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O LUGAR DA FAVELA NA PAISAGEM E NO PATRIMÔNIO SCHLEE, MÔNICA BAHIA Coordenadoria de Macro Planejamento - Secretaria Municipal de Urbanismo da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro CMP/SMU/ PCRJ. [email protected] RESUMO O reconhecimento dos atributos da paisagem carioca como Patrimônio Mundial na categoria Paisagem Cultural em Julho de 2012 trouxe novos desafios e responsabilidades relativos ao processo de planejamento urbano e de proteção do patrimônio cultural na cidade do Rio de Janeiro e no Brasil como um todo. A implantação do Corredor Cultural, a partir de 1979, e das Áreas de Proteção Ambiental, a partir de meados da década de 1980, significou um avanço inegável para a proteção da paisagem carioca e das paisagens urbanas brasileiras, por extensão. Estes instrumentos de proteção inovaram ao mesclar a proteção de territórios de domínio público ou privado com atributos culturais e naturais e características sócio-espaciais relevantes para a memória das cidades brasileiras e para a manutenção da diversidade da ocupação urbana. Entretanto, os embates sobre o que deve ser reconhecido como “patrimônio cultural legítimo” continuam acirrados e longe de um consenso. Trazem em seu bojo forças em disputa, preconceitos e o conteúdo político subjacente na valorização do espaço público urbano. No caso do Rio de Janeiro, uma das fontes mais polêmicas de conflitos é a presença de favelas dentro dos limites da zona de amortecimento da propriedade declarada como Patrimônio Mundial e ao alcance visual de quem observa os elementos paisagísticos selecionados como ícones da paisagem cultural carioca. As favelas cariocas, sem dúvida, fazem parte do patrimônio urbano do Rio de Janeiro. Porém, não são consideradas como tal pela sociedade em geral, pelos gestores de patrimônio ou por seus próprios moradores. É preciso discutir o seu papel como expressão física da condição social e de uma das formas mais “tradicionais” de habitabilidade de uma parte significativa da sociedade urbana carioca: os pobres. É preciso discutir o seu papel na identidade e na vitalidade da paisagem carioca. Enfim, é preciso discutir as implicações de considerar as favelas como parte dos valores culturais e da paisagem do Rio de Janeiro e das demais cidades brasileiras. Palavras-chave: proteção de paisagens; favelas, zona de amortecimento; paisagem cultural; legislação; gestão.

O LUGAR DA FAVELA NA PAISAGEM E NO PATRIMÔNIO · 2014-09-05 · proteção da paisagem carioca e das paisagens urbanas brasileiras, ... minimizar os impactos negativos nas bordas

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O LUGAR DA FAVELA NA PAISAGEM E NO PATRIMÔNIO

SCHLEE, MÔNICA BAHIA

Coordenadoria de Macro Planejamento - Secretaria Municipal de Urbanismo da Prefeitura da Cidade

do Rio de Janeiro – CMP/SMU/ PCRJ.

[email protected]

RESUMO

O reconhecimento dos atributos da paisagem carioca como Patrimônio Mundial na categoria

Paisagem Cultural em Julho de 2012 trouxe novos desafios e responsabilidades relativos ao

processo de planejamento urbano e de proteção do patrimônio cultural na cidade do Rio de Janeiro e

no Brasil como um todo. A implantação do Corredor Cultural, a partir de 1979, e das Áreas de

Proteção Ambiental, a partir de meados da década de 1980, significou um avanço inegável para a

proteção da paisagem carioca e das paisagens urbanas brasileiras, por extensão. Estes instrumentos

de proteção inovaram ao mesclar a proteção de territórios de domínio público ou privado com

atributos culturais e naturais e características sócio-espaciais relevantes para a memória das cidades

brasileiras e para a manutenção da diversidade da ocupação urbana. Entretanto, os embates sobre o

que deve ser reconhecido como “patrimônio cultural legítimo” continuam acirrados e longe de um

consenso. Trazem em seu bojo forças em disputa, preconceitos e o conteúdo político subjacente na

valorização do espaço público urbano. No caso do Rio de Janeiro, uma das fontes mais polêmicas

de conflitos é a presença de favelas dentro dos limites da zona de amortecimento da propriedade

declarada como Patrimônio Mundial e ao alcance visual de quem observa os elementos paisagísticos

selecionados como ícones da paisagem cultural carioca. As favelas cariocas, sem dúvida, fazem

parte do patrimônio urbano do Rio de Janeiro. Porém, não são consideradas como tal pela

sociedade em geral, pelos gestores de patrimônio ou por seus próprios moradores. É preciso discutir

o seu papel como expressão física da condição social e de uma das formas mais “tradicionais” de

habitabilidade de uma parte significativa da sociedade urbana carioca: os pobres. É preciso discutir o

seu papel na identidade e na vitalidade da paisagem carioca. Enfim, é preciso discutir as implicações

de considerar as favelas como parte dos valores culturais e da paisagem do Rio de Janeiro e das

demais cidades brasileiras.

