O medieval e o moderno no mundo Ibérico americano

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O Medieval e o Moderno no Mundo Ibrico e Ibero-Americano Beatriz Helena Domingues1. Introduo Nosso propsito refletir sobre a especificidade da colonizao da Ibero-Amrica, especialmente quando comparada com a da Anglo-Amrica, tomando como referncia a diferente insero dos pases ibricos e da Europa anglo-saxnica na chamada modernidade ocidental na virada do sculo XVI para o XVII. Comearia por dizer que a relao dos ibero-americanos com a chamada modernidade ocidental no mnimo problemt ica em funo, entre outros aspectos, de nossa ligao com a Idade Mdia europia, herana de nossos colonizadores. Se, por um lado, podemos dizer que a Amrica (Anglo e Ibrica) j nasceu moderna, tambm temos que admitir que, desde o incio, tratou-se de duas verses diferentes da modernidade ocidental, as quais moldaram em solo americano, segundo Morse (1982: 15), dois modelos civilizacionais. Nossa nfase ser dada aqui opo feita pelos pases ibricos nos sculos XVI e XVII, a qual teve reflexos fundamentais na modelagem e posterior desenvolvimento das colnias americanas. A modernidade ibero-americana ser entendida, tal como a ibrica, como uma alternativa no completamente associada nem completamente integrada chamada modernidade ocidental. Isso j se fazia presente no momento da constituio da Ibero-Amrica, quando da sua independncia poltica em relao Espanha, e continua a se fazer presente nos dias atuais.

Nota: Este trabalho foi apresentado no 49 Congresso Internacional de Americani stas realizado em julho de 1997 em Quito, no Equador. grande o desafio com que se depara o historiador que se aventura a tentar compreender a modernidade ibrica e ibero-americana, pois trata-se de uma cultura catlica que no passou pela Reforma nem separou claramente cincia de religio. Trata-se de sociedades nas quais, ainda hoje, encontramos uma cultura que est elaborando temas derivados de uma verso especial da Idade Mdia tardia e nas quais o espao deixado para a demonstrao emprica relativamente estreito. Mas, como bem nos lembra Morse, essa herana medieval no deve ser

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2 por ns assumida exclusivamente como um problema. A no participao dos ibricos nas revolues religiosa e cientfica lhes teria proporcionado, segundo Morse (1982: 35), uma liberdade desconhecida nos pases protestantes modernos: o acesso livre s fontes de inspirao da Idade Mdia, de Roma e da Grcia. Em certa medida, proporcionou-lhes tambm a manuteno da tradio pluralista medieval, dificultando a afirmao do individualismo moderno.

Essa relao diferente com a Idade Mdia no faz dessas sociedades algo menos ocidental. Seria mesmo uma absurdidade lgica se referir histria ibrica ou latinoamericana como uma histria marginal civilizao ocidental. , sim, uma variao a partir da mesma matriz, que moldou uma modernidade diferente da norte-europia e angloamericana.

2. A modernidade ibrica A rigor, as singularidades ibricas tiveram incio ainda na Idade Mdia e prosseguiram durante a Renascena. Segundo Maravall (1965), a Idade Mdia na Ibria foi menos medieval no sentido pejorativo do termo: se trevas existiram, elas foram menos sombrias l. Desde o sculo VII a Ibria foi caracterizada pela coexistncia de judeus, muulmanos e cristos, e teve um precoce acesso aos escritos de Aristteles no sculo XII, quando os mesmos ainda eram desconhecidos na Europa. Esses textos l chegaram atravs dos rabes e desempenharam um papel decisivo no conjunto da histria ocidental. Nesse sentido, a Ibria pode ser considerada uma ponte entre o legado antigo e a Europa medieval.

No somente o pioneirismo dos ibricos em assimilar Aristteles, mas o fato de terem produzido diferentes interpretaes do mesmo, ajuda-nos a entender por que, no sculo XVI, eles releram os Aristteles medievais ao invs do Plato ento apresentado como alternativa filosofia escolstica tomista -- o que concedeu ao seu Renascimento a peculiaridade de ser um Renascimento aristotlico -tomista, ao invs de neoplatnico. Mas, embora se tenha esquivado da releitura de Plato, indiscutvel que o Renascimento aristotlico ibrico, como os outros renascimentos que releram Plato, moldou uma modernidade. Como os demais, ele se caracterizou pela heterogeneidade: nele encontramos erasmistas (Vives), averrostas (Joo de Barros), cticos (F. Snchez), nominalistas (franciscanos) e tomistas (Vitria, os

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3 dominicanos e os jesutas). S que os ibricos, que tanto entusiasmo haviam demonstrado pelo novo nos sculos XV e XVI, optaram por uma postura mais cautelosa quando se defrontaram com expresses radicais do esprito moderno tal como se manifestaram na nova filosofia e na nova cincia. Tanto em teologia quanto em epistemologia, os ibricos optaram por conservar, modificando, a tradio medieval.

A opo pela renovao da teologia e da epistemologia medievais, mais do que pela sua substituio, no implica a imagem de uma sociedade esttica, estacionria. Desde meados deste sculo, a historiografia sobre o Renascimento, especialmente trabalhos como o de Huizinga (1946), vem demonstrando como, mesmo nesse perodo de explcita valorizao do novo, os traos de continuidade com o perodo medieval so fortssimos. Isso no implica, absolutamente, negar o papel do interregno renascentista enquanto preparao da modernidade, e sim assinalar a complexidade dos fatores a envolvidos. No Renascimento espanhol, assim como nos demais, possvel identificar uma forte continuidade em relao Idade Mdia sem entretanto negar a originalidade do sculo XVI. Ainda que seja possvel falar em Renascimentos anteriores, durante os sculos medievais, o sentimento de renascer que o sculo XVI presenciou adquiriu uma forma e uma fora singulares. Mas no foi de forma alguma um sentimento homogneo nem culminou no mesmo modo de modernidade. Na sua vertente principal, culminou no que Vaz (1991: 158) denominou modernidade moderna; em outra vertente, culminou no que estou denominando modernidade medieval. A primeira seria aquela chamada em geral simplesmente de modernidade, e a segunda foi uma alternativa contempornea a ela que se constituiu no mundo ibrico e ibero-americano. Ou, usando os termos de Stephen Toulmin (1990), diramos que a passagem da primeira etapa da modernidade (a humanista) para a segunda (a filosfico-cientfica) no ocorreu na Ibria como no norte da Europa.

O problema central seria datar a modernidade. Sobre quando teria comeado, a discordncia grande: alguns autores situam seu incio por volta de 1436, outros em 1630, 1648 ou 1789, dependendo da prpria conceituao de modernidade por eles assumida. Mas a tese mais difundida a que data o incio da modernidade por volta de 1630, quando da publicao das Meditaes filosficas de Descartes e do julgamento de Galileu pela Inquisio. Desde ento, a inquirio cientfica tornou-se racional, seja para as cincias astronmicas ou para a realidade prtica.

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4 O reconhecimento da importncia dessa mudana epistemolgica nos rumos da histria ocidental no nos obriga, entretanto, a datar o incio da modernidade em 1630. A anlise dos sculos XVI e XVII empreendida por Stephen Toulmin demonstra competentemente que os filsofos e cientistas do sculo XVII no foram os inovadores e racionais a partir do nada. Ao contrrio, suas formulaes s podem ser perfeitamente entendidas enquanto respostas (mais reducionistas) a questes j discutidas nos sculos anteriores. Ele considera o perodo normalmente assumido como pr-modernidade, ou humanismo, como sendo exatamente o primeiro momento da constituio da modernidade (humanista e literria).

