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i Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências Humanas e Filosofia Departamento de História Programa de Pós-Graduação em História O LONGO BONAPARTISMO BRASILEIRO (1930-1964): AUTONOMIZAÇÃO RELATIVA DO ESTADO, POPULISMO, HISTORIOGRAFIA E MOVIMENTO OPERÁRIO Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor. Área de concentração: História Social Linha de pesquisa: Poder e sociedade Orientador: Professor Doutor Marcelo Badaró Mattos FELIPE ABRANCHES DEMIER Niterói, 2012

o longo bonapartismo brasileiro (1930-1964): autonomização

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  • i

    Universidade Federal Fluminense

    Instituto de Cincias Humanas e Filosofia

    Departamento de Histria

    Programa de Ps-Graduao em Histria

    O LONGO BONAPARTISMO BRASILEIRO (1930-1964):

    AUTONOMIZAO RELATIVA DO ESTADO, POPULISMO,

    HISTORIOGRAFIA E MOVIMENTO OPERRIO

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em

    Histria da Universidade Federal Fluminense, como

    requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutor.

    rea de concentrao: Histria Social

    Linha de pesquisa: Poder e sociedade

    Orientador: Professor Doutor Marcelo Badar Mattos

    FELIPE ABRANCHES DEMIER

    Niteri, 2012

  • ii

    Felipe Abranches Demier

    O longo bonapartismo brasileiro (1930-1964):

    autonomizao relativa do Estado, populismo, historiografia e movimento

    operrio

    Orientador: Marcelo Badar Mattos

    Niteri, 2012

  • iii

    DEMIER, Felipe Abranches 1980 -

    O longo bonapartismo brasileiro

    (1930-1964): autonomizao relativa

    do Estado, populismo, historiografia e

    movimento operrio

    Niteri: [ s.n.], 2012. 506 p.

    Tese (Doutorado) Universidade

    Federal Fluminense, Departamento de

    Histria. rea de concentrao:

    Histria Social

    1. Bonapartismo Populismo cesarismo Len Trotsky

    I. Ttulo

  • iv

    FELIPE ABRANCHES DEMIER

    O longo bonapartismo brasileiro (1930-1964):

    autonomizao relativa do Estado, populismo, historiografia e movimento

    operrio

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em

    Histria da Universidade Federal Fluminense, como

    requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutor.

    rea de concentrao: Histria Social

    Linha de pesquisa: Poder e sociedade

    Orientador: Professor Doutor Marcelo Badar Mattos

    Aprovada em: __/___/___

    BANCA EXAMINADORA

    _______________________________________

    Prof. Dr. Marcelo Badar Mattos (orientador) UFF

    ________________________________________

    Prof. Dr. Virgnia Fontes UFF/FioCruz

    _________________________________________

    Prof. Dr. Renato Lus do Couto Neto e Lemos - UFRJ

    ________________________________________

    Prof. Dr. Alvaro Bianchi - UNICAMP

    _________________________________________

    Prof. Dr. Valrio Arcary IF/SP

  • v

    DEMIER, Felipe Abranches. O longo bonapartismo brasileiro (1930-1964):

    autonomizao relativa do Estado, populismo, historiografia e movimento

    operrio. (Tese de doutorado em Histria). Niteri: PPGH/UFF, 2012.

    Palavras- chave:

    1- bonapartismo; 2- populismo; 3- cesarismo; 4- Len Trotsky

    Resumo

    A finalidade deste trabalho assinalar a presena da idia de autonomizao relativa

    do Estado, fenmeno histrico-poltico abordado por alguns clssicos do pensamento

    marxista, em alguns dos destacados trabalhos cientficos que se dedicaram ao chamado

    perodo populista da histria nacional. Mais especificamente, buscaremos expor como o

    conceito de bonapartismo, tal como foi trabalhado e desenvolvido por autores como Marx,

    Engels, Trotsky e Gramsci, se encontra presente em uma parcela da produo bibliogrfica

    acadmica que visou compreenso das relaes entre classes sociais e Estado no perodo da

    repblica brasileira localizado entre 1930 e 1964. Ademais, este trabalho tambm objetiva

    evidenciar a existncia de uma relao pouco conhecida para no dizermos simplesmente

    ignorada entre essas interpretaes acadmicas sobre o perodo populista brasileiro e

    aquelas que, bem antes, no calor dos acontecimentos, haviam sido elaboradas por

    organizaes polticas do movimento operrio entre os anos 1930-1964. Mais especificamente,

    intentamos expor como pequenos agrupamentos de extrao trotskista (ou prximos ao

    trotskismo), como a Liga Comunista Internacionalista (LCI), o Partido Operrio Leninista

    (POL), o Partido Socialista Revolucionrio (PSR), o Partido Operrio Revolucionrio (POR)

    e a Poltica Operria (POLOP) anteciparam, em suas anlises conjunturais sobre o carter

    poltico assumido pela dominao de classe no pas, muitos elementos que, mais tarde,

    reapareceriam nas tais interpretaes acadmicas sobre o perodo populista. Alm de todas

    essas questes de carter historiogrfico, o presente trabalho traz tambm, ao seu final, uma

    proposta nossa de interpretao histrica do processo poltico brasileiro do perodo 1930-1964

    realizada luz do que chamamos de uma teoria do bonapartismo.

  • vi

    DEMIER, Felipe. Brazils long Bonapartism (1930-1964): relative autonomy of

    the State, populism, historiography and the labor movement. (PhD thesis in

    History). Niteri: PPGH/UFF. 2012.

    Key-words: 1- Bonapartism; 2 populism; 3 Caesarism; 4 Leon Trotsky.

    Abstract

    This work highlights the idea of a relative autonomization of the State a social-

    political phenomenon discussed by some Marxist classics in some of the important

    scientific works dealing with the so-called populist period of Brazils history. It is shown how

    the concept of Bonapartism, as developed by authors such as Marx, Engels, Trotsky and

    Gramsci, is present in part of the academic production that sought to understand the relations

    between social classes and the State in the Brazilian republic between 1930 and 1964. In

    addition, evidence brought forward of a relatively unknown or perhaps ignored relation

    between that academic production and works produced in the 1930-1964 period by political

    organizations of the labour movement in the heat of the events. It is shown how small

    trotskyist groups (or groups close to Trotskyism) such as the Internationalist Communist

    League (LCI), the Leninist Labourers Party (POL), the Socialist Revolutionary Party (PSR),

    the Revolutionary Labourers Party (POR) and Labourer Politics (POLOP) appear to have

    anticipated, in their conjunctural analyses of the political character of class domination in

    Brazil, many of the elements which, later, would reappear in the academic interpretations of

    the populist period. In addition to those historiographic questions, the present work also

    advances a historical interpretation of the Brazilian political process in the 1930-1964 period,

    elaborated in the light of what is here called a theory of Bonapartism.

  • vii

    Sumrio

    Introduo geral

    Bonapartismo, populismo e a nossa pesquisa

    O carter deste trabalho ....................................................................................................3

    Temtica, objetivos e teses ..................................................................................................3

    Estrutura do trabalho e disposio dos captulos ..........................................................5

    Duas breves justificativas...........................................................................................10

    Parte I

    A Teoria do Bonapartismo

    Introduo primeira parte

    Bonapartismo e marxismo

    Bonapartismo: o fenmeno e o conceito ..................................................................15

    Uma proposta de sntese conceitual .................................................................................17

    Bonapartismo e capitalismo ..............................................................................................22

    Estado, regime e governo..............................................................................................23

    Crise de hegemonia e bonapartismo..........................................................................31

    O bonapartismo esvaziado de sentido: breves comentrios sobre dois autores

    acadmicos ............................................................................................................................35

    Poulantzas e a permanente autonomia relativa do Estado........................................35

    Losurdo e o bonapartismo onipresente.........................................................................39

    Captulo I

    As origens do conceito: Marx e Engels

  • viii

    Marx e o clssico bonapartismo francs (1848-1871).........................................47

    A Revoluo de fevereiro de 1848.....................................................................................50

    Uma repblica para a burguesia e a luta contra o proletariado................................52

    O domnio dos republicanos burgueses e as contradies constitucionais................54

    Bonaparte e o partido da ordem contra os republicanos burgueses............................58

    A repblica burguesa contra a pequena-burguesia republicana...............................60

    A repblica sob domnio da burguesia monrquica.....................................................62

    A burguesia contra Bonaparte: Executivo x Legislativo.............................................64

    A burguesia contra o seu partido: Economia x poltica..............................................70

    2 de dezembro de 1851: o golpe de Estado contra (e para) a burguesia..................73

    Bonapartismo e poltica de massas...................................................................................76

    Um poder acima da sociedade: a autonomizao relativa do Estado.........................78

    O Estado e a classe camponesa: a ideologia bonapartista.......................................81

    Bonapartismo e desenvolvimento capitalista.................................................................82

    Engels e o bismarckismo alemo.................................................................................84

    Bonapartismo: as revolues de cima para baixo.....................................................85

    Bonapartismo: uma forma excepcional de Estado........................................................88

    Atraso e bonapartismo: o caso alemo.............................................................................89

    Bonapartismo: um caminho poltico para a modernizao retardatria................92

    Capitalismo tardio e o duplo equilbrio bonapartista................................................93

    Do absolutismo ao bonapartismo......................................................................................96

    Bonapartismo, corporativismo e massas populares......................................................97

    Captulo II

    As perspectivas de dois revolucionrios do sculo XX: Trotsky e Gramsci

    Len Trotsky e os vrios bonapartismos ...............................................................101

    Histria e bonapartismos..................................................................................................101

    O complicado bonapartismo alemo (1930-1933)..............................................104

    O bonapartismo francs semiparlamentar (1934-1940)........................................112

    O bonapartismo perifrico...............................................................................................121

    A lei do desenvolvimento desigual e combinado: um breve histrico do conceito.....124

  • ix

    As origens do conceito de desenvolvimento desigual e combinado....................131

    A revoluo na China e o amadurecimento do conceito....................................134

    Itlia, ndia, Espanha e frica do Sul: outras aplicaes do conceito...............137

    A Revoluo Russa: demonstrao histrica da validade do conceito..............139

    Amrica Latina: ltimo campo de observao conceitual.................................148

    Totalidade e internacionalismo em Len Trotsky.............................................150