Palavras-chave: proteção de paisagens; favelas, zona de amortecimento; paisagem cultural;

legislação; gestão.

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INTRODUÇÃO

O ingresso do Rio de Janeiro na Lista de Patrimônio Mundial da Organização das

Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) na categoria de

Paisagem Cultural1 aconteceu em julho de 2012 na 36ª Sessão do Comitê do Patrimônio

Mundial, em São Petersburgo, na Rússia. O Rio foi selecionado pela qualidade de sua

paisagem, de “valor universal excepcional”, constituída por elementos naturais e culturais

que moldaram e inspiraram o desenvolvimento da cidade, o modo de vida de seus

habitantes e a obra de seus artistas plásticos, músicos, arquitetos, urbanistas e paisagistas.

Para simbolizar o rico acervo paisagístico da cidade, alguns de seus elementos

marcantes foram indicados como bens culturais de valor universal. São eles: a entrada da

Baía de Guanabara e as montanhas florestadas que a emolduram, protegidas pelo Parque

Nacional da Tijuca; o conjunto de afloramentos rochosos do Pão de Açúcar, Morro do Pico e

do Leme, as fortificações na entrada do Baía de Guanabara (forte de São João, no Rio de

Janeiro, Fortaleza de Santa Cruz, e Fortes de São Luiz, do Pico, e do Imbuhy, em Niterói); o

Jardim Botânico; e as paisagens desenhadas da Praia de Copacabana, Parque do

Flamengo e Enseada de Botafogo. Para garantir a proteção e a integração destes bens no

contexto paisagístico da cidade, foi proposta uma zona de amortecimento, destinada a

minimizar os impactos negativos nas bordas destes elementos paisagísticos e fortalecer a

conexão entre estes e malha urbana convencional.

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Figura 1. Mapa oficial da área inscrita na Lista do Patrimônio Mundial da Organização das Nações Unidas para a

Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) na categoria Paisagem Cultural.

Fonte: IPHAN. Lodi, C.; Batista, M. e Ribeiro, R. (coords). Dossier de candidatura. 2011. Rio de Janeiro:

Carioca Landscapes between the Mountain and the Sea, Disponível em

http://whc.unesco.org/en/culturallandscape/ e

http://whc.unesco.org/en/list/1100/multiple=1&unique_number=1843 Último acesso em 29/05/2013.

Avanços e entraves na proteção da paisagem urbana

O conceito de “Paisagem Cultural” foi incorporado pela UNESCO em 19922 como

uma nova tipologia de bem cultural que se caracteriza pela combinação entre obras da

natureza e da humanidade e expressa a interação entre uma sociedade e o seu ambiente

natural ao longo do tempo, ampliando o escopo da Convenção para a Proteção do

Patrimônio Cultural e Natural da Humanidade, aprovada em Paris, em 1972. Como

observou Ribeiro (2007), a adoção deste conceito representou um avanço em relação aos

modelos anteriores, focados na proteção e valorização de bens naturais ou de bens

culturais, uma vez que o bem a ser protegido e valorizado passou a ser a própria paisagem

e as inter-relações entre natureza e cultura que nela coexistem. Como destacado por Luiz

Fernando de Almeida (RIBEIRO, 2007), “sua característica fundamental é a ocorrência, em

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uma fração territorial, do convívio singular entre a natureza, os espaços construídos e

ocupados, os modos de produção e as atividades culturais e sociais, numa relação

complementar entre si, capaz de estabelecer uma identidade que não possa ser conferida

isoladamente.” O conceito de paisagem cultural foi também definido no Plano Diretor de

Desenvolvimento Urbano Sustentável do Município do Rio de Janeiro, instituído pela lei

complementar no 111/2011, artigo 140, como “a porção do território onde a cultura humana

imprimiu marcas significativas no ambiente natural, propiciando a aparição de obras

combinadas de cultura e natureza, que conferem à paisagem identidade e valores

singulares”.