Tambm para Hans Blumenberg (1987), a modernidade teria sido, antes de mais nada, uma tentativa de resolver um problema que estava implcito no conjunto do pensamento do fim da Idade Mdia sobre Deus, o homem e o mundo. a forma e a urgncia com que se colocou esse problema que explica por que a modernidade ocorreu naquele momento histrico e no em qualquer outro. Em The genesis of the Copernican world, Blumenberg alerta-nos para a inter-relao das revolues na cincia e na conscincia, dentro daquilo que se convencionou chamar de modernidade. Ele considera tanto as teses iluministas, que valorizam o moderno pela depreciao do medieval ou tradicional, quanto aquelas que identificam a modernidade simplesmente com uma secularizao de conceitos cristos ou medievais, insuficientes para entender o problema.

Na Idade Mdia tardia Blumemberg identifica um perodo de absolutismo teolgico, devido nfase ento atribuda onipotncia divina e idia de um Deus escondido, o qual o homem no pode esperar compreender em nenhum sentido. Nem mesmo a f era considerada livre escolha, e sim algo dado por Deus -- assim como tudo mais. E o arbitramento dessa situao foi freqentemente expresso pela idia de uma eterna predestinao das almas, seja para a salvao ou para a danao. Esse absolutismo teolgico no conseguia conviver nem com as tentativas dos aristotlicos de provar a existncia e unicidade de Deus, nem com a crtica dos nominalistas realidade dos universais. Ambas as filosofias eram vistas como suspeitas de estarem colocando limites potncia e soberania de Deus. A nfase na onipotncia e inescrutabilidade divinas foi to radical que acabou por se estender ao prprio mundo. Conseqentemente, mesmo o mundo sublunar tornou-se inescrutvel, perdendo as caractersticas que lhe haviam conferido confiabilidade desde a filosofia clssica at a alta escolstica. Essa situao -- um mundo feito para Deus e no para o Homem -- no qual o

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5 homem no se sentia em casa, mas do qual no tinha formas de escapar, estava completamente fora de seu poder. Representava o extremo da auto-abnegao humana e no podia se manter indefinidamente. E realmente, aps vrios embates entre essas perspectivas (expressos, por exemplo, na Reforma protestante e na revoluo cientfica), os europeus foram substituindo o conceito de auto-afirmao do homem pela sua moderna auto-afirmao: quando o homem decide ver o que ele pode fazer no mundo mesmo sem Deus. Seu axioma central, segundo Blumenberg (1987: 15), torna-se ento: Ns no podemos saber os propsitos, a causa final do fenmeno, pois no podemos conhecer a vontade divina. Temos que nos contentar com o conhecimento das causas eficientes.

Padre Vaz tambm interpreta a modernidade do sculo XVII como uma resposta s questes que a filosofia escolstica -- altamente racional -- vinha colocando desde os ltimos sculos medievais. S que ele no ope, em nenhum momento, a modernidade a um mundo pr-moderno. Nos sculos medievais, identifica uma modernidade que denomina cristracional, por ter colocado perguntas to racionais teologia que tornou impossveis as respostas nesse mbito. A modernidade do sculo XVII, que ele denomina modernidade moderna, tambm teria oferecido, a seu modo, respostas, que tiveram o efeito de deslocar a religio do papel de ordenadora do mundo intelectual e social para o de uma disciplina entre as demais.

Os adjetivos usados por Vaz -- modernidade greco-romana, modernidade crist-racional e modernidade moderna -- no so, por certo, muito familiares. Mas esto em perfeita consonncia com sua definio de modernidade, que extrapola o contexto histrico do comeo do sculo XVII. O que o sculo XVII inaugurou teria sido, assim, uma nova forma de modernidade -- a moderna -- e no a modernidade por antonomsia. No seu sentido mais amplo e profundo, a idia de modernidade expressaria a experincia filosfica do tempo: a autoridade do tempo presente para qualificar ou desqualificar o passado. Nesse sentido, a primeira manifestao de modernidade na histria foi a que ocorreu no mundo grego com o nascimento da filosofia antiga, quando se fez a primeira leitura racional do mito. Foi quando a razo demonstrativa, ou o logos como episteme ou como cincia, passou a ocupar o centro simblico da civilizao grega. O que implica uma revoluo na representao do tempo -- a leitura do tempo histrico a partir da sua conceptualidade filosfica. Da por que esse

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6 substantivo abstrato -- modernidade -- s pode ser usado relativamente a civilizaes filosficas, nas quais a representao do tempo j substituiu a estrutura repetitiva do mito pela linha ascendente da histria. A uma primeira modernidade grega se teria seguido, na Idade Mdia, a modernidade crist-racional e finalmente a modernidade moderna, normalmente conhecida apenas por modernidade. O termo modernidade moderna sugere a contemporaneidade com o perodo histrico denominado Idade Moderna, assim como a opo intelectual pela afirmao do novo. Um novo que implica fundamentalmente a dissoluo da relao entre filosofia e teologia caracterstica da viso medieval de mundo, na medida em que substitui a teologia racional pela filosofia da religio. A teologia racional deixa de ser a ordenadora da viso de mundo e de verdade, e a religio torna-se uma disciplina dentre as demais. A capacitao para a busca da verdade e para elaborar uma cosmoviso est agora nas mos da cincia. Os sculos XVIII e XIX assistem afirmao dessa nova conscincia progressiva -- que os gregos j haviam sentido em relao aos seus predecessores -- expressa em episdios como a Revoluo Francesa e a industrial e culminando, no sculo XX, na conscincia de modernidade associada revoluo tecnolgica.

Um importante alerta dado por Vaz que essa modernidade, embora dominante, no a nica possvel. Quando historia os modos de modernidade ele est, sem dvida, colocando o termo no plural. Pluralidade essa que estou estendendo aqui possibilidade de, alm da cronologia histrica, lidarmos com modos de modernidade contemporneos entre si. E isto que me interessa aqui realar: a convivncia, no perodo histrico conhecido como moderno, de pelo menos duas opes filosfico-teolgico-epistemolgicas a partir da mesma matriz medieval. Ou seja, pretendo demonstrar que houve mais do que uma resposta para as questes colocadas pela crise filosfico-religiosa da Idade Mdia tardia. Uma delas se props superar, negar aquela tradio, e a outra buscou reformar, atualizar essa mesma herana.

