaordem.Dun-Cadalpermaneceuquietonaprimeirafileira,atéqueobispodeÉmeris,comsuatogabrancaedourada,uma toucavermelhacaindonosombros, viesse sentar-seà suadireita. Seu rostoacinzentadoeramarcadoporrugasprofundas,finoscabelosbrancosiguaisafiosdesedadesciam-lhepelanuca,aspontasroçandoaamplagolaroxaeengomadada toga.Comamãomanchadademarrom,deu
unstapinhasnoombrodogeneral,numgestopaternal.Dun-Cadalabriu-secomelesobresuaspreocupaçõescomRã.– Os deuses velam por ele, pode ter certeza, general, mas só eles sabem do papel que lhe
destinaramnestaprovaçãoqueéavida–disse-lheobispo.–Eurezoporeletodososdias...–revelouDun-Cadal.– Como todos nós rezamos pelos soldados que estão na guerra contra os insurgentes. –
Sentadoaoseulado,obisposorriu.–Quantoamim,meuvelhoamigo,rezoespecialmenteporvocê.Quando viera para Émeris, fora ali que Dun-Cadal muitas vezes encontrara refúgio nos
momentosdedúvida,medoefraqueza.Maisqueisso,suaféoconduziraaocaminhodoprestígio.Obispo,quesechamavaAnvelinEvgueniReyes,eratiodoatualimperador.Seobisponãotivesseenxergadonelemaisdoqueeleaparentavanaépoca,Dun-Cadalnunca teria sidoapresentadoàcorte, nunca teria salvado a vida do jovem Asham Ivani, nunca teria começado como guarda-costas...nemsetornado,emseguida,aprimeiraMãodoImperador.
–Ninguémsabequaléodesígniodosdeuses–prosseguiuoancião.–Provaçõesdifíceisestãoporvir,mas tudo levaacrerque,paraajudá-loaenfrentá-las, eles lheofereceramaajudadeumrapaz.
– Ele é bemmais que isso – rebateu Dun-Cadal sem nenhuma animosidade, apenas com odesejodesersincero.
–Émesmo?– Acho que os deuses memandaram esse garoto para ele ganhar esta guerra. E proteger o
Império.Obispoassentiucomumbreveacenodecabeçaelevouamãofechadaàbocaparaconterum
forteacessodetosse.Procurounabatinaumlençoparaenxugaroslábios.–Nessecaso,escolheramohomemcertoparaensinaressegarotoaser“grande”–disse.Levantou-se,percorrendoolocalcomumolharrespeitoso.Asestátuasdosdeusesdesafiavam-
se com os olhos.Majestosas, não apresentavam qualquer rachadura em seu invólucro de pedra.Dissocuidavamdiariamenteosartesãosquereparavamosesfacelamentoscausadospelotempo.
–OImpérioécomoessasestátuas–observouobispo,unindoasmãos.–Vai se fragilizandocom o passar dos anos. Precisa de feitos, de armas e de grandes batalhas para que seu brilhoresplandeça. Foi assimqueAdismasDeoCagliere se tornouoprimeiro imperador.Era fervorosoemsuascrenças.ApontodeprocurarpeloLiaberDesteprometerasimesmoqueseriaoprimeiroaencontrá-lo.
Fezumapausa,pensativo,umlevesorrisonoslábiosfinos.–Sóreceioqueissotenhaacabadocomsuadinastia,embenefíciodanossa–zomboucomum
risocontidoantesdeprosseguir:–OfatoéqueDeoCagliere,jáquenãopossuíaoLivroSagrado,fez vários comentários aos outros dois Liaber. Eu só queria, antes de deixá-lo sozinho, citar umtrechodoLiaberDeiseocomentárioacrescentadoporDeoCagliere.
Pela primeira vez desde que se sentara naquele banco, Dun-Cadal, asmãos unidas no colo,ergueu os olhos para o bispo. Com a maior naturalidade, Anvelin olhou para ele, a cabeça
levementeinclinada.– O Liaber Deis diz o seguinte: “Ninguém é tão grande quanto os deuses. Mas cuidam os
deusesparaque,entreoshomenseeles,surjamgrandesdestinos.Seosdeusesnãosãonomeados,osheróis,nessemundo,hãodesê-lo.”EDeoCagliereacrescentou...–inclinou-seligeiramenteparaa frente e sussurrou: – ... “É estranho como grandes nomes se sucedem...”. – Endireitou-selentamente, desviando o olhar. – Se os deuses puseram esse menino no seu caminho, não foiapenasparasalvarsuavida.Elehádeseroecodesuagrandeza,pelobemdoImpério.Vourezarpor você e por ele. Tenho certeza de que o imperador juntará suas preces às minhas. E não hádúvidadequeosdeusesjásabemdisso...ejáplanejaramparaquenossospedidossejamouvidos.
Dirigiu-lhe um último sorriso antes de se virar, passar rente ao altar e desaparecer por umaportinhademadeiraquese fechoudiscretamenteàsuapassagem.Novamentesozinho,ogeneraltornou a cerrar os punhos, fechando os olhos e dando um longo suspiro. As palavras do bispoeramdefatoumreconforto.Osdeusestinhamplanejadounirosdestinosdomentoredopupilopara que este se tornasse ainda maior que seu mestre. Dun-Cadal tinha consciência de suanotoriedade e das vitórias que, sozinho, conquistara para o Império. O fato de que Rã um diapoderia fazer ainda melhor com certeza o deixava mais tranquilo. Tentando manter em menteapenasessaideia,pôs-searecitarumaoração,repetindosemcessaramesmasúplica,numquasesussurro:
–Queestaguerraseencerrecomglória,queRãsobrevivacomhonrae,casofindesuavidanaúltimabatalha,quemorracomdignidade.
Apertava asmãos, estreitava os olhos como se disso dependesse sua vida.Rezava para que odestino definido no início dos tempos fosse tão grandioso quanto ele esperava. Assim era averdadeirafé.Aceitareagradeceraosdeuses.
–Pífiaspalavras...–sibilouumavozatrásdele.Oslábiosdogeneralseimobilizarameeleabriulentamenteosolhos.–Comoé?–Pífiasevãspalavras,jáque,segundoobispoetodasassuasovelhas,oquehádeserjáestá
determinado.Acredite, seosdeuses realmente escreveramahistóriadoshomens, a esta altura jáfecharamolivroemudaramdeassunto.Então,paraquelouvá-los?Casoodestinotraçadonãolheconvenha...
Comofoiquenãoperceberaquandoelesesentaraatrásdeleeabriraosbraçosparaapoiá-losno espaldar com ar indolente, a ponta da bainha roçando as lajotas do piso da catedral? Dun-Cadal se endireitou devagar. Então virou-se o suficiente para vislumbrar o vulto escuro doassassinocomumsimplesolharporsobreoombro.AMãodoImperadorostentavaseueternoarmisterioso,ocapuzocultandosuacabeçaporcompleto.Acapaverdeseabriasobreumplastrãodecouroguarnecidodepregos,umcinturãoornadode inúmerasadagaseopomoprateadodesuaespada.Dun-Cadal, porém, tinha certeza de queLogrid, à sombrado capuz, não tirava os olhosdele.
–Euestimavavocê–declarouogeneralderepente.–E eu sempre retribuí sua estima– rebateuohomemem tomgrave.–Sóqueagorapercebo
suasfalhas.–Minhafénãoéumadelas.–Parecequesim,Dun-Cadal,quandoelaodeixacego.Virandode lado,ogeneralpôsobraçonoespaldardobancoe cerrouopunho.Sustentouo
olhardeLogrid,queconseguiaimaginarmesmonaescuridãodocapuz.Oassassinonãoesboçounenhumgesto.
–Vocêeraumbomhomem,Logrid...umbomhomem...Balançouacabeçacomardesapontado.–Talvezsejaporquenãoencontreiexpiaçãonafé,comoosenhor,ouporque,aocontráriodo
senhor,achedifícilentenderoporquêdeexistirmos...eoquepedemparaeufazer.–Poiseununcagosteidematar!–bradouDun-Cadal,endireitando-se.Com amão firme e aberta, bateu no espaldar do banco. Amadeira estremeceu. A pancada
causou um terrível eco na catedral, seguido por um pesado silêncio. Seu interlocutor, imóvel etranquilo,nãoseperturbou.
– E quanto ao seu... Rã? – desdenhou Logrid. – Perguntou-lhe o que pensava? Quando eleperceberquetomougostoporessetipodepoder,jávaisertardedemais.
–Vocênãosabe...–...tirarumavidaemejustificarporisso–completouLogrid.–Vocênãosabeoqueestáfalando.–Quetipodenovacriaturaosenhorvaigerar,generalDaermon?Dun-Cadaldesviouoolhar,voltandoàsuaposiçãonobancosemperceberqueestavafugindo
do confronto. Fora pego de surpresa, e se lembrava das expectativas que depositara em Logridantes de ser nomeado general e ceder-lhe seu lugar. Era um jovem tão hábil, com tanto talentoparaocombate, tão...paciente.Emquemomento tinha sepervertidoapontodeexibir aquelearcruel?
–Vaitransformá-loemmaisumaMãodoImperadorparaquesuacriaçãopossasereterna?–Basta,Logrid!–Dun-Cadalsuspirou,baixandoacabeça.–Éasuainvejaqueestáfalando.–
Fezumapausa antesde continuar: –Eleháde sermuitomaiordoque vocênem sonharia ser–afirmouogeneral.
–Elevaitraí-lo.–Basta,jádisse–estrondouDun-Cadal.–Elevalemuitomaisque...–Queumassassino?–interrompeuLogridbruscamente.Então apoiou asmãos no espaldar e achegou-se a ele com tanta agilidade que não se ouviu
ruídoalgum.Postou-sediantedogeneral,osdedosdamãodireitaafagandoopunhodaespada.– O senhor foi a primeira Mão do Imperador, Dun-Cadal. E, se me criou, foi para o seu
brinquedinho não cair no esquecimento! E para a família imperial se lembrar do seu nome! Porpuroorgulho.
–Euescolhivocê!–bradouDun-Cadal,defendendo-se.Levantou-se, empurrando Logrid. Quanto mais se exaltavam, mais forte se fazia o eco na
catedral,ricocheteandonasestátuasenovitraldocoro.Vozesfriasemetálicasqueaindaseouviam
juntocomafalaseguintedeLogrid:–Sim,claro,eueraperfeitoparaosenhor.Não tinhavínculonenhum...Umamãemortapor
sífilis, um pai que nunca se dignou ame reconhecer,mas que, em sua infinita bondade, pagoumeusestudosnaacademia.Paraserumassassinoépreciso,aocontráriodeumcavaleiro,trilharocaminhodafúria...Nãoéassim?
–Nãosetratavadefúria–rebateuDun-Cadal.–Ora,claroquesim,nãonegue–insistiuLogrid.–Afúriapelorestodomundo,essemundo
quevêemReyesadecadênciadeumaraça.Bem,éumcaminhomenosgloriosoqueoseu,admito,masémaiseficaz.
–Euacrediteiemvocê!Euachavaque...–Querdizerquenãoacreditamais–declarouLogridemtomseco.–Paraosenhorsócontam
esses“deuses”quenuncasemostram.A mão de Dun-Cadal se fechou no punho da espada. Duas lâminas foram prontamente
puxadas,cruzando-seaopédoaltar.–Estáblasfemando...–disseelenumsussurro.– Defende commais prontidão quem não fará nada pelo senhor. O que nos traz de volta à
cegueiradasuafé.Ficaram ali se encarando, um esperando que o outro atacasse, sem se preocuparem com as
consequências daquele duelo. Algo os impelia a se desafiarem: os velhos rancores alimentadospelosanos,adecepçãorecíproca,asensaçãodeteremseenganado.E,principalmente,oconfrontoentre ummestre e seu pupilo, para a transmissão de poder, parecia vez ou outra inevitável.Masnuncatinhamchegadoàsviasdefato.
– Não foi um erro acreditar em mim. Seria um erro acreditar nesse garoto das SalinasrepreendeuLogrid.
–Vocênãosabedenada...–Seestáaquirezando,éporele,nãopeloImpério.Fervendode raiva,Dun-Cadal estendeuapernanumaprimeira investida,queLogriddesviou
semdificuldade.Asegunda,emcompensação,foimaisdifícildeevitar.Arqueou-separatráseviualâmina passar rente a seu rosto num grande arco.Mal teve tempo de se aprumar e aparar umgolpefraconoflanco.Odueloenfimtomouforma,umadançamacabradeduaslâminasvibrandonoaresetocandocomalarde.Ochoqueecoavanacatedralfeitoumterríveldobrefúnebre.Soboolhar imóvel das estátuas divinas, enfrentavam-se comumadestreza de que poucos se poderiamgabar,procurandofalhanaguardadooutroatéperceberemasúbitamudançaemsuarespiração.O tempopareceu sedilatar,osmovimentos ficarammaisvagarosos.Ergueram,por fim,asmãoslivres.
Os dois Sopros colidiram, propagando uma onda de choque que anuviou a visão de ambos.Mantiveram-se de pé, apesar do impacto, recuando em meio a uma nuvem de poeira. Com arespiraçãosibilante,seencararamporalgunsinstantes.
–Dun-Cadal,vocêdeviaabrirosolhos...–aconselhouLogrid,resfolegando.–Paraquê?–bradouogeneral.–Paraquê,Logrid?
–ParaosvínculosdocondedeUstercomafamíliaReyes.Paraaacusaçãoquepesousobreeleeosmotivosdaquelarevolta.
Encararam-sedemodohostil.Viamexplodirseurancorcomexacerbadaviolência.Aspalavras,mal formuladasoumal entendidas,nãopassavamdeumestopim,deumadesculpapara aqueleduelohaviatantoesperado.Seuscaminhostinhamseapartadomuitotempoantes.
Recuaramumpassocadaum,comoparaseesqueceremdaraiva.Oorgulhodomestre faceàambiçãodoantigopupilo.Nuncatinhamdefatocompreendidoumaooutro.
–Alguns partidários do conde deUster se encontram emÉmeris,Dun-Cadal – prosseguiu oassassino.–Elesserefugiaramaquievêmatuandoàsescondidas!Contranós!Abraseusolhos.
–Estãobemabertos–retorquiuDun-Cadal.–Oquevejonãomeagradanemumpouco...–AsSalinas,Dun-Cadal.OsenhortrouxeasSalinasparajuntodoimperador.Esqueçaesseseu
pupilo...Elenãoteráforçasuficienteparaprotegeroimperadordeseusverdadeirosinimigos.Entãoeraisso.Emmeioaocaos,Logridrevelavaseuciúme.–Euescolhivocê–disseDun-Cadalemtomsevero.–Entretantosoutros,escolhivocêparame
substituircomoaMãodoImperador.Rãnãovaitomarseulugar.Outracoisaestáreservadaparaele.
EsperavaqueissobastasseparaacabarcomociúmedeLogrid,que,suspeitava,irromperaantesmesmodeeleschegaremaÉmeris.CiúmequecresceraqualervadaninhafaceàsrecentesvitóriasnoNorteeàderrubadadodragãovermelho.Logrid,porém, teveareaçãocontrária.Adiantou-serapidamente, prestes a atacar, mas pensou melhor e guardou devagar a espada na bainha,indicandoquenãoqueriamaispartirparaasviasde fato. Somenteavozdenunciou sua ira,quesubiupelagarganta,graveedurafeitorocha:
–Osenhorachaquequeroafastá-lodeseupupilopormedodequeeletomeomeulugar?–Eudissequeeletemtalento.Issoincomodavocê.Eupossoentender,mas...–Dun-Cadal...–avozsoavadiferente.Havianelacertatristezamescladacomdecepção.–Não
se tratadeuma simples revolta quepoderá ser controladapela força.Éonossomundoque estámudando.Eu,maisdoqueninguém,estou fazendominhaparte.Tiroavidadessapodridãoquenos ameaça,mas sozinho não vou chegar a lugar nenhum... Alguns nobres estão prontos paraseguir a corrente, caso os insurgentes cheguem às portas de Émeris.Alguns já vêm atuando emfavordaquedadacidade.
Tantas divergências haviam surgido entre eles. Já não se entendiam, se é que tinham seentendidoalgumdia.
–Seeulheensineiamatarpeloimperador,foiparadefendê-lo,nãoparavocêseorgulhardisso–censurouDun-Cadalcomfirmeza.–Nomeutempo,aMãoeratemidaerespeitada.Depoisquevocêvestiuouniforme,tudoque...
–...tudoqueosenhorconstruiu,euestoudestruindo–concluiuLogridnumsussurro.–Pareceatéquenuncaouviessesermão.Eu...–Hesitou,antesdeergueramãoenluvadaeapontarodedoparaogeneral.Dandoumpassoà frente,chegouàbeiradoaltar.– ... respeitoosenhor,quemeensinoutantacoisa.Masosenhoré tão... tãovulgar, tãofrugal!–exclamou.–Umantigo,é issoqueosenhoré.Nuncapassoupelasuacabeçaqueeutambémpodialheensinaralgumacoisa.
–Pelosdeuses,Logrid!–vociferouogeneral.–Bastadessesseusdeuses!–rosnouoassassino.–Elesporacasoestãoaquiparaavisá-lodo
perigo?Euestou!Deuumpassoparatrás.Emmeioàluzquentedomeio-diaquesederramavadograndevitral,
tirou o capuz, revelando no lábio superior uma cicatriz que uma barba incipientemal conseguiacobrir.
–Hávozestramandocontraoimperador.OmalquedeuorigemaOratiodeUsterestáagoraentrenós.Vozesquedãomausconselhos,queocultamaverdadeportrásdepalavrasinocentes.OsrefugiadosdasSalinasconspiramcontraSuaMajestadeImperial,osprópriosnobresestãoprestesaabandoná-locasoarevoltavirerevolução.Essesvãopreservarseusprivilégios,acredite.
–Sandices–disseDun-Cadaldesviandooolhar.–Vocêouvefalarcoisasedistorceosentido.–Eusouosolhos,osouvidoseaMãodoImperador,Dun-Cadal.SouoguardiãodoImpério!É
nelequeeuacredito,enãonumadivindadequalquer.Sãoeleeoseumundoquevoudefenderatéamorte.Sóqueosenhor...osenhorjánãoouve,jánãovê...esuamãovaitremernodiaemquetiverquelutar.
Dun-Cadal balançou a cabeça, enojado, e resolveu sair dali antes que a ira e a decepção odominassem. Tinham usado as espadas, tinham se desafiado. Essa guerra andava mesmosemeandoocaos,selevavaantigosaliadosaseodiarapontodequereremsematar.
–Nãoseganhamaisaguerranocampodebatalha,Dun-Cadal.Hojeelaéfeitadepalavrasepromessas.Deseduções,mentirasetraições.Quemage,ageàsescondidas.Equemmelhorqueeuparaverisso?
Palavras,promessas,traições...Eseoverdadeirodueloentreelestambémfosseassim?Cansadodediscutir,Dun-Cadaldeuogolpedemisericórdia.
–Onomedelevaiserlembrado.Oseu,não...–disse,comoolharincerto.NãocontaracomostalentosdeLogrid,talentosque,comoseumestre,nuncapercebera:parao
discurso,paraapalavra,paradesestabilizaremachucarmaisfundoqueumaespada.–Nãoconteiparamaisninguémissoqueestoulhedizendo–afirmoufriamenteoassassino.–
Ninguém mais merece minha confiança e meu respeito. Ninguém mais seria capaz de salvar oImpérioalémdeDun-CadalDaermon.EssegarotodasSalinashádeseroseufardo.Quandoelecair,vaiarrastá-lojunto...–Logridrecuouváriospassosantesdeacrescentar:–...paraoabismo.
Dun-Cadal baixou os olhos.Quando tornou a erguê-los, o assassino havia sumido. Ficou aliparadoalgunsminutos,umamãonoespaldardobancoàsuafrente,hesitandoemrecostar-senopilaràscostas.Ficouali,oolharvagueandopelas lajotasque levavamaoaltar iluminadopelosolturvoqueatravessavaovitral.Ficouali,entreairaeareflexão.Eraumhomemdaguerra,nãodaspalavras.Um general, não um cortesão.Um pulso de ferro feito para bater, não um desses queagia pelas costas do imperador para decidir o destino do mundo. Os únicos conselhos que sedispunhaadaraSuaMajestadevinhamdobomsenso,bomsensodaterraondenascera.Filhodeumnobre,passaraa infâncianoOeste,descalço.LogridcresceraemÉmeris,nomeiodaelite,atéDun-Cadalperceberseupotencialetransformá-loemseusucessor.UmnobrechamadoDuberonseduzira uma moça de boa família e não se atrevera a reconhecer a criança por medo de
comprometer sua posição na corte comum escândalo.Comprou então o silêncio da jovemmãesolteirafinanciandoosestudosdomenino.Dun-CadaltinhareparadoemLogridnaépocaemqueo imperador lhe dera a oportunidade de se tornar general de seus exércitos e logo vira nele ocandidato ideal para sua sucessão. Uma Mão do Imperador perfeita, hábil no combate, ágil eesperta.AMãodoImperadordoente,cujopoderjáeracontestadoporalguns.UmaMãoimortal,semnome,semrosto,masnãosemhonra.Logridaceitara.Amãeforarecentemente levadapeladoença, depois de anos tentando esquecer o antigo amante nas zonasmal-afamadas da cidade.Umadecadênciaqueeleacompanharadiaapósdiasempoderfazernada...anãoseraguentar.
Osdeusessempretinhamfeitoascoisasdireito.AprimeiravítimadoassassinofoiDuberon.Ocondeeraumdessesqueachavamqueafamília
Reyesestavanofim.Passou-seotempoeDun-Cadalnãotinhacomonegara lealdadedeLogridouduvidardesuasintenções.Daísuacertezadequeociúmetinhaumpapel importanteemsuasafirmações. O fato de existir um complô era mais do que mera hipótese... Mas pensar que Rãpudesseestarenvolvidotinhamaisavercomumacertodecontas.
Ogeneralsuspirou.Nãoencontrounenhumconforto,nenhumaresposta,naestátuadodeusqueseerguiaàssuas
costas.Pormaisqueointerrogassecomoolhar,osolhosdepedralevementeabertosfitavamumpontoàfrentesemseimportarcomainsignificantecriaturaaseuspés.
Ninguémtemodireitodenomeá-los.Elesestãoemtudo.Estãoaqui,agora.Antesdenósedepoisdenós.Certa vez, durante seu aprendizado, Logrid o questionara a respeito dos deuses, sem que em
momentoalgumomestreimaginassequeaquelasdúvidassetransformariamemcertezas:–Quem são eles, afinal?O que eu penso estar decidindo já estavamesmo escrito? Com que
direitoelesnosdestinamaoquequerqueseja?Nãopassamosdebrinquedosparaeles?AoqueDun-Cadalsósouberaresponder:–Elessãoosdeuses.Nãoestãobrincandoconosco.Transformamnossavidaemnarrativas,em
histórias,emsagas.Paraqueahumanidadealcanceseuápice.Elesconhecemoinícioeofimdostempos. Temos que agradecer-lhes por terem nos dado a vida e um destino cujo sentido a elespertence.
E ali, aos pés da estátua cujo olhar ele tentava em vão encontrar, qualquer outra respostapareciainconcebível.
11
AquedadoImpério
Quantosanossãonecessários
paraconstruirumImpério?
Equantossegundosparadestruí-lo?
Comascostasdamão,eletirouapoeiradorosto.Na cela imunda e quente, banhada por uma tonalidade alaranjada, grades sujas tapavam a
pequena claraboia, sobre a qual ouviam-se botas caminhando. Cada passo jogava terra seca nacabeçadoprisioneiro.Deitadonocatredemadeira,braçoscruzadossobacabeça,eleobservavaaluz que diminuía aos poucos, ao ritmo dos transeuntes. Fazia horas que esperava pacientementeque viessem interrogá-lo. Repassava sem cessar a sequência dos acontecimentos, buscandoentender,encontrarumsentidoparaaquilotudo,ummotivo,algoqueotranquilizasse.Quandosedespedira de Négus em Kapernevic, ele ainda estava a serviço do Império. Ao reencontrá-lo,trabalhavaparaaquelesqueostinhamderrotado.Dun-Cadaldecertojamaisentenderiaosmotivosdessa mudança. No entanto, jamais atentaria contra a sua vida. Pelo contrário, tinha tentadoalertá-lo.Mas de que adiantaria negar? Ele obviamente era o culpado ideal. Na celaminúscula,brincavacomsuaslembrançascomosefossempeçasdeumquebra-cabeça,tentandouni-lasnumquadroquefizessesentido,numaimagemcoerente.Nãosurgiunenhuma.Quandoajanelinhadaporta de ferro foi aberta, ele ignorou.Umolho apareceu na abertura, acompanhado de um risoirônico.
–Olá,general!–disseumavozfanhosa.–Comoestá?Conhecia apenas o tom da voz do carcereiro, mas já era o suficiente para ter uma ideia.
Imaginava-omagro e sujo, amarguradopornãopassardeumsimples guarda e, oque erapior,estúpido. Lá fora, semdúvida algumao desprezado era ele.Ali dentro, vingava-se livremente desua condição,humilhando,por trásdapesadaportade ferro, osprisioneirosque apodreciamnocárcere.
–Dizemporaíquevocêeraumdosgrandes,éissomesmo?Umsupergeneral.Agorabaixouabola–esganiçouavoz.–Temumpessoalquenemvocêqueseentregou.Agenteatéfoilegalcomeles.Sabeoqueagentefazcomopessoalcomovocêquenãoseentrega?
Semtirarosolhosdaluzqueseextinguiadoladodefora,Dun-Cadalesboçouumfracosorriso.–Transformaramtodoselesemconselheiros–murmurou.– A gente enforca – garantiu o carcereiro, como se não tivesse escutado. – Agora, com um
macacovelhofeitovocê,nãovaisersóisso.Vocêfezcoisaàbeçaduranteaguerra.–Derepente,mudou de tom: – Aproveite – aconselhou, cheio de desprezo. – Porque daqui a pouco, mesmosendogeneral,vaisetornarapenasumpobre-diabopenduradonumacorda.
Ohomemtornouafecharajanelinhacomforça.Suarisadaencobriuoestrondodometaleosomdeseuspassosseafastouaospoucos.Quandojánãopassavadeumecobemdistante,Dun-Cadal suspirou. Talvez o guarda tivesse razão. Talvez ele fosse julgado. Bem queMildrel avisara:“VocêsabeoqueaRepúblicafezcomosgeneraisquenãosealinharamcomela.”
Tentara salvaravidadeumconselheiroeViolaeraaúnicaquepodiadepora seu favor.Masondeelaestava?Eseoabandonasse?Fechandoosolhos,tentounãopensarmaisnoassunto.Nãoera aprimeira vezque se encontravanumacela e, embora sua vida,naquela época,não corresseperigo,suasituação,peloquese lembrava,nãotinhasidomaisconfortável.Muitopelocontrário.Dozeanosantes,bemdistantedeMassália...
...lembrava-sedeterprocuradoporele,emvão,portodaaacademiamilitar...Aladzio!...emÉmeris.Aimagemdacidadecintilantefoiaospoucossedesenhandoemsuamemóriae,
aosairdacelapútrida,viu-seandandoatéopátiodaacademiamilitar.
–Aladzio!–chamou,andandorapidamentenadireçãodoinventor.Ele usava um tricórnio na cabeça e um manto azul com debrum dourado, destoando das
túnicascinzentasdosalunosdaacademia.Maisquesuasvestimentas,oqueodiferenciavaerasuaatitude. Enquanto todos os alunos presentes se afastavam com certa deferência, ele nem parecianotarachegadadogeneral.Umpoucoatrásdele,sobreumabasedemadeira,haviaumcompridotubo de chumbo preto. Dun-Cadal pouco se interessava pelamáquina que ele testava em plenopátioda academiamilitar. Sóquandoaproximou-sedele équeAladzio reparouna suapresença,aindaocupadoemresolveralgumproblemaespinhoso.
– Ah! – exclamou, com o olhar distante. – General Daermon... que bons ventos... que bonsventos...
–Metrazem.Éoquequeriaperguntar,Aladzio?– É. Enfim, prazer em vê-lo. –Não olhava para ele, absorto namáquina que o aguardava. –
Quemsabeumpoucomaisdeenxofre...oudesalitre...outalvezsejamelhorumabalamaisleve–pensavaemvozalta.
–Aladzio...– O projétil precisa alcançar alta velocidade e manter um eixo muito preciso, senão, bum!,
explode!–prosseguiu,reproduzindoaexplosãocomasmãos.–Aladzio...–repetiuogeneral.–Ouentão...Maséclaro!– festejou.–Éaumidade!Amisturaestáúmidademais!Apólvora
nãoreage.–Aladzio!–bradouDun-Cadal,irritado.Durante um longo mês, na estrada de Kapernevic para Émeris, tinham aguentado o
ininterrupto fluxoverbaldeAladzio.Maisdeumavez,Dun-Cadal tiveraque intervirparaqueRãnãoonocauteassecomumgolpedeespada.Noentanto,àmedidaqueseaproximavamdacidadeimperial,osdoismilitarespassaram,senãoaapreciar,pelomenosatolerarsuatagarelice.
–EstouprocurandoRã...–Ah,sim,sim–gaguejouAladzio,esfregandoasmãos.Oinventorgarantiuqueencontrariaopupilojuntoàpassarela,umalongapontedepedraque
ligava a academiamilitar às salas de armas, acimados jardins suspensos dopalácio.Dun-Cadaldeixou-ocomsua invençãoeatravessouopátiodaescola.Desde suavoltaparaÉmeris, e contraqualquerexpectativa,AladzioeRãtinhamsetornadoamigos.Ofatodeseudiscípuloandarporaícom o inventor não o incomodavamuito; Dun-Cadal deixava-o desfrutar de um descanso bemmerecido, longe do caos da guerra. Principalmente, gostava de vê-lo socializando. Rã tinhaconvividomuitopoucocomsuaturma.Oscolegassempreoviamcomdesconfiança, inveja,eRãinstintivamentemantinhadistânciadeles.
Eraumfatoinéditoelespermaneceremtantotemponacidadeimperialsemqueosmandassemde volta para a linha de frente. Sua última incursão, emKapernevic, fora coroada por tamanhosucesso que aquele tempo livre concedido pelo imperador serviu para Rã prestar seu juramento.Somente a ausência de SuaMajestade Imperial, pormotivos de saúde, ofuscou o brilho daqueledia.Deresto,quantasatisfação,quantoorgulhoDun-Cadalsentiuaopousaraespadanoombrodeseupupilo.
Presteojuramento....defenderoImpério...Emboraaguerracontinuasseea rebelião, comopassardosmeses,viesseganhando terreno,
Émerissemantinhatranquilaesossegada,umailhadequietudeemmeioaotumulto.Ocantodospássarossubstituíraosgritosdossoldados.Osolbanhavacomraiossuavesaspedrasbrancasdoparapeito.
...nuncatrilharocaminhodafúria...Ele avistouRã com sua capa cinzenta e, juntodele, uma jovemdeuns 20 anos, trançanegra
caída no ombro desnudo. Usava um vestido carmesim simples, sem nenhum bordado ou outrosinal de riqueza.Talvez a criadade algumaduquesa refugiada emÉmeris.Não.Àmedidaque seaproximava, reconheceu os olhos de um azul intenso e a pele morena, luzidia, e a mesma belaaparênciaqueelaexibiraemGarmaret...Estavamaisalta,maseraela,tinhacerteza.
–Rã!–bradouogeneral.
Cavaleiro...Orapazseviroueseusemblanteendureceu,enquantoamoçasussurravaalgoemseuouvido.
Ela foi emboraantesdeDun-Cadal chegarpertodo recém-nomeadocavaleiro...Agoraeraquaseseuigual.Osdoisficaramobservandoovultograciosopassarpelaextremidadedaponteedesceraescadaquedavanointeriordopalácio,atéqueogeneralquebrouosilêncioemtomdecensura:
–Estouprocurandovocêháhoras.–Jáfoimaiseficiente–respondeuRã,semexpressarnenhumaemoção.Continuava fitando a extremidade da passarela como se amoça ainda estivesse lá. Ele tinha
mudadotantoemtãopoucotempoquantotinhacrescido,jáestavadaalturadeseumentor.Suasfeições haviam se tornado mais finas e também mais duras, as maçãs do rosto estavam maissalientes e linhas marcavam sua testa quando ele franzia as largas sobrancelhas. Já seus olhoscinzentos ainda guardavam um brilho juvenil, embora às vezes fosse possível ver neles umaestranhaseveridade.
–Quando não está comAladzio, está com ela – censurouDun-Cadal. –Você sabe o que euachodisso.
–Estivetreinandocomoscadetes,Pernalta–garantiuRãplacidamente.–Eseamanhãnosmandaremdevoltaparaalinhadefrente?Nãoécomoscadetesquevocê
temquetreinar.Vocêéumcavaleiro,seucabeça-dura!–Estareipreparado–assegurou,finalmenteexpressandosuairritação.Seutomsetornaraseco,
afala,rápida.Exasperado,virou-separaosjardinsemdesníveis,asmãosnabordadapassarela.–VocêestásemprecomMildrel–reclamou.
–Édiferente.– E o imperador não fica o tempo todo mandando você treinar. Tenho treinado todas as
manhãs.Principalmentedesdequemetorneicavaleiro.Tenhoodireitodemeencontrarcomela.–Édiferente–repetiuDun-Cadalsuavemente.–Diferenteporquê?–exaltou-seRã,sustentandooolhardeseumentor.–PorqueMildrelnãoéumarefugiada!Ogarotodesviouoolhar,balançandoacabeça.–Essahistóriadenovo...–faloucomcertaimpaciência.–EujálhedissequandovoltamosdeKapernevic:nãopodemaisseencontrarcomela.Nãovê
comotodomundoandadesconfiandodetodomundo?Négusmealertou.Eeu...alerteivocê.–EutambémsoudasSalinas,esqueceu?–sussurrouRã.Ogarotonãoestavamesmoentendendo.Asrecomendaçõesdeseumentor,queeleviacomo
umainjustiça,nãotinhamoobjetivodeatormentá-lo.–Rã,é sóatéaguerraacabar.Depoisvocêvai ter todoo tempodomundoparacortejaressa
moça...–Queriasemostrarconfiante,maselepróprionãosabiadenada.Osrumosdaguerranãoandavamnadabonseatéacabarpodialevarváriosanos.–Nãoqueroquedesconfiemdevocê.
Depoisdehesitarum instante,pôs amãonoombrodo rapaz.Rã se esquivoucomumgestobruscoeseafastou.
–Aindamaisagoraquefoisagradocavaleiro–acrescentouDun-Cadal.
–Poisissodeviamedarodireitodemeencontrarcomquemeubementendesse–sibilouRã.–Ah,meurapaz,nãopensequejáchegoulá.Vocêaindatemmuitochãopelafrenteaté...–Nãoentendo–queixou-seele, fitandoogeneralcomumolharsombrio.–Paravocênunca
soubomobastante,não é?Não importaoque eu faça,nunca é suficiente.Você algumavezmeelogiou, por acaso? Alguma vezme disse “Muito bem,moleque”?Mesmo depois do juramento,algumavezmedeuparabéns?Euqueriadizerquevocêfoicomoump...Eu...–Nãoencontrouaspalavras certas ebaixouosolhos.Quando tornouaerguê-los, estavacomavozafiada feitoumaespada:–Àsvezeseu...odeiovocê.
Para fugir de qualquer reação, afastou-se a passos rápidos, a capa esvoaçando. Sozinho nomeiodapassarelailuminadapelosolpoente,Dun-Cadalsuspirou,desapontado.Tinhaasensaçãodequenãoconseguiammaisconversar,dequenenhumapalavraeraamelhor,escolhidanomelhormomento.Maisdeumavezadiscussãoentreelesterminaracomogarotoindoembora,comosetudotivessesidoditoenadapudesseserexplicado,apaziguado,suavizado...Nessashoras,pareciaque tudo os separava. E toda vez, ao compará-lo com Logrid, tinhamedo de chegar aomesmoresultado.
Noentanto, eraumarelaçãoconstituídadeolharesdecumplicidadeepalavrasmordazes.Emcertosentido,Rãtinharazão.Elenuncaoelogiara,eporquefariaisso?Ogarotonãoeratalentoso,era simplesmentebrilhante, esforçado,movidoporuma forçaqueninguémentendia.Dun-Cadaltentarasabermaissobresuahistória,descobriroqueele tinhapassadoantesdeseconheceremeque decerto explicava sua motivação. Com o passar dos anos, resolvera aceitar que nada seriarevelado,preferindovê-locresceraouvi-lofalarsobreopassado.Sóofuturoimportava.Eofuturopareciacadavezmaissombrio.O imperadormandarachamá-loeelenão tivera tempodecontarparaRãoqueestavapressentindo.Algoruim...
Suaintuiçãonuncafalhava.Eestavasentindoocheirodamorte.
–OsinsurgentesestãoseaproximandodeÉmeris!–afirmouumavozquelembravaocrepitardaschamas,desagradáveleseca.
Asportas se abriramdiantedo general e foi compassos incertos que ele atravessou a sala, amão no punho da espada. Junto às finas cortinas afagadas por uma brisa ligeira, o trono doimperador,tododeouroeprata,reluziacomumbrilhoopaco.
–OOeste,oSuleoSudestecaíramestamanhã.–Éaquiquetudoserádecidido–previuumidosoqueseapoiavanumabengaladecarvalho.–Deviateragidomaisrápido–concluiuohomemdevozdesagradável,apapadaaumentando
quandoeleinclinouacabeçaparaafrente.Sua corpulência quase ocultava o imperador, e usava um largomanto em tons de azul.Não
havia como ignorar sua semelhança com o capitão Azdeki, a poucos passos de distância. Mas,enquanto Étienne tinha um porte elegante e altivo, seu tio lembrava ummonte de carne flácida
com uma única mecha de cabelos brancos. O barão Azinn Azdeki, dos baronatos do leste deVershã,semprefrequentaramaisossalõesdebanquetes,comoosdasfestasdoduquedePage,doque os campos de batalha. Ninguém reagiu à entrada do general. Apenas o imperador pareceuprestaratenção,oolharsedesviandodeseusconselheirosparafitá-lo.Eramseis.Oprópriotiodoimperador,oGrão-BispoReyesdaOrdemdeFangol, estava ao ladodo sobrinho.OmarquêsdeEnain-Cassart, os cabelos brancos penteados para trás, amão firme na bengala de carvalho, seencontrava próximo ao trono. À direita do barão Azdeki, seu sobrinho estreitava os olhos,pensativo.Àesquerda,impacientavam-seoduquedeRhunstageocondedeBernevin:oprimeiro,corpulentoemseucasacodepele,ooutroapertadonummantopúrpuraatadocomumcinturãoprateado. Ambos tinham propriedades adjacentes e costumavam agir juntos, como vizinhosinseparáveis,semnemmesmoseremamigos.Supunha-sequecadaumencontravanooutrooquelhe faltava para ser importante, já que um tinha a apurada inteligência dos políticos, e outro, ostípicosatributosdoscomandantesdeguerra.
Havia um ano, esses nobres presentes compunham o último círculo próximo do imperador.Aos poucos, e ao sabor dos boatos de que alguns tinham se aliado a Laerte de Uster e seusinsurgentes, os membros da corte haviam sido afastados, restando apenas aqueles seis. Semprerápidos em seus conselhos, generosos nos elogios, capazes de lançar suas verdades com umafirmezaespantosa.
– Temos que encomendar o assassinato de Uster! – exclamou Bernevin. – Sem ele, a revoltaficaráacéfala.
–Não,não– rebateuEnain-Cassart comumavoz fina.–Nemsabemosdireitoondeeleestá,nemaaparênciaquetemagora.Enãoéelequemandaconspirandoaquinopalácio.
–Majestade Imperial– interveioRhunstag, inflandoopeitoparaassumirmais imponência.–Os mineiros já se juntaram a eles. Sem falar nos nâagas, a quem prometeram a liberdade. Astropasrebeldesganharamreforçosconsideráveis.
–Temosqueorganizardesdejáasdefesasdopalácio–reforçouAzinnAzdeki.–Meusobrinhopareceserapessoamais indicadaparaessatarefa,que...–Dun-Cadaldeixouescaparumsuspiroirônico, finalmente atraindo todos os olhares para si. – ... que não admite a mínima falha –concluiuobarão,retesandoomaxilaraoverDaermon.
De todososgeneraisdograndeexército,Dun-Cadalera, semdúvida,omaiscapacitado,masparamuitosnobreseleaindaeraumemergentedapiorespécie.Inúmerasvezesoimperadortiveraquedefendê-lojuntoàcorte,argumentandoqueogeneralvenceramaisbatalhasdoquequalqueroutro homem de guerra. Assim como seu avô, ele dera o sangue pelo Império. Era tão nobrequanto esses que se limitavam a ostentar um título sem nunca terem pisado num campo debatalha.
–Nãodáparaesperarmais,MajestadeImperial–disseBernevin.–Éhoradeserenderàsevidências–acrescentouRhunstag.–Arevoltajáandacorrendosolta
nacidadebaixa.Precisamosdeaçõesexemplares.–OImpérionuncaestevetãofrágil,esomentesuadecisão,sábiaeesclarecida,poderárechaçar
o inimigo para fora de Émeris – assegurouAzinnAzdeki. –Mande prender os conspiradores. É
precisoenforcá-lossemjulgamento,comofezcomaqueleferreirotraidor!–Mostre para o povoquenão está commedo– aconselhouRhunstag. –Abafe a revolta em
Émeris.EpreparemosasdefesascontraosexércitosdeUster.Aquinãoterãomaisnenhumapoio.–Seiquenão lheagrada julgarassimseus súditos,mas foioque fez comOratiodeUster. Já
que as ideias dele sobreviveram, vamos agir antes que reduzam seu Império a cinzas. Devemosdeixarpassaroupunirossuspeitosdeumcomplô?Éprecisotomarumadecisão.Enãohádúvidadequeasuaseráamaisacertada–disseEnain-Cassartesorriu.
Fez-sesilêncio.OolhardoimperadorestavacravadoemDun-Cadal,comosesóelemerecessesuaatenção,comosefosseoúnicodequemesperavaaprovação.Umbandodepardaisbateuasas,assombrasnegrasrevoandoportrásdasfinascortinas.
–Oqueacha,meuamigo?Disfarçandoa inimizadepor trásde sorrisosdébeis, todosaguardarama respostadogeneral.
Dun-Cadal fezumapausa,buscandoaspalavrascertasparaexpressar suaopinião.Tambémnãoera o caso de atiçar a fúria dos nobres presentes criticando sua absoluta falta de discernimento.Embora os considerasse, em parte, responsáveis pela situação, não podia se indispor com elesfazendoacusações.
–Achoqueelestêmrazão,VossaMajestadeImperial–disseporfim.–TemosdenosprepararparaumataqueaÉmeris.
–Ealémdisso?–indagouoimperadorcomumavoztremendamentebaixa.– Além disso, enforcar os suspeitos de conspiração não é amelhormaneira de abortar uma
revoltadentrodacidade.AzinnAzdeki conteve uma exclamação de espanto, chocado por alguém ousar contradizê-lo.
Pareciam galos de quintal, inflando o peito e batendo asas. Somente Enain-Cassart conseguiudisfarçarsuainsatisfação,baixandoosolhos.
–Pelocontrário,sóiriaatiçá-la–garantiuDun-Cadal.–Émesmo?–perguntouoimperador,suspirando.–Masarevoltajáestáaí!–exaltou-seBernevin.– Vai ter coragem de negar, general Daermon, que alguns nobres já têm apoiado os
insurgentes?–questionouRhunstag.–OduquedeErimburgofugiudeÉmerishádoismeses.Tudoleva a crerque algunsde seushomens ficaramaquipreparandoo terrenonãoparauma revolta,masparaumarevolução!
Acreditavam,então,quea imagemde supostos traidoresbalançandonapontadeumacordaseriasuficienteparaaplacarqualquerveleidadederevoltanacapital.Nãoentendiammesmonadado povo, não tinham visto sua coragem no campo de batalha. Aqueles simples camponeses queDun-Cadalcombateradesdeoiníciodaguerra...nenhumdeleshaviabaixadoasarmasaoverseusirmãos tombarem.Muitopelo contrário. Elenotouo olhar dobarãoparaEnain-Cassart quandoesteaproximou-sedoimperador.
–Imaginoquetenhamechamadoporumbommotivo–disseogeneral,preferindopôrfimàdiscussão.–Nãoparaeuaconselhá-loquantoaoquefazer,oqueBernevinjáfazmuitobem.
Ignorandoaalfinetada,Bernevindesviouoolhareergueuoqueixocomaltivez.Dun-Cadalaté
gostariaque ele reagisse,parapodermostrarque ele jamais levaria amelhor.MasnãodiantedeReyes.Seoimperadorochamara,certamenteeraparaencarregá-lodadefesadopalácio.SenãojáoteriamandadodevoltaparaalinhadefrentejuntocomNéguseosdemaismilitares.
Portrásdamáscaradourada,aspálpebrasdoimperadorsecerraram.Precisavafazeraescolhacerta.Ofuturodependiadisso.Evidas...Ouserá...seráquesuapreocupaçãoeraoutra?Eleergueuamão em direção ao bispo à sua direita. Seu tio a apertou afetuosamente esboçando um parcosorriso.
–Compreendoseupontodevista,meuamigo,compreendo–garantiu,meneandoacabeça.–Demodoquetambémpeçoquecompreenda,pormaisqueissopossalhecustar.
–Desculpe,comoassim?–perguntouDun-Cadal,surpreso.–Estava escrito, general– acrescentouobispo, tristonho.–Ninguémpode fugirdasdecisões
divinas...Asportasnofundodasalaseabrirameumadezenadesoldadosentroucomamaiordiscrição.
Dun-Cadal mal os ouviu. Notou sua presença, como também reparou, de repente, na ausênciainabitualdeumapessoaemespecial.
–Elestêmrazão,vocêmesmodisse–prosseguiuoimperadorcomvoztrêmula.–Enquantoopovo enfurecido se aproxima de nossas portas comandado por um louco, suas ideias nocivas játomaramcontadacidadefaztempo...
–VossaMajestadeImperial...–murmurouDun-Cadal.Nãosabiaoqueestavasendotramado.Comoteriaadivinhado?Seucoraçãobateumaisfortee
sua preocupação aumentou. Logrid não se encontrava ali. AMão do Imperador, seu assassinopessoal, não estava escondida atrás das colunas como costumava, pronta para defender seusenhor.Sóhaviaumaexplicaçãoparasuaausência:foraenviadonumamissão.
–Bernevin–chamouoimperador–,façacomqueopovoentendaquenãovoutolerarnenhumtumulto e que será punido todo aquele que puser em dúvida a grandeza do Império e apoiar ainsurreição. Será punido todo aquele que reivindicar a proteção de Oratio de Uster! A começarpelosrefugiadosdasSalinas.
–Certo,VossaMajestadeImperial–respondeuBernevin,fazendoumareverência.–VossaMajestadeImperial...–repetiuDun-Cadal.–Meuamigo,vocêjáfeztanto,tanto!–Oimperadorsuspirou.–Éassimqueeuagradeço.Mas
vocêsedeixoucegarpelossentimentos.–Oquefez,Majestade?–inquietou-seogeneral.Àssuascostas,ossoldadosseadiantavam.–Euosacolhi...–Avozdoimperadorvacilava,tantodetristezaquantodeódio,carregadada
dordeumatraiçãoedomaisabsolutodesprezoporaquelesquedesejaraproteger.– ...eéassimqueelesmeagradecem!
–Amoça– interveioÉtienneAzdeki em tom seco. –Amoçaque anda comesse seu...Rã.OnomedelaéEsyldOrbey.
– A filha do ferreiro pessoal do conde de Uster – prosseguiu seu tio com uma satisfaçãoespantosa.–Juntos,estavamalimentandoumcomplô.Elesemaisoutraspessoas...
–Oquefez,Majestade?!–bradouDun-Cadal,levandoamãoàespada.Ossoldadosjácomeçavamacercá-lo,ameaçando-ocomsuaslanças.–Apenascumpriomeudever!–esbravejouoimperador,jáemseutrono.Umamãosurgiupordebaixodacapa,apoiando-separanãoperderoequilíbrio.–Éjustamenteporsuacausaqueestouagindodestamaneira.Seupupilonãomerecesofrerem
praçapúblicacomoOrbeyesuafilha.–Pelosdeuses!Oquefez,Majestade?!–repetiuDun-Cadal,àbeiradaslágrimas.–Exatamenteaquiloqueosdeusesesperavamdenós!–afirmouobispo.–General,nadado
queaconteceaquijánãoestáescritonoLiaberDest!Apeleparaasuafé.Deixedesercego!PorissoLogridnãoestavaali.Saíraparacaçar.Comosolhosenevoados,Dun-Cadalbuscava
desesperadamente uma escapatória. Precisava sair dali quanto antes, correr ao encontro de Rã,enfrentaroassassino,brigar,sedefender,salvarsuavida,nãodeixá-lonamão,nãoabandoná-lo,lutar,sedefender...nãodeixá-losozinho,semdefesa.EracomoseRãvoltasseaseromeninoqueeleconheceranasSalinas,frágileinexperiente.
–CapitãoAzdeki,cuideparaqueogeneralDaermonsejatratadocomtodaaconsideraçãoquesuaposiçãomerece–ordenouoimperador.–Emseguida,prepareadefesadeÉmeris.
–Nãopodefazerisso!–gritouDun-Cadal,aespadaemriste.Os soldados se retesaram, prontos para intervir, mas Azdeki ergueu a mão, impedindo-os.
Sozinho, cercado, Dun-Cadal bateu na ponta das lanças com o dorso da espada num gesto dedesafio,naesperançadequeumdossoldadosseafastasseparadeixá-lofugir.OndeestavaRã?EmquecorredorLogridestariadetocaia,esperandoporele?
–Elenãootraiu!Elecombateupelosenhor!MatouodragãovermelhodeKapernevicsozinho!–GeneralDaermon...–VossaMajestadeImperial,eleaindaéummenino!Émeiobobodevezemquando,maséo
melhordentrenós!Nãotemodireitodefazerisso!–GeneralDaermon!–repetiuoimperador,elevandoavoz.Dun-Cadalgirava,vezououtraestendendoapernaparainvestir,masosoldadovisadosempre
davaumpassoparatráseretornavaaoseulugar.–Elelutoupelosenhor!Elelutoupelosenhor!–berravaDun-Cadal.–EledefendeuoImpério!SeráqueRãperceberiaaespadaindoemsuadireção?Teriatempodeapararogolpe?Saberiase
defender?Sozinho,perdido,sementenderporqueosqueotinhamacolhidoagoraotratavamcomtantodesprezo.Eraapenasummenino...
Pelassombrasentreascolunas,avançavaovultodeLogrid.Comoqueria,naquelahora,verorosto oculto pelo capuz, perceber um clarãodemedoquando se lançou sobre ele, berrando comtoda sua alma. Os soldados conseguiram conter Dun-Cadal com dificuldade, de tanto que sedebatia.Imobilizaramseubraçoarmado.
–Logrid!–exclamouogeneral,loucoderaiva.–Logrid!Podre!Imundo!LOGRID!Oassassinorecuouumpasso,surpresodiantedetamanhafúria.–Logrid!Euamaldiçoovocê.Amaldiçoo!Pelosdeuses!...Amaldiçoovocê...Sem fôlego, foi ficando sem forças, cansado, perdido, abatido como nunca. Ele, que a vida
inteirapensaraqueumdiacairiasobosgolpesdo inimigo,curvava-seagoradiantedeumgolpedodestino.Oassassinopareceufraquejar,cabisbaixo,oombroapoiadonumacoluna.
–Jáestáfeito?–perguntouAzdeki.Logrid assentiu comumbrevegestoda cabeça.Comamão,o capitãoordenouaos soldados
quesoltassemoloucofurioso.Dun-Cadalcaiudejoelhos,exausto,ocorpoabaladopelopranto.–Nãotemodireito...–EisentãoograndeDun-CadalDaermon...–murmurouAzdeki.EisentãoograndeDun-CadalDaermon...–Sintomuito,meuamigo–reconheceuoimperador,comvoztrêmula.–Nãotiveescolha.Sua
traiçãoserácaladaparasempre,ficarátãosomentesuahonranoscamposdebatalha.Erapreciso,Dun-Cadal.Eusouoimperador.Cabeamimtomarasdecisõesmaisdifíceis.Éomeudever.
...ograndeDun-CadalDaermon...–Prendam-noatéelevoltarasi.Eisentão...
Ocheiroúmidodocárcere,abatidasecanaportade ferro,a impotênciacausadapelaprisão,como se o apartassem da própria vida. Vivera isso em Émeris. Agora ia viver o mesmo emMassália.
–EisentãoograndeDun-CadalDaermon–disseumavoz.Estavadormindo,nãooouviraentrar.Aspalavrasoarrancaramdosonocomcertasuavidade,
atéqueosomsecodaportasefechandooacordounumsobressalto.Osoldatardeprojetavaumaluz fracapelaclaraboiaeovultopermaneceunasombraporalgumtempo.Dun-Cadalsentou-senocatre,massageandoanuca.Nãotinhadúvidasdequemsetratava.Reconheceraasilhuetafinausandoumalongatogabranca.
–Quantosreencontros...–resmungou.–Poisnãoé?–concordouohomem,irônico.Comamãonopescoço, inclinadopara a frente,Dun-Cadal permaneceu calado, erguendoo
olharparao vulto apoucospassosdele.Parecia tão arrogantequantonoporto.Não eraEnain-Cassartquemmereciatermorrido...
–Entre,Étienne,porfavor,sinta-seemcasa.Eleavançousobaluzfraca,revelandoseurostoimberbeeencovado,onarizaquilinoeosfinos
lábioscontraídos,ocabelogrisalhopenteadoparatrás.Umbraçodobradosobreopeito,umpanovermelhonoombro,eleexaminavaoprisioneirocomardedesprezo.
– Estava aqui justamente revivendo antigas lembranças – confessou Dun-Cadal em tomamargo.–OdiaemquevocêsmeprenderamevocêfoiencarregadodedefenderÉmeris.
–Opassadoéapenaspassado–respondeuAzdeki,mantendoatranquilidade.AvontadedeDun-Cadalerapularemsuagarganta,estrangulá-locomforçaatéseusemblante
altivo finalmente se tingir demedo. Azdeki ter chegado aonde chegara era, para ele, totalmenteinconcebível. Ele, que fora o primeiro a enfrentar a revolta, e agora aqueles que mais tardefundariam a República encontravam-se nas fileiras de seu exército. O inimigo de ontem era oamigodehoje.MasnãoparaDun-Cadal.Paraele,oinimigocontinuavasendoinimigo,otemponuncamudariaisso.
–Oque importa é o futuro, sei – ironizouDun-Cadal. –Devodar-lheos parabénspor ter sesaídotãobemdepoisqueoImpériochegouaofim?
Azdeki,semresponder,aproximou-sedocatre,osolhosfitandoaclaraboialevementeaclaradapelo sol poente de Massália. Sentado na beirada, Dun-Cadal o observou sem dizer nada,reparandonalamaquemanchavaabainhadesuatoga.
–Entãovocênãoestámorto!–disseAzdeki,encarandoaabertura.–Comopodeconstatar.–Dun-Cadalsuspirou.–Quantoavocê,certamenteestámaisparaum
políticohábildoqueparaumestrategistamilitar.Talvezfossemelhorjánãoestarnestemundodoquevertantosantigosconhecidos,amigosou
irmãosdearmas,quebrandoosjuramentosdelealdadeaoimperador.–PenseiquevocêtinhacaídonaépocadatomadadeÉmerisedamortedeReyes.–Damortedoimperador–corrigiuDun-Cadal.Azdekiassentiu,umlevesorrisonoslábios,antesdesesentarjuntoaogeneral.–Eunãoomatei,Azdeki–resmungou,cabisbaixo.–Eusei–admitiuoconselheiro,unindoasmãosdelicadas.Mãosbemcuidadasdemaisparaergueremumaespada.–Tentei salvarNégus, tenteiavisá-lodavoltadeLogrid,por issoestava lá–prosseguiuDun-
Cadalcomumavozgrave.–Omundomudou,Daermon.Ossalvadoresdehojenãosãoosmesmosdeontem.Vocêtem
sorte.Sendoquemé,dariaumculpadoideal.Masumajovemdepôsaseufavor.Viola... Embora não demonstrasse, Dun-Cadal sentiu-se aliviado. Essa garota era mesmo
simpática.Primeiro,mudarasuavidaaoprocurarporele,eagoraosalvava.–Vocêtemsorte.Senãofosseporela...Azdekideixouafraseemsuspensoeolhoudiscretamenteparaogeneralcomoseparaconferir
queeleimaginavaospioressuplícios.–Éporqueeununcamerendi,nãoé?–perguntouDun-Cadal,suspirando.–OódiopeloImpérioaindaémuitoforteemalgumaspessoas–admitiuAzdeki.–Mastodos
osgeneraisrenegadostidoscomoperigososforampresos.Dun-Cadalconteveumarisadadenervosoepassouamãopelorosto.Éclaroque,aosolhosda
República, ele não era perigoso. Ele, que, no entanto, em seus tempos de glória, tantas vezesmudara os rumos de uma batalha.O problema era que, semRã, já não passava de um generalinofensivo.Seuprestígiosedissolveranovinho.
–Quantoaisso,nãotemoquetemer–acrescentouAzdeki,selevantando.–Porquê,então?–Porqueeuvimvê-lo?–perguntouoconselheiro.–MeufilhovaisecasarnodiadaNoitedas
Máscaras. Souumconselheiro eleitopelopovo e, assimespero, amadopor ele.Passei a vida emmeioaospoderososehouveumaépocaemqueviviàsombradeumgeneral...
Azdeki játinhalhedadoascostas;comoportealtivo,saboreavaaquelemomentoeodeixavase estender no silêncio. Dun-Cadal ficou sentado em seu catre simples de madeira com umaexpressãoabatida,asujeiradapeledisfarçadaapenaspelabarba.Entendeu,porfim,omotivodavisita e fechou os olhos. Como era penoso esperar pela resposta, sabendo que ia acabar com opoucodehonraquelherestava.Oconselheiroinclinoudeleveacabeça,semnemvoltar-separaoprisioneiro.Porqueofaria?Pararebaixá-loaindamais?
–QueriavercommeusprópriosolhosoqueograndeheróiDun-Cadaltinhasetornado.Seguiuemdireçãoàportaapassoslentos.–Azdeki!O conselheiro parou, já prestes a bater nometal para sinalizar ao carcereiro que a conversa
terminara.Massuamãodeteve-senoar,imóvel.–Quantosvocêssão?–perguntouDun-Cadal.–QuemmaissevendeuparaaRepúblicapara
conservaralgumpoder?Mediga.Nãohavianenhumódioemsuavoz,sódespeito.Fizeraessasperguntasentrelongossuspiros.
Parado diante da porta, Azdeki não esboçou nenhum gesto. Refletiu alguns instantes antes deresponderemtomglacial:
–Você nunca foimuito inteligente, não é,Daermon?Nunca viu nem entendeu o que estavaacontecendo.Omundopodiaterdesabadosobosseuspésquevocênemteriasentido.
Négusdissera-lhealgoparecido.Teriasidocegoaesseponto?Teriasido,nofimdascontas,umsimplesguerreiro,ummeio,uminstrumento...
–Eratudotãoprevisível,visível...Estavaescrito–disseAzdeki,sorrindo.–Eraparaserassim.OImpérioeraàimagemesemelhançadeseuimperador...doente.–Virou-se,opunhoaindaerguidoem frente à porta. – É estranho... Pensei que sentiria mais prazer ao ver você nesse estado tãomiserável.
Semerguerosolhos,Dun-Cadalrespondeu,unindoasmãoscomoemoração:– É estranho, Azdeki, mas fico feliz por você não ter conseguido deter Logrid. – Seu olhar,
então, lentamente desafiou o do conselheiro. – Porque todos os seus jogos de poder não serãonadadiantedavingançadele.Eleentãofaráaquiloqueeusouincapazdefazer.
Azdekicrispouoslábios,osmaxilarescerrados.Hesitouantesdebaterenergicamentenaporta.Ocarcereiroabriuemmeioaumtilintardesagradável.
–Osdeusestêmpenadosbêbados,Daermon.Vocêestálivre.Porumbreveinstante,Dun-Cadaljulgouavistarumbrilhonoolhardoconselheiro.Foioque
bastouparaesboçarumsorriso.Naquelebreveinstante,perceberamedonaqueleolhartãoaltivo.
12
Ondesecruzamoscaminhos
Sódepoisdeasrecordaçõesodespertareméqueireimerevelar.
Aqui,ondesecruzamoscaminhos
daquiloquefomos,daquiloquesomosedaquiloqueseremos.
–Euseioqueestápensando,meuamigo.Seiquenãomeentende.Avozdoimperadoreraabafadapelapesadaportadacela.Naescuridão,acabeçaapoiadano
metalfrio,Dun-Cadalouviaaprópriarespiraçãosibilante.Estavaalisentadonaterraúmida,mudodeindignação.Seusdedoslentamenteescavavamsulcosnochão,comoválvuladeescape.
– Não me julgue apressadamente – prosseguiu Reyes. – O peso do poder, a maldição, éexatamente isso.Às vezes, parapreservar a integridadedomeu Império, preciso ferir quemme épróximo.Nãome julgue. – Esperou,masDun-Cadal não disse nada. – Eu tinha que protegê-lo.Tinhaqueprendê-loatévocêrecobraracalma,arazão.Compreenda...
Asúplicanãoteveresposta.Oimperadorentãocontinuouafalar:– Você sabia, não é? Sabia que gente ligada a Laerte de Uster tinha se infiltrado na cidade,
jogandomeusmaisfiéisconselheiroscontramim.Vocêsabia.EuacolhiosrefugiadosdasSalinaspensandoque faziaocerto,maselescuspiramnamãoqueestendi.Foi loucuraacreditar,mesmopor um instante, que um fruto podre pudesse voltar a ser verde. Entre eles estava a filha doferreiro...Eleestámorto.Ela talvezquisessevingá-lo,vá saber!Nãopodiadeixarquedesvirtuassealguémcomooseuaprendiz.Elaoestavajogandocontravocê,evocêestavacego,Dun-Cadal.OcavaleiroRã...
–Nãopronuncieonomedele!–revoltou-seogeneral,àbeiradaslágrimas.Sua voz ressoou como um trovão e em seguida fez-se um silêncio pesado. Inclinou a cabeça
para trás, sentindoometal friodaporta.Então, ainda escavandonervosamente a terra, deu trêscabeçadas bruscas, suportando a dor que se espalhava para as têmporas, mas sem abafar osofrimentoquedespedaçavasuaalma.
–Mais cedo oumais tarde, ele ia conspirar com ela,Dun-Cadal – afirmou o imperador comumavoz triste.–Sabedisso,não é?Ele a amava.Acabaria conspirandocomela.Um jovem,poramor,écapazdequalquercoisa,inclusiveperderasipróprio...Erapreciso.
Haviaalgoerradonasuamaneiradefalar.Articulavaaspalavrasdeumjeitoestranho,comoseduvidasseousecontrolasseparanãodizerocontrário.OquepareciaóbvioparaDun-Cadaléqueelenãoestavadizendotodaaverdade.
– Eu não tive escolha – continuou, com uma segurança espantosa. – O único e exclusivoculpadoéesseLaertedeUsterquedividiuomeupovo.Acredite,vouprotegerÉmeris.Vourechaçara revoltaatéos confinsdo Império.ELaerte...Laerte...Elenão terádescansonemrefúgio.Diaenoite,emtodolugar,nãoserámaisqueumapresafugindodeseupredador.
Media cada frase, cada palavra pronunciada, com tanta gravidade que até o ar pareciamaispesado.Asham Ivani Reyes já tinha,muitas vezes, desabafado como general. Conhecia-o desdecriança.Porém,nessecaso,nãosetratavadeconfidência.Eracomoseelebuscasseaabsolvição.
– Perdiminhamãe quando vim aomundo. Perdimeu pai aos 10 anos. Precisei aprender areinardesdepequeno,meuamigo.Eutinhaumdeveracumprir:conduziromeupovo.DesdequeveioparaÉmeris,vocêsempresoubemeproteger.Sempreesteveporperto,Dun-Cadal.Você,esseambicioso que tanto respeito... Até que um dia pousei Eraed no seu ombro e fiz de você umgeneral.Nãofoiumsinaldaminhaafeição?
Paroupararecobrarofôlego.Suavozestavatrêmula,abafada.Doente.–OhomemfortedoOesteprotegendoumimperadorcarcomido,quemalseaguentavaempé,
umimperadortoloefraco–murmurou.–Vocêmereciaqueeuotornassecavaleiropessoalmente,poisaespadaquecarregoéoImpério,sabe?Comseupoder,suabeleza,suaforça.Suprema,reta,de um equilíbrio perfeito. Alguns dizem que ela é mágica desde que foi forjada. Desde temposimemoriais sempre esteveno cinturãodos comandantes deste reino.Atravessou o tempo sem sedeixarenfraquecer.Émuitomaisquetudoisso,maisqueotempo,maisqueoshomens,maisquequalqueroutracriaçãodeles.Aofinaldomundo,hádepermanecerEraed,sualâmina...Dizemqueé capaz de quebrar qualquer coisa. E, enquanto meu povo se dilacerava, quando essa revoltaprecisavaser“quebrada”,eunemmesmoapuxeidabainha...
–Osenhoréfraco–respondeuDun-Cadalemtommonocórdio.Nemchegavaaserumataque.Apenasaverdade,ditadeformabrutal.–Semprefui–respondeuoimperador,rindo.–Semprefui,meuamigo.–Eraumrisorepleto
de tristezae,quandoseextinguiu, sórestoumágoaemsuavoz.–Não foipor issoquemeu tioemeu pai o nomearam minha Mão? Sabe como eu sou fraco, repulsivo. Para muitos, sou ummonstro, quandona verdade... – Fez umapausa antes de pigarrear. – ... na verdade souumpaipara eles. Quero dizer, para o povo. O que será dele sem mim? Querem tomar suas própriasdecisões, não é esse o famoso sonho de Oratio de Uster? Será que acreditam de fato que sãoresponsáveis por suas escolhas? Eles não passam de crianças. Sou responsável por eles. Por esteImpério.Assimestáescritodesdeanoitedostempos.
– A eles o senhor escutou – sussurrou Dun-Cadal. – Azdeki, Rhunstag, Bernevin... Eles otransformaramnumfantoche.Nãomevenhafalaremresponsabilidade.
Interpretouosilêncioqueseseguiucomoumaconfissão.–Nãoétãosimples–defendeu-seo imperadordooutro ladodaporta.–Aconteceramtantas
coisasporaquienquantovocêdefendiaoImpérionalinhadefrente...Sim,eupoderialhecontar,masqualquerpessoacontariaumahistóriabemdiferente.–Ouviu-seumsommetáliconaporta.Osomdeumníquel...–Comoasduas facesdeumamoeda–murmurouele.–Deumlado,estáaimagem da minha mãe. Do outro, o brasão do Império. Duas coisas aparentemente distintas,tantona formaquantono significado, eno entanto... trata-sedeumaúnica emesmamoeda.Omesmoacontececomosfatos.Dependendodequemrelata,mudamdaáguaparaovinho...
Oqueeleestavatentandodizer?Defenderaaquelehomemdesdeamaistenraidade,tinhaidoao infernoporele.Eaquelehomemhavia lhe tiradooqueeleconquistarademaisprecioso,maispreciosoqueaglória,queasvitórias.Tinhaarrancadoumpedaçodele.
–Euordenei a execuçãodeOratiodeUsterporqueele eraperigoso.E ele era,Dun-Cadal... –Ouviuoimperadorselevantar.–Assimmedisseram–acrescentouReyes.Ouviutambémosomdesuamãopousadanometalgeladodaporta.–Amesmacoisacomseu jovemamigo...Foiassimquetudoaconteceu,Dun-Cadal.Desussurroemsussurroaopédeumouvido...Tudo,naverdade,jáestádecididodeantemão.Éassimqueissodeveacabar...semoseuperdão,imagino.
Seuspassosseafastaramlentamente,comoumalembrança...umamemóriadistante.
Aescuridãodacelasedesfezdandolugaraumaluzsuave,morna.OsoldeMassáliasepunhaao longe, atrás das casas altas de sacadas floridas. Sim, o imperador já não era mais que umalembrança,eDun-Cadal,umhomemderostomarcadoebarbagrisalha.
– Não precisa agradecer! – exclamou uma voz suave quando ele enveredou por uma vieladeserta,preferindoevitarotumultodaavenidaprincipal.
Olhando rapidamente para trás, reconheceu o rosto cordial da jovemhistoriadora de Émeris.Elasorria,algoqueelenãotinhaamenorvontadedefazer.Seguiuseucaminho,massageandoanuca.Umcanecocairiamuitobem.
–Mas,sequiseragradecer,vouentendercomoumelogio–insistiuViola,quasecorrendoatrásdele.
Dun-Cadal andava rapidamente,decidido.Ela ia ficar atrásdele, sabiaquenão ia se livrardajovem.RessoavamemsuacabeçaaspalavrasdeLogrid...
Nãovoulutarcontravocê.Nãoenquantoeunãotiveraespada.Eraed.Viola queria Eraed. Logrid também a queria. Ele não tinha dúvida de que conseguiria
levaraquelesegredoparaotúmulo.Sóqueacuriosidadeomordia.Nadaaconteciaporacaso.– Pensaram que o senhor tinhamatadoNégus. Falei para eles que não podia ser verdade –
explicouViola, tentando caminhar ao seu lado. – Tive que interceder a seu favor.O conselheiroAzdekideixoubemclaroque,deagoraemdiante,osenhorestásobminhavigilânciaeeu...Puxa!–Otomdesuavozsubiraaospoucos,atéestalarfeitochicotequandoelaparouderepente.–Será
quedáparameouviruminstante?Ouissoépedirdemais?–bradouela.Viola estava ali, tesa, as mãos cerradas junto às coxas, as sobrancelhas franzidas, com seus
óculosredondos.Osolhosverdesoparalisaramquandoelesevirou.Perdeu-seneles,perturbado,totalmente tragadopela juventudede seurosto jovem.Viola,definitivamente,nãodesistiria.Nãoerasóporinteressequeotinhalibertado.Não.Davaparaperceberorespeitoemseuolhar.Entãoseusemblantesesuavizou.
–Obrigado.–Pronto,jáéumprogresso–disseela,bufandoerelaxandoosombros.–Osenhornãoénada
fácil.Dun-Cadalfinalmenteesboçouumsorriso.–Porqueestáfazendotudoisso?–perguntou.–Fazendooquê?–Infernizandoaminhavida–respondeuele,semdesfazerseulevesorriso.Elaselimitouafranziratesta.–Pelaespada–confessouViola.–Euajudoosenhoreosenhormelevaatéaespada.Elemeneouacabeçadevagar.–Muitobem.Entãovoltouaandar.–Oquê?Sóisso?–surpreendeu-seela.–Ei,espere!Maisumaveztentoualcançá-lo,masele,cadavezmaisdepressa,jáchegavaaofimdaviela.–EoconselheiroAzdeki?Faloucomele?Oquefoiqueeledisse?ELogrid?Oqueaconteceu?Viola o enchia de perguntas, mas ele não estava disposto a responder. Entraram numa rua
pavimentada sem muita agitação, onde circulavam apenas alguns transeuntes. Não havia alimercadores,gritos,guardas.Somenteavidasimplesdacidade.Algunsvoltavamparacasa,outrosconversavamembancosjuntoaumapequenafontequevertiaáguaclaranumtanquecobertodealgasverdes.
–Afinal,aondeestáindodessejeito?–quissaberViola.Eleavistouumaestátuanofinaldarua,nocentrodeumpequenocruzamento.Meioencoberta
dehera,ummusgomacioligandoopedestalàúmidapavimentaçãodeMassália,ninguémparecianotá-la. Representava um homem brandindo uma espécie de pergaminho e prestes a anunciarumagrandenotícia.
–Queriaqueesseseutatuadonosdeixasseumpoucoempaz–declaroueledesúbito.Quandoelesevirou,Violaempalideceu.–Eleestáaquiparameproteger...–assegurou.Atrásdela,ovultomaciçodonâaga surgiuda sombradeumasacada.Dun-Cadal lhe lançou
umolharferozantesdesevoltarnovamenteparaamoçacomumsorrisoforçado.–Quersaber?Eunãoteriatantacerteza.Incomodada por ter caído na armadilha, ela abriu a boca para protestar,mas Dun-Cadal já
recomeçaraaandaracelerandoopasso.– É assim que me agradece? Já está ficando antipático de novo! Em que boteco vai se
embebedardestavez?– Não vou me embebedar – respondeu ele secamente e reduziu o passo ao chegar a um
cruzamento.–Oquefoi?–impacientou-seViola.Diante dele estava a estátua, o pedestal cercado de grades de ferro por onde escorria a água
estagnada das ruas. Estava como nariz quebrado, os detalhes esmaecidos, a hera subindo até oombro,maselea teriareconhecidoemmeioaoutrasmil.AindanãohaviapassadoporalidesdequechegaraaMassália.Fechouosolhos,inspirandoparaespantaraslembranças.Nãoadiantou,foi até pior. As imagens da queda de Émeris ressurgiam do nada, ofuscantes, avermelhadas porchamas vorazes que se moviam freneticamente em meio a nuvens de fumaça suja. Reviu a simesmonoscorredoresdopalácio,tossindo,pigarreando,perdido...
