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Miguel Torga - Poeta Ibérico

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Sabemos que o que verdadeiramente une e enriquece as pes- soas das várias pátrias são os laços culturais. Estes laços são o verda- deiro cautério que sara as feridas que a vizinhança e a história provocam. Este livro, Miguel Torga, Poeta ibérico, pretende ser precisamente uma aposta a fa- vor de uma compreensão peninsular através do cultivo do pensamento poético e fi- losófico. O autor, partindo da sua cultura espanhola empreende uma visão da obra poética de um escritor português. Acompanhado por Ortega y Gasset e Miguel de Unamuno, dois expoentes máximos da cultura espanhola do século XX, ambos com propostas diferentes e complementares, a de uma filosofia sistemática e vital e a de um lirismo filosofante, o autor perspectiva a mensagem do poeta transmontano. Se é certo que Miguel Torga se presta a uma leitura da sua escrita desde a razão lírica para a compreensão peninsular pelas suas afinidades vitais e estéticas, não é menos certo que Ortega e Unamuno são ímpares parceiros da viagem

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Miguel Torga, Poeta Ibérico**********************

A todos quantos contribuem, por meio da cultura,

para que Espanha e Portugal, sejam pátria, não

exílio, para portugueses e espanhóis.

****************** La saudade, ese delicioso morir

diluído en melancolia atlântica, no esacaso la grande institución nacional

de Portugal ?

José Ortega y Gasset*************

Portugal merece ser estudiado y conocidopor los españoles.

Hago un viaje allá por lo menos una vezal año, y cada vez vuelvo más prendado deesse pueblo sufridor y noble. Pero a lo que

me he aficiado decididamente es a laliteratura portuguesa. A la moderna,

quiero decir.

Miguel de Unamuno.Menção especial merece ao autor o desespero religioso do poeta

que é analisado por meio da razão vital e histórica. O estudo atinge o

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Prólogo

Todo e qualquer texto é um pretexto. Pretexto para falar do que se ama, ou sonha e imagina, ou preocupa. Pretexto este Miguel Torga, poeta ibérico para falar da perspectiva espanhola da cultura portuguesa à luz da filosofia de Ortega e das ideias de Unamuno..

Este texto foi escrito em Portugal pensando em Espanha, tomando em conta os espanhóis que são sensíveis às preocupações sócio - culturais da Península. Por isso nos acercamos de um poeta português de vibração dramática e de perfil espiritual «agóníco», muito afim de Miguel de Unamuno e que admirava a Ortega y Gasset. Precisamente porque os traços essenciais do poeta português nos pareceram muito unamunianos, intitulamos inicialmente este estudo Miguel Torga, poeta português sob o signo de Unamuno e que por razões de uma perspectiva maior, mais filosófica, nos aconselharam a modificá-lo, substituindo-o pelo título concreto que apresenta agora e que foi considerado na altura pelo professor universitário e crítico, Álvaro Manuel Machado, como «o melhor estudo sobre o poeta transmontano».

Convictos como estamos de que Espanha precisa de Portugal e vice-versa, pensámos sempre em Espanha ao longo deste exercício de compreensão de Miguel Torga. (Esta ideia exposta em 1978 será defendida mais tarde por Saramago em A jangada de pedra em 1986). Sendo Espanha, como é, um feixe de perspectivas sócio - culturais e linguísticas, inclui também Portugal. Porque Espanha não é somente Castela, como por vezes parece haver quem queira pensar, mas também os espaços humanos das suas orlas marítimas, mediterrânica e atlântica. Disso nos tem certificado o actual processo político de democratização através do movimento das «autonomias regionais» ou das «nacionalidades» — movimento que já Ortega preconizava em 1930 como único sistema capaz de potencializar a vida social das províncias com efeito, o novo

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projecto democrático da Espanha está a pôr em crescente relevo a pluralidade de âmbitos culturais e linguísticos. A Espanha é uma comunidade diversificada — e essa diversificação cultural deverá tornar-se extensiva ao caso português.

Portugal, como comunidade típica, com a sua história e cultura próprias, estruturadas ao longo de oito séculos de independência política, nem por isso deixa de sentir-se profundamente irmanado, por afinidades sócio - históricas, com as restantes zonas culturais espanholas que foram aglutinadas por Castela, a dos Reis Católicos e do século XVI, através de um projecto político universalizante.

Que as afinidades entre Portugal e Espanha têm sido constantes e profundas, é realidade mais que evidente. Basta recordar o hispanofilismo de muitos portugueses, a prática do bilinguismo, como nos casos de Gil Vicente, Camões e D. Francisco Manuel de Melo; e também o lusofilismo de muitos espanhóis, desde Lope de Vega, Tirso de Molina, Calderón de la Barca, que atribuíram a Portugal um lugar de honra na sua dramaturgia, até aos mais próximos de nós, como Feijóo, Juan Valera, Menéndez y Pelayo, Unamuno, Antonio Machado e outros. As afinidades literárias são de tal ordem que Menéndez v Pelavo sempre entendeu que os dois países formam uma unidade espiritual, sem prejuízo da originalidade de qualquer dos dois. E sendo a Península uma unidade étnica e espiritual, como pensava o polígrafo santanderino, teria isso mesmo que reflectir-se na expressividade fundamental dos povos que é a sua literatura.

O fundamento histórico destas afinidades literárias está patente, de modo incisivo, na teoria sobre a formação do habitante moderno da Península, seja ele espanhol ou português, que foi elaborada pelo crítico literário e historiador Américo Castro. Segundo este autor, o actual habitante peninsular, com excepção dos vascos, seria resultante do cruzamento de três castas de crentes, a partir do século VIII: muçulmanos, judeus e cristãos. (Esta teoria defendida por Américo Castro será brilhantemente contrariada pelo

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historiador, Cláudio Sánchez Albornoz em «España- Un Enigma histórico»).

Ao longo das guerras de reconquista contra o invasor mouro, a aculturação entre os três grupos humanos foi conformando a estrutura psico-social da futura casta vencedora — a cristã — que viria a caracterizar o habitante actual da Península, tanto na orla atlântica portuguesa como no restante espaço peninsular. É neste conflito religioso-sócio-político de três castas de crentes que se situam as raízes históricas da moderna Ibéria. A Península, historicamente, é filha de um acto de fé religioso, da luta pela defesa dessa fé e das represálias que a mesma fé determinou. O que viemos a ser, nós peninsulares, tem origem num conflito de castas de crentes. A Península Ibérica é diferente do resto da Europa devido à diferença da sua génese histórica. (Américo Castro, «La Realidad histórica de España»)

Esta identidade de génese histórica determina que a inter-cultura das duas realidades políticas, Espanha e Portugal, seja constante. Fidelino de Figueiredo pôde utilizar essa fórmula, qualificada de «brilhante» por Dámaso Alonso, no prólogo a «Unamuno y Portugal» de Julio Garcia Morejón, para comparar a evolução histórico-cultural portuguesa com a evolução cultural espanhola sob um signo de «paralelismo e assincronía» — com isso significando que os factos se foram produzindo, cá e lá, do mesmo modo mas sem coincidência cronológica.