O que me interessa realar aqui a compreenso da opo ibrica enquanto diferente da modernidade moderna, mas que no pode ser explicada por nenhum carter nacional, e sim por um peculiar desenvolvimento histrico e cultural que pode e merece ser elucidado. Muito mais do que algo completamente parte ou extico em relao tradio europia ocidental, foi uma outra leitura da mesma tradio. Foi como se, a partir da mesma pedra, tivessem sido esculpidas duas esttuas diferentes. A ibrica, mais tradicional, tentou manter, ainda que

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7 renovando, a imagem medieval do mundo. Foi como se a reflexo filosfica do tempo passado (Vaz, 1991) que a se operou tivesse optado por reform-lo, mais que por substitu lo. Devido a tal escolha, que trouxe consigo a deciso de renovar e atualizar a sntese aristotlico-tomista num momento em que esta estava sendo fortemente atacada, estou chamando essa diferente incluso no mundo moderno de modernidade medieval. O adjetivo medieval sugere aqui a relao de continuidade com o mundo passado, que se manteve por muito mais tempo na Ibria e foi trazida para o mundo ibero-americano. Em termos filosfico-teolgicos, esse modo de modernidade optou por manter, ainda que renovando, a escolstica medieval. Da a resistncia desse mundo a incorporar a filosofia de Descartes ou a nova cincia de Galileu. Ou seja, a dar o salto da modernidade humanista para a modernidade cientfico-filosfica.

A explicao da singularidade espanhola a partir do modelo aqui adotado -- dois modos de modernidade -- pode ser encontrada, entre autores de lngua espanhola, com os enfoques mais diversos, desde meados deste sculo. Vicente Palcio Astard (1950: 728) se refere distino entre a Espanha e outros pases como duas modernidades possveis: uma revolucionria (anticatlica) e uma tradicionalista (catlica). Esta ltima queria conservar todos os elementos fundamentais da ordem medieval, pero admitiendo la superacin de todos aquellos susceptibles de ser superados. A Espanha, pas de uma modernidade catlica e tradicionalista, no se resigna a contemplar como espectadora passiva a runa da unidade crist do Ocidente. Da o fato que ele classifica como assombroso: enquanto os demais pases fazem poltica nacional, os espanhis prescindem de seus interesses locais e fazem poltica universal. O grande desafio da Espanha foi se propor configurar seu mundo em bases culturais e polticas modernas, porm em luta com a modernidade revolucionria.

Tambm Snchez-Albornoz (1962) afirma que o espanhol foi, entre os europeus, o menos propenso a subordinar a f a interesses nacionais. A coincidncia entre a crise da cristandade ocidental e o fim triunfal da guerra de reconquista na Ibria foi uma fatalidade histrica que fortaleceu neles -- mais do que nos demais europeus -- a f na possibilidade de uma cristandade unida. a partir da que se pode entender a projeo do hispano medieval na Amrica. A colonizao espanhola na Amrica -- que ele chama de medieval em contraposio outra, moderna -- foi a transposio para esse continente dos ideais medievais de cruzada e aventura. A colonizao moderna foi ps-renascentista e ps-luterana. Diferente mesmo das

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8 demais colonizaes medievais ocorridas no Mediterrneo, a colonizao medieval do continente americano se caracterizou pelo esprito religioso, mstico e guerreiro. A mesma caracterizao -- colonizao medieval e moderna -- mantida por Octavio Paz (1988: 32). Para ele, ambas as colonizaes foram inspiradas por motivaes religiosas. A diferena foi que, enquanto os ingleses fundaram, na Amrica, comunidades com o intuito de escapar da ortodoxia, os espanhis estabeleceram suas colnias exatamente para expandir a deles. Para os primeiros, o princpio fundador era a liberdade religiosa, para os ltimos, a converso dos nativos. As duas palavras que definem a expanso espanhola -- conquista e converso -- so duas palavras imperiais e medievais. Da a conquista da Amrica pelos espanhis e portugueses no se parecer nem com a colonizao grega nem com a inglesa, e sim com as cruzadas crists ou a guerra santa muulmana.

Alm de se manifestar na forma de colonizao do Novo Mundo, a persistncia do medieval na Espanha se fez sentir na hierarquia social, que permaneceu comandada por valores tnicos (honra como sinnimo de pureza de linhagem), os quais, por sua vez, tinham conotaes religiosas. Tambm no nvel do Estado, era patente a diferena entre a Espanha e os demais pases europeus. Nestes, o poder central foi favorecido e, de um jeito ou de outro, Estado e nao -- at ento duas entidades separadas -- tornaram-se um. Mas em nenhum deles Estado e nao se indentificaram to totalmente com uma nica religio como na Espanha. E essa unio entre Estado e religio est na base da misso histrica do imprio espanhol, cujo medievalismo assinalado na vida social e poltica e na empresa colonizadora seria o responsvel pela no -existncia de uma modernidade autntica na Espanha e no mundo iberoamericano at os dias atuais.

O interessante a ser observado que, embora medievais nesses aspectos assinalados, tanto na descoberta quanto na colonizao do Novo Mundo podemos vislumbrar aspectos extremamente modernos. Os ibricos cruzaram os mares com o que havia de melhor em termos de tecnologia, e a evangelizao, especialmente a empreendida pelos jesutas, teve aspectos bem diferentes do missionarismo tradicional. As reelaboraes da teologia crist, particularmente a de Francisco Surez, tiveram influncia em pases protestantes na Europa Ocidental. Isso no quer dizer que, com a ajuda dos jesutas, a Espanha e a Ibero-Amrica tenham atingido a modernidade moderna (filosfico-cientfica) por outras vias, mas simplesmente que, devido diferente relao com a tradio, constituiu-se uma modernidade

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9 diferente. O sculo XVII na Espanha no foi nem completamente humanista nem filosficocientfico. Um exemplo do que poderia ser chamado uma outra via de acesso modernidade moderna, Octavio Paz identificou no caso francs. Segundo ele, em alguns pases a modernidade teria seguido o triunfo da Reforma; outros teriam entrado nessa mesma modernidade sem o protestantismo: foi o caso da Frana. J a Espanha e a Amrica Latina no so facilmente classificveis. O exemplo francs interessante porque pe em suspenso a relao de necessidade que se tem estabelecido entre protestantismo e modernidade. E, conseqentemente, entre contra-reforma e no-modernidade. A Espanha e a Amrica Latina no tiveram, por certo, nem protestantismo nem jansenismo, e nem sequer chegaram ao mesmo ponto final. Conforme nos alerta Octavio Paz (1988: 15):

Nossa histria no tem seguido um nico padro -- seja o linearismo dos evolucionistas, os ziguezagues dos dialticos ou o crculo dos neoplatonistas. Nossa histria tem sido um descontnuo de paradas e comeos: algumas vezes uma dana, outras uma letargia interrompida por um violento despertar. Repetidamente ns espanhis e iberoamericanos arregalamos (e da Ibero-Amrica) como uma modernidade medieval Minha caracterizao da Espanha nossos dessa perplexidade. Pois como nos tempo agora na histria mundial? compartilha olhos e perguntamos:sequedeparssemos com uma ausncia de padro. O que no nos autoriza, entretanto, a isolar essas histrias, e a no ver a pontos de Nosso tempo nunca contato com a tradio ocidental. este o meu desafio aqui: estudar um contexto cultural europeu preciso, que reagiu de forma diferente s novas idias e movimentos emergentesatrs. coincide com outros tempos. Estamos sempre frente ou apartir do Renascimento, particularmente Reforma protestante e revoluo cientfica, porque assumiu uma atitude singular em relao tradio medieval. O que culminou, em uma de suas vertentes, em uma modernidade distinta da modernidade moderna.