Até a aprovação da candidatura do Rio de Janeiro para a Lista do Patrimônio da

Humanidade da UNESCO em 2012, os sítios reconhecidos como paisagem cultural por este

organismo internacional pertenciam a outra escala espacial, constituídos por pequenos

fragmentos de paisagem reconhecidos por seus atributos históricos, simbólicos, afetivos,

artísticos, religiosos e representativos do modo de vida de seus habitantes, incluindo vales e

montanhas, áreas rurais, jardins históricos, lugares sagrados e sistemas de vida

tradicionais, que testemunham a vinculação entre elementos da natureza, desenvolvimento

e vitalidade social e cultural. O reconhecimento do Rio de Janeiro como paisagem cultural

representou uma mudança de abordagem da UNESCO, em relação a novas possibilidades

e responsabilidades.

O Rio de Janeiro é uma cidade plural, onde contextos sociais, culturais e

econômicos diferenciados se superpõem de forma imbricada ao expressivo suporte natural

sobre o qual a cidade se espraia, configurando paisagens bastante heterogêneas.

Sucessivas tentativas de proteção deste rico patrimônio levaram a criação de recortes

territoriais com características bastante diversas, protegidos por diferentes instâncias

governamentais. Co-existem dentro dos limites do território do Rio de Janeiro Unidades de

Conservação da Natureza, de Proteção Integral e Uso Sustentável, e diversos recortes

territoriais protegidos devido ao seu valor cultural e histórico, sob tutela de órgãos diversos

nas instâncias federal, estadual e municipal. Diante deste quadro, torna-se imperativa a

compreensão das nuances e limitações dos instrumentos legais destinados à proteção da

paisagem urbana no Brasil, criados e adaptados com base em uma visão seccionada da

paisagem urbana brasileira, e a discussão sobre como ampliar os horizontes conceituais

sobre os objetos de proteção do patrimônio cultural e sobre o que significa proteger

paisagens urbanas.

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Apesar da legislação de proteção de sítios urbanos no Brasil ter assimilado novas

correntes de pensamento a partir da década de 1980, conforme demonstrou Márcia

Sant’Anna (1995), na prática as políticas de proteção ainda privilegiam o valor de sítios

íntegros e homogêneos, conforme apontou Lia Motta (2002). Até o início da década de

1980, o “tombamento” de bens imóveis considerados de valor excepcional era o único

instrumento vigente, instituído pelo decreto-lei no 25 de 1937, sendo de competência dos

órgãos federal (IPHAN) e estadual (INEPAC) a sua aplicação. As orientações ditadas pelas

cartas patrimoniais quanto à proteção do patrimônio cultural tiveram como um dos seus

desdobramentos no Brasil a demarcação de Áreas de Entorno dos Bens Tombados, para as

quais passaram a ser estabelecidos parâmetros urbanísticos específicos que visavam a

manutenção da visibilidade dos bens objetos de proteção.

O avanço mais significativo na concepção de instrumentos de proteção de sítios

culturais ocorreu no Rio de Janeiro na década de 1980. A lei no 166, de 1980, atribuiu a

competência ao poder executivo municipal de decidir sobre os atos de tombamento e

destombamento, após a oitiva do Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural.

De um modo pioneiro, foram criados o Corredor Cultural do Centro da Cidade (decreto

municipal no 4141 de 1983, lei municipal no 506 de 1984 e lei municipal no 1139 de 1987) e

a Área de Proteção Ambiental de Santa Teresa (lei municipal no 495/1984 e decreto

municipal no 5050 de 1985), que definiram recortes territoriais a serem protegidos,

correspondentes a conjuntos arquitetônicos de significativo valor cultural, para os quais

foram fixados critérios de uso e parâmetros para reforma e acréscimo dos imóveis de

interesse para proteção, assim como para as novas construções localizadas no interior dos

limites da área protegida. A partir de então, outras áreas da cidade com atributos culturais

foram sendo protegidas sob a denominação de Áreas de Proteção Ambiental. O diferencial

destas iniciativas residiu na valorização de ambiências de significativo valor cultural, e não

na uniformidade estilística dos conjuntos arquitetônicos completamente íntegros ou na

submissão de recortes territoriais a um determinado bem de valor excepcional, como se

fazia até então.