Acordaracomumaexplosãoevira,estupefato,aportadesuaceladobradaaomeio,aparedeparcialmente desabada. Por todo lado, explosões que pareciam trovões abalavam o edifício.Mescladoaoclamordedistantescombates,escutavaobaterdasespadassemconseguiridentificardeondevinha.Saíradesvairadopeloscorredores,aturdido,atestaensanguentada,orostocobertodepoeira.Sabiaaomenosparaondeir?Émerisestavasendoatacadaeosinsurgentesjáinvadiamopalácio.Azdekinãoaguentara.Sabiaaomenos...
Desúbito,paroudiantedaportaduplasementenderoqueolevaraatéali.Abriu-acomtodaaforça,semsaberdatristecenaqueestavaprestesacontemplar.Quevontadeoguiava?
Equalnão foi sua amargura ao avistarovulto contorcido, envoltona capanegra, amáscarareluzindo a poucos centímetros damão inerte. Estava deitado, silencioso, a luz tremeluzente daschamastraçandoseucontorno.Atrásdele,erguiam-seascortinasconsumidaspelofogo,vibrandoaoecodoscombates.Nenhumpássarocantavanascopasdasárvoresqueabraçavamasacadademármore.
Dun-Cadal se ajoelhou ao seu lado. Cobriu o rosto, imóvel até o fim dos tempos, com amáscaradourada.
Por pouco não saiu da sala assim, tomado pelo rancor, sem entender nada. Por pouco nãofugiu,esquecendo-sedela.
Maselanãopodiacairnasmãosdosinsurgentes,tendoemvistatudooquerepresentava.Elealevara consigo, atravessando as ruínas de um Império em chamas... Eraed saíra do cinturão doimperadore forapararcomelenaquelacidadeportuária.Percorreraosantigosreinos,que foramseapaziguandoaospoucos.AtéMassália...
–Essaestátua...éumadasqueforamconstruídasemhomenagemàproclamaçãodaRepública
–observouViola.Ele abriuosolhosdevagar.Umclarão alaranjado, suave e caloroso aureolavaomonumento.
Bemmenosintensoqueodofogocrepitando.–É–admitiu,comosefalassesozinho.–Pensandobem,nãodeixadeserirônico.A jovem não respondeu de imediato. Observou-o enquanto ele dava a volta no pedestal,
espiandoascasasdaesquina.Franziuocenho.–Oqueéirônico?–perguntouporfim.Ele parou de repente, o rosto parecendo mais rijo ao ver um portão de ferro ligeiramente
escondidoporumvãonumafachadaondeahera,maisumavez,faziaasvezesdecortina.– Eu ter escondido a espada aí embaixo – murmurou Dun-Cadal, aproximando-se com ar
preocupado.–Estáquerendodizerque...–sussurrouViola.Osolhosdela procuravamdesesperadamentepelonâaga. Semomenor receio,Dun-Cadal já
abria o portão, agarrando as grades para puxá-lo. Precisou tentar várias vezes até finalmenteconseguirdestravá-locomumrangidoestridente.Faziadezanosquenãocruzavaaqueleportão.
–Osenhoraescondeuaqui?–concluiuViola,atônita.–Aquimesmo,emMassália?Elaobviamentenãotinhacogitadoessapossibilidade.Nanoiteemquehaviamseencontrado,
ele mencionara os territórios do Leste. Era o lugar que ele sempre citava quando, totalmentebêbado, se punha a falar sobre a queda do Império. E todo mundo tinha acreditado... Se essehomem estava dizendo a verdade, era nos territórios do Leste, não longe deVershã, onde haviaescondidoEraed.Dun-Cadalconteveumsorrisodeescárnio.
–Eufalodemaisquandobebo,vocêmeconhece.NemimaginaquantoscaçadoresdetesouroscostumampercorrerVershã...–disse,tirandoumpalitodefósforodobolsodocasaco.
Cruzouoportãoedesapareceunaescuridãodeumaescada íngreme.Umcheiropestilento seespalhou,ardidoesalgado.Violafezumacaretadenojoedesceuaescada,tomandoocuidadodeconferirseRogantestavaapoucospassosatrásdela.
Naescada,Dun-Cadalacendeuumatocha,ecomelaateoufogoàsoutrasquehavianaparede.Os degraus brilhavam à luz do sol que entrava pela grade, somada à das tochas. A escada
descia numa curva e chegava a um conduto subterrâneo no qual corria uma água fétida. Àsimundíciesarrastadaspelacorrentemisturavam-seratosdotamanhodegatos.
–Maravilha...–ironizouViola.Àbeiradocanal,Dun-Cadalaguardava.Oclarãodas tochasoscilavaemarcavaoscontornos
de seu rosto sério. Roedores enormes passavam por suas pernas sem que ele se importasse. AocontráriodeViola,quemediaseuspassoseerguiainstintivamenteovestidocommãostrêmulas.
–Umamaravilhafervilhante–acrescentouelanumsussurro.Masnãorecuou.Avançoutateando,decertocomumacaretadenojo,masestavadeterminada
anãoperdê-lodevista.ParaDun-Cadal,eraumalívio.Talvezfossemesmoaescolhacerta,enãoummeroimpulso.QuaisquerquefossemosmotivosdeLogridparaviratéMassáliaematardoisconselheiros, tudo parecia apontar para Eraed. Se Logrid ouvira dizer que Dun-Cadal a tinhaescondido,talvezdeduzissequeestavaali,nacidadedoSul.AntesVioladoqueele.Ovelhogeneral
estavamesmodecididoaentregaraespadaparaajovem.Decertaforma,elamerecia.Seguiuocanalatéumamploaposentoemqueaáguasejuntava,vindadetrêstúneissimilares.
Ascorrentesuniam-seemtornodeumagrandelajeoctogonalbanhadapelaluzdosol.Acima,asgrades de evacuação junto à estátua eram como estranhas persianas salpicadas de sujeira. Violasoltou o vestido, pouco à vontade. Caminhar desse jeito era um entrave. Apertou o passo,contendo um grito quando um roedor roçou sua canela. Assim que alcançou Dun-Cadal, ele afitou,eelaretribuiucomumacaretadepoucosamigos.Deviaestarpraguejandoporqueogeneralalevaraali,atéosdejetosdacidade.
Tinha enterrado o derradeiro símbolo do Império naqueles esgotos fétidos. Surpreendente,vindodeumhomemquetantolamentavaofimdoImpérioeaindaoconsideravaoúnicoregimeaceitável.Elecruzouoaposento,passouporcimadalajee,depoisdecontarostúneiscomoolhar,parounafrentedeumdeles.
– Por que disse que ela estava nos territórios do Leste? – perguntou Viola, observando-oenquantoeleseajoelhavaevasculhavaumareentrâncianapedra.
Sentiunáuseasaovê-loespantarosratoscomamão.Eleemseguidaenfiouobraçonoburaco.–Eporquenão?–sussurrouDun-Cadal.–Achoqueseioporquê–declarouamoça.–Seeraparamentir,omelhor lugareraoponto
maisaltodomundo,nãoé?AssimmuitosanossepassariamatéEraedvirarumalendaeninguémmaisseatreveriaouse
interessaria em procurá-la. As montanhas de Vershã eram conhecidas por serem extremamenteperigosas.
Dun-Cadal tirou o braço da cavidade, trazendo na mão um objeto longilíneo envolto numgrossopanomarrom.Colocando-senocentrodalaje,tratoudetirarotecido.Aospoucos,surgiuumalâminacujobrilhootemponãotinhaalterado,clarae lisaatéaguardatorneadaeopunhofinamente esculpido. Sua perfeição era tão evidente que ninguém deixaria de vê-la como umacriaçãodivina.
–Aquiestá–sussurrouDun-Cadal.–Eraed.Segurava-arespeitosamente,hesitandoemmanejá-lapelopunho.–Porquê?–arriscouViolatimidamente,estreitandoosolhoscomardesconfiado.–Nãoeraoquevocêqueria?–respondeuDun-Cadalemtomseco.–Poisaquiestá.–Estendeu
obraçopara lheapresentaraespada.–Pegue-a.ÉaEspadado Imperador,deve teralgumvalorparaoseumuseudaRepública.Pegue.
Hesitante,elacontornoua laje lentamente,seuolharoscilandoentreaespadaeorostotensodogeneral.Aquelaeraaúnicacoisamaterialqueoligavaaohomemqueforaumdia.Eeleestavaprontoparaseseparardaespadasemamenorcerimônia.
–Porquê?–repetiuViola.–Porqueelamereceum lugarmelhorqueeste– respondeuogeneral semmuitaconvicção.–
Talvezporqueeuachequevocêtemcondiçõesdeprotegê-la.–Protegê-la?Doquê?–indagouela.–Dequem...–respondeuele.
Semconseguir disfarçar o tremordasmãos, ela as uniu às costas.Dun-Cadal fitou a lâmina,sabendoqueelahaviaentendido.
–Maisalguémpediuaespada.–Logrid–confessouelecomumsuspiro.–ImaginoqueLogridtambémaqueira.Viola fez o possível para disfarçar o alívio que sentia. Mas era óbvio que o general estava
absortodemaiscomalâminaperfeitaquetinhanasmãosparaprestaratençãonela.–Vocêmeajudou–admitiuDun-Cadalemvozbaixa.–Vocêmeouviu...Seus olhos tristes se voltaram para ela, mergulharam em seu olhar como se tentasse
desesperadamentesesegurar.Atéentão,paraamansaroidoso,elacontaratãosomentecomumperfumede lavanda.Sua tenacidade, seuhumoresua juventude tinhamfeitooresto.Dun-Cadalgostavadela.
–Vocêmerece...–disseele.–Vocêaqueria,poisentãopegue.–Estendeunovamenteosbraçospara ela, apresentando a espada com certa deferência. – Ela nuncame foi demuita serventia –explicou.–Olugardelaénummuseu...
–Porquemudoudeideia?–indagouViola,curiosa.–Porquê?–retrucouelecomumrisonervoso.–Éumasimplesespada.–Umaespadamágica.Elebalançouacabeçacomumsorrisodesanimado.–Vocênãoentende...–disseDun-Cadal.–Elapertenceuàsgrandeslinhagensdestemundo.–Elanãoémágica–murmurouele.–Foiforjadaemtemposimemoriais,éencantada,écapazde...–Vocênãosabedenada!–exaltou-seele.–Vocênãoentende!Nãopassadeumaespada.Por
acasoelasalvouAshamIvaniReyes?Seu rosto se contorciade raiva. Lágrimasbrotavamem seusolhos.Diantedele, porém,Viola
permaneciaimpassível.Atrásdovelhogeneraldelineou-seaimponentesilhuetadeumnâaga.–Você acha que elamudou alguma coisa? – prosseguiuDun-Cadal. –O Império caiu... e eu
comele.Entãomediga,ondeestavasuasupostamagia?Eununcaaviserdesembainhada.Tudooquedizemsobreelanãopassadebaboseira!Elaserviuamuitosimperadores,masnãoprotegeuoúltimodeles.
Lembrou-se de simesmo debruçado sobre o cadáver ainda quente do imperador. Um corpoinertejazendonomeiodopalácioemchamas...
–Suamagiatalveznãosejaessa.–Elanãoémágica!– insistiuele.–Éapenasumsímbolo!Seráquevocênãoentende?–Sua
raivasetransformouemamargura,esuavoz,numsussurro:–Eraednuncapassoudeumsímbolo.EmnenhummomentoDun-Cadalseatreveraatocarnopunho,preferindosegurá-lacomose
fosseumobjetoprecioso,napalmadasmãos.–Equemmais,alémdeDun-Cadal,poderialhedartantaimportância?Eleficouimóvel,pareciaparalisado.Reconheciaaquelavoz,emboraestivessemaisgrave.Eraa
mesmadicção,amesmatensãoemcadapalavrapronunciada.Saindodeumdostúneis,ohomem
avançavacomumandarfelino,orostoencobertopelocapuz.Astochasrealçavamocontornodacapaverde,dasbotasdecouroeluvas.Emseucinturão,ocabodeumaespadaemqueelepousavaamão.
–Mas...mas...–balbuciouViola,lívida.– Um símbolo que você teve o cuidado de não deixar em Émeris. Não surpreende que um
homem que passou a vida servindo e dando tudo de si a um Império queira levar consigo umpedaçodele...antesquetudoardaemchamas.
Dun-Cadalpermaneceuimóvel,ocoraçãodisparado.Tambémempalideceu.Desoslaio,viuqueonâagasurgiadaescuridãodeumdostúneis.
–Issonãoestavaplanejado–balbuciouViolaporfim.–Isso...–Planejado...–repetiuDun-Cadalnumsussurro.Ohomemdeteve-seapoucospassosdalaje.–Euqueriavê-lo,Viola.Nadapoderiameimpedir–rebateuavozabafada.Onâagavisivelmentenãoestavagostandodasurpresa,maslimitou-seacruzarosbraçosese
recostarnaparedeabauladadoaposento.Chutouparalongeumratoquepassavanasuafrente.–Seiquemvocêé...–começouadizerDun-Cadal,agargantaseca.Ohomemassentiudevagar.Dun-Cadaleracapazdejurarqueeleestavasorrindo.ComEraed
nasmãos, não se atrevia a fazer qualquer gesto nem conseguia desviar o olhar.Não tinhamaisforçasparatanto.
–PenseiquefosseLogrid–confessou,comumquêdetristezanavoz.–Masporque...porquetudoisso...
–Nãoéumaboaideia.Melhorvocêirembora–disseViola,segurandoseubraço.–Queríamosaespadaeconseguimos.Éinútil.
Ohomemaignorou.–Foramtantascoisasquevocênãoquisver–acusouohomem.–Vocênãofazideiadoqueeu
passei.Nãofazamenorideia.–Pareenquantoétempo–suplicouajovem,apertandoseubraço.Eleaempurroulevemente.–Sevocêsoubessequantomesentiperdidoaoseulado,oódioquesenti,quantomeculpei.Àsvezeseu...odeiovocê.–SeusantigosamigostraíramoImpérioeagoravãoatacaraRepública.Nãoéespantosoque,
parasalvaraRepública,precisemosdaespadadoúltimoimperador?Ironiadodestino...Inúmerasperguntasqueimavamseus lábios,masporqualdelascomeçar,qualdelasaplacaria
aqueladorquebrotava?Ali,usandoacapadeLogrid,jánãooreconhecia.– E eles agora querem perverter o sonho de meu pai – afirmou o homem com a maior
tranquilidade–,masnãovãoacabarcomoquerestoudele.Precisamosdaespada...–Seupai...Umapartedesuavidadesmoronava.Pormaisquetentasse juntarospedaços,nãoconseguia
formarum todocoerente.Ohomemassentiubrevementee então tirouocapuz, revelandoenfimumrostoqueeleacreditaraquenuncamaisveria.
– Eume perdi, Pernalta. Atémeu nome foi tirado demim, por vários anos. Eu escolhimeucaminho.Eseiquevocênãovaigostardele.
–Laerte–disseViola,preocupada.Dun-Cadalsentiuqueseucoraçãosepartia.–DeUster!–exclamou,estupefato.Essehomemdeixoudeserdecarneeosso,virouumboato.Como as duas faces de uma moeda... O mesmo acontece com os fatos. Dependendo de quem
relata,mudamdaáguaparaovinho...
ParteII
1
Destino
Ironiadodestino
oudesejodosdeuses
daraumhomemachance
dealimentarseupróprioinimigo?
Oprimeirobeijo,aprimeirapalavradeamor,oprimeiroabraço...Avidadeumhomemérepletade acontecimentos que ficam gravados para sempre em suamente.A primeira arma, o primeirogolpe,aprimeiramortepelaqualfoiresponsável...Quemconsegueselembrarouterconsciência,entretantasprimeirasvezes,domomentoemqueavidaadquiresentido?Domomentoemqueodestinoassumeocontroledetudoeolevaatrilharumúnicocaminho.Essemomentoaconteceradezesseteanosantes.
–Nãoéassimquesefaz,Laerte–disseumavozsuave.As Salinas estavam sob o comando do conde de Uster, um homem respeitado por seu
discernimento, suaautoridadeesuaclemência.Eraumhomemde letras,ágilcomaespada,mastão apaixonado pela pena que era conhecido por deixar a lâmina embainhada quando outros ateriam usado para serem obedecidos. O povo o amava tanto por seus talentos de espadachimquantoporsuacultura.Eleosesclarecia.
–Éassim–explicouela,segurandonasetaparaprendê-lanabalestra.Naquelaépoca,ninguémpodiaimaginarque,daliadoisanos,aguerraestariaincendiandoa
região.SeOratiotinhaalgumaculpa,eraporblasfemar,masmesmoosmaisreligiososentreseussúditos o perdoavam facilmente. Indode encontro às leis dosmonges de Fangol, ele escrevia aspróprias obras–quenão eram registros e, sim, reflexões sobreo futurodestemundo– e fazia-ocomtantainteligênciaqueelasjávinhamsendosecretamentediscutidasemÉmeris.
AmoçapegouabalestradasmãosdeLaerteemostrouoquetentaraexplicar.–Vocêapoianoombro,assim,fazpontaria...–calou-seuminstante,concentradanoalvo–...
eatira–sussurrou.Apertouogatilhoe,numestalidoseco,a seta secravounacascadeumaárvore.Semnadaa
acrescentar,devolveuaarmaaogarotocomumsorrisozombeteiro.Erabonita,oslongoscabelosnegros caindo em cachos nos seus ombros desnudos. O vestido verde se ajustava às curvasincipientes de seu corpo recém-saído da infância.Ainda não era umamulher,mas tentava ter aaparência de uma. Decerto era por isso que Laerte, diante dela, se sentia um perfeito tolo. NãosabianadasobreaobradeOratiodeUsternemdasturbulênciasqueessaobraandavacausandonos altos escalões. Embora fosse seu pai, o que chamava sua atenção era algo bem diferente.Intimidado,contemplavafurtivamentecadafeiçãodamoça,cadacurvadeseucorpo.Quandoelaofitavacomseusolhosazuisamendoados,ele,comasfacescoradas,desviavaoolhar.
–Ésimples–disseelacomumavozrepentinamenteaguda.Sorria como se o avaliasse. Laerte não suportava quando ela agia assim, altiva, quase
desdenhosa.Sóporqueacabaradecompletar14anoseeletinhaapenas12.Aindaouviaomestrede armas de seu pai gritando em seus ouvidos: “Seumolenga idiota!Até umamenina segura aespadamelhorquevocê!”
Nocasodela,eraverdade.Seupaieraferreiroeelacresceracercadadearmasqueaprenderaamanejar desde a mais tenra idade. Quando pequenos, ela sempre levava a melhor. Agora eradiferente. Ela já não brincava, não se divertia do mesmo jeito que ele... Estava interessada emoutrascoisaseeleàsvezessesentiaexcluído.Oqueerapior,elafalavacomelecomoumadultosedirigindoaumacriança.Seelaoirritavatantoassim,porquenãoconseguiadeixardeobservá-la?
–Simplesnãoé,masseicomosefaz–disseLaertecomumgemido,manejandoabalestra.–Quegarotinhocorajoso...Elasorriueandouatéaárvore.Ajovemretirouasetae,quandoLaerteaproximou-sedela,ficaramparadosemsilêncio,umdo
lado do outro. Lá embaixo se estendiam os pântanos serenos das Salinas. Alguns pantaneiroscuidavam de suas obrigações, vigilantes, pois os charcos não muito longe dali fervilhavam deruarguesàquelaépocadoano.Eraocomeçodoverão,asfêmeassaíamdastocascomosfilhotesparacaçarenãoerararouminfelizterminaremsuaspresas.
–Élindo–disseela.Ogarotoolhavamaisdoqueovéudecalorqueondulavasobreospântanos;eleaobservava.
Quando,desoslaio,elanotouseuinteresse,eleenfimsepôsacontemplarapaisagem.Aolonge,duaspernaltasapoiavam-seemumadaspatas,aoutradobradajuntoaotronco.Àqueladistância,obicolongoefinolembravaumalâminaafiada.
–Sim,são...sãoasSalinas–murmurouele.Elasorriudeleveantesdecairnumarisadazombeteira.–AsSalinas.Ésóoquevocêsabedizer?–Edaí?–perguntouLaerte,incomodado.–Seráqueseupreceptornãolheensinaoutraspalavrasparadescreverapaisagemalémde...–
elaseinclinouparaele,fazendoumtrejeito–...“sãoasSalinas”?–concluiucomvozsuave.Elesentiaocheirodela,viaseuslábiosbempróximos,suapelemorenatãodelicada.Odesejo
lhedeuumnónoestômagoquenuncahaviasentidoeelesecontrolouparanãobeijá-la.–Oquevaiserdevocê?Nãotemjeitocomasarmas...–Omestredearmasdizqueestoumelhorando!–mentiuLaerte.–Tambémnãoédadoàsletras,comoseupai...Doquevocêgosta,afinal?Ela não esperou pela resposta e foi descendo a colina ao encontro dos cavalos que haviam
ficado amarrados na orla da floresta. Por trás das árvores, erguiam-se ao longe asmuralhas demadeiradeForted’Aede,nomeio,umaaltatorredepedra.
–Gostodemontar–disseLaerte,quevinhaatrásdela.–Sóisso?Não,claroquenão.Naverdade,estavamentindo.Aúnicacertezaquetinhaeraquegostavade
estar com ela. Apenas isso. De resto, poucas coisas lhe davam prazer. Seu caminho já estavatraçado:comseuirmãomaisvelhodestinadoaumalongacarreiramilitar,eleassumiriaolugardopai. As coisas eram assim. O primogênito era posto a serviço do imperador, cabendo ao caçulaassumir a sucessão. E, mesmo que seu destino não estivesse tão claramente traçado, ele nãoconseguiriapensaremoutracoisaparaseufuturo.
Não eramais criança,mas também não era um homem, e achava difícil entender o que lheinteressava.Àsvezes,gostavadebrincarcomseussoldadinhosdemadeira.Haviadiasemqueosdeixava de lado, reclamandoquenão tinhamais idade para isso e que queria cavalgar por ondebementendesse.Oproblemaeraque,emborasentissequetinhacrescido,todosàsuavolta,assimcomosuaamiga,oviamcomoumgarotinho.Enãoéqueelatinharazão?Eleaindaguardavanobolsoseubrinquedopreferido,umminúsculocavalinhodemadeiraesculpidopelopai.
–Iago,sim,sabemanejarumaespada.Gostadeandaracavalo,éumbomarqueiroeentendedepoesia–afirmouela.
Ele sentiu as pernas fraquejarem. Mas se manteve em pé, as mãos suando quando ela lhepassouasrédeasdocavalo.
–Elecavalgamuitomelhorquevocêeachariapalavrasmaravilhosasparacomentarapaisagem–acrescentouela,soltandosuamontariadaárvore.
Laertefoipuxandoocavaloatrásdesi,cabisbaixo,meiotrôpego.QuandoelafalavaemIago,seusolhosexibiamumbrilhodequeelenãogostava.Intensodemais.Iago,ofilhodocapitãodaguarda,mostrava ter alguns talentos.E tinha16anos!Era louro.Alto.QualqueroutraqualidadeLaerte veria como um defeito. Iago era o autêntico protótipo do belo rapaz a quem ninguémresistia.Foramandandoaoladodoscavalosatéoslimitesdafloresta.
–Ah,umarã!–exclamouelaaochegaràestradinhadeterraqueserpenteavamataadentro.Passou as rédeas do cavalo para ele e correu atrás do anfíbio apavorado. Mesmo rápido, o
gesto com que aprisionou o animal nas mãos não tinha nenhuma dureza. Deixou à mostra acabecinhaverdelistradadepretoelhedeuumbeijo.Comonadaaconteceu,abriuasmãosearã,maisquedepressa,pulounocapimesumiuemdireçãoaopântano.
–Que... asqueroso– disse Laerte, enojado. –Você temmesmoque fazer isso toda vez que vêumarã?
–Podeserqueumadelassejaomeupríncipeencantado–defendeu-seela,dandodeombros.
Voltouparajuntodelee,estreitandoosolhos,tocounoseunariz.–Ninguémsabequalrãescondeumpríncipeencantado...
–Poisessaaícomcertezanãoeraum.Equemgarantequevocênãovaificarcheiadepústulas?Ela levouocavaloaté a estradade terraque se embrenhavana floresta, ziguezagueandopelo
matofloridoatévirarumrastroincertoemmeioaostroncos.–Asrãsnãodãoapenaspústulas!–indignou-se.–Minhaavómeensinouque,apesardoque
sedizporaí,elastêmmuitasvirtudes.–Jásei,jásei...–disseLaerte,enfadado.– A urina da rã-dos-juncos é um excelente remédio! São só uns pobres bichinhos, sabe?
Algumasteriammuitoaensinaraomaisexímioestrategista.Ela montou o cavalo e o vestido escorregou, mostrando suas pernas até a altura das coxas.
Laerteengoliuemseco,segurandoasrédeascomforça.Tinhavontadedebeijaraquelaspernas,dedeslizar suamão por elas, de cheirá-las.A sensação era nova e repentina, e ele baixou os olhos.Não para espantar esses pensamentos que, afinal, eram agradáveis,mas para não incentivá-los.Tambémmontoue,comoscalcanhares,instigouocavalo,quecomeçouaandar.
–Vocêsabiaquearã-de-Erainsealimentademarimbondosezangões?–prosseguiuamoça.–Elatemumatécnicatodaespecialparacaçar.Apeledelaadotaacordapresa.Quandochegapertode uma colmeia, transforma-se praticamente em um deles. E, então, no momento em que elesbaixamaguarda...–Inclinouacabeçaparao ladoeolhouparaLaertedeumjeitoestranho.–Arã-de-Erainesperachegaromaispertopossíveldoinimigoparaatacar.Estávendo,condezinho,dáparaaprendermuitacoisaatécomumasimplesrã...
–Nãomechamedecondezinho–respondeuele,aborrecido.–Enãoéqueeleseofende...?VaiseofendersechegarporúltimonasportasdeForte?Incitouocavalocomoscalcanharesesaiuatrotepelaestrada.OdeLaerteempinou,surpreso,
e por pouco não o derrubou.Ao observá-la se afastando, ele oscilava entre a raiva e o riso. Seucabelocacheadopareciaflutuaracimadapelemorenadeseusombros.
Chamava-seEsyldOrbey, filhadoferreirodeForted’Aed.ELaertedeUster, filhodocondedaregiãodasSalinas,aamavadiaapósdiasemousarconfessaraninguém.Partiutambémagalope.
Seucaminhojáestavatodotraçado,talcomoatrilhaquelevavadaflorestaàcidade.UmdiaeleseriaocondedasSalinas,enãoestavacertodesabergovernarcomamesmadesenvolturadeseupai,nemdecontarcomaajudadoirmãomaisvelho,queprovavelmentejáseriaentãoumgeneralparaassegurarapaznoImpério.Teriaumaesposa,filhos.Eoquemais?Contentava-secomaquiloque já tinha, não sonhava commais nada, fazia o que lhe pediam, sem questionar, aprendia aamar em segredo, semdizernada.Ah, sim,deuma coisa ele gostaria.De ser como Iago.NãooIagobonito,louro,talentoso.Sóqueriaumpoucodoseucarisma,dasuadestreza...umpoucodaatençãodeEsyld.
Finalmenteaalcançou.Elaestavaparada,orostosério,osolhosfitandoumaestranhafumaçapretaqueseerguiaparaalémdasárvores,emForted’Aed.Quandoeleseaproximou,acalmandosuamontariaquederepenteficaranervosa,Esyldlançou-lheumolharautoritário.
–Nãosaiadaqui.
–Comoassim?Porquê?Oquefoi?Entãoeleviuafumaça.Atorreestavaemchamas.Empalideceu,ocoraçãoacelerando.Enãose
atreveu a avançar. Esyld saiu a galope na direção das muralhas de madeira da cidade. Paraencontraroquê?Laertepodia iratrásdela,cavalgarpelacidade,verporsipróprioa tragédiaqueestava acontecendo. Mas ele, o filho caçula do conde de Uster, medíocre esgrimista, alunomediano, de físico ordinário, não tinha sequer um pingo de coragem para escoltar a moça queamava.
OscascosdocavalodeEsyldmartelaramaestradadeterraquelevavaaForted’Aedatéqueelasumiuaolongeemmeioaumanuvemdepoeira.
Ele esperou, indeciso, durante uma longa hora. O que fazer? Ir atrás dela? Ficar ali? O queestava acontecendo? Desceu do cavalo, amarrou-o numa árvore e ficou dando voltas feito umanimal enjaulado, o olhar voltado para as muralhas da cidade. Recostou-se numa árvore,respirando pesadamente, e então escutou ao longe um alarido de combate.Atrás dele, percebeuum estalido seco. Mal teve tempo de se virar e uma fina mão enluvada segurou seu ombro,enquantoaoutratapavasuabocaparaabafarogrito.
–Xiiiiiu!–ordenouumavoz.–Calma,Laerte.Soueu.Ele reconheceu Esyld sob a capa azul. Por que tinha mudado de roupa? Antes que ele
conseguisseperguntarqualquercoisa,elapegouemumasacolamaisumacapa,dessavezpreta,eaestendeuparaele.
–Vistaisto,depressa.Temosquesairdaqui.Elesmandarampatrulhasparaprocurarvocê.–Elesquem?–perguntouelecomvoztrêmula.–Esyld,oqueestáacontecendo?Colocouacapaporcimadacamisa.Esyldpôsasmãosemseusombroseseuolharmergulhou
nodele.– O Império. Seu pai foi preso. Toda a sua família também – anunciou ela sem expressar
nenhumaemoção.–Porquê?–MeupaiestácomocapitãoMeurnauaonortedacidade.Temosqueserrápidos.Vamos!Suasfeiçõesestavamtãotensas, tãodurasquemalareconhecia.Pegouamãodeleeopuxou
florestaadentro.Meurnau,ocapitãodaguarda...–Umagarotasaindodacidadechamamenosatenção–disseela,muitonervosa.–Disseram
quevocêestavanospântanos.EstãovasculhandoosarredoresdeForte,procurandoportodososlados...
Chegaramaoslimitesdafloresta,ondeumapequenacarroça,comapartetraseiracobertacomumalona,esperavaporeles.
– Menos ali, onde nem imaginam que você poderia estar. Esconda-se, podem aparecersoldados...
Elasorriu,masdeumjeitotãotensoquenãoodeixoumaistranquilo.Ajudou-oadeslizarparabaixo da lona.Nuvens começavam a encobrir o céu.Ao longe, um aguaceiro se preparava paracair. Entre dois sacos fedendo a esgoto, Laerte se encolheu feito um recém-nascido. O sanguelatejavaemsuas têmporas.Suasmãos tremiam.Cerrouospunhos.Seupai tinha sidopresopelo
Impérioeelenemsabiaporquê.E,seestavamatrásdele,eraparaprendê-lotambém.OqueacasadeUster tinha feito?OsescritosdeOratio,por si sós,não justificavamumatodesses.Então,porquê?
Ouviu o estalar das rédeas, e em seguida o som dos cascos martelando o chão. A carroçacomeçouasemover.
–Nãosemexadejeitonenhum–ordenouEsyld.Duranteospoucosminutosquedurouotrajetoatéasportasdacidade,eleescutouapenassua
respiração, pesada, entrecortada. Um manto de angústia o cobria, sua pele estava úmida e agarganta, seca. Quando ouviu vozes abafadas, que imaginou serem de soldados interpelandoEsyld,prendeuarespiração.Houveumdiálogotenso.Vozessecas,cheiasdeautoridadeedesprezo.Uma única palavra mal interpretada e seria o seu fim. Sob a lona, apertou os joelhos junto aocorpoe fechouosolhos.SeumsoldadoatacasseEsyld,daria tempodeelesairdaliparasalvá-la?Será que tentaria? Que a protegeria com o corpo, aceitando ser perfurado por uma lâmina?Conteve um gemido, seus olhos se enchiam de lágrimas. Sentiu várias apalpadelas, um soldadopassandoamãopelalona.Osomficoumaisclaro,asapalpadelas,maisfortes...Não...Nãoeraumsoldado,eramgotasdechuva.OaguaceirocaíasobreForted’Aed.
Acarroçafinalmenterecomeçouaandar.Quandoparouealguémergueualona,Laerteestavacom os olhos vermelhos por conta das lágrimas. Embora o primeiro rosto que avistasse napenumbra fosse odeumhomembarbudo, enãoodeEsyld, sentiu vergonha assimmesmo.Desoslaio,viuamoça,encharcada,observando-ocomtristeza.Imediatamenteenxugouosolhoscomodorsodamão,cerrandoosdentesderaiva.Elanãopodiavê-lonesseestado.Nãoassim,covarde,perdido,semqualquerpudor.
–Osenhorestáasalvo.Venha–disseohomem,empurrando-ocomamãoemseuombro.–Penseiqueotinhamapanhadonomato.Otempourge.
EraopaideEsyld e,pelovisto, estavamnoceleiro adjacente à suaoficina.Ele aindausavaoaventalcobertodepoeirasobreumacamisapretaemquemalcabiamseusombroslargos.Atrásdeumaportaseouviaestalara lenhanofornodeumaforja,a luzalaranjadatremeluzindoentreastábuasdotabique.
–Esyld,seleoscavalos,precisamospartiremumahora!–avisouoferreiro,puxandoogarotoatéumaescadaquelevavaaumacoxia.
Subiram sem demora e contornaram a coxia até chegarem a uma pequena porta, na qualmestre Orbey deu três batidas breves, seguidas de duas longas. Laerte olhou para Esyld, que, láembaixo, tratava de preparar os cavalos, nervosa. Na pressa, derrubou a sela que carregava epraguejou,avozchorosa.Elapareceratãodecididaaovirbuscá-lonafloresta.Teriapreferidoficarcomela,abraçá-la.Pelomenosissoelesabiaqueconseguiriafazer.
A porta rangeu ao se abrir. Atrás dela, dois guardas com a mão no punho da espada oexaminaramcomolhardesconfiado.Ao reconheceremOrbey, afastaram-separadeixá-los entrar.Eraumcômodoapertado,comalgunscaixotescontendomaterialdeferreiroemumcantoeumaenormebigornausada.Umhomemderostofino,marcadoporpequenascicatrizes,estavasentadodiante de umamesinha junto à única janela, que dava para uma rua de Forte d’Aed.A forja de
mestreOrbeyficavanapartemaisaltadacidade.Dalidavaparaverapraçaprincipaljuntoàigreja.Sobre a mesa havia um capacete de capitão da guarda, identificável pela cabeça de dragão, demandíbulas abertas, no protetor nasal. O homem pôs sobre o capacete uma mão enluvada deferro.
–CapitãoMeurnau?–espantou-seLaerte,agargantaseca.Seeleestavaali,escondidonaoficinademestreOrbey,asituaçãoeraaindapiordoqueLaerte
imaginava.Meurnauseendireitoue,comumrápidogestodecabeça,indicouumbanquinhopertodoscaixotes.
–Sente-se–ordenouemtomfirme.Então,dando-lheascostas,convidouOrbeyasejuntaraelepertodajanela.–Vários soldadosdeAzdeki estãovasculhandoosarredoresdacidade–contou-lheo ferreiro
numsussurro.Passandoamãopelocabelolouro-acinzentado,Meurnauinspiroufundoenquantoescutavao
ferreiro.OsdoisdavamaimpressãodequererempouparLaertedaquelaconversa,daqualdecertonadateriaouvidocasotivessesesentadocomoocapitãotinhamandado.
– Eles vão voltar depois que não encontrarem nada, e aí não vamosmais poder passar pelonorte.TemosquesairdeForted’Aedagoramesmo,Orbey.
–Eusei–concordouoferreiro.–Minhafilhajáestáselandooscavalos.Masedepois?– Depois veremos. Os baronatos do Sudoeste sempre respeitaram o conde, e alguns
concordavamabertamentecomseupontodevista.Primeirotemosque irparaumlugarseguroeentãoorganizararebelião.
–Rebelião?Meurnau,nempensenisso!–indignou-seOrbey.–Capitão...–chamouLaerte.Osdoishomens juntoà janelanãooouviram.Orbeybuscavaoolharesquivodocapitão.Ao
longe,napraçadaigreja,acabavamdemontarumaforca.–Nãoéissoqueocondequer!–Éexatamente issoqueelequer, ferreiro–rebateuMeurnau.–OImpérioestámoribundo, já
passoudahorademudaraformadegoverno.–Nãopelaforça!–Capitão!–repetiuLaerte,avançando.Comospunhoscerrados,sentiaseusanguefervernasveias.Emsuacabeça,umaperguntase
impunhaatodasasoutras,masninguémprestavaatençãonele.–JáqueoImpériodeixaasSalinassemseusenhor,semoconsentimentodopovo,asSalinas
vão clamar por sua independência! – bradou Meurnau. – Chega de nos curvarmos aos maisínfimosdesejos de um tirano. É uma indignidade considerarUster um fora da lei e tratá-lo comtanto desprezo, depois de tudo o que ele fez por esses galinhos de quintal. Uma indignidade,ferreiro!
–CAPITÃOMEURNAU!–gritouLaerte.Os dois homens se viraram de repente, reparando com surpresa na atitude determinada do
garoto. Meurnau o treinara diversas vezes para duelo, duvidando abertamente de seus talentos
como esgrimista. Dos três filhos do conde de Uster, Laerte era o mais discreto, sem muitapersonalidade,ofuscadoemqualquercircunstância.Ofatodeeleelevaravozdaquelaformaparase fazerouvir,nãocomarrogância,mascomumaautoridadeque lembravaadoconde, eraalgoquesurpreendiaatéaelepróprio.Masnãoparouparapensarnisso.Suairaerafortedemaisparaconseguirficarcalmo.
–Ondeestámeupai?–perguntou.–Eminhamãe?– Laerte, estamos tentando administrar a situação da melhor forma possível – explicou
Meurnau.–Porfavor,fiquenoseu...– Me diga o que está acontecendo! – exaltou-se o garoto, sustentando seu olhar. – Onde
prenderamminhafamília?Porqueninguémimpediu?Mediga!O capitão pestanejou. Era a primeira vez que Laerte, do alto de seus 12 anos, lhe dava uma
ordem. Contando com o respeito queMeurnau tinha obrigação de demonstrar por ele, pareciadispostoadesafiá-loparaobterumaresposta.Oferreiroseadiantou.
–Estáamaiorconfusãonacidade,senhor.OcapitãoAzdekiveioprenderocondeseupaieseuirmão,acusando-osdealtatraiçãoaoImpério.Suamãeesuairmãforamlevadas,nãopudemos...
–Seupainãoéumtraidor,Laerte–interveio,entredentes,ocapitão.Sentia-seenojadosemprequelembravadasmanobrasdeAzdeki.–Entãoporqueelesestãomentindo?–indagouLaerte,atônito.–Porqueestãofazendoisso?–AOrdemdeFangol, obviamente, quer recuperaroque édela– respondeuMeurnau. –Eo
imperador,emsuafraqueza,nãoseopôsaisso.–Suafamíliapossuimuitascoisasquedespertamcobiça–acrescentouOrbey,semjeito.NãoeraaquiloqueLaertequeriasaber,nãoeraomaisimportante.Omedofaziaseuestômago
secontorcer.–Cadê ele?Onde estámeupai? – Sua voz agora tremia.Estava imaginandoopior. –Mestre
Orbey!Cadêmeupai?Oferreiro,cabisbaixo,deuumpassoparaolado,revelandoajanelaatrásdele.–Elejáfoijulgado,senhor...Ao longe,alémdos telhadosdemadeiradascasasmaisabaixo,erapossível imaginaraexata
localização da forca. Alguém ia ser enforcado. Laerte olhou para a janela e depois para os doishomens.Nãoestavaentendendo.Nãotinhaamenorvontadedeentender.Poucolheinteressava,afinal,saberoporquê,ocomo,oquando.Aúnicacoisaquenotava,furioso,eraqueocapitãodaguardaestavaimóvel.Tomadoporumaraivacrescente,deixoudeladoqualquermoderação:
–Evaideixarqueelemorra?–Laerte...Meurnaususpirou.–Vásalvá-lo!Nãodeixeissoacontecer!–Laerte,seacalme!–Seucovarde!–gritouomenino.–Válutar!Vocêestáàsnossasordens!Obedeça!Meupaiéo
seuconde!Vásalvá-lo!–Portodososdeuses,senhor!–interveioOrbey.–Controle-se!
Será que iam reagir, pegar em armas e socorrer seu pai? Juntos, iriam libertar suamãe, seuirmão, sua irmã? Não. Nem Meurnau, nem mestre Orbey, nem os dois soldados pareciamdispostosaagir.Dominadopelaira,Laertecorreuparaaporta,pegando-osdesurpresa,eseguiuparaaescada.Avozautoritáriadocapitãosoouatrásdele:
–Laerte!Volteaqui!Com a razão devastada pelo medo, o garoto nem pensou no risco que corria. O medo ia
virando fúria.Precisavavercomosprópriosolhosoquesepassavanoadroda igreja.A ideiadequenãotinhacomointervirnemlhepassoupelacabeça.
–Laerte...?–Esyldespantou-seaovê-loabrirasportasdoceleiro.–Senhor!–chamouOrbeydacoxia.Meurnaujávinhadescendoaescada.Semnemolharparaamoça,Laertemontouocavaloque
elaacabavadearrear.Noexatomomentoemqueocapitãochegouparadetê-lo,Laertedisparouagalope pelas ruas desertas de Forte d’Aed. Não o preocupava a cidade parecer despovoada; osclamores ao longe o guiavam. A eles se somava o barulho da chuva, que lembrava o rufar detambores.Aapenasduasruasdapraça,aoavistarnumaesquinaasalabardasdesoldadosvestidosdepreto,reduziuopassoecobriuacabeçacomocapuzremendado.Desmontou,largouocavalosemsequeramarrá-loeavançou.Porpouconãodeumeia-volta,ocoraçãoacelerandocomforça,quando à sua frente passou um pelotão de soldados, as botas batendo na terra açoitada peloaguaceiro.Foiquandofinalmentesedeucontadoperigoqueestavacorrendo,daloucuraquenãosoubera conter em meio ao súbito furor. Estava sendo procurado pelo Império. Seu pai ia serexecutado.Ao invésde fugir, estava se jogandonabocado lobo.Oquepoderia fazer contraumexércitointeiro?
Noentanto,algooobrigavaaavançar.Ardiadentrodeleumfogoestranho,cujaforçaelenãosaberia descrever, nemmesmo nomear. Talvez fosse a esperança ainda correndo em suas veias,fazendoseucoraçãobatertãodepressa.Teveaimpressãodequederepentesuaroupaficaramuitoapertada. Foi até a praça. Uma multidão se reunia em volta do grande cadafalso erguido àspressas. Não havia nenhuma alegria, nenhum entusiasmo, apenas gritos de espanto, alguns derevolta.Pudera.Sobreotablado,prestesaserexecutado,seupai fitavaohorizontecomumolharreto e altivo. A seu lado, encarando o chão embora se esforçasse paramanter a dignidade, seuirmãomaisvelhomurmuravaumaoração,comumacordaamarradanopescoço,asmãosatadasàscostas.Laerteporpouconãodesmaiou.
Inspiroufundo.–Silêncio!Silêncio!Bempróximo,umhomemde rostomagroenariz aquilinoprocurava conter as vaias fazendo
um gesto com asmãos. Usava uma armadura prateada e uma ampla capa vermelha presa nosombrosqueiaatéospés.Umaáguia,pintadanoplastrão,trituravaumaserpentecomasgarras.
Conduzidos por um homem de armadura leve, decerto um jovem cavaleiro, lanceiros vierampostar-sefrenteaocadafalsopararechaçaramultidão.Laerteabriucaminhoentreosespectadoressem que reparassem em sua presença. Ele também não conseguir prestar atenção em ninguém.Andava levemente curvado, a cabeça à altura do peito. A chuva tornara sua capa ainda mais
pesada.Deixaram-nopassar.Ninguémo reconheceu, tamanhoerao espantode todos aoveremseuamadocondependuradonumacorda.Quandochegoupertodossoldadosposicionadosaopédocadafalso,Laerteviuemseussemblantesumadeterminaçãoquefezseucorpoestremecer.
–Silêncio!–repetiuohomememcimadotablado.Fez-seumacalmaaparenteenquantoelepercorriaamultidãocomumolharpenetrante.–Eu,capitãoÉtienneAzdeki,emnomedeSuaMajestade,oimperadorAshamIvaniReyes,me
apresento para julgar os traidores aqui presentes... – Apontou um dedo inquisidor para os doisréus,queestavamapoucospassosdedistância,efitouopúblicocomarsevero.–Essehomem,quetem governado vocês todos esses anos, fomentou um complô contra seu imperador, destiloupalavras falsas, semeou dúvidas e inquietação em suas mentes e seus corações! Sua MajestadeImperial constatou pessoalmente sua alta traição. A Ordem de Fangol também fez umasolicitação...
Ergueu-se uma vaia da multidão. Reunidos junto ao cadafalso, monges de batina pretaprocuravammanteracompostura.
–OcondeOratiodeUstercometeudiversosultrajes–continuouAzdeki–e,apesardosalertasde nosso bispo de Émeris, não manifestou qualquer arrependimento! Diante dessas inúmerasacusações, e apesar da tristeza de Sua Majestade Imperial, é com fatalismo que devo aquipronunciarasentença!
Fatalismo? Não era o que parecia. Laerte lançou-lhe um olhar furioso, tentando memorizarcada feição de seu rosto. Aquele homem era o portador de sua desgraça e ele sabia seu nome:Étienne Azdeki. Nem por um segundo acreditou que seu pai e seu irmão iam morrer. Daqui apoucoapareceriaalguémparasalvá-los.
–Minhamão...–disseumavozsuaveaoseulado.Sentiuaspessoassemovimentandoatrásdelee,virando-se,seusolhoscruzaramcomoolhar
pesarosodeEsyld.Baixou-osimediatamente.–Segureminhamão.Tome–insistiuelanumsussurro.–Aperte.Osdedosdamoçaseesgueiraramentreosdele.Laerteentãoapertouamãodelacomosefosse
a coisa mais preciosa do mundo. Sua pele era macia e seu calor, reconfortante. Sua simplespresençaacalmouseucoração.Conteveumloucodesejodetomá-lanosbraços,pormedodequeelafugisse.
–DomOratioMontague,condedeUster,éconsideradoculpadodealtatraiçãoaoImpérioeaSuaMajestadeImperialAshamIvaniReyes;culpadodeultrajeaosdeuseseaseusrepresentantes,osmongesdaOrdemdeFangol.Deacordocomalei,eleetodaasuadescendênciaserãopunidoscomapenacapital...
Umgrunhidodescontentepercorreuamultidão.Osguardasbrandiramas lançasparaacabarcomqualquer veleidade.Osmonges recuaram, puxando o capuz para cobrir a cabeça raspada, epuseram-se a entoar cânticos. Azdeki virou-se para o conde e fitou seus olhos negros semnenhumahesitação.Segurodaprópriaonipotência,caminhouatéele.
–...amorteporenforcamento–acrescentouAzdekiencarandooconde.Havia sangue coagulado na camisa branca e na farta barba do prisioneiro. Sob seus olhos
inchados,algunshematomas.Noslábiosrachados,esboçou-seumrisoinsolente.– Pode sorrir, conde – cochichouAzdeki, com ar falsamente abatido. –Mordeu amão que o
alimentava...eaíestá...–aproximou-sedeseuouvidoesussurrou:–...emumacorda...Como parecia sujo e acabado com aquela roupa esfarrapada, apesar do porte altivo que se
esforçava pormanter diante do povo.A seu lado, o filhomais velho continha o choro.O condedefenderasua família, seopuseraàsuaprisão, lutaracontraossoldadosnoscorredoresda torre.Mas sua valentia não fora suficiente. Ali estava, no cadafalso, junto com seu primogênito,imaginandoasortereservadaàesposaeà filha.Restavam-lheduasrazõesparasemanterassim,comoolharretoealtivo,àsportasdamorte:aabsolutanecessidadedemorrercomadignidadedeummártirparaquesuaobranãodesaparecessecomseuúltimosuspiro,eoconsolodesaberqueummembrodesua famíliaescapara.Laerte.SeupequenoLaerte tinha,maisumavez,escapulidoparaospântanoscomafilhadoferreiro.EsseAzdekinãoiriasubmetê-loatorturaeexecutá-lonafrentedoseupovo.
–Aperteaminhamão–disseEsyldaoouvidodogaroto.–Carrasco!–chamouAzdeki.Emmeioàmultidão,ocondeavistou,horrorizado,orostotristeesériodofilhocaçula.–Cumpraasuafunção!–bradouocapitão.–Aperteminhamãocomforça...Pelaprimeiraveznavida,eleviumedonoolhardopai.Ocarrascobaixouumaalavancacomforça.Umrufardetambores...Osomsecodastábuasseabrindosobospésdoscondenados.Umestalo...E,depois, sóo somdoventosoprandoachuvasobreumamultidãomudadehorror... edois
corpospendurados,balançandonascordas.Laertefechouosolhos,opeitooprimidoporumadortão insuportávelqueas lágrimascomeçaramabrotar.ApertouamãodeEsylde,quandodobrouosjoelhos,sentindoumgritosubirporsuagarganta,elapôsobraçoemseuombroeolevoudaliemmeioàmultidãoqueaospoucosvoltavaaseagitar.
–PovodasSalinas!–conclamouAzdeki.–Vocêsestãolivresdeumusurpador!EstãodevoltaàluzdoSantoImpério!
Laertenãovialuznenhuma.Malpercebiaosvultosdosquaisseesgueiravamemmeioàsgotasdechuva, às lágrimas.PassaramporumpelotãoquemarchavanaentradadeumaruaeEsyldopuxou para debaixo de umpórtico.Depois de certificar-se que ninguémpodia vê-los, ela tirou ocapuzesegurouorostodogarotocomasmãos.
– Você precisa ir embora agora... Seja omais corajoso de todos, bravo homenzinho, omaisvalente...
Deslizouosdedospelasfacesdomenino,seuolhartristeencontrandoodele.–Meupai...–conseguiudizerLaerteemmeioaochoro.–Meuirmão...Sentiu-se tomado pelo pavor, sua boca se crispando de dor. Estava com a garganta tão
apertadaeocoraçãotãoferidoquenãoconseguiapronunciaraspalavras.Restavamsuamãeesuairmãzinha,natorre,sozinhasedesamparadas.AmenosqueMeurnautivesseidosalvá-las.Sim,ele
comcertezatinhaidosalvá-las.–Depois você chorapor eles–disse a jovemcomdoçura. –Agora eu suplico:não fujaoutra
vez. Sua vida é importante para nós. –Roçou os dedos no rosto de Laerte e, fechando os olhos,aproximouatestadadele.–Suavidaéimportanteparamim–explicitounummurmúrio.
Tudo,então,ficoumaisclaroparaLaerte.Jásabiaoqueprecisavafazereconcentrou-senessaúnicaprioridade:ircomEsyldaondequerqueelafosse,aondeelaquisesse.Todasasperguntas,ostormentosqueoafligiam,cobriam-secomumvéucaloroso.Deixou-selevaratéoceleiro,abatido,perdido.Meurnaunãolhedirigiuapalavra.Orbeyotratoucomdelicadeza.Esconderam-nosobalonadacarroçaesaíramdacidadenomaiorsigilo,enquantoalgunshomensdaguarda, leaisaoconde,provocavamconfrontosparadesviaraatençãodossoldadosimperiais.
A noite caiu rapidamente sobre as Salinas. Forte d’Aed se iluminou commil tochas em suasmuralhas de madeira. Azdeki despachava seus homens por toda a região para garantir seudomínio.
Num vilarejo próximo aos pântanos, a poucos quilômetros da cidade, Laerte observava aschamasqueoscilavamaocrepúsculotalcomoumdébilclarãodeumavidaanterior.Nãoconseguiamaischorar.Atrásdele,Meurnauorganizavaosturnosdevigiadospoucoshomensquetinhamsejuntadoaeles.Nãohavia,naquelaaldeiadepantaneiros,maisqueumadúziadecasasdemadeira,masAzdeki iamover céus e terraspara encontrarodescendentedo conde.A região inteira seriadevastadaparaquefossedadoumfimàcasadeUster.
–Ondeestáminhamãe?–perguntouLaerte,semtirarosolhosdacidadeaolonge.Nãohouveresposta.–Eminhairmãzinha?–acrescentou.–Sintomuito...Eleas tinhaprocuradocomoolharenquanto,desnorteadoentreosguardasdeMeurnau,era
arrastado semqualquerdelicadeza emmeioao caosda fuga.Era aprimeiravezque falavadesdeque tinham fugidodeForted’Aed.Saindoda casaonde tinhamse instaladoparapassar anoite,Esyldaproximou-sedele.Seusdedossetocaram.
–Elastambémmorreram?–perguntouele,comumacalmarepletadefrieza.Esylddesatouachorar.–Sintomuito,Laerte,muitomesmo–repetiaela,escondendoorostonasmãos.Numúnicodia,LaertedeUstertinhaperdidotudo.Afamíliainteira,acidade,ofuturo...Jánão
passavadeumacascavazia,prestesasequebrar.Elatentoupegaramãodele.Laerteseafastou.Eraaprimeiravezquearejeitava,semmedode
estragar suas chances de seduzi-la. Do bolso da calça, tirou seu cavalinho de madeira. Quantasvezesnãohaviabrincadocomele?Quantasbatalhasnãotinhatravadocontrahordasimaginárias?Fechouosdedossobreoscontornospolidosdapequenaescultura,apertandocomtantaforçaqueachou que sua mão ficaria marcada para sempre. Então, num gesto brusco, jogou o brinquedolonge. O cavalo de madeira desapareceu noite adentro. Já não havia Esyld, nem Forte d’Aed,Meurnau,Orbey.Apenaseleesuaira.Naquelanoite,descobriuoquequeriamaisdoquetudo.
Umdiaseriaomaiorcavaleirodestemundo...e,sozinho,derrubariaoImpério.
2
Acuado
Nãoterádescansonemrefúgio.
Diaenoite,
emtodolugar,
nãoserámaisqueumapresa
fugindodeseupredador.
Fugiam.Semcessar.Semfim.PercorriamemsilêncioaregiãodasSalinas,seembrenhandonospântanos, se esgueirando entre o capim alto e a lama.De aldeia em aldeia, nos acampamentosimprovisadosnoisoladorecônditodoscharcos,seuúnicoobjetivoeraprotegerLaerte,distanciá-lotantoquantopossíveldaameaçaavultantedasombradeÉtienneAzdeki.Omeninosentiaqueessasombraoperseguia,ameaçadoraeperversa.Voltaemeiasevirava,temendoavistaroportealtivodocapitãoimperialadesafiá-locomoolhar.Massóoquehaviaeraocaminhoporondeseguiamaostrancosebarrancos.
Eramcercadevintepessoas,amaioriasoldadosdaguardaquehaviamdeixadosuasarmadurasparatrás,adotandoaaparênciadesimplescamponeses.Nãorarocolocavamogarotonatraseiradeumacarroça,comajovemEsyldaseulado,evestidoscomfarraposavançavamcomoinfelizesabandonando a região em guerra. As tropas de Azdeki vasculhavam a região, revistando ascolunas de refugiados. Nas raras vezes em que foram parados, faltou pouco para seremdescobertos. Nessas horas, Esyld se aproximava domenino, segurava suamão e lhe cochichavapalavrasdeconforto.
Toda vez os soldados, exasperados, mandavam que seguissem. Quem poderia afirmar quesaberiam reconhecer Laerte de Uster? Quem tinha ideia de como ele era? Que habitante dasSalinas, tendo cruzado com ele, seria vil o bastante para entregar àmorte ummenino inocente?OratiodeUsterhaviasidoamadoporseupovo.Suamorteeraumsofrimento.Oferecerseuúltimofilho vivo à ira do imperador seria um insulto à sua memória. Queimaram-se os registros.
Apagaram-seasmençõesaLaerte.Aspoucaspessoasquesabiamsuaidadeouoreconheceriamsecalaram.
Esseapoiosilenciosoosprotegeuaolongodafuga,omutismoaceitoportodoscomoaúnicadefesa face à loucura de um capitão do Império. Nenhuma boca se abriu para denunciá-los eAzdeki teveque reconhecerquecometeraentão seuprimeiroerro.Emsuapressa,omitiraapenasum filho, um simples menino, e o boato de sua sobrevivência andava causando agitação. Aospoucos,homenspegavamemarmas,fazendasserebelavam,recantosisoladosviravamtrincheiras.A revolta começava aos burburinhos. E o capitão Meurnau estava disposto a tudo para que setransformassenumautênticorugido.
–Beba–disseeleaLaertenumdiaemquetinhamparadoàbeiradeumaestrada.Sentado na traseira da carroça, um pano grosso e amplo cobrindo-o da cabeça aos pés, o
garoto estendeu a mão pálida e segurou o cantil que o capitão lhe oferecia. Fazia meses queviajavam sem destino certo, se é que havia algum destino. Nesse tempo todo Laerte nãopronunciaramais quepoucaspalavras.Vivia calado, alheio a tudo, e a cadadiaquepassava seuolharficavamaissombrio.
Bebeu um gole e devolveu o cantil, enxugando a boca com a mão. Meurnau fez o mesmo,sentando-se à sua direita na beirada da carroça. Suspirou ao contemplar os pântanos queladeavamaestrada.Aolonge,umaespessafumaçapretaseerguianumcéucordechumbo.
–IncendiaramaaldeiadeAguel–sussurrouMeurnau.À chegada do inverno, os burgos próximos de Forte começaram a se rebelar, a exemplo das
cidadesmaisdistantes.Passadooestuporcausadopelojulgamentosumáriodeseuamadoconde,elesvinhamsedeixandotomarpelaira.
Mesmomorto,OratiodeUstercontinuavaaserumespinhonopédoimperador.E,oqueerapior,suamemóriaincitavaasmultidõesàrevolta.Porcontadisso,aquelanãoeraaprimeiraaldeiaaserdevastadapelastropasdeAzdeki.Decertonãoseriaaúltima.
–Sabeporqueelesfazemisso?–indagouMeurnau.Era o que Laerte vinha se perguntando. Também tentara entender por que sua família fora
julgada indigna pelo Império a que servia. Ele sempre pensara em Émeris como a cidade dossábios, onde tudo era decidido por um bondoso imperador que, tal qual um deus onisciente,tomavacontadomundo.Sentira tantoorgulhopelo fatode seupai ser seurepresentantealinasSalinas.
–Elesachavamqueagenteerabobo–continuouocapitãodaguarda.Passouamãonorostocansadoantesdealisar seu finobigodecordeazeviche comapontadosdedos.–Achavamque,comseupaimorto,todosiriamsecurvar.MasOratiodeUsteraindaémaisfortequeoimperador.Eraelequemgovernava,quemeraamado.
Laerte continuava debaixo do pano grosso, os olhos fitando o nada, sem reação. Ouvia,compreendia,mas,nofimdascontas,poucolheinteressavaoporquê,ocomooumesmoquem...Sóduascoisasimportavam:porquehaviasidopoupadoecomonãopuderasalvarsuafamília?
– Foi isso que omatou – confessouMeurnau. – Por isso foi julgado. Porque era amado. Sóquemdecideéoimperador...
–Elenãotraiuninguém–disseLaertesecamente.Surpreso ao ouvir a voz do garoto,Meurnau o observou de esguelha por um tempo.Mas o
meninoseimobilizaranovamentefeitoumaestátua.–Não,nãoexatamente–concordouMeurnau,descendodacarroça,oolharvoltadoparaseus
homens,que,sentados,conversavamnãomuitolongedali.Pertodossoldadosemandrajos,Orbeyesua filhatratavamdeesconderalgumasespadasem
grandessacosdelona.–Masos sonhosdo seupai iamcontrao imperador–prosseguiuo capitão.–Elequeriaque
estemundodeixassedesersujeitoàsdecisõesdeumúnicohomem.Achavaqueopovoeracapazde escolher por si próprio. Isso deve ser complicado demais para você entender, mas nunca seesqueça,Laerte:seoseupaimorreu,foi,emprimeirolugar,pelopovo.Elejamaistrairiaopovo.
O garoto baixou o olhar quando Meurnau o encarou. Não, ele não entendia. Nem tentavaentender.O presente não importava.O amanhã tambémnão lhe passava pela cabeça. Só o quehaviaeraovazio.
– Em alguns dias vamos parar em Braquena – anunciou friamente o capitão. – Lá, vamosensinarvocêalutar.Eprepararemosarevolução.Laerte,estámeouvindo?
Sim, estava ouvindo, mas havia umas pedrinhas tão pequenas no caminho... Laerte preferiaolhar para elas a fitar aquele capitão austero que desfiava palavras sem nenhuma importância.Eramtãopequeninas,tãoescuras,numaterracinzentaqueageadajácomeçavaarachar.
–Laerte–insistiuMeurnau.Ogarotonãoesboçoumaisnenhumareação.Cansado,Meurnaufezumgestocomamãoese
afastou.Então voltaram para a estrada por dias e dias. Certa manhã, outra coluna de fumaça preta,
espessa, riscouocéu.Outraaldeia incendiada.Laerte surpreendeu-seaonãosentirnadaquandopensava nos moradores consumidos pelas chamas. Finalmente chegaram a Braquena, pequenaaldeiadequinzeamplascasasdepedranomeiodopântano.Viajavamhaviameses...eBraquenaficava a apenas dois dias de Forte d’Aed. Precisaram tomar diversos caminhos para despistar astropas imperiais. Agora enfim tinham um lugar para ficar, para se esconder... e estranhamente,assim tão próximos do inimigo, sabiam que por um tempo estariam em segurança. Azdekimandavasuastropasparacadavezmaislonge,certodequehaviamfugidoparaoutroscondados.
EnquantoMeurnautentavaorganizararevolta,puseramMadog,umgigantecareca,aserviçodeLaerte.Forte,orgulhoso,foraoauxiliardeMeurnaunaguardadocondedeUster.Acicatrizqueiadeseuolhodireitoatéolábiosuperiorimpunhatemorecertorespeito.Madogfoiencarregadode instruirLaerteno combate.Ao longodoano seguinte, tentou ensinarogaroto a lutar comaespadaemriste.Emvão.
EmboraaatitudedeLaertetivessemudado,sendoagoramaisamena,elecontinuavacasmurrodurante as aulas. Em meio às casas amplas, com a espada na mão, ele esbravejava e, comfrequência,caíasentadonochão.Estavamuitomaisinteressadonosmomentosquepassavacomafilhadoferreiro,driblandoavigilânciairritantedeseumestredearmas.
Madogentãoochamouparaumaconversa.Daprimeiravez,segurou-separanãolhedaruma
broncaportersaídodaaldeia,arriscandosuavida.Oqueopreocupava,naverdade,nãoeramoshomensdeAzdeki.Nãotinhapassadonenhumapatrulhaamenosdedoisdiasdedistância.Jáosruargues, esses sim, infestavama região.Da segundavezqueLaerte fugiu,Madog compreendeuquenadairiadetê-loeque,emvezdeamarrá-lonumaestaca,precisavaterpaciênciaeseadaptaràsituação.Entãolhedeuumestranhopresente.
–Éumapito.–Umapito?–indagouLaerte,surpreso.Sentado num banco junto a uma casa de pedra, contemplava o curioso pedaço de madeira
entalhada.–Umapito de ruargue – explicouMadog. –Quando você sai assim campo afora, nãoposso
defendê-lo.Seossoldadosimperiaisviremvocê,sóesperoquesaibacorrerbemrápido.Sóquedeum ruargue não vai conseguir escapar. –Mostrou o objeto. – Esse apito imita o rugido de umruarguemacho.Osmachosraramentecaçam,quemcaçasãoas fêmeas.Assim,quandoumdelesseaproxima,elasfogem,pormedode...–umsorrisozombeteiroiluminouseurostomarcado–...levaremumasovadaquelas.Seforperseguidoporalgumruargue,useoapito.
Felizmente não teve oportunidade de usá-lo nosmeses seguintes. EnquantoMadog passavahorasprocurandoporelenaaldeiaparamanterasaparências,ogarotofugiaparaospântanosemboa companhia. Com Esyld, ele se esquecia de onde estava, de quem era, e não tinhamedo depensarnoqueiaacontecer.Amoçadedicavaumaatençãoespecialàsrãs.Certodiadeprimavera,identificou uma rã-de-Erain, de um verde fosco listrado de dourado, saltando indolente pelocapinzal.ForamatrásdelaeaideiadesedepararemcomsoldadosdoImpériosódavamaissaboràexpedição.Omedoosempolgavamuitomaisdoqueosrefreava.Coraçãoacelerado,observaramarãseprecipitarparaumacarroçacaída.
Talvezalgunsfugitivosiguaisaelestivessemsofridoumacidente,sendoforçadosaabandonarsuacargabemnomeiodopântano.
–Xiiiu–ordenouEsyldnumsussurroautoritário.–Nãopodemosassustá-la.Veja.Elaergueuovestido,revelandoos joelhoslisos,eparouapoucosmetrosdoanimal.Devagar,
se ajoelhou na terra úmida e, tocando suavemente no ombro de Laerte, intimou-o a fazer omesmo.
–Elaestácaçando–comentouajovem.–Estávendoaqueleninhodezangões?Ecomoelaestámudando de cor? Abaixo dos olhos, veja, a pele está estalando feito asas de inseto. Ela estáfingindoqueéumenxame inteirodezangões.Elesnempercebemadiferença.Pensamqueelaéumdeles.
Noverdedocapinzal,pousadanumarochaencharcada,arãiaescurecendoesuasfinaslistrasdouradas clareavam para um amarelo forte. As longas dilatações de seu papo produziam umcurioso efeito hipnótico. Eles ficaram observando sem que nada viesse perturbar a aparentequietude.Emumcantodacarroça,umninhodezangõesrecém-construídoestremecia.Emtornodaestruturaovalcobertadeumaestranharesinaescura,insetosgraúdoscuidavamdavidasemseimportaremcomarã.
–Minhaavódiziaqueelaécapazdeficaresperandoassimpordias–sussurrouEsyldcomum
sorrisodeadmiração.–Algunszangõesvãoseaproximareelanãovaisemexer.Aí,quandosentirquechegouahora,vaiatacareelesnãovãonementenderoqueestáacontecendo.Viucomoelaébonita?
Laerte não estava mais olhando a rã. Contemplava o cabelo comprido e cacheado de Esylddescendopelanucadelicada,osombroslevementecobertosporumvestidoempoeirado,osdedosfinos e frágeis unidos emuma atitudede recolhimento. Sentia seu coraçãobater com força. Semnenhumador,muitopelocontrário.
–Oquefoi?–perguntouelaaoverqueeleaobservava,orostoimóvel.–Elanãoébonita–disseele,tímido.–Vocêé...Desviouo olhar.AmãodeEsyldpousou sobre a sua semque eles dissessemnemmais uma
palavra.Ànoite, ele aindaguardava aquela sensaçãode suave calor em suapele.Esperavaque a vida
seguisse assim, que o estrondo gerado pela perda de sua família enfim se calasse. Continuava atreinarcomMadog,diaapósdia.
–Levanteaespada!–berravaogigante.–Seguredireitoessepunho!Quedroga,Meurnaumeavisouquevocêeradesastrado,masnãopenseiquefossetanto.
Semanas...–Sempremantenhaseuspontosdeapoio!–bradavaMadog.–Ospontosdeapoio,caramba!E,depoisdaprimavera,veiooverão.–Vamos,Laerte!–encorajavaEsyld,sentadanumtonelpertodeumadascasas.–Defenda-se!
Vamos!–Melhoreessadefesa!Melhoreessaaparada!–ordenavaMadog.Aos poucos, ia melhorando, mas não o suficiente para ter esperanças de um dia lutar
decentemente. Ainda não tinha destreza e, embora memorizasse alguns encadeamentos,reproduzia-ossemmuitaconvicção,paradesesperodeseuprofessor.Nãotinhapuxadoaopai...
Depois do verão, veio o outono, e então mais um inverno. Nesse tempo todo, Meurnauconseguira a adesão de muitas aldeias à sua causa e, aos poucos, a resistência vinha seorganizando.Simplescamponesesaceitavampegaremarmas,movidosporumairareprimidaportempodemais.Aindanãoaceitavamamortedocondeeseanimavamdiantedasimples ideiadeseu filho Laerte liderar a revolta junto como capitão de sua guarda.A isso vinham se somar osterríveis boatos envolvendo a morte da mãe e da irmã de Laerte, as torturas infligidas a duasinocentes, a barbárie perpetrada sem outra justificativa que não uma crueldade animalesca. OImpério perdia sua razão de existir quando aqueles que lhe serviam sucumbiam aosmais baixosinstintos.OcapitãoplanejavareconquistarForted’Aedempoucotempo.Agoratinhaumexército.
Certoentardecer,namaiorcasadeBraquena,aquecidaporumaamplaeausteralareira,Laerteassistiu pela segunda vez a uma reunião de Meurnau com seus homens. Não que tivesse sidoconvidado. Para as pessoas das Salinas, ele não passava de um símbolo.O que ele era se diluíaatrásdeumafiguramaior,maisbelaemaisexperiente.Naquelemomento,porém,aindanãotinhasedadocontadequesumiraembenefíciodeumfantasma.SaboreavaumasopaquenteenquantoEsyldremendavaseucasacojuntoàlareira.
–Vamosatacarnaprimavera–explicavaMeurnau,depéatrásdeumamesa,asmãosemummapadasSalinas.
Ao redor, seus tenentes, Madog entre eles, escutavam com atenção. Alguns tinham vindoespecialmentedealdeiasvizinhas,onde treinavamosmoradoresparaa luta.Haviaalgunsmesesos pequenos combates se multiplicavam, e ele pensava se Azdeki começara a duvidar de queconseguiriarestabeleceracalmanaregião.
–Vamos cercar Forte d’Aed sem eles perceberem, passandopor aqui... e por aqui. – explicou,indicandocomodedodoispontosdomapa.–Elesnemsonhamque todoopovovaipegar emarmas–asseguroucomcertasatisfação.–Noscondadosvizinhos,jáháquemquestioneosatosdoimperador.Equandoopovocomeçaaduvidar...
Deixouafraseemsuspenso.Sentadojuntoaofogo,Laerteescutavadistraído.ObservavaEsyldcosturarumremendoemseucasacorasgado.Aoterminar,elalheentregouaroupacomumlevesorriso.
–Aíestá,bravohomenzinho,paravocêseaquecer.–Obrigado–respondeutimidamente.Aschamascrepitavam,devorandoa lenhacompaixão, e sua luzbrilhavanosolhosdeEsyld.
Não conseguia deixar de fitá-los, esperando ver neles algomais que um simples... afeto? Talvezdevesseconfessaroquesentiaousimplesmentebeijá-la.Sim,iapedirqueelaoacompanhasseatéacasavizinha,ondeeledormia,ealinasoleirabeijariaseusdoces lábios.Elanãoiarejeitá-lo.Secuidavatantodele,nãoeraporcompaixão.Elaoamava.Sópodiaser.Eletinhaqueperguntar.Eraoqueiafazer.
–Esyld...–murmurou.–Esyld,vábuscarlenha–ordenouumavozatrásdele.AmãofirmedemestreOrbeysegurouoombrodogarotonoexatomomentoemqueeleiase
levantar, já que Esyld, assentindo, pulou do banquinho de madeira. Estava chegando à portaquandoseupai,comarconstrangido,sentouemseulugar.Elasumiunanoitefria.Aportabateuàsuapassagem.
–Euovi treinandocomMadogoutrodia–dissemestreOrbey,esfregandoasmãospertodofogo.
Coçouabarbacomodorsodamão,pensativo,antesdefinalmenteseatreveracontinuar:–Osenhorémeiodesatento.Issomepreocupa.Laertelançou-lheumrápidoolharantesdesevirarparaaporta.Sóesperavaumacoisa,avolta
deEsyld.Ouqueaomenosachasseumjeitodeseesquivardopaidelaefosseencontrá-lanofriodanoitequecaía.
– Eu sei que o senhor passou por coisas bem difíceis – acrescentou o ferreiro –, mas... todaferidaacabasefechando.
Orbey hesitou um instante. Laerte havia se virado para ele, os olhos brilhando.Nenhumdosdoisseatreviaafalar.Atéqueogaroto,porfim,rompeuopesadosilêncio.
–Nãovoumeesquecerdaminhafamília–murmurouemtomdesafiador.–Nãoestoupedindo isso.–Orbeypareceusedesculpar,erguendoasmãosdiantedesi.–De
jeito nenhum. Só estou tentando dizer que precisa superar essa dor que o consome por dentro.Precisaaprenderalutar.Pelamemóriadeseupai.
–Nãosabenadasobremeupai!–exclamouogaroto,àbeiradaslágrimas.Com que direito aquele simples ferreiro se permitia falar em Oratio de Uster? Embora
trabalhasseparaoconde,nuncativeraqualquerrelaçãocomele.Nemcomseufilho.–Não estou pedindo que esqueça – insistiuOrbey commais convicção. – Isso nunca vai ser
possível.Todaferidaacabase fechando.Ficamascicatrizesparanos lembrardesuaexistência.E,embora a dor se torne menos intensa, nunca deixa de ser profunda. – Levantou-se devagar. –Nada, jamais, vai preencher o vazio dessa perda. O que receio é sua própria perda, se não derouvidosaMadog.