Levando interpretativamente esta interdependência sócio - cultural até às últimas consequências pôde Eugénio d'Ors afirmar que «Portugal é o compêndio de Espanha. É o seu arquivo, estilo e cifra. É a sua quintessência». E acrescenta: «Quem pretenda conhecer a chave dos mais valiosos segredos culturais, históricos e políticos da Espanha terá que procurá-la em Portugal». Por isso o escritor catalão costumava aconselhar os turistas que dispunham de poucos dias para conhecer a Espanha a visitarem Portugal, que é o seu «compêndio». Para Eugénio d'Ors, a essência da Europa concentra-se nos seus extremos: a Grécia e Portugal. Dois corpos

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simples, a seu ver, o simples do clássico e o simples do barroco: «O que ostenta o símbolo de Apolo e o que ostenta o símbolo de Pan. Ou, se o quiserem, o do Pai e o da Mãe. Sim: os dois únicos corpos simples na Europa; o resto, é questão de dose». Assim, para Eugénio d'Ors, o pintor português Nuno Gonçalves ajudará a compreender o Velásquez da «plena-pasta»; o estilo plateresco fluirá do manuelino; e Os Lusíadas anteciparão o íntimo sentido franciscano das grandes navegações realizadas pelos estremenhos. (Prólogo a «Salazar» de António Ferro).

Onde a aculturação hispano-lusa alcança a categoria de símbolo, na nossa época, é sem dúvida na pessoa de Miguel de Unamuno, reitor da Universidade de Salamanca, ensaísta filosófico, poeta, viajante incansável e enamorado por terras de Portugal, amigo dos escritores seus contemporâneos Eugénio de Castro, Teixeira de Pascoaes, Guerra Junqueiro, Manuel Laranjeira, etc., e conhecedor profundo de escritores portugueses anteriores, não só de Camões e Tomé de Jesus, como de Herculano, Garrett, Camilo, Antero de Quental, Eça de Queirós, Oliveira Martins, João de Deus, que cita frequentemente, e de vários outros com quem tomou contacto, conforme pode deduzir-se da bibliografia portuguesa integrada na biblioteca de Unamuno e de que nos dá conta Julio García Morejón na sua obra Unamuno y Portugal. (Ediciones Cultura Hispânica, Madrid, 1964)

Foi tão fecunda a devoção de Unamuno por Portugal que bem podemos afirmar, ante a evidência, que se a cultura espanhola é devedora em alguma coisa à cultura portuguesa — e sem dúvida que o é, desde as próprias raízes da literatura castelhana, como testemunharam Carolina Michaëlis de Vasconcelos do lado português e Dámaso Alonso do lado espanhol, até à geração de 70 — bem saldada ficou essa dívida secular pelos escritos do reitor salmantino e, particularmente, pelo admirável exercício de amizade e de conhecimento que é o livro Por Tierras de Portugal y España traduzido para português por José Bento, Por terras de Portugal e da Espanha. (Assírio&Alvim, 1989). Pelo seu interesse reproduzimos o comentário na apresentação da tradução:

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«Unamuno vinha periodicamente no fumarento comboio de Salamanca, que desde Barca d’ Alba corria com o Douro até ao Porto. Deveria ter Guerra Junqueiro a esperá-lo e as férias em Espinho davam-lhe a companhia de Manuel Laranjeira. Visita, em Coimbra, Eugénio de Castro. Em Amarante hospedava-o o Solar de Pascoaes. Tomou-se de amores por Portugal. Nenhum estrangeiro como Miguel de Unamuno tocou tão afectuosa e compreensivamente o “feitio” português. O relato da Camélia do Bom Jesus de Braga, o texto do Sabugal, retirado de um jornal da Guarda, o retrato de Buiça, o drama de Laranjeira, ou a análise de “As Sombras” de Pascoaes são alguns dos nódulos de uma pessoalíssima leitura de Portugal em crise, atacado pelo desencanto e mesmo pelo suicídio na transição do século XIX. Juntam-se aos outros retratos da Espanha, descritos por um autêntico peregrino de paisagens físicas e espirituais. Fica-nos a imagem diversa e apaixonada da Ibéria atravessada pelo passo decidido de Unamuno. Custa-nos compreender os quase oitenta anos que retardaram a tradução e a edição portuguesa desta obra fundamental.

Unamuno não só se mostra um esplêndido pagador da dívida a Portugal como, além disso, pode ser considerado um fervoroso reconciliador da história dos dois povos, frequentemente adversas mas sempre complementares e paralelas.

No entanto, se Unamuno é um egrégio pagador, por parte de Espanha, da dívida contraída com a cultura lusa, não é ele o único.

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Pensamos que José Ortega y Gasset pode figurar em lugar de honra, a par de Unamuno, nessa missão, embora por motivos um pouco diferentes. Se Ortega não escreveu nada de importante sobre Portugal, como Unamuno, pôde todavia legar a Portugal, como a todas as demais nações, a sua visão filosófica da vida humana, elaborada pela razão vital e histórica, em forma sistemática a partir da «circunstância peninsular». Não foi em vão que Miguel Torga reconheceu no filósofo madrileno após a leitura do «El Tema de nuestro Tiempo» um dos maiores entendimentos que a Península deu». (Diário, II, p.49, Coimbra,1943)

O método baseado na razão «vital e histórica» que Ortega adoptou é o melhor correctivo ao lirismo irracionalista de Miguel de Unamuno que, por muito castiço que se considere, não pode ser apontado como característico do génio da literatura espanhola. Costumava Unamuno repetir que a melhor filosofia espanhola reside nos místicos castelhanos: Santa Teresa de Jesus e São João da Cruz. Pois bem: desde que a Península Ibérica pode contar no seu património cultural com a reflexão racio-vitalista de Ortega, esse conceito do pensador vasco, se já antes era mais que discutível, passou a ser completamente descabido, por constituir apenas uma opinião lírica e meramente subjectiva. Para o reconhecer, basta folhear o livro escrito — precisamente em Lisboa — por Ortega que leva o título La idea de princípio en Leibniz y la evolución de la teoria deductiva. (O.C. VIII, Madrid, 1968)

Além de representar uma profunda crítica à ambiguidade do modo de pensar peripatético (perspectiva que foi lucidamente estudada pelo filósofo e hispanista da Universidade de Toulouse, professor Alain Guy no estudo: Ortega crítico de Aristóteles (Cl. Austral, Madrid, 1968), contém aquela obra a mais rigorosa e completa exposição do método filosófico da razão vital. Cumpre acrescentar, em abono da verdade, que este livro de Ortega, escrito em 1945, quando o autor era já sexagenário e atingira o pleno amadurecimento, não constitui qualquer surpresa ou excepção na obra filosófica do pensador madrileno mas sim o coroamento de

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todo um edifício mental começado a construir pelo autor em 1914 com o seu primeiro livro sistemático: Meditaciones dei Quijote.