A atribuição de defesa do patrimônio cultural local pelos municípios foi consolidada

pela Constituição Federal de 1988, a qual incorporou a proteção dos ambientes urbanos e

da memória coletiva e imaterial de grupos da sociedade e ratificou uma maior abrangência

do conceito de patrimônio cultural. Da proteção dos grandes monumentos isolados

direcionou-se à preservação da ambiência dos conjuntos urbanos e da memória coletiva e

intangível de grupos da sociedade. Em nível municipal, as Áreas de Proteção Ambiental

foram regulamentadas pelo decreto no 7612/1988. Através desse instrumento

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institucionalizou-se o uso dessa figura jurídica para a proteção ambiental de áreas com

características notáveis tanto nos aspectos naturais quanto nos aspectos culturais e a

prevalência dos parâmetros estabelecidos para essas áreas sobre os parâmetros instituídos

pelo zoneamento urbanístico. Durante a formulação do Plano Diretor Decenal do Rio de

Janeiro de 1992 surgiu pioneiramente no Brasil a figura de proteção denominada Área de

Proteção do Ambiente Cultural - para proteção dos sítios urbanos. As Áreas de Proteção

Ambiental com atributos culturais anteriores ao Plano Diretor foram automaticamente

reconhecidas como Áreas de Proteção do Ambiente Cultural, e continuaram sob a tutela do

órgão responsável pela tutela do patrimônio cultural que as criou.

O Mapa Síntese das Áreas Protegidas evidencia a sobreposição de tutelas de

instâncias e órgãos de proteção com interesses diferenciados e explicita a visão

fragmentária e setorizada da ótica político-organizacional municipal, marcada pela cisão

entre a dimensão natural e cultural, em detrimento de um ambiente considerado em sua

integridade.

Figura 2. Mapa síntese das áreas protegidas na cidade do Rio de Janeiro pela legislação ambiental, pela

legislação de patrimônio cultural e pela legislação urbanística.

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Fonte: Schlee 2011

Valores e atributos

De acordo com Motta (2002, p. 133), “a ênfase no valor artístico e a observação a

sentimento continuam a constituir o método para identificar o valor do patrimônio”. Os

embates sobre o que deve ser reconhecido como “o verdadeiro patrimônio” trazem em seu

bojo a disputa de poder sobre o conteúdo da mensagem política que deverá estar inscrita

na leitura do espaço público. No contexto brasileiro, ao nível do discurso, estas estratégias

se polarizam entre o princípio da monumentalidade e o reconhecimento do valor do

cotidiano, conforme apontou Gonçalves (2002).

Enquanto a estratégia vinculada à monumentalidade busca respaldo no valor

estético dos bens individuais e monumentos, a estratégia que prioriza o registro do cotidiano

destaca os objetos, espaços e atividades que registram processos culturais de segmentos

sociais diversos. Cada uma dessas estratégias traz conseqüências para a construção

coletiva do espaço público. Segundo Gonçalves (In: Oliveira 2002:120-121), “no primeiro

caso, o espaço público é pensado como espaço sem conflitos, sem diferenças, sem

pluralidade, com todos os seus elementos remetidos ao valor hierarquicamente superior.”

No segundo caso, a heterogeneidade do espaço e seu permanente processo de

transformação são aceitos e valorizados.

Como argumentado por Motta (2002), o critério estabelecido para selecionar o que e

como preservar nas cidades brasileiras priorizou a uniformidade estilística dos conjuntos

coloniais e/ou a excepcionalidade dos monumentos nas cidades que já haviam perdido sua

integridade. O padrão produzido com base nos critérios estético-estilístico, e de

uniformidade e/ou excepcionalidade, levou ao tratamento das cidades como obras de arte,

sem qualquer restrição urbanística, em detrimento do reconhecimento dos vestígios e

registros da memória, das tradições e identidades coletivas, e do valor simbólico das

estruturas urbanísticas. Com o tempo, estes critérios foram incorporados por órgãos de

tutela criados em âmbito estaduais e municipais. O patrimônio foi assimilado como algo

excepcional mesmo por políticos e cidadãos comuns e é essa imagem de patrimônio

histórico e cultural que permanece incorporada no imaginário coletivo.