Como se teria constitudo e moldado essa modernidade ? Ser possvel usar o termo modernidade para definir uma sociedade que optou pela manuteno, ainda que renovada, da tradio (que teve, portanto, uma leitura positiva do tempo passado)? Comearia ponderando que, pelo fato de a Ibria ser parte da tradio ocidental, a linha divisria entre modernidade e

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10 tradio a mais problemtica de ser traada do que no caso de sociedades tradicionais como Japo e ndia, nas quais a modernidade ocidental foi introduzida de fora, sem uma relao com as suas j antigas tradies. Como a Rssia, a Espanha vive o dilema de ser, ao mesmo tempo, includa no e excluda do desenvolvimento geral do Ocidente europeu. As instituies bsicas da sociedade espanhola antes da revoluo industrial tinham muito em comum com outras sociedades ocidentais que se modernizaram com sucesso, bem como contatos, de diferentes intensidades, com as sociedades mais desenvolvidas do Ocidente. Por outro lado, concordo com Juan Lins (1972) quando ele afirma que, para os padres dos sculos XIX e XX, a Espanha no pode ser considerada uma sociedade bem-sucedida. Portanto, longe de querer mostrar que a Espanha teve uma cincia muito desenvolvida ou que, juntamente com a Ibero-Amrica, uma sociedade bem-sucedida pelos padres ocidentais, quero simplesmente discordar de que seu caminho particular seja algo a lamentar.

Um ponto nada fcil de detectar aquele no qual o rumo da histria espanhola comeou a divergir do da Europa Ocidental. Juan Lins diagnostica que o break com a tradio ocidental teria ocorrido ainda na Idade Mdia devido exatamente presena do Isl, grande influncia da minoria judaica e ao processo de reconquista empreendido pelos cristos contra os mouros. Teria sido a partir desse break inicial que as diferenciaes posteriores se foram conformando. Seriam elas: 1) a precocidade com que se constituiu uma monarquia poderosa, a qual abafou as aspiraes da burguesia ascendente; 2) a concepo medieval de imprio da poltica de Carlos V, que moldou a sua poltica externa ; 3) a fora da Contra-Reforma. Esses fatores teriam sido decisivos para fazer da conquista da Amrica um empreendimento metade medieval, metade moderno. Dessa forma, Lins assinala a singularidade espanhola mesmo em relao a outros contextos contra-reformistas como a Itlia. A Contra-Reforma italiana no coexistiu nem com a constituio de um Estado nacional precoce (ao contrrio, o Estado nacional italiano s vai se constituir no sculo XIX), nem com a descoberta e colonizao de um Novo Mundo. Tampouco encontramos na Idade Mdia italiana a multiplicidade cultural verificada na Ibria. Um ponto em comum importante, no entanto, foi o movimento renovador da escolstica medieval, com influncias mtuas no perodo de constituio da modernidade, ainda que com desfechos diferentes.

Otis Green (1968), sem se referir a qualquer break com a tradio ocidental em um momento preciso, enfatiza a precocidade com que ocorreu a modelagem do edifcio modernoEstudos Histricos, Rio de Janeiro, n. 20, 1997

11 na Espanha. Mais, porm, do que constituio do Estado nacional espanhol, ele est se referindo anterioridade da tradio de crtica ao aristotelismo tomista, em grande parte devida convivncia de diversas interpretaes de Aristteles desde a Idade Mdia. Assim, teria sido exatamente pelo fato de esse edifcio cultural ter conseguido mais ou menos se consolidar precocemente que o mesmo pde resistir, ou mesmo se fechar, s influncias indesejadas nos sculos XVI e XVII. Est aqui presente, sem dvida, a concordncia sobre a singularidade da Idade Mdia, assim como sobre as caractersticas acima apontadas para diferenciar a Espanha moderna dos demais pases europeus. Mas h uma diferena de perspectiva em relao a Lins. Enquanto Lins argumenta que o fato de o break com a tradio ocidental ter ocorrido muito cedo desestimulou uma modernizao bem-sucedida, Green no aponta nem um rompimento num momento preciso, nem uma no-modernidade posterior. O que conclumos da leitura de seu trabalho que teria ocorrido uma diferenciao paulatina, porm constante, entre a histria intelectual espanhola e a norte-europia.

Minha caracterizao da modernidade medieval na Espanha inclui a concordncia com as teses de Maravall, Morse, Lins e Otis Green, que afirmam a singularidade da Idade Mdia e do Renascimento l. De fato, a convivncia entre catlicos, judeus e rabes, j existente quando da redescoberta de Aristteles nos sculos XII e XIII, possibilitou a emergncia e a convivncia, desde cedo, de diferentes leituras do mesmo, assim como de crticas mais ou menos radicais a ele. O que nos incita a concluir que a postura crtica em relao ao aristotelismo foi anterior aos sculos renascentistas e, claro, diferente. Pois no se tratava de oferecer um enfoque alternativo ao de Aristteles -- como ocorreu quando da retomada do neoplatonismo durante o Renascimento --, mas de uma disputa sobre qual seria a melhor leitura, a melhor interpretao e, quando das novas descobertas do sculo XVI, de confrontlo e modific-lo a partir de conhecimentos advindos das novas observaes e descobertas. Assim, num momento em que muitos pensadores no restante do continente viravam as costas para o passado, atacando Aristteles, e outros buscavam satisfao nas doutrinas de Cardano e Paracelso, os espanhis tomaram um outro tipo de deciso coletiva. Quando e stava prxima de se tornar uma nao de msticos, a Espanha voltou suas costas para as tendncias msticas e franciscanas do escotismo. Silenciosa, mas firmemente, apostou na superioridade da razo aristotlica. Pois a escolstica medieval foi extremamente racionalista, especialmente se comparada com as vrias tendncias mgicas e irracionalistas que floresceram durante a

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12 Renascena. Ainda que seja verdade que a Espanha permaneceu mstica, isso se deu muito mais apesar do escolasticismo ortodoxo do que devido a ele. A Espanha rejeitou tambm o nominalismo, escolhendo a via de Bacon. Seguiu a via de Francisco Surez mais do que a de Hobbes ou Locke. A vitria do escolasticismo e a rejeio do nominalismo e do escotismo teve, por certo, uma histria plena de debates e disputas intelectuais. A opo pela modernizao da metafsica, expressa principalmente no trabalho de Francisco Surez, no foi um ato isolado sem qualquer repercusso no estrangeiro. Ao contrrio, esses esforos filosficos renderam frutos no trabalho de Leibniz, Spinoza e nas universidades alems. Enfim, ainda que no sculo XIX os trabalhos dos filsofos espanhis tenham sido considerados letra morta, o escolasticismo barroco espanhol voltou a despertar um renovado interesse em nossos dias.

As inovaes que a Espanha produziu na teoria do direito (Francisco de Vitria) e na metafsica (Francisco Surez) foram adaptadas em outros pases para as necessidades de seus prprios sistemas filosficos e, eventualmente, relegadas ao esquecimento na medida em que a prpria metafsica, enquanto disciplina, foi sendo progressivamente empurrada para o background. tambm evidente, por outro lado, que a Espanha no se interessou em seguir os seus pensadores humanistas ou filsofos crticos, entre os quais po demos identificar precursores de Bacon e de Descartes (Juan Luis Vives, Francisco Snchez, Gomes Pereira etc.). Seu interesse foi fortemente direcionado no sentido de manter a hegemonia do aristotelismo tomista, ainda que renovando essa tradio de uma maneira bastante original.