    Trotsky e o papel contra-revolucionrio das burguesias atrasadas...................161

    Os bonapartismos sui generis da Amrica Latina...................................................176

    O bonapartismo sovitico.............................................................................................183

    Antonio Gramsci e os cesarismos..............................................................................186

    Crise de hegemonia, crise orgnica e cesarismo.................................................187

    Cesarismo progressista e cesarismo regressista............................................................189

    Revoluo passiva e cesarismo....................................................................................197

    Parte II:

    Bonapartismo e populismo no Brasil

    Introduo segunda parte

    Trotskismo, movimento operrio e universidade

    A influncia trotskista nas cincias sociais brasileiras......................................205

    Uma nova corrente no pensamento social brasileiro: a intelectualidade

    antidualista e antietapista........................................................................................207

    As organizaes trotskistas (ou prximas ao trotskismo) no Brasil (1930-

    1964).......................................................................................................................................212

    A primeira gerao trotskista (LCI e POL): distantes da intelectualidade acadmica

    marxista dos anos 60...................................................................................................212

    O PSR: Florestan Fernandes e o trotskismo................................................................215

    O POR: uma experincia poltica e terica para futuros acadmicos.........................220

    A POLOP: militantes, intelectuais e teoria da dependncia....................................230

    A lei do desenvolvimento desigual e combinado e a intelectualidade brasileira....235

    Organizaes trotskistas e pensamento social brasileiro: dois breves

    comentrios..........................................................................................................................248

  • x

    Captulo III

    Bonapartismo e populismo:

    Historiografia, movimento operrio e as interpretaes sobre o perodo

    1930-1964

    Populismo e bonapartismo nas cincias sociais brasileiras.............................251

    A teoria do populismo brasileiro....................................................................................252

    Uma nova perspectiva sobre a historicidade da periferia capitalista (Amrica

    Latina/Brasil)...............................................................................................................253

    Crise de 1929, periferia e populismo..........................................................................256

    Crise de hegemonia, Revoluo de 1930, compromisso e populismo.................258

    Populismo e trabalhadores: a cidadania das massas................................................266

    Nacionalismo, estatismo e mobilizao de massas.....................................................269

    Populismo e trabalhadores: sindicalismo e corporativismo........................................271

    Populismo e trabalhadores: a questo das direes polticas da classe.......................274

    A crise do populismo...................................................................................................277

    Populismo: o desenvolvimento da teoria....................................................................281

    Teoria do bonapartismo e teoria do populismo: convergncias..............................295

    O bonapartismo nas origens do conceito de populismo: Weffort e Ianni...................295

    Populismo, burocracia e bonapartismo: Dcio Saes e Armando Boito Jr...................306

    Hegemonia ou revoluo passiva/cesarismo? A variante gramsciana da teoria do

    populismo (Rgis Andrade e Ren Dreifuss)..............................................................309

    O bonapartismo no Brasil (1930-1964): outros autores..............................................312

    Vises trotskistas da dominao poltica no Brasil 1930-1964: bonapartismo....323

    O surgimento do bonapartismo no Brasil....................................................................323

    Estado Novo e bonapartismo.......................................................................................325

    Os bonapartismos ps-1945........................................................................................332

    Um intermezzo para a polmica historiogrfica: o movimento de reviso do

    populismo (da valorizao das lutas operrias ao fetichismo do varguismo).......336

    O conceito de populismo nas cordas do ringue historiogrfico: os dois campos da

    reviso em curso..........................................................................................................339

    Populismo e luta por direitos: a corrente historiogrfica da Unicamp....................342

  • xi

    Como era gostoso o nosso populismo: a corrente revisionista fluminense.................350

    Historiadores, poltica, passado e presente: uma indagao guisa de concluso.....358

    O bonapartismo ps-populista: o Golpe de 1964 e a ditadura militar...................361

    Captulo IV

    O longo bonapartismo brasileiro:

    um ensaio de interpretao histrica do Brasil contemporneo (1930-1964)

    A via bonapartista da modernizao capitalista do Brasil ............................369

    Domnio cafeeiro e crise de hegemonia......................................................................370

    A Revoluo de 1930 e a emergncia do bonapartismo.........................................377

    O bonapartismo em construo: o Governo Provisrio (1930-1934)......................382

    A Constituio de 1934 e a formao de um bonapartismo semiparlamentar.......393

    A escalada bonapartista (1934-1937).............................................................................398

    O 18 brumrio de Getlio Vargas e o fastgio bonapartista: rpidas

    consideraes sobre o bonapartismo semifascista do Estado Novo (1937-1945)...423

    Ditadura em crise, a guerra e o incio da transmutao bonapartista (1942-

    1945).......................................................................................................................................434

    O semibonapartismo democrtico ou o cesarismo sem Csar (1946-1964): algumas

    notas para uma pesquisa futura......................................................................................442

    Consideraes finais

    Teoria poltica, historiografia, universidade e movimento operrio

    Algumas palavras guisa de concluso .................................................................467

    Bibliografia ......................................................................................................................479

  • xii

    para meus pais Elio e Cristina, pelo apoio sempre

    incondicional;

    para minha mulher Bianca,

    por todo o amor e companheirismo oferecidos ao

    longo desta jornada;

    para meu av Roberto Abranches (in memoriam) que,

    provavelmente, no concordaria com quase nada do que est

    escrito nestas pginas (mas isso nunca teve a menor importncia

    entre a gente)

  • 1

    A intelligentsia russa cedo me inculcara que o prprio sentido da vida consiste em

    participar conscientemente da realizao da histria. Quanto mais penso nisso, mais parece-

    me profundamente verdadeiro. Isso significa pronunciar-se ativamente contra tudo o que

    diminui os homens e participar de todas as lutas que tendem a libert-los e engrandec-los.

    Que essa participao seja inevitavelmente manchada de erros no minimiza o imperativo

    categrico; pior erro viver para si, segundo tradies totalmente manchadas de

    desumanidade. Essa convico me deu, como a um certo nmero de outros, um destino

    bastante excepcional; mas estvamos, estamos bem na linha do desenvolvimento histrico,

    agora se v que, por toda uma poca, milhes de destinos vo seguir os caminhos que fomos

    os primeiros a trilhar. Na Europa, na sia, na Amrica, geraes inteiras se desenraizam,

    engajam-se profundamente nas lutas coletivas, aprendem a violncia e o grande risco,

    experimentam cativeiros, constatam que o egosmo do cada um por si est caduco, que o

    enriquecimento pessoal no a finalidade da vida, que os conservadorismos de ontem s

    levam s catstrofes, sentem a necessidade de uma nova tomada de conscincia para a

    reorganizao do mundo

    Victor Serge (1890-1947), em suas Memrias de um revolucionrio

    (So Paulo: Cia. das Letras, 1987, p. 426.)

  • 2

    Introduo geral:

    Bonapartismo, populismo e a nossa pesquisa

  • 3

    O carter deste trabalho

    uma obra importante, precisamente porque nela se apresentam conjugadamente algumas das principais contribuies do pensamento dialtico. A est aplicada a teoria da luta de classes, bem como

    a concepo marxista do Estado. Explica-se a maneira pela qual o Exrcito se envolve na poltica e

    quais so os sentidos da politizao dos militares. No confronto entre diferentes concepes sobre a

    organizao poltica da sociedade, verificamos como se manifestam os ideais da social-democracia.

    Ao mesmo tempo, ficamos conhecendo a maneira pela qual a atividade dos homens, tomados

    individualmente e em grupo, assume significao coletiva e histrica. Ou melhor, de como as classes

    sociais e suas faces se apresentam nos acontecimentos, esclarecendo os seus sentidos ou incutindo-

    lhes novas direes. Nessa linha de reflexo, verificamos como se d a formao da conscincia, em

    especial como a conscincia de classe e a conscincia social individual conjugam-se e desencontram-se

    na produo dos acontecimentos. Alm disso, verificamos a maneira pela qual o Estado aparece

    representando a vontade geral e em que medida ele exprime os interesses da classe dominante. O

    bonapartismo, de que falam os polticos e os cientistas sociais modernos, um desenvolvimento da

    interpretao formulada nesta obra.

    Em suma, em O 18 brumrio podemos acompanhar as maneiras segundo as quais se do os

    encadeamentos entre as diversas esferas da existncia coletiva. Em particular, conhecemos as diferentes

    conexes recprocas entre o econmico e o poltico. Observamos, com preciso, as maneiras pelas quais

    ocorrem as transies no modo de produo s relaes de produo e s ideologias. Em outras palavras,

    nesta obra o pensamento dialtico rev-nos a maneira pela qual se d a produo da histria, como

    dialtica do real.1

    Temtica, objetivos e teses

    Poucos anos antes de sua morte, o intelectual e militante socialista Ruy Mauro Marini

    relatou que, por volta de 1962-1963, preparava sua tese de doutorado sobre o fenmeno do

    bonapartismo no Brasil. Segundo Marini, o texto da tese e demais materiais relativos a ela

    se perderam em 1964, quando da primeira invaso, pelo Exrcito, da ento recm-criada

    Universidade Nacional de Braslia (UNB).2 Ainda que no intencionalmente, aquela ao

    truculenta da ditadura militar (uma entre milhares) acabou por gerar uma importante lacuna

    temtica no pensamento social brasileiro, j que no temos cincia de nenhum outro trabalho

    cientfico dedicado especificamente compreenso das formas bonapartistas assumidas pela

    dominao burguesa no Brasil.

    Todavia, ainda que no como objeto central de investigao histrico-sociolgica, a

    idia de um bonapartismo brasileiro figurou, desde o sumio do natimorto estudo de Marini,

    em uma significativa parcela de trabalhos cientficos realizados no pas. De forma explcita ou

    implcita, a categoria de bonapartismo esteve presente como um elemento estruturante em

    muitos conhecidos estudos sobre o Brasil Contemporneo produzidos pela academia no ps-

    1 IANNI, Octavio. Apresentao in MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte [e Cartas a Kugelman].

    Traduo de Leandro Konder e Renato Guimares. 4 edio. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1978, p. 4-5. Grifos do

    autor. 2 MARINI, Ruy Mauro. Memria: por Ruy Mauro Marini (agosto de 1990) in ____. Ruy Mauro Marini. Vida

    e obra. TRASPADINI, Roberta e STEDILE, Joo Pedro (orgs.). So Paulo: Expresso Popular, 2005, p. 65.