Não houve tempo para o garoto reagir. A porta se abriu com um súbito estrondo e doishomens,segurandoumterceiropelosombros,entraramaosgritos:
–Ande,seufrouxo!Conteessasuainfâmia!–Oqueestáacontecendo?–bradouMeurnau.–ÉovelhoBastian,dacasaCrique–explicouumdoshomens.O sujeito trazido por eles não disfarçava seu pavor, cabelos brancos desgrenhados sobre um
rosto encovado. Raquítico, mergulhado num grosso manto que batia nas botas muito gastas ecobertasdelama,elereviravaosolhosparaoshomensqueoseguravamàforça.
–Misericórdia!Misericórdia!–suplicavacomvozaguda.–Ele esteveemForted’Aedhádoisdias, enão foi sópara fazer compras.Éumcovarde!Um
traidor!–vituperouumdoshomens.Meurnaufoiatéeleeoagarroupelopescoço.–Oquê?–Eu...eu...porfavor–gaguejavaBastian.–Oquevocêfez?–bradouocapitão.–Elenosvendeu–declarouumdossoldados.–Não,eusó...eusódisse...–Disseoquê?–indagouMeurnau.Umbradodistanteinterrompeuointerrogatório:–Alerta!ALERTA!OImpério!Elesestãochegando!– Eu não queria. – Bastian estava aos prantos. – Mas ele me deu dinheiro, dinheiro para a
minhagente.Eu falei que vocês estavamemBraquena,que estavamprotegendoLaertedeUster.Eledeudinheiroparaminhafamíliateroquecomer.Estásendouminvernodifícil,meusenhor,e...
–EleQUEM?!–OcapitãoÉtienneAzdeki–confessouovelho.–ContraumcavaleiroqueusaoSopronãohánadaquepossamosfazer–declarouMadog.–Laerte!–chamouMeurnau.Lá fora, as vozes dos soldados ressoavam à luz das tochas. Azdeki estava chegando. Da
agitaçãoque se seguiu,Laerte sóguardouumaconfusa lembrança:os tenentesdesembainhandoas espadas, homens correndo e um ruído crescente. Até que as mãos de Meurnau ergueram o
garotoperdidoeolevaramparaooutroladodasala,juntoaumapequenaporta.–Precisairembora,Laerte–avisou.–Comoogarotonãosemexia,elevouavoz:–Laerte,está
me ouvindo? É Azdeki! Não sei se temos como escapar. Precisa fugir. Podemos, pelo menos,afastá-lodevocê.Fuja,Laerte!Fuja!
Laerte continuava imóvel.Os tenentes saírampelaportada frente e gritos ressoaram.O somsecodeespadasbatendoumasnasoutras,gritoseoalarido...Tudo,porém,pareciatãolentoaosolhosdomenino,tãoestranhamentedesfocadoe...
O tapa o despertou de seu torpor, o coração acelerado. O Império. O Império estava ali. Omedoentãooagarrouparanãomaislargá-lo.
–Fuja,Laerte!Váembora!Fuja!–repetiaMeurnau,abrindoaporta.Sem esperarmais, ele se lançou noite adentro,mal ouvindo a porta bater, de tanto que seu
coraçãomartelavanopeito.Caiudejoelhosnaterrageladaeoestardalhaçodabatalhasefezmaisnítido. Levantou-se apressadamente. À sua direita, as sombras gigantescas dos beligerantes sedesenhavamnumaparededepedra.Disformes, esplêndidas e apavorantes, às vezesmisturavam-se,aureoladaspelofulvoclarãodastochas.
–Laerte?–chamouumavozfraca.Ela surgiu da noite, a respiração sibilante, o rosto vermelho do esforço da corrida. Em seus
olhos,omedo.Aolonge,oclamordoscombates.–Fuja–disseelasecamente.–Váembora.Eleficoualiparado,perdido,semsaberparaondeir,oquefazer: lutaroupartir,morrerlonge
delaoutalvezaliemseusbraçosou...–Váembora,Laerte!Váembora!Sua voz o atingiu feito um chicote, ferina.Não estava pedindo,masmandando. Suas feições
delicadassecontraíamnumaagressividadequenãocombinavacomela.–VÁEMBORA!–insistiu.E então ele se lançou noite adentro. Correu pelo capim alto dos pântanos, que açoitava seu
rosto. Correu o mais depressa que pôde, até os combates não passarem de um eco distante eapenasaluzgeladadasestrelasiluminarseucaminho.Aspernasestavampesadas,suarespiração,entrecortada,agarganta,secaeardida,maselenãoparou.EmsuacabeçaressoavaavozdeEsyld,tãoásperaeviolenta:“Váembora,fuja,váembora.”
Nãodemoroupara suasbotasafundarememáguaestagnada.Elecontinuou.Porpouconãoficouatoladonumlodoespesso.Continuou.Caiu,raspandoojoelhonumapedrasaliente,sufocounalama,chorando.Levantou-seecontinuou.
Seu peito estava em brasas, a cabeça girava. A respiração sibilava na garganta, o coraçãopareciaprestesaexplodir.Aslágrimascorriamsoltasemsuasfacesimundas.Diantedelesóhaviaescuridão,vultospoucodiscerníveis,ululaçõeseestalidosacompanhadosdolentosoprodovento.Estavaalisozinho,noescuro...
Caiupara a frente.Não tornou a se levantar. Só restavaobreu absoluto eum longo silêncioapaziguador.Ouviu-seentãoummurmúrio,comoumchilreardistante.
Laerte piscou.Algo pastoso, de gosto azedo, obstruía sua boca.Tossiu uma vez, fechando os
olhos.Oventoafagavaseurosto,levantandoocabelosujo.Tossiuumasegundavez,commaisforça,
eaospoucosfoivoltandoasi.Estavadebruçosnocapinzal,mergulhadonalama,partedorostoafundada.Levantou-sedesúbito,numsobressalto,mascurvou-seemseguida,cuspindocomforçaa terra encharcada que o sufocava. Quando se sentiu melhor, endireitou-se. Não sabia quantotempocorrera.Oscharcosàsuavoltaseestendiamaperderdevista.Anãoser...Destacando-seemmeioao capinzal, caídanumapequenaelevação, a carroçadoninhode zangões encontrava-se àsuafrente.Resolveuiratéláeseguiu,compassosincertos.Estavaexausto,acabeçavazia.Desabounaterrasecaapoucosmetrosdacarroçaetornouadesmaiar.
Quandovoltouasi,foitomadoporumaavalanchedeperguntas.Oqueiaserdele,agoraqueestava sozinho? O que fazer? Para onde ir? Como sobreviver? Meurnau conseguira rechaçar ocapitão do Império? Esyld tinha sobrevivido, com certeza. Ela não podia morrer. Ia encontrá-laoutraveze...Não.Elenãosabia.O Império tinhamatadosua famíliaeoenxotava feitoumcão.Estavareduzidoàcondiçãodeanimalacuado.
Aoavistaroninhodezangõesaospedaçosnochão,soltouumgritodealegria.Aquelasimplesdescoberta lhe deu tanto alívio que quase chorou.A rã-de-Erain tinha se fartado comos insetos,deixandoapenasacascasecaevaziadeseuabrigo.AcarroçapareciatãoacolhedoraquantoumacasaemBraquena,entãoojovemsepôsavasculharoscaixotes,tratandodeajeitarumesconderijominimamenteconfortável.Estendeupanosvelhosnochão,devorouospêssegosemconservaqueachoucomosenãocomessehaviadiasefinalmenteadormeceuquandoosoljáestavaapino.
Nos dias seguintes, o consolo se esfacelou diante de uma sensação atroz de desespero. Nãopassouumaalmasequerpelospântanosaoredor.Laerteestavamesmosozinho.Meurnaudecertonão sobrevivera. Os dias viraram semanas e a primavera chegou em boa hora para amenizar oventodasSalinas.Torturadopelafome,Laertetiveraqueaprenderacaçarrãs-colmeia,lembrando-sedeEsylddizerquesuacarnetenrasepareciacomfrango.
Tentou,semsucesso,acenderumafogueira.Sóoqueconseguiuforamvárioscortesnasmãos.Contentou-seemcomê-lascruas,porpouconãovomitandoacadamordida.Acarneeraviscosa,osangue,gosmento,osnervos,duríssimosdeserasgar.Maseraoúnicoalimentodisponível.Parasobreviver, recorreu a tudo o que aprendera com Esyld e que na época parecera tão inútil. Ospântanoseramumautênticoviveiroderãscomváriasutilidades.Omucodeumaserviaparafazerunguentoeoutraserevelavaumpratonutritivo.
CogitouváriasvezessairdeseuesconderijoetentarchegaraForted’Aed.Masseráqueachariao caminho emmeio aos charcos?Caso conseguisse, o que encontraria ao chegar lá?Meurnau eseus homens, se tinham sobrevivido, decerto tinham revirado a região à sua procura. E sepensassemque ele estavamorto?Como passar dos dias, seu desespero foi crescendo, tornou-setãoopressorqueeleacabounãofazendomaisnada.Ficavaaliprostrado, famintoecansado.Atéque,certamanhã,amortepareceutãopróximaquenãotevecoragemdeenfrentá-la.Levantou-seeporfimresolveunãomorrerali.
Assemanasvirarammeses,houveadoçuradaprimavera,ocalordoverão.Atéodiaemquesaiuparacaçare,movendo-sepelocapinzalatrásderãs-colmeialongedoseurefúgio,ouviuuma
vozquebradava:–AZDEKI!SantaMiséria!Tomlinn!Emmeioaocapim,avistouumhomemacavaloqueagitavaaespadanoar.Aoseuredor,três
ruarguessemovimentavamrosnando.–Tomlinn!AZDEKI!Quandoumadascriaturasatacouocavaleiro,derrubandonãoapenasohomem,mastambém
suamontaria,Laerteconteveoimpulsodefugirdesabalado.Nãofoiacuriosidademórbidaqueolevou a assistir ao massacre, mas um mero sentimento de revanche. Eles tinham matado suafamília...EracomosesuaregiãoestivessevingandoocondedeUstereosseus.Levantou-separavê-lo ser devorado, mas logo se ajoelhou, nervoso. Adiante, sessenta homens, no mínimo,carregavampesadas toras demadeira quepareciamumaponte desmantelada.Quando tornou aergueracabeça,viuqueelesseafastavamsemsepreocuparcomodestinodeseucamarada.
–Azdeki!Tomlinn!–urravaocavaleiroapoucosmetrosdali.Orosnardoruargueencobriusuavoz.Ohomemlogovirariamingau.Laerteresolveusairdali;
nãoqueriaouvi-logritaratémorrer.Mesmoporque,seumruarguenotassesuapresença,acabariatendoomesmodestino.Estavadandomeia-volta,decócoras,quandosuamãoroçouumcalombonobolso.Oapito.Oapitoderuargue.Foitomadoporumsentimentodeculpamaiscortantequeuma espada,maispesadoque chumbo, insuportável e doloroso.Assistir àmortedeumhomem,fossequemfosse,eraumacoisa.Nãointervirtendocondiçõesdefazê-loeraoutra.Asatisfaçãodavingançadesmoronavafaceaumavergonhatãorepentinaquantoinesperada.Podiadeixaraquelehomemmorrerassim?
Percebeuumruídoestranhoàssuascostas.Lançando um olhar assustado por sobre o ombro, assistiu ao impensável: o ruargue sendo
lançadoaosaresporumaforçainvisívele,juntocomele,osdespojosestripadosdeumcavalo.Umurro ressoou, tão dilacerante, tão atroz, que Laerte precisou se sentar na lama para tapar osouvidos.Seriapossívelalguémsofreraesseponto?Aquelegritonãotinhamaisnadadehumanoe,quando se extinguiu, instalou-se um silêncio gélido e pesado sobre os pântanos. Laerte enfiou amão no bolso e apanhou o apito. Apertou-o com tanta força que sentiu como se o pedaço demadeirapenetrassenapalmadesuamão.Quantooventolhetrouxeosomdospassospesadosdeumruargue, levouoapitoàboca.Sentiaagargantaengasgada,arespiraçãoofegante.Ospassosseaproximavam.Ocapimsedobravaaovento.Ele inspirou, encheuospulmõese soprou,aindamais forte,exalando todooarquepodianaminúsculamadeiraentalhada.Mais forte.Ouviuumrosnado,tãopróximoquejulgousentirohálitofétidodacriaturaemcimadele.Inspirouaplenospulmõese soproumaisumavez.Umrugidoabafadosurgiu.Eoutro.Emaisoutro,até seurostoficarcarmesim.
Julgandoouviroarquejodeummacho,asruarguesfêmeasfugiramàspressas.Resfolegando,Laerte se arriscou a levantar-se. As tropas imperiais tinham sumido no horizonte. O capim altobalançava devagar sob um céu branco cintilante. A natureza foi aos poucos emergindo de seutorporeocoaxardasrãs se fezouvirnovamente.Não longedali,umcavaloencilhadoavançava,parecendoperdido,comasrédeasbalançandonopescoçoeumaselavermelhagastanolombo.
Porque...Procurou pelo corpo do cavaleiro e quase desmaiou ao se deparar com a perna esmagada, o
sanguesemesclandoàlamadopântanoemestranhasespirais.Porquevocênãomedisse...Foitalvezporpuracompaixãoquetratoudesalvarocavaleiroàbeiradamorte.Suarespiração
estavafraca.Apele,lívida.Eu...penseiquevocêestivessemorto...pensei...Foi talvezpormisericórdiaqueo levouaté seuesconderijo... equeoviu soçobraraospoucos,
atéporfimnãosentirnada,nempenanemódio.Quandoviunocinturãoabainhavazia,voltouparaomeiodopântanoàprocuradaespada.Passoumaisdeumahorarevirandoalamagrossaenquantoachuvacaía.Umcheirodeesgotoinvadiasuasnarinas,masnãoeranadasecomparadoaomedoque fazia suas entranhas se contorcerem.Paravadevez emquando, espreitandoalgumruído em meio ao som das gotas batendo na terra mole. Nenhum ruargue veio perturbar suabusca,atéquesuamãoporfimtocounopunhodeumaespadaafundada.Conseguiuretornaraoacampamento improvisado, o coração ainda a ponto de rebentar,mas omedo se diluía a cadapassoqueotraziadevoltaaseuesconderijo.
Deitado juntoàcarroça,ocavaleiro feridodelirava,orostoencharcadodesuor,contorcidodedor.
...porquê,Rã...Porqueoquê,Pernalta?Naquelaprimeiranoite, ficouajoelhado juntoaomoribundo, segurando firmementeopunho
daespadanasmãosúmidas.Achuvacaíacomforça.Asgotasqueseesgueiravamentreastábuasdacarroçasemisturavamcomsuaslágrimas.Aosprantos,ergueualâminasobreocorpotomadopor espasmos. Poderia baixá-la, romper, perfurar a armadura e acabar com aquilo. Eles tinhammatadoseupai.
PorquenãomedeixoumorrerlánasSalinas?Nasegundanoite,quando jácomeçaraa tratardas feridasdohomem,hesitounovamente.A
espada era tão pesada... Bastava um movimento mais forte para o seu peso cuidar do resto epenetrarnotronco.
Chorava.Não conseguia fazer isso.Ardiade vontadede fazê-lo,de vingaros seus,de revidaraquelabarbáriequeroubara todaequalquerdignidadedesuamãeedesua irmã.Seeles tinhamdestruídoosseus,elepoderiafazeromesmo...Será?Aindanãoeracapazdisso.Aindanão.
Vocêeraapenasummenino...Deixou-secairdelado,gemendo,chorandosemparar,xingandoasimesmoporsuacovardia.
Entreumsoluçoeoutro,abriuosolhos....Vocêpodiatermedeixadomorrer...A poucosmetros dali, uma rã-de-Erain o fitava, imóvel, a luz pálida da lua baça refletida em
seusolhospretos.Umarã-de-Erain...Vocêeraapenasummenino...
–Vocêpodiatermedeixadomorrer...Eraapenasummenino...–Minhainfânciaacabounodiaemque,pelaprimeiravez,euhesitei–respondeuLaerte.MalconseguialembrardoarúmidoemornodasSalinas.AliemMassáliaasnoiteseramsecas,
sufocantes.Ostemposmudavam.–Nodiaemquesalveivocê,acredite,euhesitei–acrescentoucalmamente.Recostado na parede de uma cozinha, de braços cruzados, fitava com seus olhos cinzentos,
penetrantes, o velho general sentado à mesa. Diante dele, pousada sobre o cobertor que acamuflaradurantetantosanos,Eraedcintilavaàluzdeumlampiãoaóleo.Pertodaporta,Rogantvigiava. Do outro lado, o cabelo ruivo de Viola esvoaçava à brisa ligeira que vinha da janelaentreabertaondeelaapoiavaasmãos.Tinhamlevadoogeneralparaaquelacasa,nãomuitolongedo porto. Desde que estavam em Massália, era ali que se refugiavam enquanto Viola tentavaconvenceroancião.
–Laerte...Dun-Cadalsuspirou,passandoamãotrêmulanorosto.Oqueelenãodariaporumajarradevinho...Laertebalançoubrevementeacabeça.–Dun-Cadal...–respondeu,comosefosseaprimeiravezqueseencontravam.Eradifícilparaelevernaqueleestadoogeneralqueotomarasobsuaproteção,comasfeições
tãomarcadas, tão tensas,umar sujoeabatido.Parecia tãodiferentedohomemqueconhecera...Como podia ter se acabado tanto? Tentava imaginar o que estaria pensando naquelemomento,queperguntas lhepassavampelamenteagoraque sabiaquemele era.Havia sepreparado tantoparaaqueleencontroquenenhumaperguntairiasurpreendê-lo.
–Rã...–disseogeneralcomoolhardistante.Pareciaevocara lembrançadeumdefunto.Decerta forma,Rãestavamesmomorto, seéque
tinha existido algum dia. O olhar do general se deparou com a forma perfeita da espada e sedeteve.
–Entãoéporisso...Éporelaquevocêestáaqui...Porquê...?Porqueessasmortes,porquê?–balbuciouele.
Laertefoiatéamesa.Commãofirme,pegouopunhodaespada.– Por muitos motivos, Dun-Cadal – respondeu. – Por vingança, dever... obrigação... mas,
principalmente,porvontade.Encarou o general, esperando uma reação. Não houve nenhuma. De soslaio, percebeu a
expressão cética da moça. Só ele conhecia o velho, só ele sabia como despertar dentro dele ogeneraladormecido.
–Vocêestáchateadocomigo,nãoé?Poreununcaterditonada,portermantidosegredosobrequemeuera...Eusei.
Dun-Cadal continuava fitando o vazio sem esboçar qualquer reação, mas seus maxilares secontraíamaospoucos.
–Encontrarvocênãofaziapartedosplanos.Isso,aliás,incomodaumpoucoRogant–brincou
Laerte.Onâaga,emumcanto,balançouacabeçacomarressentido.–Vocêmeconhece,sófaçooquemedánatelha.Ogeneral,agressivo,imediatamenteodesafioucomoolhar.–Émesmo?–perguntou.E,pelaprimeiravezdesdequeestavamali,quasefaceaface,Laertedesviouosolhos.Baixoua
cabeça,deixandoinstalar-seosilêncio.Então,apassoslentos,pôs-seaandaraltivamenteemvoltadamesaecontinuou:
–Sabe,quandoouvidizerqueumantigosoldadodoImpérioandavacontandosuasaventurasporaíemtrocadeunscanecosdevinho,estavalongedeimaginarquepudesseservocê.Eaí,emalgummomento,nãoseiporquê,vocêcomeçouafalarnaespada.Ah,Pernalta,tenhocertezadeque muita gente está procurando por ela em Vershã. Mas... eu... Quando o reconheci, logoimagineiquevocênuncaaesconderiamuitolonge.Mesmopatéticocomoestáatualmente,mesmosujoe fedido feitomerda,vocênãoédo tipoquedeixaaarrogânciapara lá.AMãodeReyes...ogeneral...oremanescentedoImpériovelandoporum...ah,sim,umsímbolo,nãoéisso?
Dun-Cadal aguentou firme, sem reagir. Quando Laerte se aproximou dele, inclinando-selevemente junto a seu ouvido, não esboçou qualquer gesto. A ira fazia brotar em seu olho umalágrimasolitária.
–Vocêreviveuseupassado,nãoé?Relembrousuaantigagrandeza?Tome,pegue.Comumgesto,fezaespadarolarnadireçãodogeneralimpassível.–Sintovocêfervendopordentro.–Basta,Laerte–interveioViola.Elanãopôdedeixardecorarquandoeleaencaroucomumolharferoz.Tentandodisfarçarsua
apreensão,tirouasmãosdajanelaeasuniuàfrente.–Elenãomereceisso–disseelaemvozbaixa.Pensouqueelefossereagircomviolência,talvezatéesbofeteá-la,masnãofoioqueaconteceu.
DiantedoolharimpávidodeRogant,Laertesaiudasalaapassoslentos.Masconseguiadistinguirasemoçõesqueo invadiam.Tantosanosparaenfim tornaravê-lo,
tantosanosparaentenderoquehavia forjadoseudestino...Diantedaporta fechadadacozinha,Violasegurouseupulso.
–Espere–pediu.–Oquevocêestáquerendo?Mediga.Embora houvesse censura em sua voz, tentava manter certa suavidade para não piorar a
situação. Precisava reconhecer que ela sabia apaziguar as coisas. Mas era apenas uma garota,jovemdemaisparaentenderoqueelesentiaemrelaçãoaDun-Cadal.
–Nãoeraparaeleestaraí–prosseguiuViola, lançandoolhadelasnadireçãodacozinha.–Jáconseguimosoquequeríamos.Eagora,oquevamosfazercomele?Seodeixarmos ir,vaiacabarcontandotudo.Mesmosendoumbêbado,podechamaratenção,edissonósnãoprecisamos.
–Rogantvaificaraquideolhonele–respondeuLaertesecamente.–MasquandoPagesouberque...–Nãovai falarnada.Eu seioqueestou fazendo–assegurou-lheLaerte.–Confie emmim.–
Comum gesto brusco, puxou o capuz para cobrir a cabeça. – E você tem razão, ele nãomereceisso...Merecemuitomais.
Antesqueelapudesseresponder,virou-seesaiudacasa.
3
Garmaret
Vocêvaimatarsuainocência
também,meurapaz.
E,acredite,quem
maislamentaissosoueu.
Deixara-secairdelado,escondendo-seaomáximonodensocapim.–Foiassimqueensinaramvocêamontarguarda?–bradouumhomemaliperto.–Oquê?Eusóestavamijando–respondeuooutrocomindiferença.A noite estava clara, qualquer passo podia fazer com que os dois soldados o vissem. Tinha
apenas14anoseestavafugindodasSalinas.–Nuncasaiadoseupostosemavisarosoutros!–Chegamos ontem, capitão – defendeu-se o soldado, insolente. –Não sabemos o que fazer,
ora.Sónosmandaramalinharascatapultas.–Deondevocêssão?–DeAvrai,capitão.Somosquinze.Suaarmademadeiraestavaaapenaspoucocentímetrosdeseubraçoestendido.Debruçosna
terraúmida,comoseesmagadodemedo,Rãnãoseanimavaafazerumgestoemsuadireção.Seucoração batia com violência, ressoando nas têmporas, a respiração estava curta; seu peito,apertado.
–Vocêstêmsempreque...Aalgunsmetrosdali,umcapitãodebotasreluzentesavançouapenasumpasso.–Oquefoiquevocêsfizeram?–Agentealinhouascatapultas,ué.Um passo apenas, que lhe permitiu vislumbrar um vulto escuro deitado no capim. Quando
ouviuozunidodeumaespadasendopuxadadabainha,Laertenãoteveescolha,tevequesejogar.
Ágil, rolou, aproveitando para agarrar a espada demadeira, e se pôs de pé com uma facilidadesurpreendente.Tinhatreinadotantonosúltimosmeses.
Mas nessa noite já não se tratava de um exercício em que podia errar. Sua vida dependia desuasescolhas.
–Você...?!–espantou-seohomem.–Mascomo?Aquele rosto marcado por uma cicatriz, clareado parcialmente pelas altas tochas do
acampamento, imobilizou-se, atônito. O soldado era calvo, de ombros largos, tinha o lábiocortado.
Quandovocêsaiassimcampoafora,nãopossodefendê-lo.Seossoldados imperiaisviremvocê,sóesperoquesaibacorrerbemrápido.
Laerte,porsuavez,hesitouuminstante.Nobolsodacalça,oapitoderuarguepareceupesar....nãopossodefendê-lo.ÀsuafrenteestavaMadog,boquiaberto,quaselargandoaespada.–Oquevocê...?
...defendê-lo...Levantou-se num sobressalto ao raiar do dia, com a respiração curta e encharcado de suor.
Todanoite,desdequetinhamdeixadoasSalinas,reviviaomomentodaquelaterríveldecisão.Todosono continha sempre o mesmo pesadelo em que ele assumia irrevogavelmente a culpa de umassassinato,poisnãoforaparadefenderaprópriavidaqueelemergulharaaespadademadeiranagarganta do homem. Queria desesperadamente apagar essa culpa que tanto o assombrava.Tentavaesquecê-la,convencerasimesmodequefizeraoqueeracertoporquenãotinhaescolha.
–QueméMadog?–perguntouumavozatrásdele.Tinhamcavalgadodoisdiasinteiros,sóparandoparaoscavalosdescansarem.Galoparamaté
agrandeflorestadeGarm,divisadepinheirosentreasSalinaseasplaníciesagrícolasdocondadodeGarm-Sala.
Atrásdele,Dun-Cadalofitavaderelanceenquantoencilhavaoscavalos.–Ninguém–respondeuLaerte,abraçandoosjoelhosjuntoaopeito.–Ninguém?– espantou-seo general, rindo.– Se todanoite você chamapor ele, esseMadog
temqueseralguém...Laerteoignorou,decididoanãodeixartransparecernadasobreoassunto.Dun-Cadaleraum
simples instrumento para levá-lo ao imperador. Não precisava saber dos seus segredos. Sedescobrisse sua verdadeira identidade, decerto acabaria comele. Laertenão entendiamuita coisasobrearevoltadasSalinas.Seuúnicoobjetivoeraamortedo imperador.Nadamaismereciasuaatenção.Naverdade,nãotinhasequerconsciênciadorestantedomundo.
Durantemeses,tinhapensado,matutado,imaginadocadamínimodetalhe.Cuidardocavaleiroparaquedepoiselesetornasseseuprofessorforaapenasocomeço.Aospoucos,tinhaentradono
jogo,certodequesetornariaumhomemtãorespeitadoquantoseupai...e,principalmente,temidoporseusinimigos.Haviaseexercitadoatéaexaustão,superandoador,treinandoincansavelmenteosmovimentosassimqueseumentoradormecia.
–Vamos, garoto, levante–disseDun-Cadal, bufando. –Estamosno condadodeGarm-Sala,Garmaretficaaapenasduassemanasdaqui.Embrevevamosterdireitoaumbombanhoquente.
Quando chegassem a Émeris, ele já seria o maior cavaleiro do mundo, capaz de desafiar opróprio imperador. Tal como a rã-de-Erain, estava se tornando igual à sua presa... paramelhoratacá-la.Levantou-se,aindacansado.
–Vamos!–apressou-oDun-Cadal.Ogeneral,comumacareta,seiçavaemseucavalo.Seráquesuapernaaindadoía?Espantado
consigomesmo, Laerte sentiu pena. Receara que a perna fosse um empecilho durante sua fuga,mas, para sua imensa surpresa, Dun-Cadal dera mostras de um impressionante autocontrole.Ajudara-oaescapar,paradepoislutarsozinho.Aomenosporissotinhaquerespeitá-lo.
Ele dissera duas semanas. Duas semanas de cavalgada floresta adentro, até as planíciesverdejantesdeGarm-Sala, ondeos esperava a cidade fortificadadeGarmaret.Duas semanas emqueelesonhoucomMadoge,todamanhã,aguentouasmesmasperguntasdeseumentor,quelheensinouobásicosobrecaçaaolongodaviagem,felizporprovaroutracarnealémdaqueladasrãs-colmeia.
Forammomentosum tantodifíceisparaLaerte,queachavaogeneralgrosseiro,debochadoeindiscreto.Estavasempretentandodescobrirmaisaseurespeito, lançandosemmaisnemmenosperguntas que o garoto penava para responder. No entanto, para seu grande alívio, quandodespistavasuacuriosidadecomumafraseevasiva,Dun-Cadalmudavadeassunto.
Acadaparada,prosseguiaoaprendizado.Combatia,napenumbra,inimigosinvisíveisatéqueseus músculos virassem carvões ardentes e ele, exausto, caísse de joelhos, esgotado. Cansado,voltava para o acampamento, deitava-se para não dormir mais que três horas e acordava,sobressaltado,aoraiardodia.
Sacolejandoemsuamontaria,porpouconãopegouváriasvezesnosono.Atéque,nolimiardafloresta,avistouasplaníciesdeGarm-Sala.Sobumsuavesolprimaverilseestendiamcentenasdecampos cultivados, que iam do verde-escuro do capim cortado ao dourado dos cereais. Por aliserpenteavamalgumas estradasde terra, trilhadaspor carrosdeboi sacolejantes, junto aosquaiscaminhavam,calmoseserenos,pequenosvultosescuros.Noarvoejavamcuriosasformasbrancas,minúsculasebelas,levadasporumventoligeiro.
– São dentes-de-leão soprados pelo vento – explicou Dun-Cadal, e suspirou de satisfação. –Garmaret...
Com os braços pousados na sela, indicou com a cabeça a bruta arquitetura dasmuralhas deGarmaret. Dali a cidade parecia um simples quadrado de pedras com uma torre de vigia seerguendoemcadaânguloreto.
–Seandarmosabompasso,chegaremoslánofinaldodia.Laerte, estoico, contemplou apaisagem.Nãodeixou transparecer seu espanto, habituadoque
estavaaocultarsuasemoções.
–Nossa...porquetantafelicidade?–ironizouDun-Cadal,afagandoopescoçodesuamontaria.–Nãogostadaideiadeummerecidodescanso?
–Gosto...Seulaconismopareceuirritarogeneraleeleachoumelhorsejustificar:–Éaprimeiravez.–Quevocêvaitomarbanho?–brincouDun-Cadal.–Não...–Balançouacabeçadevagar.–EununcavinadaalémdasSalinas.Estavatomadopelomedonamesmaintensidadeemqueeradominadopelainabitualagitação
quetratavadenãodemonstrar.SeriaoImpériotãoimensoquelevariaanosparachegaraÉmeris?Olhouinstintivamenteporsobreoombro,nadireçãodasSalinas.
–Ei,menino–chamouDun-Cadal.–Olheparamim.Quandocruzouseuolharcomodogeneral, ficoutãoperturbadoquesentiu lágrimasvindoà
tona.Viubondade em seusolhos.Porque estava começando a temeromomento emqueDun-Cadaldescobririaquetinhaalimentadoseuinimigo?
–Menino,aquivocêestáemcasa.Batendo com os calcanhares, pôs o cavalo a galope. Estar em casa... Não havia nada de
tranquilizadornisso.Percorreram o caminho a bom passo, cruzando carretas e camponeses sem que ninguém se
surpreendesse.Eleesperavaserdetido,quealguématravessandoaestradagritassequeeleeradasSalinas ou algo pior. Todos ali estavam a serviço do imperador e de sua corte, deviam tercomemorado ao saber damorte de Oratio e da tomada das Salinas. Por que semostravam tãopouco interessadosnosdoiscavaleirosquegalopavamrumoàcidade fortificada?Quando,aosolpoente,chegaramaosportõesdeGarmaret,Laerteentendeuomotivodaindiferença.
Diantedoolharríspidodossoldadosimperiais,dezenasdecarroçasseamontoavamjuntoaosportões,esobsualonachoravammulheresecriançasaosfarrapos.Aoseuladoandavamhomens,àscentenas.FugiamdasSalinasbuscandorefúgioemGarmaret.Oalaridodaguerrachegavaatéali. Longe de desfrutarem de um sossego reparador, eram revistados sem cerimônia, às vezesapartados dos seus, e conduzidos pela cidade depois de passarem pelas grades erguidas naentrada.
Umavezdeixadosparatrásospesadosportõesdacidade,abriramcaminhoentreamultidão,avançando pelas vielas estreitas que subiam até o acampamento, que ficava em volta de umatorrezinha de pedra, a poucosmetros de uma ampla porta fechada com grade. Dali partia umalargaestradavigiadaporsoldadosdecouraçaescura.
Atéapear,Laerteevitouatodocustobaixaroolharparasuagente,queiaatéaliembuscadepaz.Emnenhummomentoseatreveuaencararninguém,commedodequeoreconhecessem...oude que percebessem seu sofrimento. Angustiou-se quando uma tropa passou por trás deles.Acabaradeapearaopédatorreeaideiadeestarnabocadolobolhecausavaumapertonopeito.Paraondequerqueolhasse,sóviamilitareserefugiados.Ali,àentradadeumatendaaltaelarga,umamulherembalavasuavementeseubebêparaacalmá-lo.Adiante,soldadosdiscutiamcomumhomemderostomarcadopelocansaço.Malouviaavozdeseumentor,quehaviaalgunsminutos
discutiacomumjovemtenentedearmadurareluzente.–Quemcomandaesteacampamento?–OgeneralNégus,senhor...Umestava limpo,penteadoe intimidado.Ooutropassaramesesnospântanos, estava sujoe
fedido,comaarmaduraamassada,ocabelodesgrenhadoeumsemblanteexausto.– Pois vá chamá-lo, depressa. –Mas logo estalou os dedos para atrair a atenção do tenente
apressado.–DigaaelequeDun-CadalDaermonestáaqui.O tenente ficou perturbado. Por detrás da sujeira dos pântanos que maculava a armadura,
entreviam-se as cores do Império. Qualquermilitar reconheceria a patente gravada nos ombros.Mas o generalDaermon fora dadopormorto fazia quase um ano.O tenente assentiu e subiu aescadadepedraquelevavaaoaltodatorresempedirmaisexplicações.
Laerteentãoreparouquenãoeraparaelequesedirigiamosolhares.Quemchamavaaatençãoera Dun-Cadal. Soldados cochichavam entre si, guardas se detinham ao vê-lo e outros, empatrulha,seafastavamsemtirarosolhosdele.
O general amarrou as rédeas do cavalo numa grande viga de madeira que se projetava dapedra.Laerteoimitoueaproximou-sedele.
–Porfavor,Rã,comporte-se.Nãovácausarmáimpressão–disseemtomfirme.–Estábem,Pernalta...–Paredemechamarassim–reclamou.–AquisouogeneralDun-CadalDaermon,entãome
chamepelaminhapatente!SantaMiséria!Nervoso,puxouoplastrãoparaajustá-lo.Comtodomundooobservandocomcertareverência,
sóoqueopreocupavaeraLaertecausarumaboaimpressão.Depoisdeogarotosalvarsuavida,deo ajudar a cruzar as linhas inimigas, era assim que o general o via: ummoleque que a qualquermomentopodiaenvergonhá-lo.
–Pelosdeuses!PELOSDEUSES!–exclamoualguém.Virando-se,Laerteavistouumhomembaixoerechonchudo,apertadodentrodeumaarmadura
dourada,vindoemsuadireçãocomosbraçosabertos.Emseurosto,umsorrisoencantadoe,nosolhos,umbrilhodealegria.–Évocê?Évocêmesmo?–E quemhaveria de ser? – retrucouDun-Cadal, achando graça, enquanto colocava uma das
mãosnoombrodeseuaprendiz.Lenta, mas firmemente, afastou-o para o lado enquanto o general baixinho se aproximava.
Então se abraçaram, com fortes tapas nas costas. Carrancudo, Laerte os observava de esguelha:riam,felizescomoreencontro.
– Disseram que você tinha caído! Eu não pude acreditar. Um ruargue dando uma surra emvocê,Dun-CadalDaermon?
Ohomenzinhoriu.–Vocêfoimalinformado–rebateuDun-Cadal,afastando-se.–Confessoquefoiporpouco.–ETomlinn?Dun-Cadalbalançoutristementeacabeçaemresposta.
–Euteriaacabadocomoelesenãofosseporessegaroto...Rã!Comumgesto,convidouLaerteaseaproximarepôsamãoemseuombrocomfirmeza.–EsteéogeneralNégus,umdosmeusmaisleaiscompanheirosdearmas.Négus,permitaque
eulheapresenteocavaleiroRã.–Rã?CavaleiroRã?–zombouNégus.–Foionomequeeulhedei–explicouogeneral.Falavacomumapontadedesprezo,comoseLaertefosseumsimplesanimaldeestimação.–Queolhartãocheiode...arrogância–observouNégus.–Éumórfãodas Salinas,meuamigo.Tem lá seu temperamento.Esqueça.Temos tantopara
conversar...antesdeeumedaroprazerdefinalmentetomarumbanho.–Issoeuentendo.–Ohomenzinhosorriu,alternandooolharentreogeneraleomenino.–Dá
parasentirseucheiroa10léguasdedistância.Conduziu-os para dentro da torre, subindo pela escada externa e passando por uma porta
pequenaquedavanumlabirintodecorredoresiluminadosportochasfracas.Oedifíciointeiroerafeitodelargaspedrasescurasecorriapelochãoumafinanuvemdepoeira.Foraconstruídoantesmesmoque se erguesseo Império, quandoGarmaret aindanãopassavadeum simples reino, e,apesar de recentes reformas, mantinha o aspecto bruto das antigas fortificações que semultiplicavam por aquelas terras. Não havia em sua arquitetura nenhum requinte, nenhumatentativadeembelezarapedra,somenteaquelacordesujeira.
Entraram numa sala ampla e Négus relatou os fatos que tinham levado à retirada paraGarmaret.TentaramreconquistarForted’Aed,masacabaramexpulsosporumexércitobemmaisaguerridodoque esperavam.Tambémpudera, umcondadovizinho resolvera apoiar os rebeldes,reafirmando o desejo de independência e um apoio incondicional ao novo líder da revolta.Acreditarampormuito tempoque se tratavadeumcertoMeurnau, antigo capitãoda guardadeOratiodeUster.Naverdade,persistentesrumoresmencionavamofilhocaçulado falecidoconde:Laerte.
Ao ouvi-lo pronunciar seu nome, Rã teve a impressão de que Négus piscava para ele. Suasmãos ficaram úmidas, a respiração, difícil. Empalideceu, sentiu-se vacilar quando Dun-Cadalagarrouseupulso.
–Rã,estámeouvindo?–repetiu.Percebeuentãoquenãoeraaprimeiravezqueeleperguntava.–Essegarotoestáexausto,Dun-Cadal.Voupedirquecuidemdele–disseNégus,contornando
aimensamesaemtornodaqualconversavamhaviamaisdeumahora.Laerte pouco acompanhara a discussão, tamanho o medo de ser descoberto a qualquer
momento.Ameramençãoaoseunometerminaradeembaralharsuasideias.–Senãoestiversesentindobem,avise–censurouDun-Cadal,ajudando-oairatéaporta.Um soldado foi encarregado de levá-lo até umpequeno quarto. Lá, duas criadas prepararam
umbanhoquenteemqueelemergulhou,trêmulo.Quandoficousozinho,quasecaiuemprantos.Omedo o oprimia com tanta violência que se sentia esmagado. Com os braços pendendo naslaterais da tina demadeira, fitava comumolhar sem expressão os fios de vapor se entrelaçando
sobreaáguaquente.Portrásdovéuqueformavam,umaclaraboiadavaparaaluzdocrepúsculo,eporelavinhamosruídosbélicosdoforte.Cascosdecavalosnaestradaasfaltada,passosetilintardearmas....vozesforteseautoritárias.Eoprantodeseupovo,perdidoemGarmaret,tãolongedecasa. Aos poucos foi recobrando as forças e, ao sair do banho, encontrou uma pilha de roupaslimpasseparadasparaelesobreapequenacama.Vestiu-se,saboreandoosuavecontatodotecidosobre a pele. Custou um pouco para calçar as botas enceradas, de tanto que seus pés tinhampadecidoemseusantigossapatosdepele.Umavezlimpo,vestidodacabeçaaospés,deitou-senacama,pensativo.Não tinha ideiadoque estavaporvir. Seráque conseguiria ir atéo fim semserdescoberto?Nempensavaemdesistir,mesmocomtodaaincerteza.
RecordouodiaemquevoltaraaForted’Aeddepoisdeváriosmesesnospântanos.Deixaraogeneral agonizando perto da carroça e vira em seu cavalo o melhor jeito de chegar comtranquilidade à cidade.Quase se perdeu várias vezes,mas conseguiu encontrar o caminho.QualnãofoisuasurpresaaosaberqueMeurnaunãosótinhasobrevividoaoataquedoImpériocomotinharetomadoacidade.
Sim,recordavaasuaalegria,aesperançaqueredescobriuaoseaventurarnasruassossegadas...até chegar à praçaprincipal e perceber que tinham roubado sua vida. Laerte deUster está vivo eandapelas Salinas, diziam.LaertedeUster está liderando a revolta e ganhoumaisumabatalha,comentavam.LaertedeUstertem20anos?Aparentavabemmenos...
Falavam dele em todo lugar, como se fosse alguém que ele não conhecia. Relatavam-se portodos os lados as últimas façanhas deumhomemquenão era ele. E, o que era pior, as pessoasacreditavamnaquilotudosemmanifestaramenordúvida.Emboratodosguardassemnamemóriao rosto de seu amado pai, quem lembrava realmente do seu? Tinha apenas 14 anos, ninguémacreditaria.TiveramedodareaçãodeMeurnausedescobrissequeestavavivo.ChegaraaimaginarqueocapitãodaguardaseaproveitaradasituaçãoparatomaropodernasSalinasequeomatarianaprimeiraoportunidadeparanãoterquedesmentirosboatossobreseusfeitosdearmas.
Recordoueadormeceucomocoraçãopesado.Ficaram quatro dias em Garmaret, desfrutando de um descanso reparador. E a cada dia
chegavam mais refugiados. Dezenas de colunas que, depois de levantada a grade, tomavam aestrada rumo a Émeris. Garmaret não passava de uma etapa. O imperador havia assinado umdecretoanunciandoquetodomoradordasSalinasencontrariaasilonacapital.Laertemuitasvezesficava sozinho em seu quarto, deixado de lado por seumestre, ocupado em se informar sobre oandamentodaguerraediscursarparaastropasdeplantãojuntoàporta.Ogarotofoiváriasvezesmaltratado quando o acompanhava em suas inspeções fortuitas. Rendeu-se rapidamente àsevidências:ogeneralnãooqueriaporperto,anãosernaspoucashorasdetreinoquesepermitiamnofinaldodia.
Namanhãdoquartodia,nummomentoemqueagradeestavaerguidaparadarpassagemamaisumcortejodeexilados,resolveusairdatorreusandoumacapaazulgentilmenteemprestadapor uma criada. Com o rosto encoberto pelo capuz, desceu a escada externa até a metade e,deslizando amãopelo corrimão, observou as carroças avançarem sob as grades emmeio aumanuvemdepoeira.Soldadosgritavamdeumladoedooutrodacoluna,ordenandoaosinfelizesque
andassemmaisdepressa.Laerte seguiu sem ruído, baixando ligeiramente os olhos, e contornou o acampamento em
direçãoàestrada.Tentavadistinguirumrostofamiliarnamultidão,algumconhecido,alguémcujasimplesvisãopudessereconfortá-lo.
Emmeioaalgunsbarris,entreduastendaslargas,aguçouoolharencarandocadapessoaquepassava a poucosmetros dali.Observava-as caminharem cabisbaixas, sem ânimo. Então tinhamlhestiradotudo:nãoapenasosbens,mastambémadignidade.
Nunca se esqueça, Laerte: se o seu pai morreu, foi, em primeiro lugar, pelo povo. Ele jamaistrairiaopovo.
Mas pouco importava ao povo, afinal, se seu pai haviamorrido por ele... Lá vão todos pelasestradas,levandoconsigooúnicobemquevaleapenadefender:aprópriavida.Cansadodetudoaquilo,maisdesanimadoquenunca,resolveuvoltar.Ziguezagueouentreasbarracase,sebaixouacabeça,não foipormedodeser reconhecido,masporcomeçara sedarcontadasconsequênciasdoconflito.Atéaquelemomento,seráquetinharealmenteentendido?Parouderepenteeergueuacabeça.Aalgunspassosdaliestavaumamoçaagachadaentreduastendas,tirandoamãotrêmuladeumasacolaabertaaseuspés.
–Não,eu...eu...–gaguejouela.–Nãoéoqueestápensando.Estasacolaeuachei,eunão...Seu vestido estava empoeirado, o cabelo preso às pressas na nuca, e, apesar de seu aspecto
lamentável,deixouLaerteboquiaberto.–Laerte...–sussurrouela.–Laerte?Évocêmesmo?Voltando a si, ele olhou rapidamente ao redor para ver se ninguém os observava e quase se
lançouemcimaela.Mas,emvezdeabraçá-la,levouapalmadamãoasuabocaparaabafarsuaspalavras.
–Rã–dissedepressa.–MeunomeagoraéRã,nãoémaisLaerte.AquitodosmeconhecemporRã.Entendeu?Ninguémpodesaber.
Elatentavafalarportrásdamão,massóemitiasonsincompreensíveis.Seusolhosarregaladosseenchiamdelágrimas,nãodetristeza,masdealegria.
– Entendeu, Esyld? Se você disser quem eu sou, se ouvirem você falarmeu nome, eumorro,entende?
Fezumapausa.Osolhosdamoçasorriam.Elaassentiu.Devagar,eletirouamão,sentindoosfinos lábios se afastarem com um beijo suave. Olhavam um para o outro sem dizer nada,embaladospelosacolejodascarroçasaliperto.
–Évocêmesmo?–sussurrouela.Seus dedos roçaram os dele. Nunca tinham estado tão próximos, tanto que até pensou em
beijá-laafinal,provarseuslábioseseentregarporinteiro.Masapreocupaçãofoimaisfortequeodesejo.
–Achamosquetinhamorrido...Procuramosporvocêdiasedias...–Oqueestáfazendoaqui?–perguntouelesecamente.Nãoacreditavanumapalavrasequer.Meurnauoteriaencontrado,conheciabemospântanos.
E não tinha transformado o nome Laerte de Uster num estandarte em torno do qual todos se
uniam?Não, o capitãoMeurnau tinhamesmo se aproveitadodo sumiçodeLaertepara torná-lomaisforte,maioremaisagregadordoqueogarotojamaisseria.
–EstoufugindodasSalinas–respondeuela,surpresacomseutom.–Porquê?Forted’Aednãofoilibertado?Emborafelizporreencontrá-la,nãosuportavaaideiadevê-laali.Seacontecessealgumacoisa
comela...–Meupaiserendeu–confessouela.–Masnãoéoquevocêestápensando.Elevaiseinfiltrar
nopalácio.Meurnautemumplano,temmuitosaliadospara...Não conseguiu continuar. Laerte se afastava, contornando uma tenda para se aproximar da
estrada.Aprocissãoseestendia:umasucessãodecarroçascapengascomrodasinstáveispuxadasporcavalosextenuados,osfreioscobertosdebabagrossa...
–Vouficaremsegurançalá–afirmouela,cientedapreocupaçãodele.Aproximou-sedeLaerteepôsdelicadamenteamãoemseuombro.–EutambémvouparaÉmeris–contouele,comumardistante.–Oquê?SeulugaréemForted’Aed,Lae...–Eleinclinouacabeçaeelasecorrigiu.–Rã...–Meulugaréondeestáoimperador–resmungouele.–Meurnauestásevirandomuitobem
semmimnestaguerra.–Rã–murmurouela–,ninguémesperaissodevocê,temsó14anos.Elevirou-separaelacomumacareta.Claro,paraela,elenãopassavadeummenino.Claro...–Elematouomeupai.–Eusei–concordouela,passandoamãoemseurostoparaacalmá-lo.–Euvoumatá-lo.Amãodelasedeteve,enquantoseusolhosofitavamcomummomentâneobrilhodepavor.– É, eu vou matar o imperador – confirmou ele. – Para eles, eu agora sou Rã. Ajudei um
cavaleiroqueestavaperdidonasSalinas.Vireiseuaprendiz.Voumetornaromaiordoscavaleirosevingarminhafamília.Meurnaunãoprocuroupormim.
–Oquê?Comopode...?–gaguejouEsyld.– Eu sei disso – jurou ele, imperioso. – Escutei essa conversa sobre um tal Laerte que estaria
liderandoarevolta. Jáquenãome temmais sobsuaasa,eleestáusandomeunomeparasedarprestígio. Ele que conduza esta guerra como bem entender. Quanto a mim, não vou descansarenquantonãomatarReyes.
–Vocênãoestápensando...?Pensavanissotodososdias.Todososdias,haviamaisdeumano.Sustentouoolhardelacom
convicção,querendomostrarquenãotinhadúvidas.–Estoudeterminado,Esyld–avisou.–Eufizumascoisas,eu...MADOG!–Nãopossomaisrecuar...Sentia-sedigno,estavatranquilo,comonuncapensarasercapaz.–Seéoqueosdeusesquerem...–disseEsyld,baixandoosolhos.–Osdeusesnão têmnadaaver com isso– rebateuele.–Quemdecideminhavida soueu.–
Compreendia, afinal, que estava apto a assumir as rédeas de seu destino. Nas Salinas, desdesempre, e até no início da revolta, ele muitas vezes fizera o que lhe mandavam, sem nuncaconseguirimporsuavontade.
–Quemdecideomeufuturosoueu,Esyld.Lívida, ela se obrigou a sorrir. Percebia quão determinado ele estava e que não aceitaria
nenhumaobjeção.–Bravohomenzinho–elogiou,eenfiouamãonodecotesujo.–Mas,detantosefazerpassar
poroutrapessoa,nãovaiacabarvirandoquemnãoé?Tirou do decote uma estatueta de madeira que ele reconheceu de imediato. Era um cavalo
toscamenteentalhado.Elahesitouuminstanteantesdelheentregar.–Ei,vocêaí!–chamouumavozrouca.Dooutroladodaestrada,umsoldadoqueacompanhavaocortejovinhaemsuadireção.Sem
esperarmais,Esyldpegousuamãoenelacolocouapequenaescultura.–Volteparaacoluna!–ordenouosoldadoantesdeagarrá-la.–Paravocênãoseesquecerdequemé.–Solte-a!–bradouLaerte.Masemseguidaumavozforteoparalisou:–Rã!Atrásdele,apoiadonocorrimãodaescadadatorre,Dun-Cadalofitavacomferocidade.Antes
depensarnumaexplicaçãoparaseucomportamento,sentiuamãodeEsyldapertandoasua.–Não se esqueça, Rã – disse ela enquanto o soldado a arrastava para a estrada. –Nunca se
esqueçadequemvocêé.Nunca.Com um gesto brusco, livrou-se do soldado. Foi tudo tão rápido que ele não teve tempo de
reagir. Os lábios da moça se uniram aos seus numa suave carícia, seus dedos finos e maciosafagandoseurosto.Eraúmido,surpreendenteúmido.Tãobom,tãoinebriante...Elaestava juntodele,comose sempre tivesseestadoali, fosse láoque fizesse,aondequerqueela fosse, seu lugareraali,juntodele...
–Venhaaaaaaqui!–esbravejouoguarda,apartando-adogaroto.Eleficoualiatordoado,aindasentindoogostoaçucaradodobeijonoslábios.–Paravocênãomeesquecer–murmurouela.Enquanto o soldado a arrastava pela multidão, seu murmúrio foi virando um grito, uma
verdadegritadaaomundo,rasgandoseucoração:–Euamovocê.Semprevouamar.Sempre.Nãoseesqueçademim.Nãoseesqueçadenós.Rã!
Nuncaseesqueçadequemvocêé...Rã!Nuncaseesqueça!Euamovocê!Quando ele enfimpensou em correr atrás dela, o soldado já a tinha içado para a traseira de
uma carroça. O cortejo passou por baixo da grade, o sacolejo das rodas deixou uma nuvem depoeiraparatrás.
–Rã!Volteaqui!Decidido,Dun-Cadaldesciaa escadaparaalcançá-lo.Laerteapertavaocavalinhodemadeira
namão.Acolunaestavaterminandodeentrareossoldadossepreparavamparabaixaragrade,
quecaiudepoisqueaúltimacarroçapassouchacoalhando.
4
Orostodoinimigo
–Elesnãopassamdecrianças.
Souresponsávelporeles.PoresteImpério.
Assimestáescritodesdeanoitedostempos.
–Elesotransformaramnumfantoche.
Elejazia,amorfoedesnorteado,numacasatristenocentrodeMassália.Rogantoacompanharaaoandardecimasemdizerumapalavraeofizeraentrarnoquarto.Deitadonumacamasobreumcobertorpuído, retomavao fiode suavidanaesperançadeencontraralgumsentido.Osúltimosacontecimentosconfirmavamsua impressãode ter fracassadoemtudo,aopassoqueosgeneraisquetinhamservidoaseuladoseencontravamnopoder.NãotinhaconseguidosalvaroImpérioenãoaproveitarasuadecadênciaparaocuparumcargohonroso.Sealgumideal lherestara,viraraumfardo.
Quandoaportadoquartoseabriu,sequeresboçouumgesto, fitandooteto,ospensamentosdistantes.Pairouumcheirodelavandanocômodoesóentãoelevirouacabeçaparao lado.Poruminstante, teveaesperançadeverMildrel juntoàporta.Estranhamente,nãofoiumadecepçãoreconhecerafrágilsilhuetadeViola.
–Émeioprecário,eusei,maspelomenosémelhorqueaprisão–disseela,nãoseatrevendoaentrar.
Como ele não reagiu, ela avançou.Usando seu vestido verde simples, parecia ansiosa.Mãosunidas às costas,mantinhaa capa sobreosombros, comoporpudor.Aochegarpertoda cama,curvou-seligeiramenteparaentraremseucampodevisãoeinclinouacabeça.
–Cansado?Resmungando,elevoltouacontemplaroteto.–Sim,seioqueestápensando.Tambémsintoamesmacoisa.–Elesedeteveequaseseergueu
quandoelacontinuou:–Tambémmesintotraída.–Percebeuqueelapuxavaumacadeiraparase
sentar.–No início,quandoosenhor falavaemRã,euestavaa léguasde imaginarquese tratavadele – explicou. – Nem ele tinha me avisado que a pessoa que eu tinha que encontrar era umfamosogeneraldoImpério.
Intrigado, ele se apoiou nos cotovelos para se levantar, sem nem olhar para ela. Pareciadistante.
–Oquefoiqueeledisse?–perguntoucomumavozabafada.Um sorriso se desenhou nos lábios deViola. Ele esperava respostas e,mesmo que não fosse
capazde lhedar, talvezpudesseajudaraclarearumpoucosuas ideias.Assimcomoele, sentia-semeioatropeladapelosacontecimentos.
–Eraparaeuacharumsoldado,umtaldeDun,quecontavaaquemquisesseouvirquetinhafugidodeÉmerislevandoaespada.Eraparaeuconvencê-loanoslevaratéEraed...
Eleenfimsedignouaolharparaela.–Estávendo?–disseamoça,inclinando-se.–Eunãomenti.Apenasnãofaleitudo.Enisso...–
Elaergueuosolhos,pensativa.–...nissoimaginoquesouigualaele...–Antesqueeletornasseasedeitar,elaafirmou:–Estranho,nãoé?
Aovê-loescorregaraspernasparaforadacamaparasesentar,soubequeconseguirachamarsua atenção. Com o passar dos dias, passara a sentir certa afeição pelo velho general.Compreendera o que o tinha derrotado. Imaginava-o grosseiro, arrogante e autoritário nos seustemposdeesplendor.Eagoraeraapenasumaespadaquebrada.EledesejaradaromundoaumgarotodasSalinascujaperdaodestruíraenquantooImpériopeloqualteriadadoavidaruía.
–Oqueéestranho?–resmungouele.–Tertantamágoadelemasnãodeixardeamá-lo–disseela,baixandooolhar.Ogeneralafitou,reparandoemseusúbitoconstrangimentoquandopercebeuoduplosentido
desuaspalavras.–Vocêeele...?–Não,issonão–respondeueladepressa.–Euoconheçomuitopouco,naverdade...enemsei
aocertoseelesabequeeuexisto...Ela enrubesceu. Não, é claro que não estavam juntos, mas ela agora não tinha mais como
negarquesentiaalgumacoisaporRã...Laerte...Elefaziaoquebemqueria,eDun-Cadalnãotinhamais nada a ver com isso. Só o que desejava era sair daquele quarto, esquecer o que tinha visto,beberaténãopodermais.
Entãoporquenãose levantava,passavapelaporta,desciaaescada,nocauteavaonâagaqueestava na sala e desaparecia na boemia de Massália? Por que ficava ali? Ele tinha perdido Rã.EstavadescobrindoLaertedeUster.Semteramenorideiadoqueaconteceranomeio-tempoequedecertodariaumsentidoparatudoaquilo.Nocaosdeseuspensamentos,Violaeraaúnicacoisainalteradaetranquilizadora.
–Oquefazaqui?–perguntou,perturbado.–Vocêpelomenoséhistoriadora?–Sim.–Elaaquiesceudevagar.–SoumesmohistoriadoradoGrão-Colégio,masestudarcusta
caro,sabe,egarotascomoeu,filhasdegentesimples,precisamrecorrerapadrinhos.OmeuéumconselheirochamadoPage.Umhomembom,íntegro,masdequemsou,decertaforma,devedora.
–Page?Querdizerqueeletambémsedeubem–ruminouogeneralentredentes.Mais um. Mais um dos que haviam se beneficiado com os favores do imperador, tinham
buscado sua companhia para, no fim das contas, abandoná-lo como se nunca tivesse tidoimportância.OduquedePageerafamosoporsuasfestasorgiásticas,seucomportamentoatrevidoeos desagradáveis boatos que corriama seu respeito.UmdepravadoqueDun-Cadal desprezavadesdeostemposdanobreza.Umbichonafruta,cujafomeoimperadornãosouberaconter...
–Selhedevetantoassim...–Foielequemmemandouaqui–declarouViola,meneandoacabeçaoutravez.Um fraco. Sim, um fraco que andava sempre bajulando.Não dava para entender. Então era
assim,nabasedabajulação,queeletinhasalvadoapeleeobtidoumcargodeconselheiro?Etodososoutros,tinhamabertomãodaprópriadignidadeparapermaneceremnopoder?Seráqueaindaexistiaumpingodehonranestemundo?Suacabeçarodopiava.
– Por que aqui? – exaltou-se, com um nó no estômago. – Por causa de Eraed?Mas por quematarosconselheiros?Oquevocêsestãoquerendo?
Sua garganta estava seca. Com muita dificuldade proferiu a última pergunta, talvez a maisimportanteparaele:
–Porqueelenuncamecontou?Lágrimas se acumulavam sob suas pálpebras, prestes a submergi-lo. Maxilares cerrados,
tentavadesesperadamentecontê-las,masalgumasescorrerame,comelas,opesardenãosermaisa rocha que fora um dia. Ao sentir as mãos suaves da moça sobre as suas, teve a sensação dedespencarnumaquedasemfim,semaesperançadeteralgoemquesesegurar.
–Nãosei–respondeuelacalmamente.–Talvezsejaparalhedaressarespostaqueeleveioaoseuencontro...
Elenãoacreditounissonemporumsegundo.Umapartedasuavidatinhaseconstruídosobreumamentira.Amaraessemenino.Porquetinhasereveladosenãofaziapartedoplano?Inclinoua cabeça e contemplou as mãos de Viola, que acariciava com os polegares sua pele lembrandocourovelho.
– Foi Azdeki quemmandou enforcar o pai dele. É por causa de Azdeki que ele está aqui? –indagouderepente,reassumindoocontroledesuasemoções.
Fitava-acomumolharferoz,aindaturvadodelágrimas.Elaoencarousemresponder.–Azdeki,Négus, esseshomensque serviamao Império,quecondenaramOratiodeUster...É
esseoelo,nãoé?–prosseguiuDun-Cadal.–Nãofoià toaqueRã...–Comagargantaapertada,eleinspiroufundo.–...queeleadotouaaparênciadeLogrid,mas...
OlhavaparaViolaafimdemantersualinhaderaciocínio,esperandoqueocaosdasperguntasnão tomasse conta de sua mente outra vez. Tentava juntar cada fato, cada frase, cada detalhegravado em sua memória num todo coerente. A presença de Rogant na frente da taberna,impedindo que ele entrasse na viela, a briga provocada por um nâaga para distrair os guardasantes do assassinato de Enain-Cassart, o perfume de lavanda de Viola, que lembrava o de suaamante.
–Não.Nãoé sóumaquestãodevingança– corrigiu-seDun-Cadal.–Nãoé só por causade
Azdeki...Vocêsqueriamaespada.Eladesviouoolhar,pensativa.Entãofalou.
–Nãoésóumaquestãodevingança,capitão–disseumavozfraca.–Éumaquestãodefé.Asuafé...
–Eusouumconselheiro–retrucouAzdekiemtomcortante.Deu um passo em direção às grades e, altivo, a mão empunhando a espada, examinou o
prisioneirode alto abaixo.Tinha trocado sua togade conselheiroporum trajemaismilitar, queincluíabotaspretascompridaseumalevesobrevestedecouro.Naescuridãodacela,ovelhocomuma simples túnica encardida permanecia sentado, pés descalços no chão de terra úmida. Seuscabelos, que outrora lembravam longos fios de seda, brancos e puros, eram um emaranhadocobertodelamacomospoucosfiosquelherestavam.
–Nãoseesqueçadoqueeufiz–continuouAzdeki,ameaçador.–Nempenseemesquecer.–Comopoderia?–Ovelhoriutristemente.–Vocêseaproveitoudaconfiançaquehaviaentre
nósparadestruirminhadinastia.Podeatésaborearoseusucesso,masparamimnuncavaipassardeumcapitão.
–Conselheiro!–berrouAzdeki,agarrandoasgrades.Lívido,tentadoaarrombaracela,araivadesfiguravaseurosto.Balançandoacabeça,soltouas
gradese,inspirandoprofundamente,passouamãopelacabeleiragrisalha.–Euseiquevocêestámetidonessahistória.Nãoseicomo,masseiqueéresponsávelportudo
isso – afirmou Azdeki, meio ofegante. – Caso contrário, me diga: por que ele estaria com aaparênciadeLogrid?Anvelin...
–...EvgueniReyes...–disseDun-Cadal,incrédulo.–EleomantémprisioneironocalabouçodoPalatio–confirmouViola.Dun-Cadalpassounervosamenteamãonorosto,seuolharfitandoonada.ObispodeÉmeris,tiodoúltimoimperador.Ohomemqueumdiaoajudaraedepoisotraíra.
Como todos os outros. Sentia um misto de raiva e satisfação ao imaginar o ancião numa celamiserável,sujeitoamilsuplícios.TantoqueatéseesqueceudecontinuarinterrogandoViola.
–Dun-Cadal?Com a mão na frente da boca e expressão aflita, virou os olhos para ela, que continuava
surpreendentementecalma.Maisumavez,sentiu-seapaziguadoporisso.Elacontinuavaolhandoparaelecomdoçura.
–Porquê?–murmuroueleafinal.–Paradaroexemplo?–sugeriuelacomumsorrisotriste.
Ele se levantou, febril, apoiando-se com asmãos ressecadas na parede úmida do calabouço.Então,compassoshesitantes,foiatéagradequeoseparavadeAzdeki.Quandoconseguiupôrasmãos nas grades imundas, fitou o ex-capitão com um intenso olhar azul e, apesar da exaustão,esboçouumacareta.
–Eleestáaí,Azdeki.Vocêestácommedo.OfantasmadoImpérioquerenegou.Dessa féquedeixouparatrás.Estavaescrito,Azdeki.Vocênãopodefugirdoseudestino.
–Nãotenhomedodefantasmas–respondeucalmamenteoconselheiro,aproximandoorostodagrade.–Nemdassuaspalavras.Você,quenuncarespeitouoLivroSagrado,quetraiuaOrdemdeFangolporinteressesfamiliares.Oqueestáescrito,Anvelin,éatristederrotadeseusobrinhoeoadventodeminhaRepública.Eembrevevocêvaipoderconferirpessoalmente.
–Oqueelesabia,Viola?!–impacientou-seDun-Cadal.Levantou-se de um salto, nervoso, ciente de estar descobrindo ali tudoo quenão conseguira
enxergardurantesuaantigavida.Notempoemqueeraorgulhoso,poderosoeglorioso,estavaaserviçodeumImpérioeterno.
–Oqueéqueobisposabia?Examinou-adealtoabaixo.Violacontinuavasentada,semreagir, fitandoacamavaziaàsua
frente,mãosunidassobreosjoelhos.–OqueOratiodeUsterpossuíanasSalinas–confessoubaixinho.–OmotivodeosAzdekisse
voltarem contra ele. E depois contra o imperador.O que a famíliaUster vinha guardando haviaséculosequeOratioqueria revelaraomundo...–Elaentãoviroudelicadamenteacabeçaemsuadireçãoeseusolhosenfrentaramoolharincrédulodogeneral.–OLivro.
–QueLivro?–indagouDun-Cadalcomumnónagarganta.–O...Livro–repetiuViola,enfatizandoapalavracomumbrevemeneiodecabeça.
–Nãovaiconvencerninguém,Azdeki!–gritavaAnvelincomtodaaforça.–NinguémpodeleroLivro!Ninguém!
Ovultodoconselheiroseafastavanocorredor,arrastandoatrásdesiumaimensasombraàluzdastochas,cujocrepitarsobreviveuaosomdeseuspassosnaescadadepedra.
–Ninguém–concluiunumsoluçocontido.Cansado,Anvelindeixou-secairdejoelhosjuntoàgrade.Nãoescutouospassosvindoemsua
direção.Sóasombraqueocobriufezcomqueerguesseosolhoseumsorriso,enfim,iluminouseurostoencovadoderugaseinanição.
–Vocêestavaaí?–alegrou-seAnvelincomvozarranhada.–Sim,vocêestásempreaí...sempre.Comoumalembrança.Nuncameabandona.
A sombra semantinha calada. Examinava-o por trás de umamáscara dourada, inexpressiva,riscadaporumafenda.
– Estava escrito, não é? – Anvelin tremia, sentindo-se entre a alegria e a exaustão. – Estavaprevistopelosdeusesdesde sempre.Casominha linhagemcaísse, vocêvoltariaparanosvingar...sim,voltaria.Nãofoiumerronosjulgarmosdignosdegovernar,não,nãofoi.Rezotododiaparaagradeceraosdeuses,sabe?Tododia.–Seurostosecontraiuderepentederemorso.–Não,eunãoduvidava!NãoduvidavadoLiaberDest, semprefoiassimdesdemuitosséculos.ParaosUsters,oLivro,eparanós,aEspada.Semprefoiassim.–Seusorrisoressurgiu.–Vocêestavaaí?–repetiu,comoseasombraacabassedeaparecer.–Estásempreaí...sempre.Comoumalembrança...
Acapaverdeestalouquandoasombratomouadireçãodaescada.–Nuncameabandona...nunca...–disseAnvelin,soluçando.
Dun-Cadal estava recostadonaparede, oolharperdidonos sulcosdopiso, sem saberdireitoonde estava nem como e por que chegara ali. Já não pensava, não reagia, submerso em umatorrentedesentimentoscontraditórios,dominadosporumaimensatristeza.Eraessaadorsurda,achagaquenãoparavadesangrarelherasgavaocoração.
Para além das manipulações, das traições, uma única coisa, e que coisa, causara a suadecadência.
–OLiaberDest–murmurou.MalreparounoestalardacadeiraquandoViolaselevantoueveioparajuntodele.Ocheirode
lavandaotiroudesuaconfusãoeeleencontrouseuolhar.–Depoisdocasamentodofilho,naNoitedasMáscaras,ÉtienneAzdekivaiapresentaroLivro
Sagradoaosconselheirosconvidados–anunciouelagravemente,medindoaspalavras.–Imagineoqueumhomemnãoécapazdefazerquandotemnasmãosodestinodomundo.Queprestígioissonãovailhedarperanteopovo?
–Oprestígiodeumdeusentreosdeuses...–murmurouDun-Cadal.–E,graçasaAnvelinEvgueniReyes,elesoubeconquistaroapoiodaOrdemdeFangol,Dun-
Cadal – continuou Viola. – O que vai se definir na Noite das Máscaras é o destino de toda aRepública.Danossapolítica,denossascrenças.Éporisso,Dun-Cadal,queestamosaqui.
–Eaespada?–perguntouele.Estavaatordoado,tentandoencontrarseulugarnessahistória.Nãoquesaberomotivodesua
presença ali fosse tranquilizá-lo, mas pelo menos esclarecia o abismo sem fim em que tinha aimpressãodedespencar.
– Já sabemais do que o suficiente – desculpou-seViola comum sorriso pálido. – Laerte nãoaprovariaeuterlhecontadotudoisso.
Afastou-se em seguida em direção à porta. Seu perfume. A fragrância continuava pairandosobreDun-Cadal.OanciãonãosemoveuquandoViolaperguntou,constrangida:
–Osenhorsabeporqueestáaqui?Estava parada junto à porta, hesitante, segurando a maçaneta. A luz do lampião a óleo
pendurado na parede se mesclava com suas sardas, como duas chamas se unindo sobre sedabranca.Seusolhosverdesbrilhavamdeternura.
Dun-Cadalbalançouacabeça,temendoqueeladessearesposta.–Euoconheçopouco,mas,peloquesei,epeloqueosenhormecontoudasuahistória,acho
que... – deixou seu olhar vaguear pelo quarto, buscando as palavras – ... ele precisa do senhor,Dun-Cadal.
Laerte avançava seguro mas calmamente, se escondendo atrás das colunas dos corredoresquandopassavaumatropaempatrulha.Continuou,alerta,semesclandoàescuridão,semperderdevistaovultoaltivodoconselheiroAzdeki.Seguiu-opelosmeandrosdopalácio,desdeagrandesacadainternaqueencimavaosalãodebaileatéaescadariaimponente.
Laerte parou junto ao primeiro degrau e o observou enquanto descia, cada vezmais rápido,parecendo irritado.O conselheiro apressouopassopelomármore colorido, passandodiante dasgrandes estátuas em honra dos deuses sem nem lhes lançar um olhar. Era um salão imenso,circular, com uma abóbada em que inúmeras cenas pintadas relatavam a história dos Caglieres,desde a primeira cidade até as grandes batalhas contra os reinos dos Majoranos, deusesabençoandoseudestinoatéoadventodoprimeiroimperadoresuabuscapeloLiaberDest,e,porfim, o retrato de uma mulher seminua perfurando com uma lança reluzente o coração de umdesconhecido.Adismasaparecianocentro,olhosfixosnopisodemármoreconsteladodeestrelaspretas, usando um amplo manto vermelho, a barba branca conferindo-lhe a aparência de umsábio. Tinha o braço esquerdo dobrado sobre o tronco e, na mão, um livro. Na mão direitaerguida,Eraed,aureoladadeluzdivina.
Emminhamãoesquerda,oLivro,emminhamãodireita,aEspada.Azdekidesapareceuatrásdas largasportasabertasnofundodosalão.Nãoera lugar,emuito
menos hora, de agir. Laerte sabia disso,mas nempor isso o desejo eramenos sufocante. Podiacorrer para cima dele, transpassá-lo com a espada e acabar logo com isso, semmais adiar, semriscoalgum.
Eameuspés,omundo...Não.Azdekinão eraoúnico culpado.E era graças aoorgulhode seu líderqueoutros, como
BernevinouRhunstag,nãotinhamfugidodeMassáliaapósoassassinatodedoisdeseuspares.Étienne Azdeki jamais desistiria, estando tão perto de alcançar seu objetivo. Era ambicioso
demaise, seatéentãosemostrarapaciente,nãoaguentavaesperarmais.Odiadocasamentodeseufilhoseriatambémodesuaconsagração.
Laerteinspiroufundoeretomouseuspassos,resolvendocontornarAzdeki.Guiava-sepeloquerecordava da planta do Palatio, buscando o caminho mais seguro para cruzar o trajeto doconselheiro. Uma dúvida sinuosa, viciosa, o invadiu. Sabia-se capaz de enfrentar aquela prova,tinhalutadocontraseudragão.Masseráque,quandoestivessefaceafacecomAzdeki,conseguiriacontrolarairaqueodevoravahaviatantosanos?
Parasesentirmaisseguro,repetiaemsuamenteaúltimaetapadoplano,omomentoemque,finalmente,teriaAzdekisóparasi,semnenhumriscodepôrnadaaperder.
Enveredoupelosestreitoscorredoresdoedifício,achandomelhormover-senosespaçosexíguosqueosguardasevitavamaofazeraronda.Daliadoisdias,oPalationãoestariamaistãoacessível.Os mínimos recantos seriam revistados antes da Noite das Máscaras e seus arredores ficariamimpenetráveisdurantetodaafesta.Mesmosentindo-secapazdeenfrentarumexércitointeiroparaalcançar seu objetivo, Laerte sabia que, pormais paradoxal que fosse, só havia umamaneira deprepararsuaentrada.
Portanto, saiu correndo, torcendo para chegar a tempo de cortar o caminho de Azdeki.Escondeu-senumaalcovaescuraeesperoupacientemente,recostadonaparede,naextremidadedeum estreito corredor que dava num amplo salão com várias portas e janelas. Ouviu passoscadenciadosseaproximando.
Esitallae...Tinhapensadomuitoemcomoiriaabordá-lo,noquediriaparainiciaraconversa.Suavontade
era gritar-lhe a sua ira, lembrar-lhe quem ele era, fazê-lo reviver seu último encontro.Mas seriapuroorgulho,alémdeprejudicialàmissão.
Azdeki se deteve, sem susto nem surpresa, o rosto seco tão imóvel quanto a máscara queacabavadeavistarapoucospassosdeondeestava.Comosbraçoscruzados,noescurodaalcovanocorredor,Laertedeuumpassoàfrente.