A preveno contra o novo foi, entretanto, seletiva e bastante complexa. Ao mesmo tempo que inovaes no campo da literatura e da arte eram bem- vindas, obstculos crescentes eram erguidos penetrao de novos pensamentos cientficos ou religiosos. A opo pela atualizao da sntese aristotlico-tomista que ento se efetuava implicava manter a filosofia natural e a astronomia com o status que haviam possudo durante a Idade Mdia: o de disciplinas auxiliares da teologia. Isso no impediu que se encontrassem l excelentes cientistas, como no impediu que se identificassem representantes do individualismo moderno. A grande diferena em relao aos demais contextos que a sociedade como um todo teve uma resistncia muito maior a incorporar a nova racionalidade (da cincia e/ou da conscincia) porque j havia institudo (ou remodelado) sua prpria racionalidade. Eles elaboraram precocemente uma racionalidade escolstica, porm moderna (ou poderamos

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13 dizer, moderna, porm escolstica). Dela a cultura ocidental recebeu contribuies fundamentais relativas a novas abordagens em metafsica, teoria do direito, antropologia etc. Mas essa modernidade escolstica teve srias restries quanto ao emergente ideal de cincia e nova valorizao da conscincia (a certeza objetiva e subjetiva caracterstica da racionalidade moderna).

Entender como se constituram as abordagens inovadoras em metafsica, antropologia, histria, teoria do direito ou filosofia entender, ao mesmo tempo, a forma de enfrentamento do mundo ibrico em relao s mudanas que ento se processavam nos territrios da cincia e da conscincia religiosa. a que est o desafio dessa modernidade: tentar manter a primazia da escolstica e adapt-la aos novos tempos. Uma tarefa gigantesca e com resultados incertos. Pois a modernizao da escolstica era, sim, compatvel com vrias das atitudes modernas -- crtica ao critrio de autoridade, valorizao da observao e da experincia pessoal etc. -- mas era intrinsecamente incompatvel com o novo ideal de cincia, que implicava a substituio de uma epistemologia baseada no ficcionalismo e no probabilismo por uma nova, amparada na certeza objetiva a partir da prova demonstrativa. Da por que a renovao da escolstica que ento se efetuava no podia conviver com o novo status epistemolgico que a filosofia natural e a astronomia vinham adquirindo, o de geradoras de um mtodo nico, a ser generalizado aos demais campos do saber.

A escolstica barroca dos sculos XVII e XVIII foi um dos modos de reagir frente aos problemas fundamentais da poca moderna. Tentou-se repetir na Idade Moderna uma sntese to ou mais difcil do que a que santo Toms elaborou para a Idade Mdia. Assim como santo Toms havia assimilado a filosofia aristotlico-rabe dentro de um grande sistema de filosofia, os filsofos e telogos espanhis enfrentaram os novos problemas mediante uma assimilao enrgica de todas as dificuldades filosficas do passado. Mas, como nos adverte Ferrater Mora (1955: 101), isso foi feito de uma forma moderna: quaisquer que fossem suas crenas filosficas, ensaiaram uma metafsica que pudesse chegar a ser, e que chegou a ser, epistemologicamente autnoma.

A constatao de que a escolstica jesutica e o sistema filosfico de Surez parecem ter fracassado em ocupar o primeiro plano da filosofia moderna no demonstra que no fossem modernos. Surez formulou o problema fundamental do homem moderno. No se tratava mais simplesmente de como ganhar o cu, ou do alcance da liberdade humana, ou das bases daEstudos Histricos, Rio de Janeiro, n. 20, 1997

14 concrdia, e sim da busca de um princpio ontolgico do qual pudesse resultar o restante. Ao acercar-se o momento crucial da crise histrica e filosfica, o homem tinha que se decidir a saber o que era ser, em ltima instncia ( que o problema primordial da filosofia), pois s isso poderia permitir-lhe falar de um mtodo para descobrir o que poderia ser conhecido de cada ser. E foi por ter tentado fazer isso que Surez foi levado a srio pelos filsofos do sculo XVIII. Ele foi moderno como Descartes: ambos colocaram os mesmos problemas, ainda que as solues tenham sido diferentes. Ambos seguiram o mesmo movimento histrico moderno e foram expresses diferentes do mesmo. Surez manteve a doutrina de santo Toms e sua verso de tradio aristotlica, ao mesmo tempo que incorporou o criticismo de Duns Scott (concedendo um maior espao para o voluntarismo divino), num esforo de adaptar a filosofia tomista s novas condies histricas: a polmica catlico-protestante, a emergncia dos Estados nacionais europeus na forma de monarquias absolutistas e imperiais etc. Seus ensinamentos, exceto no que concerne sua filosofia poltica, tornaram-se um tipo de doutrina ortodoxa no-oficial da monarquia catlica.

Surez foi a corporificao da forma pela qual a neo-escolstica reagiu ante os problemas fundamentais da poca moderna. Essa tentativa de revitalizar a tradio medieval, empreendida por Surez, Luis de Molina, Benito Pereira e outros, no pode ser interpretada como uma reminiscncia inerte do passado. O fato de ter sido um esforo que no teve pleno xito no nos permite concluir que tenha sido um fenmeno imutvel e solitrio. J os matemticos e fsicos espanhis do fim do sculo XVII e do sculo XVIII iriam tentar uma nova conciliao entre fsica e teologia, que culminou dando uma soluo ecltica ao desafio de assimilar a cincia moderna sem contradizer a f.

A soluo ecltica foi talvez a nica forma possvel de sobrevivncia para as diferentes gradaes de reformadores-inovadores, bem como para a prpria doutrina neotomista oficial, num mundo onde as teorias dos cientistas modernos vinham sendo crescentemente aceitas. O ecletismo deu o tom da recepo no s da cincia como tambm da filosofia moderna na Espanha e na Nova Espanha (Mxico). No Velho Mundo podemos perceber a soluo ecltica na forma como o movimento inovador lidou com o copernicanismo, bem como em outros aspectos da filosofia moderna. Essa soluo culminou em uma incorporao dos trabalhos dos cientistas e filsofos modernos nas universidades, mas de uma forma no-orgnica. No Novo Mundo a postura ecltica assumiu feies particularmente interessantes devido sua

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coexistncia com o sincretismo tnico e religioso que teve origem desde o incio do sculo XVI.3. A modernidade neotomista no Novo Mundo Se impossvel negar a existncia de uma crise na Espanha no sculo XVII, possvel e interessante contrast-la com a situao na Nova Espanha, onde a crise do barroco no foi sentida com tanta intensidade. Segundo Octavio Paz, enquanto a velha Espanha estava perdendo o seu plano nacional, a Nova Espanha estava construindo o seu. O catolicismo era uma religio velha e uma fora defensiva no Velho Mundo, mas uma fora criativa na Nova Espanha. De forma que, naquele contexto, o neotomismo se adaptou talvez melhor Nova Espanha do que velha. Uma vez que a filosofia era destinada a fornecer a justificativa lgica e racional da revelao crist, o neotomismo forneceu a base da educao e da evangelizao do imprio espanhol no Novo Mundo. Assim podemos detectar na Ibero-Amrica, alm das formulaes modernas dos jesutas j assinaladas para a Espanha, um ambiente de grande vitalidade cultural, que pode ser ilustrado nos trabalhos de soror Juana Ins de la Cruz e Carlos de Siguenza y Gngora.