  • 4

    1964. isso o que, precipuamente, este trabalho pretende apresentar e discutir. De natureza

    eminentemente historiogrfica, ele tem boa parte de suas pginas dedicada a expor como a

    noo de uma autonomia relativa do Estado em face das classes sociais ncleo central do

    que aqui chamamos de uma teoria do bonapartismo embasou interpretaes sobre o

    processo scio-poltico brasileiro do ps-1930 realizadas por autores como Lencio Martins

    Rodrigues, Carlos Estevam Martins, Luiz Alberto Moniz Bandeira, Carlos Nelson Coutinho,

    Luiz Werneck Vianna e o prprio Ruy Mauro Marini. Mais enfaticamente, procuramos

    demonstrar como essa noo de autonomizao relativa do Estado se constituiu tambm

    explcita ou implicitamente em um dos pilares centrais das anlises sociolgicas que

    propuseram como chave explicativa para o perodo 1930-1964 o conceito de populismo.

    Desse modo, nos esmeramos em expor, um tanto quanto detalhadamente, aquilo que a

    principal tese deste trabalho: a teoria do bonapartismo foi a base fundamental daquela que

    se tornaria conhecida como a teoria do populismo (brasileiro), formulada e desenvolvida,

    nos anos 60, 70 e 80, por autores marxistas como Francisco Weffort, Octavio Ianni, Rgis de

    Castro Andrade, Ren Dreifuss, Dcio Saes e Armando Boito Jr.

    Secundariamente, este trabalho tem por fito evidenciar a existncia de uma relao

    pouco conhecida para no dizermos simplesmente ignorada entre essas interpretaes

    acadmicas sobre o perodo populista brasileiro e aquelas que, bem antes, no calor dos

    acontecimentos, haviam sido elaboradas por organizaes polticas do movimento operrio

    entre os anos 1930-1964. Mais especificamente, intentamos expor como pequenos

    agrupamentos de extrao trotskista (ou prximos ao trotskismo), como a Liga Comunista

    Internacionalista (LCI), o Partido Operrio Leninista (POL), o Partido Socialista

    Revolucionrio (PSR), o Partido Operrio Revolucionrio (POR) e a Poltica Operria

    (POLOP) anteciparam, em suas anlises conjunturais sobre o carter poltico assumido pela

    dominao de classe no pas, muitos elementos que, mais tarde, reapareceriam nas tais

    interpretaes acadmicas sobre o perodo populista. Retomando e desenvolvendo, assim, o

    que j havamos discutido em nossa dissertao de mestrado,3 apresentamos aquela que a

    segunda tese deste trabalho: na interpretao do populismo brasileiro, o movimento operrio

    antecedeu academia. Na discusso proposta, veremos como certos autores acadmicos h

    pouco mencionados, quando novos, integraram ou estabeleceram algum tipo de relao

    perifrica com algumas dessas organizaes trotskistas (ou prximas ao trotskismo) que,

    entre a Revoluo de 1930 e o Golpe de 1964, lutaram encarniadamente contra a ordem

    burguesa no Brasil. Tal elemento ser apresentado como um possvel fator explicativo para

    essa espcie de convergncia analtica entre militantes trotskistas pr-1964 e acadmicos

    3 DEMIER, Felipe. Do movimento operrio pra universidade: Len Trotsky e os estudos sobre o populismo

    brasileiro. (dissertao de mestrado). Niteri: PPGH/UFF, 2008.

  • 5

    marxistas ps-1964 acerca do que teriam sido os aspectos centrais do processo poltico

    populista. Mostraremos, tambm, como tal convergncia pode ser vista como expresso de

    outra comunho epistemologicamente mais ampla entre os grupos em questo: tanto as tais

    pequenas organizaes trotskistas (ou prximas ao trotskismo) quanto aqueles acadmicos

    marxistas realizaram suas anlises da formao social brasileira reconhecendo nela a

    existncia de uma historicidade particular, resultante de sua prpria natureza atrasada,

    perifrica e dependente. Como veremos, no s os trotskistas militantes, como tambm os

    acadmicos marxistas com os quais trabalharemos realizaram suas interpretaes do processo

    poltico brasileiro contemporneo tendo por base a chamada lei do desenvolvimento desigual

    e combinado, de autoria de Len Trotsky.

    Alm de todas essas questes de carter historiogrfico, o presente material traz

    tambm, ao seu final, uma proposta nossa de interpretao histrica do processo poltico

    brasileiro do perodo 1930-1964, realizada luz da teoria do bonapartismo. Aproveitando-

    nos de aportes tericos oferecidos ao longo do trabalho, e retomando questes e discusses j

    ento anunciadas nas pginas dos captulos anteriores, realizamos uma sinttica anlise da

    dinmica poltica que, dialeticamente, acompanhou e produziu a retardatria modernizao

    industrial do pas sob o perodo populista.4 Abordando os diversos momentos e configuraes

    especficas da autonomizao relativa do Estado face s classes sociais existente ao longo de

    todo o populismo, lanaremos a ltima tese deste trabalho: a transformao do secular Brasil

    agrrio-exportador em um moderna nao urbano-industrial se fez por um caminho

    bonapartista, isto , percorreu os trilhos do que chamamos de uma via bonapartista da

    modernizao capitalista.

    Estrutura do trabalho e disposio dos captulos

    Por questes de mtodo de exposio que, sempre vale lembrar, no deve ser

    confundido com mtodo de investigao optamos por organizar nosso trabalho em duas

    partes centrais, a saber, A teoria do bonapartismo (parte I) e Bonapartismo e populismo no

    Brasil (parte II).

    4 Ao longo deste trabalho, utilizamos o termo modernizao no sentido de desenvolvimento das foras

    produtivas e relaes sociais capitalistas, isto , como o desenvolvimento das formas de explorao do trabalho.

    Como procuraremos apresentar no decorrer destas pginas, nos pases perifricos do sistema capitalista esse

    desenvolvimento se processou (processa) de um modo em que o chamado atraso constantemente reproduzido,

    acompanhando e estimulando sempre os elementos modernos. Assim, no tomamos a idia de modernizao tal

    como os chamados tericos da modernizao, para quem esta se apresenta como uma verdadeira panacia para

    as naes retardatrias. Como tambm veremos, mesmo algumas correntes marxistas, adeptas de concepes

    dualistas e etapistas do desenvolvimento histrico, partilharam dessa viso neutra e apologtica da

    modernizao capitalista.

  • 6

    Parte I) A teoria do bonapartismo

    Essa primeira parte, como seu prprio nome j antecipa, dedicada apresentao do

    que decidimos chamar de uma teoria do bonapartismo. Realizamos nessa parte, portanto,

    uma detalhada exposio crtica daquilo que pensamos ser as principais contribuies para o

    surgimento e desenvolvimento de um corpus terico-analtico acerca do objeto

    bonapartismo. Dispostas cronologicamente, as anlises produzidas por destacados

    intelectuais marxistas do movimento operrio referentes ao fenmeno histrico do

    bonapartismo ocupam as pginas dessa primeira parte.

    Em uma Introduo (esta) primeira parte (Bonapartismo e marxismo), aps

    alguns importantes comentrios inaugurais, propusemos uma sntese do conceito de

    bonapartismo a partir da bibliografia trabalhada nos dois captulos subseqentes. O carter

    antecipatrio dessa sntese se justifica, sobretudo, pela significativa escassez de discusses

    acerca do prprio conceito, o que nos impede, pensamos, de prescindir de esclarecimentos

    prvios sobre ele em um trabalho desta natureza. Resultado de uma pesquisa acerca das

    principais apreenses j feitas sobre o fenmeno bonapartista, essa sntese , tambm, uma

    proposta nossa de interpretao do fenmeno bonapartista. Em seguida, de modo breve e

    ainda guisa de esclarecimento, discutimos a relao do bonapartismo com os distintos nveis

    das estruturas polticas (Estado, regime e governo), como tambm as conexes entre sua

    emergncia e a situao histrico-social conhecida como crise de hegemonia. Por fim,

    fizemos um breve debate em torno das elaboraes sobre o bonapartismo produzidas por dois

    marxistas acadmicos contemporneos: Nicos Poulantzas e Domenico Losurdo. Apontando os

    importantes subsdios oferecidos por estes autores discusso do fenmeno, mostramos,

    entretanto, como suas concepes mais gerais sobre ele se distanciam daquelas formuladas

    por aqueles que aqui nomeamos de tericos do bonapartismo (e as quais corroboramos).

    Captulo I)

    O primeiro captulo propriamente dito, intitulado As origens do conceito: Marx e

    Engels, aborda, primeiramente, as pioneiras elaboraes de Marx sobre o fenmeno da

    autonomizao relativa do Estado em face das classes sociais. Contidas, principalmente, nos

    ricos textos do autor sobre o processo poltico francs de 1848-1871, essas elaboraes foram

    trabalhadas de um modo que as vinculasse ao momento histrico de seu surgimento, o que

    nos levou a reconstituir resumidamente a dinmica daquele prprio processo poltico.

    Entretanto, mostramos como Marx, ao se debruar sobre uma situao poltica concreta na

    qual a burguesia abdicava de seu poder poltico para preservar seu poder social , acabou por

  • 7

    lanar as bases de uma teoria do bonapartismo, de alcance temporal mais geral. Na

    seqncia, nos detivemos sobre os tambm pioneiros escritos de Friedrich Engels sobre o

    bonapartismo, destacando, especialmente, o que se constituiu, a nosso ver, na sua maior

    contribuio para o estudo do fenmeno: as sugestivas interpretaes sobre o regime poltico

    institudo por Otto Von Bismarck na Alemanha em unificao, concebido por Engels como

    uma variante, dotada de especificidades, do bonapartismo francs de Lus Bonaparte.