–Esitalleen...Esitallarae–continuou,adotandoumavozgrave.–Éissomesmo?OlemadeMassália:“Oquefoste,oqueés,oqueserás.”
Nasparedesrevestidasdevermelho,aescuridão lutavacoma luzdos lampiõesaóleo.Eraali,próximoaos grandes salõesprivadosquedavamparaos jardins externos, que eledaria início aoúltimoato.
–Quemévocê?–interpelouAzdekiemtomfirme.Eleempunharaaespada,ocotoveloerguendoabordadacapa.Laerteseperguntousepoderia
resistir à ideia de um duelo. Bateria em retirada como previsto ou, devorado pelo ardor da luta,cederiaàtentaçãodeacabarcomele?Podiaenfrentá-lodeigualparaigual.Dessavezelepodia.
– O que você era? Um homemmais valente, mais inteligente do que queria aparentar, paramelhormanipulartodomundo.Nãoé?Eachaquesaiuilesodessepapelqueatribuiuasimesmo?
–Essamáscara.–Azdekifezumacaretaantesdealçaravoz:–Pretendemeassustarcomesseartifício?
– A zombaria, o desprezo dos outros generais – prosseguiu Laerte como se não tivesseescutado.–Éissoquevocêera.Umtormento,nofimdascontas.
–Tireessamáscara–ordenouAzdeki.
–AssimcomovocêtirouasuadiantedeReyes?–Tireamáscara!–irritou-seAzdeki.Puxouaespadanumgestopreciso.Laertedeuumpassoparatrás.–Umhomem acuado, tão próximo do êxito quanto da derrota, é isso que você é.Uma vida
inteirareduzidaàimportânciadeumsómomento...Dandoumpassoàfrente,Azdekibrandiuaespadaemsuadireção.Nãoestavamaistremendo.
Jamais teriamedo dele.Mas pelomenos ia temer sua presença nomomento de seu apogeu. Aguardaseriaredobrada.Pensandoemseproteger,sóiriaseenfraquecer.
–Oquevocêvaiser,Azdeki?Umhomemmorto...Sempre recuando, Laerte penetrou num vasto vestíbulo cercado de amplas janelas. Atrás das
vidraças se desenhavam as curvas umbrosas de um jardim e, ornando as alamedas de cascalho,altastochasseconsumiamnanoiteclara.
– Eu conheço você – afirmouAzdeki. – Conheço.Quem quer que seja, se não conseguiumedeteratéagora,nãoéhojequevaiconseguir.Nemamanhã.
–Querapostar?–Enain-Cassart,Négus...erammelhoresquevocê.–Masnãoobastanteparadefenderemaprópriavida–rebateucalmamenteLaerte.–Pelomenosdefenderamaquiloemqueacreditavam.Emostrandoacara...–NaNoitedasMáscaras,Azdeki–prometeuLaerte,segurandoopunhodaespada.–NaNoite
dasMáscaras,vamosdefinitivamentetirarasnossas.Nummovimentobrusco,virou-separaasjanelaseseatirouparafora.–Guardas!–chamouAzdeki,avozmalcobrindooestardalhaçodovidro.Laerte já tinha atravessado a janela, braços dobrados sobre amáscara, arrematando a queda
comumacambalhotanarelvafresca.–Emguarda!NalâminadaespadadeLaertecorreuoreflexodastochaseotilintardasarmadurassepôsa
ressoar.Erguendoacabeça,viu-ospassarpelavidraçaquebradadiantedoolharfuriosodeAzdeki.Tevetempodesobraparapegaraespadaeprepararaprimeiraestocada.
Quebrouaslançasemdoisgolpesprecisosantesdeagarrarumsoldadopelagoladoplastrãoecurvá-lo com uma joelhada. Alertado pelo zunido de uma lâmina às suas costas, abaixou-se atempo.Girou e perfurou, na cintura, a armadura de seu inimigo.O homemdeu umpasso paratrás, o rosto contorcido de horror e dor, asmãos cobrindo a ferida aberta. Eram cinco tentandodetê-lo.Logoseriammais.Vultosjáapareciamaolonge,naescuridãodosjardins,ecomeles,umsomdearmaduras.
Precisavafugirnaquelemomento,senãoquisesseperdersuaschancesdecontinuar.Os três outros soldadosprestes a fazer usoda espada voaram feito bonecosdepalha, caindo
pesadamenteaopédoPalatio.Àjanela,Azdekiretesou-se.Estava dado o recado. O homemmascarado era bem mais que um mero assassino. Eles se
encararamporuminstante.QuandoLaerteembainhouaespadadevolta,Azdekiatépensouemcruzarajanela,masmudoudeideia,balançandoacabeça.Ossoldadosgritaram:
–Pare!–Vocêaí!Oprimeiroachegarbrandiualança,certodeatingiroalvo,masLaerterecuouderepente.Com
mão firme,agarrouahaste,puxou-apara si enocauteouoguardacomumacotoveladanacara,sem tirar os olhosdeAzdeki. Inclinou levemente a cabeça.Depois correupara cimados guardasque vinham chegando.Abriu caminho com asmãos, desviando as lanças, golpeando compés epunhose,transpondoapelejadeumsalto,seguiucorrendopelosjardins.
Distanciou-se rapidamente, esgueirando-se por um labirinto de sebes, e subiu na cerca dojardim, de onde se avistava quase toda a cidade. Viu, a seus pés, ummuro reto, a uns bons 10metrosdochão.Dooutroladodarua,ascasasseenfileiravamcomoseteirasdeumcastelo.Estavaprestes a pular no vazio na direção do telhado mais próximo quando pensou melhor. Escutoucascosdecavalosmartelandoaruapavimentada.Umafiladecarruagensapareceu.
Ocortejopassou logoabaixodeonde ele estava.Asvozesdos soldados se aproximavam.Elehesitou.
Ascarruagensostentavamcoresescuraseemseutetohaviabrasõespintadosqueelecustouaidentificar.Imaginouquefossemconvidadoschegandoparaocasamentoeviuaoportunidadededarmaisdestaqueàsuaperformance.
Inspiroufundo.Epulounovazio.Quandocaiupesadamentesobreoteto,maldandoaococheirotempodesevirar,derrubou-o
com um chute no maxilar. Os cavalos relincharam, houve gritos de surpresa e o cortejo parou.Mulheres, eramvozesdemulheres.Ele roloupelo teto e se pôsdepéna calçada, sentindo adordespontar no peito. Estava perdendo o controle do Sopro. Precisava se recompor antes de serdominadoeseucorposeromper.Acalmou-se,arespiraçãopesada.
Seus sentidos continuavammais despertos que o normal, ou seja, ainda dispunha de algumtempoantesqueseextinguissemosefeitosdoSopro.Àdireita,àesquerda,pressentiaoscocheirosapeandoehomensarmadossaindodascarruagens.Bastavaseviraresumirruaafora.
Quando se levantou, sua autoconfiança desfez-se em poeira, seu coração deu um salto, suaspernasnãovergaramporpouco.
Pelajaneladacarruagem,amulherofitava,atônita,segurandoacortina.Asurpresaemnadaalteravao seuencanto.Osanosnão tinhamatenuadoabelezade suapelemorena,e seucabelocacheadotocandoosombrosnusconservavatodoobrilhodoOeste.
Foiapenasuminstante,maspareceuumaeternidade.–Aliestáele!–Nãoodeixemescapar!–Éoassassino!Asvozesnãopassavamdesussurrosenquanto,soboefeitodoSopro,sóressoavamasbatidas
docoraçãodessamulher.Elaestavapetrificada.Eeleentendeuqueelareconheciaemseurostoamáscarado imperador;oqueelavianãoeraele,masuma lembrançarompida,comoodouradopartidopela fenda.Elamantinhaacortinaaberta, imóvel, e seus lábios semoveram ligeiramentesemquenenhumsomsaíssedesuaboca.Elenãosentianada,nada,sóoprópriocoração.Quando
um homem segurou seu braço direito, não fez um gesto sequer. Outro homem o agarrou pelaesquerda.
Esyld...Queriacorrerparaaporta,abri-laderepente,tirá-ladacarruagemelevá-laparalongedali.Tudopodiaacabarali,naquelanoite.
–Peguei!–Nãosemexa!Ela soltou a mão e a cortina voltou para o lugar, ocultando seu rosto. Por um instante, ele
pensou ter sonhado. Seu coração, porém, aindabatia forte, depressa, assustado.Mal reparounosom das armas sendo puxadas das bainhas. Ao seu redor tudo era só névoa e bruma, semdistinção,vultosvindoajudarosdoishomensqueoforçavamaseajoelhar.
Sentiu-sefraquejarevergouaspernas.Bravohomenzinho...–Emfrente!–ordenouumavoz.Os cascos martelaram o pavimento, as rodas, rangendo, se puseram a girar. O coração se
afastou.NoslábiosdeLaerte,osanguedestilouumgostosalgadoeotiroudeseutorpor.Jápodiaenxergarclaramenteascarruagensretomandosuamarcha,oshomenssegurandofacilmenteseusbraços,enquantoumterceiroestendiaamãoparaseucinturãoafimdetirarsuaespada.
Fuja,Laerte...Fuja!Seus ombros se curvaram à frente, desequilibrando os homens que o prendiam, e então
derrubouooutropuxandoosbraçosàfrente.Apressãoafrouxou,conseguiusesoltar.Ocortejoseafastava.Chegavammais soldados, não haviamais tempo, precisava livrar-se dos três homens efugir.
Desferiu um soco de direita e um de esquerda no primeiro, jogou a perna, ao se virar, nomaxilar do segundo e, se ajoelhando, ergueu o terceiro pelo cinturão e pelo colarinho. Atirou-opara cima como se fosse palha. Levantou-se, o coração pesado, a respiração queimando. Saiucorrendopelaruaadjacente,ignorandoasinvectivasdossoldadosquevinhamaoseuencalço.
Correuaté ficar sem fôlego,dobrandoem todas as esquinas,oolhar confuso,buscandoumasaída.Pelasruasdesertas,estrondavamasvozesdossoldadoseogalopedoscavalos.Eraacaça,apresaacuadae,senãoachassedepressaumaviadeescape,ocercoiasefecharsobreele.Foientãoqueosavistou,distantesetênues,clarõesoscilantessobreostelhados.Aoseaproximar,pôdeouvircantoriasetilintardecanecos.
Entrounumavielaequasecaiuao toparcomumapilhadecaixotesà suadireita.Diminuiuopassoaochegaraumarua larga iluminadapor lampiõespenduradosemcordas.Amultidãoeradensa, homens e mulheres cantando, brindando, andando para lá e para cá nas tabernasescancaradas.Tirouamáscaraeaprendeunocinturãoenquantorecobravaofôlego.Aliteriaumachance.Embrenhou-senamultidão.
Aodeixarobairro, ouvia atrásde si somente risos e aplausos.Entrounumaviela e tratoudegalgaromurodeumprédio.Notelhado,desfrutoudeummerecidodescanso.
Esyld...Ficou repetindo seu nome em pensamento, como se para assegurar-se de que não tinha
sonhado.Nãohaviaperguntacapazdeperturbar suarepentinaembriaguez.Sobreosmotivosdesua presença emMassália, o silêncio deAladzio a seu respeito, pensariamais tarde.A ironia dodestino, era isso que definia sua vida. A ironia do destino. Ao contrário de seu mentor, nuncaacreditaraqueodestinoestivesseescritonumlivro,assimcomonuncaaceitaraaideiadequefosseditadopelosdeuses.Maseraobrigadoaadmitirqueoacasotinhamodosbastantecuriososdeseapresentar.
Ficou ali por várias horas, observando os mastros dos navios balançando suavemente naenseadaaolonge.
5
Lembrar-sedequemseé
Qualquerquesejaomotivodosseusatos,
quervocêosjustifiqueounão,
nuncahaverádesculpa
paraceifaravidadequemquerqueseja.
Oimperador.Desde as Salinas, Laerte nunca deixara de pensar nele, imaginando o dia em que, quando
finalmente estivesse pronto, cravaria uma espada em seu peito sem amenor cerimônia. Ceifariasua vida sem dó nem piedade, vingaria os Usters, daria um fim àquela guerra sem verter umalágrima.Jáotinhajulgadoecondenado,faltavaapenasaplicarasentença.
Das Salinas a Garmaret, de Garmaret a Santa Amanna, Serray, Sopira Galzi, ele escutou osconselhosdeDun-Cadal, treinoucomafincosemsecurvaraosofrimento.Suavontade foimaiorquetudo.Passoupor inúmerascidadesealdeias tocadaspelaobscuridadedaguerraatéchegaraÉmeris,resplandecenteemajestosa.Simplesmenteimperial.
Ia completar15 anos e se julgava capazdederrubar todososobstáculosqueo separavamdeseu único objetivo. Qual não foi sua surpresa ao conhecer a capital, suas altas torres brancas, aqueda-d’água borbulhante a seus pés? Qual não foi sua ansiedade ao pensar no malditoimperador? Como será que ele era? Um gigante, decerto, um monstro forte e musculoso, umausteroguerreiro.
Ao longo da viagem, vira a revolta se espalhar e,mais de uma vez, precisaramatar. A cadasangue derramado, a cada suspiro de um moribundo, lembrava-se de Madog. Tanta violência,fúria, estardalhaço... Estava crescendo em meio a um caos cujas razões e cujo sentido nãocompreendia.
Cadavidaceifadaeramaisummotivoparaoimperadorpagarpelosseuscrimes.PorculpadeleLaerte agia assim. Asham Ivani Reyes era o único responsável por toda a sua ira. Com esses
argumentos o jovem ia driblando suas dúvidas, não semdificuldade, já quepersistia dentrodeleuma ideia sombria, queimando feito brasa. Quando a culpa aflorava, ele a rechaçava para osrecônditosde suamente, juntocoma imagemdeMadog.Nos combates, cadavezadquiriamaissegurança e destreza, emboraDun-Cadal parecesse não notar. O general nunca o parabenizavapor seu esforço, nunca encerrava um treino com um incentivo. Limitava-se a repetir sempre osmesmosconselhos,àsvezescaçoandodoseujeito,“brincando”,comodizia.
Laertenão gostavadele, apenaso tolerava.Dun-Cadal eraum inimigo, eraumdaqueles quehaviamatacadoasSalinas, tomadoForted’Aed,matadosua família.Emtodocaso, eraoqueelesemprerepetiaparasimesmo...
Contra todas as expectativas, no dia em que chegaram aos portões de Émeris, tinha seacostumado com ele e chegava inclusive a apreciar sua companhia em certos momentos.Agradava-lhe sua franqueza, embora não fosse o suficiente para desculpá-lo por todo o resto.Ogeneraleragrosso,duro,ignorante.Julgavasabertudoarespeitodetudo,julgavaterpassadoportantacoisaquenãotinhamaisnadaaprovarnemtinhaquesesujeitaramaisninguém,àexceçãodoimperador.Apenassuaopinião importava,apenassuavisãodemundoeracerta,apenassuaspalavras comandavam o silêncio. O Império a que servia era justo e correto, digno de que seperdesse a vida por ele. Pouco importava se, em nome desse Império, homens haviam sidoenforcados,mulheresestupradaseestripadas...amenosquenãosoubessedostormentosinfligidosàfamíliaUster.
Naïs...onomedelaeraNaïs...minhairmã...–Seráquevocêémudo?Nãofalounadaatéagora!–espantou-seointendente.–Euouvifalar
devocê,sabe?SeunomeéRã,nãoé?PeloscorredoresdeÉmeris,umhomemosconduzia.Usavaumalongatúnicabranca,umpano
vermelhonoombro.Dun-Cadaloapresentaracomoointendentedoimperador.–É–respondeuogarotonumsussurro.–Rã...–disseDun-Cadalemtomdecensura.Desoslaio,ogarotonotouoolharseverodeseumentor.–Sim,meusenhor–respondeuemtomseco.– Sua dedicação ao Império tem merecido nossa atenção e nosso respeito, meu rapaz –
acrescentouohomem.–Obrigado,meusenhor.Na extremidade do corredor revestido de espelhos, havia duas grandes portas. Atrás delas
escondia-seoúltimoReyes.Laertesentiuocorposeretesar,prontoparadarumsalto.Nãotinhaodireitodeerrar.Tinhaqueagarraressaoportunidade,semtremer,assimquepassassepelasportas,abertaspelointendente.
Nãohaveriaoutrachance.As dobradiças rangeram, então revelou-se uma ampla sala compiso demármore traçado de
preto.Nãohaveriaoutrachance...Dezenasdecolunas seerguiam, lisasebrilhantes,atéuma finacortinavermelha juntoauma
grandesacadaafagadapelacopadasárvores.Seráqueeraeleaquelasombraatrásdacortinacordesangue?Aquelaformapretasobreaqualosvultosdasservasvertiamáguafumegante?Seráqueeraele,AshamIvaniReyes?Laerteseretesou.Umamãoemsuascostasoempurrou.
–Vá–ordenouDun-Cadal.–Esófalequandoelelhedirigirapalavra.Palavrasnãoseriamnecessárias.Bastariaseugesto,rápido,preciso.Atrásdotecido,asombra
securvou.Ointendentefezsinalparaqueoseguissem.–VossaMajestadeImperial–anuncioucomvozforte–,ogeneralDaermon,queretornoudas
Salinas,eseujovem...protegido.–Trouxeumfilhodelá?–zombouavoz.–Porissodemoroutanto?Aproximaram-sedovultoacomodadoemseubanho.Apenasumasombra,masque sombra!
Imponente, forte, odiosa. Laerte, acompanhando o conselheiro, apressou o passo. O coraçãoestavaacelerado,osuorbrotavanatesta,asmãosficavamúmidasenquantoseaproximavadeseuobjetivo.Seusdedosroçaramabainhadaespada.
Rápido e certeiro.Assim tinha que ser seu golpe. Rápido, certeiro, bemno coração, a lâminarasgandoacortina,cujacorsemesclariaaovermelhodosangueimperial.Entãotudoterminaria,aguerraesuador.Seupai,suamãe,seuirmão...suairmãzinha.Suadoceirmãzinhaseriavingada.Lágrimasbrotaramemseusolhos.Suamãodeslizouatéopunho.Sómaisunsmetros,sómais...
Uma lâmina, zunindo, encostou em sua garganta e parou. Laerte ficou paralisado, ofegante.Umamãoenluvadaseguravaaespada.Ohomemvestiaumcasacoverde-escuroeumacapacomcapuzqueescondiaseurosto.Suavozeragraveetranquila:
–Paz,Daermon.Laerte tentou detectar nessa voz algum sinal de humanidade. Bastava seu agressor fazer um
gesto, umúnico gesto, e estaria tudo acabado.Ogaroto resignou-se a afastar amãoda espada,pormedodeserdecapitadonoato.Pelaprimeiravez,depoisdetantasbatalhas,detervivenciadoomedo,fugidopelasSalinasparaescapardastropasimperiaisedosinsurgentes...pelaprimeiravez,viu-sefaceafacecomamorte.Foiforçadoaadmitir,aocontemplá-la,queaindanãoestavaprontoparaenfrentá-la.Lágrimasbrotaramemseusolhos.
Iriamorrerali?Semhonraramemóriadesuafamília?Semdarumfimàquelaguerra?Semsetornaromaiordoscavaleiros?
–Elenãoéuminimigo!–bradouseumentor.Não sabia quem era aquele homem,mas, pela voz de Dun-Cadal, o próprio general parecia
temê-lo.–MasvemdasSalinas...–observouavoz.– Esteja pronto para me defender, Logrid – interveio a voz, mais forte e autoritária, do
imperador,quepassouasmãosnorostoenquantoumaservavertiaáguaemseubanho.Volutasdefumaçadeslizarampelopano.–Masnãocreioqueummeninofugindodesuaregiãoemguerratenhavindodetãolongeparamataroimperador.
Laerte sentiu uma lágrima roçar sua pálpebra. Tinha falhado. Deixara sua única chanceescapar.
Àbeiradochoro,tremendo,lançouumolharsombrioparaohomemencapuzado.
–Deixe-oempaz,Logrid!–bradouDun-Cadal.O tal Logrid baixou o braço.Mas Laerte ainda sentia no pescoço a frieza de sua lâmina.De
soslaio,viuqueelecontornavaogeneralenquantodevolviaaespadaàbainha.–Éassimquesomosrecebidos–murmurouDun-Cadal.–Sóestouseguindoseusensinamentos...Daermon–respondeuohomememvozbaixa.–Omolequenãorepresentanenhumaameaçaaoimperador,Logrid...Laertecerrouospunhos.Mentira,pensou.Mentira!MaisdoqueameaçaroImpério,eracapaz
de derrubá-lo, destruí-lo, aniquilá-lo. Um dia faria isso. Ele não era ummoleque! Não era ummenino! Não tinha feito aquela viagem toda para nada. Mas, embora estivesse fervendo pordentro,seucorpocontinuavaparalisadodemedo.
–Rã...–disseDun-Cadal.Logrid desaparecera. Diante dele só restava a cortina vermelha atrás da qual se curvava a
sombradoimperador.Viuointendentesussurraralgoaoouvidodeseumentor:–TalvezsejamelhorosenhorconversarcomSuaMajestadeImperialemparticular–sugeriuo
conselheiro.
Efoiassimqueelesaiudasala,semnemolharparaDun-Cadal.Depois que cruzou a porta, chegou a pensar em dar meia-volta e correr em direção ao
imperador.SeráqueotalLogridnãoiaaparecernovamente?Arazãoofreou,outalveztivessesidoomedo.
Seguiu o conselheiro pelas alamedas do palácio, tomado pela dor e pela ira, mas sem seentregaraelas,semfugir.Iriaparalonge,custasseoquecustasse,comaesperançadedeixartodooseusofrimentoemÉmeris.
Quando conheceu a academia militar e o homem o apresentou aos professores, manteve-secalado.Levaram-noatéseuquarto,ondelhepediramqueseafastassedaespadaevestisseocasacocinzento dos alunos. Em seguida, deixou-se conduzir por umdeles até o pátio, nomeio do qualhavia uma fonte. À sombra dos arcos do corredor, apoiou-se num pilar de pedra, fitando seusnovoscolegas,quetrocavamcomentárioseoobservavamcomoseelefosseumanimalraro.Pelaforma como sorriam, Laerte percebeu que zombavamdele.Não reagiu, ainda atordoado demaisparasemostrarorgulhoso.Optaraporselançarnabocadoloboafimdedesferirumgolpefatal,masagoraestavaali,perdido,prestesaserdevorado.
Oqueiaacontecercomele?
–Ei,tatuado!Defenda-se,vamos!–Nossa,comoelefede!
Laerte o observava carregar, com a cabeça baixa, dois pesados caixotes. A despeito dasprovocações, suas pernas grossasmantinham-se firmes. Era corpulento, apesar do ar juvenil.Desuaregatamarromfuradasurgiamdoisbraçosmusculosos,resultantesdesuacondiçãodeescravoforçadoao trabalhopesadoedesuaculturanâaga.Esculpira incessantementeocorpoàcustadeexercícios intensos, dolorosos e cruéis. Espancar o próprio tronco com uma tora de madeira econtinuar de pé era apenas um exemplo entre tantos, segundo lhe contara Dun-Cadal comdesprezo.Osnâagas,desdebempequenos,aprendiamaaguentar.
Persistente, tentava chegar à extremidade de uma ponte suspensa sem derrubar seu fardo,enquantoosestudantesoadmoestavam:
–Quenojodessapele!–Vocêdeviatomarumbanho!–Osnâagassãomesmounsanimais.–Batanele!Agiamcomnojoedesprezo.Umdelesdeuumsoconorostodoescravosemqueestenemao
menostentasseevitá-lo.Nãofalounadaecontinuouavançando,apesardetudo.Ninguémreagia;consideravam aquele comportamentomuito natural. Laerte pegou-se pensando em seumentor.Dun-Cadaljamaispermitiriaqueumfracofossehumilhadodessaforma.
Naqueledia,sentira-seumfracassadopornãoteraprendidocomseumentorosuficienteparaenfrentaro imperador.Noentanto, estava longedeum fracasso.Aquele fora apenasumensaio,uma tentativa que lhe permitira entrar na toca domonstro. Subiramais um degrau, no fim dascontas,nabuscadeseuobjetivo.
Etudooqueconquistara,desdeasSalinasatéÉmeris,nãohaviaevaporado.–Nãotemnadanacabeça–zombouumaluno,apontandoparaonâaga.–Éumsacovazio!–Vamos,dêummurronele!–incentivououtro.Umterceiroalunosepreparavaparamaisumsocoquandoumamãofirmesegurouseupulso.
Mal teve tempode se virar, pois um chute atrás do joelho fez comque seu corpo vergasse, e umpunhoatingiu seumaxilar,diantedoolhar atônitodos colegas.Passadoo espanto, todos foramparacimadeLaerte,que fezopossívelparaseesquivar,batendoemquemestavaaoseualcance.Nãodemorouparasevercercado,caídonochão,todoencolhido,eseratingidoporumasaraivadadesocosepontapés.
Laertesuportouador...suportouahumilhação.Onâagaconseguiraescapar.Ali,sobosgolpesdeumadúziadealunosenfurecidos,eleacabaradeconquistarumaamizadeindestrutível.
Uma amizade que os dias, os meses e os anos seguintes só vieram fortalecer. Laerte não seintegrounaacademia.Nãoeraumalunoigualaosoutros,emuitosdisfarçavamoprópriodespeitocom atitudes de desprezo. Era invejado, odiado...mas temido. Era o único que havia estado emcombate,acompanhando,aindaporcima,umdosmaiorescavaleirosdoImpério.
Aos16 anos, Laerte voltavadasmontanhasdeVershãdetentordeumavitória conquistada aduras penas. Era a terceira vez que retornava a Émeris, mas não tiveramais a oportunidade deenfrentar o imperador. A guerra vinha atenuando seu ímpeto de vingança. Embora não aesquecessetotalmente,outrosdesejosseimpunham.
Esyldencontrararefúgionagrandecidadecomoservadosnobresnopalácioimperial.Nãoviaa hora de revê-la, mas, a caminho das dependências dos servos, deteve-se num grande pátiointerno,nomeiodoqualseerguiaumaestruturaconhecida.
–Morteaostraidores!Morteaostraidores!Morteaostraidores!Asvozes trovejavam feitoumrufode tambores.Alunosda academia, totalmentededicados à
defesadoimperador,cegosporsuaformação,aglomeravam-seaopédocadafalso.Nomeiodeles,soldados, homens e mulheres da corte com seus empregados assistiam à cena com menosentusiasmo. Ouviu-se um ruído seco, seguido por um medonho estalar de ossos. Penduradosnuma corda, três homens de corpo talhado balançavam devagar, os rostos imobilizados numasúbitacontração.Incapazdefitarseusolharesvazios,Laertebaixouosolhos.
– Eles são das Salinas – disse uma voz rouca atrás dele. – Não é preciso provas quando hásuspeitadecomplô.Foramjulgadoscombaseemsimplesboatos.
Laerte olhou rapidamente por sobre o ombro. O rosto amigo bastou para atenuar o pesarcausado pela cena e um sorriso surgiu em seus lábios. Fazia meses que não o via, e erareconfortanteencontrá-lovisivelmenteemforma.Roganttinhamudado.TalcomoLaerte,cresceraeestavamaisaltoqueele.
–Pelovisto,nãovolteiemboahora–observouLaerte.–Pelovisto,andamenforcandoaspessoaserradas.Quemdeviaestarpenduradonumacorda
eravocê,Rã–brincou.–Seissoacontecesse,quemiriadefendê-lo?Onâaganãogostoudabrincadeiraemostrouosdentesbrilhantesnumsorrisoagressivo.–Foisóumavez–resmungou,cruzandoosbraços.Uma sobrevestede couro cobria seu troncomusculoso.Estranhas tatuagens serpenteavamde
seu rosto até os ombros, unindo-se ao pescoço. Usava calças de linho largas e botas de couroenceradas. Uma adaga pendia de seu cinturão. Sim, algumas coisas haviammudado enquantoLaerteestiveraausente.
–Vocêagoraandaarmado–observou,passandopeloamigoparadescerumapequenaescadaque levava ao interior do palácio. Rogant o seguiu pelos estreitos corredores. – Achei que osescravosnãotinhamodireitodesedefender.
–EstouaserviçododuquedePage,comoguarda-costas–explicouRogant.–Digamosqueeleviuemmimtalentosdeguerreiro.
–Eletemsensodehumor.–VindodeumaprendizdecavaleirochamadoRã,issonãomeatinge.A luminosidade foi diminuindo à medida que entravam na ala dos servos. No meio de um
corredor exíguo, Laerte se deteve. Luz e escuridão se enfrentavam, sem que nenhuma levasse amelhor;aluzdastochasoscilavaemsuasfeições.Comumrápidoolharaoredor,osdoisamigosse
certificaramdequenãohaviamsidoseguidos.Então,rindo,seabraçaram.–Quebomvervocê!Evivo!–confessouRogant,dandotapinhasnascostasdogaroto.–Aindatenhocoisasafazerantesdedeixarestavida.–ComofoiemVershã?–Cansativo–respondeuLaerte,afastando-sedonâaga.–Evocê,comovai?–Aindanão fui alforriado,mas estar a serviçodePage équase isso.Aliás, émelhorque isso
fiqueentrenós.Ascoisasandamcomplicadas.Qualquerumquecritiqueoimperadorjáestásendoconsideradosuspeito.
–Eseoseusenhorsouberdosnossosencontros?Laertelogoentendeuaresposta,pelaexpressãodivertidadoamigo.OduquedePagesomava
seunome auma lista que vinha se tornandomais longa a cadadia: a dosnobres que seuniamsecretamente à contestação, oferecendo aos insurgentes apoio logístico.Quanto a ele, Laerte... oquevinhafazendoporsuacausa?Lutarcontraosinsurgentesparamanterasaparênciaseapoiararevoltaeramduascoisasdifíceisdeconciliar.Noentanto,nãoquestionavaasprópriasescolhas.Sóimportavaodiaemqueestariaprontoparaenfrentaroimperador.
Rogant sabia disso. Embora Laerte não lhe tivesse revelado sua verdadeira identidade,concordavacomeleemváriosaspectos.O imperadorporacasonãopermitiaaescravidãode seupovo?Mesmodesconhecendoomotivo,onâagaestavaapardavingançadeLaerteesemantinhaprontoparaajudá-lo.
–Hápessoasmuitomaisperigosasparavocê,Rã.VocêédasSalinas...e,nodiaemquechegouaestacidade,jádefendeuumescravo.Pageaindapoderálheserútil.Estoucuidandodisso.
–Euéqueprotejovocê,nâaga.–Laertesorriu.– Pequeno cavaleiro... – respondeu Rogant, dando de ombros. Inclinou a cabeça com ar
zombeteiro.Ninguém se atrevia amexer comele, agoraque já tinhaumcorpode adulto. –É sóparaalertá-lo–confessouemtommaissombrio.–Nãoqueroquenadaaconteçacomvocê.
Laerteassentiu.–Válogo...–sussurrouoamigo.–Elaestáhádoisdiasesperandoporvocê.Embora Rogant os houvesse visto várias vezes se encontrando às escondidas, Laerte tinha
certezadequeelesabiamuitopoucosobreela.Ogarotonuncalhefalarasobresuavidaanterior.MuitomenossobreEsyld.AúnicacertezadonâagaeraqueelaeramaisimportanteparaLaertedoque o tesouro mais valioso do mundo. Foi com base nessa certeza que o nâaga interrompeu aconversa,poisconheciamuitobemseuamigo.Sim,revê-la...Laerteesperavapor issohavia tantotempo.
Comocoraçãodisparado,percorreuoscorredoresqueaindaoseparavamdesuaamada.Quealegriatinhasido,doisanosantes,avistarsuasilhueta,tãoconhecida,numdosjardinsdo
palácio!ElachegararecentementeaÉmerisparase juntaraopaieconseguiraumempregocomoservanacorte.
Esylderaseunavionomarrevolto,aúnicapessoacapazdemantê-loaprumo.Contara tudoparaela...atéoquepretendiafazerassimquesesentissepronto.
Quandoabriuaportadoquartinhoeseabaixouligeiramenteparapassarpelovão,nãosedeu
aotrabalhodeconferirseporacasohaviasidoseguido.Játinhaesperadodemais.Aliestavaela,asmãosunidas,ocabelodelicadamenteenfeitadocomfitasazuis.A luzpálida,
filtrada pela claraboia num único raio, envolvia seu rosto num véu transparente. Em um canto,haviaumacamaespartanaeumfrágilcriado-mudo.Esylderaaúnica luzquevinhaguiandoseucaminho. Semdizer nada, ele fechou a porta devagar.Ao virar-se para ele, a jovem esboçou umlargosorriso.
–Atéqueenfim–disseela.–Aviagemdemoroumaisqueoprevisto...Aproximou-se dela, hesitante, asmãosmuito úmidas. Esyld estava aindamais bonita que da
últimavezquehaviamsevisto.As feiçõesde seu rosto tinhamficadomais finas.Tornara-seumamulher.Não se atreveu a tocá-la. Foi ela quem se aproximou dele, repousando a cabeça em seuombro.Ocheirodeseucabelocacheadooembriagou.
–Meubravohomenzinho...–disseela.–Vocêdemorou.JáfaztantotempodesdequetivemosnotíciasdasuavitóriaemVershã...
– Vim o mais depressa que pude. Chegamos há duas horas. Aproveitei que Dun-Cadal seretirouparavirvê-la.
–Elenãovaiprocurarporvocê?–preocupou-seEsyld.–Aestahora,estánosbraçosdeMildrel.–Laertesorriu.–Evocê,nosmeus...Seu sorriso foi se extinguindo à medida que mergulhava no olhar dela. Bem devagar, ele
inclinouacabeçaeseuslábiossetocaramnumbeijocontido.–Vocênãopodedemorarmuitoaqui–avisouelanumsussurro.–Precisairàacademiaantes
quealguémdêporsuafalta.Esyld se afastou devagar, desviando o olhar. Laerte, surpreso, permaneceu calado por um
instante.Seráqueelanãoestavafelizporrevê-lo?Passararapidamentedadoçuraparaafrieza.–Elesagoraandamenforcandogente...–acrescentouEsyld.– Eu sou aprendiz de Dun-Cadal. O velho rabugentome protege, não se preocupe – tentou
tranquilizá-la.–Seráquevocênãoentende?– irritou-seela,nervosa.Decostasparaele,ospunhoscerrados
juntoaosquadris, suspirou frustrada.–Euemeupaiconcordamosemnão falar sobrevocêparaMeurnau. Em fingir que você não sobreviveu... mas você devia ter voltado para as Salinas. Estáperigosodemaisporaqui.
Já haviam tocado nesse assunto mais de uma vez, mas Laerte sempre se mostrara incisivo.Vinham-lheàmenteimagensdequandoretornaraaForted’Aed.Aquelagentetodafalandonelecomosefossealguémquenemelemesmoconhecia.SuaconfiançaemMeurnauacabaraali.
– Meurnau me transformou num símbolo. Vivo, eu não tenho serventia para ele. Estáconduzindosuaprópriarevolta–explicouLaerte.–Aqui,pelocontrário,estoumuitomaisseguro.Dun-Cadal,apesardospesares,cuidabemdemim.Eeuaprendimuitocomele.
–Umanoatrás,vocêoodiava–observouEsyldcontendoumarisada.Estavazombandodele,masnãohaviacomonegarqueaopiniãodeLaerte sobre seumentor
mudaraumpouco.Agorachegavaadefendê-lo.
–Aindaodeio. Ele só serve para que eume torne forte o bastante paramatar o imperador –justificou-se.
–Mataro imperador...–Ela suspirou.–Tudobem,váemfrente, jáqueaprendeu tantacoisacomseuamadogeneral.
Encarava-o comumolhar feroz, como se ele tivesse cometidoopiordos crimes.Essamágoa,queLaertenãocompreendia,deixou-ocompletamenteatônito.
–Esyld...–Váemfrente!Façaoqueachacerto!–Aindanãoestoupronto–confessouele.–Logovouestar,prometo, evouacabarcomesta
guerrainjusta,vingarminhafamíliae...–Vocênãocresceu–interrompeuela.Afastou-seefoiparaajanela,erguendodeleveovestidocomasmãos.–Oqueestáacontecendo?–perguntouLaerte,pasmo.Nuncaatinhavistoassim,tãoagressiva.–Oqueestáacontecendo?–repetiuela,numtominsuportavelmentesecoedecidido.–Oque
estáacontecendoéquemeupaicontinuaarriscandoavidaparaperpetuaras ideiasdeOratiodeUster. Que alguns nobres estão apoiando a revolta e a tomada de Émeris. Que, a cada dia quepassa, a forca está mais próxima! Quem pode garantir que um dia não vai ser desmascarado?Nisso,Laerte,vocênãopensa.Sóseinteressapelasuavingança.–Estavacomlágrimasnosolhos.–Nóscorremosriscosenormesaqui!Todososdias,refugiadosdasSalinassãointerrogados.Todoos dias, nobres mais distantes da corte são convocados pelo imperador. Alguns estãodesaparecidos,ecomenta-sequeaculpaédaMãodoImperador.Queesseassassinoéimortal,quesempredefendeuosReyesecontinuaaservi-losmatandoquemtramacontraeles.Mediga,Laerte.Mediga comoéquemeupai vaimorrer.Na forca?Ouassassinado feitoumcão, enquantovocêlutacontraarevolta?EssamesmarevoltaquepõenasalturasonomedeLaertedeUster!Chego,àsvezes,ameperguntardequeladovocêestá...
–Nãoéfácilparamim,Esyld,eu...–tentoudefender-se.Surgiam em sua cabeça imagens das batalhas. Em que momento ele compreendera quem
estava enfrentando? Será que, depois de Madog, admitira por um instante sequer que estavamatandoaquelesquelutavampelosonhodeseupai...osonhodeque,umdia,opovoretomasseasrédeasdoprópriodestino?
–Não, é claro que não é fácil – prosseguiu ela. –No dia em que tentarmatar o imperador,comotantosonha,aMãodeleiráatingi-lotambém.
EssaMão já tinha atravessado seu caminho. Por orgulho, ele nunca lhe havia contado isso.Paraele, eraum fracasso.QueriaqueEsyldcontinuassecomumaboa imagemdele, enãoqueovissecomoumperdedor.
–Talvez, nessa hora, você se lembre de quem realmente é. Por enquanto, quem vejo aqui naminhafrenteéRã,nãoLaerte.
Foi o que bastou para derrubar sua habitual timidez. Sem esperar mais, agarrou-a, puxou-aparajuntodesieconduziusuamãoatéobolsodacalça.
–Eusouosdois,Esyld.Issonãomudanada.Nãoachoqueeuestejameesquecendodeondevimequemeusou.
Obrigou-a a enfiar a mão no seu bolso, retirando-a em seguida. Entre os dedos finos, elasegurava um cavalinho demadeira, cuja simples visão fez com que seus olhos se enchessem delágrimas.
–Eununcaesqueci.Lentamente, ela tornouaguardá-lonobolso, retesando-sequandoele aproximouo rostodo
seu.–Eununcaesquecivocê...–murmurouele.O beijo que trocaram foi tão intenso que ele achou que o mundo ao redor deles havia
desaparecido.Sósentiaocorpodela,coladoaoseu,eseudocecheirofrutado.Esyldfoiaospoucosrelaxando em seus braços e conduziu o que veio depois. Laerte jamais se atreveria a ir adiante,embora fosseseudesejodesdesempre.Sonharatantocomissoque,nasvezesemqueaabraçaradaquelemodo,sentiratamanhaangústiaquenuncaconseguiralhedarmaisqueumbeijo.
Naquele dia ele a descobriu, como se descobre uma flor ao ser colhida, linda e nua.Entrelaçaram-se em sua cama estreita de serva, na penumbra do quarto, onde só se ouvia arespiração dos dois. Seus corações, tão próximos, bateram nomesmo ritmo. Provando sua pele,alisandocomapontadosdedosascurvasdeseucorpo,eleperdeu-senelaatéseentregar.Quantomaiselaoabraçava,maiseleseaninhavajuntodela.Queriaqueaqueleinstantedurasseparatodaaeternidade.
Quandovoltouparaaacademia, sentia-sediferente.Quemeleera,RãouLaerte, jánão tinhaimportância agora que se tornara um homem. Voltou a ver Esyld várias vezes,mas nuncamaispuderamreviverauniãodaqueledia.Atensãovinhaaumentandonopalácioeacadadiacresciaasensaçãodeestaremsendovigiados.Oimperadordesconfiavadetodomundo,especialmentedosrefugiados.
Laerteassistiuaalgumasaulasnaacademiasemqueocorressenenhumincidente.Osalunosoevitavam.Algunsatécomeçavamaolhá-locomose fosseopróprioDun-CadalDaermon.NuncaantesLaertehaviasesentidotãoconfiante.Tinhacertezadesaberquemera,oqueestavafazendoeporquê.
Esyld,porém, estava certa.Naverdade, ele vinha seperdendono calordasbatalhas, adiandoconstantementeseuconfrontocomo imperador,chegandoàsvezesaesquecerqualeraomotivoda revolta.A ânsia pela luta vinha emprimeiro lugar. Sua fúria o cegava a tal ponto que já nãotinhaoutravontadesenãoaplacá-la.Tornara-seumasedeinesgotável,umvícioinsuperávelqueelecontinuavaaalimentar.
Sim,Rãvinhaseperdendonosbraçosdairaedaviolência.Atéomomentoemquefoiconfrontadoconsigomesmo,comodragãocheiodeódioquerugia
em seupeito.Essedragão interior que todohomemprecisaumdia combater. Ele o enfrentou lálonge,nonortedoImpério.
EmKapernevic,ondeconheceuuminventorgenialchamadoAladzio.
6
Dominarodragão
SintaoSopro,sejaoSopro.
Sinta,Rã!Respirecomoavida.
Aíéqueestáamagia.
NesseSoproquevocêexala.
–Levante-se.Chutouacamacomviolênciaeemseguidadeumeia-voltaesaiu.Ovelhonacamaresmungou.
Esperoualgunsminutosqueele se levantasse e entãodesceua escadadapequenacasa.Na sala,confortavelmente sentadanuma largapoltrona,Viola espioupor cimado livroque estava lendo.Surpresa, largou-o no colo ao ver Laerte passar depressa a passos decididos. Instantes depoisapareceuDun-Cadal,oolharaindatomadopelosono.
–Bomdia–cumprimentoucomhesitação.Ogeneral a ignorou, perscrutando a sala com seusolhos inchados.Ao avistarLaerte junto a
umaportaquedavaparaarua,balançouacabeça,suspirando.–Vaiserumdiadaqueles–pensouViolaemvozaltaenquantoDun-Cadalsaía.Nenhumdosdoisfalara.Pairavanoarumatensãoquasepalpável.Violaselevantoudevagare
vislumbrouovultodeLaertepassandoemfrenteaumajanela.Foiatélácompassoshesitantes.Caminhavamnumpequenopátiodecascalhocomvistaparaascasasdispostasemdecliveatéa
cidade.Dalierapossívelver todaMassália,dasaltas torresaosprédios floridos,das trêscatedraisao domo reluzente do palácio. Ao longe, osmastros dos barcos balançando ao sabor damaré.Sobreomarbailavao reflexoprecisodo sol recém-surgido.Dun-Cadal foi até apequenamuretaquecercavaopátioecontemploua fieirade telhasvermelhasdascasas.Mais jovem, teriapuladodeumtelhadoparaoutrocomosefossemdegrausdeumaescada.Talvezaindaconseguisse,nãoé?Deixarissotudoparatrás,voltaràsuavidanastabernas...Masjánãotinhavontadedefugir.Apoucospassosdali,Laerteexaminavaumaespada.
–Oquevocêquer?–resmungouDun-Cadal.Como resposta, viu a lâmina cortar o ar, cravando-se a seus pés. Laerte afastou a capa,
revelando o punho da espada. Seumentor não se atrevia a tocar emEraed,mas talvez aceitasseoutraarma.
–Pegue-a–ordenouLaerteemtomseco.–Querdizerqueéagoraquequeracabarcomigo...–disseDun-Cadal.–Oacertodetodasas
contas...– Quando você me viu, lá no porto, assassinando Enain-Cassart, o que tentou fazer? –
perguntouLaertecomumestranhosorriso.–DepoisdoassassinatodeNégus,quandocorreuatrásdemim,oquetentoufazer,senãomedesafiar?Estoudandoumaoportunidade,aproveite.
– Naquele momento, eu pensei que estava correndo atrás de Logrid – rebateu Dun-Cadalduramente.
– Outro aprendiz seu, não é? Está decepcionado com o resultado de seus ensinamentos? –ironizou o rapaz, afastando os braços. – Depois de todos esses anos, estou aqui na sua frente.Mentiessetempotodo.Airanãotomacontadevocê?Vocêsabe.Vocêsente.SeoImpérioruiu,foimesmograçasamim...àsombradeLaertedeUster...
Dun-Cadalinclinouacabeça,fitandoopunhodaespada.–Ohomemqueconheciterialutadoeidoemboradestacasadeixandoapenascinzasparatrás
– continuou Laerte. – Teria encarado. Já você, fica aí paralisado. Não foi só seu corpo queenvelheceu...suaalmatambém.
Laerte notou que ele estremecia. Cada feição de seu rosto endurecia sem que seu olhardesgrudassedaarmacravadaaseuspés.Dun-Cadalestavacontendoaira.Deesguelha,adivinhoua presença de Viola atrás da vidraça. Talvez ela não estivesse gostando da situação, mas nãopareciadispostaaintervir.
–Penseiquevocêestivessemedeixandoparaofinal...–disseogeneralcomumsorrisotriste.–Masissoseriahonrademais.
–Honraéalgoquevocênuncateve–provocouLaerte.–Ah,vocêeraumgeneralàparte.Umbroncoque,nostemposdanobreza,conseguiuserconvidadoparaosmaioresbanquetes.
–Basta...–murmurouovelho.–Entãonuncapercebeuaquepontoeleviavocêcomoumidiota?Umasimplesarmaemsua
mão?Umgrandeguerreiro,semdúvida,mascomumcérebrodepassarinho.–Parecomisso.–OhomemdoOesteaospésdoimperador.Evocêtinhajuradodefendê-lo–continuouLaerte
calmamente.–Pare!–Você perdeu tudo,Daermon.Omundo a que dedicou sua vida e a pouca glória que tinha.
Ninguém mais respeita você. Nem você mesmo, de tanto que decaiu. Se Rã, o seu Rã, tivessemesmoexistido,nuncaiaquerervocêcomopai,acredite.
Numgestorápido,ovelholevouamãoàespada.Segurouopunho.AnteoolharapavoradodeViola, Laerte imediatamente se lançou sobre ele e fez a primeira investida. Dun-Cadal mal teve
tempo de erguer a lâmina para se defender. Com uma joelhada, tentou rechaçar seu agressor.Laerteseesquivou,girandoeatingindoavirilhadogeneralcomumsocofirme.Asduasespadasseencontraramnovamente.Aslâminasdeslizaramumanaoutra,tinindo.
Atrás da vidraça, Viola empalideceu. Tão logo deu um passo em direção à porta, a mão deRogantpousouemseuombro.
–Espere–aconselhou.Acontragosto,elaretornouà janelaeseconformouemsermeraespectadoradeumcombate
cujodesenlacetemia.–Sóisso?–provocouLaerte.–Estáaindamaismortodoqueeuimaginava.–Nãovaimematartãofácilassim–rebateuDun-Cadal.– É mesmo? Está redescobrindo alguma energia, Pernalta? – zombou ele. – Ainda há um
soldadodentrodevocê?–Euera...um...general!–Quesedeixouenrolarporumsimplesmoleque.Laertesorriu,cientedoefeitoquecausara.Umventoviolentocavouumsulconopátiobemnasuadireção.Paraescapardoturbilhãoedo
cascalhoquevoavaparatodososlados,deuumsaltoparatrásecaiupesadamente,apoiandoumamãonochão.MallevantouacabeçaeviuDun-Cadalvoandoparacimadele.Esquivou-serolandoparao ladoantesderecorreraoSopro.Ocascalhoaçoitouorostodogeneraleporpouconãooderrubou.
–VocêgostavadeRã,nãoé?–Laertevoltouaprovocar.–Maselesempresentiudesprezoporvocê.Riadesuafraquezaenquantovocêdormia.
Dun-Cadal,furioso,apontouaespadaparaorapaz,finasgotasdesangueescorrendoemseurosto.
–Cale-se!Vocêéapenasumamentira!Umaenganação!Estendeu a perna e investiu, mas Laerte desviou dando um passo para o lado e golpeou a
lâminadogeneralcomaespadaantesdederrubá-locomumarasteira.–Azdekifezvocêdebobo.Eutambémfizvocêdebobo.Nãoachaquemereceterminaravida
agonizandonumasarjeta?–perguntou,andandoemvoltadovelhocaídonochão.–Nãomerecequeeumatevocêaqui,seriamuitahonra.
–Oquequerdemim, afinal?–bradouDun-Cadal, levantando-se,desajeitado.–Nãovaimeaniquilar!Nãovaitirardemimaquiloquevivi!
–Aniquiladovocêjáestá.Defato,Dun-Cadal tremia.Nãosóderaiva.Asedeea faltadeálcoolestavamatacandoseus
nervosequeimandoseucoraçãoporinteiro.Laertepercebeuodesesperoemseusolhosquandoovelhoensaioumaisumgolpe.Esquivou-secomfacilidade,contemplandoovelhogeneralcurvado,atestaencharcadadesuorearespiraçãoofegante.
–Tenteoutravez–provocouele,rodopiandoaespada.Dun-Cadalentãoselançousobreelecomfúria,dandoumgolpeatrásdeoutro,masaespada
deLaertesempreaparavaasuacomprecisão.
–Eu lhedei tudo!–berravaovelho.–Tudo!Evocême traiu!Devia termematado!Memateagora!Vamos,memate!
Laertesecurvouderepente,deu-lheumacotoveladanoesternoeoderruboucomumapernaestendida. O velho se estatelou no chão, atordoado. Laerte o observava de cima enquanto elebalançavaacabeça,orostomolhadodesuor.
–Nãovoumatá-lo–anunciouLaertecomumavozsombriaegrave.Quandojovem,muitasvezessonharacomomomentoemqueiriasuperarseumentor.Masali,
quando o tinha à sua mercê, só o que sentia era pena. O homem tinha razão. Tinha lhe dadotudo...inclusivesuadignidade.
– Mas poderia. – Dun-Cadal soluçou. – Você matou um dragão... e eu não passo de umabarata...
–Às vezes as aparências enganam... – Estendeu-lhe amão.Dun-Cadal a encarou, hesitandoem segurá-la. – E se você só tivesse visto o que queria ver? – sugeriu Laerte, com um estranhosorrisoque se apagou em seguida. –E seRã tivesse... tivesse realmente respeitadoohomemquesalvounasSalinas?
Dun-Cadal permaneceu daquele jeito por um instante, com lágrimas nos olhos. Então, numgestorápido,agarrouamãodorapaz.Laerteoajudouasepôrdepé.Emvezdasespadas,foramseusolhosqueseenfrentaram.
–Vocêqueriaqueeuomatasse–concluiuLaerte.Dun-Cadal se afastou, parecendo arrasado. Olhando rapidamente à sua volta, massageou a
nuca.–Estoucomsede...Nãohánenhumajarradevinhoporaqui?–Vocênãoprecisadisso.–Rá, rá! –Ogeneral riu, revirandoosolhos. –Pelomenosmedeixemorrer comoeuquiser!
Vocêmeodeia!Sempremeodiou!–Não.Vocêaindaéogeneralquemeensinoualutar–falouLaertedemododireto,comfrieza.–Essegeneralmorreu... juntocomRã!–exclamouovelho,abocaretorcidaderaiva.–AoRã
euensineitudooquesabia!Honradezeletinha,etambéminteligência,paixão.JamaisteriafeitooquevocêfezemMassália.QuermematarcomomatouEnain-Cassart?ComomatouNégus?Poismate!Cumpraasuavingançaatéofim!Nãofoiparaissoquetirouamáscara?
Laertedeuumpassoemsuadireção,massedeteve.–Eseascoisasnãofossemoqueparecemser?Issoéloucura...–OdragãodeKapernevic...Odragãovermelho...Pernalta,vocênãopodeconfiarnesse...nesse...estúpido!–Eunãomateiodragão.Aladziosóéumpoucodiferente,Rã.Masoplanodelemepareceperspicaz.Dun-Cadalvirou-selentamente.Laertejásefora,elogoosomdeseuspassosnãoeramaisque
umecodistantedentrodacasa.Umplanoperspicaz?
...perspicaz...
– Perspicaz? – disse Rã, apertando o passo para acompanhar seu mentor. – Confiar nessecretino é tudo,menos perspicaz.Négusnãodisse que ele ateou fogono celeiro várias vezes comsuasexperiências?
Dun-Cadalesboçouumsorrisosatisfeitoantesdepararnos limitesda floresta.Atrásdeles,asmarcasdepassosnanevetraçavamumestranhocaminhoatéoscontornosincertosdeKapernevic.Aschaminésdascasasdepedraexalavamumafumaçapesadaecinzentaquesubiaemespiraisatéo céu branco imaculado.A tarde chegava ao fim e já desde o amanhecer os soldados deNégustinhamtratadodeinstalar,àspressas,asarmadilhascontradragõesprojetadasànoiteporAladzio.O fatodeo inventor terumpapelde tantodestaquenoplanodesagradava fortementeogaroto,quenãoconfiavanemumpouconele.Maisqueisso:nãoconseguiasuportá-lo.Aladziotinhaumgrave defeito: falava o tempo todo, sobre qualquer assunto, se extasiava com qualquer coisa, seentusiasmavacomqualquerideia.
Quando Dun-Cadal sugeriu que ajudasse a derrotar as tropas de Stromdag, perdeu aloquacidade.De iníciomuito nervoso, aceitou pôrmãos à obra e concebeu um sistema de redescapazdeapanharosdragões.
– Fique aqui, vou ver com Négus como andam as coisas – ordenou Dun-Cadal, seguindocaminhoentreospinheiros.
Négus andava para lá e para cá ao longo de um comprido barranco onde se preparavamoslanceiros. Dun-Cadal foi ao seu encontro, mesmo sob o olhar feroz de seu aprendiz. A poucospassos dali, Aladzio supervisionava uma equipe de quatro soldados ajoelhados ao redor de umarede.
– Perspicaz... – resmungou Laerte e soltou um longo suspiro. – Estamos indo direto para amorte...
Adistância,osdoisgeneraisconversavamsemprestaratençãonele.QuandoviuAladziovindoemsuadireção, lamentounãoestar comeles.Malderaumpassonaneve, tentando se esquivar,quandosuavozodeteve.
–Rã!–chamouAladzio.–Prazeremvê-lo!Diante dos soldados, Laerte desistiu de fugir. Esperou que o inventor o alcançasse, as faces
vermelhasdefrio,otricórniobemfirmenacabeça.– Ontem não deu tempo de conversarmos, foi uma pena. Deixei você sozinho na taberna,
mas...–Tudobem–interrompeuLaerte.–Équeeutinhaquearrumarminhabagagem–continuouAladziocomosenãotivesseouvido.
–Poisé,euachavaqueiaemborahoje,mas,bem,nãovoumais.Fazeroquê?–Pôsasmãosnosquadris,contemplandoaflorestacomarsonhador.–Fazeroquê?–repetiu.–Éavida.Temhoras
queagenteachaqueconsegue...e temhorasquepercebequenão.Agenteachaquevaiemboraparaumlugare,nofim,odestinonosreservaumasurpresaespantosaque...
Laerteassentiubrevementeedeuinícioàsuatentativadeescapardemansinho.–Medigaumacoisa– interpelou-oAladzio,para seupesar. –Não souobrigado a ficar aqui
duranteabatalha,certo?Querodizer,posso irparaKapernevic?Achoquenãovouserdegrandeajudaporaquie...
Suavoz,derepente,pareceunervosa.Uniuansiosamenteasmãosenluvadas,exalandoacadaexpiraçãoumanuvemleitosa.
–Tudodepende–respondeuLaertecomumsorrisomalicioso.Virou-selentamenteparaele,aneverangendosobseuspés,edesafiouoinventorcomumolharzombeteiro.–Sesuasarmadilhasfuncionarem,oshomensdeStromdagnãovãocruzarnossas linhas.Queperigohaveriaemvocêassistiraocombatedolimiardafloresta?
– Ne-nenhum – gaguejou Aladzio, sem jeito. – Nenhum, claro. É só que, bem, eu sou umcientistaeéclaroque,naciência,sempreháumamargemdeincerteza.É...experimental.
–Estáquerendodizerqueexistealgumaincertezaemrelaçãoàssuasredescontradragão?Vocêastestoudireito?
A cada passo que dava em sua direção,Aladzio recuava. Laerte o pressionava comumolharsevero.
–Nãoestouquerendodizernada–defendeu-seAladzio,semdeixardesorrir.–Fizumcálculorápido de massa, peso e velocidade com base no que sabemos sobre os dragões cinzentos quehabitamosmontesdeKapernevic,mas...sehouverumdragãovermelho...
–Muitocientífico–esbravejouLaerte.–Teriasidomelhorchamarummágico.Aladziobalançouacabeça.–Não,não.Seialgumacoisademagiae,acredite,nãoénadaconclusivo...–Baixouosolhos
quando Laerte postou-se diante dele. – Enfim, pelo menos quando tento fazer algum truque...Calculeitudocertinho,podeacreditar...Eu...soubomnisso.
O inventor parecia tão sem jeito que o garoto achou desnecessário insistir. Afastou-se umpouco e se pôs a observar as redes que os soldados amarravam entre as árvores. Dentro dealgumashoras,umapequenatropaiasimularumataqueaStromdageatrairiaosinsurgentesatéali, junto com os dragões que teriam tirado das tocas. A tática dos ruargues das Salinas tiveraseguidores. Laerte ouviu a neve ranger sob as botas de Aladzio. Mesmo tremendo de frio e demedo,oalquimistapermaneciajuntodele.
–OduquedePagenãodissenadasobreisso–falouentãoesuspirou.–Page?–Éomeumecenas–explicouAladzio.–Enfim,porenquanto.Aliás,éporissoquevocêsestão
aqui. Tenho essa impressão. Há outras pessoas querendo contratar meus serviços. Mas ele memandouaquiparapesquisar.Nãoparaguerrear.–Suavozficouabafadaderepente,enquantoseuolhar seperdianaorlada florestanevada:–Para ser sincero, e comtodoo respeito, aprendizdecavaleiro,nãoentendomuitodestaguerra.
QuandoLaertevoltouacabeçaeoencarou,elesustentouseuolharsempestanejar.Manteve-se
assim,emboradesseparanotarcertotemoremseusolhos.–Verdade–reiterouAladzio.–Eu,pessoalmente,não tenhonadacontraessagente...Elessó
estãolutandopara...Enfim,sóoqueelesquereméserouvidos,nãoé?Querempoderopinarsobreseudestino,enfim,eu...eu...
–Vocêpodiasermortopeloqueacaboudedizer–declarouLaerteemtomsério.Aladziodesviouoolhar,exibindoumsorrisoforçado.– Porque eu dei minha opinião? – indignou-se, sem jeito. – Só estou tentando entender as
coisas...Enfim,querodizer...Laertebalançouacabeçacomardedesprezo.Oinventorjáengatavamaisummonólogo,que
ele achoumelhor ignorar.Não longedali,os soldados terminavamde instalar as redes. Seráqueseriamsuficientesparadeterosdragões?OgarotonãoentendiaporqueumhomemcomoDun-Cadalcometiaoerrodealicerçarseuplanonumabasetãofrágil.Aessasperguntassemesclavamansiedade e animação. Para ele, cada batalha era uma oportunidade de esquecer, de se achargrandee fortequandodominava seus inimigos,quemquerque fossem.Cadaenfrentamentoeraumaoportunidadedeconfirmar,tercertezadeestarsetornandoquemesperavaser,para,umdia,conseguir vingar os seus. Pouco importava lutar contra pessoas que afirmavam defender ideiasrepublicanas.Pouco importavao sonhode seupai,queestavamorto.MesmoporqueMeurnaueseuscompanheiroshaviamseapropriadodessesonhosemnenhumpudor.
Issotudolheimportavamuitopouco.Ali,emKapernevic,nabrancuraofuscantedaneve,nãosetratavaapenasdodesejodeOratiodeUster.Tratava-sedoseusonho.Stromdageseushomensnãoeramnadapertodosdragões.
Até onde sabia, essas criaturas furiosas eram tão estúpidas quanto os ruargues. Mas havia,entreelas,umaraçasuperioremtodososaspectos:naforça,notamanho,nainteligência.Omíticodragão vermelho. Dun-Cadal minimizara o perigo, mas nem por isso deixara de alertá-lo. Essacontradiçãoera,porsisó,umaprova.
O dragão vermelho equivalia a todos os desafios do mundo e Laerte rezava para conseguirenfrentá-lo.
Aoanoitecer,os soldadosseposicionaramnaorlada floresta,escondidosatrásdeummontede neve. Encostados nas árvores, homens munidos de machados se preparavam para cortar ascordasqueprendiamas redesnochão.Asestrelas, aospoucos, começaramabrilhar, lembrandofogueiras distantes na escuridão glacial.Dun-Cadal ordenouque acendessem as tochas em voltadas armadilhas e ficou de pé sobre o monte, a apenas poucos metros dos pinheiros. A tensãocrescia.Aoladodogaroto,umsoldadotremia;nãoeraapenasdefrio.
AtropaqueiaservirdeiscapartirahaviamaisdeumahoraquandoNégus,comaespadaemriste,postou-sejuntoaumtronco.Ouviram-seacessosdetosse...eosomdoventobalançandoosramos.
–Ahn... por favor... por favor– chamouumavoz, enquantoumamãodavauns tapinhasnoombrodeLaerte.
Orapazolhoupara tráse reconheceusemsurpresaovultoencurvadodeAladzio.Nanoite jáescura,eleestavapálidocomoalua.Amassavanervosamenteseuchapéuentreasmãos.
–Precisomesmoficaraqui,meusenhor?Nãovouserdegrandeserventia.Imaginoqueeu...–Cale-se!–ordenouLaerte,autoritário.Fezsinalparaelerecuar.– Bem, suponho que deva entender isso como: “É claro, vá para algum lugar aquecido em
Kapernevic” – comentouAladzio em tom brincalhão. – “Seu projeto das armadilhas ficoumuitobom,merececomerumfrangonafrentedalareira.”
Laertenãoconseguiuconterosorriso.Aladziooirritavatantoqueeraatémelhorachargraça.Oinventorseafastou,seguidopelorangerdeseuspassosnotapetedeneve.Houveentãoalgunsmurmúrios. Mas não tão altos a ponto de Laerte não ouvir as batidas de seu coração. Levouinstintivamente amão à espada.O frio amortecia seu corpo inteiro.Não via a hora de semexerparasesentirvivo,sairdesuaposição,agachadonumbarranco,imóvel.
AluvadecourodeDun-Cadaldeslizounabainhadaespada...Teriapressentidoalgumacoisa?–Elesestãochegando–anunciou.–Nãoestououvindonada–murmurouLaerte.–Confienele–interveioNégus,aindaencostadonaárvoreapoucospassosdali.Piscoupara ele antesde erguer a lâminada espadadiantedo rosto,oquenãodeixouLaerte
maistranquilo.SegundoDun-Cadal,Stromdagiamandarosdragõesnafrente.Comascriaturasocupadas em perseguir os invasores, aproveitaria para tentar um ataque a Kapernevic, certo deestaremvantagemnumérica.Chegariamcomacertezadeseremsuperioresemforçaepoder,aluzdas tochas irritariaosdragões, edobarrancosurgiriamos soldadosdo Império.Asurpresa seriatantaqueaproveitariamuminstantedehesitaçãodosinsurgentesparadesorganizarsuasfileiras.Eosmonstros?Aí éque a contribuiçãodeAladziopenderia abalança a seu favor.A investidadosdragõesiriadeencontroàsredes...Desdequefossemresistentesobastanteparaconterseupeso...
–Mantenhamsuasposições–ordenouDun-Cadal,ajoelhando-senoaltodoaclive.Laerte observou o estranho gesto de seumentor. Fitando umponto ao longe, o general pôs
umadasmãossobreapenugemnevada.Paraalémdomurodetochas,haviasóescuridão.Aos poucos, um som singular começou a ressoar. Cada vezmais forte, lembrava pedaços de
metal se chocando. São as armaduras, pensou Laerte desembainhando lentamente a espada. Oestrondoqueseseguiuconfirmouseupensamento.Osbatedoresestavamvoltandoe,atrásdeles,vinhaoexércitodeStromdag.
–Elesestãochegando!–berrouumavoz.Eentãooutra:–Alerta!Laerte se levantou de repente,mas a voz tranquila de seumentor o fez ajoelhar-se de novo.
Aindanãoerahoradeselançarnabatalha.Aindanão...maslogo.–Lanceiros!–bradouDun-Cadal.
Estesobedeceram,erguendoas lanças.Aalgunsmetrosdali,ossoldadossepreparavamparacortar a machadadas as cordas que prendiam as redes. Os ramos dos pinheiros balançaramdevagar, prenunciando a tempestade. Montes de neve caíram do alto das copas num suavesussurro. Não era tão brutal como os estalos das armaduras somados à pesada respiração dossoldadoscorrendonafloresta.
Estalos...sonsdetrovão...umrugido.–Chegaram!Um homem emergiu da escuridão, logo seguido por outros dez. Atrás deles, os pinheiros se
curvavam.Laerte por fim levantou-se, o coração prestes a explodir, tão sem fôlego como os que
terminavam sua louca carreira pulando o barranco. Surgindo do pinheiral, uma enormemandíbulacomdentes reluzentes seabriu,prontaaengolirquemaparecessepela frente.Emsuagargantavibravammontesdecarneemvoltadeumaúvuladotamanhodobraçodeumhomem,eumrugidoterrívelressoou.
Ao redor, seus irmãos respondiam com fúria, um deles ostentando um pescoço com a peledilacerada. Das manchas cor de creme de suas escamas às listras de suas asas descarnadas, asdiferençasentreeleseramvisíveisnossimplesdetalhes.Masvinhamembriagadosporumamesmafúria, umamesma ira, as poderosasmandíbulas abertasna esperançade abocanharumhomempelocaminho.
–Agora!–exclamouDun-Cadal,pondo-sedepé.Laerteficouquieto,observandoapavoradoascriaturasfuriosassurgiremporentreospinheiros.
Os machados golpearam as cordas várias vezes, até que as redes se ergueram de repente,envolvendo em suas malhas as mandíbulas vorazes dos dragões. Um por um, caíram naarmadilha.
Dragõestãoescurosqueaescuridãoosenvolvia.Aluzdastochasbastavapararevelar,entreospinheiros,cadadetalhedesuasasasseabrindo.
Urrando, os lanceiros atacaram.Lançaram-se sobreosmonstros enfurecidos, cravando as armasemseuspescoços.Anteoolharatônitodeseuaprendiz,Dun-Cadalpulousobreoprimeirodragãoe, com um golpe rápido e certeiro, furou o olho arregalado antes de cair pesadamente na neve.Quandovirou-separaele,Laerte jánãooolhavamais.Sóosdragões lhe interessavam,enormes,asbocarraspresasnamalhadasredes,umababagrossaescorrendopelosdentes.Desuas largasventas se erguiam, dançando, nuvens de fumaça branca. Em seus corpos, inchaços e escamasúmidas cobriamaté as asas descarnadas quebatiam com forçana tentativade escapar.As redesaguentavamfirme...
–Rã!Ascriaturas,furiosas,seagitavam,arranhandoosolocomasfortespatas.–Rã!Pelosdeuses,saiadaí!Espantou-secomavozdeDun-Cadal,masmenosdoquecomamarédeguerreirosquesurgiu
aos berros de entre os pinheiros. Mercenários, soldados, camponeses. Todos movidos por umamesma ira, brandindo, à luz das tochas, espadas, flagelos de armas, machados de guerra ou
simplespicaretas.Contornaramosdragõesderrubados, subindoemsuascarcaçasaindaquentes,prontosadaravidaporsuacausa.Jamaisdesistiriam.
Passando pelo monte de neve, os soldados imperiais atacaram sem cessar. Foi um embateviolento,umestardalhaçoigualaodotrovão.Osgritossemisturavamcomochoquedasarmas,eo somagonizantedosmoribundos,comos rugidosdosdragõesaprisionados.Emmeioaocaos,Laerteaparava,esquivava,saltavaegolpeavaparatodolado,semprecerteiro.Suarespiraçãoestavaacelerada, o coração, disparado. Tudo ficava cada vez mais rápido, violento... sublime. Ali, nocentrodabatalha,tornava-seforte,poderoso,intocável.
Comaespadarebateuumgolpeàsuadireitaeentãodeurapidamenteumpassoparatrásdemodo a se desviar de outro. Com a mão livre, esmurrou a cabeça de um mercenário antes derodopiaraespadaparaafastarosadversários.Ouviuumavozforte,tãofamiliar:
–Rã!Veja!Umúnicohomemresolveracontinuarcomoduelo,postando-sebravamenteàsuafrentecom
umsabreemcadamão.Quandoinvestiu,Laertesóprecisouseajoelhar,levantandoaespadaparaqueelefosseatingidosemnemdarumgrito.Então,numgestoligeiro,puxoua lâminadocorpodohomeme virou-separaDun-Cadal.Ogeneral combatia firmenomeiode vários insurgentes,aparandoosgolpescomforça,esperandoumabrechaparadaraestocada.
–Odragão!–gritouDun-Cadal.Indicoucomacabeçaumvultodistantesacudidoporsobressaltos.Eramaiordoqueosoutros
e se debatia com força entre asmalhas da rede. Sua cabeça, cercada por um colarinho vermelhocom reflexos sanguíneos, estava totalmente presa na armadilha. Tentava arrebentar as cordas adentadas.Martelava o solo com as patas pesadas sem nem reparar nos pobres soldados que seesfalfavamparacontê-lo.Aslançassequebravamemsuapele,aforçadeseusrugidoscurvavaospinheirosmaispróximos.
Aredeestavacedendo.Laerteapressou-se,abrindocaminhoacotoveladasemmeioaocaosdoscombates.Quasecaiu
na neve várias vezes, aparando os golpes com a espada, pulando por cima dos cadáveres aindaquentes. Não parou quando se viu barrado por uma fileira de camponeses. Segurando firme aespada, cortou o ar com a lâmina, rodopiando, rolando, batendo. Seus golpes foram rápidos,certeiros...fatais.Eogritododragãosefezmaisforte.
Laerte chegavaperto, cadavezmaisperto,percebendoosmúsculosperfeitos retesados sobasescamasdeumvermelhointenso.Doischifressobressaíamsobreosolhosamarelosamendoadosriscadosdeumpretoprofundo.Abocarravorazatacavaarede.Rugiumaisumavez.Laerteparouderepente,semfôlego.
Das ventas da criatura se erguiam, com graça, espirais de fumaça. Era enorme, pavorosa,iluminada pelas chamas oscilantes das tochas. Laerte ficou imóvel, os braços pendentes,hipnotizadopelomovimentocadenciadodopescoçododragão,quetentavaselivrardaarmadilha.Quando, numa dentada, rasgou a rede de alto a baixo, Laerte recuou um passo, ansioso eassustado.Soldados se jogaramsobreomonstro, lançasemriste.Enfim livre,odragãomoveuopescoço em um arco e baixou a bocarra até o chão. Suas mandíbulas se abriram por inteiro,
revelandopregasde carne contraídas emvoltadaúvula escura. Sua língua arrematada comdoisganchosonduloudeleveenquantoeleinspiravafundo.
Como vencer ummonstro daqueles? Afundando a espada em seu olho até tocar o cérebro?Entre os chifres, entre os olhos? Ou atrás do largo colarinho vermelho? Laerte buscavadesesperadamenteumabrechana carapaça, umplanode ataquequepusesse todas as chances aseu favor. Ali, naquela noite, teria quemostrar seu valor, como num último desafio antes de setornarumcavaleirocapazdederrubaroImpério.
–Rã!–gritouumavozaolongenoexatomomentoemqueelerecomeçouacorrer.Desúbito,odragãovermelhoesticouopescoçoedesuamandíbulaabertajorrouumatorrente
defogo.Anevederreteu,soltandoumvapordenso,pinheirosesoldadosarderamemchamaseosoproquentefoitãofortequejogouogarotoparatráscomosefosseumsimplesbonecodepano.Deitadonanevefria,atordoado,avistouumvultogigantescoalçandovoo.Umrugidoecoouacimadospinheirosemchamas,quasecobrindoavozdeDun-Cadal.
–Tardedemais,Rã!Fuja!–gritouogeneral.Ouviu-seumclamor selvagem, seguidoporumamultidãode guerreirosque se via vulnerável
agoraqueo grandedragão estava livre.Noalto, sobre a floresta, comas asas abertas, a criaturacuspiafogosobreossoldadosdoImpério.Secontinuasseavoarassim,abatalhaestariaperdida.Não, issonãopodia acontecer. Laerte a seguiu comoolhar e correu, semqueninguém tentassedetê-lo.