As idias e formas intelectuais e artsticas da gerao de soror Juana no foram apenas dela; eram, de fato, j velhas. O ardor, a curiosidade, e desejo de aprender daquela gerao de mexicanos so impressionantes. Situada entre dois mundos e duas eras, essa gerao representou, de um lado, um florescente nascer do sol -- contrastando com o crepsculo cinza da Espanha -- e, de outro, uma alvorada prefigurando uma nova sociedade. O universalismo (transnacionalismo) que sempre havia orientado a Companhia de Jesus e muitas vezes havia culminado em conflitos com os Estados nacionais no cenrio europeu, atuou como o modelador do sentimento crioulo na Hispano -Amrica. O universalismo dos jesutas era, a rigor, um sincretismo universalizante que tentava fazer a religio catlica compatvel com a antiga religio meso-americana (e, no caso da China, com o confusionismo). Tal procedimento demandava uma alterao radical das crenas no -crists e, por vezes, das crists. O reconhecimento de que as prticas religiosas j existentes entre esses povos no eram de todo incompatveis com o cristianismo foi algo novo e que conflitou com a prtica dos dominicanos e franciscanos. Enquanto esses consideravam os deuses astecas demnios e

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16 queriam pr um fim s antigas religies, os jesutas e homens como Carlos Siguenza y Gngora consideravam-nos figuras histricas e queriam utiliz-los. O que orientava o missionarismo moderno dos jesutas no era uma converso que conduzisse ao reino de Deus ou ao fim do mundo nos moldes do milenarismo dos franciscanos no sculo XVI, mas sim que levasse ao movimento ascendente da histria universal. Paz detecta, nessa tcnica de converso, uma desconcertante combinao de piedade e clculo, f e maquiavelismo.

O ponto a ressaltar aqui que os jesutas tentaram, ao mximo, conjugar o cristianismo com as novas descobertas, seja de novas religies (como a chinesa ou as meso-americanas), seja de novos conceitos e experimentos cientficos. No primeiro caso, a estratgia foi o sincretismo universalista, supondo que todas as religies j tinham em si um qu de cristianismo. No segundo, a possibilidade de sobreposio e a soluo ecltica, procurando integrar as novidades cientficas em uma explicao do mundo basicamente religiosa (catlica). interessante observar, entretanto, que essa opo pelo sincretismo inspirou-se, conforme nos lembra Octavio Paz, no no aristotelismo tomista, mas na patrstica medieval e no neoplatonismo hermtico da Renascena, um movimento impregnado com filosofia antiga e racionalismo, cincia e magia. Dentro desse movimento seria possvel identificar duas correntes: a da religio astral (Bruno, Campanella, Agrippa, Pico de la Mirandola) e a dos jesutas (que tentavam conciliar as religies no -crists com o catolicismo romano).

As duas melhores mentes do sculo XVII mexicano -- soror Juana Ins de la Cruz e Carlos de Siguenza y Gngora -- foram profundamente influenciadas por essa perspectiva dos jesutas e abertas s novas idias cientficas. Ambos foram particularmente impressionados pelo trabalho do padre Kircher, um jesuta alemo que tentou uma sntese entre as religies universais. No seu trabalho, o sincretismo dos jesutas atinge o auge: a Roma catlica aparece como o centro para o qual todas as demais religies convergem, e o Egito antigo e seu profeta Hermes Trimegistus como a ponte entre o catolicismo e as demais religies, uma vez que Hermes j teria intudo o mistrio da trindade. Kircher deixou especulaes histricas e mitolgicas, bem como trabalhos cientficos. Foi tambm muito interessado em fsica (ptica), astronomia e cincia natural, e esteve em contato com grandes pensadores europeus, com destaque para Leibniz. Seu trabalho conjuga trs correntes conflitantes: o sincretismo catlico (da Sociedade de Jesus do sculo XVII), o hermetismo neoplatnico egpcio e os novos conceitos e descobertas da fsica e da astronomia.

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17 A freira e poeta soror Juana Ins de la Cruz considerava o trabalho de Kircher como uma janela atravs da qual ela podia ver as mais audaciosas especulaes e descobertas da nova cincia sem o perigo de ser acusada de heresia. Atravs de um pensador como Kircher, ela podia mesmo vislumbrar os vastos territrios que se estendiam alm dos limites delimitados pela Igreja. Tais territrios eram, ao mesmo tempo, reais e quimricos: um Egito abstrato dotado de obeliscos inscritos com signos mgicos e frmulas matemticas, enigmas, instrumentos cientficos etc. Cabe ressaltar, no entanto, que, ao contrrio do que se possa pensar, a convivncia da nova cincia com as idias do hermetismo renascentista, da alquimia e da cabala no eram absolutamente incomuns na Europa do sculo XVII. A rigor, poucas mentes foram imunes a isso. E mais, sem o hermetismo, a alquimia e as especulaes mgicas, o empirismo da cincia moderna no teria sido possvel. A noo bsica de experimentao nasceu da atitude livre e irreverente do mgico em relao natureza, de seu intenso interesse pelos fenmenos naturais (Paz, 1988: 177).

O trabalho autogrfico de soror Juana foi o primeiro na histria do pensamento iberoamericano no qual aparece uma atitude verdadeiramente moderna frente natureza. Seu ponto de vista no era nem o da filosofia tradicional nem o da religio: ela no estava interessada na ordem csmica ou nos eventos sobrenaturais, mas nos fenmenos naturais. Essa atitude teria sido, contudo, inimaginvel sem as especulaes e interpretaes de Kircher, nas quais as fronteiras entre empirismo cientfico e especulaes fantsticas tornaram-se extremamente tnues e havia a constante busca de um acordo entre a nova fsica e a antiga. Em questes de astronomia, por exemplo, ele adotou o sistema de Tycho Brahe, expressando um compromisso entre Coprnico e Ptolomeu.

Soror Juana, embora no se tenha pronunciado diretamente sobre a nova astronomia -provavelmente por precauo --, parece ter estado bastante integrada com as novas idias e com o novo clima intelectual. Sua afinidade com a nova astronomia, a nova fsica e a nova filosofia no aparece atravs de qualquer referncia a Coprnico, Descartes ou Galileu, mas no compartilhar de uma viso que no era, estritamente falando, derivada ou deduzida da nova cincia: a infinidade do universo (elogiada por Bruno e lamentada por Pascal), a ausncia de um centro csmico, a pluralidade de mundos habitados etc. Seu mais famoso poema, O primeiro sonho, considerado poeticamente perfeito, tem como tema o ato de conhecer, que ento assume a forma de um ato de transgresso. Na melhor tradio platnica, a razo,

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18 enquanto paixo intelectual, convida o esprito a acompanh-la em uma extraordinria aventura epistemolgica. E, frente s enormes dificuldades, quando o conhecimento parece algo inacessvel, ela convida o leitor a tentar vias novas. A forma como ela mistura a tradio platnica com o racionalismo aristotlico-tomista denuncia, no entender de Paz (1988: 201),

uma atitude surpreendentemente moderna, ainda que sem romper com o paradigma . Don Carlos de Siguenza y Gngora (1645-1700) foi cosmgrafo de Carlos II e publicou uma obra bastante variada: Mercrio Volante (o primeiro peridico mexicano), poesias, obras geogrficas, sobre astronomia e cometas. Diferentemente de soror Juana, seus trabalhos evidenciam uma familiaridade com Gassendi, Kepler, Galileu e Descartes. Mas , como ela, sofreu uma decisiva influncia dos trabalhos do jesuta alemo Athanasius Kircher. A obra de Siguenza y Gngora , nas palavras de Bernab Navarro, um fato capital na histria das idias no Mxico por ser a expresso de um perodo crucial do passado histrico: o da transio entre duas idades, a Mdia e a Moderna, e entre dois mundos, o Velho e o Novo. Sua obra