    Captulo II)

    Neste segundo captulo, denominado As perspectivas de dois revolucionrios do

    sculo XX: Trotsky e Gramsci, procuramos apresentar o desenvolvimento da teoria do

    bonapartismo a partir das valiosas contribuies a ela feitas por esses dois sofisticados

    tericos e militantes de filiao bolchevique. Iniciando o captulo com a contribuio de

    Trotsky, trabalhamos com alguns dos muitos momentos da obra do revolucionrio russo nos

    quais a questo do bonapartismo foi tratada de um modo mais destacado. Nessa empresa,

    observamos suas anlises sobre o que teriam sido distintas formas de regime bonapartista

    presentes ao longo da primeira metade do sculo XX, como, por exemplo, o bonapartismo

    alemo pr-hitlerista (1930-1933), o bonapartismo semiparlamentar francs (1934-1940) e

    o bonapartismo estalinista da Unio Sovitica ps-revolucionria. Com especial ateno, nos

    detivemos tambm sobre as caracterizaes de Trotsky acerca dos bonapartismo sui generis

    da Amrica Latina nos anos 30 do sculo XX, as quais, como acreditamos, possuem muitos

    aspectos em comum com a chamada teoria do populismo latino-americano (e brasileiro em

    particular). Nossa discusso acerca desses contraditrios bonapartismos perifricos est

    precedida de uma sistematizada apresentao da lei do desenvolvimento desigual e combinado

    formulada por Trotsky, instrumental terico que embasou suas anlises sobre as estruturas

    polticas dos pases atrasados. Findado nosso trabalho com a produo de Trotsky,

    procedemos a uma exposio analtica das elaboraes de Antonio Gramsci acerca do

    bonapartismo, fenmeno que o marxista sardo optou (na maioria das vezes) por chamar de

    cesarismo. Observamos, assim, as diferenas existentes entre o que Gramsci caracterizou

    como sendo cesarismos progressivos e regressivos, ambos oriundos, segundo o autor, de

    situaes de crise de hegemonia e crise orgnica. Em seguida, discutimos tambm as

    conexes existentes entre os regimes polticos cesaristas e os processos histricos

    denominados por Gramsci como revolues passivas.

    Parte II) Bonapartismo e populismo no Brasil

  • 8

    De natureza fundamentalmente historiogrfica, esta segunda parte tem por objetivo

    primordial demonstrar a forte presena (explcita ou implcita) da teoria do bonapartismo

    em muitas das clssicas interpretaes acadmicas sobre o processo histrico-poltico

    brasileiro situado entre a Revoluo de 1930 e o Golpe de 1964. Fazendo um uso farto de

    fontes bibliogrficas, mostramos, particularmente, como muitos dos aspectos definidores do

    conceito de bonapartismo encontram-se presentes na teoria do populismo. Procuramos

    indicar tambm nessa parte do trabalho os j anunciados vnculos entre as interpretaes

    acadmicas do processo poltico brasileiro do 1930-1964 e aquelas realizadas por

    organizaes polticas de matriz trotskista (ou prxima ao trotskismo). Em um segundo

    momento dessa segunda parte, esboamos, a partir da teoria do bonapartismo (j ento

    discutida), uma proposta interpretativa sobre determinados momentos do processo poltico

    brasileiro compreendido entre 1930-1964.

    Na Introduo (esta) segunda parte (Trotskismo, Movimento Operrio e

    Universidade), apresentamos um pouco do contexto intelectual brasileiro (dcadas de 1960 e

    1970) no qual se situaram alguns dos intelectuais acadmicos com os quais aqui trabalhamos,

    em especial aqueles mais diretamente ligados teoria do populismo. Assim, aps a

    exposio do que consideramos ter sido uma corrente antidualista e antietapista do

    pensamento social brasileiro, traamos um breve histrico das organizaes polticas

    esquerda do PCB5 (LCI, PSR, POR, POLOP etc.) que, assim como alguns intelectuais

    componentes da referida corrente, propuseram leituras dialticas da complexa realidade

    scio-poltica nacional e chamaram a ateno para a formatao bonapartista assumida pelo

    Estado no ps-1930. Nesse breve histrico das organizaes trotskistas (ou prximas ao

    trotskismo), indicamos tambm os expressivos contatos polticos estabelecidos com estas por

    parte de alguns dos membros daquela corrente antidualista e antietapista do pensamento

    social brasileiro (normalmente em suas militncias de juventude). Por fim, expusemos os

    vnculos (explcitos ou implcitos) das organizaes polticas e intelectuais acadmicos em

    questo com a lei do desenvolvimento desigual e combinado de Trotsky a qual, como

    veremos, encontra-se subjacente teoria do populismo brasileiro, sendo um de seus

    pressupostos tericos constituintes.

    5 O partido comunista aqui fundado em maro de 1922 levou o nome de Partido Comunista do Brasil (PCB),

    seo brasileira da Internacional Comunista (IC). Em 1961, com o intuito de reaver seu registro eleitoral cassado

    pelo TSE em 1947 que, entre outros argumentos, alegou ser o partido uma ramificao de um partido

    internacional com sede em Moscou, o que era () proibido pela legislao eleitoral do pas , o partido alterou,

    em 1961, seu nome para Partido Comunista Brasileiro, preservando a sigla PCB. Em 1962, uma ruptura sada

    alguns anos antes do PCB, adotou a linha chinesa (maosta) e fundou o Partido Comunista do Brasil, tendo por

    sigla PC do B.

  • 9

    Captulo III)

    O terceiro captulo, Bonapartismo e populismo: historiografia, movimento

    operrio e as interpretaes sobre o perodo 1930-1964, iniciado com uma resumida

    apresentao do caminho interpretativo populista do perodo 1930-1964, tal como foi

    proposto pelos cientistas sociais Francisco Weffort e Octavio Ianni, e desenvolvido por

    autores como Dcio Saes, Armando Boito Jr., Rgis de Castro Andrade e Ren Dreifuss. Essa

    apresentao dos principais alicerces da teoria do populismo abre caminho para a

    demonstrao de nossa tese central, isto , a de que muitos desses alicerces so derivados

    justamente da teoria do bonapartismo. Seguindo em nossos objetivos demonstrativos,

    fizemos uma breve exposio de algumas anlises de conjuntura feitas pelas organizaes

    esquerda do PCB no perodo 1930-1964, nas quais a noo de bonapartismo apareceu como

    um elemento central na caracterizao das formas de dominao poltica ento vigentes no

    pas. Na seqncia, adentramos rapidamente o atual debate historiogrfico sobre o populismo,

    tecendo algumas poucas consideraes acerca das recentes propostas de reviso interpretativa

    do perodo histrico 1930-1964 (a chamada reviso do populismo). Prosseguindo na

    demonstrao da relao entre teoria do bonapartismo e a intelectualidade brasileira,

    mostramos como aquela foi utilizada tambm por autores que se debruaram sobre a natureza

    do sistema poltico brasileiro configurado a partir do Golpe de 1964. Em poucas pginas,

    apresentamos as caracterizaes bonapartistas da ditadura militar antipopulista (1964-1985)

    propostas por autores como Carlos Estevam Martins e Mrio Pedrosa, o que indicar ao leitor

    a vasta amplitude da idia de bonapartismo no trato de nossa histria republicana.

    Captulo IV)

    Se ao longo do captulo anterior nos encarregamos de apresentar a marca bonapartista

    em conhecidos trabalhos dedicados ao processo poltico do 1930-1964, neste ltimo captulo,

    intitulado O longo bonapartismo brasileiro: um ensaio de interpretao histrica do

    Brasil Contemporneo (1930-1964), procuramos mostrar como a teoria do bonapartismo

    pode ser, de fato, um profcuo instrumental de anlise para o perodo em questo. Centrando-

    nos no balizamento temporal 1930-1945, mas nos estendendo at a derrubada do populismo

    em 1964, discutimos o que acreditamos ter sido uma via bonapartista da modernizao

    capitalista do Brasil.

    Consideraes finais)

    Em nossa breve concluso (Teoria poltica, historiografia, movimento operrio e

    universidade), procedemos a uma exposio do caminho traado pela pesquisa na busca de

  • 10

    confirmao de nossas hipteses, assim como apontamos aspectos parciais que certamente

    ainda carecem de desenvolvimento. Tentamos, tambm, indicar, de modo um tanto breve,

    alguns dos motivos que podem ajudar a explicar o silncio quase total por parte da

    historiografia quanto ntima relao entre as elaboraes bonapartistas oriundas do

    movimento operrio e aquelas produzidas por uma parcela expressiva da produo acadmica

    brasileira voltada para o perodo 1930-1964.

    Duas breves justificativas

    1) Desde praticamente o seu nascimento, o pensamento social brasileiro produziu

    muitas reflexes marcadas por concepes tericas que tomavam (tomam) Estado e sociedade

    como entidades abstratas e estanques. Em conhecidos e importantes trabalhos informados pela

    perspectiva weberiana, o Estado brasileiro, grosso modo, apresentado como uma gigantesca

    deformidade burocrtica, resultante, segundo alguns autores, do prprio processo de

    colonizao portuguesa, que teria deixado em nossa formao social e, consequentemente, em

    nossas instituies pblicas (quando no nas mentalidades do povo brasileiro), as marcas

    patrimonialistas do alm-mar. Produtor e produto de uma cultura nacional autoritria, o

    Estado brasileiro, ao longo do sculo XX, teria se mantido como uma instituio permeada

    por interesses particulares daqueles indivduos que ocupavam seus postos de comando, o que

    teria tornado a mquina pblica do pas distinta do modelo de um aperfeioado Estado

    moderno, compatvel com uma forma de dominao racional-legal. Nessa linha de

    raciocnio, ao invs de terem servido sociedade, os membros do corpo estatal, desprovidos

    de uma conduta impessoal no trato da coisa pblica, teriam representado e continuariam a

    faz-lo, segundo alguns analistas , somente eles prprios (Estado cartorial) cabe

    assinalar que existe nessa perspectiva uma ntida inspirao da chamada teoria das elites.

    Numa leitura esquerda, tpica do perodo de redemocratizao dos anos 1980, tal tese

    patrimonialista/weberiana foi traduzida como privatizao do Estado, apresentando como

    anomalia o que , de fato, a marca do Estado moderno, sua representao de interesses

    especficos de classes e fraes de classe.