No Rio de Janeiro, são inegáveis os avanços obtidos com a implantação do projeto

Corredor Cultural, a partir de 1979, e as Áreas de Proteção do Ambiente Cultural (APACs)3,

a partir de 1984, cujas delimitações também se apoiaram em critérios históricos e

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arquitetônicos, mas que inovaram ao atribuir qualidade ao espaço urbano pelo ritmo e pelo

valor ambiental que as edificações lhe proporcionavam. No entanto, a insistência dos

órgãos de tutela, tanto no Rio de Janeiro, como nas demais cidades brasileiras, em

considerar patrimônio apenas as áreas que ainda mantém um alto grau de integridade

morfológica no espaço urbano fizeram com que as cidades fossem recortadas para a

delimitação de áreas de preservação formando polígonos para incluir o que se considera

“conjuntos edificados de relevante interesse cultural”, sem considerar contextos locais e

características que diferenciam processos, traçados e formas de ocupação (SCHLEE et AL,

2009).

O lugar e o significado sócio-cultural das favelas

Diversas são as situações de conflito entre a malha urbana convencional e as áreas

protegidas ou com potencial para proteção, tanto no Rio de Janeiro como em outras cidades

brasileiras. No caso do Rio, uma das fontes mais polêmicas de conflitos é a presença de

favelas dentro dos limites da zona de amortecimento da propriedade reconhecida como

Patrimônio Mundial na categoria Paisagem Cultural, e se elas fazem ou não parte dos

valores e da paisagem culturais do Rio de Janeiro.

Favelas são assentamentos habitacionais não conformes com os regulamentos de

construção e de uso da terra, com condições de saneamento básico inadequadas e com

condições de propriedade da terra irregulares. Ao mesmo tempo, as favelas do Rio de

Janeiro são caracterizadas por uma forma espontânea e por um pacto coletivo de

organização do espaço, alta população e habitação de alta densidade, uma mistura de usos

da terra, um sentido de comunidade (ou melhor, um forte senso de identidade entre

diferentes grupos internos), o que pode estimular os laços sociais e a colaboração entre

membros da comunidade. Favelas são muito heterogêneas em termos de processos de

formação histórica e padrões espaciais e em termos de configuração interna (SCHLEE,

2011).

Os sítios indicados como elementos paisagísticos marcantes na paisagem da cidade

do Rio de Janeiro, apesar de se concentrarem em uma determinada área da cidade (parte

da zona sul), não são contíguos. Para garantir a permanência destes elementos na

paisagem e sua proteção e fruição de forma sustentável, é fundamental que a zona de

amortecimento incluída na proposta de candidatura, destinada a minimizar os impactos

negativos dos usos urbanos nas suas bordas, seja amplamente debatida. Como parte do

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acordo com a UNESCO, esta zona de amortecimento deverá ser discutida no âmbito do

Plano de Gestão atualmente em fase de elaboração pelo IPHAN e terá que ser

regulamentada. A seguir, apontamos algumas considerações para auxiliar os debates e o

encaminhamento da proposta de regulamentação.

Com base nas definições e recomendações da Declaração de Xi'an (ICOMOS,

2005), no Relatório de Al Ain (UNESCO, Al Ain, Emirados Árabes Unidos, 2012) e no

Relatório de Agra (UNESCO, Agra, Índia, 2013), o plano de gestão do sítio declarado como

Patrimônio Mundial e de sua zona de amortecimento deve procurar garantir a vitalidade, a

habitabilidade e a inclusão social, a conectividade e a interface entre formas sociais e

culturais no ambiente urbano e a mudança de ênfase no desenvolvimento meramente

econômico em direção ao desenvolvimento sustentável.

Mesmo com a gradativa mudança de perspectiva que vem ocorrendo desde a

década de 1980, o conceito de patrimônio cultural adotado no Brasil, que permeia as três

instâncias governamentais, permanece transpassado por forte ideologização que ainda

prioriza a salvaguarda de objetos e formas que expressam e carregam valores aceitos pelas

elites da sociedade. Desta base comum brotam os critérios discriminadores das ações de

proteção que via de regra ainda vigoram no país.

Fóruns como o Colóquio de Paisagem Cultural têm um importante papel a cumprir.

Um dos principais desafios é ampliar os horizontes conceituais sobre os objetos de proteção

do patrimônio cultural e sobre o que significa proteger paisagens urbanas. Questões

primordiais ainda continuam sem definição. Salvaguardar apenas objetos e formas ou

salvaguardar relações entre pessoas, coisas e lugares, como argumentou Domenico

Patassini (1991)?