Já nesse seu primeiro trabalho especulativo de grande fôlego propõe-se Ortega nada menos do que corrigir o irracionalismo de que Miguel de Unamuno havia deixado provas inequívocas em duas das suas obras fundamentais: Del Sentimiento Trágico de la Vida e Vida de Don Quijote y Sancho. Ortega, a partir duma meditação sobre Quixote, vai elaborando a sua visão espanhola e ibérica do mundo com plena radicalidade filosófica. Outros livros, igualmente decisivos, formarão o cortejo de reflexões filosóficas que, com o decorrer do tempo, virão a constituir o testemunho mais genuíno da filosofia hispânica e ibérica na Europa. A melhor prova do que deixamos afirmado recebemo-la da Alemanha, país filosófico por excelência — se é que há países filosóficos. Foi um alemão, Ernest Robert Curtius, quem confessou na revista «Merkur», em Maio de 1949, que, por duas vezes consecutivas, Ortega havia restituído aos alemães o entusiasmo pela filosofia viva. Escreveu ele, textualmente: «Ortega tinha na Alemanha, em 1920, leitores numerosos e entusiastas que encontravam nas suas obras a análise da nossa época de massas com este filósofo, a filosofia voltava a coincidir com a realidade da nossa existência». E termina dizendo: «Foi um espanhol que nos restituiu o entusiasmo pela filosofia viva. Tanto depois da primeira como depois da segunda guerra mundial, foram muitos os intelectuais alemães que voltaram o olhar para Ortega». (Walgrave em La filosofia de Ortega y Gasset, Madrid, 1965, p.41).

Não foi por mero acaso que um espanhol se converteu em salvador da filosofia num país de filósofos, como a Alemanha, em tempos de crise moral e vital. Se tomarmos em conta que «españolia» é sinónimo, no seu mais nobre sentido, de equilíbrio vital (recordemos o misticismo «humanista» de Teresa de Ávila; a convivência fraterna de Quixote e Sancho, polos opostos; o realismo pictórico de Velázquez — casos que são hoje, todos eles, pouco menos que tópicos), quando esse equilíbrio vital se sistematiza e se eleva à categoria de pensamento conceptualizado, como sucede com o método da razão vital de Ortega, então não há nada de

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estranho em que se converta, para os pessimistas da mente e do destino, numa alvorada límpida de esperança de mais vida e de vida melhor. Assim o entenderam os alemães que, em momentos de decadência espiritual e física, se serviram da filosofia de Ortega como de duas asas para se elevarem do niilismo às alturas do pensamento renovado e do fracasso material da derrota à esperança do bem-estar futuro.

Se a filosofia de Ortega foi, por duas vezes consecutivas, a «salvação» dos intelectuais no país dos filósofos, o que esperamos nós, peninsulares, para o erigirmos como mestre e guia do nosso andamento filosófico? Para nós, na Península Ibérica, a filosofia de Ortega tem a vantagem, sobre as filosofias alemãs, de estar formulada numa das nossas línguas «romances», o castelhano, em palavras de uso popular e coloquial, sem terminologias difíceis, que as pessoas de média cultura podem facilmente entender. E pensamos, indistintamente, em todos os peninsulares, porque estamos certos de que também os portugueses não encontrarão dificuldade alguma em penetrar na linguagem coloquial de Castela que é a utilizada por Ortega, como evidenciou Francisco Xavier Pina Prata no seu admirável estudo Dialéctica da Razão Vital —Intuição originária de Ortega y Gasset, (Liv. Morais, Lisboa, 1962) onde discorre agilmente, traduzindo e comentando, sem menoscabo algum da beleza literária do texto orteguiano e sem a menor traição ao pensamento do filósofo madrileno.

Por todas estas razões escolhemos Ortega como guia nesta aventura intelectual em matéria portuguesa. Outra razão ainda é a da estima que merece ao filósofo o verdadeiro poeta, o «autor» por excelência graças à sua capacidade de aumentar a realidade do mundo. Autor vem de «auctor», que significa originariamente «quem aumenta algo na realidade». Os latinos designavam assim o general que conquistava para a pátria um novo território. De facto, para Ortega, um poeta verdadeiro é sempre literalmente insubstituível, ao contrário do cientista que é sempre superado por outro que o segue. Segundo a estética filosófica de Ortega, a poesia introduz-nos «numa nova objectividade, nascida da prévia ruptura e

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aniquilamento dos objectos reais através da metáfora... E o território da beleza começa somente nos confins do mundo real». Esta nova objectividade é diversa em cada poeta, porque «o eu de cada poeta é um novo dicionário, um novo idioma através do qual chegam até nós objectos de que não tínhamos notícia». Se no mundo real podemos alcançar as coisas antes das palavras em que nos são aludidas, podemos vê-las e tocar-lhes antes de sabermos os seus nomes, no mundo estético só o conseguimos, como diz Ortega, por intermédio do estilo, que é ao mesmo tempo «palavra, e mão, e pupila: só nele e por ele obtemos notícia de certas novas criaturas. O que diz um estilo não o pode dizer outro». (VI, p.263).

A conclusões semelhantes chega Heidegger quando afirma que «a poesia torna possível a linguagem de um povo», atribuindo à linguagem uma função metafísica quando lhe chama «casa do ser, em cuja vivenda mora o homem e da qual são vigilantes os pensadores e os poetas».(Carta sobre el Humanismo, Taurus, Madrid, 1959). Diferentemente da reflexão de Ortega, que é toda transparência, Heidegger introduz-nos, sem o querer, no mundo dos conceitos abstractos e ambíguos, dado que não sabemos a que se refere propriamente quando nos fala do «ser». Como acusa Ortega, Heidegger não apresentou o problema do Ser «com o radicalismo que o nosso nível de experiências filosóficas exige». (VIII, p.278). Se por «ser» do homem, como «estar no aí» (Da-Sein), pretende Heidegger substituir o natural e simples termo «vida», ao qual recorre sempre Ortega, então não poderemos deixar de lamentar a arbitrariedade terminológica do filósofo alemão e congratular-nos por Ortega nunca ter caído em tais arbitrariedades, dizendo verdades tão importantes ou ainda mais importantes do que as do filósofo de Friburgo. E quase sempre as disse Ortega antes dele, como o próprio filósofo espanhol recordou, em certa altura, para desfazer certos equívocos em que caíram algumas vezes os seus críticos e comentadores.

Por fim, uma última razão — e esta de ordem sentimental — nos decidiu a optar pela companhia de Ortega: a sua qualidade de residente em Lisboa desde 1940 até à sua morte, em Outubro de

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1955. Este tempo português foi para Ortega, precisamente, um tempo de nítida propensão poetizante, como nos assegura uma testemunha de primeira ordem, amigo e companheiro de tertúlia de Ortega desde o seu primeiro dia lisboeta: Pedro de Moura e Sá. É este quem o diz: «Ortega em Lisboa não foi filósofo, nem escritor, nem professor: foi poeta, no sentido de construtor de mito». E prossegue: «Ortega apareceu aos nossos olhos como um milagre. Não era o professor universitário, o filósofo convivendo com filósofos, o escritor rodeado de admiração e de discípulos — era o homem desintegrado do seu ambiente, uma espécie de Robinson que ia fazer, para nós, todos os quadros de convívio e simpatia. Todas as noites subia os quatro andares até à casa mágica da rua Alexandre Herculano, do nosso amigo, o médico Martins Pereira, e, ali, redescobria para o pequeno grupo dos seus amigos, entre os quais se achava o poeta da Presença Carlos Queirós, os mundos da cultura, da experiência de vida intelectual, tudo a uma luz de aurora, porque nenhum dos amigos tinha situação universitária ou categoria oficial de escritor ou intelectual. Num ambiente de constante criação de mitos, de construção-à-vista de todos os mundos imaginários, Lisboa foi para nós, durante alguns anos, uma espécie de cidade fantástica, onde tudo e todos tinham que, com gratuitidade inteira, sem interesse nem de vaidade nem de c o m p e n s a ç ã o e c o n ó m i c a , s e e n t re g a r, l u d i c a m e n t e (desportivamente, diria o próprio Ortega) à maravilha de ver e de contemplar como iam vendo os outros homens. […] No nosso pequeno grupo criou-se uma linguagem própria, deram-se sentidos diferentes às palavras, e era para mim sempre divertido quando em Madrid ouvia o Miguel ou o José (os dois filhos de Ortega) ou algum amigo, empregar palavras com o sentido insólito que lhes tinha sido dado em Lisboa». (Vida e Literatura, Bertrand, Lisboa, 1960, p.256-261) .