    Agigantado, ultra-burocratizado e guiado por regras prprias, esse tipo de Estado

    estaria contraposto a e, ao mesmo tempo, seria tambm fruto de uma sociedade fraca,

    incapaz de construir formas associativas e representativas verdadeiramente enraizadas no

    tecido social, e que, por isto mesmo, no teria logrado construir uma formatao estatal

    compatvel com uma ordem social competitiva (urbano-industrial capitalista). Com forte

    influncia at os dias de hoje (sobretudo entre os adeptos da escola neoliberal), essa linhagem

    interpretativa da formao social brasileira apresentava (apresenta) um Estado forte em

  • 11

    contraposio a uma sociedade fraca. Tal dicotomia, segundo alguns estudiosos, teria sido

    preservada e at mesmo acentuada sob o processo de modernizao industrial retardatria do

    pas, realizada, em grande parte, sob os anos da chamada Era Vargas. O Estado varguista

    e sua herana burocrtica e paternalista seriam fiis expresses desse carma que atingiria

    secularmente a histria nacional.6

    A nosso ver, esse tipo de perspectiva, sobretudo em funo dos limites impostos por

    suas prprias referncias tericas, no chegou a captar mais do que a superfcie do problema.

    Pode-se dizer, talvez, que captou a aparncia da coisa, mas esteve (est) longe de apreender

    sua essncia. Coube, ento, a outros autores brasileiros, filiados melhor tradio do

    marxismo no-oficial, avanar nas anlises da formao social brasileira e dar passos

    importantes para a descoberta da verdadeira natureza das relaes entre Estado e sociedade no

    pas. So alguns desses autores que perfilam nas pginas deste trabalho.

    Tomando o aparelho estatal como a representao poltica dos interesses de algumas

    pequenas partes da sociedade contra os interesses de outra(s) parte(s) dessa mesma sociedade

    (Estado de classe), esses autores marxistas7 perceberam que, em funo da prpria dinmica

    do desenvolvimento capitalista brasileiro, o Estado desempenhava funes e assumia aqui

    formas polticas distintas daquelas presentes no mundo ocidental democrtico-burgus.

    Devido correlao de foras entre as classes sociais em luta, responsvel, desde fins da

    dcada de 1920, por uma duradoura crise de hegemonia, o aparelho estatal brasileiro, ainda

    que representante dos interesses do conjunto da classe dominante (e, portanto, voltado

    politicamente contra as classes dominadas), teria adquirido em face daquela uma significativa

    autonomia relativa, produzindo, assim, uma (falsa) idia de si prprio como um corpo

    burocrtico absolutamente (e no relativamente) autnomo em relao s classes sociais. Tal

    caminho interpretativo, como j anunciamos, encontra-se baseado no que chamamos de uma

    teoria do bonapartismo.

    Em nosso entendimento, resgatar esse caminho e seus principais construtores

    intelectuais pode vir a ser de grande valia em um momento no qual o pensamento social

    brasileiro (hegemonicamente conservador) atravessa uma de suas fases mais decadentes,

    sobretudo no que diz respeito anlise das relaes entre Estado e sociedade: no s ambos

    continuam a ser concebidos como entidades abstratas estanques, como agora so

    reconciliados pela mais nova vertente da historiografia revisionista, a qual, sob a alegao

    de que a sociedade (tomada em bloco) sempre compactua de alguma forma com o Estado

    6 Um balano crtico dessa perspectiva weberiana de interpretao do Estado brasileiro pode ser encontrado em:

    SAES, Dcio. A evoluo do Estado no Brasil (uma interpretao marxista) in ____. Repblica do Capital.

    Capitalismo e processo poltico no Brasil. So Paulo: Boitempo, 2001, p. 93-105. 7 Alguns deles se utilizando, vale ressaltar, tambm de aportes tericos weberianos.

  • 12

    (liberalmente visto como o representante geral da nao), vem impudentemente reabilitando

    fenmenos como o populismo e mesmo at a ditadura militar.

    2) Assumidamente dmod, este um trabalho sobre regimes polticos em perspectiva

    marxista. Mais especificamente, trata-se de um estudo sobre o chamamos de o longo

    bonapartismo brasileiro. Esperamos, assim, dar alguns passos para que a lacuna temtica

    deixada pelo desparecimento da j mencionada tese de doutorado de Ruy Mauro Marini

    (dedicada especificamente ao bonapartismo no Brasil) possa comear a ser suprida. Nesse

    sentido, estas pginas so, de certa forma, tambm uma homenagem a Marini, intelectual cuja

    trajetria a prova cabal de que o pensamento crtico, mesmo quando produzido nos espaos

    acadmicos, no pode ser feito apartadamente das lutas sociais levadas a cabo pelos

    trabalhadores. Certamente, a homenagem que o presente estudo sobre o bonapartismo

    brasileiro pretende prestar a Marini est muito aqum da que um intelectual e militante do seu

    porte mereceria. Mas uma homenagem. Do sumio da tese de Marini, em 1964, at os dias

    de hoje, muitos outros estudiosos estiveram mais habilitados do que ns para realizar uma

    pesquisa sobre a temtica em questo. Atualmente, muitos outros tambm o esto. Contudo,

    j disse certa vez o historiador polons Isaac Deutscher que a histria opera atravs do

    material humano que [se] encontra disponvel,8 ainda que este material no seja o mais

    apropriado pra a realizao das tarefas que a histria exige.

    8 DEUTSCHER, Isaac. Ironias da histria. Ensaios sobre o comunismo contemporneo. Rio de Janeiro:

    Civilizao brasileira, 1968, p. 53. Aproveitamos a insero deste colchete para comunicar ao leitor que, ao

    longo deste trabalho, todos os colchetes (e seus respectivos contedos, inclusive as reticncias que indicam pulo

    no texto) presentes em meio a citaes de outros autores so de nossa autoria. J o que estiver entre parnteses

    (inclusive as reticncias) foi inserido pelos prprios autores das citaes.

  • 13

    Parte I

    A Teoria do Bonapartismo

  • 14

    Introduo primeira parte:

    Bonapartismo e Marxismo

  • 15

    Bonapartismo: o fenmeno e o conceito

    O concreto concreto porque a sntese de muitas determinaes, isto , unidade do diverso.

    Por isso o concreto aparece no pensamento como o processo da sntese, como resultado, no como

    ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida tambm da

    intuio e da representao.9

    Naturalmente que os doutrinrios no se satisfaro com uma definio to vaga; desejariam

    frmulas categricas: sim, sim e no, no. As questes de sociologia seriam bem mais simples se os

    fenmenos sociais tivessem sempre um carter acabado. Mas nada mais perigoso do que eliminar, no

    desenvolvimento de uma preciso lgica, os elementos que contrariam os nossos esquemas e que,

    amanh, os podem refutar.10

    De resto, o cesarismo uma frmula polmico-ideolgica e no um cnone de interpretao

    histrica.11

    Na ampla e heterognea literatura marxista de cunho mais propriamente poltico, o

    vocbulo bonapartismo e suas variantes (bonapartista, bonapartistas, semibonapartismo,

    filobonapartismo etc.) apresentam uma frequncia perceptvel, ainda que, diferentemente de

    outros tantos mencionados porfia e indiscriminadamente, no possam ser tomados

    propriamente como termos batidos. Suas no to correntes aparies nos permitem, entretanto,

    perceber que distintos tratos, alguns cuidadosos e sofisticados, outros nitidamente

    reducionistas e imprecisos, j foram (so) dispensados a este conjunto terminolgico.

    Um tpico uso que se encaixa no segundo caso aquele no qual a adjetivao

    bonapartista imputada a qualquer governo ou regime mais ou menos ditatorial, cujo teor

    repressivo, ainda que elevado, no chega a justificar, segundo a lgica do autor, a sua

    caracterizao como fascista. Nesse raciocnio, muitas vezes sub-reptcio, o que define o

    regime ou governo bonapartista nica e simplesmente o seu grau coercitivo, o nvel de

    violncia do qual lana mo o aparelho de Estado contra seus adversrios polticos; tal

    raciocnio, muito comum em apressados documentos polticos de organizaes de esquerda,

    parece ser embasado pela seguinte frmula algbrica: pouca violncia = democracia burguesa;

    muita violncia = fascismo; mdia violncia = bonapartismo. Em ltima anlise, essa forma

    de proceder no expe seno uma verso um pouco mais detalhada da tipologia utilizada

    pelos Partidos Comunistas estalinizados, os quais, desde o fim dos anos 20 do sculo XX,

    9 MARX, K. Introduo crtica da economia poltica in ____. Os pensadores (Marx). So Paulo: Nova

    cultural, 1999, p. 39-40. 10

    TROTSKY, L. A revoluo trada. O que e para onde vai a URSS. 2 edio. So Paulo: Jos Lus e Rosa

    Sundermann, 2005, p. 228. 11

    GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. (Caderno 13). 3 edio. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,

    2007,volume III, p. 77.

  • 16

    passaram a definir qualquer regime poltico capitalista que se distanciasse em especial, pelo

    uso abusivo da violncia da forma democrtico-burguesa como fascista.12

    Lembremos aqui tambm da costumeira idia, presente em certos ramos eclticos da

    cincia e histria polticas, a qual associa o bonapartismo presena de um governante (lder)

    nacional que, dotado de fortes traos carismticos, postar-se-ia como um rbitro neutro face

    s pugnas sociais e polticas internas sociedade, buscando garantir a harmonia da nao.

    Nessa perspectiva, o contedo de classe (burgus) da dominao poltica bonapartista, o qual

    se encontra, na realidade, mediado e embuado pela autonomia relativa do aparelho estatal,

    fica encoberto tambm pelas linhas desses analistas polticos, os quais confundem a aparncia

    do fenmeno (Estado neutro) com sua verdadeira essncia (Estado burgus). Vale mencionar

    ainda a qualificao de bonapartista aplicada a certos governos e regimes pelo simples fato de

    possurem um Poder Executivo hipertrofiado, ou mesmo graas ao poderoso peso exercido

    pela burocracia e/ou as Foras Armadas (FFAA) na conduo da vida poltica nacional.

    Findando nossa exemplificao dessas utilizaes pouco apuradas do corpo conceitual em

    questo, assinalamos que, alm de ser empregado para designar regimes e governos, o

    adjetivo bonapartista tambm alocado ao lado do substantivo Estado, o que deixa entender

    que bonapartista podem ser no s o regime e o governo, mas igualmente o Estado

    capitalista em si.