Passando em meio às árvores, os ramos dos pinheiros açoitando seu rosto, afastou-se doestrondodaguerrasemperderdevistaodragãoacimadele.Acriaturafuriosadescrevialánoaltoumgrandearco.Dentrodeinstantes,iaarremetercontraaflorestaelançarmaisumjorrodefogo.Laerte tinha toda a intenção de impedi-la, embora ainda não soubesse como. Correndodesabalado,tropeçounumaraizedespencounumdeclive.Anevefreousuaquedamasnãoevitoua dolorosa aterrissagem numa camada de cascalho. A batalha era apenas um eco, e os gritos,lembrançasdistantesassombrandoafloresta.Levantou-se,ofegante,ocoraçãobatendoforteeastêmporas doloridas. Estava empé no leito de um rio dessecado que ziguezagueava frente a umavasta gruta que mal era iluminada pela lua. Entre os cascalhos, fios de neve serpenteavam atéformasovais,daalturadeumhomem,situadasnaentradadacaverna.Umurroroucoatraiusuaatençãoe,aoerguerosolhos,porpoucoLaertenãocaiu.Odragãovermelhodavavoltasnocéu,inclinandoopescoçoparanãotirarosolhosdele.Tinhamudadodedireção,esquecendoocaosdabatalha. Interessava-se apenas pelo garoto. Por quê? As formas ovais... será que eram umaninhada?
Quandoodragãofechouasasasearremeteuemsuadireção,aLaertesórestousaircorrendo.Comospulmõesemchamas,viuovultoenvolvê-lo.Nomomentoemquefoitocadopelohálito
pútridodacriatura,jogou-senochãocobrindoacabeçacomasmãos.Ouviuoestalardosdentes,um vento forte devido ao voo do dragão. Pensou que ia morrer quando um jato de chamasesguichounasuafrente;quasechorouquandoacauda,aobater,levantousuacapa.
Tinhapassado...Odragãovoarabemacimadele.Nãoteriaumasegundachance.Levantou-sedeumsalto.Acriaturasubiaemdireçãoà luabatendoasasasdescarnadas.Entãose inclinoude
lado,girandoacimadafloresta.Orapazlevouamãoàespada.–Miséria...–esbravejou.A bainha estava vazia. Correra com a arma na mão e a tinha soltado ao cair. Procurando,
desesperado,obrilhoda lâmina,retomouseuspassos.Napenumbra,haviaapenasoazul-escurodaneveeopretumedoscascalhos.
Seucoraçãobatia tãodepressa, tão forte,que tevemedodequeparassede repente. Seupeitoestavatãoapertadoquesentiafaltadear.
O dragão, ao longe, concluía seu movimento no céu. Ele não tinha arma nenhuma paraenfrentá-lo.
Não.Ainda tinha o Sopro, selvagem, indomado, que poderia aniquilá-lo caso não conseguisse
dominá-lo.OSoproquetornavatudopossível.Arespiraçãodomundo....omundointeiroécomooarindoevindo.OSopro...SintaoSopro,sejaoSopro.Firmando-se,fincouospésnocascalho,osjoelhosflexionados.Inspirouprofundamente,olhos
fechados,econcentrou-se.Aurgênciadasituaçãojánãopermitiaterdúvidas.Tinhaquefazerisso.Eracapaz.Eraomaiorcavaleirodomundo.Eraoquetinhaprometidoasimesmo.Eeraverdade,eleeramesmocapaz.
Dospésàcabeça,seucorpointeirodespertou,desdeasúltimasferidasaindasentidasatéadorcausada por sua queda, dos pulmões em chamas ao coração palpitante. Por um breve instante,julgounãoconseguir;umalágrimaescorreudocantodeseuolho.
A dor se esvaneceu quando surgiu a imagem dos cascalhos cercados de neve. Percebia suaforça,suadureza,seucoraçãoinabalável.Asraízesdospinheiros,osramosvergandosobaneve,acascagrossadostroncos...eoventoligeiroafagandoosramos.Foiporfimsubmersoporumfluxopoderoso, uma força indescritível que percorreu seu corpo e o envolveu. Sentia a vida na carnedisformeda criatura, escorrendo sobas escamas até as veiasdas asasdescarnadas.Elenãoviaodragão, mas se tornava o dragão, sentindo cada batida de seu coração, cada movimento, cadarespiração. A criatura ia voar para cima dele e... Não, ela não era estúpida ou belicosa. Estavaapenascommedo.
Odragãofechouasasas.Eleotinhasobcontrole.Agora.Laerteabriuosolhos,estendendoosbraçoscomoseparaagarrarumacordainvisível.Cerrou
ospunhose,numgestobrusco,trouxe-osdolorosamenteparasi.Acriaturaurrou,cativa.Abriuasasas,movendofreneticamenteopescoçocomosealgoaprendesse.
Ogarotonãoconteveumgritodedor.Eratãoinsuportável,ardente,voraz.Suavidapareciaseesvair enquanto lutava para puxar o dragão para o solo. Seus pés escorregaram no cascalho. Acriatura se debatia. Inspirou mais uma vez, a garganta seca. Não era apenas seu própriosofrimento...
Haviatambémosofrimentododragão.Umfiodesanguesaiudesuanarinadireita.Tudoemvoltapareciagirar.Oluarsetornaratão
ofuscantequantoaluzdosol.Exausto,sentiuquenãoestavaaguentando.Nãoconseguiamaiscontê-lo,nãodavamais.Seu
coraçãobatiatãodepressaquemalpodiarespirar.Desistir?Não...nãoagora,nãoali.Recuoudevagar,fezumnovoesforço,levandoospunhosfechadosàfrente,cerrandoosdentes.
Tornouaflexionarosjoelhos.Seucoraçãoparouuminstante.Tudoficouescuro.Edepoisosilêncio...algunssegundos...umminutotalvez.No exato instante em que ressurgiu a imagem do riacho seco, ele não pensou, baixou os
punhos para o chão num gesto abrupto. O dragão foi tragado, puxado para o chão, rugindo.Espatifou-se emmeio a uma nuvem de neve e rocha. Laerte deixou-se cair, esgotado. Seu corpointeiroparecia ter sidopisoteadoporumcavalo furioso.Olhossemicerrados,deitadonocascalhofrio, observava o dragão ferido. Seus olhos amarelos estavam perdendo o brilho, as pesadaspálpebrasaospoucoscobriamasíris.Asventascuspiamespiraisdefumaçacinzenta.Pareciamuitocansado.Lentamente,ogarotosepôsdepé.
–Éisso...?–murmurou.–Estáprotegendooseuninho,nãoé?...Àentradadagruta, viaosovos tão claramentequantoemplena luzdodia.Era esseomedo
que a criatura sentira. Por isso abandonara a batalha para segui-lo quando ele descera omorro.EragraçasaessemedoqueStromdagofizeraatacaroImpério, invadirseuterritório.Mancando,Laerte se aproximoudodragão. Emnenhummomento omonstro semoveu.Aceitava a própriaderrota.
–Estavaprotegendosuafamília...Laertepôsamãoenluvadaentreasventas fumeganteseadeslizou lentamenteatéumponto
abaixodoolho amarelo riscadodepreto.Odragãoparecia observá-lo com tristeza.Comopodiamatá-lo?Quedireitotinhadeliquidá-lo?
De soslaio, avistou um monte de ossos. Entre eles, um chifre de um branco leitoso, tãoimponentequantoosqueencimavamacabeçadomonstro.
Lentamente,odragãofechouosolhos.Quantotornouaabri-los,Laertetinhaidoembora.
7
Esyld
Quemfazbatermeucoração,
quemosangraouaperta
eotemnapalmadamão?
Apósamortedopai,tinhaseesbaldadoemorgias,oquealgunsviamcomoumamanifestaçãode tristeza,eoutros,comoaalegriadeestar finalmente livredascensuraspaternas.Omundinhodacortesereuniaemsuasvastasdependênciasafimdeesquecerarevoltacomgrandesgoladasdevinho, fornicar sem cerimônia, com qualquer um, em qualquer lugar. Títulos de nobreza poucoimportavamquandoseestavabêbado.
Durante o dia, o duque de Page era tido como amais amoral das criaturas. À noite, valia apena bajulá-lo para que abrisse as portas de seus aposentos. Era aquele cuja promiscuidadeninguémapreciava,masdequemtodosesperavamumconvite,umasenhaparaaesbórnia.Eraohomemdasnoitadasmaisdoidasnacapital,ofesteiro,oquegozavaavida.
Aquela era uma de suas festas privadas, nas quais semovia com graça, um casaco de couropretodeombrosbufantesabertosobreumacamisabrancaimaculada.Umamáscarabordadacomrendas cobria seu rosto, mas um bom observador podia reconhecer seus olhos castanhosvagueandocomcuriosidadeentreumcasaleoutro.Aosrisossesomavamosgritosdeprazerdosconvidados.Aosestalidosdoscanecosbrindando,osussurrodovinhovertido.
Num cômodo vizinho, Laerte os ouvia se divertirem sem reservas. A imagem de Kapernevicaindaestavamuitovívidaemsuamemória,oquesóaumentavaodesprezoquesentiaporeles.Tersido secretamente convocado por Page, naquele momento, era algo inexplicável para ele, masRoganthaviainsistido.Apoiadojuntoaumapequenaporta,osbraçoscruzadossobreocoletedecouro,onâagaofitavasempestanejar.Sobresuacoxa,pendiaabainhadeumaadaga.Levavatãoasérioseucargodeguarda-costasquenãosepermitiaexpressarqualquersimpatiaporLaerte.Ouseráque,poralgumoutromotivo,seviaobrigadoaumaausteridadedefachada?
Cansadodosgritospróximos,Laertesentou-senosofávermelhodasaleta.DepoisdevoltardoNorte, mal conseguira se recolher a seus aposentos e dormir cerca de cinco horas até Rogant ochamar.
–Paranós,osdragõessãoosantepassados–disseonâagaderepente,comvozrouca.Semencará-lo,Laertebalançoua cabeça.Então era isso.Conhecia, é claro, a culturanâaga e
suascrenças,epodiaavaliaroqueseuatosignificavaparaoamigo.–Vocêachaqueeuomatei–disse.– É o boato que corre.Apesar do que diz seumentor, são poucos os que acreditamque você
estejametidonisso.Mas,paramim,seexistealguémcapazdederrubarumdragãovermelho,essealguémévocê–admitiuRogant,aindaemtomdecensura.
Embora suaspalavrasnãopretendessemserumelogio,Laerte sentiu-se lisonjeadoe esboçouumdébilsorriso.Inclinou-separatrás,osbraçosabertosnoespaldardosofá.
–Kapernevicnãofoimaisatacadadepoisquesaímosdelá.–Umdragãosóatacaquandosesenteameaçado.Eleestavasedefendendo–rebateuRogant.
–Stromdagseaproveitoudisso.–Eusei–admitiuLaerte.–Nãoprecisavamatá-lo.–Tambémseidisso.–Inclinouacabeçadeladoeolhouparaonâaga.–Nãosepreocupecom
seusáurio.Aindavaipodervenerá-lopormaisalgunsanos.Rogant ficou calado, imóvel. Se sentiu alguma satisfação, tomou o maior cuidado para não
demonstrá-la.Dooutroladodaparede,houveumaexplosãoderisos;aportapareceuestremecer.Ouviram-se
umamúsicaeaplausoscobrindoospoucosarquejosaindaaudíveis.SePagepensavaemseduzi-locompromessasdeprazeresdelirantes,estavamuitoenganado.
Laertenuncaovira,demodoquesefiavanaopiniãodeseumentor.OqueDun-Cadalderaaentendersobreonovoduquenãoeranadaenaltecedor.
– O que você fez? – perguntou Rogant, sem que sua fisionomia expressasse qualquercuriosidade.
Foram interrompidos por uma voz que se aproximava, alguém vindo de trás de duas amplascortinasvermelhas.
–Eujávolto!Rá,rá,nãosepreocupem!Voltojá,meusamores.Cadapalavra suaparecia tropeçar, articuladapor lábiospesadosde embriaguez.Laerteolhou
paraascortinas,mas,comonadamaisaconteceu,respondeu:– Eu não omatei. Não tive coragem... acho – confessou. – Eu o dominei, Rogant. Consegui
dominá-lo.AgoraqueStromdagnãoestámaisnoseuterritório,oninhonãoestámaisemperigo,nãoé?
Rogantpestanejou,entãomeneouacabeçacomumlevesorrisonoslábios.–Dominarumdragãosignificaentrarnaidadeadulta–declarouumavozaindaabaladapelo
álcool.Laertesobressaltou-se.Atrásdele,passandoentreascortinasdeveludo,umhomemdecercade
20anosavançavatitubeando.Tiroudesajeitadamenteamáscaraquecobriaorosto.Usandoaltaspolainas sobre as calças demontaria, sua aparência distinguia-se da dos nobres de Émeris, queeram,nãoraro,maisvulgaresqueelegantes.Selhedessemfarraposparavestir,eleosusariacomclasse.Comoúnicosinalostensivode luxo,umanelcomumbrasãodouradoenfeitavaseudedo.Seucabelocortadorentebrilhavacomumóleoperfumado.Laertelevantou-seimediatamente,masnãosedispôsa fazerumareverência.Semsentir-seofendido,onobre foiatéumamesinhaondehaviaumagarrafadelicoreduastaçasdecristal.Seuspassosjáestavammaisfirmes.
–Na literaturado tempodosCaglieres–começoucomvozarrastada, largandoamáscaraaoladodastaças–,algunsfilósofoscomparavamodragãoànossafúriainterior,afúriaquedespertaquandoomundoadquireumrealsignificado.
Jánão tinhamais traçosdeumbêbadoquandoencheuasduas taças eofereceuumadelas aLaerte.Prosseguiu,recuperandoaospoucosumadicçãoperfeita:
–Quandocrianças,nãopercebemosnada,sónossubmetemosouvivemosprotegidosatéqueomundoserevelecomtodasassuasinjustiças.Éentãoqueodragãotomacontadenós.Masaíéque está: em algummomento temos que enfrentá-lo, para que não nos escravize. Para não nostornamosprisioneirosdenossaira,tentamos...–Laertehesitouuminstanteantesdepegarataçaqueelelheoferecia.Pageergueuasuaàalturadorosto.–...dominarodragão–murmurou,antesdemolharoslábioscomolicor.
Rogant, em seu canto, observava aquela cena em silêncio. Não esboçou qualquer reaçãoquandoLaerteointerrogoucomoolhar.
–Porfavor,sente-se–convidouoduquecomumgesto.Seuconvidadonãopestanejou,nãosemexeu,limitando-seafitá-locomumolharferoz.Page
acomodou-seconfortavelmentenumapoltronapróximaà lareiradepedrae,cruzandoaspernas,descansouataçanoencosto.
–Sente-se,Rã–insistiu.Laerte, porém, não lhe deu atenção. Aquele jogo não o agradava e, embora atiçasse sua
curiosidade,temiaserenganado.Pagepassaradaembriaguezparaadesenvoltura,comoumatorqueabandonaseupapeldepoisdeestarcertodetermostradotodooseutalento.
–Oqueissosignifica?–perguntouLaerteaRogant,erguendooqueixo.–Calma,Rã...–limitou-searesponderseuamigo.– Eu tirei minha máscara – interveio Page, apontando para a máscara que deixara sobre a
mesa. – Foi para deixá-lo mais tranquilo. A franqueza é fundamental na nossa conversa. Umaconversa absolutamente informal,demodoque,maisumavez,peço-lheque... – estendeuamãoabertanadireçãodosofávermelho–...seacomode...edialoguemos.
Rogant permanecia austero, o duque, atencioso, e Laerte, hesitante. Olhou para o sofá atrásdele,esperoualgunssegundossemsaberoquefazer.
–Dialoguemossobreoquê?–Sobrenós–respondeuPage,sustentandoseuolhar.Laertesentou-sedevagar,disfarçandoacuriosidadecomumarpoucoafável.–Atéondesei,ecomtodoorespeito,meusenhor,nãotemosnadaemcomum.
Oduqueassentiucomumbrevemeneiodecabeça,mergulhandooolharnataçacheia.Ouviu-seofortegritodeprazerdeumamulher,queseextinguiuemseguidasobumasalvadepalmas.
–Podeser–admitiuPage.–Ouquemsabeestejamos,osdois,perdidosnummundoquenãonosquer.Eadotemosumaposeparanosadequarmos.
OsdedosdeLaerte se retesaram instintivamente sobre as coxas.A ideiade serdesmascaradonuncalhepassarapelacabeça,obcecadoqueestavacomafinalidadedeseuplano.Tentavaconterseumedo e, para esconder o que sentia, inclinou a cabeça para a frente. Se Page notou algumacoisa,nãofezqualquercomentário.
–Possoimaginarcomoédifícilumapessoanãosesentirculpadaenquantolutacontraaquelesque um dia foram sua gente – continuou o duque, girando a haste da taça entre o polegar e oindicador.
–EstariaquestionandoaminhafidelidadeaoImpério?–inquiriuLaerteemtomgrave.Pageesperouunsinstantesantesderesponderemtommonocórdio:–Nãomaisdoqueaminhaprópria.Examinaram um ao outro sem nada acrescentar.Na sala ao lado, violinos se lançaramnum
ritornelopontuadoporrisosepalmas.Pageolhouparaaportafechada.– Não mais do que eles. Eles que transam, bebem, vestem seus mais belos trajes enquanto
esperam a derrocada. Mas preferem usar uma máscara, por medo de serem reconhecidos eacusados dos piores vícios do mundo. O que importa? Eu é que sou o pervertido, o depravado.Semprefoiassimevaicontinuarsendo.Éoquemeupaisempredizia.Eoseu?Chegouaconhecê-lonasSalinas?
–Meusmaissincerospêsames–desconversouLaertesecamente.Pagefezmençãodetomarumgoleepôsnovamenteataçasobreobraçodapoltrona.–Dizissopormeracortesia.Seotivesseconhecido,nãofalariaemsinceridade.Meupaieraum
porco. Um porco inteligente, cheio de malícia e talento político, mas ainda assim um porco.Enfim... –Balançou a cabeça esboçandoum sorriso. –Não estamos aquipara falardoque foi, esimdoque vai ser –disse, comumar subitamente jovial. –Ouvi dizer queo generalDun-CadalDaermonteminsistidoparaquepresteseujuramentoembreve.
Laertenãopestanejou.Mas sentiu suagarganta ficar secade repente.Não tiravaosolhosdePage,tentandodetectaremsuaatitudeumindíciodetrapaça.
–Euseidemuitacoisa.Informações,nasminhasfestas,rolamcomooálcool–explicouPage,adiantando-seaqualquerpergunta.–Parabéns,embreve seráumcavaleiro.Comoháboatosdequeosinsurgentesestãoseaproximandodacidadeimperial,estaránalinhadefrente.Suaorigemdeixarádesermotivodesuspeita.
–“Suspeita”?–sibilouLaerteentredentes.–O cerco vem se fechando em tornodos conspiradores.Especialmenteosda sua região, que
SuaMajestadeImperialsedignouaacolheremnossabelacidade.–EuestouaserviçodeAshamIvaniReyes–defendeu-seLaertefriamente.Suasmãosestavam
úmidas, seu corpo continuava rígido, seu coração batia incrivelmente rápido. – Eu combato arevolta.
–Peloquesei,ocondedasSalinaseramuitoamado.Laertemediusuarespostaantesdesuavozestalarfeitoumchicote:–Eraumtraidor.A imagem do alçapão se abrindo sob os pés de seu pai foi como uma pancada na cabeça.
Manteve-aerguida,fitandoPageintensamente.Custasseoquecustasse,nãoiasetrair.–EusirvoaoImpérioevoudefendê-loatéamorte.Tornavaavê-lospenduradosnascordas.Voltouasentiromedodevoradorqueoacompanhara
emsuafugapelospântanos,asombradeAzdekiprestesaselançarsobreele.Oduqueergueuassobrancelhas.–Évocêmesmoquemestáfalando?OuéogeneralDun-CadalDaermon?Nãosintonenhuma
paixãoemsuavoz.–Indicouaportacomumgestodecabeça.–Rhunstag.Nemmesmoograndee forteRhunstagmantémessediscursodepropaganda–disse calmamente.–Sóo seumentor écegoaesseponto.Eele,sozinho,nãovaisalvarReyes.
Laertecontinuoucalado.Desoslaio,buscouumarespostanosemblantedeRogant:umsorriso,umolharquelheexplicasseoqueseesperavadele.Nãoviunadaalémdastatuagensimóveis,doslábioscerradosedosolhosnegrosespreitandoseusmínimosmovimentos.
–Estão todosesperandoasequênciadosacontecimentos–continuouPage.–Principalmenteessesque,agoraànoite,estãobrincandodelevarpalmadas...eque,amanhã,estarãoostentandoum ar grave e digno. Chega a ser surpreendente a capacidade de adaptação que eles têm. Éengraçado,semdúvida.Sónãodáparadizerissoparaeles;entenderiamcomozombaria.
Estariaoduquequerendoqueele se revelasse?Ou sóestava, à suamaneira, esclarecendo suaposição?Laertetentavasustentarseuolhar,massesentiamaisemaisperturbado.Oquefazer?Oqueresponder?ERogant,oqueesperava?Nãoeraseuamigo?
–Oqueseriaocaso,obviamente–confessouPage,subitamentepensativo.–Enfim...–Fingiunovamentebeberdesuataça,eemseguidaumedeceuoslábios.–Nãoimportaquantoseesforceparadefenderaquiloemqueacredita,Rã.Nãopassadeumapedrinhanoleitodeumrio.Atéondesei,nãopodedesviarseucurso.Nãoémesmo?
Laerte lançouumrápidoolharaRogant.Seráqueelenãoia intervir?Bastariaumúnicosinal,um único olhar diferente daquele que vinha mantendo desde o início da conversa, uma únicapalavra...paraLaertesesentirseguro,enãocomoumacaçaacuada.
– Espero que faça a escolha certa quando a revolta chegar a Émeris – afirmou Page o maissinceramente possível. – Pois você é, ou melhor, será, um grande cavaleiro. Rogant me faloumuitíssimo bem de você. E o que aconteceu em Kapernevic só fez confirmar minha opinião. Éjustamentesobreissoqueeugostariadeconversar.
Ataça...ataçanobraçodapoltronaestavavazia.DuranteobreveinstanteemqueolharaparaRogant, seuconteúdohavia sumido.Sumidoparaonde?Page teria tomado tudodeumasóvez?Não,claroquenão.Suaostensivaembriaguezerapurofingimento.
Aembriaguezeraumaformadedisfarce.UmartifíciodePage,queeleusara tambémnasalaaolado.Laertenãobeberaumagota,masomesmonãoaconteciacomosconvidadosdoduque.
Aslínguassesoltavam...eeleescutava.OlhounovamenteparaonâagaeRogantassentiucomumsorrisoimperceptível.–Kapernevic...–murmurouLaerte,subitamenteinteressado.–OtalAladzio...estavaaserviçodemeupai,sabia?–MalhouvetempodeLaerteresponder.–
Sim, é claro que sabe – prosseguiu Page, meneando a cabeça. – O fato é quemeu pai cedeu ocontratodeleparaoutrafamília.Paraoacordopodersercumprido,eraimportantequeelevoltassevivopara cá.Demodoque lhe agradeçopor tê-lo protegido, umhomemqueparamim temumimenso valor. –Nãohavia em seusolhosnenhum sinal de ironiaoudesprezo. – Imenso valor–repetiucomvozgrave.–Mas,comogostoderepetirnoiteedia,emtodaparte,emaltoebomsom:Aladzioéumestúpido.Jáépúblicoenotórioquefoiumalíviomelivrardele.
–Verdade?–perguntouLaerteemtomseco.–Oquevocêacha?Pagesorriu,semesperarresposta.Nasalaaoladoseaceleravaoritmodamúsicaedosgritos,risoseaplausos.Semparar,como
asbatidasdocoração.–Oqueeuachonãotemnenhumaimportância.–Muitopelocontrário–rebateuPage,inclinando-seàfrente.Apoiouoscotovelosnosjoelhos,
asmãosunidas.Seusorrisodesaparecera.–Elesvêmàsminhasfestas–continuou,lançandoparaaportaumolharde esguelha–porqueachamqueninguémvênadaalémdamáscaraqueestãousando. Essa é, aliás, a única coisa que ainda sabem usar atualmente. Rã, não há nada maisimportante que isso... Para mim, Aladzio vai continuar sendo um estúpido. Quem, senão umretardado,teriadeixadooseutrabalhoaqui?
ErgueuosolhosparaRogant,que, semdizernada,desapareceuatrásdas cortinasvermelhas,retornandoemseguidacomumpergaminhoenrolado.
–Não creio que esses projetos tenham alguma utilidade – confessou Page enquanto Rogantcolocavaorolonosofá.–Paramim,nãopassamdedesenhoshorríveis.
Laerte começou a desenrolar os pergaminhos, que continham um amontoado de croquis deumaestranhaestruturalongilínea,alémdeanotaçõesrabiscadasàspressas.
– E essa tal de pólvora, da qual vivia falando sem parar antes demeu pai despachá-lo paraKapernevic...– recordouPage, franzindoabocanumacaretadedesprezo.– ... estavaconvencidode que havia descoberto um pó capaz de lançar projéteis com essa... essa coisa. – Indicou osprojetoscomoqueixo.–Paramim,sãoapenasdesenhos idiotas–continuouoduque, revirandoos olhos. – Para ele, eram uma arma capaz de pôr fim a essa guerra e... – Interrompeu-se uminstante,pensativo,eentão,franzindoocenho,pôsodedosobreoslábios.–Enfim,compreendequantoissomepareceridículo?Canhõesqueiamtransformarnossascatapultasemantiguidades...Um absurdo!Mas a provamaior de sua estupidez é ele ter deixado para trás os projetos dessamaravilha, arriscando-se a que fossem parar em mãos erradas... – Levantou-se e, altivamente,aproximou-se de Rogant. O nâaga não se moveu 1 centímetro. – Devolva essas garatujas paraAladzio, não quero mais ouvir falar nisso. – Espere... – chamou Laerte. – O duque virou-sebruscamente para ele. – Por quê? – perguntou o rapaz, contemplando os perfeitos croquis do
canhão.–Porquefazquestãodedemonstrarqueessesdocumentosnãotêmnenhumvalorparaosenhor?
–Nãoeraissoquequeriaperguntar,Rã.Laerte o observou afagar o ombro do nâaga commão firme antes de pegar sua máscara e
encaminhar-selentamenteemdireçãoàscortinas.Nasalavizinha,afestachegavaaoauge,masobarulho não era nada comparado ao tumulto dos pensamentos do rapaz. Conhecia Rogant osuficientee jáseabriracomelepara lherevelarpartedeseusplanos.Eaconfiançaerarecíproca.Rogant tinha um sonho insano e nunca lhe escondera que via na queda do Império a únicapossibilidadedeseupovorecobraraliberdade.
Laerte,seaindatinhatotalconfiançanoamigo,precisavaacreditarqueaquelessubentendidosfaziam sentido para ele. Como se para confirmar seus pensamentos, Page acrescentou, sem sevirar:
–Averdadeiraperguntaé:vocêviuohomemportrásdamáscara...ouviuapenasamáscara?Façaoqueacharmelhor:emrelaçãoamim,aosprojetoseaquemencaminhá-los.
Então recolocou cuidadosamente a máscara no rosto antes de abrir as cortinas. Laerte selevantou, pensando em enchê-lo de perguntas, consumido pela ideia de ter encontrado umpoderoso aliado.Canhões?Maispotentes,maisdestrutivosque as catapultas?AobradeAladziopodiaacabarnasmãosdosinsurgentesepermitiriaqueelesentrassememÉmeris.
– Já iame esquecendo – disse Page com voz grave. – Parece que você frequentava a casa dealgunsrefugiadosdasSalinas.Umdeles,infelizmente,foiacusadodetraiçãoeenforcadohojepelamanhã.Você,estandoaserviçodoImpério,nãodeviaconhecê-lo.EraumferreirodeForted’Aed.Essetraidordeviaterpensadonafilha,queficouórfã.Tomaraqueelaencontreumombroamigo...
Epassoupelascortinas.Laertesentiuaspernasfraquejarem.NãoconseguiraseencontrarcomEsylddesdequechegara,
no dia anterior. E ficava sabendo da morte do pai dela desse jeito, pela boca de um completoestranho.Nãoselembrava,emsuasbrevíssimasestadasemÉmeris,detercruzadoalgumavezcommestreOrbeynoscorredoresdopalácio.AúltimavezqueseviramforanasSalinas,poucoantesdeeleserobrigadoafugir.PoucoantesdeconhecerDun-CadalDaermon.Poucoantesdemudardevida.
Esyldcomentaratantasvezessobreele,sobreoperigosopapelquevinhadesempenhandoemÉmeris.DurantetodosaquelesanosqueLaertepassaraseperdendonoscamposdebatalha,Orbeypermanecera atuando às escondidas, organizando a resistência entre os refugiados das Salinas eentreosnobreshostisaoimperadorquandoestesbuscaramumaaproximação.Mantendosemprea discrição, fizera o possível para se certificar de sua boa-fé. E entre esses nobres dispostos a sejuntaremàrevoltaestavaoduque...
–Rã,aguerraestáchegandoaofim–disseRogantcomumolharinsistente.–Confieemmim,meuamigo.ExisteaquiloquePagediz,aquiloqueénecessárioqueosoutrosouçameaquiloqueé.Esse inventorquevocê salvou... ele vai treinaros soldadosda academianousodo canhãodesdequeconsigaconstruirumquefuncione.Conversecomele.Éumconselhodeamigo.
Fez-seum longosilêncioquenadaveioperturbar.Rogantbaixou ligeiramenteacabeçaantes
desevirar.–Sintomuitoporela–disse,antesdedeixarasala.–Agoraessajovemprecisadevocê.Quandoficousozinho,Laerteesforçou-separaconteras lágrimas.Comosolhosenevoadose
marejados,fitavaosprojetosespalhadosnosofávermelho.Pegou-ossemmaisdemora.
Passoupelos corredores dopalácio omais discretamentepossível, andando rente às paredes,contornandoas colunasdemármore, se esquivandodosolhares indiscretos.Foi rapidamenteatéasdependênciasdosservosecruzouapequenaportatãoconhecida.
Quando entrou no quarto de Esyld, ela estava encolhida ao pé da cama, o cabelo cacheadocobrindo o rosto e lágrimas escorrendo pelas faces. Soltou um pequeno soluço ao ver Laerteajoelhadodiantedelaeimediatamenteseaninhouemseusbraços.
Ficaramassimumbomtempo,semdizernada,semnemmesmoseolhar.Elaentãolhecontousobreaprisãodopaiecomoela,pormuitopouco,nãohaviasidoenforcadatambém.Estavavivagraçasaumnobrecujonomenãorevelou,oqualafirmaraqueelaestavaaseuserviçoequesairiaprejudicadocasoaexecutassem.Laertenãoperguntouquemera;jáimaginava.Aliás,tinhacertezadequeestiveracomelehaviapouco.
Depois de ela relatar demoradamente, com a voz trêmula de dor, o modo como seu paimorrera,elehesitouváriossegundos.
–Amortedelenãofoiemvão,Esyld–sussurrouenfim,decidido.Agachando-se,desenrolouosprojetosnopiso.–Oqueéisso?–ÉalgoquevailevaroImpérioaserender–afirmoueleentredentes.–Temosquefazercom
queessesprojetoscheguemàsmãosdeMeurnauquantoantes.Graças à atuação de Orbey, Esyld conhecia os refugiados das Salinas que trabalhavam de
garotosderecadosparaosmercadoresdacapital.FoiassimqueospergaminhossaíramdeÉmeris,passandodemãoemmãoatéchegaremaoacampamentorebeldemaispróximo.
Estranhamente, e sem que ele soubesse o porquê, Esyld não lhe dirigiu a palavra no mêsseguinte.Emgeral, evitava-o.Laerte aceitou, aindaque comdificuldade,que elapudesse julgá-loculpado.Orbeymorrera,aopassoqueeletinhalutadocontrasuaprópriagenteduranteanos.E,oque era pior, não assumira sua verdadeira identidade e sempre rejeitara a ideia de se unir aMeurnau e suas tropas. Doía-lhe o fato de ela não aprovar suas escolhas. Sentir-se culpadotambémnãofacilitavaascoisas.
De modo que passou aquele último mês em Émeris entre as aulas da academia, as crisesautoritárias de Dun-Cadal e as conversas com Rogant e Aladzio, que estava aprendendo aconhecer.E a apreciar.A esperanãoduroumuito.Oclamorda revoltabatia àsportasda cidadeimperial. Como Page havia previsto, a guerra chegava ao fim. Ele enfim estava pronto paraenfrentarsemmedoo imperadoresuaMão.Jánãotinhadominadoodragãovermelho?Asham
IvaniReyeseraapenasumhomem,nãoseriatãodifícil,dissoeleagoratinhacerteza.–Amanhã...–avisouEsyld.A luz do sol aclarava as pedras brancas da passarela. Uma trança ondulava em seu ombro
desnudo,queumraio luminosoacariciavacompudor.Mantinhaasmãosunidassobreovestidocarmesim e conservava toda a sua beleza mesmo estando com as feições abatidas. Rã buscoudesesperadamente seuolhar, emvão.Alheia, ela contemplavaos jardinsdopalácio,quedesciamcomodegrausdeumaescadaflorida.
–Penseiquenãopassassedeboato–confessouelebaixinho.–Émerisparecetãotranquila...–Meurnauesuastropasestãomesmobempróximosdacidade–garantiuelaemtomcortante.–Esyld...–Elesconstruíramoscanhõesdoseuamigo,vãoconseguirentrarsemproblemas.Masainda
háoimperador,eseiquechegousuahoradeagir.Umnobrequenosapoiavaimeajudaradeixaracidade.Confiototalmentenele,masvocê,eu...
–Esyld,olheparamim...Elalançou-lheumbreveolharedesviouosolhosemseguida.–Precisodeumtempo,Laerte–explicouemtomseco.–Precisodeumtempoparaperdoá-lo,
apesardetodooamorquesintoporvocê.–Eunãoqueriaisso...–Vocêsabemuitobemoquepenso–interrompeuela.Sim,claro.Oqueeletinhafeitodurantearevolta?Lutaracontra,emvezdeassumiraliderança.– Sou como a rã-de-Erain– justificou-senum sussurro. –Voudar o golpenahora certa. Ea
horacertaéamanhã,Esyld.Nãovoufraquejar,prometo.–Acreditoemvocê–respondeuelasemmuitaconvicção.–MaseDun-Cadal?Esyld sustentou seu olhar e suas feições foram relaxando. Estava prestes a abraçá-la, beijá-la
apaixonadamente, arriscandoque seu coração explodisse.Desejava-a tantoque estavadisposto amorrerporisso.
–OquetemDun-Cadal?–Nahoracerta...vocêvaimatá-lo?Matarseumentor?Seuinimigo...OcertoéqueDun-CadalDaermonprefeririamorreradeixar
o Império ruir. Sentiu seu sangue gelar só de pensar que ele podia se colocar entre ele e oimperador.SeráqueRã,nessecaso,nãoiasesobreporaLaerte?Emborateimasseemnegar,sentiaafetoporessehomem.Seriacapazdeesquecê-loparacumprirsuavingança?
–Fareioqueforpreciso–sussurrou,oolhardevaneandopelaslajotasbrancas.–Estoupronto.Confieemmim.Vouconseguir.VouderrubaroImpériosozinho,porvocê...
–Laerte...–Rã!–bradouumavoz.Virou-seeavistou,comirritação,ovultocorpulentodeseumentorvindorapidamenteemsua
direção. Amão suave de Esyld em seu ombro foi como uma carícia e, quando ela se ergueu naponta dos pés paramurmurar algo em seu ouvido, desejoupoder fugir com ela para longedali,daquelaguerra,daquelaviolência...eesquecer-sedetudo.
–Nuncaseesqueça,eusemprevouamarvocê...Tomecuidadoamanhã.Eleaseguiucomoolharenquantoelaseafastavapelapassarelaàluzdouradadosol.Sombras
deslizavam pelas curvas perfeitas de seu corpo, até que ela chegou à porta da torre. Quandodesapareceunointeriordopalácio,elesentiuapresençaopressivadeDun-Cadalàssuascostas.
–Estouprocurandovocêháhoras–disseelecomvozautoritária.–Jáfoimaiseficiente–respondeuLaerte,fazendoopossívelparadisfarçarsuairritação.Fitavaaextremidadedapassarela,comoseEsyldaindaestivesseali.–Quando não está comAladzio, está com ela – censurouDun-Cadal. –Você sabe o que eu
achodisso.–Estivetreinandocomoscadetes,Pernalta–garantiuorapazplacidamente.–Eseamanhãnosmandaremdevoltaparaalinhadefrente?Nãoécomoscadetesquevocê
temquetreinar.Vocêéumcavaleiro,seucabeça-dura!–Estareipreparado–exasperou-seLaerte.Virou-sefinalmenteparaencará-lo.OrostomarcadodeDun-Cadal inspiravapoucasimpatia.
Seusolhosclaros,severos,brilhavamcomofogo.Laerteandouemdireçãoàbordadapassarela,naesperançade acabar comas recriminações.Não era aprimeira vezqueDun-Cadal o alertava emrelação a Esyld, afirmando que ela o distraía de seus estudos, que o desconcentrava... Será quetemia que ela fosse umamá influência para seu pupilo? Esse homem não era seu pai. Como seatreviaadizeroqueeletinhaquefazeroucomquempodiaseencontrar?!
–VocêestásemprecomMildrel–reclamouLaerte.–Édiferente.– E o imperador não fica o tempo todo mandando você treinar. Tenho treinado todas as
manhãs.Principalmentedesdequemetorneicavaleiro.Tenhodireitodemeencontrarcomela.–Édiferente–repetiusuavementeDun-Cadal.Comoerainsuportávelouvirseutomindulgente,meloso.Semprequeumadiscussãoarriscava
desandareleadotavaessaatitude,quesóaumentavaaraivadeLaerte,aoinvésdeacalmá-lo.Porquê?Talvezporacharqueeraocomportamentodeumpai.
–Diferenteporquê?–exaltou-se,sustentandooolhardeseumentor.–PorqueMildrelnãoéumarefugiada!–respondeuDun-Cadalelevandoavoz.–Essahistóriadenovo...–disseLaerte,balançandoacabeçacomdesdém.Ele estava certo. Esses rumores circulavam em toda a corte. Havia gente tramando contra o
Império, e os refugiados das Salinas eram sempre os primeiros suspeitos. A filha do ferreiro deForte d’Aed ainda estava viva pormilagre. Contava com a proteção de um nobre,mas isso nãobastavaparaacabarcomodissemedisse.
Dun-Cadal preocupava-se verdadeiramente com ele. Uma dor intensa varou o coração deLaerte.Sentia-se literalmentedilaceradoporseussentimentos.Pelaprimeiravez, tevea impressãodeestartraindoalguémqueamava...
Nahoracerta...vocêvaimatá-lo?– Eu já lhe disse quando voltamos de Kapernevic: não pode mais se encontrar com ela –
continuouDun-Cadal.–Nãovêcomotodomundoandadesconfiandodetodomundo?Négusme
alertou.Eeu...alerteivocê.–EutambémsoudasSalinas,esqueceu?–perguntouentredentes.–Rã,é sóatéaguerraacabar.Depoisvocêvai ter todoo tempodomundoparacortejaressa
moça...Comoqueriapoderdizerquenodiaseguinte tudoestariaacabado,queogeneral iadescobrir
quemeleera,oquetinhafeito,opoderosocavaleiroquetinhasetornado.–Nãoqueroquedesconfiemdevocê.LaertesentiuqueDun-Cadalhesitavaaopôramãoemseuombroearepeliubruscamente.Em
seguida,seafastou....vocêvaimatá-lo?–Aindamaisagoraquefoisagradocavaleiro–acrescentouDun-Cadal.Sim,eletinhaprestadojuramento.ForainvestidopelograndegeneralDaermon,seumentor......vocêvaimatá-lo?Laerteseagarravaàideiadequeogeneralsimplesmenteousara.Ambostinhamusadoumao
outrocomosefossemmeros instrumentos.Sentirafetoporeleeraumerro;melhorseconcentrarem tudo aquilo que detestava. Repetia a simesmo queDun-Cadal de fato nunca se comportaracorretamente com ele. Sempre fizera sermões, dizendo que precisava treinar mais e mais,mandando que se calasse na frente dos poderosos. Semnunca reconhecer que ele era um alunotalentoso.
–Pois isso deviamedar o direito deme encontrar comquemeu bem entender – escarneceuLaerte.
–Ah,meurapaz,nãopensequejáchegoulá.Vocêaindatemmuitochãopelafrenteaté...–Nãoentendo–interrompeuLaerte,fitando-ocomumolharsombrio.–Paravocênuncasou
bomobastante,nãoé?Nãoimportaqueeufaça,nuncaésuficiente.Vocêalgumavezmeelogiou,poracaso?Algumavezmedisse“Muitobem,moleque”?Mesmodepoisdojuramento,algumavezmedeuparabéns?Euqueriadizerquevocêfoicomoump...Eu...
Aspalavras ficarampresasemsuagarganta,obstruídaspor tantascríticasquenãoconseguiaexpressá-las. E, o que era pior, uma nova tristeza pressionava seu peito. Começou a arquejarenquanto seus olhos se enchiam de lágrimas. Concentrou-se em se recompor, não ceder, nãodemonstrarquantoestavaemocionado.Dun-Cadalnãopodiadesconfiardeabsolutamentenada.
Baixou os olhos por um breve instante e então se obrigou a encará-lo outra vez com ardeterminado.
Nãopodianegarqueaquelehomemlheensinaramuitascoisas.Maselesabia,desdeo início,queDun-CadalDaermonestavadoladodosquetinhammatadoseupai.
Nahoracerta...vocêvaimatá-lo?–Àsvezeseu...odeiovocê!–exclamou.Precisademaisalgumacoisa,senhora?AsúltimaspalavrastrocadascomDun-Cadalhaviamsidoraivosas.Nahoracerta...AsqueEsyldlhesussurraraaoouvidotinhamsidodepuroamor.
Senhora?
–Estátudobem,Marissa.Podeserecolher.Sua voz, embora um pouco mais grave, mantivera a doçura. Sobre a cornija, encostado na
paredejuntoàjanelaquedavaparaosluxuososaposentosdoPalatio,Laertereviaaimagemdesimesmodeixandoapassarela.Recordavaaqueleúltimodiaantesdeele...
Aportasefechouàsaídadaservaeentãoouviu-seapenasofarfalhardovestidodeEsyldindoatéacamadedossel.
Esperara anoitecer para galgar osmuros do palácio e deslizar discretamente pelas calhas atéfinalmente chegar às sacadas. Dali passara para os telhados que circundavam a alta cúpula demodoaidentificarajaneladamulherquereconheceranapraça,nodiaanterior.
Elenãotocaranoassuntocomninguém.TinhacertezadequeRogant,emesmoViola,teriamfeitodetudoparaimpedi-lo...Comopoderiamentenderqueaesperançadeumdiatornaravê-laeraaúnicacoisaqueomantiveravivo?QuesóalembrançadeEsyldoimpediradenaufragar?
Tentara,todosessesanos,descobriroquehaviaacontecidocomela,semacreditarnemporumsegundoquetivessemorridoduranteatomadadeÉmeris.Naquelanoite,chegouaseesquecerdetudooqueofizeravirparaMassália.Precisavarevê-la,envolvê-laemseusbraços,beijá-la.Enuncamaisdeixá-la.
O quarto era luxuoso, continha amplas poltronas em que estavam dispostas dezenas devestidos,masLaertenemreparou.SeuolharinevitavelmenteeraatraídoporEsyld,que,nabeiradadacama,penteava-sediantedeumtoucador.Usavaum longovestidoroxocomduas finasalçasnos ombros. Fios dourados se entremeavam aos cachos do cabelo. Em nenhum momento sequestionou,emnenhummomentopensounoqueelateriavivido,algoqueexplicassesuapresençaemtãosuntuososaposentos.
Obcecado,jánãopensava.Passouaspernaspelajanelaeesperouuminstante,contemplandosuascostasdesnudas,odecoteemVmostrandoacurvadesuascostas.Entrounoquarto.
Seureflexoapareceunoespelhodotoucador.–Nãoseassuste.Numsobressalto,elaquasesoltouumgrito,cobrindoabocacomamão.Eletirouocapuznum
gestolento,mostrandoseurosto.–Laerte...–sussurrouela.Lívida,contemplavaoreflexonoespelho,semumapalavra,semumgesto.–Sonheitantocomessemomento...–confessouele,trêmulo.–Vocêestávivo–disseela,comosenuncativesseduvidado.Tentouseaproximarparaabraçá-la,masEsyldselevantoueoencarou,passandoasmãospelo
ventrenumgestonervoso.–Vocêestávivo–repetiu.–Como...Comofoiquemeencontrou?Comofoique...?
–Vocêcontinuaigualzinhaàminhalembrança–interrompeuele.Ela recuou, quase derrubando o toucador. Atordoada, decerto, pela surpresa. Para não
perturbá-laaindamais,obrigou-seaficarparado,fitando-acomdesejo.Tantotemposemela...–Laerte,oquefazaqui?–perguntouEsyldàbeiradaslágrimas.– Não, não chore – implorou ele. – Estou aqui, bem vivo, está vendo? Sei que aconteceram
muitascoisasdesdeaquedadoImpério,seique...Procuravaaspalavrascertas,cientedequeummomentocomoessenãopermitiaimprovisação.
Depoisdetodosessesanos,temiaestragaroreencontrocomquetantosonhara.– Eu tentei – justificou-se ele. – Tentei encontrar você, mas era tarde demais. Aconteceram
coisasque...Nãoconsegui,eratardedemais,acredite.Nunca,nemporumdia,deixeidepensaremvocê.
Enquanto ele falava, ela parecia se recompor, inspirando profundamente.Não, ela não tinhamudado,continuavacomoelesempresonhara.Aúnicadiferençaeraquehaviaemseusemblantemaisansiedadedoquealegriapeloreencontro.
Andoudevagaremsuadireção.Dessavezelanãorecuoue,quandoficaramfrenteafrente,eleergueu timidamente a mão enluvada e deslizou os dedos por sua pele, afastando uma mechacacheada.Mergulhou no olhar dela, imaginando as batidas aceleradas de seu coração. Sentia-seembriagadopelocheirode suapele,pelobrilhocarmesimde seus lábios, igualaodovestidoqueusavanapassarela,navésperadaquedadoImpério...
Naúltimavezquetinhamseencontrado.–Oquefazaqui?–sussurrouela,desnorteada.–Volteiparaondedeveriaestarhámuitotempo...Elainclinouacabeça,comoseàesperadeumbeijo.Laertesecurvouemdireçãoaseuslábios.– Não – implorou ela. – Afaste-se. – Empurrou-o com as mãos. – Os conselheiros
assassinados...–disse,trêmula.–Foivocê?Não soube o que responder.Devia confessar tudo alimesmo?Contar tudo para ela,mesmo
levandoemcontaquemalhaviamsereencontrado?–Aconteceutantacoisa,Esyld...–confessou.–Entãofoimesmovocê–disseela,compesar.–Nãoéoqueestápensando–defendeu-se.–DepoisdaquedadoImpério,descobriporque
matarammeupai...–Issofoihádezesseteanos,Laerte!Elaelevaraotom,suavoztremia.Não,nãoeraassimquetinhaimaginadoessereencontro.–Ascoisasaconteceramdessaformaporqueessaeraavontadedosdeuses,vocênãoentende?
Evocêapareceassim,achandoque...–Esyld!Euseiquemtramoucontraaminhafamíliaeagoraessasmesmaspessoasrepresentam
umaameaçaparaaRepública!–VocêestáagindoafavordaRepública?Ouparaexecutarsuavingança?–perguntouelanum
murmúrio.Elaolhourapidamenteparaaportadoquartocomlágrimasnosolhos.
–Acheiqueficariafelizporsaberqueestouvivo.Laertetentousorrir.–Acontecerammuitascoisas,comovocêmesmodisse–confessouela.–QuandodeixeiÉmeris,
nodiadoataque,umafamílianobremeacolheusobsuaproteção.Amesmafamíliaquehaviamesalvadoduranteojulgamentodemeupai...
Elaergueuosolhosparaoteto,deixandoescaparumsuspiro.Claramenteestavatentandolhedizeralgumacoisa,sónãoencontravacoragem.
–Euamovocêcomoamavanoprimeirodia–afirmouele.Sentiaqueelaseesquivava, tinhamedodoquepodiadizer.Deixouque finalmenteseusolhos
vagueassem pelo quarto, reparando nas tapeçarias que revestiam as paredes, nas poltronas deespaldaresbordados,noscortinadosjuntoàporta...Oluxo...Esyldnãoeramaisumaserva.
–Essetempotodosobrevivipensandoemvocê–murmurouele,sério.–Eeupreciseiesquecê-lo,Rã.Aoouvirseuantigonome,sentiuqueatinhaperdido.Não,nãoerapossível.Eladisseraqueia
amá-loparasempre.Tinhaprometido.Esyldaproximou-sedeleesegurousuasmãos,cabisbaixa.–Rezei por você, sabe...Após a proclamaçãodaRepública, tive a esperança de ouvir falar de
você, que cidades inteiras falassem seu nome e me dissessem que finalmente o viam como umherói.
–Nãoconsegui,porquesimplesmente...–Pessoasdebem salvaramminhavida,Laerte– continuou ela. –Pessoasquemeacolheram
emsuafamíliaeforameleitaspelopovo.– Tudo isso acabou, enfim estamos juntos – retorquiu ele, colando a testa na dela. – Preciso
apenascumprirumamissãomuitoimportante.PrometameesperaratéodiaseguinteàNoitedasMáscaras.
–Laerte,olheparamim...Eleobedeceu,mergulhandooutravezemseusolhos.–Otempopassou.Nadaémaiscomoantes.–SóatédepoisdaNoitedasMáscaras–implorouelenumsussurro.–Laerte...–Poderemospartirjuntos,estarátudoacabado...finalmente.–Laerte...Ela tremia. Ele tentou tomá-la nos braços, mas Esyld se afastou, os olhos marejados de
lágrimas.–Euvoumecasar...Laertepensouquefossesufocar.Seucoraçãopareceuparardebater.Nenhumapalavrasaiude
suagarganta.Otalcasamento,antesdaNoitedasMáscaras...–OnomedeleéBalian,éfilhodoconselheiroÉtienneAzdeki.ArdianoventredeLaerteumachamaterrível,devoradora,impiedosa.Suaalmapareciatersido
arrancada,eseucoração,estraçalhado.Eraamesmadorqueotomaraquandosouberadamortedesuafamília,sóqueagorasoavacomoumgolpedemisericórdia.Elaosustentaraaolongodos
diaseagoraeraquemoapunhalava...–FoiAzdekiquemmeacolheu–justificou-seEsyld,àbeiradaslágrimas.–Eunãotiveescolha.
Otempofoipassando.Eudescobri,entendioqueelestinhamfeitoeporquê...Elesforamtãobonsparamim,Laerte...Preciseiesquecê-lo.Nãotiveescolha.Eramorrerdetristezaoutornaraviver!
–Vocêmeama...–EuamoBalian–afirmouela.Euamovocê.Semprevouamar.Sempre.–Vocêmedisse...– Isso foi há muito tempo – defendeu-se ela. – Naquela época, era verdade. Mas as coisas
mudam.Aspessoasmudam.Omundonãoestámaisemguerra,Laerte!–EUESTOUEMGUERRA!–gritouele,erguendoopunhocerrado.Elaestremeceu,lívida.–OsAzdekissãoperigosos!–Nãoéverdade.VocênãoconheceBalian–retrucouela.–Opaidelematouminhafamília!EntregouoImpérioàviolênciaeaocaos...e,seseupaiestá
morto,éporculpadeles.– Não! – exaltou-se ela. – É culpa sua! Você não estava lá! Como ousa? – Fez uma careta.
Lágrimas escorriam junto a seus lábios trêmulos. Ela desviou o olhar. –Você não sabe de tudo,Laerte–declarounumsussurro.–Nãosabeoqueaconteceudeverdade.
O corpo inteiro de Laerte fervia, seu coração batia com tanta força que parecia prestes aexplodir.Nãopodiaaceitaraquilo.
–Seráquefuiamaldiçoado,poisamulherqueamovaisecasarcomofilhodomeuinimigo?–disse,gemendo,antesdese lançarsobreela.–Digaquenãomeama,Esyld.Diga,se formesmoverdade!Atreva-seadizer!
–Nós não temos culpa – ela tentou explicar. –Os deuses é que decidem...Não passamos desimplesmurmúrios.
– Nunca! Está me ouvindo? Nunca! – Ele pôs-se a andar em círculos, a mão no punho daespada.Ofegante, tinhaasensaçãodeestaremqueda livre, semternadaaqueseagarrar...–Eununcavouserummerojoguetedoinfortúnio...Nuncavouserumsimplesmurmúrio...nunca...
Desúbito,virou-separaela,mas,antesqueseaproximasse,ela lhedeuascostas,contendoochoro.Seusombrostremiam,demedoedetristeza.
–Saia,Laerte.Nãopodeficaraqui.Váembora,estoupedindo.–Paravocê...–Saia,Laerte...–Paravocê,eusereiumgrito.–Guarda!–chamouela.Fez-sesilêncio.Eleespiouporsobreoombro.–Atreva-seadizerquenãomeamamais–implorouLaerte.Arespostadeladespedaçouseucoração:–Nãoamomaisvocê...
Ressoou,nocorredor,umsomcompassadodebotaspisandoomármore.–Fuja,Laerte...Nãovoudenunciá-lo,masnãovoltenuncamais.Nuncamaistentemever.As
coisasmudaram... salvo você e essa sua vingança, que não temmais sentido. Ela continuou decostas,cabisbaixa,aosprantos.–Vá...bravohomenzinho.
–Esyld...–disseele,chorando.Ospassosseaproximavam.–GUARDA!–gritouela.Quandoaportaseabriuderepente,dandopassagemasoldadosalarmados,Esyldsevirou.Na
mesapróximaàjanela,avistouumestranhoobjetosobreoqualoluardisputavacomaescuridão.Eraumcavalinhodemadeira...
8
Dores
Eleaamava.
Acabariaconspirandocomela.
Umjovem,poramor,écapazdequalquercoisa,
inclusiveperderasipróprio...
Jamais imaginara o amor deixandode existir. Esse amor lhe parecia tão eterno, inalterável, quenão entendia como Esyld conseguira esquecer um sentimento assim. Seu coração estavadespedaçadoeelesaltavapelostelhados,despistandoastropasemseuencalço.Nãoeradelasquefugia,esimdamágoaqueosufocava.Eemboracorressedesatinado,seafastandomaisemaisdoPalatio, de Esyld e das lembranças deles dois, quando chegou em casa amágoa continuava ali,triturandoseupeito.
Finasnuvensbrancasdeslizavam,vagarosas,numleitodeestrelas.Nopátio,tirouaespadadabainha.Depois,acendeuduastochas.Àluztremeluzente,treinouestocadasedefesas.Todoseusereraumsósofrimento.Sobseuspassos,sussurravamoscascalhos.Àsuafúriarespondiaumgritoquelherasgavaopeito.
EuamoBalian...Sua espada açoitava o ar derrubando inimigos imaginários, seus pulmões arderam quando
usou o Sopro para levantar as tochas. Imaginou amadeira se partindo, as brasas se apagando.Cerrouopunho.
EuamoBalian...Etudoserompeu.Lutava contramil homens,mil exércitos, repetindo os gestos aprendidos anos antes.Azdeki,
pensava.Azdeki.Essafamíliatinhalheroubadotudo.Haviasidoamaldiçoado.–Possoestarenganada– interveioumavozfina–,masalgumacoisaestápreocupandovocê,
nãoé?
Ele se deteve, um joelho no chão, a espada estendida como se transpassasse um inimigoinvisível.Juntoàporta,debraçoscruzados,estavaovultoesguiodeViola,aureoladopelaluzdoslampiõesdasala.Viuquecontinhaumsorriso.
–Ou será excesso de virilidade? – supôs ela. – Sei que os homens gostamde brigar,mas emgeral, para ter graça, precisam ser nomínimo dois. – Seu sorriso desapareceu quando Laerte selevantou, no escuro, mais intimidador do que nunca. – Estou aqui, se você... enfim, se quiserconversar – sugeriu baixinho. Ele girou a espada, a lâmina riscando o ar. – Você passou o diainteirofora,chegouaoanoitecere...
Ele a fitava, os olhos brilhando na penumbra. Sem uma palavra, sem um sorriso. Só umsemblantefechado.Elaentrelaçouosdedosnervosamente.
–Étãorarovocêconversar...–Elasuspirou.–Váparadentro,Viola–disseeleemvozrouca,semqualquercordialidade.–Estátarde.– Sou muito jovem, tudo bem, mas não precisa me tratar feito criança – queixou-se ela,
revirandoosolhos.–Váparadentro–repetiu,maisdevagar.–Quegênioruim!–reclamouela,punhoscerradosjuntoàscoxas.Obedeceuacontragosto,entrandonasalaapassosrápidos.Deitadonosofácomumcântaro
devinhonamão,RogantmalaolhouquandoViolapassouresmungando.–Eusóqueriaajudar–protestavaela.AocruzarcomDun-Cadalnaescada,desabafou:–Vocêsdoistêmomesmogêniodifícil!Ovelhogeneralfranziuocenho,parandonodegrauparalhedarpassagemsemqueelanemse
dignasse olhá-lo. Ver a garota ruiva com o rosto vermelho de raiva era a última coisa que teriaesperado.
O somdospassosno cascalhodopátioo arrancarade seu torpor e, curioso, resolveradescerpara ver o que se passava. Ao chegar à sala, a primeira coisa que chamou sua atenção não foiRogant, mas o vinho em sua mão. Não tomava nenhuma gota havia dois dias, a tentação foigrande.Lançou-sesobreonâagasonolentoeseapoderoudocântaroantesqueelepudessereagir.
–Ei,velhofantasma!–grunhiuRogantpulandodosofá,oolharaindameioembaciado.Dun-Cadal já não escutava, sorvendo o máximo de vinho possível, a garganta seca. Quase
engasgando, enxugou a boca com uma mão enquanto, com a outra, continha seu oponenteirritado.
–Começoagostarumpoucomaisdevocê–disse,comdificuldade.Punhoemriste,prestesasocaromaxilardovelho,Rogantsedeteve.Dun-Cadalnãoparavade
balançaracabeça,arsatisfeito,umlevesorriso.Onâaganãoaguentouecaiunarisada.–Verdade–insistiuDun-Cadal.–Estouachandovocêmaissimpático...–Tudobem...–disseooutro, rindo.–Fique comele.–Commão firme, afagouoombrodo
ancião,o rosto sorridente.–Você foiumgrandeguerreiro, velho fantasma–murmurouRogant,zombeteiro.–Masovinhooestáentorpecendo.Embriague-se.Sónãosei...seLaertevaigostar.E,acredite,andoloucoparaveroacertodecontasentrevocês.
Pelaportaabertaparaopátio,Dun-CadalavistouovultodeLaerte.Entãoeradaliquevinhaosomdelâminacortandooar,comoumecodopassado.Não,nãoumeco...umreflexodistorcido.Aquelegarotonão tinhanadaavercomoRãqueeleconhecera.Nasoleiradaporta, tomouumgole, saboreando o gosto frutado do vinho que descia por sua garganta. Espiando por sobre oombro,viuRogantsentar-senoespaldardosofá,braçoscruzados,umlevesorriso.Esperando,semdúvida, queLaerte iniciasse o combate. Podia ter umadecepção:Dun-Cadal não sentia amenorvontadedesedefender.Estavamuitocansado.
–Aindanãoseioquevocêpretende–disseafinal,enquantoorapazseguiaaçoitandooarcomsualâmina.–Masparecequejácomeçoumal.
Laerteparou,meiosemfôlego.Oluaroenvolvianumpálidoclarão.Virou-separaDun-Cadal,cabisbaixo.
–Afúria–disseovelho,suspirandoesentando-senopequenodegraujuntoàporta–sempreestevedentrodevocê.Hojeentendoporquê...
Seesperavaumaresposta,afogousuadecepçãoemmaisumgole.Laerteficoucalado,imóvel,observandoseuantigomentorcomumolharferoz.
– Tanto ódio por mim... – prosseguiu o antigo general. – Ironia do destino ou desejo dosdeusesdaraumhomemachancedealimentarseupróprioinimigo?Étãohumilhanteeunãoter...
–Você tinharazão– interrompeuLaerte.Embainhouaespadanumgestobrusco.Dun-Cadalfranziuasobrancelha.–Esyld.OpaidelaestavacoordenandoarevoltaemÉmerisenquantoeu...
Com a voz embargada, sentiu as lágrimas brotarem, tal como a raiva que fervia dentro dele.Punhoscerrados,deuumpassoemdireçãoaDun-Cadalsemqueesseesboçassequalquerreação.
–...enquantoeulutavaaoseuladoeatraía.SómeimportavaReyes,emcravarumaespadaemseupeito.–Otomdesuavozseelevava,aslágrimasnosolhosabundavam.–Eunãosabia,estavacego. Era ignorante, jovem, estúpido. O culpado não era Reyes. Nem você, que não passava deum...
Aovero rosto lívidodeDun-Cadal, seusolhos fugidios,nãoconseguiucontinuar.Ovelho jáestava tãomaltratado, apele tãomarcadapelo soldoSul epeloálcool,quebebeumaisumavezantesdejogarlongeocântaro,queseestilhaçounocascalho.
– Eu a amava. Sempre amei – confessou Laerte, dando-lhe as costas para buscar algumconfortonasluzesdeMassália.
Não.Naverdade,estavadisfarçandoaslágrimasquenãoconseguiaconter.Tentaraselivrardadorgolpeando,rasgandooar,quebrandoastochas,masasimplesvisãodeseuantigomestre,tãopálido e fragilizado, acabara comsua combatividade.Naquelemomento, temia ter acreditado serbemmaisfortedoqueeradefatoe,pelaprimeiravez,seimaginoufracassando.
– Ela está aqui, Pernalta. Vai se casar com... – cerrou os punhos – ... o filho de Azdeki –conseguiudizer,contendoochoro.–Entãomediga,qualéaverdadeiraironia?
Aslágrimassecaramcomaraiva.EleinspirouantesdeseviraresustentaroolharsombriodeDun-Cadal.
–Mediga!–ordenoucomvozfirme.Logrid!Podre!Imundo!LOGRID!
Laerte fez uma careta. Uma dor estranha varou seu ombro e logo sumiu. Uma lembrança...Tinhasidoamaldiçoado.
–Você não significa nada paramim– declarouDun-Cadal em tom inexpressivo. –O garotoqueameisechamavaRã.Vocêomatou.Eupoderiaamaldiçoarvocêporisso.
Desafiavam-secomoolhar.Nemdavaparaimaginarquejáhaviamsentidoalgoalémdepuroódio. Segurando-se no batente da porta, Dun-Cadal levantou-se, uma careta de nojo alterandosuasfeições.
–Issovocêjáfez–afirmouLaerte,sempestanejar.Logrid!OsemblantedeDun-Cadal ficousombrio.Estava lembrando,entendendo.Tudofaziasentido
nosderradeirosmomentosdoImpério.Mas seráque tinhanoçãodequantoLaerte tinha sofridonaquelediadistante?Seráque fazia
ideia do que tivera que aguentar nos dias que se seguiram?O ódio sumiu dos olhos do velho eLaerteacreditouvernelesalgoque lembravaseuantigobrilho.ObrilhoqueseviaquandoestavapreocupadocomRã.
–Sim–concordouLaerte.–UmdiaantesdaquedadeReyes,vocêmeamaldiçoou...
Naqueledia,eleacabaradedeixarDun-Cadal.Nodiaseguinteseriadadoosinalparaoataqueàcidade imperial.Os insurgentesagora tinhamumtrunfo importantea seu favor.Aladzio fingianão conseguir concluir a obra que garantiria ao Império uma vitória indiscutível. Tinhamsabiamenteusadoosprojetosdo inventor.OscanhõesseacumulavamnosarredoresdeÉmeriselogoestariamretumbandosemparar.
Laerte se dirigia a seus aposentos, já imaginando o furor da derradeira batalha e elepercorrendo às pressas os corredores do palácio em busca do imperador apavorado. Tiraria amáscara,fitariaseusolhos,contemplariaseumedoaocompreenderquemeleera.
Edepois?Sentiu uma estranha aflição ao se imaginar cravando a espada no peito do tirano. O que
aconteceriadepois?Chegouàportadeseuquarto. Jánãohavianenhumalunonoscorredores,estavamtodosno
refeitório.PortersidosagradocavaleiroehaverfrequentadooscamposdebatalhanacompanhiadogeneralDaermon,foradispensadodecumprirarotinacoletiva.
Estendeu a mão e girava a maçaneta quando sentiu, de repente, um forte empurrão que ojogouparadentrodoquarto.Foipararnabeiradadacama,atordoadopelochoque.Atrásdele,aporta se fechousemqualquer ruído.Levou instintivamenteamãoaopunhodaespada,masnãotevetempodedesembainhá-la.Umpunhofortíssimoagarrouseuantebraçoe,numgestoperfeito,torceu-ocomfacilidade.Laertegritou,sentindooombrolancinarquandooantebraçoencostounaomoplata. Levantou-se com um salto, sem pensar na dor, apoiou-se no inimigo e o empurrou,
fazendo-oarecuar.Empurrou,empurrou,empurrou,eosomdeseuscorposjuntoàportafechadamalcobriuseugrito.
O homem, aturdido, largou-o por um instante, o suficiente para Laerte se soltar, o ombropegando fogo. Deu meia-volta e reconheceu sem grande surpresa o rosto magro de Logridescondidopelacapaverde.
Seoassassinopessoaldo imperadorestavaaliparamatá-lo,havia sidodescoberto?Não tevetempodeseperguntarmaisnada.Logrid,emabsolutosilêncio,puxavaduasadagasdocinturão.Laerteevitouoprimeirogolpeporpouco, inclinando-separa trás,a lâminatraçandoumriscodesangue em seu rosto. Os ataques seguintes foram rápidos, precisos, e teriam sido mortais, nãofosse o fato de Laerte ser flexível o bastante para se esquivar.Desembainhou a espada no exatomomentoemqueoassassinose lançava sobreele.A lâminaconteveasadagascomumestalidoseco.Arrancou-asdasmãosdeLogridnumgesto súbito edesferiu-lheuma joelhadanabarriga.Contendoumgemido,oassassinosecurvou,dobrandoumbraçosobreocasacodecouro.
–Sensacional–sibilouentredentes.Para Laerte, era agora ou nunca. Abater a espada e derrotar o inimigo. Seu coração estava
disparado,o rosto latejava,oombroardia.Aoerguerobraçoparaogolpe, já seviavencendooduelo.
Aindacurvado,Logridestendeuamãolivreemsuadireçãoe,comumaforçaincrível,jogou-onaparedeoposta.Elebateunoparapeitoda janela antesde cair sobre amesa ao ladoda cama,cheiadelivros,quecedeusobseupeso.
–Faztempoqueeusonhavaenfrentarvocê–murmurouLogrid.Comumgestogracioso,puxoua espadae foi emsuadireção.Umador lancinantevaravaas
têmporas de Laerte. Em meio aos pedaços da mesa, apoiou-se nos cotovelos, cheio de raiva einsolência. Suaúnicaopçãoera tentardominaroSoproeusá-lo semsepoupar. Inspirou fundo,sentindoosanguepingardasnarinas.Desúbito,otempopareceupassarmaisdevagar,omundose tornou mais claro, como se dentro de Laerte ressoasse cada parede, cada objeto, cada som,incluindo as batidas do coração de Logrid. Esquecendo a dor que oprimia seus pulmões, saltoufeitoumlobosobresuavítima.
Então o duelo recomeçou, com um terrível embate. Estocadas, defesas... Os dois homens semoviamcomelegâncianoespaçodiminuto.Voavamlascasdemadeira,asparedesseesfarelavamsoboimpactodeseuscorpos,maselescontinuavamgolpeando,esquivando,revidando,semquenenhumlevasseamelhor.Eramcomodoisreflexostentandosemesclar.
Um golpe mais forte fez Laerte se afastar. Imediatamente posicionou a espada de lado,tentandoapararmaisumainvestida,noentanto,parasuaimensasurpresa,Logriddeixou-secairno chão, a perna estendida, e o derrubou com um golpe preciso. Laerte se estatelou, batendobrutalmente a cabeça na beirada da cama. O teto oscilou, sinos se puseram a tocar... O Soprocomeçavaaescapardoseucontrole,machucandoseucoração,eosanguenãoparavadeescorrerdeseunariz.Pareciaquesuaspálpebrastinhamviradochumbo.
MalvoltaracompletamenteasiquandoovultodeLogridselançousobreele.Comosjoelhos,imobilizou os braços do garoto, grudando-o ao chão, enquanto umamão enluvada tapava sua
boca.A lâminadaespadaperfurouseuombroe seugrito, sufocadopela luva, sóressoounasuacabeça.Umdilaceramentopercorreuseucorpo,obrigando-oasearquear.OdesesperobrilhouemseusolhosquandoviuosorrisosarcásticodeLogridacimadele.
Não podia morrer, não ali, não naquele momento, não assim. O assassino continuavaabafando seu grito commão firme, sussurrando algo incompreensível com uma voz sibilante...insuportável,quasehipnótica.Queelesecale!Eleeador!Quetudoacabe...
Não,Laertenãopodia soçobrar.Precisavarespiraraplenospulmões, reagirà lâminacravadaemseucorpoquelhecausavaumverdadeirosuplício.Lutar,eraissoqueeleaprenderanosúltimosanos, lutar para vingar sua família. A assombrosa imagem do pai pendurado na forca operturbava.O vulto do irmãopenduradonuma corda, os gritos damãe e de sua irmãzinha, queelestinham...
Não pôde conter as lágrimas. A raiva lhe dava forças. O desespero não ia detê-lo, nem oabandono,muitomenosaqueladrogadedor.Nãopodiadesistir!SuavontadesuplantouoSopro.
UmacadeiraseespatifoucomviolêncianacabeçadeLogrid,partindo-seemmilpedaços.Meioatordoado,oassassinosevirou.Segurandoumpédacadeiraquebradanamão,Aladziodeuumpassoparatrás,lívido.AoliberarumdosbraçosdojoelhodeLogrid,Laerteaproveitoueergueuamãobemaberta.OSoprofezsuaparte.
Logridfoierguidonoar.Masnãocaiudevolta.Ficouali,girandodevagar,umamãonopeito,osdedosdobradoscomosetentassemarrancaralgocravadoemseucoração.Laertesentiasuador.Vivenciava, suportava, desejava essa dor. Via o coração do assassino como se fosse um frutoatingidoporespasmos,umalaranjaaserespremidacomamão,umacoisaaseresmagadacomosdedos.Àmedidaqueoiaapertando,viaavidaseesvairlentamentedocorpoquelevitava.
Quando só restouuma sensação gelada e a cabeça de Logrid se inclinoupara o lado, Laertebaixouobraçoedesmaiou.
Umavozdistanteotiroudaescuridão,quandosóoqueelequeriaeraafundarnela.Aspalavrassefizerammaisintensas,maisincisivas.Opiso,estalando,pareciaumaflorestasendoderrubada.
–Rã?Rã?–Laerte–murmurouelecomvozrouca.Esseúniconomepronunciadoeracomomilagulhasarranhandosuagarganta.–Não,nãosemexa–disseavoz.Entendeutardedemais.Játentavaselevantareoferimentoemseuombrootrouxedevoltaà
realidade.–Tireiaespadaetenteifazerumcurativorápido.Seusdoispupilos,Dun-Cadal...Queironia.Ajoelhado a seu lado,Aladzio o fitava com imensos olhos tristes. Laerte deuumaolhada em
seuombro.Estavaenroladonumpedaçodelençolmanchadodesangue.
Seusdoispupiloslutando...Emqualdelesvocêapostaria?Mediga,Dun-Cadal.Emqualdeles?–Vocêficoudesmaiadoalgunsminutos,eufizoquepude...–gaguejouoinventor.–Obrigado.Apoucosmetros,Logridestavacaídonochão,deitadosobreacapaverde,umapernadobrada
por baixo do corpo, a mão ainda torcida sobre o peito. A capa... Aladzio ajudou Laerte a selevantar.
–ÉaMãodoImperador,nãoé?–Era–corrigiuLaerte,suspirando.–Aindabemquevocêestavaaí.–FoiPage–disseAladzio,semjeito.–Pagemepediuparaficardeolhoemvocê.Precisafugir,
Rã. Se o imperadormandou seu assassino atrás de você, não é seguro ficar aqui. Eles devem terdescobertoalgo...
–Não–falouogaroto,determinado,comumavozchiada.CaminhouatéocorpodeLogrid.Eraagoraoununca,fugiroulutar,desistirouvencer.Comoarã-de-Erain,queseaproximavao
máximopossíveldesuaspresas,eleiaadotar,pelaúltimavez,aaparênciadeseusinimigos.Efoiassim...Apesardoombroferido,apesardocansaçoedaopiniãocontráriadeAladzio......assim...Vestiuocasacodecouro,calçouasbotaseas luvas.Ecobriu-secomacapaverdedaMãodo
Imperador,escondendoorostocomocapuz.Seuplanonãoera,desdesempre,seroassassinodoimperador?
–Foiassimquevocêteveaideia–repetiuDun-Cadal.Sentadonasoleiradaporta,contemplavaoscacosdocântaroespalhadosnocascalho.Orapaz
continhasuaemoção,desfrutandodapazdacidadeaseuspés,iluminadapormilluzes.Massália,ànoite,faziasuastochasdisputaremcomasestrelas.