Numa destas tertúlias lisboetas, criadoras de mitos e de palavras, deve ter nascido a palavra «portuguesía», cujo conteúdo conceptual implicava para Ortega nada menos que uma «meditação da saudade».

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Que este prólogo sirva, quando mais não seja, como pretexto para justificar a presença de Ortega y Gasset não só neste estudo sobre Miguel Torga como nas relações culturais futuras de todos os grupos linguísticos da Península Ibérica.

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IntroduçãoEm 7 de Junho de 1977 o poeta português Miguel Torga

recebeu, em Bruxelas, o Grande Prémio da XII Bienal Internacional de Poesia, de Knokke, que lhe havia sido atribuído em Setembro do ano anterior pela totalidade da sua obra. O mesmo prémio fora concedido precedentemente a Giuseppe Ungaretti, Saint-John Perse, Jorge Guillén, Octavio Paz, Gyulla Illyes, Léopold Sédar Senghor, Yanos Ritsos e Vladirnir Holan. Virá a propósito recordar que o poeta premiado na Bélgica em 1976 fora candidatado ao Prémio Nobel alguns anos atrás e que neste ano de 1978 foi renovada a sua candidatura ao prestigioso galardão internacional com o apoio da quase totalidade dos escritores portugueses.

Miguel Torga é o pseudónimo literário do médico Adolfo Correia Rocha, nascido em 1907 no Trás-os-Montes duriense e residente em Coimbra há cerca de quarenta anos. Em entrevista ao jornal belga «Le Soir» quando da entrega do Prémio de Knokke — uma das raras que concedeu até hoje e que foi publicada em 14 de Junho de 1977 — declarou, entre outras coisas, a respeito de aspectos sociais da sua obra literária: «Sou bastante tenaz; e, como sempre me recusei a submeter os meus livros à censura, publiquei-os em edições pagas por mim. Foi assim que editei mais de quarenta livros, como romances, novelas, contos, teatro e, naturalmente, poesia... Para conseguir publicar as minhas edições, sacrifiquei muitos divertimentos, prazeres, comodidades que outros se podiam oferecer. Sou um homem bastante frugal e obstinado. Contudo, a experiência foi dura, principalmente ao princípio, já que os meus primeiros livros se vendiam pouco. Depois, tudo se modificou (…) Um político português, depois da leitura de um dos meus livros, dizia que eu utilizava, relativamente ao regime Salazar, o método de Besredka — um método clínico que consiste em ministrar, ao princípio, uma dose mínima de um medicamento, depois uma dose

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um pouco mais forte e, finalmente, a dose completa. Tanto para o meu Diário, [...] que é o espelho destes quarenta anos, como para os meus outros livros, fiz o mesmo. Assim, publicava uma obra. Se ma apreendiam, publicava outra. Se esta era, também, apreendida, editava uma terceira, que circulava já normalmente. Arriscava aquilo que os editores não podiam arriscar».

Quanto aos aspectos afectivos da sua obra podem ser apontadas como exemplares as palavras que escreveu, em 1953, sobre a publicação do Diário: «Acabada a publicação de cada volume... vem-me um tal nojo por estas notas que fico vários dias incapacitado de as escrever. ] Pessoalmente, apenas lhes encontro uma significação positiva: testemunhar passo a passo o que foi a crucificação espiritual dum homem insubmisso, que nem no comportamento íntimo, nem no público, se rendeu a uma época incapaz de compreender ou tolerar a mais inofensiva opinião tresmalhada e que se esforça por esmagar a liberdade do pensamento dentro das próprias consciências...». (Diário, VII, p.10)

Miguel Torga nasceu em 1907, no mesmo ano em que Miguel de Unamuno publicou o seu primeiro artigo sobre Portugal: um ensaio sobre o poeta conimbricense Eugénio de Castro, seu amigo pessoal. É um mero acaso, sem dúvida, mas a que me apraz atribuir, embora convencionalmente, um certo sentido simbólico — dado que o poeta Miguel Torga, além de ter sempre afirmado um grande fervor pelo seu «mestre» vasco e salmantino, reflecte na sua pessoa e na sua obra vários traços típicos da personalidade de Unamuno: independência, sinceridade, casticismo, sentimento trágico da vida, desesperação religiosa, iberismo pátrio e até a formulação duma radiografia da «portuguesía», para empregar a palavra tão carregada de significação que Ortega perfilhou para definir a índole específica do português. De todos estes traços pretendemos fixar uma perspectiva de interpretação no presente ensaio em que lateja, afectiva, a presença de Unamuno e que Ortega ilumina, racional.

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Circunstância físicaMiguel Torga nasceu, no ano referido de 1907, em S. Martinho

de Anta, aldeola perdida na província nordestina portuguesa de Trás-os-Montes. A terra é bravia, adusta, coalhada de montanhas imponentes entre as quais se avantaja, senhora e rainha absoluta, a serra do Marão — o Marão «de escarpadas garras», como diz Unamuno. A província é um quadrilátero que confina a noroeste com as províncias espanholas de León, Zamora e Galiza, a oeste com a província portuguesa do Minho e a sul com o rio Douro. Trás-os-Montes é uma das regiões portuguesas de cunho telúrico e humano mais fortemente caracterizado. Isolada entre montanhas e vales profundos, sem grandes vias de comunicação, continua a praticar-se nela, ainda hoje, uma agricultura tradicional. No seu espaço geográfico tem-se desenvolvido muito pouco a indústria. Por tudo isso é esta província uma das mais atrasadas, socioeconomicamente, do território português. Fala-se do nordeste de Portugal como de região em que as suas gentes continuam a viver com hábitos quase medievais.

O poeta Miguel Torga dá na sua obra, duma forma fortemente impressiva, a sugestão plástica da terra trasmontana e do seu povo. Embora não fale explicitamente dos seus aspectos negativos e antes prefira pôr em relevo a têmpera natural e humana mais saliente da sua região natal, nem por isso deixa de representar, entre linhas, muitos dos aspectos sócio - económicos do atraso da província. Para o poeta, Trás-os-Montes é «um reino maravilhoso». É nestes termos que nos introduz nele: «Vê-se primeiro um mar de pedra. Vagas e vagas sideradas, tristes e hostis. Tudo parado e mudo. Apenas se move e se faz ouvir o coração no peito, inquieto, a anunciar o começo duma grande hora. De repente, rasga o silêncio da penedia uma voz assim: Para cá do Marão, mandam os que cá estão!... Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de ânsia e de assombro. Esse penedo falou? Que magia se apodera de nós? Mas ainda os olhos

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interrogam as fragas e já a voz terrosa ordena: Entre! [...] A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso. [.. .] Mandar, mandam todos. Nas águas de regadio, nos baldios, na mulher e nos filhos, e e m s i . Em tudo o que no País tem grandeza e sentido... O poder é a força inata que todos trazem do berço. [...) Um mundo! Um nunca acabar de terra grossa, fragosa, bravia, que tanto se levanta a pino num ímpeto de subir ao céu, como se afunda nuns abismos de angústia, não se sabe por que telúrica contrição. Terra Quente e Terra Fria. Léguas e léguas de chão raivoso, eriçado, queimado por um sol de fogo ou por um frio de neve. Serras sobrepostas a serras... Não se vê por que maneira este solo é capaz de dar pão e vinho. Mas dá. Pão de milho, de centeio, de cevada e de trigo. Pão integral. Por ser pão e por ser amassado com o suor do rosto. Sabe a trabalho. Mas é por isso que a gente o beija quando ele cai ao chão...