    Os exemplos acima so pertencentes a uma espcie de senso comum do

    bonapartismo se que se pode assim dizer e, como tais, no deixam de encerrar aspectos

    verdadeiros quanto ao seu objeto. Todavia, pecando pela superficialidade e, sobretudo, pela

    parcialidade, no chegam a apreender o fenmeno bonapartista em sua totalidade, ou pelo

    menos naquilo que lhe essencial. Decerto, os regimes bonapartistas so marcantes pelo seu

    aspecto violento e, de fato, seus teores coativos so usualmente maiores que os registrados

    sob as democracias burguesas e menores que os atingidos sob os fascismos. Entretanto, no

    fazendo uso de um medidor de violncia que se deve buscar apreender a verdadeira natureza

    repressiva dos regimes polticos, e sim atentando para a qualidade e seletividade da prpria

    atividade repressiva; mais precisamente, de que modo e a que classes, fraes de classe e

    grupos polticos a mquina policial-militar e seus eventuais colaboradores para-estatais

    endeream suas armas. Correto tambm dizer que o Estado no regime bonapartista,

    perseguindo a integridade nacional, tende a desempenhar, por intermdio de um lder quase

    12

    Sob o risco de nos desviarmos de nosso curso, no poderemos adentrar o debate travado no seio da

    Internacional Comunista (IC) em fins da dcada de 1920 e ao longo da de 1930 acerca da caracterizao do

    fenmeno fascista. Contudo, alguns aspectos relacionados a tal debate sero brevemente abordados por ns mais

    frente na parte destinada s elaboraes de Len Trotsky sobre o bonapartismo. Quanto s polmicas no

    interior da IC acerca da natureza poltica do fascismo, ver POULANTZAS, Nicos. Fascismo e Ditadura. A III

    Internacional face ao fascismo. Porto: Portucalense, 1972, 2v.

  • 17

    sempre carismtico e solerte, um papel arbitral; contudo, pode-se dizer que profundamente

    equivocado tomar como politicamente neutro tal juiz. Do mesmo modo, verdade que sob

    os regimes bonapartistas tanto o Poder Executivo apresenta-se hipertrofiado, quanto a

    burocracia e as Foras Armadas tm seu papel poltico-institucional realado, embora a

    existncia de FFAA e burocracia atuantes, assim como de um Executivo forte, no confira

    automaticamente ao regime um carter bonapartista. Por fim, observamos que se a adjetivao

    bonapartista pode ser bem empregada para qualificar regimes (principalmente) e governos

    (no caso daqueles que funcionam dentro, e sejam adeptos, das estruturas do regime

    bonapartista), seu uso para a caracterizao de Estados , no mnimo, inapropriado.

    Uma proposta de sntese conceitual

    Procurando ir alm desse senso comum sobre o fenmeno bonapartista, um bom

    caminho investigativo adentrar na sofisticada produo terica a ele dedicada, a qual

    designamos, sem muito rigor epistemolgico, de uma teoria do bonapartismo. Trabalhando,

    assim, com as anlises de autores como Marx, Engels, Trotsky e Gramsci, e absorvendo delas

    o que h de comum e mais genrico no que concerne aos aspectos definidores do

    bonapartismo, possvel propormos uma sntese que tenha por finalidade expor sucintamente

    aos leitores como a melhor tradio marxista o concebeu.13

    Embora no possa tocar nas

    particularidades de cada autor no que tange caracterizao terica do fenmeno, tal como

    nas concretas especificidades apresentadas por cada uma de suas distintas manifestaes

    histricas, uma sntese dessa natureza, acreditamos, pode fazer as vezes de prembulo s

    anlises dos autores mencionados, as quais o leitor encontrar logo em breve.

    Iniciando, ento, nossa empreitada sinttica do conceito (que no deixa de ser uma

    interpretao nossa do prprio conceito), assinalamos que o bonapartismo se exprime,

    fundamentalmente, pelo fenmeno da chamada autonomizao relativa do Estado diante das

    classes e demais segmentos sociais em presena. Em determinadas conjunturas de

    exacerbao da luta de classes, nas quais o proletariado se apresenta como uma ameaa (real

    ou potencial) ao domnio do capital, e nenhuma das fraes da classe dominante possui as

    condies de impor um projeto poltico sociedade, de dirigi-la segundo seus interesses e

    preceitos particulares, instaura-se aquilo que se convencionou chamar de crise de

    13

    Esclarecemos, assim, que entendemos por teoria do bonapartismo o conjunto das elaboraes sobre o

    fenmeno bonapartista realizadas por tericos como Marx, Engels, Trotsky e Gramsci. A partir de agora,

    dispensaremos as aspas para se referir a essa teoria, assim como aos seus formuladores (os tericos do

    bonapartismo). Desse modo, alertamos que ao falar de uma teoria do bonapartismo e de seus autores (tericos

    do bonapartismo) no nos referimos a uma teoria produzida pelos regimes bonapartistas e aos seus criadores,

    preferindo usar, nestes casos, respectivamente, as denominaes de ideologia do bonapartismo (ou ideologia

    bonapartista) e idelogos do bonapartismo (ou idelogos bonapartistas).

  • 18

    hegemonia. Nessa situao de aguda diviso social, de impasse poltico, enfim, de equilbrio

    de foras e incapacidade hegemnica, o aparelho de Estado se ingurgita, eleva-se por sobre

    os grupos conflitantes e, apregoando a unidade nacional a qual ele prprio afirma encarnar,

    impe pela fora a paz social e salvaguarda a ordem capitalista em xeque.

    Essa elevao do aparelho estatal acima das partes contenciosas expressa justamente a

    autonomia relativa adquirida pelo Estado, ou, mais precisamente, pelo seu ncleo

    fundamental (em especial, Poder Executivo, aparato repressivo e burocracia), face s distintas

    fraes do capital e suas representaes polticas. Adquirindo uma ingente fora poltica

    prpria, o aparelho estatal j no a expresso, o instrumento, de nenhuma dessas fraes em

    particular; precisamente para desempenhar o papel de mantenedor do que h de comum a

    todas elas, a saber, a propriedade capitalista, o Estado, enquanto novo ordenador da vida

    social, necessita submet-las sua direo e ditames polticos de jaez essencialmente

    burocrtico. Assim, sob o bonapartismo, o Estado, relativamente autnomo frente s fraes

    burguesas, coloca-se como representante dos interesses de conjunto da burguesia, e o faz

    mesmo a despeito desta ltima. Tal fato no significa, entretanto, que no haja sempre uma ou

    mais fraes do capital privilegiadas pelas polticas estatais sob o bonapartismo. Configura-se,

    ento, uma formatao particular assumida pelo Estado capitalista em momentos de crise,

    um tipo de regime poltico caracterizado por uma dominao poltica indireta da burguesia

    sobre as demais classes sociais. O aparelho estatal, funcionando como uma espcie de rbitro

    do jogo poltico e pacificando o cenrio social litigioso, ganha a aparncia de uma fora

    descolada, acima e independente da sociedade. Ao longo do bonapartismo, os governos

    vigentes, em especial os que so afinados com a arquitetura institucional do regime, tendem,

    eles tambm, a encerrar um carter mais ou menos autnomo em relao aos partidos e

    demais ajuntamentos polticos contudo, em alguns casos (no raros), todas as formas de

    organizao poltica provenientes da sociedade civil so sumariamente extintas pelo regime.

    O bonapartismo mostra-se, ento, no s como um regime poltico, mas ainda como uma

    modalidade de governo, na qual a classe dominante no tem acesso direto s rdeas do

    Estado. nesse sentido que o fenmeno bonapartista se refere a um dialtico processo pelo

    qual a burguesia abdica das funes de domnio poltico da nao para ver mantida sua

    dominao econmica no interior da mesma.

    Originado de uma situao politicamente instvel gerada pela exasperao do

    confronto social, o regime bonapartista, colimando preservar as bases da dominao de classe

    burguesa, lana-se em uma luta fsica e ideolgica pela reintegrao e harmonizao da

    sociedade burguesa ento dilacerada. Destarte, direciona suas foras repressivas contra os

    perturbadores da ordem.

  • 19

    Prioritariamente, ataca violentamente aquele que o fundamento primeiro do temor

    burgus: o movimento operrio organizado. Proibindo, fechando ou mesmo destruindo as

    organizaes sindicais, polticas e culturais dos trabalhadores, o regime bonapartista intenta

    desmontar a vanguarda da classe que, pela sua prpria existncia, coloca em risco a

    manuteno da explorao social. Assim, na qualidade de indivduos atomizados e

    desprovidos de uma conscincia emancipatria, os trabalhadores podem passar a funcionar

    como base e sustentculo de massas da nova ordem poltica capitaneada pelo prprio

    Estado; so justamente essas massas populares, um novo sujeito social e poltico nascido

    dos processos de urbanizao e industrializao, as quais o bonapartismo v-se impingido e

    nisso reside grande parte de sua prpria razo de ser a incorporar, controlada e

    subalternamente, esfera poltica. Nessa engenhosa empresa, a direo bonapartista pode vir

    a colocar em movimento certas camadas marginalizadas da sociedade, o chamado lumpem-

    proletariado, direcionando-as tanto para o apoio efusivo ao regime, quanto para o

    esmagamento da resistncia operria. Em certas ocasies, elementos agrrios pequeno-

    burgueses (campesinato), temerosos do avano poltico do proletariado, fornecem uma

    legitimidade socialmente reacionria ao poder bonapartista.

    Entretanto, secundariamente, o regime bonapartista volta suas baterias tambm

    contra os elementos revis da classe dominante, adestrando ou mesmo suprimindo suas

    recalcitrantes representaes polticas, sejam elas partidos, lideranas classistas, crculos

    ideolgicos ou jornais panfletrios. Assim, o Estado burgus, sob a forma bonapartista, priva

    a prpria burguesia de sua ampla liberdade poltica, embora o nvel de tal privao seja

    infinitamente inferior ao que imposto classe trabalhadora.