Logrid!–Foivocêqueeuvi–recordouogeneral,baixinho.Podre!Imundo!LOGRID!–VocêachouqueestavaamaldiçoandoLogrid,masfoiamim,Dun-Cadal.Aindapodiavê-lo,escoltadopelossoldados,lançando-lhemilinsultos.Desviaraosolhos,não
suportandofitaraslágrimasdeseumentornemseurostodistorcidopeloódio.– Eu estava ferido, Pernalta – explicou, com voz grave. – Tinha a impressão de estar caindo,
rolando...–Inspiroufundo.Haviasidotãodoloroso,tãotraumático,que,maisdoquelembrar,elereviviacadainstante.–Eutinha14anosquandosalveisuavida.Naqueledia,malcompletara17.Oimperador estava a apenas alguns passos de distância.Apenas alguns passos. – Fez umapausa,entãoprosseguiumedindocadapalavra:–ElesenforcarammeupaiemeuirmãonasSalinas.
–Eusei...Eraalei–resmungouogeneral.–Essasualeitambémmandouestuprarminhamãe?Lançou um olhar feroz ao velho cavaleiro. Dun-Cadal disfarçou a surpresa mostrando um
semblante fechado. Laerte sabia que seu mentor, no fundo, só agora descobria a terrívelcondenação que se abatera sobre os Usters. E isso não tinha nada a ver com ideias, desejos demudança,nascimentodeumaRepública,não...
–Minhairmãtinhaapenas4anos...–contouLaertecomavoztrêmula.Horrores que os poderosos justificavam com cinismo, explicando a quem quisesse ouvir que
guerra limpa não existia, que violência gerava violência e a crueldade era, se não desculpável,simplesmente inevitável.Comumnónagarganta,deuumpassoemdireçãoaDun-Cadal, e emseusolhosbrilhavamlágrimascontidas.
“Bum!”–Foipregadanumaportacomoumrelesanimal.“Bum!Bum!”Virou-see,seacalmando,enxugouosolhoscomamão.–Euesperei.Nodiaseguinte,euesperei...–Rã–murmurouogeneral.–Eunãosabia,eu...–Nodiaseguinte,espereioataquecomeçar–continuoucomosenãotivesseescutado.Logrid!Fiquecomigo!Precisodeixaracidadeimediatamente.Inclinou-separaDun-Cadal.Logrid?–Naquelanoite,descobriquantoafamíliaReyeseaminhaestavaminterligadas...
9
Ofimdeummundo
Umdiaosenhorvaientender.
Podetercerteza.
Aindavouseromaiorcavaleiro
queestemundojáviu.
–Logrid?Era uma voz trêmula, fina... surpreendentemente fina para um homem que reinava sobre o
mundo. O que Laerte tinha diante de si não passava de um vulto franzino usando uma longatúnica preta e umamáscara dourada no rosto. Nomeio da sala do trono vazia, iluminada porexplosõesquejogavamescombrosepoeiranasacada,oimperadorAshamIvaniReyesperdiaseuesplendor. Um dos braços estava torcido à frente do peito, as costas tão tortas que um ombroparecia mais alto que o outro. Em meio ao som dos canhões, não passava de um assustadomonstrodeextremafeiura.
Nodiaanterior,Laertereprimiraavontadequesentiadeestrangulá-lo,decravarumaespadaemseucorpo.Apesardoímpeto,nãosesentiracapazdeenfrentaraguarda.
Entãodecidiraesperar.Descansara.Assimque foramouvidososprimeiros tirosde canhão e os generais abandonaramopalácio
paradefenderas fortificaçõesdeÉmeris,eleagarrouaoportunidade.Mesmocomoferimentonoombro transpirando sob o curativo e a dor lancinante persistindo, estava decidido a não recuardessavez.
–Logrid?Oqueestáfazendo?Apavorado,Reyes entrara num rompante na sala do trono. Estava aindamais apavorado ao
verLaerteparadoàsuafrente,aespadaemriste.–PrecisamossairdeÉmeris,astropasdotalLaertedeUsterestãodiantedosportõesdacidade,
nãoposso...
O capuz do rapaz caiu sobre os ombros, revelando um rosto encharcado de suor, um olharferoz.
–Qu...Quemévocê?–gaguejouoimperador,recuandoumpasso.–Amáscara!–ordenouLaerte.–Tireamáscara!Queroverseurosto!–Rã!–reconheceuoimperador.–Oaprendizde...Pelosdeuses!–Amáscara!–repetiuorapaz,erguendoaespada.Oclarãodacidadeemchamasbailavasobreascolunasdemármore.Paraalémdasacadaeda
copadasárvores,espiraisdefumaçapretaseerguiamnumcéuestrelado.Asparedestremiamsobostirosdecanhãodosinsurgentes.Não,nãoeramaisumarevolta,eraarevolução.
–Mostreseumalditorosto!–Porquê?Oquequerdemim?OndeestáLogrid?NãopodetermatadoLogrid!–apavorou-se
Reyes,recuando,aestranhaformadeseubraçomovendo-sesobatúnicapreta.Temendo que desembainhasse Eraed, Laerte se lançou sobre ele, deixando explodir sua fúria.
Reyes,naprecipitação,tropeçouecaiunochãoaosprantos.Suamáscaracaiu,emitindoumruídoaocairnas lajotaseseabrindocomumarachadura.Comorostoàmostra,nãotinhamaisnadade imponente, nada de digno, e muito menos de imperial. Não passava de um pobre homemassustadoerguendoosbraçosnumgestodedefesa.Masoataquetemidonãoaconteceu.Laerteseimobilizara,estupefato.
Umamãoenluvadaabriaosdedosemsuadireçãoeaoutraseresumiaaummerofarrapodecarne,disforme,cobertodeinchaçosesbranquiçados.
–Não,não...–suplicavaReyes.–Porfavor,não...–Monstro...–sussurrouLaerte,encarandoohomemqueeletantoodiara.Seusemblantenãotinhanadadehumano.Eramsóburacosecavidades,calombosecicatrizes.
Um rostomaltratado, devastado por uma doença terrível. Sobre o olho direito, caía a pálpebra.Entreasfacesmarcadasdevaríola,onariznãoeramaisqueduasfendaspretasacimadeumlábioleporino.
–Nãomemachuque...–choramingava.–Meu pai jamais suplicaria – afirmou Laerte, cuspindo no chão. –Não suplicou quando foi
enforcadonasSalinas!OsolhosdeReyessearregalaram,comosecomeçasseaentender.– Eminhamãe, pediu que não a machucassem? – bradou Laerte, avançando sobre ele. – E
minhairmã?!Reyes baixou a cabeça tal qual um cachorro com medo de apanhar, o corpo sacudido por
sobressaltos.–Eunãoqueria...–confessouoimperador.–Nãofuieu,eu...–Foivocêqueateouofogoquedeu inícioaestaguerra,Reyes!Vaipagarportudooquefez!
Vaipagar!–Eunãoqueriaisso,nãoqueria–repetiuele.–Vocêmatouminhafamília!–estrondouLaerte.Ouviram-se,emresposta,gritosecanhonaços,seguidospelosomdeespadasseentrechocando
nasruasdeÉmeris.Osinsurgentestinhamentrado.Acidadeinteiraardiaemchamas.AospésdeLaerte,oimperadorimploravacomoolhar.–Olheparamim,nãosouissoquedizem.Souumpobremonstroqueseescondeatrásdeuma
máscara de ouro paramanter alguma compostura... –Grossas lágrimas escorriam por seu rostoesburacado.–Nofundo,nãosoumau!Sempreagipelobemdomeupovo,nuncaordeneiquesuafamíliainteirafosse...Sóoseupaifoijulgado!Sóelemeameaçava.
Mas Laerte não tinha condição de perdoar nada nem de compreender seusmotivos. Jovem,tendia mais para o arroubo do que para a razão. Embora sentisse pena daquela criaturamonstruosa, repetia para si mesmo que seu dever era acabar com aquilo. Rodopiou a espada,ameaçador, contendo uma careta de dor. Seu ombro sangrou ainda mais e o líquido quenteencharcouocurativo.Osanguecriavaumamanchasobocasacodecouro.
Hesitava, trêmulo e febril, apontando a espada para o homem encolhido. Dar mostra deindulgência? De piedade? Por aquela coisa disforme a seus pés? Esperava por aquele momentohaviatantotempo...
Reyeschoravacomoumacriança.Semprepensaraqueele sópodia inspiraródio,maisnada.Umhomempoderoso,um tirano,
queeleiafitarnosolhosnahoradecravaraespadaemseupeito.–Não, eu imploro,Rã, eu imploro... Foramelesquemeobrigarama fazer isso,disseramque
eraprecisotomarasSalinas!Nãomemate,Rã...Nãomemate...–MeunomeéLaertedeUster!–fulminouorapaz.Umavozigualmenteforteressoounasaladotrono:–Eisquecaiumamáscara!Mantendo a espada apontada para o imperador prostrado, Laerte se virou de leve e viu
entraremcercadedezsoldados.Quatrohomens,dearmadurabempoucomarcadapelocombate,fechavamocerco.NãofoidifícilreconhecerNégusesuacorpulência,Bernevineseuandaraltivo,Rhunstagesuapeledeursonosombros,e...
–CapitãoAzdeki!Salve-me!–ordenouoimperador,estendendoasmãosparaele.–Esseloucoquermematar!Defenda-me!
Azdekiavançou,examinandocomdesdémorostodeformadodeReyes.Deuumacuspidanochãocomoresposta.
–Que ironia–pensou emvoz alta. –OsReyes e osUsters... aqui, juntos.Tudo isto começoucomelesevaiterminarcomeles...
Ossoldadosformaramumcírculoàsuavolta.Comospolegaresnocinturão,Rhunstagfoiparaadireita,Bernevin,paraaesquerda.Nadamais importavaparaLaerte,anãoserrostoressequidodeÉtienneAzdeki.
–CapitãoAzdeki!Façaalgumacoisa!–ordenouReyes,arrastando-sepelochão.Laerte,desafiador,apontouaespadaparaeleeoimperadorseimobilizou,olhandoaflitopara
ossoldados.Nenhumdelessemexia.Osprópriosgeneraisoignoravam.– Laerte de Uster, o filhomais novo de Oratio... Pensei que você fossemais velho. Foi uma
excelente estratégia, essa de transformá-lo num mito. Meurnau sabe que você estava conosco?
Lutandocontraele?Sentiafebre,oombrolatejava.Osuorpingavaemsuatesta.–Azdeki!–irritou-seReyes.Suarazãooscilavafeitoummaremtormenta.Precisavaaguentarfirme.–Nãoseaproxime!–ameaçouLaertecomumaexpressãodeira.Apontou a espada para o imperador a seus pés. Azdeki, com o semblante sério, a mão no
punhodaespada,nãoreagiu.Permaneceucalmo,imóvel.Láfora,oscanhõesseguiambramindo.–Faça isso–sugeriu,designandoReyescomacabeça.–Dêumfimàvidadessa...–Fezuma
pausa,crispandooslábioscomnojo.–...coisa–concluiu,cerrandoosdentes.Arquejando,Reyesporpouconãodesabouporcompleto.Deseuolhodevoradopelosinchaços,
saíramlágrimasdesangue.Nooutro,podia-severopânico.–Rhunstag?–chamou,hesitante.–Bernevin?Négus...?Ajudem-me...Seu olhar apavorado encontrava um paredão. Os generais o fitavam sem qualquer emoção:
nem raiva,nempiedade. Jánãopodia contar comeles, queo renegavamcom seu silêncio e suaimobilidade.
–Piedade...– Por quê? – inquiriu Azdeki, sem nem olhar para Reyes. – Sustentava o olhar de Laerte,
respondendoasuairacomumacuriosidadegenuína.–PorqueseuniuaDun-CadalDaermon?–prosseguiu.–Porquementiuessetempotodo?
–Estánahoradeacabarcomisto,Étienne–impacientou-seNégus.Laerteolhouparaele,quedesviouoolhar.Oamigodeseumentor.Tambémeleeraumtraidor.
Sentindo um nó na garganta, preocupado, Laerte pensou emDun-Cadal. Com quem o generalaindapodiacontar?
–Agora–insistiuBernevin.–PrecisamoscuidardeMeurnauantesqueacabemoscombates.Nochão,Reyeschoravatantoquenãoconseguiamaisfalar.–Vingança,nãoé?–indagouAzdeki,franzindoocenho.–Foiporissoqueesperou?–Meurnauesuastropasestãochegandoaopalácio,meusobrinho!–interveioumavozroucae
pesada. – Se não o matarmos como planejado, Meurnau vai ficar com a vitória, e nós, semlegitimidadenenhuma!
Laerte percebeu uma movimentação às suas costas. Surgindo de trás das colunas, um vultoobeso mancava, seguido por um homem franzino que se apoiava numa bengala e dava umarisadinhanervosa.
–Azinn–guinchouReyes.–Vocêtambém...Bernevin se aproximou em seguida, puxando do cinturão uma adaga cintilante. Com mão
firme,segurouanucadoimperadoreencostoualâminaemseupescoço.Laerte ficou paralisado, lançando olhares frenéticos à sua volta. Todos pareciam
surpreendentementecalmosenquanto,láfora,Émeriscaíanasmãosdosinsurgentes.–OtempodeMeurnauacabou,temosqueserrápidos–ordenouAzinn,fitandoLaertedeum
jeito estranho. – Já que o filho de Oratio está do nosso lado há tanto tempo, não vai dar paratransformá-lo no traidor da revolução – concluiu, passando amão na cabeça calva, onde se via
umaúnicamechabranca.Aqueleshomensiamsobreviveràguerra,seapropriardavitória,setornarosheróisquetinham
lutado contra o Império. Estavam todos ali ao seu redor, examinando-o, e, a poucos passos, aadagadeBernevinestavaprestesadegolarReyes.Pelorostodoimperador,marcadopelavaríola,escorriam lágrimas. Em suas faces refletia-se o clarão distante das chamas que consumiam seuImpério.Estavaperdido.Recostadonumacoluna,amãoapoiadanabengala,omarquêsdeEnain-Cassartcontemplavaacenacomdeleite.
– Tínhamos certeza de que havia sobrevivido,mas achamos que estivesse à frente da revolta.Comopodeestaraqui?–espantou-se.
– Os registros. – Azdeki sorriu, meneando a cabeça, satisfeito. – É isso. Por isso MeurnauqueimouosregistrosdeForted’Aed.Paraesconderaidadedele.
–Bem,aíestáumespinhofácildetirar–tranquilizou-seAzinncomummuxoxo.–OmitodeLaertedeUsterperdeusuaaurademistério.
–Vocênosfoiútilatéofinal–admitiuAzdeki,fitandoorapaz.–Laerte,Rã...sejacomofor,nofimdascontasvocêderrubouumImpério...sozinho.
Pareciasincero,meneandoligeiramenteacabeça,umestranholamentonosolhos.–Eusouseuimperador–disseReyesderepenteemmeioaochoro.–Os temposmudam,Reyes–argumentouÉtiennecomcalma.–Os temposmudam.Opovo
precisadeumdestinodiferente,umdestinoquesóosdeusesdeterminam.Quantoaoseu,terminaaqui.Oqueficaparavocêdesuapassagemporestemundo,Reyes?ÉcomodizemosmongesdaOrdemdeFangol:“Chegaumdiaemnossavida,ocruzamentodaquiloquefomoscomaquiloquesomos e aquilo que seremos.Nessemomento, ao término de tudo, é que decidimos qual será onossofim.Comorgulhoouvergonhadatrajetóriapercorrida.”Paravocê,Reyes,essemomentoéagora. Lembra-se da coisa imunda que sempre foi, de tudo aquilo que, afinal, deixou de fazer?Sente orgulho de seu reinado, Reyes? Ou vergonha? Agora que o povo chega às portas de seupalácio...
Laerte permanecia calado. Seu semblante conservava uma expressão cheia de ira enquantofitavaoraoimperador,oraocapitão.Oquefazer?Seráqueiafracassaroutravez?Inspiroufundoeoferimentoemseuombroarrancou-lheumacaretadedor.
SehouveumúnicoheróinasSalinas,gravemapenasestenome:Dun-CadalDaermon.Dun-Cadal... Ele conseguira se safar daquela situação tão difícil. Sozinho, nomeio de tantos
soldados,Laertesótinhaumaescolha.–Laerte... – chamouo imperador comvoz trêmula. –Forameles... Forameles quedecidiram
sobreoseupai.Eleséquemeobrigaram.Hojeseiqueelenãofoiumtraidor!–Ergueuosolhos,comosedesafiasseBernevin.–Logrid...Logridmeavisou,masnãoacreditei.Eleviavocês comorealmentesão:desprezíveis.ÉoLivro,nãoé?Eleimaginavaque,maiscedooumaistarde,alguémia descobrir sua existência e querer ficar com ele.Vocêsmentiram paramim a respeito deUster.QuemcontouparavocêssobreoLiaberDest?Quem?
–OpróprioOratio–murmurouBernevin,paraprovocá-lo.–Bernevin–disseAzdekisimplesmente,estreitandoosolhos.
Nãoprecisoudenenhumaoutrapalavraparaqueonobreentendesse,entãoalâminacortouagarganta.Ouviu-seaolongeumaexplosão,acompanhadadegritos.Osanguejorroudopescoço.Semumsom,lágrimasaindamornasnocantodosolhos,AshamIvaniReyescaiudecaranochão.
Laertefezummovimentoderecuo.Osguardasimediatamentebrandiramsuaslanças.AmãoerguidadeÉtienneAzdekimandouqueparassem.
–OLi...Liaber...–balbuciouLaerte,confuso.–Ah,vocênãosabia!–exultouAzdeki.–Nemfaziaideia?–Meusobrinho,temosque...–Quemdecidesoueu!–bradouele,desafiandoAzinncomumolharferoz.Ninguémprotestou.Pelaprimeiravez,osemblantedeÉtiennesealterou,mostrandoumafúria
dedarmedo.Comas feiçõesaindatensas,encarouLaerte,umamãotamborilandonopunhodaespada.
–OprimeiroReyes, aquelequederrubouCagliere, entregouoLivroSagrado aos cuidadosdesuafamília.Duranteséculos,osUstersoguardaramemsegredo.Atéqueseupai...
–Vocêsomataram...mataramtodoseles...“Bum!Bum!”Viu a imagem de Naïs... sua Naïs... seu rosto doce, seu delicado cabelo commechas louras.
Recordou amão firmedo pai, o anel de brasão em seudedo.Viu o olhar azul-escuro do irmão.Sentiuoperfumedamãeencobrindoocheirodepólvoraquepenetravanopalácio.
–Vocêpelomenossabequemeraseupairealmente?–perguntouAzdeki.Umhomemamado,umhomembom,umletrado,umesgrimista fabuloso.OratioMontague,
conde de Uster e senhor das Salinas. Laerte esqueceu-se da febre, do ombro que latejava, dasbatidas descompassadas que sentia nas têmporas.A raiva funcionavamais que a calma que seumentor tanto prezava. Um suspiro foi suficiente para ele perceber o ritmo dos batimentos dossoldados que o cercavam. Seu nariz começou a sangrar.A dor pressionou sua cabeça, seu peito,mastinhacertezadequeconseguiriamanterocontroleantesdeseraniquiladopeloSopro.
–Tínhamosquefazerisso–justificou-seÉtienne.–TínhamosquerecuperaroLiaberDest.Eleéperigosodemaispara...
Laerte lançou-se sobre o soldadomais próximo, cortando o ar com a espada e abrindo umaferidaemseupescoço.Osoutros, surpresos,hesitaramuminstanteantesdeavançarem.OuviuozunidodaespadadeAzdekisendopuxadadabainhaeoruídosutildocasacodeseutiodandoumpassoparatrás.
Ocalorque inflamavaseuspulmõesnãoodeteve.Nãotinhaalternativa,precisavadominaroSopro, sentir a vida ao redorparamelhor ceifá-la.Ajoelhou-se, aparouuma lança coma espadaerguidaetornouabaixá-laparaatingiraspernasdeumsegundosoldado,cortandoseusjoelhos.
Cada gestoparecia tãonatural, evidente, apesardadorque lhe causava.Deu socos, deslocoualgumas rótulas apontapés, transpassou armaduras coma espada sem fraquejar. Seusmúsculosqueimavamenquanto,umporum,oscoraçõesparavamdebater.OSoproiadestroçá-lo.
–Azdeki!–berrouBernevin.–Podridão!–esbravejouNégus.
–Todoscomigo!–ordenouÉtienne,enquantoseutioeoanciãodeixavamasala,estupefatos.Laerte titubeava no meio de dez cadáveres, ofegante, o olhar vidrado mas determinado. Os
bombardeios de canhão estavam mais próximos. Junto à sacada, as cortinas vermelhasesvoaçavam.As árvores estavam em chamas. Por pouco ele não desmaiava a cada instante. Seucorpo inteiro se tornavaumúnico ferimento.Sóavisãodosquatrooficiaiso ajudavaa aguentarfirme, alimentando sua ira. Então percebeu quando os homens que haviam matado seu pailevantaramamãoparaele.
Uma força tremenda correu pelomármore, virando o cadáver do imperador.Mal teve tempode,comaspernasencolhidas,cobrirorostocomosbraços.Foicomoumatempestade.Aslajotasquebravam-sesobseuspésenquantoeleeraempurradoparaasacada.
–Eleépersistente!–exclamouRhunstag.–Comoconsegue?–espantou-seNégus.AimagemfugidiadesuairmãcaçulasurgiuaosolhosdeLaerte,dando-lheforçasparadarum
passoàfrente.Então,bruscamente,ajoelhou-seemartelouochãocompunhofirme.Umarachaduraemarcopartiuomármore,espalhandoreluzentesestilhaços.Négusvoouatéa
porta,batendoacabeçanamadeira.Osoutrostrêscaíramdecostaseescorregaramváriosmetrossoltandogritosroucos.Laertereduziuoesforço,oolharvidradobuscandoumasaída.Cadapassoque dava era uma tortura, cada gesto lhe arrancava um gemido. Tudo girava à sua volta. Asacada...Atrásdoparapeitodepedraardiamemchamasascopasdasárvores.
–Uster!–bradouAzdekiàssuascostas.Laertesevirou,quasecaindoparaolado,aespadaemsuamãosearrastandonopiso.–Dun-Cadal...–murmurou,comoumpedidodesocorro.–Pernalta...Azdekivinhaemsuadireçãoapassosrápidos,aespadaemriste.Tentouergueraarma,maspesavademais.Osangueescorriadeseuslábios.Suaspernasmalo
sustentavam.–Porquê?–balbuciou,antesdeconseguirgritar.–Porquê?Ouviu-seumzunido.Azdekiiadesferirogolpe.Laertetentouaparar,maseratardedemais.A
lâminajávoava,reluzindo,nadireçãodeseurosto.Nometalbrilhante,via-seanítidaimagemdeumabaladecanhão.
O ardor da explosão apartou os dois homens. Laerte desmaiou ao ser jogado por cima doparapeito.Caiuvertiginosamente,esbarrandonospinheiros,açoitadopelosespinhos inflamados.Nãoouviuseusossossequebraremquandobateunochão.
Nuncasoubequantotempoficouali,aopédospinheirosemchamas.Sóoquehaviaeraadordeseucorpoesmigalhado.Aoredor,apenasfantasmas.
Sentiu que o erguiam do chão. Seus gritos imediatamente abafaram as poucas palavras queouviu.
Foilevadoparaumquartosecreto.Cuidaramdele,enquantoeleurravamortalmente.Sangueelágrimas se misturavam. Várias vezes foi tragado por uma escuridão fria e premente, da qualpensouquenuncamaissairia.
–Nãovaisobreviver...
Acadavezqueafundavaparaamorte,vozesprendiamsuaatençãoeotraziamdevoltaaseusofrimento:
–Façatudooqueforpossível,Aladzio!–Sóqueeunãosoumédico,souinventor!–Vocêéaúnicachancequeeletem.Quantomaistinhaasensaçãodeestarvoltandoàvida,maisavidalheerainsuportável.Feita
dedor,ferida,dilaceramento...–QuerdizerqueeleéofilhodeOratio...Passadoalgumtempo,conseguiudarumnomeàsvozes,distinguirseutimbre,mesmoquesó
tivesseouvidoumadelasapenasumavez.–Aguentefirme,meuamigo.Vocênãovaiserummerojoguetenasmãosdoinfortúnio.Rogant.SuamãoquentepareciatocaradeLaerte.–Eu falei quenão era umaboa ideia,mas vocênãoquismeouvir. Foi se lançarna bocado
lobo.Paraquê?Paraenfrentarquantoshomens?AvozdeAladziopareciaumadocemelodia:–Segurem-no!Segurem-no!Elegritava.Berrava feitoumporcosendodegolado.Chorava.Sóqueriaumacoisa:queaquilo
tudoacabasse,queseucoraçãoparassedebaterequecadapartesuaseextinguisse.–LaertedeUster,vocêéumgrandecavaleiro.Nãopodenosabandonar...Quandosuaconsciênciaemergiadanévoa, tevea sensaçãodeestar sendomarteladoporum
ferro recém-saído da forja. Seus nervos ardiam. Continuava, no entanto, a voltar à vida. Suasviagens ao reinodas sombras agora erampontuadaspor lembranças vibrantes comoa cordadeumarco.
Madog!MADOG!Vejamos...VocêmeapelidoudePernalta,nãofoi?Voulhedarotroco. Jáquevocêparecegostar
dessesbichos...Vaiser...Rã...Vouchamá-lodeRã...Eu amo você. Sempre vou amar. Sempre.Não se esqueça demim.Não se esqueça de nós. Rã!
Nuncaseesqueçadequemvocêé...Rã!Nuncaseesqueça!Euamovocê!...Esyld...Quandoabriuosolhos,umcalorosoraiodesolbrincavaemseurosto.
10
Fúrianocoração
Lançadoaofogo,nãoqueima.
Passadoaofiodalâmina,nãorasga.
Éfeitodomurmúriodosdeuses
enada,jamais,irádestruí-lo.
O livroerapesado, tinhaumacapadecouroenvelhecidoarrematadademetal.Era tãopesadoquantooditamequecontinha.Pareciaexcessivamentegrandenasmãosdomeninoeemsuacapaestavamdesenhadascomgraciosidadeestassimplespalavras:LiaberMoralis.
–Agoraquejásabeler,precisadepalavrasparaalimentarseutalento.Ajoelhadoàsua frente,umhomemaltooobservava.Barba incipiente,cabelorecém-aparado,
usava uma fina camisa branca e um curto casaco preto. A tradição pedia que usasse um amplomanto de gola forrada,mas o conde Oratio de Uster não era dado a ostentações. À luz do solmoldada pela ampla janela de seu gabinete, oferecia ao filho caçula um precioso presente deaniversário:oLiaberMoralis,oalicercedetodaasociedadeimperial.
–Meupaimedeuquandotinhasuaidade–confessouOratio.–Esselivrorevelaporcompletoocoraçãodoshomens.Oqueécertofazer,dizer,acreditar.
Naqueledia,completava8anosemalcomeçavaamanejaraespadacomomestredearmasdeForted’Aed.Seupai,hábilesgrimistaegrandeletrado,faziaquestãoqueeletivesseumaeducaçãoequilibrada, em que a espada jamais tivesse primazia sobre as palavras e sem que os escritos oafastassemdaartedaguerra.Essasduasáreaseram,paraele,essencialmenteligadas.SegundoosUsters, era assim que deviam ser as elites: capazes de defender tanto pela espada como pelapalavra,optandoporumaououtraconformeasituação.
–Suamãeeeujálhefalamossobreele,estálembrado?–Estou–assentiuLaertecomumavoztímida.Contemplavaovolumequeseguravaemsuasmãozinhasmiúdas,hesitandoemfolheá-lopor
medo de derrubá-lo. A mão carinhosa do conde em seu ombro o conduziu até a escrivaninha,ondeomeninodepositouolivrocomumruído.Entãolevantouacapaesepôsaviraraspáginas,descobrindolinhasemaislinhasmanuscritaseilustradascomestranhasiluminuras.
–A escrita dosmonges daOrdem de Fangol – explicou seu pai, inclinando-se atrás dele, asmãosnaescrivaninha.
Numgestoprotetor,roçoucomoqueixoacabeçadomenino.–Por que eles sãoosúnicos quepodemescrever? –perguntouLaerte, sem tirar os olhosdas
páginas.Cada início de parágrafo era enfeitado com um desenho colorido representando cenas
misteriosas. Um homem de perfil se ajoelhando diante de uma dama, um camponês com umcordeirinhonosbraços,umcavaleiroseimpondoentreumafamíliaassustadaenâagasbelicosos...
–Ora,vocêpodeescrever–corrigiuOratio.–Eumesmoredijomissivas,ordensparaaguarda.Tambémescrevi cartasparaa suamãe,na época emqueelanãoquerianadacomigo.Agora,oslivros,ondesobreviveosaber...osmongesdeFangoléqueseencarregamdecopiá-los.
–Masàsvezeseuovejoescrevendolivros...–É...–Oratio,contendoumsorriso,pareciaestranhamentesemjeito.–Édiferente–justificou-
se.–Porenquanto,amaioriados livroséobradosmonges,porque,paraeles, livrossãodivinos.Entende?
–Foramosdeusesqueinventaramoslivros?–Foram–afirmouopai,contendoumarisada.–Entreoutrascoisas,meufilho,entremuitas
outrascoisas.Omeninofezummuxoxo,frustradocomaquelaslinhasqueeram,paraele,vaziasdesentido.
Nãoconseguiaentenderaspalavras,quepareciamtãocomplicadas,eofraseado,tãoempolado.–Nãoconsigoentendertudo...Vez ou outra, porém, identificava termos familiares, dogmas já inculcados pelos sermões na
igrejadeForted’Aed.–Éassimmesmo– tranquilizou-oopai.–Àmedidaque forcrescendoe lendo, entenderá.A
ética deste mundo, o que é certo, o que é errado... Os primeiros monges redigiram esse livrobaseadosnoquediziaoLiaberDest.
OLivroperdido...oLivrodoDestino.Umalendaquenãoera,emlugarnenhum,maispresentedo que na casa deUster. Seu pai já lhe falaramuito sobre ela, sempre de formamuito enfática,exaltando-seàsvezesquandoo filhomaisvelhomanifestavaalgumadúvidasobresuaexistência.Ninguém jamaisviraoLiaberDest e a ideiadequeumúnico livro, vindonão se sabiadeonde,escritonãosesabiaporquem,pudessetrazeremsuaspáginasodestinodetodososhomensdesdeanoitedostempospareciacompletaloucuraparaosmaiscéticos.
–UmdiavoulhefalarsobreoLivro.Umdiavocêvaisaber,meufilho.Oratio de Uster era um homem esclarecido, sempre pronto a desconfiar das verdades
estabelecidas.EmboraoLiaberDestnãofosseumaverdade,masummito,seupainãoadmitiaquealguémnegassesuaexistência.AquelasforamasúnicaserarasvezesemqueLaerteoviufurioso,apontodeseassustar.Asoutraslembrançasquetinhadopaieramtodasdeamoretolerância.
– “Toda criatura...” –murmurouOratio atrás dele.Na página que omenino estava olhando,haviaasmesmaspalavrasqueseupairecitava.–“...estánestemundoparacumprirumamissão”–Endireitou-se, passando a mão no cabelo do menino. – Que você cumpra a sua, Laerte. Umagrande...
Umagrande...–...poderosa...Poderosa...–...emagníficamissão.Emagnífica...Acordoucomumador, intensa,ardente,quentecomoosoldomeio-diaquesederramavana
sala.Poderosa...Ele não estavamais em Forte d’Aed. Estava sentado numa ampla poltrona, com uma perna
esticada,ocalcanharapoiadonumbanquinho....emagníficamissão.Em seu colo descansava um exemplar do LiaberMoralis aberto na mesma página, com as
mesmas palavras, as mesmas asserções repetidas por seu pai anos antes. Seus ferimentoscicatrizavam lentamente, mas cada dia que passava parecia mais intolerável. Seu corpo forareduzidoamingau.Qualquermovimentoerainsuportável,provocavapontadasfortes,seguidasdeenjoo,náusea edesmaio.Laertedera a simesmocomomorto.Emalgunsmomentos, chegara aesperarqueoestivesse.Nadaseriamelhordoqueaquelequenãosedeixavaesquecer.
QuatromesesapósaquedadoImpério,malconseguia ficar sentadomaisdeduashoras semperder os sentidos.Dessa vez, tinha simplesmente caído no sono ao vagar por suas lembrançasdepoisdeencontrarumLiaberMoralisnabibliotecadamansão.
Malreparounamãoquetiravademansinhoo livrodeseucolo.Ali,nagrandesalabanhadapelaluzdosolfiltradaporamplascortinasbrancas,passavaaconhecerseuanfitrião.Nessesquatromeses, suas únicas visitas haviam sido as que lhe faziam diariamente os criados da mansão dePage.PróximadosterritóriosdoSul,apoucosdiasacavalodagrandeMassália,acasaencimavaumgrandevinhedoalémdoqualseavistavaoazuldomar.
Usandoumgibãopreto,umacompridaefinaespadapresaaumcinturãodecouro,altasbotasengraxadas que iam até o joelho,Gregory de Page emnada se parecia comumnobre foragido.AndavatranquilamenteenquantofolheavaoLiaberMoralis,tinhaumaaparênciagarbosa.Eraumdosvencedoresdaquelaguerra.Atuaraemsegredo,ajudandoosinsurgentesaadquiriremcanhõeselançaremporterraacidadedeÉmeris.MasoqueaconteceracomeledesdeaquedadoImpério?Laertenemprocurava saber,preferindo fechar-se emseu silêncio,perdidoemseuspensamentos,entregueàiraqueoconsumia.Ele,Laerte,haviafracassado.
–OLivro daMoral, as leis de convivência – disse Page suspirando pensativo. –Derivado doLiaberDest,queestáparasempreperdido.EscritopelosprimeirosmongesdaOrdemdeFangol...Leisiníquasessas,sepensarmosnopapelqueconcedemàspopulaçõesditas“selvagens”...
Fechouolivrocomumestalidosecoeojogousobreumapoltronaemumcantodasala.Sem
dizer nada, foi até a lareira e se apoiou. Lá fora o vento morno do meio-dia serpenteava pelavarandaevinhaerguerdelicadamenteoscortinadosdasportasquelembravamjanelas.
– Talvez já estejam ultrapassadas – pensou em voz alta,massageando omaxilar com amãoenluvadadepreto.–SãotantosospreceitosescritosnosLiaber...Eninguémjamaisquestionasuaproveniência. Surpreendente, não acha? As determinações dos deuses registradas no papel eninguémsabequemfoioprimeiroaescrevê-las.Ninguémjamaispôsemdúvidasualegitimidade,pormedo,nãodeumeventualcastigodivino,masdocastigodoshomens...OLiaberMoralis.OalicercedefogodoImpério...
Laerte pestanejou, tentando não desfalecer outra vez. Seu rosto inteiro queimava. Ele ocontemplara,umavez,noespelhodeumtoucadorquehaviaemseuquarto: rosto inchado,narizquebrado,olhossemicerrados.Distinguiaovultododuque,masaúnicaimagemquepodiaterdeleeraaquetrazianamemória:aindaestavacomavisãodesfocadaesejánãotivesse,comopassardotempo,vivenciadoaquelesdespertaresdelicadosinúmerasvezes,talvezjulgassesetratardemaisumsonho.
–Limamecontouquetemfaladomuitopouco–dissePage.Lima.UmadascriadasdePage,meigaebela,morenaecomorostolindamentetatuado.Uma
nâaga...–Massabequejásepassaramquatromesesdesdequehouvearevolução...–prosseguiuPagee
Laerteaquiesceucomumlentogestodecabeça.–Equeestáhospedadoaqui,naminhamansãodoSul.
Fez-se silêncio, que o duque deixou passar, decerto esperando que seu hóspede o quebrasse.Mas Laerte ficou calado, mirando-o por entre as pálpebras pesadas com um olhar bastanteindelicado, considerando-se que o duque lhe salvara a vida. Gregory de Page baixou os olhos,perplexo,então,voltando-se, foiatéumapoltronapróximaaumaportaepuxou-apara juntodoferido.Sentou-se,cruzoupernasebraçosefitouseuinterlocutorcomigualintensidade.
– Laerte de Uster, já não passa de um animal acuado – declarou com voz muito calma. –Meurnaufoimorto,assimcomooLaertequesupostamentecomandavaarevolta.Paraopovo,éponto pacífico que tantoMeurnau quanto Laerte deUster lideraram essa revolução comomeroobjetivo de ocuparem o trono, e não de instaurarem uma República. E que foram, felizmente,impedidosporÉtienneAzdeki.
Laertedesviouoolhar.Entãoeramessasasnovidades...Sim,elerealmentetinhaperdidotudo.Oassassinodesuafamília,eximidodetodososseuscrimes,assumiraopoder.
–ARepúblicafoiproclamadaháumasemana–continuouPage.–Estáolhandoparaumdosconselheirosincumbidosderatificarasnovasleis.
Laerte inclinoua cabeça, com fúriano coração.Todos saíamganhandode alguma forma, aopassoqueele,derrotado,eraumprisioneiroquenãopodiaesperarnadaalémdamorteiminente.
–Ora,Laerte,nãosouseuinimigo–dissePage.–Eusalveisuavida.–Porquê?Avozerafraca,arranhada,masbastouparaimporsilêncio.Pagemudoudeatitude,deixando
deladoseulevesorrisosatisfeitoemostrandomaisseriedade.Descruzouosbraçoseosapoiounos
dapoltrona.Entãoergueuosolhosparaaluzdosolapoucosmetrosdali,apreciandoocalorantesderesponder:
– Não sei. Talvez por achar que alguém como você não pode morrer assim. Também porRoganteAladzio...Elesgostamdevocê.
–Sãoseusempregados...– Sim, são meus empregados, mas são, antes de mais nada, homens dignos de respeito –
respondeusecamente.–Aladzioterpermanecidoameuserviçoéumsegredobemguardado,nãoé?Foigraçasaelequeconseguimossalvá-lo.Empregados,sim.Escravos,não.
Pelaprimeiravezdesdesuaderrota,Laerteesboçouumdébil sorriso...pérfido.Pagesentiu-semagoadoedesviouosolhos,balançandoacabeça.
– Pode pensar o que quiser – retorquiu Page. – O fato é que sua vida foi salva e está emsegurançanestacasa.Ninguémjamaisviráprocurá-loaqui.Azdekieseusaliadosachamquevocêestámorto.Alémdeterem,atualmente,muitomaiscomquesepreocupar.
–EDun-Cadal?–indagouLaerte.Viera-lhe àmente, de repente, a imagemde seumentor. E também a imagemde uma linda
jovemdecabeloscacheados.Àdor física juntou-seoutra,maisperversa,maisagressiva:adordaalmaedocoração,adordaculpa.Emnenhummomento,nenhum,ele tinhapensado...Emquemonstro de presunção ele se transformara?Que deplorável joguete não havia sido nasmãos deAzdekipara,nofimdascontas,nãopassardeumfantochedesmanteladoedesarticulado?
Umalágrimadeslizou.Seráqueseucoraçãotinhaseentorpecidodeiraesofrimentoapontodenãoseimportarcomoquehaviaacontecidocomeles?
Conteveochoro.–EsyldOrbey?–Laerteconseguiuarticular.–Dun-Cadal fugiu, isso é certo.Não sei onde está – respondeuPage semmuitos detalhes. –
QuantoaEsyld...vouprocurá-la.–Encontre-a–ordenouLaerte emmeio às lágrimas, aboca crispadapela ira. –Encontre-a e
traga-adevoltaparamim.Page,estranhamente, limitou-seaassentir.Emoutromomento,emoutracircunstância, talvez
semostrassemais severo.Não era homemde permitir que ditassem seus atos,mas era sensível,capazdeempatia. Inclinou-separaa frenteemergulhounoolharsemicerradodorapaz,decujaspálpebrasescorriamlágrimasfinasebrilhantes.
–Vou fazeropossível–prometeugravemente.–Enquanto isso,precisadescansar.Saibaque,neste exato momento, coisas importantes estão sendo construídas. Do Império nasceu umaRepública,comoeraodesejodeseupai.
–Euperdi...Laerteseentregouàdor,ocorpoabaladoporsobressaltos.As imagensdesuaquedavinham
incessantementemartelarsuamente,numsurdoecodesuasferidasmaisprofundas.Curvou-se,osbraçossobreoventredolorido.Centenasdelágrimasardentesabrasavamedilaceravamsuapele.Conteveumfortegemido,umfiodebabalheescorriadoslábios.
– Perdi tudo – repetia incansavelmente. – Eles me destruíram, destruíram tudo. Tudo, eles
tomaramtudo...Euperdi...perdi...MalpercebiaasmãosfirmesdePagecontendootremordeseusombros.–Não,não–murmuravaseuprotetor.–VocêdestruiuoImpério.Semvocê,elesnãopoderiam
ter feitonada.O simples fatode você existir, de ter sobrevivido, permitiu que eles derrubassemopoder.Seunomepermitiuquejustificassemseusatos.
–Você...Você...–Laerterespirousofregamenteantesdeergueracabeçaeenfrentaroolhardoduque.–Vocêestáenganado.Vocêtambémperdeu.Eleestácomeles,estácomeles.Comoestava,antes,commeupai.
–Eusei...–Oduqueseajoelhounasuafrenteehaviaemseusolhosumairagélida.–OLiaberDest–confirmou.
–Vocêsabia–disseLaertecomumacareta.–Desdeamortedoseupai,Laerte.Omeu,quandochegousuahora,mecontoutudoenquanto
agonizava.–Fitava-osempestanejare,numgestoafetuoso,pôsasmãosemseusombros.–Sabeo que é ser odiado pelo próprio pai, Laerte? Sabe o que é vê-lo zombar de você em seu leito demortepornuncatersidocomoelesonhou?Ohomeméumacriaturamuitoestranha.Estranhaapontodedesejar abertamenteamortedoúnico filhoe lhe confessarorgulhosamente tudooquecometeu.Eleeseusamigossempreviramemmimumpresunçoso,umfrouxo,umgozador...umimbecil.Eufizojogodeles.Vestiuma...máscara.Amáscaradoqueelesqueriamver.Meupai,aomefalardocomplôdeAzdeki,daexistênciadoLiaberDestedetodosossofrimentosquedesejavaparaaminhavida,nemimaginavaqueestava,naverdade,medandoachaveparaasobrevivência.Eleeseusparesjamaismejulgariamcapazdeagircontraeles.Noentanto...
Laerteinspiroufundo,endireitando-separaconteraslágrimas,edisse:–Bernevin.–Rhunstag,Enain-Cassart...emuitosoutros...–OsAzdekis–desdenhouLaerte.–OsAzdekis–confirmouPage.–Elestambémviraramconselheiros?–indagouLaerteentredentes.–Sim,viraramospaisdaRepública,alémdeoutros–informouPage,levantando-se.Entãorecuoudevagar,espreitandodesoslaioareaçãodeLaerte.Temia,decerto,queelecaísse
da poltrona numgesto de ira,mas Laerte estava tão exausto que apenas balançava a cabeça, asmãosapertandoosbraçosdapoltrona.Comumacareta,puxouapernaesquerdaatéapontadobanquinhoeadeixoucair,porpouconãodesmaiandoquandoseucalcanharbateunomármore.
–ElessãoaRepública,osonhodeseupai.–Nãovoupermitir–jurouLaerte,lançandoaoduqueumolharferoz.Page,comasmãosàscostas,andouatéaportamaispróxima.– Essa é, atualmente, uma das poucas certezas que tenho – confessou. Inclinou a cabeça de
modoaolharporsobreoombro.–Sóque,nomomento,vocênãopodefazernada.–Possomaisdoqueécapazdeimaginar–garantiuLaerteemtomdedesafio.– Pense antes de agir – aconselhou Page. – Ainda está convalescendo, vai demorar até que
estejaemcondiçõesdefazerqualquercoisa.Anos,talvez.
–Vocênão...aaah...Tentaraselevantar,mas,dosbraçosàpernaferida,adorfoifortedemais.Gemendo,tornoua
cairpesadamentenapoltrona.– Eles não vão agir antes de decifrarem o Liaber Dest. Enquanto Aladzio estiver incumbido
dessa tarefa, posso fazê-los esperar à vontade. Eles ainda vão estar por lá quando você estiverprontoparaexecutarsuavingança.Aqual,porsinal,podecombinarmuitobemcomigo,poisnósdoisqueremosamesmacoisa.
–Quecoisa?–Nãopossodizermaisdoqueissoenquantonãotivercerteza...emrelaçãoaosAzdekis.Boatos
podem ser mais mortais que uma espada afiada. Tornaremos a falar sobre isso. Por enquanto,saiba apenas que aqui é meu hóspede. E talvez, com o tempo, se torne até... – Fez uma pausa,deixandoosolhosvaguearempelomármorelustrosodopiso.–...meuamigo–concluiu,antesdeencararoolharperplexodeLaerte.
Cumprimentou-ocomumacenodecabeçae,semacrescentarnada,saiuporumaamplaportasituada juntoà lareira.Ficaramapenasosbrancoscortinadosbalançadosporumlevevento,queafagouorostodorapaz.E,então,osilêncioeaescuridão.
OLiaberDest,Laerte...oLiaberDest...
–Senhor?Senhor?Aoabrirosolhos,deucomasfeiçõessuaves,sublinhadasporfinastatuagens,deumamoçade
pele bronzeada. Com os cabelos negros atados numa comprida trança, Lima estava ajoelhada aseulado,comarpreocupado.
–Pegounosonooutravez,senhor.–Pa...Page?–indagoueleemvozrouca.–ElefoiparaÉmeris,senhor.Avisouquevoltava.Eque,emummês,umamigodevevirvisitá-
lo. – Ela pôs a mão suave em seu pulso, uma mão que ele não teve forças para rechaçar,estremecendo àquele simples contato como se fosse uma agressão. – Senhor, seria melhor ir sedeitar.Voupediraoscriadosqueocarreguematésuacama.
Omundo, foradamansão,não eranada acolhedor: repletode violência, traições,mentiras erancores.Seuprópriomundo,noentanto,nãoeranadainvejável.Seucorposetransformaranuminimigo,condenadoaumadorconstante.Maldistinguiuosvultosdostrêshomensdesobrevesteazulquevinhamparacarregá-lo.
Suaspálpebrassefecharamtalcomoportasescurasdeumedifícioemruínas.
As semanas seguintes foram pontuadas por lentos despertares e pesadas sonolências. Os
desmaiosdedorforamaospoucosseespaçandoeseusmovimentosreadquiriramanaturalidade.Aosolpúrpuradooutonosucedeu-seapalidezdoinvernoedageada.Laerteaindanãovoltaraaandar,malconseguiaficarsegundosempéantesdeocansaçoembotarseusmovimentos.ComoLimaprevira,umdeseuspoucosamigoschegouàmansãolhedarapoio.
Era Rogant, sóbrio em palavras, sensato e ponderado. À noite, diante da lareira, não sesentiam, nem um nem outro, propensos a grandes discussões. Contentavam-se com o simplesprazerde ficaremali sentados ladoa lado,comodoisamigos.AamizadedeRoganteraumadaspoucas coisasqueLaerte se sentia felizpor ter conservado.AlgoqueosAzdekis jamaispoderiamlhetirar.
Rogantopôsapardasnovidades,dosvãosesforçosdePageparalocalizarEsyld,dasnovasleispromulgadas por umnovoConselho e do estranho comportamento desses homens que o rapazexecrava.NemAzdeki,nemRhunstag,nemBernevin,tampoucoEnain-Cassart,haviamtentadoseapropriar do poder. Já eram conselheiros e assim continuaram. Debatiam, representavam naAssembleiarepublicanaaquelesqueostinhamescolhidoparazelarporseubem-estar.
Realizava-seosonhodeOratiodeUster,conduzidoporumpovopasmodeadmiração,repletodeesperançaesonhos.Masquemconduziaopovoerameles.Essesquetinhamdestruídosuavida.
Certanoite,quandoterminavamumarefeiçãonagrandemesadasaladejantar,Rogantdissepalavrasinfelizes:
–Elestêmfeitocoisasinteressantes...Laerteempurrouoprato,agitado,ascostascurvadas,osolhosfitandoasmigalhasdepãoque
constelavam a larga toalha vermelha bordada de prata. Em seu rosto ainda marcado pelosferimentososcilavaaluzdoscandelabros.
–Escutouoqueeudisse?–Rogantcontinuavacalmo.Laertelargouostalheresjuntoaoprato,noqualrestavaumpobreossinhodefrangoemmeio
a um monte de legumes variados. Quando ergueu os olhos das sobras de seu jantar, nãoconseguiuenfrentaroolhardoamigo.Laertecontinhaumairacrescente.MasRogantcontinuouafalar:
–Sejamquaisforemoscrimesquetenhamcometido,elescontamcomoapoiodopovo.Deramao povo o direito à palavra. Eles mudaram as coisas, Laerte. Você não pode lutar contra isso.Ninguémpoderia.
Comoúnica resposta,Laerte fezumbrevemovimentocomacabeça.Parecia interessar-se tãosomentepelasmigalhasdepão.
–Avingançanãoéocaminho...Afúriaaindavaidestruí-lo–sussurrouRogant.Osolhos ardentesdo rapaz finalmente se voltarampara ele.Nas lágrimasquemarcavamseu
rostohaviaumbrilhoanimalesco,umaraivaque lembravaumfogovoraz.Palavraalgumapodiaextinguiressafúria.
– Meu povo está livre – declarou Rogant, numa derradeira tentativa. – Quanto a eles, vãoacabarpagandoporseuscrimes,masporvontadedaRepública,enãodasua...DeixePagecuidardisso.Nãoestraguesuavida.Vocêjásofreumaisqueosuficiente.
Laerte pôs lentamente as mãos na borda da mesa e se apoiou, fazendo uma careta.
Imediatamente,Rogantlevantou-se.–Écedodemaisparaficardepé,vocêaindanãoconseguecaminhar.Nenhuma palavra veio contradizê-lo. Só o olhar feroz perdurava. À porta da sala de jantar
apareceu Lima, hesitante.O que ela via era uma cenamuito estranha. Rogant parado diante dorapaz,comosedispostoaempurrá-lo.FoioquefezquandoLaertetentouselevantarseapoiandonosbraçosdapoltrona.
–Vocêestámuitofraco–disseonâagaemtomseco.Fez-sesilêncio.Laerteinclinouacabeçaparaafrente,dentescerrados,mascomoolharfixono
amigo.Osbraçosdapoltronarangeramsobapressãodeseusdedos.–Estámuito fraco– repetiuRogant, empurrando-onovamentequando ele voltou a tentar se
erguer.Gemendo, Laerte tentou outra vez. Pensou que suas pernas fossem quebrar enquanto se
levantava,osolhosgrudadosnosdonâaga.Umaviolentafisgadapercorreuseucorpointeiroesuatestaseencheudesuor.Porémnãodesistiu.
–Estámuitofraco...Nenhumdosdois sedispunhaadesviaroolhar.Lima,doseucanto,assistia incrédulaàquele
duelodevontades.Esfregounervosamenteasmãosnoavental.Laertetersobrevividoatéentãojáeraummilagre.Masvoltaraandareraalgoimpensável.Seucorpoaindaestavatãocansado,tãomaltratado, que arriscava desmoronar a qualquer momento. Ainda assim, e apesar de algunsgemidos,elenãocedia.
Onâagaoencarouantesdedarumpassoàfrente.SóentãoLaertedeixou-secairpesadamentedevoltanapoltrona.Orecadoestavadado.ComRogantnãoeraprecisopalavras.AvontadedeLaerteerafirmedemaisparaaquiloserumsimplesimpulso.
Eleiriaatéofim.
Foi assim que ele recomeçou a andar. Um passo, dois... depois três. Passaram-se os dias, assemanas, osmeses.A dor amainou por conta da força de sua raiva. Ela, por si só, bastava parafazê-loesquecerseusofrimentoeirampliandomaisemaisseuslimites,atécairdeexaustão.
Aprimavera,overão...Finalmentepôdesairsozinhoaoarlivre,paradescobrirumaterrasecasalpicadadegramaamarelada,umapaisagemretalhadaembaladapelocantodascigarras.
Rogantpermaneceuaseulado.Laertesemuniudeumaespadaeaçoitouoar,soltandoumurroquandoseuombropareceuse
rasgar ao golpe de um martelo. Repetiu o gesto, e outra vez, e mais outra. Inúmeras vezes.Devagar.Esempre.
A relva enfim se curvou. Chegava o outono. O calor se esvaneceu. Rogant continuava ali,observandoenquantoeleretomavaseuespaço.Quandofoicapazdeesgrimir,onâagafinalmenteinterveio,postando-senasuafrenteparaapararseusgolpes.
...umagrande...Voltavaatomarpossedesimesmo,acontrolarseusmovimentos.Umanosepassara....poderosa...Pageretornou.Infelizmente,semnotíciasdeEsyld.ARepúblicaiaseconsolidandoaospoucos,
masaindaerafrágil.Laerte,obcecadopelodesejodevingança,deixoudeladosuasdúvidasquantoàsmotivaçõesdoduque.Oimportanteeraofatodeteremumobjetivoemcomum.
...emagníficamissão.Estocada. Defesa. Seusmovimentos voltaram a ser fluidos e controlados. Por fim, conseguiu
usaroSopro.Foi um esforço exaustivo. Na primeira vez, caiu inconsciente. Rogant o segurou antes que
batesseacabeçanocascalhoquerevestiaojardimdamansão.SintaoSopro,sejaoSopro.Apesardosangueescorrendodeseunariz,apesardaqueimaçãoemseusmúsculosatrofiados,
enfrentou o nâaga e inimigos invisíveis domeio-dia ao entardecer, damanhã ao anoitecer, atéfinalmentereencontrarasimesmo.
Nada o desviara de seu caminho. Nem a lembrança de Esyld, nem a incerteza quanto aodestino deDun-Cadal.Nem,muitomenos, a delicada atitude de Rogant em relação a Lima e oamorquenasciaentreeles.Nadaalterousuavontade.Doisanosdepoisdesuaqueda,daquedadoImpério,Laertepartiu.
11
Reviver
UmdiavoulhefalarsobreoLivro.
Umdiavocêvaisaber,meufilho.
De costas para a porta, ele despiu a capa, tirou devagar o casaco. Diante dele, a poeira queencobria a janela brilhava à luzda luapálida.Amulher o observava em silêncio, umadasmãosapoiada no batente da porta entreaberta. Contemplava a luz do astro que deslizava por seusombros nus, destacando cada uma das cicatrizes que riscavam suas costas. Com uma careta, elepassouamãopelaomoplata.
Por quais combates, por quais batalhas não havia passado para trazer tantas marcas? Seucoraçãosaírailesoouestava,comosuapele,repletodefissuras?
Elaaté teria ficadoali,olhando-osedespir.Teriagostado, inclusive.Mashaviaperguntasquenãopodiadeixaremsuspenso.Timidamente,bateuàporta.
–Laerte!–chamou,corando,baixandoosolhosquandoelesevirou.–Desculpe,eu...Uma cicatriz destacava-se em seu peito. Imaginou-se acariciando-a comodedo enquanto ele
lhecontavacomoelasurgira.NodiaseguinteaconteceriaaNoitedasMáscaras.Talveznãotivessetempoparalheconfessarseussentimentos.Essaideiadespertou-lheumdébilsorriso.
–SeoassuntoforDun-Cadal,estáperdendoseutempo.Pageestáavisado.Elenãovaiserumempecilho–garantiuLaertesecamente.–QuantoaoPalatio,Azdekimandoureforçaraguarda.
–Muitobem–respondeuela,semousarencará-lo.–Estátudocorrendoconformeoprevisto,Viola.–Verdade?–surpreendeuasimesmaaoperguntar.Ele continuava imóvel, como se esperasse queViola se dignasse sair de seu quarto. Amoça,
dessa vez, estava decidida a fazê-lo falar. A maior parte do que sabia a seu respeito descobriraatravés de Aladzio, de Rogant e, mais recentemente, do velho general. O restante, adivinhara.Esperavapelobenditodiaemqueele finalmenteseabririacomela,oqueseriaaprovadealgum
afetooualgomais.Comocoraçãoacelerado,descontrolado,uniunervosamenteasmãosúmidas.–Desculpe,masescuteiumpoucodadiscussãodevocêse...–Eoquê?–murmurouLaerte,avozsubitamentegrave.Estreitavaosolhos,pareciasinistro.–QueméEsyld?–Nãoédasuaconta–respondeuele.Pegouacapaecomeçouadobrá-la.– Ela vai se casar comBalianAzdeki? – continuouViola, ignorando a reprimenda. –Você a
conheciadasSalinas,éisso?OsgestosdeLaerteficarammaisbruscos.Porfim,umtantoirritado, jogouacapasobreuma
cadeira.–Vocêaama?–insistiuela.Silêncio... Viola sentiu-se tomada por um imenso vazio, uma imensa tristeza que ela tentava
controlar.–O casamento vai ser antes da festa... – anunciou ela comvoz trêmula. – Se tentar qualquer
coisa,issotudo,otantoquenospreparamos,terásidoemvão.Elelançou-lheumolharferoz.–Nãovenhamedizeroquedevoounãofazer–reclamou.–Não,claroquenão–respondeuViola.–Vocêéumhomem.Eunãopassodeumamoçaque
maldeixouainfância...Pelaprimeiravezdiantedela,Laertebaixouoolhar.–Laerte?–chamouViolademansinho.Elerespondeucomumolharestranhamentetriste.Comogostariadeseaproximar,seaninhar
juntodele,estarcomele...sóparafazercomqueadorevaporassenocalordeseucorpo.–Estouaquidolado,casovocê...enfim...queiraconversarsobre...enfim,sobreoquequiser.Ele não fez nenhumgesto nemdisse nada.Observou-a fechar a porta sem sentir vontade de
detê-la.Eunãopassodeumamoçaquemaldeixouainfância...
Sentou-se na cama, suspirando, perguntando-se como chegara a esse ponto. Ele, que tantasvezesserebelaracontraquemoconsideravaumsimplesmolequeincapazdesesairbem,estavasecomportandoigualaeles,nofimdascontas.Violajápassarados20anoseeleaindaaviacomoumamenina.
Tinha15anosquandoavirapelaprimeiravez.– Você é cavaleiro? – perguntara ela, sentada a uma escrivaninha com uma pilha de livros
abertosàsuafrente.Bonitas sardas salpicavam suas faces ainda redondas, um brilho malicioso no intenso olhar
verde, apeledeumbrancopuro comoaneve.Elenão respondera.Vierapara se encontrar comPageapósanoseanosdeandanças.Nãodera,naqueledia,amenor importânciaparaamoleca.Voltaraparaamansãomaisfortequenunca,prontopararealizarsuavingança.Poucomenosdeseisanosdepois,achava-sesentadonumacamaemmeioaodocecalornoturnodeMassália.
Deixou-secairpara trás,ocoraçãoà flordapele.PensavaqueEsyldaindaoamava.Azdekiamantinhaprisioneira,eraisso,eleaameaçava,eelaforaobrigadaamentir.Ficourepetindoparasimesmo o que ela tinha lhe dito. Determinado, tentava lembrar a mínima hesitação, a mínimavacilação,amínimapalavraquedemonstrasseocontrário.Umameraindecisãoquequisessedizer“Euamovocê”.
Aospoucos,foicaindonosono.
Na casa reinava o silêncio. Os lampiões a óleo se consumiam devagar. Dun-Cadal, no sofá,fitavaa jarravazianamesadecentro.Cansado,olhoudesanimadoparaasprópriasmãos.Veiasverde-escurassedestacavamnapelemanchada.Ergueulentamenteadireitaeaestendeudiantedesi.Cerrouosdentesquandoelacomeçouatremer.Eraistoqueeleera:umcorpoinstável...
–Podeestarcertodequeaquisótemaganhar–murmurou.TinhavindoaMassáliaparamorrereacabaraencontrandoaquilodequevinhatentandofugir.
E,oqueerapior,avidadequetantoseorgulhavaagoraseresumiaaumaenormementira.Quando o sol lançou seus primeiros raios sobre a cidade portuária, Dun-Cadal estava na
cozinha, em pé junto à mesa. No centro, uma espada esperava, enrolada num velho cobertor.Nunca se atrevera a tocá-la. Eraed pertencera aos maiores imperadores e, embora já tivesseduvidadodeseupoder,nuncaseatreveraaencostarnelapornãopoderconfirmá-lo.Eemrespeitoàquelesaquemtinhajuradoservir...
Afastou o pano num gesto rápido e nervoso, revelando a lâmina cintilante. Seus dedospararamapoucoscentímetrosdopunhodourado.Quemeraeleparaseatreveraempunhá-la?Ohomemqueelehaviajuradoprotegerodestruíra.Quemeraeleparaseatreverapegarsuaespada?
AlémdeummeroresquíciodoImpério...equeImpério...oImpériodastraições,dosódios,dasmatanças,doabandono.
Decidiu-see,trêmulo,foiatéopátio,segurandoavelhaespadacomamãoúmida.Assimquepisounocascalho,girou-anoar,porpouconãoasoltandováriasvezes.Seusmovimentosbruscosnão tinham a menor naturalidade. Aquilo era apenas um efeito de sua abstinência de álcool.Perdido,golpeavaovazio tentandoaparargolpes imaginários.Mas seusgestoseram imprecisos.Caiu três vezes de joelhos, resmungando entre dentes. Seu braço armado tremia. Lágrimasbrotaramemseusolhos.Seráqueperderatodaasuadestreza?
–Vocêestámuitoapressado–sentenciouumavozpertodaporta.Olhourapidamenteporsobreoombro.Laerteestavarecostadonobatente,osbraçoscruzados.
Talvezjáestivessealihaviaalgumtempo,achando-oridículo.
– Está mal apoiado e executa os movimentos depressa demais – continuou Laerte em vozsurpreendentementesuave.
Dun-Cadal o observou se aproximar, imóvel, e quando Laerte chegou junto dele, buscou seuolhar.MasLaertefitavaaespada.Pegounoseupulsoeoajudouaseguraraarma,contendoseutremor.
–Mantenhaaespadareta.Pernaslevementeflexionadasparaficarbemapoiado–disseemvozbaixa.–Suapernaestámuitoesticada.Senão for cortadaporuma lâmina,vai serquebradaporumaclava...
Enfimtrocaramumolhar.Laertenãosoubecomosustentá-lo.ComoestavaenvelhecidoorostodeDun-Cadal,suasfeiçõespesadasdetristeza,intensasolheiras!
–Issoeuaprendicomumgrandecavaleiro–confessouLaerte,afastando-se.–Nãoseise,paraele,fuiumbomaprendiz,nemseelealgumavezseorgulhoudoesforçoqueeufazia,diaapósdia...–Seguiuapassoslentosemdireçãoàcasa.–Sehouveumdiaemqueacheiqueoodiava,foi,semdúvida,portudooqueelerepresentava,enãopeloquerealmenteera.Dissohojetenhocerteza.
EstavachegandoàportaquandoavozroucadeDun-Cadalmurmurou:–Rã...?Era aprimeiravez,desdeque tinhamse reencontrado,que elepronunciava aquelenome sem
animosidade. Laerte se virou. Seumentor se endireitava depois de pousar a espadano chão.Nocascalho,àluzdodianascente,Eraedcintilava.
– É você? – perguntou Dun-Cadal com a voz embargada. Parecia tão cansado, os olhoscontraídos,umbrilhodelágrimasnosolhos.–Entãoévocêmesmo,Rã...
Laertenão respondeu.Compreendia aquelaspalavras, sentia seupesono coração.Trôpego edesajeitado,Dun-Cadalaproximou-se.Parandodiantedele,segurouanucadorapaz.
–Passeitantosanosachandoquevocêtinhamorrido...–Eusei.–Penseiquetinhaperdidovocê...–Eusei.Estavaprestesachoraresualutaparanãodesabarjápareciacairporterra.–Rã,évocêmesmo?–indagouDun-Cadaloutravez.Laertefaziaopossívelparamanteradignidade,maseradifícilpermanecerinsensível.–Sim.Dun-Cadalentãodesatouachorar,porsuavida,porsuadecadência,pelosanosperdidosem
quenuncadeixaradepensarnomoleque.Jogou-seemseusbraçoseoabraçoucomforça,sentindomedo de que ele se esquivasse outra vez. Laerte de início hesitou, mas por fim o envolveu nosbraços.
Aquele homem tinha lhe ensinado tudo, tinha lhe dado tudo, sem nunca desconfiar de suasintenções.Umhomemqueele já julgaraantesmesmodeconhecer,maspeloqual,comotempo,acabaraporseafeiçoar.EnquantoosolclareavaostelhadosdeMassáliaeespalhavasobreacidadeumtomavermelhado,Laerteteveaimpressãodefinalmenteenxergarcomclareza.Aquelehomem,apesardetodaasuainsolência,nuncadeixaradeamá-locomoumpaiamaseufilho.
Aliabraçados,voltavamaseencontrar.
–Éumdessesmomentosquesópertencemaelesdois–disseRogant.À janeladoquarto,noandarde cima,Viola sobressaltou-se.Atrásdela,Rogant a fitava com
umolharacusador.Nãooouviraentrar,concentradaemespiarosdoishomensnopátio.–Estousóconferindoseestátudobem–justificou-secomfirmeza.–Page já tem tudoplanejadopara apartidadeDun-Cadal.Ele irápoucoantesdaNoitedas
Máscaras.Nãovaisecolocaremnossocaminho.Jánãopassadeumvelhofantasma.–Nãoé isso.EstoupreocupadacomLaerte– rebateuela.–Elenãodevia ter se exposto.Está
perturbadocomessahistória.–Acredite, quemmais vai perturbarLaertenão éDun-Cadal – afirmouRogant, indo em sua
direção.Elaolhounovamenteparaopátio.Não,claro,haviaumperigobemmaiordoqueapresença
deDun-Cadal.–Achaqueelevai tentar impedirocasamento?–preocupou-seViola, enquantoobservavaos
doishomensseafastarem.–ConheçoLaerte o suficienteparadizer que elenão é do tipoquedesiste doquequer oude
quemquer.Seelavai se casarcomBalianAzdeki,PageeAladzio jáestavam informados.Senãocontaram,foiporumbommotivo.Agoraqueelesabe,vaiterqueescolheraquemseráleal.
Nenhumdosdois tinhaamenor ilusão.OquequerquedissessemaLaerte,ele só fariaoquebementendesse.Eraelequemcomandavaamissão,quemdecidiaoquedeviaounãoserfeito.
–Eleaindavaipôrtudoaperder–esbravejouViolacerrandoospunhos.Rogant olhou para ela, um estranho sorriso nos lábios. No pátio, Dun-Cadal agora estava
sozinho.PegouEraededesapareceunointeriordacasa.
Mais tardenaquelamanhã,Laerteseesgueiroupara foradacasae,numavieladeserta, subiupor uma calha até um telhado. Sabia do risco que corria, sabia que aomínimo erro estaria tudoacabadoenãocumpririaseuobjetivo.MasoLivropodiaesperarmaisalgumashoras.EsyldestavasendoforçadaasecasarcomofilhodeAzdeki,eissoeraprioridade.
Quetipodecavaleiroeleseriasenãocorresseemseusocorro?Nemmesmoaideiadefracassare reduzir a pó suas chances de entrar noPalatio ao cair da tarde podia fazê-lo desistir. Ele tinhadominadoumdragão,lutadoaoladodeDun-CadaleenfrentadoquatrodosmaisaltosoficiaisdoImpério antes de derrotar a própria morte. Nada mais era impossível para ele. De telhado emtelhado,furtivamentecruzouacidadesemservisto.Foiatéoaltodeumgrandeedifício,napraçadamaisimponentedastrêscatedrais,eesperoudarmeio-dia.Atrásdatorredacatedralseavistava,
aolonge,otelhadoarredondadodoPalatio.Lutarcomumaespadaéfácil.Àsportasdosantuárioseaglomeravamoficiais,conselheiros,capitãesdaguarda,nobres,todos
exibindo seusmais belos trajes.Amaioria já usava asmáscaras coloridas que todo habitante deMassáliaportariaànoite,nafesta.
Mas,paravencerosprópriosdemônios,alâminanãotemqualquerserventia.Ao pé das escadas da catedral parou uma carruagem vermelha ornada de frisos dourados.
Laertemirouochão,algunsmetrosabaixo.Esaltou...Você, que estáaíde joelhos, já semorgulhonenhum, levante-se,mesmo trêmulo, e recobre sua
dignidade.Recobresuadignidade.
–“Poiselaédefatoaúnicaarmaqueoprotegedospoderosos”–declamouPage.Acarruagemsacolejavae,sentadonabanquetapúrpura,tinhaaimpressãodeestardançando
aoritmodossolavancos.Segurando-senaalça juntoà janela, lançouumbreveolharàpaisagemenevoada. Vultos disformes de árvoresmortas se destacavam emmeio à bruma e, vez ou outra,sobreumgalhoretorcido,assilhuetasdecorvosgrasnando.
–Aúnicaarma–repetiu,pensativo.–Adignidade.Estava com uma roupa preta simples, sem outro ornamento além da fivela dourada de seu
cinturão,luvaspretasquesealargavamnosantebraçoseumpingenteporcimadagolafechada.OrestanteeradeumasobriedadedequeLaertenãotinhacomolembrar.Aprimeiravezqueo
vira fora em Émeris, numa de suas orgias. Na segunda vez, na mansão, sentira-se como asplaníciesqueagoracruzavamdecarruagem:enevoadoeperdido.
Agitadopelossolavancos,observavaoduquecomcertacautela,esmiuçandocadaumdeseusgestos,cadapalavraquedizia,naesperançadevislumbraralgumacerteza.Pageeraumhomemdeintrigas e, embora tivesse salvado sua vida, Laerte preferia confiar desconfiando.Não acreditavanemumpouconasuaamizade.
–Sabequemescreveuisso?–perguntouPage,contemplandoosrasgosdenévoa.Laerte balançou a cabeça.Oduque, pelo visto, esperava essa resposta, já queprosseguiu sem
nemolhá-lo:–Seupai.Umcheirodegramaqueimadaempesteouoar,obrigandoPageaseafastardajanela.Avistou
algoemchamas,sendoespetadopelasfoicesdecamponeses.Oduqueapertouonarizuminstantee,suspirando,recostou-senabanqueta.Fezumapausa,olhandoparaLaerte.
–Euliosescritosdele.Tiveessasorte,apesardeteremsidoproibidospelosmongesdaOrdemdeFangol.
Laerteassentiucomocoraçãopesado.NuncahavialidonadadeOratio.
–Sabeoqueelequeriadizercomisso?–perguntouPage.–Não.–Quesomenteadignidadenospõeempédeigualdadecomaquelesquemandam.Jávipobres
mais dignos que muito barão grosseiro e covarde. Vi camponesas enfrentarem com brio oscoletores de impostos para defenderem sua parca colheita. Vi nâagas em servidão manterem acabeça erguida, vi... – Interrompeu-se de súbito. –Não é só com a espada que se luta, Laerte. –Virou-senovamenteparaajanela.–Estamoschegando.
Acarruagemreduziuavelocidadeeossolavancosforamseatenuandoatéelaparardevezeoscavalosbufarem.
Tinham viajado por duas horas desde o condado deGarm-Sala, onde haviam combinado seencontrar. Laerte deixara amansãonove anos antes.Cavalgara pelo que restava de um Impérioarruinado, numa República incipiente que, dia após dia, soubera devolver a esperança ao povo.Acompanhara tudo isso de longe e, no entanto, sempre tivera a sensação de estar no centro deÉmeris,deserquaseumasombradosAzdekis.EnissoPagetiveraumpapel.
Mesmo afastados, haviammantido contato:Aladziopusera à disposição seu amigomais fiel,encarregado de transmitir suas mensagens. Nove anos de viagens, idas e vindas, despedidas ereencontros.DeVershã aooeste, donorte aosportõesdeMassália, tinhaprocuradoporEsyld, equando era tomado pelo desespero, passava um tempo na mansão de Page para desfrutar dacompanhiadeRogante, certasvezes,dadeAladzio.O inventor tambémestava semprepara lá epara cá, cumprindo ordens de Azdeki, vasculhando os monastérios fangolinos na esperança deencontrarachaveparadecifraroLivroSagrado.Noentanto,osonze longosanosdesdeaquedadoImpérioemnadatinhamalteradoavontadedeLaerte.Quandooconselheiromandaraavisarqueerachegadaahoraderesolveremoassunto,atenderarapidamenteaochamado.
OmensageirodeAladzioosrecebeucomumgritoagudo.Laertedesceudacarruagemepisounuma lama espessa. Ao erguer a cabeça, vislumbrou-o emmeio à névoa, em torno da torre emruínaserepetindoseugrito.Sóosdeusessabiamcomoaquilosempreconseguiraencontrá-loemmeioaosdestroçosdoImpério.Mas,quandooviasurgirnocéu,bastavaestenderobraçoparaelepousaredesprenderacápsulacontendoacarta.
–Nãoreparenaaparênciadaconstrução–aconselhouonobre,comasobrancelhaerguidaeumsorrisodeesguelha.–Elatembelezainterior.
Com um gesto, convidou-o a seguir até a pesada porta de madeira, à qual faltavam umastábuas; atrás senotavaa luzvacilantedealgumas tochas.A torre ficavanoaltodeumaelevaçãoondea relvacustavaacrescerde tãoencharcadaqueeraa terra.A lamagrossa,viscosa,grudavanasbotas.Laertedeuumpassoeentãosedeteve,certode já tervistoumatorreparecida,apesardaspedrasfaltantesedotelhadocomvigasbolorentasàmostra.