O vinho é de moscatel, alvaralhão, panaguiota, malvasia fina, e tiram-no os homens das fragas, mais ou menos como Moisés tirava a água delas: a bater-lhes. Todo o país o dá. [.. .) Mas a terra dá mais. Como num paraíso, basta estender a mão. Dá batata, dá azeite, dá cortiça, dá linho. […] Dá também figos, maçãs, pêras, cerejas e laranjas que não têm comparação. Mas nada como um fruto que cai dumas árvores altas, imensas, centenárias, que, como vestais duma legenda, permanecem imóveis e silenciosas pelo país a cabo. Só em Novembro as agita uma inquietação funda, dolorosa, que as faz lançar à terra lágrimas que são ouriços. Abrindo-as, essas lágrimas eriçadas de espinhos são a cama fofa de tal fruto singular — a castanha. [ ...] A terra é de tal natureza que, não contente com o que dá ao de cima, encerra no seu fundo riquezas que não têm conto. Entra-se dentro duma serra e é oiro, é cobre, é chumbo, é estanho, é volfrâmio, é zinco, é ferro, é tudo quanto Vulcano fundiu. Águas, então, é um benza-te Deus. São famosas em Moledo, em CarreIão, em Bragança, em Chaves, em Carvalhelhos, em Sabroso e, sobretudo, nestes dois lugares de Padres e de Vidago, que são paraísos verdadeiros. E vêm então peregrinos de muito longe -- gente que arrebentou a comer um boi

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e a beber um tonel — curar-se nelas. Tomam-se durante quinze dias. Ao cabo, têm uma moela nova».

E da gente trasmontana assinala: «Homens inteiros, saibrosos, altos, espadaúdos, que olham de frente e têm no rosto as mesmas rugas da terra. Cobrem-se com varinos, mantas e mais roupas de serrobeco ou de colmo. [...J Aos vinte anos (quando não já aos dez) alguns emigram para o Brasil... Voltam mais tarde, aos sessenta, de corrente ao peito, anel no dedo, e com a mesma quimera numa mala de couro... Constroem um chalet com duas águias no telhado, e dizem com ar manhoso a quem lhes censura um amor tão desvairado à terra: — Infeliz pássaro que nasce em ruim ninho.., ficam, cavam a vida inteira. E quando morrem deitam-se no caixão com a serenidade de quem chega honradamente ao fim dum longo e trabalhoso dia». (Um Reino Maravilhoso- Trás-os-Montes, 1943

A originalidade desta região tem despertado o interesse de muitos novelistas portugueses, designadamente de Camilo Castelo Branco, que viveu nela largos anos — Camilo, o «novelista ibérico por excelência, símbolo e súmula da paixão peninsular», como o designou Unamuno — que a reflectiu fielmente nas suas narrativas. Também Ramalho Ortigão, Eça de Queirós, António Nobre, Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoaes (os dois últimos nascidos em Trás-os-Montes) sentiram aqui as raízes afectivas da alma lusíada.

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Circunstância sócio –

políticaMiguel Torga nasceu no ano em que o rei D. Carlos impôs ao

povo português a ditadura do seu primeiro-ministro, João Franco. Unamuno, testemunha excepcional desse período, escreveu a propósito: «O rei, abandonado por todos os políticos, que tinha vexado e ofendido, teve que lançar-se nas mãos de João Franco, inaugurando um período de ditadura que acobertou as falcatruas régias e preparou a justificação dos adiantamentos que o monarca havia sacado do Tesouro Público. Diziam-nos e repetiam-nos que toda a agitação de Portugal era uma tempestade num copo de água e somente coisa de políticos. E, quando ninguém o esperava, chega a notícia do assassinato do rei e do príncipe... Houve quem dissesse que, moralmente, fora João Franco, o ditador, que os matara. A mim parece-me mais exacto o que dizia Guerra Junqueiro: «Isto foi, propriamente, um suicídio». E, adiante, acrescenta Unamuno: «Na raiz do regicídio de 1 de Fevereiro, última cena trágica da história de Portugal, que é, há séculos, um continuado naufrágio, puderam alguns acreditar que se filiaria uma mudança de rumo da sua vida pública. Não o crêem os que a conhecem». (Por Tierras de Portugal y España, ed. Aguilar, Madrid, 1946, p. 52). Dois anos mais tarde, em 5 de Outubro de 1910, foi proclamada a República em Portugal.

A que se refere Unamuno com essa imagem do «continuado naufrágio» de Portugal? Sem dúvida ao «fenómeno de patologia social, que é Portugal, como nação caduca e decadente», que em tais termos teria lido em Antero de Quental. Certo é que, por aquilo que Unamuno conhecia do povo português, tanto dos seus contactos directos como da leitura dos seus cronistas políticos e

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literários, podia o mestre salmantino tomar a prerrogativa de prever o que, na realidade, veio a acontecer em Portugal: que nada de verdadeiramente importante mudou com o advento da República. Confirma-o com autoridade António Sérgio ao afirmar que a república, nascida da pequena burguesia, não teve possibilidade de melhorar nada do que era estrutural e básico no país, já que não ia além duma república meramente formal, sem ideias, gerada duma romântica dramatização da política.

Como pôde ser assim, depois de uma geração tão revolucionária e tão decisiva na evolução histórico-cultural portuguesa como foi a Geração de 70? Decerto pelo que tão justamente assinala Álvaro Manuel Machado ao escrever que «este ideal íntimo, a que os mais importantes representantes da Geração de 70 aspiravam, não foi historicamente atingido prova-o ainda o suicídio de Antero, em 1891 e porque a burguesia fin-de-siècle, pouco ou nada se preocupou com as aspirações do grupo dos Vencidos da Vida.» (A Geração de 70 —Uma Revolução cultural e literária, Lisboa, 1977, p. 36).

Porque não foi alcançado esse «ideal íntimo»? Para responder a esta pergunta haverá que ponderar previamente donde partia e para onde se dirigia essa geração, o que lhe foi imposto pelas gerações anteriores e o que foi proposto por ela.

Para conhecer a realidade sociocultural do século XIX português terão que ser levados em conta os elementos históricos da Regeneração. Este período alonga-se, mais ou menos, desde a revolta militar que levou ao poder o marechal Saldanha, em 1851, até à proclamação da República em 1910. A Regeneração divide o século XIX português em duas partes distintas: o período das ideias revolucionárias do Primeiro Romantismo, o de Alexandre Herculano e de Almeida Garrett, em que predomina a instabilidade política, social e económica; e o período seguinte, caracterizado essencialmente por uma estabilidade que ficou a dever-se ao pré-industrialismo. Os mentores deste segundo período foram o político António Maria Fontes Pereira de Melo e o rei D. Pedro V

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(1853-1861). Por seu intermédio penetra em Portugal o que na Europa se designou por «progresso», mas que não chegou aqui a concretizar-se verdadeiramente, segundo António Sérgio, já que, na realidade, anulou as reformas liberais, propagou o parasitismo económico da burguesia capitalista e agravou a degradação sociopolítica e cultural. Por isso a Geração de 70 o combateu, em nome da dinâmica da História.