    Essa nova, complexa e contraditria relao estabelecida entre o aparelho de Estado e

    ambas as classes sociais fundamentais determinante na montagem institucional que vertebra

    o regime bonapartista. Almejando eliminar o clima politicamente radicalizado e tenso que o

    produziu, o novo regime se edifica promovendo a extino das instncias e elementos

    jurdico-politicos do regime anterior, os quais, segundo os construtores bonapartistas, teriam

    permitido a instalao do embate poltico em propores socialmente insuportveis. Desse

    modo, muitas das chamadas liberdades democrticas, algumas delas defendidas pela

    prpria burguesia em seu alvorecer revolucionrio, so, em um quadro de contra-revoluo

    poltica, suspensas sob a alegao de serem perigosas e socialistas. Liberdades de

    expresso, reunio e organizao, entre outros princpios democrtico-burgueses, do lugar,

    no bonapartismo, vigncia quase constante e ordinria de expedientes os quais, no regime

    democrtico, existem apenas na qualidade de mecanismos excepcionais e temporrios

    (permisso para priso sem mandato judicial, suspenso do direito ao habeas corpus,

  • 20

    suspenso do direito inviolabilidade do lar e de correspondncia etc.). O sufrgio universal,

    baluarte-mor da democracia burguesa, tende a assumir, nas vezes em que preservado (ou

    institudo), uma conotao plebiscitria. Outros direitos constitucionais mais propriamente

    democrticos, como o de greve, impostos burguesia pelas lutas operrias dos sculos XIX e

    XX, podem ser tratados de vrios modos (porm essencialmente iguais) pelo poder

    bonapartista: em circunstncias relativamente amainadas do confronto social, sua manuteno

    se vincula ao enxerto de ardilosos aditamentos jurdicos os quais, na prtica, dificultam ou

    inviabilizam seu exerccio prtico; j em momentos de maior radicalizao poltica, tais

    direitos democrticos costumam ser simplesmente suspensos ou despudoradamente banidos.

    Opera-se, portanto, uma clara mudana de regime no Estado burgus, limitando

    demasiadamente a mobilidade das foras sociais na cena poltica. Passa a vigorar uma

    espcie de estado de stio permanente.14

    A especfica desproporo de foras entre os poderes estatais no regime

    bonapartista , tambm, um de seus precpuos aspectos definidores. Encarregado de salvar a

    nao ameaada por suas fissuras e lutas intestinas, o Executivo torna-se praticamente

    onipotente, concentrando em suas estruturas constitutivas, sobretudo na figura do chefe de

    Estado, um quantum de poder exorbitantemente desproporcional em relao aos demais

    poderes de Estado. Nesse movimento, verifica-se tambm uma fortssima centralizao

    poltica do pas, por meio da qual a instncia central desse fortalecido Poder Executivo (Unio,

    Imprio etc.) impe-se quase que integralmente tambm sobre todos os poderes de natureza

    regional e local (governos estaduais, prefeituras municipais, chefes polticos distritais,

    assemblias estaduais, cmaras municipais, tribunais e fruns locais etc.). Essa fora do

    Executivo diretamente proporcional fraqueza do Legislativo e do Judicirio. Vistas como

    as arenas, por excelncia, do exacerbado e aziago embate travado entre as representaes

    polticas no regime anterior, as instncias parlamentares so tratadas como uma das principais

    fontes da discrdia que fraturou o pas. Com a finalidade de manter a ordem e a paz, o

    regime bonapartista procura desfazer as conexes entre as vrias fraes e segmentos sociais

    beligerantes e a esfera poltica institucional-representativa. Ao Parlamento, consequentemente,

    reservado um papel absolutamente secundrio ou inexistente: por vezes colocado sob

    ntido controle do Executivo, em outras simplesmente fechado. Quanto ao Judicirio, resta-

    lhe capitular abertamente ao Executivo ou ser modificado por este em sua estrutura,

    funcionamento e pessoal. Com suas dimenses dilatadas e gozando de poderes discricionrios,

    14

    Uma discusso sobre as relaes entre a norma e a exceo no ordenamento jurdico dos Estados

    capitalistas, e mais particularmente, sobre a utilizao permanente de expedientes excepcionais pelos regimes

    constitucionais pode ser encontrada, entre outros trabalhos, em AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceo. So

    Paulo: Boitempo, 2003 e BERCOVICI, Gilberto. Constituio e estado de exceo permanente. A atualidade de

    Weimar. Rio de Janeiro: Azougue editorial, 2004.

  • 21

    a cpula dirigente do Executivo equilibra-se sobre os campos em luta e, subalternizando ou

    dispensando o Parlamento e seus partidos polticos, encontra seu apoio naquilo que , na

    verdade, o ncleo fundamental do aparelho de Estado: a burocracia e as Foras Armadas.

    Estas duas instituies extrapolam suas habituais funes exercidas sob o regime

    constitucional anterior e ampliam visivelmente seus domnios sobre o tecido social; no

    obstante se apresentarem sob um vu de neutralidade e apoliticismo, passam a desempenhar

    um papel protagonista na conduo da vida poltica, econmica e cultural do pas.

    Desmontando os tradicionais mecanismos de representao poltica da democracia

    burguesa, o todo-poderoso aparelho estatal trabalha na construo de uma outra forma de

    conexo entre o poder pblico e o corpo cvico, visando tornar este ltimo imune s

    exacerbadas contendas polticas verificadas no regime anterior. A relao entre governantes e

    governados sob o bonapartismo assume a forma de uma relao direta entre o chefe de

    Estado e os cidados nacionais, na qual tem lugar um imprescindvel ingrediente ideolgico

    de cunho pequeno-burgus. Seja ele um presidente civil, militar ou um nostlgico Imperador,

    o lder mximo do pas, na maioria das vezes carismtico e demaggico, se proclama o

    harmonizador da nao, dizendo arbitrar os interesses conflitantes provenientes de todas as

    partes que a constituem. A personalizao da poltica , portanto, quase sempre um

    ingrediente importante na receita bonapartista.

    Objetivando bloquear o desenvolvimento dos elementos classistas na subjetividade

    dos trabalhadores, o regime bonapartista trata-os, jurdica e discursivamente, como um

    volumoso conglomerado populacional que no seno resultado da adio de indivduos

    proletrios isolados. Amalgamado com estratos sociais de diferentes matizes, o proletariado

    se dilui pela retrica bonapartista nas manobrveis massas populares e no policlassista

    povo em muitos casos, isso no incompatvel com a permanncia da classe

    trabalhadora no lxico do regime, que pode at conceb-la como uma parcela especfica da

    sociedade (e que deve colaborar com as demais), mas nunca enquanto um sujeito social

    estruturalmente antagnico ao capital (o que colocaria em risco a integridade nacional que se

    persegue). com esse povo disforme e alienado que o lder Bonaparte, dispensando

    qualquer tipo de plataforma poltico-programtica bem definida, estabelece uma relao

    extremamente fetichista, dirigindo-se e sendo reconhecido por ele como seu nico e ldimo

    intrprete, como aquele que, investido de sabedoria e capacidade decisria, pode proteg-

    lo das injustias sociais e das elites gananciosas. maneira tipicamente pequeno-burguesa,

    o Estado tomado pelos seus cidados como um ente politicamente neutro que, pairando

    acima das classes sociais, mostra-se ao seu povo como uma entidade protetora,

    benfeitora e benevolente. Nessa astuta engrenagem ideolgica do regime, uma sofisticada

  • 22

    mquina de propaganda, declaradamente ufanista e apologeta da ordem, costuma

    desempenhar um destacado papel apelando para emocionalidade de amplos contingentes

    populacionais trazidos para a cena poltica. Por meio dessa poltica de massas, que combina

    ideologia, coero e, tambm, o atendimento de certas demandas populares, procura-se

    neutralizar ou eliminar tendncia polticas radicais (classistas) brotadas entre os setores

    subalternos no regime anterior. O bonapartismo , portanto, um fenmeno cuja manifestao

    prpria a sociedades complexas, nas quais a existncia das incontveis massas

    populares torna ineficazes antigas e altamente exclusivistas formas de dominao poltica

    burguesa (regimes aristocrticos, oligrquicos, governo dos notveis, voto censitrio etc.).

    Compreendido, ento, como uma modalidade particular e contempornea dessa

    dominao poltica burguesa, o bonapartismo , ao menos nas naes centrais do capitalismo,

    uma forma de regime e de governo excepcional e transitria, no obstante apresente vrias

    ocorrncias e, por vezes, uma significativa durao temporal. Engendrado por uma crise de

    hegemonia, o bonapartismo solapado ou quando esta se encerra isto , quando uma ou

    mais fraes da classe dominante se apresentam, finalmente, capazes de dirigir politicamente

    a nao , ou quando massivas mobilizaes polticas anti-regime lhe retiram sua sustentao

    social.

    Bonapartismo e capitalismo

    Nesta introduo temtica bonapartista, consideramos pertinente chamar a ateno,

    ainda que de modo ligeiro, para duas importantes questes que permeiam o denso debate

    cientfico acerca da chamada autonomizao relativa do Estado.

    A primeira dessas questes trata dos distintos nveis de abstrao do mbito poltico da

    sociedade capitalista que o analista do fenmeno bonapartista deve necessariamente levar em

    considerao em sua empresa investigativa. Fazemos meno, mais propriamente, s

    diferentes ordens de grandeza imprescindveis de se observar quando das anlises sobre as

    estruturas polticas de determinada formao social burguesa, isto , s diferenas existentes

    entre Estado, regime e governo. Naturalmente, nossa abordagem dessa espinhosa

    problemtica se limitar apenas a pequenas consideraes as quais, esperamos, faro melhor

    fluir aqui a discusso da temtica bonapartista.15

    A outra questo diz respeito s dialticas

    conexes verificadas entre o problema da hegemonia e os variados modos de dominao

    poltica que o Estado capitalista pode assumir. Mais particularmente, iniciaremos nossa

    15

    Para alm das variadas crticas polticas e epistemolgicas que lhe foram endereadas ao longo do tempo, a

    maior referncia para o vital e fatigante debate acerca da natureza e tipos do Estado capitalista, assim como das

    distintas formas de regime e modalidades de governo que nele podem ter lugar, continua a ser a obra

    POULANTZAS, Nicos. Poder poltico e classes sociais. Porto: Portucalense editora, 1971, 2 v.

  • 23

    discusso a qual daremos prosseguimento em outros momentos do presente trabalho com

    a associao que parece existir entre a j mencionada crise de hegemonia e a emergncia

    dos regimes bonapartistas.

    Passemos ento a essas questes.