Libra astronmica y filosfica (1690) transmite, segundo Jos Gaos (1959: 8), essas duas transies:

La obra delata en el nimo del autor una peculiar coyuntura de lo americano y lo europeo en funcin de lo nuevo y de lo viejo entendidos como moderno y medieval. La Libra documenta los cuatro cardinales puntos distintivos o caracteristicos de la obra toda, vida y personalidad de don Carlos, por lo que es el gran percursor del siglo del esplendor en Mxico: enciclopedismo de sugere a idia deyduas balanas: amodernidad de su obra y libra O ttulo Libra astronmica y filosfica su saber posicin...; jesuitismo, en filosfica colocaria o padre jesuta Eusbio Francisco Kino em um dos pratos e o prprio autor no outro. Y alli se vera con evidencia quin se quedaba en el aire y quinmodernidad que es el sentido de una conciliacin del catolicismo y la haci a ms peso con sus razones y autoridad -- e, conseqentemente, quem conseguiria provar a libra esencial A la astronmica. a obra foi escrita como rplica s crticas que o padre Kino havia dirigido aos estudos de Don Carlos sobre os cometas, ainda que sem mencion-lo literalmente. Em Compaia de Jesus.Exposicin astronmica del cometa, publicada em 1681, Kino sustentava que, ainda que noEstudos Histricos, Rio de Janeiro, n. 20, 1997

19 pudesse provar que os cometas eram fonte de azar ou calamidade, considerava-os repulsivos, e invariavelmente anunciavam eventos sinistros. O cometa de 1680 foi um fenmeno amplamente debatido na Europa e na Amrica. S que, na Amrica, a polmica no foi propriamente acerca dos cometas como corpos puros, ou sobre se seriam eles fenmenos celestes ou terrestres, e sim sobre o significado de sua apario para os homens, sobre sua interferncia com o humano. Foi uma polmica prpria do trnsito histrico da arcaica concepo astrolgica dos cometas para a moderna concepo astronmica deles. Essas duas concepes se fundavam em pontos ou aspectos muito diferentes: a tradio, a autoridade, desde a revelao religiosa at a mera superstio, a observao, a experincia, a induo cientfica etc.

Don Carlos critica a astrologia como sendo uma cincia fundada em uma tradio supersticiosa. Sua astronomia a copernicana, ainda que aceita apenas hipoteticamente, como foi corrente nos meios religiosos, devido ao fato de os mais ortodoxos continuarem a consider-la incompatvel com as Sagradas Escrituras. O esforo de Don Carlos foi no sentido de reconciliar f e cincia adotando um sistema aceitvel. Quanto cometologia, as referncias de Don Carlos atestam uma conscincia dos limites do conhecimento cientfico. Ele inicia seu manifesto dizendo que nadie hasta ahora ha podido saber con certidud fsica o matemtica de qu y en dnde se engendran los cometas. Com esse pressuposto, e entendendo serem os cometas coisas que no podem se sujeitar regulamentao da natureza por procederem diretamente de uma criao divina, prope que eles sejam venerados como obra do Supremo Artfice sin pasar a investigar lo que significan, que es lo proprio que quererle averiguar a Dios sus motivos. Impiedad enorme de los que son sus criaturas. O

Manifesto contra los cometas despojados del imprio que tenan sobre los tmidos caracteriza-se, antes de mais nada, pela moderao. Encontramos em Carlos Siguenza, um dos homens mais bem informados de seu tempo, duas eras em conflito. Ao mesmo tempo que nega modernamente que os cometas tragam ou anunciem azar, ele reconhece abertamente a sua ignorncia sobre o verdadeiro significado do fenmeno, afirmando que deveriam ser venerados como um trabalho de Deus. As referncias a Descartes, Gassendi e Kepler

coexistem com aquelas a Pico de la Mirandola e Kircher. Essa modernidade vacilante, conforme a chamou Octavio Paz, seria ilustrativa da modernidade medieval no Novo Mundo.

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20 4. Concluso A introduo da filosofia e da cincia modernas na Espanha e na Nova Espanha, no final do sculo XVIII, foi uma tentativa de orquestr-las com a tradio religiosa. O decisivo apoio dos nobres, financiadores dos grupos de inovadores, bem como a emergncia do despotismo ilustrado personificado em D. Jos I, deram Espanha a deciso de incorporar a cincia moderna como parte de um projeto maior de modernizar a educao e as universidades do pas. Durante o perodo conhecido na Europa como Ilustrao, ibricos e ibero-americanos estavam-se colocando problemas com os quais a modernidade europia j se havia defrentado no sculo XVII (Descartes, Gassendi etc.).

Mas a compreenso dessa modernidade, na Espanha ou na Nova Espanha, no deve se limitar s influncias recebidas da Ilustrao europia. Segundo Pablo Gonzlez Casanova, uma influncia decisiva a ser considerada foi a da filosofia crist, sua guia original. Pois foi a filosofia crist que deu modernidade mexicana sua delimitao e congruncia, demonstrando a possibilidade de uma renovao controlada atravs de um mtodo que acabou se tornando um sistema: o ecletismo. O ecletismo foi o sistema filosfico que melhor se enquadrou na modernidade. Segundo Casanova, o ecletismo se explica atravs da modernidade; mas o inverso no verdadeiro. A modernidade compreende, segundo Casanova (1948: 203), resultados muito maiores no pensamento hispano-americano do que o ecletismo: A modernidade uma corrente de esprito amplssima; o ecletismo um sistema filosfico determinado, que se pode compreender atravs dela e que, junto com ela, ajuda a compreender o entusiasmo pelas cincias. A atitude da modernidade mexicana frente s inovaes da filosofia e da cincia europias a mesma que a filosofia crist havia assumido em pocas anteriores para absorver o pensamento no cristo que a atraa e lhe permitia evoluir. Assemelha-se muito absoro que o tomismo fez do aristotelismo. Portanto, para explicar o funcionamento dessa modernidade, h que considerar a atividade dos filsofos cristos em suas melhores pocas. Nos dois contextos, tratou-se de prover a filosofia crist de valores que lhe eram estranhos: embora as idias variassem segundo as pocas, o mecanismo de absorv -las era o mesmo.