Sobre este estado de coisas escreveu Antero de Quental, principal coriféu da Geração de 70, a propósito do livro de Oliveira Martins Portugal Contemporâneo, que Portugal era então a única nação da Europa realmente velha e caduca, que lhe podem ser aplicadas quaisquer constituições ou leis porque tudo será em vão e não haverá estimulante possível para a sua decrepitude. Os factores socioculturais que vão tornar possível a atitude renovadora e crítica da Geração de 70 só podem ser encontrados na Europa.

Desde princípios do século XIX, a classe que se afirma na Europa é a burguesia. Foi esta classe que gerou a Revolução Francesa, saindo dela reforçada. A partir daí, a burguesia adquire a consciência de classe superior, predominando na sua mentalidade o culto da técnica. O processo revolucionário europeu e, principalmente, o francês, é assinalado por dois acontecimentos primaciais: a insurreição do povo dos bairros orientais de Paris, em 1848, e a Comuna, em 1871, ambas malogradas.

Para a Europa, a data de 1848 envolve uma auréola explosiva. É o ano das revoluções liberais de cunho nacionalista na Itália, na Alemanha, na Áustria e Hungria. Nesse ano, também, surge o sufrágio universal. E, desde então, a democracia constituí-se na base ideológica da política — democracia meramente formal, mais política que social. As contradições desta ideologia política vão reflectir-se no movimento romântico que caracteriza o século XIX.

O romantismo oitocentista reveste duas formas: o teórico, que entra em polémica com o academismo literário; e o sentimental, a que se chamou mal du siècle. O que define este último é a

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desistência perante o dinamismo da História — desistência que implica a renúncia ao compromisso político e à acção.

Em Portugal, opõem-se ao mal du siècle da burguesia os partidários do socialismo, anunciando a República em termos utópicos visto que, como diz José-Augusto França em O Romantismo em Portugal, os princípios republicanos submergem o país num universo ideal e angélico por não terem a sustentá-los qualquer estrutura ideológica, como poderiam ser os partidos políticos. Os partidos, porém, não existem. Antes de 1860-70, segundo A. Oliveira Marques na sua História de Portugal, existiam somente correntes de opinião, grupos ideológicos, forças políticas diversas — e não partidos propriamente ditos. Estes só aparecem na sequência da vitória do marechal Saldanha, com o grupo dos «regeneradores», que são os primeiros a organizar-se em partido._ E logo aparecem, também, a primeira agitação socialista e as ideias comunistas. Deixa-se de falar em povo e começa-se a falar em operários, em classe operária. A primeira greve data de 1852 e é promovida por tipógrafos. O movimento culmina com a fundação do Partido Socialista. E entre socialismo e republicanismo não tarda a demarcar-se uma separação, que se reflecte na Geração de 70, surgida pela mesma época. Antero e, em certo sentido, Eça de Queirós, aderem ao socialismo utópico, enquanto Teófilo Braga, Guerra Junqueiro e Ramalho Ortigão optam pelo republicanismo pequeno-burguês. Oliveira Martins, a princípio, inclina-se para um peculiar socialismo, não marxista e essencialmente cultural — um estilo de socialismo idêntico ao que seduzirá na juventude Unamuno e Ortega — mas vem a renunciar ao revolucionarismo e a perfilhar um ideário de reformismo cesarista.

A Geração de 70, ante a evolução das ideias políticas e no ambiente burguês do século XIX, passa por duas fases: a fase esteticista e a fase propriamente ideológica. Na primeira decorre a famosa polémica intitulada «Questão Coimbrã», ou do «Bom Senso e Bom Gosto», em que Antero e Teófilo Braga, de Coimbra, arremetem contra o provincianismo cultural representado por António Feliciano de Castilho. Na segunda, ficaram célebres as

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Conferências Democráticas do Casino Lisbonense, em 1871 — precisamente no mesmo ano da Comuna de Paris. Nesta segunda fase, ideológica, a Geração de 70 arvora um programa ambicioso para Portugal:

1) Ligá-lo ao movimento moderno, para que volte a nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada;

2) Procurar adquirir consciência dos acontecimentos que o rodeiam, na Europa;

3) Introduzir na opinião pública os grandes problemas da Filosofia e da Ciência modernas;

4) Estudar as condições da transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa. Em suma: arrancar Portugal do seu isolamento sociocultural e integrá-lo na Europa.

Para tornar possível este programa, a Geração de 70 sentiu-se obrigada a fazer a crítica em profundidade do mundo das crenças e vigências socioculturais da sociedade portuguesa. Antero, com o seu poder de síntese, reduziu a três as «crenças» principais que era preciso combater: Trento, Absolutismo, Conquistas. Trento, como reflexo do pensamento; o Absolutismo, como reflexo da política; as Conquistas, pelo seu reflexo no trabalho. Em relação ao espírito de Trento, propõe Antero um cristianismo pessoal e combativo, grávido de dúvidas, «agónico», como mais tarde lhe chamará numa das suas intuições fulgurantes o «anteriano» Unamuno, a consciência livre alimentada pela ciência e pela filosofia modernas. (Será oportuno evocar, a propósito, as leituras europeias dessa geração: Victor Hugo, Michelet, Proudhon, Hegel, Renan, Thierry, Guizot, Byron, Goethe, Comte, Heine, Baudelaire, etc.). Ao Absolutismo monárquico contrapõe Antero a federação republicana, com a democratização da vida municipal. E ao parasitismo das Conquistas aponta como alternativa o trabalho livre, organizado e socializado.

Para a Geração de 70, como, mais tarde, para a Geração espanhola de 98 (que se inspirou naquela) a Igreja católica é

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responsável por muitos males históricos da sociedade portuguesa, tal como o absolutismo régio e as conquistas ultramarinas. Por isso dizia Antero, pateticamente, que – «a nossa história nossa fatalidade». Nem por isso abdicou do sonho revolucionário. É dele a afirmação de que, assim como «o Cristianismo foi a Revolução do mundo antigo, a Revolução não é mais do que o Cristianismo do mundo moderno».

Porque foi a Geração de 70 uma geração frustrada ao nível das realizações e da influência ideológica? Por uma evidente razão histórica.

Esses intelectuais românticos pagaram o seu triunfo ao século XIX em quase todos os domínios das ideias e das emoções sociopolíticas, que eram meramente «utópicas», e tanto nos progressistas como nos reaccionários. Aquela gente, continua Ortega, achava gosto na política irrealizável, pela extravagância ou pelo simplismo. Recorde-se que um dos projectos de Constituição elaborados em França em 1790 começava por esta declaração: «Todos os franceses serão felizes». E ainda: «As pessoas apressavam-se a definir-se pelos atributos mais discrepantes e não se lhes afigurava grotesco denominar-se esquerdistas ou direitistas, amputando assim cada qual a outra metade de si mesmo. Sem estes tragos de aguardente, os nossos avós não se voltavam para a política. O romantismo é embriaguez, e a política romântica começava por um deleitoso frenesim». (Del realismo en politica, XI, p. 63).