–Fangol–dissePage,percebendosuaperturbação.–EsteéumdosprimeirosmonastériosdaOrdemdeFangol.ÉumaimitaçãodaTorredeFangol,sóqueemversãoreduzida.
Sim,claro.OLiaberMoralis descrevia a sedehistóricadaOrdemdeFangol comoumedifícioimenso,construídonoaltodeumamontanhaparaatingirocéu.Rezavaa lendaque,emalgunsdias,seutopoultrapassavaasnuvens.Eracuriosoquesuaréplicafossecercadadenévoa.
Page abriu a porta e entrou na frente, tirando as luvas e batendo uma na outra. As pedrasestavam cobertas de poeira, o ar parecia poluído apesar das seteiras e, em um canto, havia umhomemdeaspectolamentávelsentadoaumavelhamesacapenga.Virou-separaeles,umsorrisobobonoslábios,cabelobrancodesalinhadoeumrostoredondoeenrugado.Aofundo,novãodeumaparedeabaulada,haviaumaescadae,dolado,abria-senochãoumpequenoalçapão.Laertefechouaportaaopassarefoirecebidoporumarisadinha.
– Eles chegaram – comemorou o velho com as mãos tortas de artrite. – Sim, o perfume, operfumecheirosodonobrefidalgo.Ecomele...
Farejouoar.Laerte,aoseaproximar,reparounamembranabrancaqueencobriaseusolhos.–Catarata–explicouPage.–Nãodêbolaparaele,élouco.–Umhomemcomespada?–alegrou-seovelho.–Umhomemperspicaz,sim,perspicaz,mas
nãoarrogante.–Cale-se,seumongeestúpido–ordenouPage.–Nãoestamosaquiparaescutarsuassandices.Laerte nunca o tinha visto agir de modo tão autoritário. Virou-se para ele e viu que o
conselheiroconservavaseuarsevero.–O irmãoGalapaéoantigoguardiãodestemonastério–explicouPage.–Éumvelhodoido
quenuncasedeucontadotesouroemqueestásentado.–Éclaroquemedouconta–discordouGalapa,sempresorridente.–Osoutroséquenãome
escutam,rá,rá.Galapanãovê?Vê,sim.Galapaviutudo.Etambémouviuumascoisas.Pagepareceuseirritar,maslogoadotouumaatitudemaiscontida,pondoamãonoombrode
Laerte.–Venha,Aladzioestáláembaixo.Conduziu-o até o alçapão e o abriu puxandouma corda. Lá dentro, um clarão tremulava no
escuro.Pageseabaixouparaentrar.–Sim,sim,estátudoláembaixo,sempreestá.–Galaparia,esfregandoasmãos.–Láembaixo,
ocavaleirinhovaidescobrirumascoisas.Estavaescrito?Sim,sim,claroquesim.Oanciãocontinuourindoebalançandoacabeça.Laertedirigiu-lheumúltimoolharantesde
entrarnoburaco.Deparou-secomumaescadae,parasuasatisfação,comumapassagemqueiasealargando. Desceu os degraus, endireitando-se aos poucos, e alcançou Page, que o esperava naentrada de um túnel. Tochas crepitavam nas paredes úmidas, sua luz ondulando nas pedraspesadas,cobertasdepoeirapreta.
SeguirampelotúnelatéquePageavistouumaespéciedenicho.–Éaqui.Abaixouacabeçaeentrou.O rangido de uma porta antiga de madeira ressoou no corredor estreito. Laerte hesitou um
instante antes de entrar no nicho, vislumbrando então uma abertura que conduzia a uma salaamplaeestranhaondepairavaumcheirodepimentaejasmim.Distribuídosemcompridasmesasdemadeira espessa, candelabrosdifundiamuma luz avermelhada sobre pilhas de livros. Pesadasvigas imbricadas, das quais pendiam teias de aranha gigantescas, ornavam o teto alto. Sobre osvolumesempoeiradosfumegavamalgunsalambiquescheiosdelíquidoscoloridosemebulição.
–Senhores–saudouumavozfinaàsuadireita.Surpreso,Laertelevouinstintivamenteamãoaopunhodaespada,masrelaxouaoverorosto
bonitodeumamoça,cujosolhosverdescintilavamàmeia-luz.–NãoestáreconhecendoViola?–Oduqueriu.–ViolaAguirre?Deuum tapinhano seu ombro. Laerte a contemplava.Quando cruzara com ela alguns anos
antes, em uma de suas estadias na mansão, não passava de uma menina recém-chegada dointerior.Agoraeraumalindamulher,comocabeloruivopresoparatrás,mechassuavescaídasnanuca de umbranco leitoso e junto às orelhas. Sob os olhos tímidos, as faces eram salpicadas desardas.Usavacomelegânciaumvestidomarromsimples.
Não ficou fascinado, apenas surpreso ao vê-la assim tão diferente. Será que ele ainda era omesmo?Decertoendurecidoportantosanosdevidaerrante.
–Elaédeconfiança.Agoraéhistoriadora!–informouPagecomorgulho,passeandoentreasmesastransbordandodemanuscritos.
Viola, com as faces coradas, cumprimentou o rapaz inclinando-se sem jeito. Quando ia lhedirigirapalavra,elesevirou,intrigadopelosestranhosutensíliosquevianomeiodoslivros.Paraque serviria aquela parafernália? Não tinha a mínima ideia. Em compensação, não foi grandesurpresadescobriraquemelaservia.
–Rã!Rá,rá!Rã!–exclamouumavozjovial.Emumcantoparcamenteiluminadoporvelas,umvultofamiliardesciadeumaescadadisposta
junto a uma alta estante de livros. Enquanto vinha em sua direção, braços abertos, ele foidiscernindoocasacodemangasbufanteseotricórnio,orostoabertonumlargosorriso.
–Quebomvervocêporaqui!Ah!Rã...Laerte–emendouAladzio.–Desculpe,nãoconsigomeacostumar.
– Vejam só! Quem poderia imaginar que o porão de uma torre escondesse uma bibliotecadestas?–indagouLaerte.
–Ninguém–respondeuPage.Buscandooduquecomoolhar,viu-osentadonumaamplapoltronaatrásdeumadasmesas
cobertasdelivros.Onobrepassoudelicadamenteamãopeloqueixobarbeado.–Viola, pode nos deixar a sós? – pediu, fitando Laerte. – Galapa vai adorar lhe contar suas
históriasmalucas.Juntoàporta,amoçaassentiu,maldisfarçandoadecepção.Sabiaquealgumascoisaselesiam
lhe omitir até o fim e que, apesar de sua curiosidade natural, precisava se conformar. Page faziaquestãodecontrolartudo,desdeasinformaçõesatéopapeldecadaum.
–Comosempre,voufingirqueestouescutando?–perguntouela,desanimada.–Issomesmo.–Pagesorriu.Quandoaportasefechou,Aladziodeuumtapinhaamistosonoombrodorapaz.– Nem imagina como estou feliz, muito feliz – repetia alegremente. – Há quantos anos foi
nossoúltimoencontro?–Três–respondeuLaerte.Lembravaque tinha sidonamansão.Umaconversa furtiva antesde ele voltarpara a estrada
embuscadeEsyld.Pagenãoconseguiranenhuma informaçãopara lhedarnaquele tempotodo,masnadaseriacapazdedesviá-lodessabusca,anãosersuavingança.
– Três – repetiu Aladzio, pensativo. – É, três anos. Você estava voltando de Poliesta. Então,seguiumeuconselho?RetornouàsSalinas?
Laerte deixou escapar um suspiro. As Salinas. Vinha deixando aquelas terras como últimaalternativa.Voltarparaospântanos,reverForted’Aed,refazerospassosdequemele tinhasido...aindalheeradifícil,porváriosmotivos.DetodasasregiõesdaRepública,asSalinaseramdefatoondeEsyldpodiaterserefugiadoapósaquedadoImpério.Senãoaencontrasseporlá,perderiatodaaesperançadeumdiatornaravê-la.Portanto,paradoxalmente,adiavaessereencontro.
Cientedeestartocandonumassuntodelicado,Aladzioprosseguiu:–Bicudafalamuitoemvocê,sabe?Achoque,depoisdetantotempo,elaseafeiçoouavocê.–Aladzio,Bicudaéumaave.–Laertesorriu,inclinandoacabeça,jámaisrelaxado.–Umafalcão!–melindrou-seoinventor.–Umafalcão-peregrinoque,ébomlembrar,sempre
entregou todas as nossas cartas! Não é uma... – crispou os lábios antes de continuar, cheio dedesprezo:– ...“ave”,comovocêdiz.–Apontouumdedoacusador.–Elavaificarmagoadacomoquevocêdisse.Muito,muitomagoada.
Laerte não conteve um sorriso. Era tão bom ter Aladzio como amigo! Enquanto Rogant oapaziguava com sua calma e seu autocontrole, Aladzio dava um pouco de leveza a seu coraçãopesado.Quandoàsvezesaconteciadeestarsozinhofrenteaumafogueira,acampado,sentindo-sedevoradopelaira,fingiaqueoinventorestavaalicomele.
Sim,gostavadeAladzio.Eorespeitava,principalmenteporsaberdoperigoconstanteaqueelese expunha: estava a serviço dos Azdekis desde que o pai de Page o cedera a eles, mas,secretamente,tambémtrabalhavaparaoconselheiro.Emboratomassemtodoocuidadoparanãodespertarnenhumasuspeita,umúnicoerro,umúnicotextocitandoseunomequefossepararnasmãosdeÉtiennesignificariasuamorte.Pudera...SeThéodusdePage,aosentiraproximidadedamorte,ofereceraaosAzdekisosserviçosdeseuinventor,eraporqueeste,desdemuitojovem,deramostrasdeumaincrívelcapacidadeintelectual.
Aos 15 anos, traduzira um textodo antigodialeto gueyle.Aos 16, recitava a ascendência dosPerthuis, descrevia a vitoriosa tática dos Majoranos na grande batalha de Poliesta, propondo,inclusiveumanovamanobra.Seuúnicoponto fracoeraa instabilidade,umamansa loucuraqueelenãocontrolavaeque,àsvezes,oafastavadarealidade;umaingenuidadequase infantil.EeraexatamenteissoquefaziabemaLaerte.
–Bicudasemprefoigentilcomvocê–ruminavaAladzio,meneandoacabeça,decepcionado.–Acredite,elagostamuitodevocê,muitomesmo.
–Aladzio–chamouPageemtomcalmo.–Hácertosvínculosentreoshomenseosanimaisquedevemser respeitados, coisasquevão
alémdomundorealequevocênãodeviadesprezar,Rã...Laerte.–Aladzio!–Pagealçouavozcomotomcertodeautoridadeeoinventorsecalounoato.Mas
continuavachateado,esbravejandobaixinhoenquantocolocavaotricórnionumamesaaseulado.– Acho que Laerte não fez essa viagem toda para ouvir você falar sobre a sua av... a simpática
Bicuda.Achotambémquetemosassuntosmaisimportantesparatratar.Estouerrado?Nãofoiprecisoinsistir:umsorrisoimediatamenteiluminouosemblantedeAladzio.Eleentão
se pôs a remexer nos livros sobre a mesa, espanando a capa de um ou outro, até finalmenteencontraroquequeria.
–Estáaquiiii.–OlhouparaLaerte,extasiado,tamborilandocomamãofirmenacapadecourodecabra,gastapelotempo.–Ocódice.
–Ocódice?–repetiuLaerte,incerto.–Emgueyle–interveioPage,querendochegarlogoaoponto.–Umdosmaisantigosdialetos
dosantigosreinos.Eumadasprimeirasescritas.Essalínguafoiesquecidacomopassardotempo,anãoserpara...
– ... mim – interrompeu Aladzio, orgulhoso. – Rá, rá! Estamos aqui numa das primeirasbibliotecasdosmongescopistas!–Enquantofalava,foirecuandoentreasmesas,braçosabertos,ocódicenumadasmãos.–Centenasdelivros,Laerte!Emcadaumdeles,séculosdeconhecimento,delínguasextintas,glifos,descrições...Eestecódice,estefabulosocódice,queéoeloentreostrêsLiaberqueconhecemose...–Parounomeiodasala,comumaexpressãomaissériaegravedoquenunca.–Euconsegui.
OsemblantedeLaerteseturvou.LançouaPageumolharsombrio.Onobreosustentousempestanejar.
–Conseguiuoquê?–perguntouLaerte,sentindoairabrotardentrodesi.Entreasmesas,Aladziobalançavaacabeça,pensativo,oolharvagueandopelasala.– Consegui entender... – declarou. Foi rapidamente até a escada, fixada entre dois trilhos, e,
com a palma da mão, a fez deslizar ao longo da estante. – ... o poder do Livro – prosseguiu,afagandoalombadadosvolumesenfileiradosnasprateleiras.–Opoderdosescritos:éissoqueosAzdekisquerem.
Laerte cruzoumais uma vez o olhar com o do duque e se deu conta, pelo modo como estemeneavaacabeça,dequantaimpaciênciaseuprópriorostomostrava.Opoderentãonãobastavapara Étienne Azdeki e seu tio? Eles ainda nutriam outras ambições? Já tinham tudo, tinham aRepública,oLiaberDest,oquemaisqueriam?Laerteprecisavaderespostasclaras.
–Osfatos,Aladzio–alertouPage.–Atenha-seaosfatos.O inventor estacou, surpreso.Quando ia abrir a bocapara expressar seudesagrado, a vozde
Laertesefezouvir:–Oque eles esperam conseguir comoLiaberDest? Pois é isso, não é?Aladzio finalmente o
traduziu...Page,semdizernada, limitou-seafitá-locomumolharestranho.Àscostas,Laerteescutouos
passosligeirosdeAladzio.Virou-sedesúbitoquandoesteseaproximoueviuoinventorumtantosemjeito,odedoindicadortocandoapontadonariz.
–Nãoexatamente–murmurou,comoserevelasseumvergonhososegredo.–Émais...–OLiaberDestnãopodesertraduzidocomoumlivroqualquer–interrompeuPagenumtom
extremamentecalmo.–Precisaserdecifrado.Eleécompostodepoemas,pensamentos,escritosemvários idiomas, e de gravurasque, para fazerem sentido, precisam ser apresentadasnumaordem
bemprecisa.– Trata-se do destino dos homens, Laerte – continuou Aladzio com súbito entusiasmo. – A
lenda do monge da Torre de Fangol que ouviu a voz dos deuses murmurando o destino dahumanidade!Portrintadiasetrintanoites,eleescreveu.Trintadiasetrintanoites,semdescansar,semsealimentar,atémorrer...Aindanãoconsigoentendertudo,mas...
–Mas o quê? – irritou-se Laerte, quase grudando nele. – Você o decifrou? O que querem osAzdekis?Mediga.Mediga,Aladzio.Medigaapenasisso.
– Não, não decifrei – respondeu. – Émuito complexo. Vi, sim, algumas coisas que talvez serefiramafatospassadosoutalvezanunciemeventosfuturos,mascomotercerteza,como...
–OqueelesquereméderrubaraRepública– interrompeuPagederepente.Apoiando-senosbraços da poltrona, o duque se levantou devagar. – Eles fundaram a República, mas já nãoconseguem controlá-la. A Ordem de Fangol vem perdendo a legitimidade, outras crenças vêmsurgindo em seu lugar, as coisas não estão acontecendo do jeito que eles tinham imaginado.Azdekisempresonhouemserosalvador,oeleitopelopovo.SempreteveaesperançadeverparasiumdestinogloriosonoLivroSagrado.OqueelequerémostrarqueestádepossedoLiaberDeste,agoraqueAladziocomeçouadecifrá-lo,é sóumaquestãode tempoatéele sercapazde lê-lo,deentenderosdeuses.
Oduqueajeitouminuciosamenteasmangasdacamisa,semnemolharparaLaerteeAladzio,eprosseguiu:
– Azdeki, Rhunstag, Enain-Cassart, todos esses que já não acreditavam na dinastia Reyes...QuandoseupailhesrevelouopactoentreafamíliaReyeseasua,quandoelesdescobriramqueoLiaberDest foramantido em segredo esse tempo todo, que sempre eraumReyesquemdirigia aOrdemdeFangol,nãotiveramnenhumadúvidasobreoquedeviamfazer.SempretiveramcertezadequeoLiaberDest continha o destino da humanidade, que só aOrdemde Fangol garantia orespeito pelas tradições. E agora, depois de fundarem a República, descobrem que ela tendeperigosamenteparaalgoquenãolhesconvém.Oqueelesqueremnãoéopoderdedecisão,masopoderdemoldarummundoàsuaimagemesemelhança.Estápercebendo,Laerte?
Pagedirigiu-lheumsorrisocomedidoeacrescentou:–Nósdoistemosinteressescomuns.Antesdeagir,euprecisavatercertezadeestarcomtodas
as cartasnamão.Neste exatomomento,Azdeki estápreparando suacoroação.Precisodescobrirquem são os que estariam dispostos a segui-lo, e sei onde poderemos encontrá-los... Com ocúmulodeorgulho,elequerrealizar,nummesmoevento,ocasamentodoseu filho.Umanovaegrandelinhagemirágovernar,comoapoiodosdeusesedeumaOrdemdeFangolmaisfortedoquenunca.Azdekivaijogarparaoaltoosonhodeseupai,depoisdeoterusadoparasobreviveràderrocadadovelhomundo.
–Não–disseLaertenumsussurro.–Issonunca.–Vamosagirparaimpedirqueissoaconteça.–Quando?–avozdeLaerteestaloufeitoumchicote.–Daqui a um ano – informou Page. – EmMassália, durante aNoite dasMáscaras. Após o
casamentodofilhodele.
DuranteaNoitedasMáscaras...Apósocasamento...
Ocasamento.Quandoomencionara,Page seguramente sabiaquemera a feliz eleita. Senãodissera nada, fora decerto para evitar que Laerte tentasse se convidar à sua maneira. De nadaadiantou. Um ano depois, tocavam os sinos da catedral deMassália. Namultidão, um homemavançavadevagar,orostoencobertoporumcapuz.Laerte iaabrindocaminhosemqueninguémpercebesse. Sua discrição era como sua fúria: absoluta. Esgueirou-se entre os convidadosfantasiados,bemdebaixodasfuçasdosguardas,eentrounacatedral.
Ossinostocavameseucoraçãodilaceradoseagitavaemsobressaltos.Ossinostocavame,aolonge, na casa, soavam para Viola como um dobre fúnebre. Se Laerte se mostrasse antes decomeçaraNoitedasMáscaras,tudoestariaperdido.
12
Aescolha
Não,eunãoduvidava!
NãoduvidavadoLiaberDest,
semprefoiassimdesdemuitosséculos.
ParaosUsters,oLivro,eparanós,aEspada.
Na nave central, grandes vitrais coloridos fragmentavam a luz do sol. Inúmeros raiosmulticoloridos pousavamno piso ladrilhado, roçando os bancos envernizados, semoldando aosnobrestecidosdosconvidados.
Doveludopúrpuraaoverde-folhadospaletós,doazul-celesteaobrancopurodosvestidosdegala, a nata da sociedade republicana estava reunida na catedral deMassália. Empoleiradas nasvigas que se entrecruzavam 10 metros acima, pombas batiam asas, insensíveis ao estranhoespetáculo que se desenrolava sob seus olhos. Foram as únicas, decerto, que repararamno vultodestoante,capuzpuxadosobreacabeçaligeiramenteinclinadaàfrente.
Laerteseesgueiravatãodiscretamentenamultidãoquemalsenotavasuapresença.Insinuava-seentreosconvidados,roçandoseustrajes,espiandodeesguelhaossoldadosdeplantãojuntoàsimponentescolunas.
Diantedeumaparededanavecentral,haviaaestátuadeumamulhercomumpanocobrindoosseios,umadasmãostapandoosexoeaoutraerguidaparaocéu.Eraapenasaprimeiradeumalongasériedeesculturas,todasaltas,masaúnicaqueelepodiaalcançarfurtivamente.Afastando-se da maré humana que entrava na catedral, apertou o passo e se esgueirou atrás do pedestal.Subiusemfazerruídopelascostasdaestátuae,chegandoaoombro,certificou-sedequenãohavianinguémolhando.EntãorecorreuaoSoproe,numsaltoimpecável,pendurou-senumacornija,aspernasbalançandonoar.
Aspombasbateramasas,algunsconvidadosolharamparacima.Ninguémreparounovultoquese içavahabilmentesobreacornija.Laerteseagachou,amão
nopunhodaespada.Tinha,dali,avisãoideal.Algunsmetrosadiante,nocentrodacatedral,ficavaoaltardepedraparcialmenteencobertoporumtecidovermelhoedourado.Sobreele,doiscálicesacolhiam a água clara vertida por um santo homem que usava uma longa túnica violeta e umchapéuornadodeumafolhadecarvalho.Aseulado,homenscomasarmasemristeaguardavam.
Laerte reconheceuAzdeki e suaarmadurabrilhantequeostentavaas insígniasde sua família:umaáguiasegurandoumaserpenteentreaspresas.Nãolongedali,sentadonasprimeirasfileiras,o corpodisformede seu tio se sobressaltava a cada roncoquedava.Foi acordadoporum jovemvindolhesussurraralgumacoisaaoouvido.
Vivam,pensavaLaerte,riameaproveitem...Logoserãocastigadoscomomerecem.Seu olhar tentava adivinhar em quais dos cavaleiros presentes corria o sangue dos Azdekis.
Procuravaumhomemderostomagro,narizaquilino,feioearrogante,masnãoavistouninguémquecorrespondesseàimagemquetinhadeBalianAzdeki.
Depoisque todosocuparam seus lugares e se abriu,na catedral, umcaminho entre asportasescancaradaseoaltar,osantohomemergueuosbraçosparaoalto.Laerteseencolheunacornija.
–Eminentesconselheiros,famílias,amigos,dignitáriosdeMassália,quehojeacolhemanatadenossajovemeamadaRepública–clamou–,estamosaquireunidossoboolhardosdeusesafimdeunirodestinodeduaslindaspessoas.
Então o avistou, finalmente. O santo homem endereçou um sorriso servil a um dos jovenscavaleirospresentes,aopédoaltar.Oplastrãodesuaarmaduranãoostentavaobrasãodafamília,mas se distinguia dos demais por ser mais brilhante, mais claro, e pelo bordado prateado nasdragonas. Tinha cabelo louro curto, um rosto ainda pouco marcado pela vida de combatente.Decerto passara a guerra em seu castelo, em Vershã. Havia em sua fisionomia uma ansiedademescladadeagitação,umafelicidadequeirradiavaemtodaasuapostura,emseuportealtivo.Era,naquelemomento,ocentrodasatenções.
HavianelealgoquelembravaIago,ofilhodocapitãodasSalinas...AqueledequemEsyldnãoparavadefalarantesdeaguerraeclodir.Laerteseretesounabordadacornija,amãosegurandoopunhodaespada.
Aspombasresponderamàstossesdealgunsconvidados.Osantohomemdeucontinuidadeaoculto.Suaspalavrasecoavamportodaacatedral,masLaertejánãoescutava.Fitavaintensamenteo cavaleiro louro. Observava cada detalhe do que o cercava, contava os guardas a seu lado, jáimaginavaomomentoemquese lançariasobresuavítimadeixandoqueelavissebemseurosto.Fazia questão de que a última visão daquele que lhe roubara sua amada fosse uma autênticapersonificaçãodaira.Ah,é?Queriaobrigá-laapartir?Considerava-asuaescrava?Seuobjeto?Quefuturosórdidopreparavaparaela?
Ao imaginarohorror reservadoaEsyld, sentiabrotardentrode siuma ira indescritível.Maisviolentaquetodasquejáexperimentaraatéentão,eracomoumfogopercorrendosuasentranhas,agitandotodooseusereconferindo-lheumaforçaimplacável.
Foientãoqueaavistou,precedidaporquatrodaminhasdeamareloepelalongacaudadeseustrajes. Usava um vestido dourado, um amplo colarinho emoldurando o penteado cacheado. Emseupescoço,logoacimadocolorealçadoporumcorpete,cintilavaumdiamante.Seurostoparecia
gélido,seusolhosevitavamamultidãoqueafitava.Caminhavalentamentee,atrásdela,vinhamosalabardeiros,armasjuntoaoombro,capaceteemformadecone.
Eles a obrigavam a avançar, disso Laerte tinha certeza. Não podia perder tempo, não podiadeixar que a submetessem àquela abjeta cerimônia. Curvado, moveu-se pela cornija, detendo-seacimadoaltar.Aquealturaestava?Uns20metros?Quandoforajogadodasaladotrono,nanoitedarevolução,tinhamsidonomínimo40metros,esemoSoproparaamorteceraqueda.
Finalmente Esyld chegou ao altar, onde foi recebida pelo impostor. Ele lhe ofereceu a mão,ajudando-a a subir os degraus até as almofadas aos pés do santo homem. Ajoelharam-se etrocaramumolhar.
Umsóolhar.Vocêaama?É claro que ele a amava. É claro que não podia abandoná-la assim nas mãos daqueles
monstros.Otempopassou.Nadaémaiscomoantes.– Balian Azdeki, filho de Anya Bernevin e do eminente conselheiro Étienne Azdeki,
comendador da ordem da República, conde de Vershã, aceita por esposa Esyld Orbey, aquipresente,filhadeAlenaAngeneteGuyOrbey?
Ocasamentovaiserantesdafesta...Issonãoiaalterarosplanos.Nãoiainterferiremnada.Eleeraperfeitamentecapazdecuidarde
BalianAzdekisemprejudicaraentradadelesnoPalatio.ÉtienneAzdekinão ia,de jeitonenhum,adiaroritual...
–Sim...sim,aceito–respondeuBalian,avoztrêmuladeemoção.Preciseiesquecê-lo,Rã.Digaquenãomeama!–EsyldOrbey,filhadeAlenaAngenetedeGuyOrbey,aceitacomoesposoBalianAzdeki,filho
deAnyaBernevinedoeminenteconselheiroÉtienneAzdeki...Amão dela continuava pousada sobre a do cavaleiro, apertando-a. Laerte precisava agir, era
agoraoununca.Elaoamava,tinhaditoqueoamava,umsentimentoassimnãopodiamorrer,eraeterno.
–...comendadordaordemdaRepública...Sentia o coração latejar, um vazio voraz crescer dentro dele, feito um monstro faminto se
alimentandodesuador.Tinhaasensaçãodenãosermaisnada.Setentarqualquercoisa,issotudo,otantoquenospreparamos,terásidoemvão.QuegarotaestúpidaeraViola;nãotinhaideiadoqueeraoamor,apaixão,arenúnciadesiem
razãodooutro.Oque ela sabiadoque ele era capazde fazerporEsyld? Só restava surgir comaespada em riste, cravar a lâmina na garganta de Balian, livrar-se dos guardas e se perder namultidão, feito uma sombra...Domesmomodo como cuidara, no porto, domarquês de Enain-Cassart. Tão furtivo quanto a Mão do Imperador. E o medo e a aflição iam consumir ÉtienneAzdekiaindamais.
Digaquenãomeama!
Nãoacreditavanisso,nemporuminstante.Elasótinhaditoissoparaprotegê-lo.–...condedeVershã,aquipresente?Seu coração parou. Fez-se, entre os presentes, um longo silêncio. Nem mesmo as pombas
emitiramqualquersom.Àluzdosolcoloridopelosvitraisdacatedral,osemblantedeEsyldpareceuendurecer.Seusolhosficarammarejados.
–Não...diganão–murmurouLaerte.–Diganão,porfavor.Abaixou-senacornija,puxandoligeiramenteaespadadabainha.Láembaixo,osantohomem
ficou confuso, lançou olhares aflitos para Étienne e seu tio. Sem mais esperar, perguntounovamente:
–EsyldOrbey,filhadeAlenaAngenetedeGuyOrbey,aceitacomoesposoBalianAzdeki,aquipresente?
–Não...–repetiaLaerte.Ouviram-se algumas tosses, que se deviam tanto ao cansaço de gargantas idosas quanto ao
constrangimentoqueaquelesilênciocausava.–Diganão...Não...Quasechorando,elaergueuoolharparaosantohomem.Porém...Sorria,resplandecente.Não!Estavasendoforçadaecoagidaasecasar;essanãoera,demodoalgum,suavontade.Os
Azdekis manipulavam todo mundo. Por que Balian haveria de ser diferente? Como ela poderiaamá-lo?
Laerteseimpacientava.–Sim–respondeuelaafinal,numsussurro.–Sim,aceito.Irradiou-seentãoumalívioimenso,seguidoporumasalvadepalmas.–Eu os declaro unidos pelos laços domatrimônio diante dos deuses e daRepública que eles
protegem–anunciouorgulhosamenteosantohomem.–Bebamdestecáliceeselemsuaunião.Ascoisasmudam.Aspessoasmudam.Omundonãoestámaisemguerra,Laerte!Como ela podia beijá-lo tão ternamente?Como podia deixar amão dele se demorar em seu
rosto,comoseoquisesse juntodesi?Passou-lhepelacabeçaa imagemdeseuscorposnus.Comfúria no coração, encolheu-se na cornija. Não conseguia deixar de vê-los se enlaçando, seaninhando compaixão... sua pele colada na pele dele, seus lábios colados nos dele, seu coraçãoentregueaeleporinteiro...
EUESTOUEMGUERRA!Sentou-se, puxou as pernas para junto do corpo e as abraçou, feito criança. Respirava com
dificuldade, sua única vontade era ir para cima de Balian, esfolá-lo vivo, espancá-lo, destruí-lo,rebentar os lábios que tinhambeijado o corpo de Esyld, cortar fora asmãos que haviam alisadosuascurvas,enfiaropunhoemseupeito,arrancarseucoraçãoefazerdelepicadinho.
Viacomoestava linda, feliz.Elanãohaviamentido.Ascoisasmudam.Passados tantosanos,elahaviaseafastadosemeleacharqueissofossepossível.Eele,quepodiaterficadocomela,saíraparalutaraoladodeDun-Cadal,obcecadoporsuavingança.Ficouali,prostrado,durantetodaacerimônia.Sucederam-seoscânticosreligiosos,tocaramossinosquandoosnoivoscaminharame
reapareceramnoadrodacatedral,aclamadospelamultidão.Quandoenfimseviusozinho,desceupela estátua e saiu por uma porta lateral. Contornando o povo em festa, sob uma chuva deconfetesmulticoloridos,olhouparaosrecém-casados.Aosolcintilante,saudavamMassáliainteira,queseuniaàsuaalegria.Sorriam,emocionados.
Laerte se afastou, deixandopara trás parte de sua vida.Naquelemomento, seus caminhos seafastavamparasempre.Tudodefatohaviamudado.
–Éprecisoacabarcomisso–disse,empénasoleiradaentrada.Na sala, todoso fitavamgravemente,Rogant sentadono sofá,Viola aopéda escadaeDun-
Cadalpertodacozinha,umcanecodevinhonamão.–Eocasamento?–perguntoutimidamenteamoçaquandoLaertepassoudepressaporela.Semresponder,eleatravessouasalacompassosdecididos.Nãoqueriafalarsobreacerimônia,
issonão importavamais.Concentrava-se no que tinhamplanejado.Dali a algumashoras, iriamparaoPalatio,aopassoqueDun-Cadalpartiriadacasa, livre,apaziguado,quemsabe,depoisdetantosanospranteandoamortedeRã.Não.QuemtinhadesejadopazeraLaerte, ao revelar suaidentidade.Quemsabeatéesperasseumperdão.
Oancião,semdizernada, foiatéelenopátio.Ladoa lado,contemplavamacidade, trocandoolhares tensos. Diante deles, os telhados de Massália se tingiam de alaranjado. Ao longe seavistavamoporto,osveleirosancoradose,nalinhadohorizonte,osolrefletindonomarcalmo.
Laerte olhou para o caneco que o ancião levava à boca. Balançou a cabeça, resignado. Nãopareciaembriagado,masquantotemporestavaatéoálcoollhesubiràcabeça?Tornouabaixarosolhos ao ouvir o vinho escorrendo no cascalho: Dun-Cadal, com uma expressão vaga, virava ocanecoederramavaabebida.
–Euatépodiacomemorarnossadespedida,masnãosintoamenorvontade...Laerteapenasassentiu.Comumsorrisotristenoslábios,Dun-Cadalobservouasgotasgrossas
devinhopingandodocaneco.Pareciacontemplarseusremorsosdesaparecendonocascalhoatéaúltimagota.
–Peloqueentendi,estareilivrehojeànoite.–Umacarruagemvirábuscá-lopoucodepoisquesairmos–disseLaertecomavozembargada.
– Vai levá-lo aonde quiser. Page aceitou lhe deixar uma quantia suficiente para você viver maisalgunsanos.
–Querdizer que ele estáme comprando... É assimque funciona? – indagouDun-Cadal comumrisodeescárnio.–Escondeumuitobemojogo.
Laerte até gostaria de contar a seu mentor o que o aguardava, tranquilizá-lo antes de sedespedir.Sesentirarecentementealgumódioporele,erasóporvê-loassim,alcoólatraeperdido.Ao longode todosaquelesanos,aprenderaaamá-lo.Perdera-odevista levandoa lembrançadeumaltivogeneraleoqueviaagoranãopassavadasombrasujadeumcavaleiroàbeiradamorte.
Seus sentimentos estavam mais claros. Embora não fosse capaz de colocá-los em palavras,agorasabia:amavaDun-Cadal.
Cogitou,porumbreveinstante,pôramãonoombrodovelho.Masnãosemoveu.Seuolharvoltou-senovamenteparaacidadeláembaixo.– Me diga uma coisa – pediu Dun-Cadal, antes de pigarrear. – É no Palatio que tudo vai
acontecer,nãoé?Laertenãorespondeu.–EletemoLiaberDest,moleque–continuouogeneral,derrubandoocaneco,queespatifou-se
ao cair. Entre os cacos de cerâmica, observou o vinho serpenteando no cascalho, formandominúsculos riosquepareciamdecidiroprópriocurso.–Éodestinodoshomensqueele temnasmãos.
–Épossívelquesim–concordouLaerte,oolhardistante.–Elenãomereceessepoder...–Écertoquenão.–Entãodetenha-o,filho.OtempopareceusearrastaratéLaerteseanimareenfimpôramãonoombrodeseuantigo
mentor.Sóporuminstante.Depoisseafastoueseguiuemdireçãoàcasa.–Rã!–chamouDun-Cadalcomvozgrave.Ao se virar, viu o brilho do sol poente envolvendo o vulto curvado do velho guerreiro.
Lentamente,ohomemseendireitoue, ao somde suavoz, semdistinguir seu rostonacontraluz,Laerteteveaimpressãodevê-loemseustemposdeglória.
–Vocêsetornouquemqueriaser,meugaroto?Vocêéumcavaleiro?Ouéumassassino?Suavozpareciamaissegura,noentanto,aindacontinhaumardetristeza.–Eexistediferença?–perguntouLaerte.Dun-Cadaldeuumpassoàfrenteealuzclareouseurostoenrugado.Haviaemsuaexpressão
umaserenidadealheiaaohomemqueforaumdia,comoseoenvolvesseemumvéudesabedoria.–Existeparavocê,paramim.Ojuramento,lembra-sedele?Nósprestamosumjuramento.–JuramosserviraoImpério–rebateuLaertesemnenhumaanimosidade.–Umjuramentoémuitomaisque isso–garantiuDun-Cadal.–Envolveocaminhoquevocê
escolhetrilhar.Esevocê,hojeànoite,sedepararcomEsyld?Vaisedeixarlevarpelafúria?O corpo de Laerte se contraiu. Não queria pensar nela, não queria imaginá-la, precisava se
concentrar em seu objetivo.Mas só de ouvir o nome de Esyld sentia uma tempestade que tinhamedodenãoconseguircontrolar.
– É disso que se trata, da promessa que você fez. Lembre-se disso. O caminho da fúriafatalmenteconduzaoabismo.Porque,paratrilhá-lo,teráquealimentarconstantementeessafúriaesempreolharparatrás.Vingançachamavingança.–Dun-Cadalaproximou-seapassoslentos.–Aescolhaésua,LaertedeUster.Meufilho...–Nãofezumgestosequer,limitando-seaencará-lo.–Sempretivemuitoorgulhodevocê.
NãoesperavanenhumareaçãoepassoudiantedeLaertesemdizermaisnada.Afinal,paraeleo importante não era saber qual seria a escolha do rapaz e, sim, lembrar-lhe que era inevitável
tomarumadecisão.Depoisqueogeneralentrounacasa,Laertefoiparaosfundosdopátioeficouadmirandoosoldeslizarnohorizonte.
Lançadoaofogo,nãoqueima...Tudo se decidiria naquela noite, tudo aquilo pelo que tinha lutado, todos os sacrifícios que
fizera,conscientementeounão...comoperderEsyldparaBalianAzdeki.Passadoaofiodalâmina,nãorasga.Éfeitodomurmúriodosdeusesenada,jamais,irádestruí-lo.O Livro Sagrado tinha a peculiaridade de ser indestrutível. Isso Aladzio já comprovara. Fora
umadasprimeirascoisasquedemonstraraaseunovopatrão, jogando-onofogodeumalareira.Aschamas tinham lambidoa capa semmarcarocouro.AssimqueAzdeki tirarao livrodo fogo,aindaardendo,Aladziolhepediraparafurá-locomumaadaga.
Alâminasepartira.O Liaber Dest era bem mais que um simples livro: estava aí uma verdade absoluta,
inquestionável. Daí a conter, como rezava a lenda, o destino da humanidade...? Page, hostil àOrdemdeFangol,tinhalásuasdúvidas.OsAzdekistinhamabsolutacertezadequesim.QuantoaAladzio...
Oinventorsesentiadivididoentreseuolharcríticodecientistaesuaesperançanaexistênciadealgomaiorqueasimplesrazãohumana.Aomesmotempoquetentavaentenderomundo,queriaacreditar em algo superior, algo... divino... talvez para poder se deparar com algum limite à suainteligência.
Do labirinto das lendas, conseguiu depreender algumas verdades, como a existência de umaantigatorresobaqualjaziaosaber.Entrefrasessibilinaseosprimeirosmapasdosantigosreinos,conseguiu definir a localização aproximada da construção. Quando finalmente, com o coraçãoapertado,foiaté lá, temiaencontrarapenasruínas.Porém,debaixodosdestroços,guardadosporum monge caído em desgraça, os primeiros grandes livros de escrituras da Ordem de Fangolesperavamporele.
Galapa, muito tempo atrás, vivera na Torre de Fangol, o lugar de referência da Ordem, oprimeiromonastério. Havia sido banido pouco antes da revolta nas Salinas e herdara a ingratatarefa de guardar aqueles destroços que não interessavam amais ninguém.Debaixo das pedrasdestroçadas,noentanto,jaziaumsaberimenso,esquecidopelaOrdemdeFangolapósamortedeseusmembrosmais ilustres.Havia, entre osmonges fangolinos, algo que sobrevivera a reinos eimperadores:osegredo.
NaquelatorreAladziodecifrou,traduziuepercebeuquantoaOrdemtinhacontadoaHistóriaàsuamaneira,recopiandolendasnebulosasatétorná-lasinquestionáveis.Foramnecessáriosséculosaté que nenhuma voz dissidente se fizesse ouvir. Os livros mais antigos conservavam em suaspáginasliturgiasdiferentesdaquelaspraticadasnotempodosReyes.
Nosmuitos textos que tratavam doLiaberDest, Aladzio observou uma estranha referência aumaespadadivina.Sempreressurgia,aolongodosséculos,umafrasecujosentidoforainúmerasvezesdiscutido:“Emminhamãoesquerda,oLivro,emminhamãodireita,aEspada,eameuspés,o mundo.” Tanto os monges fangolinos quanto os nobres mais eruditos eram unânimes em
afirmarqueosignificadodafraseerasimbólico.Amerahipótesedequedeviasertomadaaopédaletraforadesaparecendocomopassardosséculos.
Ameuspés,omundo.Que outra espada podia ser, além de Eraed? Que outra lâmina era tão antiga quanto a dos
imperadores?ParaAladzio, isso se tornarauma certeza, as duas coisas estavam ligadas.A repetiçãodeum
símbolodesconhecido,umretângulocortadoporumalinhareta, foise impondocomoreferêncianos diversos documentos que consultava. Até que, com a descoberta de um códice redigido naantigaescritagueyle,osignificadododesenhoficouclaro.
EntreaslinhasseescondiamasorigensdoLivroedaEspada.Oúnicoobjetivodalâminaeraadestruiçãodovolume.
Movidos por sua obsessão de ler o próprio destino nas páginas do Liaber Dest, os Azdekistinham esquecido a Espada do Imperador. Só o que importava para eles era a certeza de seremindispensáveisparaobomandamentodomundo.EmborativessemfundadoaRepública,emboratrabalhassem pelo futuro do povo, algomais sombrio,maismisterioso, vinha alimentando suasambiçõesdesdeaquedadoImpério.Algomístico.Afé.
O Livro conferia aos Azdekis, se não o conhecimento do destino dos homens, ao menos otemor dos incrédulos e o respeito dos crentes.Não estavamde posse domíticoLiaberDest, quediziam ter se perdido para sempre?Haviam conquistado o respeito de todos ao derrubarem umtirano por uma República mais justa. E agora também teriam o apoio dos deuses. Havia, noentanto,uma falha.Umpacto cuja importância elesnão consideravam,um segredoqueduranteeras se perpetuara entre os iniciados, uma partilha do poder: aosUsters, o Livro, e aos Reyes, aEspada.
LivroeEspadaestavamconectados.
–Queironia,nãoacha?Astochasdosubsolodatorrecriavamumcuriosojogodeluzesombranorostobarbeadodo
conselheiro.Pageapoiouasmãosnacompridamesademadeira,seuolharpasseandopeloslivrosabertos.
–SeeleestáemMassália...–AEspadaestácomele–afirmouLaerte,recostadonaparede.Pageergueuoqueixo.– Também acho – admitiu Page, assentindo. – Esse Dun... – Não pôde deixar de sorrir,
franzindo as sobrancelhas, mas se deparou com o rosto sério de Laerte. – Jamais a esconderialonge dele. Ele se diverte mandando o pessoal para o frio de Vershã, enquanto fica ao sol deMassália...–Fezumapausa.–A“cidadeondetudoépossível”.Elafazmesmojusaotítulo.Quaissãoseussentimentosemrelaçãoaele?
– Ele não significamais nada paramim, Page.Não vai ser um obstáculo. Ele vai falar, eu oconheço.
Pageentãoseendireitou,suspirando,jásemnenhumacomplacência.–Nãopodemosnospermitirnenhumerro...nenhum.Aladzio está a caminhodeMassália, a
pedidodosAzdekis,paraajudaraorganizaraNoitedasMáscaras.Conseguiupólvora,bemmaisdoqueanecessáriaparaos fogosdeartifício.Algunsconselheirosdevemvirpelomar.Noporto,você...
–VoumecontentarcomEnain-Cassart–interrompeuLaertefriamente.–ÉtienneAzdekificaporúltimo.Issoéimportante.–Euelaboreiesseplanocomvocê,Page.Vaiduvidardemimaestaaltura?Pela primeira vez o duque não conseguiu disfarçar sua ansiedade. Sumiram a serenidade e o
autocontrole que o caracterizavam. Diante de Laerte, não controlava mais nada. Porque agoraandavamladoalado,deigualparaigual.
–Nãoduvidodevocê.–Porquê?–perguntouLaertederepente.–Qu...Porqueoquê?–balbuciouPage.– Antes de partir para Massália, quero saber quais são suas motivações. A minha você já
conhece.SerámesmopelaRepública,comodiz?Serámesmoporelaquevocêluta?–Jádisse,elessãoumaameaçaparaa...–Porquê?–repetiuLaertecalmamente.Desde a queda do Império, o duque vinha paparicando Laerte, repassando todas as
informações,deduçõesepremissasparaquemontassemseuplano.ApoucosmesesdaNoitedasMáscaras,quandoacalordaprimaveradevolviaavidaaoscamposquecercavamatorreemruínas,Laertequeriatercertezadenãoserummeroinstrumentonasmãosdele.AdesconfiançadePageemrelaçãoaosAzdekisdecertosesomavaasuaira.Masedepois,comoseria?
–Éfundamentalquenenhumdenóssejaidentificadonospróximosacontecimentos.–Vocênãorespondeu–interrompeuLaerte.–EnquantoeunãodescobrirquaisconselheirosforamcooptadosporAzdeki,nãotenhocomo
saberquemsãonossosinimigos.QuemsãoaquelesqueestãodispostosadestruirosonhodoseupaipormotivosreligiososeadaràOrdemdeFangolumpoderqueelanãomerece.Paraelestudojá está determinado pelos deuses. Isso vai contra a ideia de uma República em que os homensdecidemporsiprópriosocaminhoaseguir.Esseshomensvãosedizereleitospelosdeuses,enãopelopovo.Eopovoémedroso,vailhesdarouvidose...
–Porquê?–repetiuLaertenumsussurro.–Porqueodestinonãoestáescrito!–bradouPage.–Porqueaspessoasquenãoforemcomo
elesvãoacabarnaforcaounafogueira.Emnomedosdeuses.Contratodaahumanidade.Bateuopunhonamesae,desnorteadopelaprópriaira,passouamãonocabelo,osmaxilares
cerrados. Laerte ficouparado, observando-o comumolhar desconfiado.Page contornou amesaparaficarfrenteafrentecomele.
– O que você quer ouvir? Que meu pai me batia porque via emmim a degeneração de sua
linhagem?Possocontar,sequiser,omodocomoelezomboudemimquandomechamouaoseuleitodemorte.Laerte...eleestavarindo.–Falavacomfrieza,semtirarosolhosdele.–Ah,ouentãopossotiraracamisa,sequiser,emostrarasmarcasdaschicotadasquetragonascostas,dequandoeletentavaexpulsarodemôniodomeucorpo–propôsemtomzombeteiro.–Todosnóssofremos,Laerte.Todos.Todostemosasnossascicatrizes,queservemparanoslembrarquantoénecessárioagir.AOrdemdeFangol enforcavagentecomoeue, seAzdeki cumprir seuobjetivo,osmongesvãogovernaraRepública.Podeacreditar.Nãohaverámaisescolha,elesvãodizerquejáestátudoescrito, que tudo é imutável, quenadaque elesnão aceitempode continuar existindo.Não estoulutandosópelaRepúblicaoupelasuavingança...
Dandoumpassoà frente, encarouLaerte e segurou suanucacommão firme.Orapazpodiasentirsuarespiraçãonorosto,masnãosemexeu.
–Étudoumaquestãodefé,Laerte.Étudoumaquestãodosentidoquedamosaosnossosatos,de seu alcance simbólico.Não acreditoqueodestinodoshomens estejanoLivro.Umdia aindasaberemos como e por quem ele foi escrito, por que a Espada foi forjada junto com ele e o queconfere a ambos essa indestrutibilidade. Acontece que temos uma grande oportunidade, Laerte.Uma oportunidade incrível que Aladzio está nos dando, só para nós, de descobrir o poder daEspada. Quero agarrar essa oportunidade. Vamos cuidar desse Livro para que ninguém nuncamaisfiqueachandoqueeleédivino.Estamosapenasnoprimeirodegrau,meuamigo.Minhafééna democracia.Minha fé é na humanidade, e não nesses deuses que teriam nos dado as costasdepoisdedecidiremtudo.
LaertebaixouosolhosePageperguntou:–Eraissoquevocêqueriaouvir?–Ondequerqueesteja,seupaideveestarserevirando–murmurouLaerte.Pagehesitouuminstanteesuspirou,crispandooslábios.Entãocomeçouarir.–Éverdade–admitiu.–Ele jamaisteriaimaginadoqueeupudesseserumdeseusoponentes
maisperigosos.AlgoqueAzdekitambémnemimagina...–andouatéumbaúentreabertoeergueua tampa com um gesto brusco – ... é que vai ser assombrado por um fantasma – concluiu numsussurro.
Laerte aproximou-sedele lentamente, amãonopunhoda espada.Pagenão se esqueceradoqueelehavialhepedido.Eleatinhaencontradoetrazido.Elapassarademãoemmão,comoumdespojo do Império conservado por súditos nostálgicos, até que o duque a comprasse a peso deouro numa loja de antiguidades. Dentro do baú havia uma capa verde e, sobre ela, a máscararachadadoúltimoimperador.
Laerte a contemplou, com um nó nas entranhas e os maxilares cerrados. Iria usar aquelamáscara.Precisavafazerisso,custasseoquecustasse.Suavingançatinhaessepreçoenãopodiasecontentar comsimples assassinatos.Queriaque cadaumdos traidoresquehaviamdestruído suafamília se sentisse tomado, esmagado e sufocado pelo medo. Cada um teria que enfrentar oprópriopassado,aprópriavilania,enenhumdelesteriapazenquantoLaertenãodessefimàsuavida. Ia acuá-los como fora acuado nas Salinas. Ia acabar com seus nervos, ia torturar suasconsciências.
– Não fique tão entusiasmado. Contente-se com Enain-Cassart e Négus – lembrou-o Pageenquantoseinclinavaparaapanharamáscara.–Azdekinãovaiadiaroevento.Bastaassustá-loosuficiente para ele tomar as medidas necessárias. Faça com que eles desconfiem... – A luz dastochascriavareflexosdouradosnamáscaraquePagelheestendia.–Chegamos,Laerte.
Ia humilhar Étienne Azdeki na frente de seus partidários. E iamatá-lo, pois o Livro não eraindestrutíveleumaespadahaviasidoforjadaemmetaldesconhecido.
–Quandochegarahora,craveaEspadanoLiaberDestparaelesveremquenãopassadeumsimpleslivro.Apenasumlivro...Chegamos.
Naescuridãodeumaviela,estavaapoucospassosdagrandepraçadoPalatio.Havia ali umamultidão naquele fim de tarde, homens e mulheres trajados para o carnaval,
usandomáscarasvariadas,sorridentesouinexpressivas, lisasouestampadas,enfeitadascomfitasou penas de pavão... Tudo em volta era só brilho, aparência e vaidade. Cuspidores de fogolançavam chamas para o alto, malabaristas divertiam grupos de foliões, músicos marcavam acadência com o pé enquanto pinçavam com os dedos as cordas dos bandolins. Flâmulas e fitasesvoaçavamacimadecriançasrisonhas.Algunscasaissebeijavameasestrelasiluminavamoazul-escurodocrepúsculo.AtrásdotelhadoarredondadodoPalatio,nasciaumaluapálida.
Laerte puxou o capuz sobre a cabeça, encobrindo parte da máscara dourada, e saiu de suaposição. Sabiaque todas asportasdoPalatio estavam fortemente vigiadas. Só se interessavaporuma delas, a que ficava junto aos jardins, onde tinha certeza de que não toparia com nenhumfolião. Todos preferiam ficar nas grandes avenidas, com suas roupas coloridas, batendo tambor,rindoebebendo.Eoecodeseuspassosressoavaaoredordopalácio.
Eramcincosoldados,doisdelespostadosjuntoàportinholaquedavaparaaescadailuminadapor tochas. Atrás deles se erguia o muro alto do jardim. A rua estava envolta pela penumbra.Ouviramseuspassosantesdenotarobrilhodesuamáscaraearachaduraqueariscava.Quandoumdelesordenouqueparasse,Laerteobedeceu, levandoamãoaopunhodaespada.Osoldadoveio em sua direção, segurando a alabarda, logo seguido por um dos colegas. Atrás deles,descendoosdegraus,vinhamoutros:dezsoldadosaotodo.
–Nãosemova!–Amáscara...Éele!–Éoassassino!Laerteempunhouaespada,masnãoa tiroudabainha.Nãofeznenhumgestoquandoouviu
aslâminastranspassandoascotasdemalha,oarquejodossoldadosestranguladospeloscolegas.Chegamos,Laerte.Foramcaindoumporum.Logorestavamapenasquatrosoldados,queconduziramLaerteao
interiordoPalatio.
13
Omurmúriodosdeuses
Nuncavouserumsimplesmurmúrio...
Paravocê,eusereiumgrito.
Com as rédeas de couro, Rogant freou os cavalos que puxavam a carroça carregada de barris.Passoudevagarpelaponteparcamente iluminada.À sua frente se erguiao imponentedomodoPalatioe,aopédoedifício,alabardeiroscontrolavamaosbradosodescarregamentodascarroçasdefrutaseverduras.Foiobservadoporalgunssoldadosquandoseaproximou,massemnenhumadesconfiança, apenasuma interrogaçãonoolhar.Outrosnâagas carregavamcaixotesdebebidasparadentrodoprédio.
–Oqueéisso?–berrouumsoldado,aproximando-sedacarroça.–Vinho–respondeuRogantentredentes.Mostrava-sepouco simpáticoparanãochamaratenção.Osnâagasnãoeramconhecidospor
suasociabilidade.Aotomcarrancudo,osoldadorespondeucomumacenodecabeçae,erguendoo polegar, apontou para as portas abertas de um depósito repleto de provisões. Lá dentro,empregadostratavamdeseparare levarosmantimentos.Rogantbateucomasrédeasnagarupadoscavalos.Constatou,comcertatristeza,que,emborahouvesseentreosempregadoshomensdeoutras origens, a maioria pertencia ao seu povo. E eram eles que executavam as tarefas maispesadas, apesar da óbvia fragilidade de alguns: nem todos os nâagas tinhamum físico igual aoseu.
Assimqueentrounodepósito,puseram-seadescarregarosbarrissemnemsequeresperarqueeledescessedacarroça.Doisguardas,porém,logointerromperamasoperações.
– Que carregamento é esse? – perguntou o primeiro, que ostentava uma cruz vermelha noplastrão.
Rogant desmontou e o encarou em silêncio. Era bem mais alto que ele, mas o soldado,certamente um oficial, não se deixava impressionar. Ao contrário de seu ajudante que, pouco à
vontade,amãojuntoàespadaquetrazianocinturão,evitavaoolhardeRogant.–Eupergunteiquecarregamentoéesse–insistiuosoldado,pronunciandobemcadapalavra.–Aprincípio,todasasentregasjáforamfeitas–observouseucolega.–Asfrutasjáestãonobufêenãofaltachegarnenhumvinho!–exaltou-seoutro.–Édaparte
dequem?Osnâagas ao redor largaramos barris no chão, sem saber se continuavamo serviço ou iam
cuidardeoutratarefa.–Édapartedequem?–repetiuosoldado,cadavezmaisagressivo.–Vocêconstanalista?–Foiumesquecimentomeu–interveioumavozofegante.Atrásdosdoissoldados,surgiuotricórniodeAladzio.Nãoprecisouconvencê-los,todosalisabiamdesuaposiçãoequevinhaacompanhadodeuma
boaescolta.Rogantoseguiusemterquedarmaisexplicaçõeseacarroça foidescarregada.Atrásdelesvinhamosnâagas,emsilêncio,seusbraçosnusetatuadoscomformasestranhastrazendoosbarrisnosombros.
– Você não ia responder com... com a força, ia? – indagou Aladzio em voz baixa, um arpreocupado.
A resposta de Rogant foi um sorriso estranho. Os clichês sobre seu povo eram persistentes,mesmo para um homem esclarecido como o inventor. Já cansado de se melindrar com isso,preferiaachargraça.
–Onde?–perguntouquandochegaramaumgrandepátiointernocercadodesacadasfloridas.Guirlandas coloridas enfeitavam as sebes nos canteiros de grama, seguiam para as sacadas,
cercavamascolunasdemármoreeostoldos.Decadaladodopátio,pessoasvestindolibréazulepreta entravame saíamporportasdeduplobatentequedavamparao interiordoPalatio. Fora,estavamdispostos cavaletes emesas, pratos e talheres, barris de vinho com torneiras demadeiraacopladas.
Aladzioapontoucomacabeçaumestradoondealgunsempregados jádepositavambarrisdereserva.
–Empilhematrásdoestrado–ordenouRogant,fazendoumgestocomasmãos.Osnâagasseguiramrapidamenteemdireçãoaoestradoparadescarregarosbarris.Nomeiodo
pátio,Aladziogiravaparaobservarassacadas,erguendoaabadochapéu.–Euenchitudodireitinho–garantiuAladzioquandoRogantseaproximou.Esboçouumsorrisosemjeitoenquantoesfregavaasmãosnervosamente.–Dissoeunãotenhoamenordúvida–respondeuonâagacalmamente.– Émesmo?Porque eu, pensando bem, tenho alguma – disseAladzio de repente. Ergueu os
olhos para a sacada mais próxima, imaginando o vulto de Laerte escondido atrás de uma dascolunas.–Podeficartranquilo,logosaberemossevaiserosuficienteparadistrairaatençãoousevamostodosvirarfumaça.
Zombeteiro,afagouoombrodonâagaantesdeseafastar.–Maravilha...–disseRogant,bufando.
As botas dos guardas estalavam no piso do corredor. Os quatro soldados avançavammaquinalmente, tãoacostumadosarealizaromesmopercursoque jánemsedeslumbravamcomas esplêndidas tapeçarias vermelhas iluminadas pelos lampiões a óleo. Naquela noite de festa,andando para lá e para cá, mudos de frustração, amaldiçoavam o chefe de patrulha que osmandaraparaaquelaaladoPalatioondenãoteriamaoportunidadedeassistiraoespetáculodosconvidados trajados com suas fantasias. Mantinham a mão no punho da espada, mas nãoesperavam desembainhá-la. Apesar dos dois assassinatos perpetrados nos últimos dias, eraimprovávelqueumcrimefossecometidonaquelelocal.Alémdoque,deúltimahora,oefetivoforadobrado.
Os três homens que vinham ao seu encontro eram reforços. Vestindo plastrões de couro,estavam armados de simples espadas e arcos a tiracolo. Pareciam insossos perto das armadurasvistosas dos soldados do Palatio, mas deixavam os dignitários mais tranquilos. Estavamincumbidosdevigiar apenasos espaços fechadosaopúblico,ondeninguém,alémdaguarda, seofenderiacomaaparênciadeles.
Cumprimentavam-secomumsimplesacenoquandoumvultoenvoltoemumacapaapareceunaextremidadedocorredor.Sobocapuzreluziaumamáscaradouradaeamãoesquerdaseguravaopunhodaespada.
Os guardas não tiveram tempo de agir: lâminas transpassaram suas costas, saindo pelosplastrões.Commão firme, osmercenários cortaram suas gargantas e apararam suavemente suaquedanopisoladrilhado.Laertepassouemsilêncioporcimadoscadáveres.Fezumsinalparaqueossoldadosimprovisadososeguissem.
–Fezboaviagem?–perguntouViola.Aceitandoamãoquelheeraestendida,elepisougarbosamentenoestribo,trocandoosossego
dacarruagempeloalaridodagrandepraçadoPalatio.Onojoquesentiuaoavistarumfiodeurinaescorrendo pelas lajotas foi dissimulado pelamáscara de javali que cobria seu rosto. Não longedali, junto a um canteiro de flores, uma tropa repreendia umhomemque, titubeante, tratava deajeitarascalças.
–Aparentemente,afestajácomeçou–observouPage.Napraça,amultidãoseaglomerava,alegreecolorida,todosvestindotrajesestranhos,dosmais
refinadosaosmaisremendados,ostentandomáscaraselaboradasoufeitasdesimplespapel.Sósevislumbravam os olhares, apenas as palavras contavam, a aparência já não importava. Assimsempre foraaNoitedasMáscaras,uma festaantiga trazidadadistanteEolae transformadapelaRepública em evento nacional. Fingir igualdademesmo que apenas por uma noite, esquecer aspróprias origens: que o endinheirado brinde com omais pobre, que se disfarcem as diferenças.
Naquele ano, a convite do conselheiro Azdeki, amaioria dos dignitários de Émeris se deslocaraparaMassália,quedesfrutavaassimdeumaNoitedasMáscarasmuitoespecial.
Flautasebandolinsacompanhavamcantoresdeumanoitesó.Risadaspipocavamnamultidão.Corposseenlaçavamsempudor,trocandobeijosecaríciasdiantedoolhardivertidodosfoliões.
–Deixamosacasadojeitoqueosenhorpediu–informouViola,enlaçandoobraçonodele.Pagedirigiu-lheum sorriso que ela sónotoupelo franzir de seus olhos.Ele parecia devorá-la
comoolhar,eela,corando,nãoconseguiudisfarçarseuconstrangimento.Apartesuperiordeseurosto estava oculta pela máscara e plumas se curvavam sobre seu cabelo trançado. O vestidodecotado, de um azul que lembrava o céu ao entardecer, revelava, a cada passo, suas delicadaspernas.
–Embora tenhamecustadocaro–dissePageentredentes–,Dunnãoseráumproblema. Jácuideidisso.Esseassuntoestáencerrado.
–Oimportanteeraoqueeleguardava,nãocreioque...–Nãoodefenda–respondeuPagesecamente.–OfatodeLaerteterreveladosuaidentidadeao
velhogeneralsemmeavisaréalgoquevamosacertarmaistarde.Porora,ViolaAguirre,façamosboafigura.
Atravessaram a multidão, mostraram seus convites aos guardas e foram escoltados até osdegrausdoPalatio,cujotelhadoarredondadobrilhavacommilluzes.Nocéu,aluanãoparavadecrescer e, a seu lado, as estrelas começavam timidamente a brilhar. Entraram no palácio,deparando-secomumsuntuosocenáriodemármoreetapeçariasantigas,cujabelezaerarealçadapela luzquentede tochas e lampiões aóleo.Adentraramo imenso salãodebaile, decorado comtapeçarias e lustresde cristal, imponentes estátuas equadrosdemestres.Duas amplas escadariaslevavamaoandardecimadescrevendocurvasperfeitas.Noalto,acercade10metros,odomodoPalatio cobria o salão comuma pintura de guerra quemostrava umamulher seminua cravandoumalançacintilantenocoraçãodeumimperadordisforme.
Estavam todos ali, com seus mais belos trajes, máscaras sutilmente trabalhadas, e riam,conversavam,falavamalto,bebiamvinhocordesangueemtaçasdeprata.Empanturravam-senogigantescobufêdisposto juntoaumagrande fonte internaornadacomaestátuadeumgigantebarbudo. Page identificou facilmente os conselheiros que costumava enfrentar na Assembleia.Quem seriam, entre eles, os que abraçavam a causa de Étienne Azdeki? Lá estava Rhunstag,acompanhado da esposa, ambos usandomáscara de urso e ele ostentando orgulhosamente noombro sua pele.Não tão longe dali, conversando com quatro conselheiros, Bernevin optara poruma simplesmascarilha e sua toga de estadista.Ohomemquemais chamou a atençãodePageexibia uma máscara de águia, o bico afiado lançando uma leve sombra em seus lábios finos equeixo barbeado. O casaco preto batia na altura das coxas, e do cinturão prateado pendia umacompridaespadanumabainhaornadadepedraspreciosas.
PagesentiuViolaencolher-sejuntoaelequandoAzdeki,aoavistá-los,abriucaminhoentreosconvidadosparavircumprimentá-los.
–Ora,quesurpresa!–exclamouAzdeki.–Estámereconhecendo?Seráquenãoescolhidireitoomeudisfarce?–brincouoduque.
–Pelo contrário, essamáscara é a sua cara... Só imagineiquepreferisseo climada capital aosufocantecalordoSul.
–Acheiqueseriaeducadoaceitarseuconvite,caroconselheiroAzdeki.OcasamentodeseufilhoéumacontecimentoparaanossabelaRepública.
Azdekimeneouacabeça,estreitandoosolhosatrásdamáscaradeáguia.Virou-seafinalparaViola.
–Éaprimeiravezqueovemosnacompanhiadeumamulher.–Ah,asaparênciasenganam–murmurouPage,comumprazerquenãopretendiadisfarçar.–
NaNoitedasMáscaras,cadaumassumeaimagemquelheconvém.Atéumfracopodesefingirdeforte, não acha? Só percebe no dia seguinte que era apenas uma ilusão. Talvez eu esteja sendoindelicado.Vocênãoédotipoquesedeixaembalarporilusões.
–Não,nãosou–respondeuAzdekiemtomgélido.–Talvezvocêseja,nãoé?–Eu?–espantou-sePage, levandoamãoaopeito.–Ora,deixemospara lánossasdiferenças
naAssembleia.AmbosservimosàRepública,jáéumpontoemcomumentrenós.Respeitemosumaooutro esta noite, que pode ser a últimadenossas vidas. Soube, compesar, que um assassinoandouagindoemMassália...PobreEnain-Cassart,pobreNégus.
–Apenasumlouco,quenãovainosprejudicarmais–assegurouAzdekicomfirmeza.– Não estou preocupado, já queme disseram quemandou reforçar a guarda. Não foi difícil
acharhomenshonestosparacuidardasegurança?–Estariaduvidandodeminhacompetência,respeitávelconselheiro?–indagouAzdekicomum
sorrisoameaçadornoslábios.–Demodo algum!Nemme atrevo a avaliar o problemaque enfrentou, tendoque reforçar a
guarda do Palatio sem privar a cidade de todos os seus efetivos. O que me leva a concluir queprecisourecrutar.
–Fizoqueprecisavaserfeito,Page.Nãotemapornossasegurança,apesardoqueouviudizersobre esse assassino... ou qualquer outro assunto – disse Azdeki devagar, inclinandoameaçadoramenteacabeçaemsuadireção.
–Équetemhavidomuitosboatos...Vocêmeconhece,àsvezesmepreocupoàtoa.– Você é mais esperto do que deseja aparentar – declarou Azdeki. – Está tentandome dizer
algumacoisa,Page?TemalgumaperguntasobrealgoquetenhaouvidonoscorredoresdeÉmeris?Receiosquantoasuapessoa,talvez?
– Não, não, nada disso. Nem me passa pela cabeça que possa nos esconder alguma coisa.Quantoaoassassino,nãohádúvidadeque saberánosproteger.Aceiteminhasdesculpas, longedemimmelindrá-lo.Principalmenteestanoite.
–Agora,semedálicença,precisocumprimentaroutraspessoas.– É claro – afirmou Page. – Em companhia deminha dama, vou fazer o que seimelhor:me
embebedaredesfrutar.–Quantoaoprimeiroitem,nãotenhoamenordúvida–brincouAzdeki,virando-separaViola.
–Quantoaosegundo,minhasenhora,receioquesedecepcionecomseupar.–Uau,quantafineza!–cumprimentouPageenquantoAzdekiseinclinavanumareverência.
O conselheiro rapidamente desapareceu na multidão. A pressão no braço de Page entãorelaxoue,virando-separaViola,percebeusobamáscaraqueseurostoestavapálidocomoaneve.
–Tinhaqueprovocá-lo?Nãopodiaevitar?–lamentouela.– E daí? – defendeu-se ele, achando graça. – Azdeki não é tolo. Pode ter demorado, mas
finalmente entendeu que não é só esta noite que eu uso uma máscara. Quem vive à sombrareconheceseusiguais.Elenãovairecuarsóporcausadealgumasameaçasveladas.Relaxe.
– Estou relaxada – defendeu-se ela, ofendida. – Só ficaria mais à vontade se você brincassemenoscomfogo.
Oburburinhodamultidãoencobriuorisocontidodoconselheiro.Afestaestavanoauge.Naporta do Palatio, uma fileira de alabardeiros rechaçava osmais curiosos, enquanto, na praça, opovoriaedançavaaoritmodosflautistas.
Junto à escada, parecia estar tudo escuro e silencioso. Só o piso estalando sob seus passoslembrava-lhequeestavamesmovivo.O luar, filtradopelasvidraçassujasquedavamparaaviela,desenhava compridos retângulos na madeira empoeirada. Estava sozinho, cansado. Sentou-senumdegraudaescadae, trêmulo,uniuasmãossobreos joelhos.Esperavaamorte,certodequenemLaerte,nemPagetinhamaintençãodedeixá-loirembora.
Podiafugir.Podiadeixaraquelacasa.Mas já se conformara. Fosse para onde fosse, levaria a dor consigo. Demodo que, quando
ouviu as rodas da carruagem e os cascos dos cavalos ressoandonopavimento, sentiu um alívio.Logoestariatudoacabado.Aoestalodasrédeasseguiu-seobufardoscavalosedepoisumsomdepassos.Cerrouospunhosquandoamaçanetagirou.
Aporta se abriudevagar,deixandoentrara luzdos lampiõesaóleo.Ele fechouosolhose selevantou.Juntoàportaestavaovultodeumamulhercomumlongovestidoroxo,umamplocapuzcobrindosuacabeça.
–Dun-Cadal–disseela.Eleareconhecerapelocheirodelavanda.Comamãonocorrimão,desceuodegrau,surpresoe
desapontado.Esperavaamorte,equemvinhabuscá-loeraMildrel.Ela tirou o capuz antes de entrar, revelando um semblante sereno. Seus olhos delineados de
pretooobservaram,semquedissessenada,e,imaginandooqueelanãoestariapensandodeseuaspecto,eletambémpermaneceucalado.Comoseenganara...Laertecumprirasuapalavra.Queriadizerqueaindaseimportavacomele.
–Comoestou?–perguntoueledebilmente.Elahesitou,entãoesboçouumsorrisotriste.–Omesmovelhodesempreapesardasnovidades?Ele soltou um gemido enquanto assentia, nervoso. Olhando para sua mão apoiada no
corrimão,imaginouasmanchasescurasqueacobriam.Deixou-acairjuntoàcoxa.
–Vocêsabe.–Enfimelecompreendeu.–Sei.Rã...–Eoquemais?–Seiqueelesobreviveu,queestáaqui.Pediuqueeucuidassedevocê.Sóisso.Paramim,émais
quesuficiente.Elesmederamdinheiro,obastanteparairmosemboradeMassália...–Quemdeu?–Page.Eleassentiu,oolharsombrio.– Não temos nada a ver com isso, Dun-Cadal – argumentou ela, aproximando-se. – Os
assuntosdaRepúblicanãonosdizemrespeito.Somosdeoutraépoca.Suas mãos enluvadas de preto deslizaram até as dele. Instintivamente, ele baixou os olhos.
Comoseusdedoseramfinos,comopareciamperdidosemsuasmãoslargasmarcadaspelaidade.Como estava distante o tempo em que ia encontrá-la num suntuoso quarto do palácio imperial,voltandodeumabatalha,ocorpoaindasujodeumalongacavalgada.Essaantigavidapareciasóterexistidoemseussonhos.
–Passei tantotempovagueandoporaíantesdevirparaMassália–admitiu,agargantaseca,osolhosfitandosuasmãosentrelaçadas.–Nãosabiaparaondeir.Estavaprocurando.Procurandoporrespostas.Aqui,eudesisti...
–Respostasparaquê?–Quem eu sou, por que fracassei – respondeu ele num sussurro. –Buscava um sentido para
tudoisso.Porqueosdeusesnosescreveramessedestino?Eunãopassodeumsimplesmurmúrio?Eagoraque...
EstavaprestesamencionaroLiaberDest,dizerquantotemiaque,nele,suavidaseresumisseaumaúnicafrase.MasPagecertamentenãocontaraaelasobreolivro.Dun-Cadalconteveumrisonervoso.
–Você seestabeleceuaqui.Meacolheu, tentoumeprotegerdemimmesma, semmuitoêxito,maspelomenossempreesteveaomeulado.
Finalmenteseatreveuaencará-laeviuemseuolharalgoque imaginavaquenunca iaquererrever:obrilhodoamorcomqueelaofitava,umamorsemhesitação,semfim,capazdesedobrarsem jamais se romper.Elamereciaque,paravariar, ele cuidassedela.Elespoderiam fugir,deixaraquilotudoparatrás.Comoeladizia,osassuntosdaRepúblicanãolhesdiziamrespeito.
– Ele cresceu, sabe? Está um homem feito... – Seu leve sorriso se desfez. – Ele tem contas aacertarcomAzdeki...
–Quantomenossoubermosarespeito,Dun-Cadal,melhor–disseela.Estavaimplorandoparaelenãocontinuar.–Mildrel...Elasustentouseuolhar,erguendoasmãosenlaçadasàalturadoombro,echegoumaisperto.
Sentiuseuaromadelavanda,que,dessavez,nãooacalmou.Aninhou-sejuntodela,naesperançadeespantaratristezaquepesavaemseupeito.
–Venha,temosqueir–pediuMildrel.–Vamosesquecertudoisso.EsqueceraRepúblicaeseus
assuntos,esqueceroImpérioeviversónósdois.Éoquevocêquer,nãoé?–Sim...–murmurouele.Mildrelrecuoulentamente,estendendoosbraços,soltandosuasmãos.Elatambémsorria,mas
eraumsorrisorepletodesignificados,sérioeamargo.Comoseestivesseseconformando.–Vocêvirácomigo?–Sim–repetiuele,confuso.Esquivou-se de seu olhar insistente, buscando na escuridão da casa algo que capturasse seus
pensamentos.Masnadaveioajudá-loaconteraquelaatrozsensaçãodeabandono.–Não–corrigiu-se.Fez uma pausa, esperando queMildrel se exaltasse e o forçasse a sair daquela casa, subir na
carruagemeiremboradeMassália.Maselaficouquieta.– Ele vai ao Palatio – confessou Dun-Cadal, a voz extremamente calma. – Quer assassinar
Azdeki.–Evocêtemmedodequeelenãoconsiga.–Tenhomedodequealguémodetenha,odeixeparalisadoe...–Nãoousavaseaproximarde
Mildrel,masteveaomenosacoragemdeenfrentarseuolhar.–Eleprecisademim.Não havia nenhuma censura em seus olhos, nenhum pingo de raiva em seu rosto, apenas
tristeza.Mildrelassentiucomumbrevegestodecabeça.–Nãoseisesempretiveessemedo...ousesempresoube–admitiuela,inclinandoacabeça.–
Cocheiro!Amala!Vislumbrou-se na rua o vulto curvado de um homem.Ouviram-se cordas sendo soltas e em
seguidaumarquejoacompanhandodeumruído.Ohomemporfimapareceuàporta,arrastandoumamala gasta fechadaporumcadeadode latão.Usavaum fraque empoeirado, tinhao cabelodesgrenhadoegrisalho,osemblantefechado.ColocouamalaentreMildreleogeneral.