    Estado, regime e governo

    Nas pginas precedentes, mencionamos o uso indevido, porm corrente, do termo

    bonapartista para designar a natureza (contedo) dos Estados modernos Estado

    bonapartista. Alinhavando uma crtica a esse uso abusivo, indicamos em nossa sntese

    conceitual do bonapartismo que tal fenmeno deve ser apreendido fundamentalmente como

    um regime poltico que o Estado burgus pode vir a adotar em determinadas conjunturas da

    luta de classes. Nessa perspectiva, o bonapartismo exprimiria no a natureza (contedo) desse

    Estado, a qual, no interior de uma formao social capitalista, seria sempre burguesa, mas sim

    uma forma que, em certas vezes histrica e politicamente determinadas , assumida pelo

    prprio aparelho estatal. A nosso ver, portanto, o bonapartismo seria uma espcie especfica

    de arranjo poltico-institucional, uma formatao particular das engrenagens do Estado

    burgus surgida quando os meios de dominao poltica de tipo oligrquico ou democrtico-

    burgus mostram-se insuficientes e perigosos para a manuteno da ordem capitalista. Na

    mesma sntese conceitual, pde ser ainda observado que a qualificao de bonapartista

    adequada tambm a certos tipos de governo, isto , queles que surgem sob o regime

    bonapartista e portam-se como seus defensores.

    Ocorre, contudo, que nenhum dos tericos do bonapartismo por ns arrolados se

    dedicou a uma caracterizao sistemtica e detalhada do fenmeno bonapartista em si, isto ,

    nenhum deles chegou a produzir um complexo terico-conceitual sobre o tema, uma teoria

    propriamente dita da chamada autonomizao relativa do Estado.16

    Na maioria das vezes, os

    subsdios e aportes tericos oferecidos por Marx, Engels, Trotsky e Gramsci para a sua

    compreenso derivam de anlises sobre processos polticos concretos, os quais, estes sim, se

    constituem em objetos centrais dos textos. Talvez o melhor exemplo do que acabamos de

    dizer seja a clssica obra marxiana O 18 brumrio de Lus Bonaparte.17

    Conquanto

    reconhecida, corretamente, como a me da teoria bonapartista, trata-se fundamentalmente

    de um arguto ensaio sobre a trama poltica francesa entre 1848-1851 (que teve por desfecho o

    golpe de Estado de Lus Bonaparte), estando longe de se apresentar como um compndio

    terico sobre a estrutura, organicidade e o funcionamento do tipo bonapartista de regime

    16

    E por isso que, at as ressalvas que fizemos h pouco (ver nota 2), vnhamos utilizando entre aspas o termo

    teoria quando fazamos meno teoria do bonapartismo. 17

    MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit.

  • 24

    poltico. Assim, no possvel encontrar na literatura desses autores um debate sobre as

    instncias polticas Estado, regime e governo voltado diretamente para a questo do

    bonapartismo. Em que pese o fato de que Nicos Poulantzas e Domenico Losurdo, autores

    mais recentes e de perfil universitrio, tenham fugido regra e produzido elaboraes mais

    sistemticas sobre o fenmeno,18

    nos parece que a situao apresentada pode ter contribudo,

    de alguma forma, para que nos meios marxistas, sobretudo nos mais militantes, o termo

    bonapartismo e suas variantes sejam muitas vezes empregados com uma preocupante

    frouxido conceitual.

    Desejando, portanto, limpar o terreno para a continuidade da exposio de nosso

    objeto, precisando-o como um tipo de regime e de governo, vale a pena recorrer aos

    esclarecimentos didticos feitos pelo militante argentino Nahuel Moreno,19

    concernentes s

    diferenas e relaes existentes justamente entre Estados, regimes e governos.20

    Para o autor, de linhagem trotskista, se o mtodo adequado para se desvendar a

    natureza de um Estado seria o de procurar pela classe (ou casta) que o governa,21

    o caminho

    para se definir um regime poltico deveria conduzir o investigador para o mbito das

    instituies estatais.22

    Isto seria necessrio, segundo Moreno, porque embora o Estado seja

    um complexo de instituies, a classe no poder no as utiliza sempre da mesma forma para

    governar:23

    O regime poltico a diferente combinao ou articulao das instituies estatais das quais faz

    uso a classe dominante (ou um setor dela) para governar: Qual a instituio fundamental de governo?

    Como se articulam nela as outras instituies estatais? [...]

    O Estado burgus deu origem a muitos regimes polticos: monarquia absoluta, monarquia

    parlamentar, repblicas federativas e unitrias, repblicas com uma s cmara ou com duas (uma de

    deputados e outra muito reacionria de senadores), ditaduras bonapartistas, ditaduras fascistas etc. Em

    alguns casos, so regimes com ampla democracia burguesa, que permitem at que os operrios tenham

    seus partidos legais e com representao parlamentar. Em outros casos, so o oposto; no h nenhum

    tipo de liberdades, nem sequer para os partidos burgueses. No entanto, em todos esses regimes, o Estado

    segue sendo burgus, porque segue no poder a burguesia, que utiliza o Estado para seguir explorando os

    operrios.24

    J no que se diz respeito aos governos, Moreno os entende como homens de carne e

    osso que, em determinado momento, encontram-se cabea do Estado e de um regime

    18

    POULANTZAS, Nicos. Poder poltico e classes sociais. Op. cit. e LOSURDO, Domenico. Democracia ou

    bonapartismo. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/ So Paulo: Ed. UNESP, 2004. Discutiremos rapidamente as vises

    desses autores um pouco mais frente. 19

    Codinome pelo qual atendia o dirigente poltico e terico Hugo Bressano. 20

    MORENO, N. Las revoluciones del siglo XX. Buenos Aires: Antdoto, 1986. 21

    O Estado se define, portanto, pela casta ou classe que o utiliza para explorar e oprimir as demais classes e

    setores. (MORENO, N. Las revoluciones del siglo XX. Op. cit., p. 8. Traduo nossa). 22

    Por intermdio de que instituies governa essa classe em determinado perodo ou etapa? (Idem, p. 9). 23

    Idem. 24

    Idem, p. 9-10.

  • 25

    poltico. Neste caso, a pergunta apropriada ao pesquisador poltico seria: quem governa?.25

    Oferecendo fartos exemplos de diferentes matizes de governo, o terico argentino atenta para

    o que deveria ser uma obviedade (ao menos entre os cientistas polticos, historiadores,

    socilogos e afins), a saber, que governos e regimes so coisas distintas, dado que muitos

    governos podem suceder-se num mesmo regime desde que o modo de articulao das

    instituies estatais no seja alterado.26

    Embasando-nos nas esclarecedoras consideraes de Moreno, frisamos nossa

    concepo do fenmeno bonapartista tanto como um tipo especfico de regime poltico do

    Estado capitalista, quanto como uma modalidade particular de governo (indireto) da burguesia.

    Destarte, entendemos que nos regimes democrtico-burgueses, podem ter lugar, entre tantas

    outras modalidades, governos liberais, conservadores (ambos mais ou menos reacionrios),

    social-democratas e de frente popular27

    (todos mais ou menos reformistas), assim como

    governos de aspiraes aberta ou veladamente bonapartistas (os quais intentam, normalmente

    por intermdio de um golpe de Estado, promover uma mudana de regime). J sob os regimes

    bonapartistas, observam-se governos que, pelas prprias caractersticas da conjuntura poltica

    em que se encontram (crise de hegemonia) e da formatao poltico-institucional na qual se

    inserem (especialmente, a hipertrofia do Poder Executivo, a fraqueza ou inexistncia do

    Legislativo, e o forte peso poltico das FFAA e da burocracia), tendem a segui-lo e a buscar

    refor-lo, sendo, portanto, governos arbitrais, nitidamente bonapartistas. Ocorrem tambm,

    episodicamente, governos no propriamente bonapartistas em meio a regimes

    semibonapartistas, governos at certo ponto desencaixados com o regime, pois so

    funcional e ideologicamente mais afinados com a democracia burguesa tal foi o caso da

    Frente Popular francesa, chefiada por Len Blum, que ascendeu em 1936 ao governo da

    nao quando esta contava com um regime predominantemente bonapartista, no qual

    subsistiam elementos democrticos agonizantes.28

    H registros de governos bonapartistas orientados mais direita, de perfil nitidamente

    reacionrio, ou mais esquerda, de colorao levemente avermelhada; desde as primeiras

    25

    Idem, p. 10. 26

    Idem. 27

    Segundo as elaboraes excessivamente generalizantes de Moreno, baseadas nas anlises concretas de Trotsky

    acerca das experincias das frentes populares defendidas pela Internacional Comunista (IC) na luta contra o

    nazi-fascismo, um governo de tipo frente popular forma-se, usualmente, pela coligao de um ou mais partidos

    operrios reformistas com um ou mais partidos da burguesia democrtica. Constitudo em meio a uma

    ascenso poltica do proletariado, o governo de frente popular tem como misso precpua afastar a classe

    trabalhadora do caminho revolucionrio, o que tenta fazer valendo-se de sua autoridade poltica perante o

    movimento de massas. O governo de frente popular, no sendo enxergado pela burguesia como o seu governo e

    no podendo atender s reais demandas dos trabalhadores, tende a deparar-se como uma profunda crise e tornar-

    se a ante-sala de um regime de tipo bonapartista semifascista ou mesmo fascista. (Ver, especialmente,

    TROTSKY, L. Aonde vai a Frana? So Paulo: Desafio, 1994 e MORENO, N. Os governos de frente popular

    na histria. So Paulo: Sunderman, 2003). 28

    Ver TROTSKY, L. Aonde vai a Frana? Op. cit., p. 135.

  • 26

    dcadas do sculo XX, possvel nos depararmos tanto com os que vituperaram as idias

    socialistas, quanto com aqueles que as adotaram retoricamente como sua plataforma poltica.

    Dentre esses ltimos, identificados laudatoriamente como progressistas por certas foras de

    esquerda, encontram-se aqueles que estabelecem uma prestidigitadora relao com as massas

    populares por meio do atendimento de algumas de suas reivindicaes imediatas.

    Aparentando ser verdadeiramente populares, esses governos realizam manobras com a

    classe trabalhadora visando alcanar objetivos almejados pela cpula burocrtica estatal. Com

    uma incidncia localizada na periferia semicolonial do sistema capitalista mundial, esse tipo

    particular de governo assume, por vezes, a forma de uma especfica frente popular.29

    No

    custa frisar, assim, que todos os governos de natureza bonapartista, inclusive os de feio

    progressista, limitam-se sempre aos marcos estruturais do Estado burgus que

    momentaneamente dirigem, o que faz deles, em ltima anlise, governos inelutavelmente

    avessos emancipao socia