Este «deleitoso frenesim» costuma fazer cair os que a ele se entregam em ardentes utopias. E a utopia é «essa verdade que não está adscrita a nenhum lugar», ao passo que a vida, que toda a verdade deve servir, tem de encontrar-se inexoravelmente, «numa circunstância determinada». Daí que o único comportamento aceitável em política seja o realismo. E «política realista é política de realização». Ao que Ortega acrescenta: «A realização é o mandamento supremo que define a área política. Não vai contra o ideal mas impõe-lhe sentido concreto e disciplina. A antiga política

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de ideias pretendia, sem mais nada, que os factos viessem ajustar-se às ideias, nascidas por geração espontânea nas cabeças. Como isto é impossível, o político idealista vivia perpetuamente em posição falsa. O realismo é mais exigente: desafia-nos a que transformemos a realidade segundo as nossas ideias mas, ao mesmo tempo, a que pensemos as nossas ideias com vista à realidade — a que derivemos o ideal, não subjectivamente das nossas cabeças, mas objectivamente das coisas. Tudo o que é concreto — uma nação, por exemplo — contém, juntamente com o que é hoje, o perfil ideal da sua possível perfeição. E este ideal, o das coisas e não o nosso, é o ideal verdadeiramente respeitável. O ideal subjectivo anda sempre muito próximo de ser um capricho ou urna mania». (Ibidem, ps. 63-64). Por tudo isso costumava Ortega propor, com bom sentido pedagógico, a «higiene dos ideais».

Com o conceito de política realista não se pretende pôr em causa «o ministério dos homens intelectuais e sentimentais, que consiste em manter na terra um certo volume de idealismo, sem o qual a história se afoga». Trata-se, somente, de fazer uma correcção ao utopismo: «Em política, por muito intelectual que seja, não pode haver - cerros de Ubeda. A linha em que termina a área da política poderá estar tão longe quanto se queira, e quanto mais melhor, porque ela mede o raio da nossa previsão; mas a linha em que começa é-nos rigorosamente imposta e não deixa campo aberto aos nossos arbítrios e inspirações: é a linha que em cada instante pisam os nossos pés. É o aquí e o agora.» (Del, Realismo...», XI, p. 62).

Foi precisamente a ausência de demarcação da área do presente, em que se inclui o passado, uma das determinantes da ineficácia, social da Geração de 70. Assim o dá a entender lucidamente Álvaro Manuel Machado quando escreve: «...o que se passou com os maiores da Geração de 70 foi que, justamente, nunca chegaram a limitar o passado (mito da Idade de Ouro das Descobertas, sobretudo em Eça e Oliveira Martins) nem nunca chegaram a conhecer concretamente as condições do presente (utopia social de Antero). Daí a tensa, dramática indeterminação que neles tomou o futuro, negado por fim e substituído por um passadismo à outrance

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ou por uma visão apocalíptica de fin-de-siècle de que o poeta pré-surrealista Gomes Leal, mais afinal do que Antero, é um exemplo típico». E o ensaísta português prossegue: «Mas se a acção imediatamente histórica da Geração de 70 não chegou a concretizar-se num relativismo necessário e eficaz, confinando-se portanto a um absoluto fugaz e dramático, a criação estética, pelo contrário, concretizou-se neles plenamente, harmonizando absoluto e relativo, que é a mais fértil maneira de ela se concretizar, perdurando» (o. c., ps. 88-89).

Esta criação estética — a sua melhor herança — será também a que mais fundamente marcará os espíritos das gerações vindouras, fazendo da Geração de 70 um dós momentos mais altos da história da cultura portuguesa.

Neto preclaro dessa geração de intelectuais românticos, tanto em estética como em ideologia, será o poeta Miguel Torga.

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Circunstância

geracional«Uma das experiências melancólicas que, antes ou depois, todo

o homem sensível vem a fazer, é a descoberta de que estamos fatalmente adscritos a um certo grupo de idade e a um estilo de vida», acentuou Ortega. (En torno a Galileo, V, p. 39). Esse grupo de idade com um estilo de vida é «a caravana de que o homem vai prisioneiro, ao mesmo tempo secretamente voluntário e satisfeito». Este acontecimento geracional não é um fenómeno socialmente isolado mas antes um facto de inter-geração. Tal como a vida individual nunca decorre inteiramente isolada, também a geração histórica não é cindida das que a precedem e das que se lhe seguem. As gerações coexistem, articulam-se entre si e até se escondem umas atrás das outras. Num dado momento histórico são vários os grupos de diferentes idades que se entrecruzam dinamicamente: cada grupo de contemporâneos, de uma mesma idade, situa-se no meio de outros grupos de homens, de idades diversas, que formam para todos uma contemporaneidade. Somos contemporâneos, efectivamente, de todos aqueles com quem convivemos entre o nascimento e a morte.

Partindo da data de 1907, nascimento de Torga, convencionaremos que a sua geração será constituída pelos que nasceram entre 1899 e 1915, aproximadamente. Essa será a geração dos «seus coetâneos». Entre os escritores portugueses que nascem entre aqueles dois marcos cronológicos e que apresentam certas relações com o poeta trasmontano contam-se, entre outros, José Régio, João Gaspar Simões, Vitorino Nemésio, Casais Monteiro, Branquinho da Fonseca e Carlos Queirós. Este grupo geracional será conhecido, a partir de Março de 1927, por «grupo

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da Presença», ou seja, da revista de arte e literatura que surgiu em Coimbra naquele ano sob a primacial direcção de José Régio.

Esta geração não funcionou isolada, obviamente, mas entrelaçada com outras e, sobretudo, com a imediatamente anterior. Para trás, os «presencistas» olharão os seus precedentes com uma mescla de respeito e de ira. O mestre é sempre honra e ofensa sob o prisma da independência pessoal. Para diante, todos os homens olham com certa veia inevitável de paternalismo.

A geração que precede o grupo de Coimbra de 1927 é uma geração fortemente inovadora em estética: a geração — poeticamente paralela à que teve início em Espanha com Juan Ramón Jiménez e que veio a florescer nessa árvore imensa que é a geração de 27, da ditadura riverista e do centenário de Góngora, sob cujo lema ficou conhecida. A geração que precedeu a «presencista» teve duas vertentes: a de Lisboa, em torno da revista Orpheu, e a do Porto, ligada à Águia, órgão do movimento da «Renascença Portuguesa». Os lisboetas foram os mais verdadeiramente inovadores em poesia, à sombra de Mallarmé. Constituiam um pequeno grupo, mas de grande personalidade intelectual — sobretudo a gloriosa trindade formada por Fernando Pessoa, Almada Negreiros e Mário de Sá Carneiro. Os portuenses, mais pensadores filosóficos do que estetas e muito menos inovadores em poesia, congregavam-se à volta do teorizador do saudosismo metafísico, Teixeira de Pascoaes, contertúlio de intimidades lusíadas com Unamuno na sua casa de Amarante. São ainda de destacar no grupo as personalidades de Leonardo Coimbra, Mário Beirão, Jaime Cortesão, António Correia de Oliveira, alguns mais. É de assinalar que Unamuno foi correspondente da revista Águia, não só em Salamanca como em Paris.