–Obrigada–agradeceuMildrelsemolharparaele.OcocheirofezumtímidoacenoparaDun-Cadalevoltouparaacarruagem.–Ésuabagagem?–perguntouDun-Cadal.–Nãoprepareiminhasmalas–confessouela.Hesitante,eleseaproximoudamala.Pelovisto,elanuncativeraaintençãodesairdeMassália.
Então,oquetrazia?Ergueuofechocomamãotrêmula.–Eusempreaguardei–disseMildrelatrásdele.–Sabiaque,cedooutarde,vocêtornariaausá-
la.VocêéumhomemdoOeste,umgeneraldograndeexército.VocêéDun-CadalDaermon.Quando ele abriu a mala, o brilho de uma velha armadura ofuscou seus olhos. Ou seriam
lágrimas brotando? Passou os dedos na lâmina pousada sobre o plastrão. Aquela espadasobreviveraàsSalinas,aVershã,aKapernevic...
–Háumcavaloàsuaespera...–acrescentouela.Dun-Cadal endireitou-se devagar, sentindo queMildrel se apoiava em seu ombro. Ergueu a
mão para acariciar o rosto dela, deslizar por sua nuca, sentir amaciez de sua pele. Em silêncio,envolveram-senumúltimoabraço,umaúltimavez.
Sabiamquenuncamaistornariamasever.
Azdeki ia convocar os conselheiros ao pátio interno sob sigilo. Em seguida os conduziria aooutroladodopátio,àsaladosdeuses,cujasportassefechariamàsuapassagem.Osmaisleaisdeseusguardassepostariamàentradaealielecumpririaseuobjetivo.
Não,pensavaLaerte.Ia pronunciar um longo discurso sobre a história do Livro Sagrado, sobre a decisão de
AogustusReyesdeconfiá-loàguardadosUsters,sobreodeclíniodeliberadodaOrdemdeFangole sobre os riscos apresentados por uma República corrompida. Azdeki julgaria os conselheirosdemasiadoliberais,demasiadopropensosamudanças,evocariaodesgastedosvalores,damoraledaordem,oesquecimentodostextossagrados.EentãomostrariaoLiaberDest,queergueriacomoum estandarte a ser seguido. Entregaria aos monges de Fangol o destino do antigo bispo deÉmeris, como prova de sua fé e sua devoção. E uma nova ordem, mais justa, mais respeitosa,menospermissiva,nasceriadesuaspalavras.LegitimariasuaascensãoaopodercomoLiaberDest,traduzindo a seu modo os versos enigmáticos e as estranhas gravuras, aos quais, graças àspesquisasdeAladzio,dariaosentidoquebemlheaprouvesse.EraissoqueAzdekipretendia,oqueelevinhaplanejandohaviatantosanos.
Mil vezes não, jurava Laerte para si mesmo. O futuro da República não devia ser suapreocupaçãoprioritária.Maserainsuportávelparaelequeosonhodeseupaifossepervertidopelopróprio assassino. Enquanto se dirigia às sacadas que cercavam o pátio interno, recordava seusanosdesofrimentoescondendo-sesobonomedeRã,renegandoquemhaviasido.Elefinalmenteestavapronto.
Com a mão no punho de Eraed, andava com passos decididos. Os homens que oacompanhavamiamabrindocaminho,discretamenteeliminandoosguardas.Nãotirou,nenhumavez,aespadaimperialdabainha.Empoucotempo,partedopalácioseriacontroladapeloshomensde Page. Osmesmos homens que Azdeki se obrigara a recrutar para reforçar a segurança. Queironia...
–Assumamsuasposições–ordenouLaerteemvozbaixa.Indicoucadasacadaefoiparaumadelas,deixandoentãoseuolharpassearpelamultidãoque
conversava logoabaixo.Criadosde libré serviamos convidados, enchendoas taçasdevinhonosbarris, oferecendo bandejas de carne assada, abrindo com toda a habilidade possível passagementreosmaisilustres.Todosalieramconselheiros,dignitários,abastados,bemdistantesdoespíritodaNoitedasMáscaras.Opovo,sobestreitavigilância,estavarelegadoaograndesalãodebaileeàsruas.
Osmercenários seesconderamatrásdascolunase, armadoscomseusarcos, ajoelharam-seomais perto possível dos parapeitos. Laerte observava os barris, estranhamente empilhados emformadeescada.Commãofirme,segurouoombrodohomemqueestavaajoelhadoàsuafrente.
–Eadistância?–Perfeita.Omercenáriosorriu,colocandoumlampiãoaóleonochão.
–Sóquandoeuderosinal–lembrouLaerte,procurandonamultidãoumvultofamiliar.Dezenasdemáscaras,trajesdesedaelinho,todosdiferentes,todosúnicos.Ascoresdançavam,
as risadas cresciam, as bocas se abriampara pedaços de carne, acolhiamo vinho comalegria.Aorgialembravaumafeirademonstros.
Eentão,namultidão,avistouumacabeçadeáguia.
–AquelealiéBernevin,eooutro,Daguaret–cochichouPageaoouvidodeViola.Oduqueespreitavaosmínimosmovimentos,osgestosmaissutisquepudessemindicaralgum
vínculo entre os conselheiros que conversavam. Era sua segunda natureza: da corte imperial àAssembleia republicana, sempre souberaprestaratençãoaosmais ínfimosdetalhes.Pelosgestos,olhares e acenos que observava, deduzia as relações. As opiniões, as manobras políticas e asamizadesprivilegiadasdecadaconselheiro:tudoissolhedavaumaideiadateiatecidaporAzdeki.
Viola estava de braços dados com ele e o ajudava a analisar os vaivéns dos dignitáriosenquantopassavamporumcompridocorredorrevestidodeespelhosrumoaumpátiointeriordeondevinhaumaromadeporcoassado.
–Daguaretapoiousualeiparaaeducação–observouViola.–Sim,masfoiporqueeuocomprei–zombouPage,perscrutandoamultidãoquecaminhavaa
suafrente.–Estáaíumhomemquesempresoubedarumvaloràsideias.–EElChaval?–indagouamoça,desviandoolhar.Passaramnafrentedetrêshomensdemáscaraamarelaqueconversavamtranquilamente,uma
taçadevinhonamão.Comocabelopresonumrabodecavalo, jeitoafávelebem-apessoado,ElChavalmeneavanervosamenteacabeça.
– É pretensioso, grosseiro,mas émovido por um autêntico entusiasmo – comentou Page. –Embora tenha fé, não é a favordeumaRepública sujeita àOrdemdeFangol.Temumaposturaclara,emboraeunãopartilhedesuasideias.Elesnãooabordaram.
Seupai tinha lhecontado.Tinhaatégritado, se firmandonoscotovelos,antesdeseucoraçãofalhar:“Nãohaverálugarparavocênestemundo,Gregory!Vocêeseusvíciosserãoenfimjulgadosdiantedosdeuses,poisninguémescapadaquiloqueestáescrito.OLiaberDestfoiencontrado!”
A visão daquele rosto transformado pelo ódio, dos lábios tremendo de raiva, da babaescorrendo,nãosaíadesuacabeça.NãoforaumasimplesquestãodepoderquelevaraseupaieosAzdekis a adotarem o sonho de Oratio e sua tão desejada República. Fora o seu credo. Dar apalavra ao povo, que alguns viam como uma evolução, não era o que realmente importava. Sóinteressava a palavra dos deuses conservada no Livro Sagrado tão cuidadosamente escondidopelosReyes.
–Àsuadireita–sussurrouViola.Page inclinou ligeiramenteacabeçanoexatomomentoemquepassavaaseu ladoumgrupo
demonges fangolinos. De capuz sobre a cabeça emãos unidas no peito, dirigiam-se para uma
portavigiadaporquatroalabardeiros.Na soleira, conselheiros se reuniam sem trocarempalavras.ComoPage imaginara,Daguaret
estava com Rhunstag e Bernevin. Em meio à agitação, ninguém reparava neles enquanto seaproximavamdeÉtienneAzdeki,quedopatamarobservavaatentamenteopátiointerno,mãosàscostas,calmoeconfiante.Osmongesvieramjuntar-seaeles.
NenhumestadistaescaparaaoolhardePage,nenhum.Eleagorasabiaquemeramosinimigosda República, e aqueles que sobrevivessem a essa noite não sairiam engrandecidos. Ele cuidariaparaqueavozdenenhumdelesjamaistornasseafalaremnomedaRepública.
–Estánahora,nãoé?–sussurrouViola,apertandoseubraçocommaisforça.Page assentiu com um breve aceno. O pátio fervilhava de convidados já bêbados. Se
acontecesseumatragédia,opânicoseriaabsolutoe,oqueerapior,incontrolável.Pageolhouparaas sacadas e reconheceu, atrás de uma coluna, um vulto familiar. Laerte estava de prontidão, amáscaradouradabrilhandoàluzdastochas.Desoslaio,oconselheiroavistouRogantentreobufêeasportasquelevavamaosalãodebaile.QuantoaAladzio...Oinventor,nervoso,abriapassagementre os convidados, usando uma máscara de raposa, o tricórnio enfiado na cabeça. Tudo seencaminhavaperfeitamente.
–Estanoite,meusamigos...–começouumavoz.Pageseretesou.
Na multidão, o tricórnio parecia deslizar em meio aos altos toucados e máscaras barrocas.LaerteoacompanhoucomoolharatéAladzioseafastardaspessoas,trocarpalavrascomAzdekieentrarnoPalatio,nãosemantesdarumarápidaolhadaparatrás.AospésdeLaerte,omercenáriomergulhavaapontadeumaflechanumlampião.
–Estanoite,meusamigos...O mercenário armou a flecha e, erguendo os olhos para o homem da máscara dourada,
esperouqueelebaixasseamão.–...éumagrandenoite!Laerte continuava imóvel, como se estivesse paralisado. Seu coração pareceu parar de bater
quandoohomem,nopátio,ajudouumamulherasubirnosbarris.–Pois à alegriadestanoite republicanavem somar-se a sublimidadedeminhaunião.Minha
esposa...Ovestidopúrpurarealçavasuasilhueta,emseupeitopendiaummedalhãoemformadeestrela,
nos lábios um vermelho carmesim acentuava a brancura de seu sorriso. Por trás da máscarasalpicadadeouroeprata,seusolhosamendoadosseenchiamdetímidaslágrimasque,aoescorrer,levavamconsigoamaquiagempreta.Elariaenquantosecolocavasobreosbarriscomosefossemumestrado,demãosdadascomseujovemesposo.
–EsyldAzdeki,mostre-separaomundo!–exclamouBalianAzdeki.
–Senhor?–murmurouumavozaospésdeLaerte.Balian tirouamáscaraparacontemplar,debraçosabertos,amultidãoàsua frente.Animado
peloálcool,saboreavaaquelemomento.–Obrigadoatodosporestaremaquihoje!SalveaRepública!Osaplausosribombaramfeitotamboresdeguerra.Laertesentiuamãotremer.–Senhor,estoupronto–insistiuemvozbaixaomercenário.Dopatamar,comsuamáscaradeáguia,Azdekiobservavaacenacomsatisfação:seufilho,feliz,
curvando-sediantedeEsyldsobosaplausosdosconvidados.NinguémreparavanosconselheirosenosmongesquepassavampelaportaedesapareciamdentrodoPalatio.
Em cima dos barris, Esyld saudava amultidão, inclinando-se para a direita, para a esquerda,um riso contido nos lábios, as faces coradas de timidez... ou alegria. Laerte sentia a máscarapesada, a respiração ofegante, osmúsculos enrijecidos, umnó no estômago.Os barris de vinhoempilhadosatrásdelaestavamcheiosdepólvora.Bastavaumafaíscapara...
PagelançavaolharesinquietosparaRogant,queestavaàportadocorredor,eparaassacadas,ondepressentiaovultoimóvel.Oataque,Laerte,pensava.Dêosinalparaoataque!Vamos!
Aindalhedandoobraço,Violahesitava.Inclinava-selevementeparaafrentecomoseprestesaintervir.Masoquepoderiafazer?OssoldadostinhamafastadoosnâagasquecuidavamdosbarrisdevinhoecercavamBalianesuaesposa.NãoseriaViolaquemiriaafastá-los.Aideiaangustiantedeque tudopudesseacabarnissose insinuouemsuamente.TornouaolharparaasacadaondeestavaLaerte,naesperançadeperceberalgummovimento.
–Otempoestáacabando,senhor–preocupou-seomercenário.Avozpareciadistante.Suamãocontinuavaerguida.Seucoração...Todososconselheirosjátinhampassadopelaporta.–Viva!Viva!–gritavaamultidão.–Salveosnoivos!Viva!Os alabardeiros posicionavam-se frente à porta. Azdeki recuou. Um guarda fechou um dos
batentes.Azdekidesapareceu.Osoldadoentãoseaproximoudaoutraporta.Emcimadosbarris,asmãosnopeito,Esylddirigiaaomaridoumolharcheiodeternura.AmãodeLaertecontinuavaerguida.Osoldadofechouaúltimaporta.–Senhor!Émuitomaisqueisso.Comamãodireita,LaerteempunhouocabodeEraed.Tudopareciaconfuso.Emmeioàsalva
depalmas,percebeuummartelarsemelhanteaodetambores.Abafado,deinício,depoiscadavez
maisdistinto,atéeleanteverosomdoscascosestalandonomármore.Emmeioaoestrondodosaplausos, alguns mascarados se viraram para o corredor de espelhos, intrigados com o som deferraduras.Oritmoirregulareasordensgritadasaumentavamsemcessar.Aporta,dooutroladodopátio,estavafechada.Osconspiradores,alertadospeloscombates,teriamtempodefugirantesquefossemalcançadosnolabirintodoPalatio.
Envolveocaminhoquevocêescolhetrilhar.A multidão aclamava o casal. Esyld resplandecia. Balian Azdeki aproximou-se dos barris,
segurando amão de sua amada para levá-la aos lábios. O som dos cascos se intensificava, ummartelarcontínuo,cadavezmaisforte,maisassustador.Comele,asordensgritadas.
Esevocê,hojeànoite,sedepararcomEsyld?Vaisedeixarlevarpelafúria?Os cascos batendo no mármore, os gritos... e uma voz, grave e rouca, ergueu-se no pátio
internofeitoumtrovão:–AZDEKI!
14
OcaminhodaFÚRIA
Dun-Cadaloobrigarabrutalmenteaseajoelharnasuafrente,segurandoseuombrocommãofirme. Sentiu nos joelhos a dor causada pelo choque, mas, cerrando os dentes, não disse nada.Sabia que era observado, avaliado, e por nada nesse mundo daria mostras de fragilidade. Nãodeixaria nada transparecer em seu rosto. Seu coração batia disparado, o suor escorria em suastêmporas. Iaaguentar firme.Oscavaleiroshaviamformadoumsemicírculoaoseuredor;usavamarmaduras luzidias que refletiam a luz do sol matutino. Atrás deles se erguiam as estátuas dasdivindades,altasedeumbrancopuro,oolharinexpressivovoltadoparaoaltar.
Nos vitrais, as imagens em cores vivas de cavaleiros combatendo monstros e demônios,ruarguesedragões,protegendofamíliasassustadascomaespadaemriste.
– Pelos erros cometidos – disse Dun-Cadal. Esbofeteou-o com tanta força que ele sentiu seupescoçoestalar.–Eparaquenãocometamaisnenhum,Rã.
Sua outra face enrubesceu com a enérgica bofetada, a cabeça pareceu se separar do corpo,sentiu gosto de sangue nos lábios mordidos por si mesmo. Lágrimas brotaram em seus olhos.Inspirouprofundamente,maxilarescerrados.
–Repitacomigo:eusouaespada,eusouoescudo–ordenouDun-Cadal.–Eusouaespada...–balbuciouLaerte.–Maisalto!–Eusouaespada!–repetiu,olhandoparaseumentor.–Eusouoescudo.–Souaquelequenuncafraqueja–continuouDun-Cadal,soboolharseverodeseusirmãosde
armas.–Souaquelequenuncafraqueja.–Souaespadacontraosfortes,oescudoparaosfracos.Minhapalavraédeouro.Nãoheide
renegá-la.Souaquelequemarchaparaocombate.Meucaminhoéocaminhodosjustos.Nãohei
defraquejar.Souaquelequemarchaparaocombate.LaerterepetiaemvozaltaquandoDun-Cadalpuxouaespadacomumsomsecoeadeitouno
ombrodeseuaprendiz.–Eusouaespadaeoescudo,eesseémeuúnicocaminho.Nadajamaishádedetermeubraço.–Nadajamaishádedetermeubraço–concluiuLaertecomumsuspiro.NãopôdeevitarfecharosolhosquandoDun-Cadalergueualâminaàfrenteantesdebaixá-la
comforçasobreseuombrodireito.Cerrouosdentes.–Euodesligodaquelequevocêfoi.Opassadonãoimportamais.Laerte sentiu a espada passar por cima de sua cabeça. Então a dor causada pelo dorso da
lâminanoseuombroesquerdofezcomqueabrisseosolhos.–Repitacomigo–pediunovamenteseumentoremtomfirme.–Euaquiprestoojuramento...–Euaquiprestoojuramento...–...denuncacederaocaminhodafúria,desempreserviràjustiçacométicaehonradez.Deser
umcavaleiroentreoscavaleirosedequeissotenhaumsentido.–...edequeissotenhaumsentido–concluiuLaertecomavozembargada.Napenumbradacapela,orostodeDun-Cadal,graveeorgulhoso,seinclinouparaele.–EisocavaleiroRã.
Eisocavaleiro...–Azdeki!Seuimundo!O cavalo empinou ao entrar no pátio, rios de sangue escorrendo no pelo crivado de lanças.
Homensemulheresempânicorecuaramaosgritosquandoocorpodocavaleirofoilançadonoare caiu pesadamente no chão com um estrondo. A montaria desabou sobre as patas dianteiras,bufandofreneticamente,eentão,emconvulsão,deixou-secairsobreoflanco,a línguapendendodabocaaberta.Atrásdelaacorriamsoldadospegosdesurpresapeloataque inesperado.Viramocavaleiro irromper emmeio à multidão na praça, subir a escada açoitando o ar com a espada.Algunstinhamtentadodetê-lo,masocavalo,apavorado,empinararepetidasvezes,aoscoices.Aslançassóodeixaramaindamaisassustado.Eocavaleirootrouxeraparaamortebemali,nomeiodopátio.
Dun-Cadaltentavaselevantar,aindaatordoado,eaosberrostateouochãocomamãotrêmulaembuscadaespada.
–Azdeki!Apareça,pelosdeuses!Comaespadaemriste,BalianAzdekiajudouEsyld, logocercadapelossoldados,adescerdos
barris. Os guardas apressavam-se no pátio, prestes a se jogar sobre o imprudente, enquanto amultidão, ainda sob efeito do choque, hesitava entre a curiosidade e omedo.Um idoso sozinhocom uma armadura gasta, que mal era sustentada pelas velhas correias de couro, exortava umconselheiroaenfrentá-lo.Estavamaisparaumacenaespantosadoqueparaumarealameaça.
Emumcantodopátio,Pagenãoestavagostandodasituação.Emmeioàconfusãogeradapelaentrada inesperada do general, Rogant fora até ele.O nâaga pediu-lhe que deixasse o local semdemora, segurando seu braço para empurrá-lo junto com Viola na direção do corredor deespelhos.
Nomeiodopátio,Dun-Cadalaguentava firme, se recompondocomumestranhosorrisonoslábios.Sentia-sevivooutraveze,emboraseusossosdoloridosdaquedalhelembrassemsuaidade,tinha a intenção de mostrar ao mundo o combatente que era. Pela última e derradeira vez. Osguardasjáocercavam,ameaçadores,apontandoas lanças.Eleteveumasensaçãodedéjà-vu,seusorrisosedesfez.
VossaMajestadeImperial,eleaindaéummenino!Nãotemodireitodefazerisso!Astochascrepitavam.Nãoseouviamaisnenhumriso,nenhumamúsica,somenteumpesado
silêncio.Balianrompeuocírculodosguardas,aarmaemriste.–Prendamessehomem!–ordenou.–Você, lourinho,espere ficarcomavozmaisgrossaparadarordensdesse tipo–resmungou
Dun-Cadalantesdeelevarotom:–ÉÉtienneAzdeki,ocapitãoAzdeki,queeuvimbuscar!Azdeki!Apareça!
Os guardas hesitaram quando, à porta, o vulto de um homem se adiantou. No início docorredor, do outro lado do pátio, Page hesitou. Viola, a seu lado, parecia perdida, olhando deesguelha para os barris empilhados no estrado, até que cruzou com o olhar determinado deRogant.
–Saiamdaqui–murmuroueleentredentes.–Nãointervenha–ordenouPage,oolharferoz.–Nãovaiserpreciso–garantiuonâaga,osemblantetenso.Page não podia ser vinculado ao que estava por vir. Ninguém podia saber do papel
desempenhadopeloconselheironaquelainiciativa,fosseelaumêxitoouumfracasso.Nãoapenasparasuasegurança,masportudooqueresultariadaquelanoite.Onâagaosseguiucomoolhare,quando eles sumiram na extremidade do corredor de espelhos, esgueirou-se atrás de um dosbatentesdaporta.
–Azdeki!–gritouDun-Cadal.Girou a espadano ar, porpouconão adeixando cair.Aquilonão ia serbrincadeira.Ogesto
nãolhevinhanaturalmente.Faziamuitotempoquenãocombatia.–Nãoestãomeouvindo?–exaltou-seBalian.–Mandeiprenderessehomem!Ele...–Daermon...A voz saíra arrastada, como que para saborear o nome que pronunciava.À soleira da porta,
ÉtienneAzdeki inclinava a cabeça de lado, intrigado, o olhar penetrante por trás damáscara deáguia.Àscostas,entrevia-seovultomolengadeseutioemumaamplatogabranca.
–Prendam-no!–repetiuBalian.Ossoldados,dessavez,estavamprontosparaobedecer,masmalesboçaramumpassoeAzdeki
elevouavoz:–Esperem!
Afastou-se do patamar, a mão no punho da espada, não demonstrando nenhuma emoçãoalém de curiosidade. Dun-Cadal aprumou-se e dirigiu-lhe um sorriso provocador, de quem querpartirparaabriga.
–Nãoesperavamever,esperava?–escarneceu.–Estápreocupado?– Estou contrariado por um caco velho ter conseguido entrar tão facilmente – respondeu
Azdeki,semalterarsuasoberanatranquilidade.Murmúrios de espanto e comoção corriam entres os presentes e poucos foram os que
preferiram sair do pátio e perder aquele espetáculo. Embora o cavaleiro de armaduramostrassetodaasuasanha,oconselheiropermaneciaindiferente.Elevouavoz,encarandoDun-Cadal:
– Será que isso não é excentricidade demais para umaNoite dasMáscaras?Um cavaleiro doImpério forçando a entrada no Palatio e acabando por parar aqui? Mas não há o que temer.Vejam,estátãoenferrujadoquantosuaarmadura.
–Venha,Azdeki–propôsDun-Cadal.–Venhaexpiarseuserros.VocêtraiuoImpérioeagoraplanejatrairaRepública.
Rodopiounovamenteaespada,masogesto,dessavez,foilentoepreciso,amãosegurandoopunhocomfirmeza.
–Nãoéqueocãoaindamorde...–murmurouAzdeki, franzindoos lábiosdedesprezo,antesde se dirigir aos presentes: – Peço desculpas por este incidente, mais espetacular que perigoso!Divirtam-sesemreceio!
–Queafestacontinue!–clamouRhunstagàssuascostas.Os guardas cercavam o general com cautela, vigiados por Balian, em pé junto ao estrado.A
poucos passos dali, encoberta por dois alabardeiros corpulentos, Esyld observava a cena,extremamentepálida.Oconselheirodeumeia-voltaeestavaprestesacruzaraportaquandoDun-Cadalbradou:
–OLiaberDest,Azdeki!Vocêcontouparaeles?AnvelinEvgueniReyesaindaéseuprisioneiro?Digaparaessaspessoastudooqueasaguarda!
Dun-Cadal indicouospresentes comapontada espada, verificando, satisfeito, aperturbaçãocausada por suas palavras.Osmurmúrios cresciam e, com eles, um estranhomal-estar, denso epesado.Azdekiestacaranopatamar,ombroscaídos,corporetesado.Sóseouviaumapalavraentreoscochichos,apenasuma:Liaber...
–Elespodematé tentarmeprender,masnadavaime impedirdechegaratévocê–prometeuDun-Cadal.
Azdekivirou-sederepente, já semtanta soberba.Furioso,apontouumdedoparaDun-Cadalquandoossoldadosjáestavamapenasapoucosmetrosdele.
–Tiremesselixodopátio!Acorrentem-no!– Venha, Azdeki, me mostre do que é capaz – provocou Dun-Cadal, açoitando o ar com a
espada,olhandoparaosladoscomoseparapreveniroataquedossoldados.Amultidão se agitou. Os alabardeiros intimaram Esyld a se afastar em direção ao corredor.
Baliancontornouocírculodesoldados.–Joguem-nonocalabouço!
–Puxeaespada!Sejaumcavaleiro!Osinsultosencobriramoassobiodaflechaquepassouacimadeles.Algunsaindaavistaramde
relanceachamaoscilantetrazendoconsigobrasasesvoaçantes.–Vocênãoénada,Daermon,vocêestámor...Oaçorasgouamadeiradobarril.Tudoexplodiu.
O fogo devorava o estrado, crepitando, uma densa fumaça preta se erguendo sobre osdestroços. A força da explosão provocara um caos, jogando Dun-Cadal no chão, afetando osconvidadosmaispróximos,obrigandoosdemaisacorreremparaasextremidadesdopátio.
Laertesaltaradabalaustradanoexatomomentoemqueaflechasecravaranobarril.UsandooSopro, caíra ao chão sem nenhum ruído, sentindo todas as partes do corpo vibrarem com oimpacto. Aliviado, sentiu as batidas do coração do general caído a seus pés e vasculhou o pátiocomoolhar.Dun-Cadal iavoltandoasi, seusdedosabrindosulcosnocascalho.Aexplosãoforanamedidacertaparasemearconfusão.Diantedaporta,Azdekiagitavaosbraçosparaespantarodenso véu áspero que encobria sua visão.Não reagiu quando as flechas romperam a nuvem defumaçaesecravaramnopescoçodosalabardeirosaseulado.
Umachuvadeaçoentãodesabousobreopátio,abatendooshomensarmados.Osconvidados,empânico,apressaram-seàscotoveladasparaocorredor,pisoteandoos infelizescaídosnochão,derrubando asmesas.No patamar,Azdeki parecia paralisado.Os gritos, o cheiro de pólvora, osfiletes de sangue, a fumaça espiralando, tudo estava um caos, no meio do qual se erguia umhomemusandoumacapaverde.
Segurando o cabo de Eraed, a ponta da espada roçando o cascalho, Laerte esperava omomentocerto.E,quandopercebeuoolharpor trásdamáscaradeáguia,exultou.Pelaprimeiraveznavida,viapavornele.
–Vo...você...–gaguejouAzdeki.–Évocê...–Seu...–resmungouDun-Cadal,selevantando.Opátio se esvaziou rapidamente.Entre as espiraisde fumaça eos resíduosdos toldos, surgia
um céu estrelado. À luz das tochas e do estrado em chamas, cintilava a Espada do Imperador.Corposinertes,crivadosdeflechas,cobriamochão.Todosusavamarmadurasoucasacosdecouroguarnecidosdepregoseaindaempunhavamaespadaouaalabarda.Nenhumdelestiveratempode repararnosmercenáriosnas sacadas,osquais agora se erguiamsilenciosamente anteoolharestupefatodeÉtienneAzdeki.
Próximoaocorredordeespelhos,apoucosmetrosdoestradoqueardia,Esyldestavaajoelhada,aturdida,passandoamãonocabelosujodeterraepoeiradeBalianAzdeki.Eletinhaumaflechafincadanoombro,najunçãodadragonacomoplastrão,oqualsemovialentamenteaosabordesualentarespiração.Pareciadormir,àsvoltascomumpesadelo,abocafranzidadedor.Ocrepitardas chamas encobria as poucas palavras que sua esposa sussurrava. Esyld se virou para fitar os
olhosatrásdamáscaradouradaeseuardesamparadosedesfez.Airacontraiusuasfeições.Laertedesviouoolhar,ocoraçãodespedaçado.
– Então é assim – declarou Azdeki, enquanto observava os mercenários saírem de suasposições.
–OLiaberDest,Azdeki!–clamouDun-Cadal.–OndeestáoLiaberDest?Lentamente,o conselheiro levouamãoao rostopara tirar amáscara. Jánãohaviamedoem
seuolhareoslábiosesboçavamumsorrisotriste,quasedeescárnio.–Aindarestoualgumsoldadonosjardins?Ouseusmercenáriosjáderamcabodetodoseles?–
perguntou,fitandoassacadasdesertas.Dun-Cadaltentoudarumpassoàfrente,mastropeçounocadáverdeumalabardeiro.Laerteo
segurou.–Aindapossoficardepé–resmungouogeneral.Em seus olhos avermelhados, Laerte percebeu um brilho estranho e, quase sem pensar,
assentiu. Lentamente,Dun-Cadal se levantou, balançando a cabeça de um lado para outro paraestalar o pescoço. Não precisavam de palavras; ambos sentiam naquele momento o que nuncadeixaradeuni-los desdeodia emque se conheceram.Reviama simesmos, desde as Salinas atéKapernevic, lutando lado a lado, cuidando um do outro, como pai e filho. Sem se consultarem,ergueramsimultaneamenteasespadas,apontando-asparaAzdekinumgestodedesafio.
Vindasdodistantesalãodebaile,ecoandonocorredordeespelhos,vozesraivosasdesoldadosse aproximavam. Talvez imaginando estar salvo, Azdeki puxou a espada da bainha. Mas seusemblante endureceu quando avistou o nâaga junto à porta do outro lado do pátio. Depois deolhar rapidamente para os guardas que chegavam às pressas, Rogant tratou de fechar as duasfolhasdaporta.Azdekirecuouparaopatamar,respirandopesadamente.Ocercosefechavaàsuavolta.Às costas,nãohavianenhumsoldadoparadefendê-lo, jáque aquelapartedoPalatio foraconfiadaprincipalmenteaosmercenários.RestavamapenasaquelesqueeleincumbiradeprotegeroLivro.Emmeioàdensafumaça,Azdekivislumbrouovultoajoelhadodesuanora.Deitadojuntodela,Balianlevavaamãotrêmulaàflechacravadaemseuombro.
– Isso é assunto nosso, não é? – questionouAzdeki entre estranhos suspiros. –Deixe-os empaz.
–Eu souumcavaleiro,Étienne– respondeuDun-Cadal.Entãoacrescentoucomvozabafada,quasedesdenhosa:–Semprefui.
O velho general baixou a espada e deu um passo para o lado, sem tirar os olhos dosconselheiros. Laerte virou-se para o filho ferido, que cerrava o punho sobre a flecha, prestes aarrancá-la, enquanto Esyld o ajudava a se levantar. Laerte se viu jogando-se em cima dele paraimpedi-lo, batendo com força até ele clamarporpiedade, e, insensível às suas súplicas, cravandoEraed no seu peito. Lágrimas riscavam a poeira que lhe cobria as faces. O clarão das chamasdançava em suas pupilas. Mesmo suja e despenteada, conservava toda a beleza que ele tantoadmiraranospântanosdasSalinas.
–Tenhoasuapalavra,Daermon–declarouAzdeki.Sua respiração estavapesada, entrecortada, quase virandoumassobio enquanto ele batia em
retirada.Jápassarapelaportaerecuavapelocorredor,obraçoarmadoligeiramenteretraído.Massuamãolivreseerguiaostensivamente.
–Laerte–murmurouDun-Cadal.Laerte apertava o cabo de Eraed, um nó em seu estômago, a garganta seca. Esyld, só ela,
dominava seus pensamentos. Nada jamais iria livrá-lo de seu mal-estar, nem mesmo oaniquilamentodeAzdeki.Elacruzouseuolharese levantou,confiante,apesardas lágrimas,umamãoaindaentrelaçadacomadomarido.Balian,lívido,permaneciaajoelhado.
–O...Dun-Cadalnãoconcluiusuafrase.Azdekiestendeuamãolivreeasfolhasdaportasefecharam
comumsomseco.OSopro.–Ah!Filhodamãe!–gritouogeneral,correndoparaaporta.–Não!–berrouBalianaplenospulmões,porpouconãodesabandoaoarrancar,derepente,a
flechadoombro.Opaipodiaesperar:nãoiasairdoPalatio.Laerteavançou,determinado,emdireçãoaorapaz,
quepuxavaaespada,endireitando-se,orostocontraídodedor.Dun-Cadal abriu aporta comumchute, conteveumpalavrão ao sentir a pontadano joelho,
lançou-se corredor adentro e parou. Laerte não vinha atrás dele. Ouviu as espadas retinirem.Virou-se, viu Balian e seu aprendiz se enfrentando, Rogant tentando segurar Esyld e as brasassaltandoemtornodeles.
–Laerte!–chamou.Aúnicarespostafoiochoquedaslâminas.–Não,porfavor–suplicavaEsyld.OsuorpingavadatestadeBalian,quesósemantinhaempéporforçadavontade.Procurava
um bom ângulo de ataque,mas seu oponente se defendia commuita facilidade. Laerte,mesmosabendo que o tempo era contado, saboreava aquele momento como uma prova de suasuperioridade.Numgestobrusco,girouaespadaedesarmouBalian.Emseguida,deu-lheumsoconorosto.
–Não!–continuavaarepetirEsyld,aosprantos.Eraeddeslizouparaagargantadomaridoferido.–Laerte...–imploravaelanosbraçosdonâaga,àslágrimas,jáperdendotodasasesperanças.–Rã!Avoz soou forte, autoritária, trazendoconsigomuitas lembranças.Apontadaespadadeixou
uma gota de sangue no pescoço de Balian, que, exaurido, deixou-se cair de joelhos, um fiovermelhoegosmentoescorrendodoferimentonaarmadura.
–Não foipara issoquevocêesperouavida inteira!–protestouogeneralatrásdele.–Vocêéumcavaleiro!Umcavaleiro!
EmpurrandoEsyldparatrás,RogantprecisouseposicionarentreBalianeLaerteparaqueseuamigo finalmente recuasse. Desafiaram-se com o olhar, nenhum dos dois parecendo disposto aceder.
–Elenão–disseonâaga.–Édesnecessário.
Então,comoqueparaevitarojulgamentodeseumaisfielcompanheiro,Laertedeumeia-volta,tenso por conta da fúria contida. Seumentor esperava junto à porta.Atrás dele, havia um largocorredor iluminado por dezenas de tochas cujas chamas oscilavam à carícia da brisa noturna.Laerte sentia-se dividido entre dois mundos, duas épocas, dois desejos igualmente ardentes eincômodos.Seucoraçãobatiaapontodeexplodir,amáscaraosufocava.Quemeraele?LaerteouRã?
OchorodeEsyld,quesejogaranochãoparaabraçarBalian,ocrepitardaschamasaoredor,ocheiro demadeira queimada, a aspereza da fumaça estagnada, tudo se tornava insuportável, atésuarespiração.
–Rã–repetiuDun-Cadal,penalizado.–Vocêéumcavaleiroouumassassino?Laerteinspiroufundoedeuumpassoemdireçãoaogeneral.–Souumcavaleiro,Pernalta,omelhor–declarou.–Omaior.Comolheprometi.–Entãocumpraasuapromessa.
HavianointeriordoPalatioumacapelaemreforma.Aofundo,erguia-seumaltare, juntoàsparedes, imponentes estátuas de homens e mulheres com compridas túnicas que o tempo nãohaviapoupado.Rachaduraspercorriamapedra,dopedestalàcabeça.Sentadojuntoaoaltar,umidosoesqueléticogemia,ocorpomachucado,osbraçosabertospresosporpesadascorrentes.Emsua cabeça cheia demanchas escuras, havia algunspoucos cabelos brancos esfiapados.Osolhossemicerradosfitavamoespaçodeumladoparaoutro,comoseestivessedescobrindoolocal.Entreas estátuas divinas pendiam compridas tapeçarias de um amarelo forte. Aos pés dos deuses,chamasondulavamdentrode largaspiras.Imponentesvigasdesustentaçãosecruzavamnoteto,ocultandoaabóbadacomumafrescodeteriorado.
AnvelinEvgueniReyes,últimobispodeÉmeris emestredaOrdemdeFangolnos temposdoImpério,sabia-secondenadohaviaváriosanos,mas,longedeseconformarcomessaideia,tinhaaesperança de que, naqueles derradeiros momentos, aparecesse alguém para salvá-lo. Ele o vira,falaraváriasvezescomelenosúltimosmeses.Ohomemdamáscaradeouro.Contara-lhesobreopactodoLivroedaEspada,sobreosignificadodesuaseparação,sobreovínculoexistenteentreosUsterseosReyes.Ninguémnestemundomereciapossuirospilaresdacivilização.
Emminhamãoesquerda,oLivro,emminhamãodireita,aEspada,eameuspés,omundo...Reyespermaneciaalheioàagitaçãodosconselheiros.Limitava-seaesperar.Aexplosãodistante
lhearrancaraumsorriso.Atempestadeque iasalvá-loseaproximava.Eentãoosmurmúriosdosdeuses assumiriam todo o seu sentido. Seu destino certamente não eramorrer ali, daquele jeito,feito um pobre coitado, logo ele que por tantos anos tinha governado a Ordem de Fangol. Detodososhomenspresentes,odetricórnio,poucoàvontadeegrudadonumaestátua,eraoúnicoque parecia sentir por ele alguma compaixão. De todos, era o único que não demonstravanenhumapreocupação.
–Issofoiumataque?–Masquemseatreveria?–Éoassassino,tenhocerteza!ElematouEnain-CassarteNégus.Agoraveioatrásdenós!–OndeestáAzdeki?–Calma,senhores,calma!–pediaAzinnpróximoaoaltar.Envolto emsuavasta túnicabranca,puxaraamáscarade falcão sobrea cabeça e,numgesto
tranquilizador, balançava as mãos à frente. Os cerca de vinte conselheiros à sua volta olhavamapavoradosparaaentradadasala,apesardapresençadaguardapessoaldeAzdekiquecercavaoaltar.Aumcanto,silenciosos,osmongesdaOrdemdeFangolpareciamalheiosàconfusão,quaseserenos.Paraelessóimportavaoprisioneiroseminu.
– O que é isso, senhor? – perguntou Daguaret, apontando o dedo para Azinn. – Umaarmadilha?
FoiimediatamenteempurradopelocorpulentoRhunstag.– Não existe nenhuma armadilha, meu senhor. Nenhuma trapaça por parte dos Azdekis –
jurou,severo,Rhunstag.–Entãopeçoquemantenhadistância.Asvozesresmungavam,inquietas.Pensavamemdeixarolocal,pormedodeficaremtrancados
ali.Ahipótesede terem sido enganados ia se transformando emcerteza. Por fim, ohomemqueseriacapazdeaplacarseupânico,ohomemqueosconquistara,entroupelaporta.
–Guardas!Paraolado!–bradou.Andava com passos determinados, espada na mão, semblante tenso. Sua presença bastava
para impor o silêncio. Os guardas obedeceram, saindo do lado do altar e se postando junto àentrada.
– Afastem-se! – ordenava Azdeki, movendo no ar a mão livre. – Senhores! Afastem-se,senhores!Formemumcorredordehonraparanossosilustresconvidados!
Passoupelosconselheirossemnemsequerolhá-los,fitandointensamenteocorpoamarradoaoaltar.Quandochegoujuntodele,ajoelhou-se.
–Chegouahora,Anvelin–murmurou.Ovelho,exausto,malergueuacabeça.Deesguelha,Azdekiavistouosmongesfangolinosefez
umsinalparaqueseaproximassem.–Eoassassino,sobrinho?–cochichouAzinnàssuascostas.Azdeki o ignorou e levantou-se altivamente, amão enluvada segurando o punhoda espada.
Teriaperdido suadestrezaou finalmente iaprovar ao velhogeneral que eraumbomesgrimista?Em um minuto, talvez menos, eles estariam ali. Então virou-se para os presentes, que, aindaconfusos,hesitavamemobedeceràsuaordem.Bernevintirouamáscara,revelandoumsemblantesério.CruzandooolharcomodeAzdeki,assentiubrevementecomacabeçaetratoudedividi-losemdoisgruposeenfileirá-lospróximoàspiras.
–Traga-o,Aladzio–ordenouoconselheiro.O homem de tricórnio foi até ele, cercado por dois alabardeiros, trazendo solenemente nas
mãosumacaixademadeiraenvernizadacomarrematesdourados.Azdekiaabriucomdelicadeza,cientedaimportânciadaquelemomento.
– Senhores! – clamou, enquanto tirava da caixa um antigo livro de couro cuja capa pareciacintilarà luzdaspiras.–Eisomotivodeestaremaqui,escolhidospelosdeusesparaoretornodaordemapósséculosdecaosetirania.AquiestáoqueAogustusReyesescondeudoshomens.AquiestáoquefoiperdidoporFangol.
Suamãotremia.Ovolumeerapesado,masoqueoperturbavaeraoqueelecontinha.Aladziooobservouerguerolivrotalqualumestandarte.
–OLiaberDest retornou para as mãos dos homens, como estava escrito, e, com ele, nossodever,nossaimensaresponsabilidadededevolveraomundoseuesplendor–disse,elevandootomdevoz.
Eles já tinham ouvido falar do Livro. Podiam ter reagido com toda a tranquilidade,mas, naverdade,eemboratodostivessemumaféinabalável,foicomosedeparassemcomoimpossível.OLivroSagradodeixavadeseruma lenda.Azdekipôssuaespadasobreoaltare,comamão livre,empunhouaadagaquetrazianocinturão.
– Omurmúrio dos deuses foi registrado nesta obra, o destino da humanidade, dos grandeshomensdestemundoaquemcabeaárduatarefadeconduzirorebanho!VejamoLivroquenãopodeserdestruído.Nãoduvidemdeseusescritos!
Comumgestobrusco,tentoucravaraadaganacapadoLivro.Umburburinhodeespantoseespalhouentreosconselheirosquandoalâminasepartiuaomeio,semdeixarnenhumarranhão,nenhumamarca.AadagacaiuaospésdeAzdeki.
–OLiaberDest. É para ele que estão aqui, para aquilo que ele nos revelou, omotivo de osdeusesteremnosescolhido.–Virou-seentãoparaosalabardeirosquecercavamAladzio.–Soltemobispo.Queelesejaentregueaosmongeseporelesjulgado.
Enquanto os soldados cumpriam a ordem sem qualquer delicadeza com o idoso ferido, elecolocou o Livro no altar e pegou de volta sua espada, olhando para osmonges fangolinos, quepermaneciam imóveis e calados, imersos em seu desespero.Aladzio aproveitou para recuar até acolunamaispróxima.
–Aceitemessegestocomoprovademinhaboavontade.OsReyesenfraqueceramFangolparamelhorsujeitá-los.Sintam-selivres,maspeçoquenosreconheçam.ReconheçamnossodestinotalcomoestáescritonoLivro.
Amparadopelosalabardeiros,Anvelingemeu,ospésdescalçossearrastandonochão,sangueressecadonaspernasimundas.
–Não–resmungava,ofegante.–Vocêsóenxerga...oquequer...enxergar...Nãocompreende...EusouaOrdemdeFangol,nãoeles...nãoeles...Elessãohereges,uns...
Sua frase terminou com um gemido, pois o haviam lançado no chão diante dos mongesimpassíveis. Azdeki precisava dos monges. Sendo reconhecido pelos derradeiros detentores dareligião, estaria legitimado. Para quê? Para tomar o poder? Derrubar a República? Com osmaxilarescerrados,nãodisfarçavasuaapreensão.Passosseaproximavam,rápidos,decididos.
–NóslibertamosopovodojugodosReyes–insistiuAzdeki.Aospésdosmonges,Anvelin tentava se levantar comdificuldade, firmando-secomasmãos,
osmúsculossalientesdosbraçosmagros.
–Esselouco,enquantorepresentavavocês,sabiaqueoLiaberestavanasmãosdosUsters.Eleescondeudenósoperigo,renegouapalavradosdeuses.Reconheçam-me.Oqueestáacontecendoestanoitenãoéobradoacaso.
Duas sombras surgiram à porta, passando diante dos soldados postados junto à primeiraestátua.AssombrasdiminuíramàmedidaqueLaerteeDun-Cadalentravam,espadanamão.Umgestodepânicoagitouosconselheiros,logoabafadopelodossoldadosseposicionandoatrásdosrecém-chegados para barrar a saída. Alguns começaram a acreditar que Azdeki havia planejadotudo,masamaioriaconcluiuqueumacontecimentodesses jádeviaestarescrito.E,comoseparaconfirmaressaopinião,Azdekiarrematou,numtomcalmoeterrível:
–Osdeusesnãojogamcomasorte.SeDun-Cadal se virou ao ouvir as dragonas tilintando nos plastrões, Laerte não sabia dizer,
pois só teve olhos para o conselheiro diante do altar.O crepitar das chamas pareceu se estenderumaeternidade,mal encobertopelospassosdeRhunstag eBernevin aproximando-sedeAzdeki,que colocava o Livro no altar. A poucos metros dali, Azinn recuou para junto dos mongesfangolinos, contando com sua proteção. A maioria dos presentes identificava a capa verde quevinhadandooquefalardesdeoassassinatodeEnain-Cassartnoporto.Emcompensação,poucosreconheciamovelhocavaleirodearmaduraqueoacompanhava.
–Ó,júbilo...–resmungouDun-Cadal,antesdeseaproximardeseuaprendiz,paradonomeiodocorredordehonra.
Espantou-seaover,comdesprazer,amagrezadeAnvelinEvgueniReyesaospésdosmonges.Seu semblanteendureceu, amãoapertoucommais forçaopunhodaespada.Era imperdoávelobispo tê-lo traído anos antes, mas será que merecia um destino tão cruel? Anvelin o apoiarainúmerasvezesquandoele aindanãopassavadeum jovemaspirante a cavaleiro.Fosse láoquetivessefeito,aindaeraumhomemsanto,obispodeÉmeris.
Osestadistasosobservavamcomumtemormaldisfarçado.Apenasumdeles,bastantejovem,comumacicatrizsoboolhodireito,pareciasentirmaiscuriosidadequemedo.Inclinoulevementeacabeça,comosetentandoimaginarorostoescondidopelamáscara.
–Detenham-nos!–impacientou-seohomemaseulado.Ojovemconselheirolançou-lheumolharestranho,dedivertimento.–Issonãoestavaescrito,Azdeki!–exclamououtro,próximoàcolunaoposta.Vozes começavam a se erguer, instando os soldados a se jogarem sobre o assassino e seu
acólito.Aospésdomongemaispróximo,Anvelinsevirou,firmando-senoscotovelos,umpasmosorrisoesticandosuasrugas.
–Vocêestáaí...Vocêveio...–sussurrava,feliz.–Conselheiro?–indagouRhunstag,desembainhandoaespada.Azdekinãoreagiu.Nadamaisexistiaparaelealémdamáscaradeouroedoaspectoexaustode
Dun-Cadal.Desafiavam-sesemprecisardepalavras,mediam-se,avaliavam-se,certosdequesuasespadasinevitavelmentesecruzariam.Tudoterminariaali,estavaescrito.Atensãoeratãopalpávelque o silêncio voltou naturalmente, os conselheiros já desistindo de obter uma resposta de seulíder,quenãoprecisoualçaravozparasefazerouvir.
–Seiquemvocêé–declarouAzdeki.–Seidafúriaqueomove.Eucompreendo.E,oqueépiorparavocê,arespeito.Masnãopossopermitirqueseoponhaaodeverquemecabe.AverdadeestánoLivro,LaertedeUster.
Os conselheiros ficaram pasmos. Rhunstag e Bernevin trocaram um olhar desconcertado. Onome fora pronunciado. Era ummito voltando à vida, ummito terrível para todos que haviamfundadoaRepública.LaertedeUsternãotinha,segundoosAzdekis,tentadotomaropoderapósaquedadoimperador?
–Averdade,Azdeki,équevocêestácommedo.Ecomrazão!–exclamouDun-Cadal.Azdekinãoconteveumrisonervoso.–Medo?Dequem?Devocê,Daermon?Desuaentradaespetacular,dignadopatéticoquevocê
semprefoi?Sabequevaimorreraqui,assimcomoofilhodeUster.Euseiqualéomeudestino.E,porele,deduzoodevocês.Nãovãopodermudarnada.
Embora tentasse demonstrar segurança, o medo contraía suas feições. Bernevin e Rhunstaghesitaram um instante, então desceram do altar.Mestre e pupilo estavam unidos novamente e,mesmodepois de tantos anos, não podiamdesconhecer seu papel na revolução.Azdeki deu umpassoàfrente,lançandoumrápidoolharparaosfangolinos.
–Irmãos?Precisodesuabênção.Elescontinuavamcalados,encobertospeloscapuzes.Diantedeles,Anvelin,com lágrimasnos
olhos,mal conseguia se firmar nos cotovelos. Laerte levou amão àmáscara. Tirou-a e deixou-aescorregarpelosdedos.
Juntoaoaltar,Aladziorecuoudevagar,buscandooolhardeLaerte.MasofilhodeOrationãotirava os olhos dos três conselheiros que, apesar da idade, pareciamdispostos a enfrentá-lo comsuasespadas.
–Bênçãonenhuma–asseverouLaerte.–Confiançanenhumaporpartede seusconselheiros.Esse livroquevocê temnão é tão eternocomodiz,Azdeki.E tambémnão encerraodestinodoshomens.ARepúblicanãovaicairsobseujugo.
–NãoqueroqueaRepúblicacaia–rebateuAzdeki,comatranquilidadedequemnãoduvida.–Querodefendê-la.–Inspirouprofundamente.–Suabênção?–repetiuparaosmonges.
Umdelesinclinoulevementeacabeça,então,comvozabafada,anuncioufriamente:–Contecomela.–Prendam-nos–ordenouAzdeki,numtomdespidodeilusões.Percebiaquenão seria fácil,que seenvolverianabatalha,queDun-Cadal sabiausaroSopro,
assimcomoLaerte,enãocederiadiantedossoldados.Mascomissoeleganhavatempo.Quandoossoldadosavançaram,Aladzioseencolheujuntoàúltimaestátuanofundodasala.
Nãoerapara ter sidoassim.EraparaLaerte tercuidadoprimeirodoLiaberDest, transpassadoolivrocomaespada,entãotodosteriamfugido,semacreditarmaisnodiscursodeAzdeki.Omedoapertavaocoraçãodoinventor.
AdoragarrouocoraçãodeDun-Cadalquandoeleseabaixou,joelhosestalando,paradesviardeumalança.Lançou-seàfrente,rolandonochãoe,aindadeitado,ergueuaespadaparaapararogolpe que Azdeki desferia sobre ele. As lâminas se chocaram. Sentiu o peito se inflamar. Então
estendeuapalmadamãolivreparaostrêsconselheirosqueoatacavam.OSoprosóosfezrecuaralgunspassos,osuficiente,porém,paradartempodeovelhogeneralselevantar.
Atrás dele, Laerte, às voltas comdez soldados, deixava-se guiar pela intuição diante do olharatônitodosconselheirosquecomeçavamaentrarempânico.Acadagolpeaparado, rebatiacomumainvestidaàaltura;acadalançadequeseesquivava,agarrava-a,puxavaosoldadoparapertoeo transpassavacoma lâmina.Nuncaempunharaumaespada tão levequantoEraed, tão simplesdemanejar.Era comouma extensãode seubraço.Mais quedeter as estocadas, elapartia o aço,cortavaarmaduraseossos,cintilavanumadançamortal.Emmomentoalgumsesentiuemapuros,eminstantealgumsesentiudominado,masotempocontava.Inspiroufundo.
Seucorpointeiropareciamergulhadoemchamas.Cercadopor cinco soldados ainda empé, abaixou-se, batendo comopunhonomármoredo
piso.O Sopro lançou os soldados para o alto como se fossem feitos de palha.Umdeles voou tão
longequeseespatifounotorsodeumaestátua.Osconselheirosseprecipitaramparaaportasemquerersaberdemaisnada.QuandoLaerteseendireitou,virando-separaoaltarlálonge,viuDun-Cadalresistindoaduraspenasàsinvestidasdeseusantigoscompanheirosdearmas.Comafúriadominando suas entranhas, correu, ofegante, até seumentor, restaurandoo equilíbriode forças.Dun-CadalseafastouparaoladodemodoaenfrentarapenasBernevin.
–Não!Não!–berrouAnvelin,apoucospassosdali.Esquecendoocansaço,superandoador,Anvelintentavaagarrarumdosmonges.Ofangolino
levaraamãoaoLiaberDestpousadonoaltareobispo,passandoobraçoemvoltadeseupescoço,tentavafazê-lorecuar.ObservadoporAzinnAzdeki,quesemantinhaadistância,omongerecuou,quasecaiuporcimadobispoeconseguiusoltar-secomumacotoveladaemsuascostelas.Comorosto vermelho e olhos vidrados, o velho caiu dentro de uma pira e as chamas o envolveram,vorazes.Livre,omongeretornouaoaltareseapossoudoLivro, semnemfitarobispoqueardiaemchamas.
As espadas se cruzavam, os golpes se sucediam. Esquiva, estocada, corte. Azdeki e RhunstagpenavamfaceaofurordeLaerte,quecontinuavavencendo.EleenfiouEraednopeitodeRhunstag,segurando-opelanucaparatranspassá-lo.
Inteiramentedevoradopelaschamas,Anvelindeuumgritolancinante.Adorosacudiutalqualumbonecodesarticulado,dando-lheforçasparaseerguerbruscamente.Comaspernasvergandosobopesodocorpo,jáquasecaindo,deixou-serolaratéumatapeçaria.Aschamasseespalharampelotecidoeatingiramasvigasdemadeiraabaixodaabóbada.
A lâmina de Bernevin tocou o joelho de Dun-Cadal pela fenda entre a coxa e a perna daarmadura,rasgandocalçaecarne.Ogeneralcurvou-senumgemido.Comocoraçãodolorido,fezo esforço de erguer a espada à frente com um levemovimento do braço e rechaçou a arma doinimigo.
À sombra de uma estátua, Aladzio viu o corpo inflamado do bispo, num último estertor, selançar emmeio aos monges fangolinos que tentavam fugir da sala. O fogo atingiu as batinas.Assustado,Azinnrefugiou-seatrásdoaltar.Aoredor,ofogopercorriaasvigas,propagava-senas
tapeçariase,comele,umafumaçadensaeáspera,misturadacomoodorfétidodecarnecalcinada.Doismonges fangolinosrolavamnochãotentandoapagaraschamasdesuas túnicas.OmongequeestavacomoLivroapertouopassoemdireçãoàsaída.
Umavigacedeu,emmeioaumestardalhaçoterrível.Embaixodelajaziaomonge,oLiaberDestabertoaoalcancedamão.Ofogosepôsalamber
aspáginasexpostas.Em meio ao caos, Dun-Cadal resistia a Bernevin, Laerte enfrentava Azdeki. Um arquejo
acompanhava cada passe de arma. Mas a voz de Laerte era a que mais se ouvia, enquanto asilhueta de Azdeki recuava na fumaça. Laerte distinguia seus olhos avermelhados por causa doincêndioeseucorpomagroeesbelto.Vislumbrava,vezououtra,obrilhodalâminadoconselheirocruzando comEraed antes de ceder.Veio-lhe a imagemde seu pai penduradona ponta de umacorda.
Laertegolpeoucom tanta forçaqueouviuoaço separtir.Azdeki soltouumgritode espanto.Laerte imediatamente arremeteu e varou o ar com a espada. Sentiu a resistência dos joelhos deAzdekieemseguidaseurompimento.Reerguendo-se,espantouafumaçacomobraçoeagarrouacabeleirabrancadeseuinimigocaído.
Viu, emseusolhos, a incredulidade eomedo.Haviapavornosolhosdo conselheiroquandoLaerteergueuEraed.
Desferiu um golpe em seu pescoço com a espada e, segurando os cabelos brancos, sentiu opesodocorpodeAzdekidesaparecer.Pendiaemsuamãoacabeçadoconselheiro,osolhosparasemprearregalados.
Largou-o. Nem ouviu seu corpo cair no chão. Suas entranhas ardiam e só tinha um desejo:vomitar,morrer,sumir.Suafúriaaindaotorturava,sentiafaltadear.Entãooviu,apoucospassosdedistância, ao ladodeumamãoaberta:oLiaberDest.As chamasdançavam sobre aspáginas,semconsumi-lo.Nada.Permanecia intacto, comoqueprotegidoporumamisteriosamagia.Nãofoi, porém, essa assombrosa particularidade do Livro que o fez se ajoelhar com o coraçãodisparado.
Cercadadeglifosestranhos,erapossívelverumaantigagravurasobaschamas.Mostravaumcavaleiro comuma armadura simples, sentado, recostadonuma árvore.A seus pés, ummenino,vestindotraposparecidoscomosqueeleprópriousavanasSalinas,oobservavadormir,segurandoumaespadanamãodireita.Enamãoesquerda...
–Rã...Dun-Cadal tinha se arrastado até uma estátua e se virado de barriga para cima, a cabeça
descansando no pedestal. Sorria,mas, quando estendeu amão para Laerte, havia em seu olharuma estranha tristeza. Atravessando a densa fumaça, o rapaz aproximou-se dele e se ajoelhou,segurandosuamão.Umachagaseabriaemseujoelho,umfiodesangueescorriadeseuslábios,masnãohaviaferimentoaparente.Laerteentendeu:nãoforaaespadaqueoderrubara.Olharamumparaooutroemsilêncio.PertodalijaziaBernevin,degolado.
–Laerte...–articulouDun-Cadalcomesforço.Seupeitoseerguiaemsobressaltos.Seucoraçãooabandonava.Laertesentiaamãodoancião,
que segurava a sua, gelada emmeio àquele braseiro. Ficaramolhandoumparaooutro.Apenasisso.Demãosdadas.Estavamjuntos.
Umaúltimavez.UmúltimosopropassoupeloslábiosrachadosdeDun-CadalDaermon.
–Laerte,oLivro–ouviuele.Em meio à espessa fumaça, esboçou-se o vulto de Aladzio, o tricórnio enfiado na cabeça.
Pareciaperdido,desamparado.–Elenãoestámaisali.Nãopodeterqueimado,ele...Aladzio se calou ao perceber o corpo inerte de Dun-Cadal. Laerte soltou devagar a mão do
general e colocou-a sobreoplastrão.Passos e gritos ressoavamao longe.Levantou-se semdizernada.Suafúriacontinuavaali.Seusdedossecontraíamnopunhodaespada.Ouviramossoldadosque se aproximavam.Tinhamarrombado a porta, invadido o pátio interno; decerto haviam sidoretidos pelo pânico dos conselheiros. Não se espantou ao escutar, atrás de si, a voz grave deRogant:
–Temosqueir.O nâaga lhe estendia a máscara dourada. Laerte não tirava os olhos do semblante calmo e
serenodeseumentor.–Nãopossodeixá-loaqui.Carregue-o–pediuLaerteemtomgélido.Aschamasdevoravamtudoaoredor.Empoucosminutos,oscorredoresdaquelaaladoPalatio
seriam tomados por soldados em seu encalço. Precisavam sair dali e encontrar a passagem queLaerteusaraparaentrar.
–Carregue-o–insistiuLaerte.Pegouamáscaradasmãosdoamigo.Suafúria...Nãotinhasumido.
Epílogo
Odestinodoshomens
nuncapassou
deummurmúriodosdeuses.
Dun-Cadalfoienterradosemgrandespompasàbeira-mar.Alémdohomemsantoencarregadodo culto, sóMildrel estava presente, usando um longo vestido preto, um véu cobrindo o rosto.Ninguém nunca soube o que de fato aconteceu no Palatio, mas os boatos se espalharam feitorastilhodepólvora,entrementirasemeiasverdades,revelaçõesenegações.Umnomeressurgiaemtodos os lábios, um único nome, que era, no entanto, execrado desde a queda de Asham IvaniReyes.
LaertedeUster.O corpo de Étienne Azdeki foi resgatado do fogo a tempo. Mas não sua cabeça. Uma
investigação rapidamente empreendida pelo Alto Conselho de Émeris só fez levantar perguntasnebulosas e oferecer respostas capengas. A tensão tomou conta da capital, os conselheiros seespreitavam,mudosehostis;acreditou-sequeumgolpedeEstadotalveztivessesidoevitado.Haviaquem cochichasse nos corredores do antigo palácio imperial que o conspirador talvez não fossequemsepensava.AzinnAzdekinãoderasinaldevidadesdeaNoitedasMáscaras.
OLiaberDestfoimencionado.OLiaberDestteriasidoencontrado.BalianAzdeki tratou de testemunhar com toda sua raiva perante oAltoConselho deÉmeris,
jurando que tinha certeza do que afirmava. Seu pai estava acima de qualquer suspeita, haviafundadoaRepúblicaelutadocontraotiranoReyes.Masissodepoisdeterservidoaele,objetavamalguns.
AprópriaEsyld,abatida,foichamadaparaconfirmarodepoimentodomarido.Timidamente,com lágrimas nos olhos, encarou os conselheiros e declarou ter mesmo reconhecido o filho deOrationaNoitedasMáscaras.Confessouqueo conheceranopassado e admitiuque ele tinhao
objetivodeassassinarospaisdaRepúblicapresentesnaquelanoite.ComissoecombasenoqueÉtienne Azdeki sempre afirmara, passou a ser geralmente aceito que Laerte de Uster tentaraderrubaraRepúblicaetomaropoder,aexemplodeumReyes.
Averdade seviaassimdeformada, triturada,moldadaporboatos, convicçõeseconveniênciaspolíticas. Os conselheiros discordavam em diversos pontos, inclusive quanto à natureza dosacontecimentose suasconsequências.Aúnicacoisa sobreaqualconcordaramfoiacercadocasoLaerte deUster: ele estava de volta e representavaumperigopara aRepública. Sua cabeça tinhaqueserpostaaprêmio.
E todos,docamponêsao taberneiro,dosoldadoaoconselheiro,deramsuaprópriaversãodahistória, imaginando as motivações do filho de Uster, sua deslealdade, sua crueldade... suavingança.Semquenenhumdelesjamaissoubessedaverdadeedoheroicoretornodeumgloriosoderrotado.SemquenenhumdelesjamaistornasseapronunciaronomedeDun-CadalDaermon,sepultadoàbeira-mar,sobumachuvatorrencial,emMassália.
Delonge,alémdacercadocemitério,LaerteobservavaMildrelchorarporaquelequeosdeixaracomtantadignidade.
Vingançachamavingança...De punhos cerrados, ele a contemplava, bela e serena. Pensou, por um momento, em
aproximar-se dela para homenagear aquele que tudo lhe ensinara, mas resignou-se a se afastarrumoàsvielasdacidade.
– Estão todos se digladiando – esbravejavaAladzio. – Ficam apontando você como culpado,mas na verdade estão se digladiando.O que aconteceu emMassália trouxe à tona as contendasentreosconselheirosdopovo.
Empilhavanervosamenteos livrosnamesacomprida, indoevindodasestantes.Oinvernoseaproximavae,emboraabibliotecadatorre ficassenosubsolo,umar friovinhaafagaraschamasdasvelas.
–TodossófalamnoLiaberDest.AOrdemdeFangolestáquerendosaberdosconselheirosqueseencontravamemMassáliaarespeitododesaparecimentodeseusrepresentantes.E,oqueépior,principalmenteparaPage: osmonges achamnecessário ter, daquipara a frente, uma cadeiranaAssembleia.
Selecionavaosvolumessemmuitocuidado,colocandoparatrásosqueachavadesinteressanteseguardandoosdemaisemlargassacolasdecourogasto.
–Elesvãovirparacá,Laerte,ossoldadosdaRepública.–Elesedeteve,umaexpressãosérianorosto.–AOrdemdeFangolquer reassumiro lugarque julga ser seu.Eles vêmpara cá, por issoestousalvandotudoqueposso.
Recostadonumaparede,osbraçoscruzados,Laertesustentavaseuolhar.–Você nem imagina a ira de Page – disse Aladzio, suspirando e conformando-se em deixar
paratrástrêscódicesvolumosos.–Agora,emcomparaçãocomvocê,eleatéquetemsedadobem.Ninguém toca no nome dele, está limpo como a neve, e os mercenários conseguiram sair doPalatioatempo,pelosjardins.Elefalamuitoemvocê,sabe?Perguntouseeusabiaondeestava.
–Vocêdeusuapalavra–lembrouLaerte.–Eudeiminhapalavra–concordouAladzio.–Poroutrolado,achoquevocêdeviaretomaro
contato.Eletalvezpossaprotegê-lo.–ElesabeparaondefoiAzinn,nãosabe?FoiAzinnquempegouoLiaberDest...Aladzio dirigiu-lhe um olhar sombrio,mordendo os lábios, então tratou de fechar as sacolas
cheiasatéaborda.– Sim, é o que ele supõe. Mas não é por causa do Livro que você vai procurar Azinn, é? –
Colocoucomdificuldadeassacolasnoombro.–Rogantestáatrásdele.Esperavê-loembreve.–Osorriso que esboçara foi se apagando àmedida que o olhar embaciado percorria a biblioteca. –Esseslivrosguardamosabersecreto–acrescentou,tristonho.–Partemeucoraçãodeixartudoissopara os fangolinos. – Com a mão frouxa, tamborilou o couro de uma das sacolas que trazia atiracolo.–Estoulevandooquemeédevido.
Elesorriupesarosamente.
Galapa os acolheu com uma leve risada, sentado em sua cadeira junto à porta da torre emruínas.Enquantoajeitavaassacolasnolombodocavalo,AladzioergueuosolhosparaLaerte,quemontavaoseu.
–Estoupreocupado comesse velho irmão– confessouAladzio,pesaroso.–Éumdoido, semdúvida,masvousentirfaltadele.
Subiu em sua sela. Ao longe, na linha do horizonte, uma nuvem de poeira se erguia. Eramcavaleiroschegando.Aladzioergueuotricórnioantesdeenfiá-lonacabeça.
–Chegamos.–Aladzio,oLivro...Vocêoleu...Viutodasaspáginas.Constrangido, ele não olhou para Laerte. Sabia o que amigo queria saber e não se sentia
confortávelpararesponder.–CadaumvênoLivrooquequerver,vocêsabe–tentouseesquivar.–Émesmo?Nãoacreditoemdestinoescritopelosdeuses,maseuvi...noPalatio...euviDun-
CadalnoLivro.–Ah,é?–Aladziosorriutimidamente.–Nãomelembrodetê-lovisto.Aindaesquivavaoolhar.Galapacontinuavacomsuarisadinha.–Aladzio,olheparamim.Aladziofitavaohorizonte,tentandodiscernir,napoeiraerguida,ovultodoscavaleiros.–Olheparamim–repetiuLaerte.O inventordignou-sepor fimvoltar os olhospara ele. Seu rosto jánão apresentavanenhum
sinaldeconstrangimento,masumagravidadequeelenunca,emtodaavida,demonstrara.–VocêacreditanoLivro?–perguntouLaerte.–Ainda tenho dúvidas, Laerte. As certezas são o quematam a República. Eu tenho dúvidas.
Queriatertodaacertezadequeesselivronãopassadeumafábulaescritamilharesdeanosatrás.Juro, pelaminha vida, que queria poder lhe dizer isso. – Passou a língua pelos lábios enquantopuxavalevementeasrédeasparaconduzirseucavaloatéaestradalamacenta.–PorqueeuviofinaldoLivro.Umagravura,umasimplesimagemqueaindaguardaseussegredos,mas...tenhocerteza:estamosnosaproximandodofinal,meuamigo.
–E...?–Pornadanomundoeuqueroviveressefinal.–Omedo,porumbreveinstante,brilhoucomo
nuncaemseusolhos.–Vocêdeviairatrásdela–aconselhou,comexpressãoséria.–Delaquem?–DeViola.ViolaAguirre.Ela fala emvocê, sabia? Só sendo cegoparanãover a afeiçãoque
sentepelomisteriosoLaertedeUster.Deviairatrásdela.ViolafoiparaoOestehádoisdias,paraocondadodeDaermon.Pretendefazerumapesquisahistórica,masnóssabemosqueomotivonãoé só esse, não é? Foi uma forma que ela encontrou de homenageá-lo.Acho... – Fez uma pausa,farejandooar.–Sim,vocêdeviairatrásdela.Eviverumavidatranquila,meuamigo.
Enveredoucomamontariapelaestradadepedraselogoaincitouparasairatrote.–Bicudavaiseguirvocê!Recorraaelasequiserentraremcontatocomigo!Cuide-se,Laerte!A risadinha deGalapa silenciara. Laerte permaneceu alguns instantes em silêncio, pensativo,
contemplando a paisagem. Para onde ir?Que caminho seguir? Tinha a sensação de ter perdidotudo,denãosermaisninguém.
–Eleesteveaqui,sabe,filhodeUster.Eleveiomever–anunciouGalapa,todosorrisos.Suavozquasechiavaenquantoeleerguiaosolhosdeumbranco leitosoparaLaerte,comose
pudesse vê-lo claramente. Pouco inclinado a dar conversa a um louco e vendo os cavaleiros seaproximarem, Laerte conduziu seu cavalo para o caminho que descia da torre. Mas Galapa ointerpelounovamente:
–ElemedissequevocêtinhacortadoacabeçadeAzdeki!Queeletinhaficadonaportavendovocêlutar!
Laertepuxouasrédeascomtantaforçaqueocavalorelinchou.Deumeia-volta.–Dequemvocêestáfalando?–perguntousecamente.–Dequem?Sótevecomorespostaumarisadinhalongaehorripilante.Devagar,ovelhomongedesabotoou
atúnicaeaabriu,mostrandoorgulhosamenteopeito,balançandoacabeça.– Ora, do homem que me deu este lindo presente, claro. Ele sabe que o Livro e a Espada
precisamserreunidos.Emsuapelelívida,haviaumaantigacicatrizdeumretângulocortadoporumalinhareta.Não,
umalinha,não.Pareciaumalâmina,fina,compunhotorneado.– O mais gordo dos Azdekis o conhece. Ele sussurrou no seu ouvido – continuou Galapa,
achandograça.–AlgumanotíciadoOeste?Algumanotíciaalémdograndemar?Otempourgia,a imagemdoscavaleirosao longese tornavamaisprecisaeumdeles traziao
estandarte dos soldados da República. Laerte bem que queria continuar interrogando omonge,masnãoestavacomânimoparalutar.
–Quemestáaí?–perguntouGalapaderepente.Passouamãomanchadanaboca,comumaexpressãovaga.Entãodeuoutrarisadinha.
Aolonge,naestradadeterra,apoeiraseerguiaatrásdeumcortejodeviajantes.Natraseiradeuma carroça sacolejante, umhomemobeso se escondia sob um cobertor sujo e furado, comumlivro junto ao peito, fitando o nada. Vez ou outra, lançava ao redor olhares de esguelha, paraverificar se ninguém o reconhecia. Faltavam poucas horas para chegarem a Eola. No final daestrada,paraalémdeumavastaeescurafloresta,erguia-se,noaltodeumafalésia,umacidadedepedra cercada por importantes fortalezas. Lá, AzinnAzdeki estaria seguro. Assim esperava, pelomenos. Talvez mudasse de opinião se avistasse, lá no alto da colina, um homem afagando opescoçodeumcavalo.
Vingançachamavingança...Envolveocaminhoquevocêescolhetrilhar.Laerteobservouocortejoquecambaleavapelaestrada.Entãotornouamontar,decidido.O caminho da fúria fatalmente conduz ao abismo. Porque, para trilhá-lo, terá que alimentar
constantementeessafúriaesempreolharparatrás.Aescolhaésua,LaertedeUster.Meufilho...Instigouocavalocomoscalcanharesesaiuagalope...
Agradecimentos
ABarbaraBessat-LelargeeQuentinDaniel,queforamosprimeirosaacreditarnestelivro.A toda a equipe da Bragelonne, que trabalhou com extrema gentileza e um profissionalismo
exemplar.AClaireDeslandes,porseupreciosotrabalhoderevisãoeseusconselhos.ATomClegg,pelas
sugestõesfinais.
Um agradecimentomuito especial aGillian Redfearn, daGollancz, e a StéphaneMarsan, daBragelonne,pelaconfiança.
Sobreoautor
ANTOINE ROUAUD nasceu na França em 1979 e passou a infância escrevendo histórias,imaginandoroteirosecompondocançõesantesdeentrarparaomundodorádio.Hojeemdiaeleé redator e trabalha com premiadas radionovelas. O Livro e a Espada foi indicado ao DavidGemmelAwardscomomelhorestreialiterária.
ParasabermaissobreostítuloseautoresdaEditoraArqueiro,visiteonossosite.
Alémdeinformaçõessobreospróximoslançamentos,vocêteráacessoaconteúdosexclusivos
epoderáparticipardepromoçõesesorteios.
editoraarqueiro.com.br
Sumário
CréditosParteI
123456789101112
ParteII1234567891011121314
EpílogoSobreoautorInformaçõessobreaArqueiro