A modernidade mexicana considerou que se devia crer com nimo crescente em tudo o que ensinava a Igreja. Mas nas disciplinas naturais e humanas limitava a autoridade dos padres eEstudos Histricos, Rio de Janeiro, n. 20, 1997

21 dos filsofos; e exigia, para crer, a idoneidade da idia com a realidade. Nas matrias histricas nas quais eventualmente tocou, deu as regras necessrias para a utilizao das fontes. Os filsofos modernos mexicanos reforavam a idia tomista de que toda autoridade que no adviesse da revelao divina devia ser tida em menor conta. O fortalecimento dessa idia implicou, de fato, a renovao da filosofia. Tal modernidade, embora no exigisse a presena constante de Deus nos trabalhos de fsica, tambm no admitia que a fsica tratasse de questes metafsicas. Entendia que o fsico deveria ter como fonte prpria a experincia, e tendeu a estudar mais a fsica experimental do que a especulativa. No que se refere fsica especulativa, manteve em grande parte a forma antiga de argumentar. Foi um terreno favorvel convivncia de doutrinas novas com mtodos velhos. Os temas considerados menos perigosos eram o das matemticas, fsica experimental e natureza. E foi exatamente neles que se expressaram com mai or clareza as novas idias, livres de preconceitos. Mas mesmo nesses temas matemticos e naturais pode -se descobrir, segundo Casanova (1948: 183-193), o compromisso de tal modernidade com o cristianismo, ainda que no em sua forma ortodoxa.

Os jesutas, que desempenharam um papel decisivo na modernizao da cincia e da filosofia na Espanha, na Europa e no ultramar, foram habilidosos em formulaes eclticas. Sem romper com a estrutura heterognea do universo, entendiam que o verdadeiro conhecimento da natureza (fenomnico, emprico) era o conhecimento obtido por meio da observao rigorosa e da observao metdica do mundo sensvel, disposto e organizado segundo a matemtica. Conseqentemente, era necessrio distinguir a fsica da metafsica: e, mais precisamente, separar o verdadeiro conhecimento da natureza, oferecido pela fsica moderna, da falsa fsica amparada no argumento de autoridade. Nisso eles avanam, em relao ao reconhecimento da matemtica como sendo de grande auxlio para os clculos astronmicos e a confeco de calendrios, mas no no reconhecimento dela como sendo a linguagem por meio da qual a natureza se expressava. A distino entre fsica e metafsica abriu-lhes filosoficamente as portas para a aceitao da fsica moderna (a verdadeira) tomada em seus fundamentos ou, pelo menos, para uma das doutrinas principais dessa fsica, o atomismo. Mas o que os singulariza que a aceitao do atomismo e do corpularismo de Descartes no fez deles menos escolsticos. No campo estritamente filosfico, no aceitavam que o corpo fosse divisvel em elementos ou princpios que continuassem sendo corpos, pelos meios da fsica experimental ou da matemtica. Os corpos s seriam divisveis mediante a

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22 abstrao filosfica em princpios ou elementos que j no eram o corpo real e concreto, como seriam os tomos, e sim componentes incompletos, inexistentes por si mesmos ou como corpo. Em suma, o atomismo deles no era filosfico, o que seria inclusive contraditrio com a soluo que do ao problema. Eles aceitavam o atomismo exclusivamente para a fsica (a terrestre) opondo -se s objees dos escolsticos ortodoxos.

Na Nova Espanha, o padre Clavjero, um jesuta entusiasta da nova fsica e do atomismo, depois de rechaar os quatro elementos dos peripatticos e dos qumicos porque pueden resolverse en corpsculos y tomos, estabeleceu a sua prpria tese: No hay otros elementos fuera de los tomos, pues stos (...) son cuerpos simples de los cuales se componen todas las cosas y en los cuales se resuelven todas. Na concluso, entretanto, ele tentou conciliar com a tradio: daremos todavia el nome de elemento al fuego, al agua, a la tierra y al aire, aunque sostenemos que se hallan compuestos de elementos. J o padre Abad, tambm jesuta e vivendo no Novo Mundo, defendia que muitos dos termos e das explicaes dos atomistas e corpusculares (Gassendi e Descartes) coincidiam ou podiam coincidir com os escolsticos. Mas reconhecia a superioridade dos modernos no que se referia comprovao de suas hipteses: certamiente la demonstracin es muchssimo mejor cuando se fundamenta en el experimento mismo. Na Espanha encontramos tambm atomistas declarados -- Luis Rodrigues de Pedrosa e Issac Cardoso -- cujo atomismo tinha razes muito concretas em autores renascentistas espanhis como Francisco Valles, Gomes Pereira e Pere D'Olesa. Eles pertenciam quela tendncia j referida dos que se propunham resolver o problema da defasagem da cincia espanhola, revalorizando a tradio cientfica renascentista.

Quanto aos jesutas cientistas mexicanos cujos trabalhos foram estudados por Bernab Navarro (1983), fsica moderna -- denominada por eles o verdadeiro conhecimento da natureza ou a verdadeira fsica -- que esto se referindo quando expressam sua simpatia pelo atomismo ou pelo copernicanismo. Tanto uns quanto outros demostram simpatia pelas teses de Coprnico, tentando compatibiliz-las com a de Tycho Brahe. O padre Clavjero no descarta totalmente sequer o sistema de Ptolomeu: No me es menos difcil entender los movimientos de Coprnico que los de Ptolomeo o Tycho. Escolheu o de Tycho porque el sistema copernicano no concordaba con las escrituras, ni el ptolomaico con los

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23 fenmenos. Assinala, entretanto, que as idias de Tycho se adaptam perfeitamente astronomia, mas no fsica (da no poder defend-las integralmente). O que os singulariza na histria do pensamento ocidental foi o modo como eles resolveram o dilema de aceitar a fsica moderna, mantendo-se escolsticos em pontos fundamentais de doutrina; ou seja, foi a soluo ecltica, de aceitar as doutrinas e principalmente o mtodo moderno incorporando-os ao substrato fundamental da filosofia escolstica. O padre Dvila enfatizava, ao lado da necessidade de leitura dos clssicos (Plato, Aristteles etc.), a necessidade de conhecer Descartes, Leibniz, Newton e outros modernos de primeira magnitude. Particularmente no que se referia fsica moderna, o padre Clavjero enfatizava que os fatos conhecidos a partir dela eram el resultado de la secular investigaci n de los hombres ms sbios y que son admitidos por los filsofos sin distincin de escuela o sistema. Em suma, os cientistas jesutas do sculo XVIII estavam a par da cincia moderna. Em astronomia e fsica chegavam mesmo a preferir as formulaes modernas s escolsticas: manchas e partes mais brilhantes do sol, corruptibilidade dos corpos celestes, distncia entre as estrelas fixas, superioridade das rbitas dos cometas com respeito lunar, teoria da gravidade etc. Em seu curso de filosofia, o padre Abad ousou examinar se, de fato, a matria celeste era de uma espcie diversa da sublunar; uma ponderao altamente audaciosa, porque se chocava com a tese escolstica da incorruptibilidade dos cus e da heterogeneidade do universo.

A preocupao em assimilar a cincia moderna, sem digerir muito bem e sem produzir algo positivo, deu mais a impresso de um combatente que finalmente reconhece a autoridade do adversrio. sintomtica, nesse sentido, a perda de originalidade, mesmo por parte dos cientistas jesutas que vinham tentando ser modernos sem romper com o que consideravam ainda aceitvel da viso medieval de mundo e de cincia. De forma que o sculo XVIII chegou ao fim com a aceitao das teorias de Coprnico, Galileu, Descartes, Newton e outros nas universidades e instituies educacionais em geral, mas como uma espcie de deciso ideolgica ou mesmo burocrtica frente constatao da defasagem da cincia e filosofia espanholas em relao ao que se desenvolvia nos pases vizinhos. Conforme disse Unamuno, a cincia moderna e outros elementos fundamentais da modernidade (moderna) no penetraram, de fato, na alma ibrica (ou na ibero-americana).

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