Os processos de desenvolvimento e de expansão da cidade moderna no Brasil

deram origem a artefatos e morfologias de tecidos urbanos, como as favelas, ainda nem

mesmo plenamente entendidos e, sobretudo, ainda não reconhecidos e aceitos pela

sociedade como parte da memória e da identidade cultural urbana brasileira. Daí resultam

os paradoxos e as incongruências nos recortes espaciais identificados como de interesse

para a proteção, que revelam o estado de conflito latente entre os repertórios da gramática

tradicional do patrimônio cultural e as manifestações à margem do padrão estabelecido, que

também e em sua essência, caracterizam o contexto urbano brasileiro.

As favelas são o outro lado da moeda do sistema brasileiro de produzir cidades. São

produtos materializados da sobrevivência dos pobres e marginalizados e dos seus valores

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no contexto urbano. Personificam de tudo um pouco (de forma diversificada e heterogênea,

tanto entre si quanto internamente): insalubridade, pobreza, barulho, lixo, feiura, violência,

ilegalidade, resistência, vitalidade, adaptabilidade, convívio de diferenças. Espelham ao

mesmo tempo o atraso e o potencial social e cultural da sociedade brasileira.

Manter a gramática dos discursos e práticas de proteção do patrimônio cultural nos

contextos urbanos, ou buscar inovar ao discutir a salvaguarda das formas sociais que

explicam a evolução e o contexto atual da sociedade urbana brasileira, aceitando a

gramática do subdesenvolvimento, atribuindo valor às formas que representam os

processos sociais vividos pelas cidades brasileiras em construção? Quais as implicações da

aceitação das favelas como parte da paisagem urbana passível de ser protegida? Quais as

implicações de não fazê-lo? É preciso discutir as implicações de considerar as favelas como

parte dos valores culturais e da paisagem do Rio de Janeiro e das demais cidades

brasileiras.

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Michael Turner e Maria Helena Salomon pelo incentivo à discussão desse tema

e pela indicação de referências bibliográficas.

REFERÊNCIAS

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http://www.international.icomos.org/xian2005/xian-declaration.htm (last acess 9 February

2014)

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1 A partir de 2008, a candidatura do Rio de Janeiro a Patrimônio da Humanidade na categoria Paisagem

Cultural, coordenada pelo IPHAN, estruturou-se em três níveis: Comitê Institucional, com representação política nas três instâncias governamentais e na sociedade civil; Comitê Executivo, com representação similar, constituindo instância de ligação entre o Comitê Institucional e o Comitê Técnico, e este último, composto por representantes do corpo técnico das três esferas, com atribuições de definição de diretrizes para a delimitação da área objeto de proteção e de sua gestão compartilhada. O dossiê da candidatura foi concluído em janeiro de 2010 e encaminhado à Unesco em 2011. Em 1º de julho de 2012 o Rio de Janeiro se tornou Patrimônio Mundial na categoria Paisagem Cultural. Como desdobramento deste processo, foi criada uma nova modalidade de bem cultural em âmbito nacional em 2010, denominada Paisagem Cultural Brasileira, chancela concedida pelo IPHAN a paisagens de reconhecido valor cultural no Brasil.

2 Unesco/ World Heritage Center. Glossary of World Heritage Terms. Paris: WHC-96/CONF.201/INF.21,1996 e

Cultural Landscape. http://whc.unesco.org/en/culturallandscape/#2, último acesso em 27/05/2013.

3 Segundo o artigo 124, inciso III, do Plano Diretor Decenal do Rio de Janeiro, instituído pela Lei Complementar nº16, de 04 de

junho de 1992, as Áreas de Proteção do Ambiente Cultural (APACs) são unidades de conservação destinadas a proteger “territórios de domínio público ou privado que apresentem relevante interesse cultural e características paisagísticas notáveis, cuja ocupação deve ser compatível com a valorização e proteção da sua paisagem e do seu ambiente urbano”. As primeiras APACs foram criadas em meados da década de 1980, tendo sido inicialmente denominadas Áreas de Proteção Ambiental, passando a serem denominadas APACs após a promulgação do Plano Diretor. As Áreas de Proteção do Ambiente Cultural são instrumentos para proteção de “territórios de domínio público ou privado que apresentam conjunto edificado de relevante interesse cultural, cuja ocupação e renovação devem ser compatíveis com a proteção e a conservação de sua ambiência e suas características sócio-espaciais identificadas como relevantes para a memória da cidade e para a manutenção da diversidade da ocupação urbana constituída ao longo do tempo”.