Na geração posterior à de 27 situam-se os poetas do movimento neo-realista e, logo a seguir, Sophia de Mello Breyner Andresen, Jorge de Sena, Eugénio de Andrade, Rui Cinatti, David Mourão Ferreira, etc., demarcados em variadas tendências

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Geração histórica e

sensibilidade vitalA vida é mudança e a história aspira a dar razão à mudança.

Para isso é necessário definir uma época, que é o âmbito em que a mudança acontece. Como elemento básico da definição de época apontava Ortega a «sensibilidade vital», quer dizer: «a sensação radical ante a vida ou a existência na sua integridade indiferenciada de quantos nela convivem» (El tema de nuestro tiempo, III, p. 146).

A sensibilidade vital é como que uma fina rede através da qual sentimos e vemos a realidade circundante. Dela depende, consequentemente, o «panorama vital» e a cultura que possuirmos. A sensibilidade vital de cada época apresenta-se na história sob a forma de geração — e cada geração significa uma mudança maior ou menor na sensibilidade vital. Por isso a poesia de dada época pode provocar uma sensação de plenitude diferente da que provoca a poesia duma época passada, ainda que seja esteticamente superior, como afirma T. S. Eliot. Os homens duma mesma geração, por muito grandes que sejam as diferenças individuais entre eles, encaram e sentem o mundo a partir de um nível determinado e diverso do de outra geração. É isto devido a que cada geração, nesse processo do receber e do dar em que consiste viver, opera uma mudança de sensibilidade.

O estilo geracional de ver e de sentir não exclui o individual. Em cada indivíduo coexiste um fundo de crenças, modos afectivos e intelectuais, que respirou no seu meio vital, que o penetra intimamente e conforma a sua sensibilidade peculiar. É o «fundo insubornável» de que fala Ortega, o sistema de preferências, um regime atencional próprio de cada indivíduo, que fazem da sua vida

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espontânea um estilo intransferível constituindo o «núcleo último da personalidade».

Outra das características essenciais da geração histórica é a atitude que assume em relação às precedentes e, em especial, às do passado imediato. Há gerações que vivem numa suficiente homogeneidade entre o recebido e o próprio. Outras, manifestam uma profunda heterogeneidade. Às primeiras, chama Ortega «épocas cumulativas»; às segundas, «épocas polémicas». Naquelas, os jovens solidarizam-se com os velhos e subordinam-se a eles; na política, na ciência, nas artes os velhos continuam a dirigir. Nas outras, os velhos são varridos pelos mais moços. São tempos de juventude inovadora, «idades de iniciação e beligerância constructiva» ( Ibidem, p. 149).

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Sensibilidade estética

da «Presença»Qual foi o estilo geracional característico dos jovens poetas da

revista conimbricense Presença? Que atitude assumiram relativamente à geração antecessora?

A maneira mais adequada de responder a estas perguntas será a de tentar captar a sensibilidade estética dos poetas «presencistas» cotejando-a com a estética do grupo de Orpheu, que é o representativo da geração precedente. Desde logo, a característica que mais merece ser assinalada é a ambiguidade nas suas relações, tanto na teoria como na prática. Os «presencistas» tão assiduamente exaltam os «órficos», publicam os seus textos e os propõem por mestres, como os impugnam com os seus manifestos literários e a sua própria produção poética. Os «presencistas» querem ser uma geração «cumulativa» em relação ao grupo de Orpheu. Mas, na realidade, e bem no fundo, serão uma geração beligerante contra os seus mestres. Enquanto a sensibilidade estética dos «órficos» se caracteriza por uma espécie de absolutização da ideia, fazendo dela objecto e termo do pensamento; pela absolutização da metáfora, recusando os materiais naturais e substituindo-os por objectos líricos, ou seja, perfilhando uma estética radicalmente intelectual e, portanto, desumana, à luz da certeira opinião de Ortega; pela criação, enfim, duma poesia pura — enquanto isso os «presencistas», pelo contrário, tentarão impor, antes do mais, a sua «presença» de homens-artistas; mais que as suas ideias utilizarão a metáfora, mas mais sensitiva do que intelectual, pelo predomínio de imagens afectivas; usarão materiais naturais e pugnarão por uma literatura viva e personalista, deliberadamente humanizante, não mostrando receio ante os

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elementos impuros da sua poesia. Se quiséssemos usar uma linguagem freudiana poderíamos dizer que há uma relação edipiana dos jovens «presencistas» ante os seus mestres «órficos»: admiram-nos, querem identificar-se com eles (imitação paterna), mas nos seus comportamentos repudiam-nos (morte do pai). Em arte, segundo Ortega, «toda a repetição é nula» (Deshumanización del arte, III, pág. 360). Por conseguinte, ao pretenderem ser autênticos consigo mesmos e fiéis ao «fundo insubornável» da sua personalidade, os «presencistas» não podiam deixar de desviar-se dos seus mestres — apesar de toda a admiração que manifestavam por eles.

Analisemos brevemente alguns textos «presencistas».

No primeiro número da Presença, publicado em 10 de Março de 1927, estampava José Régio, com a segurança da sua fibra juvenil, o manifesto da estética da nova geração. Intitula-se «Literatura Viva» e nele proclama, sem ambiguidades, os tópicos mais importantes da doutrina estética do seu grupo: «Em arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística. A primeira condição duma obra viva é pois ter uma personalidade e obedecer-lhe». E acrescenta, mais adiante: «...os dois vícios que inferiorizam grande parte da nossa literatura contemporânea […] são a falta de originalidade e a falta de sinceridade». Por falta de originalidade entende Régio a sobre - valorização da retórica sobre os sentimentos, do estilo sobre a personalidade, do profissionalismo literário sobre a vivência pessoal. O problema da sinceridade será um pouco mais complexo, já que serem «conscientemente mais directos, mais simples, mais ingénuos», como o pretendiam os artistas modernos, não se afigura a Régio atitude de sinceridade mas antes de duplicidade. «O lirismo e a ironia, o abandono e a atitude, o subsconsciente e a razão — emaranham-se na arte de vários mestres contemporâneos», comenta Régio. Daí que o verdadeiro papel do crítico deva consistir em «discernir e separar os simuladores, mais ou menos hábeis que eles sejam, dos criadores autênticos». Nisto reside um dos temas-

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chaves da estética «presencista»: a autenticidade pessoal. É a autenticidade que confere valor radical à obra de arte viva e é de capital importância o valor da personalidade na história da arte.

Cinquenta anos depois da sua proclamação, não podemos deixar de perguntar: contra que escritores, na realidade, se dirigia o manifesto «presencista»? Contra os triunfadores do momento -- os Antero de Figueiredo, os Correia de Oliveira, os Júlio Dantas — como quer o crítico Eugénio Lisboa, tomando em conta o contexto histórico? («O segundo modernismo em Portugal», págs. 76-79,, Lisboa, 1977). Contra os Guerra Junqueiro, que José Régio expressamente cita? Ou contra os modernistas de Orpheu?

E insistimos neste ponto porque uma coisa foram as intenções dos «presencistas» e outra muito diferente foi a sua atitude estética professada. Nunca é de mais recordar o consabido conceito: se a consciência manda, o inconsciente é que governa. Do que não pode restar hoje a menor dúvida é de que os textos «presencistas», do que se distanciam verdadeiramente é dos textos «órficos». A «presença» pessoal nuns é flagrante face à sua «ausência» nos outros. O próprio título da revista é, neste sentido, eloquentemente significativo: Presença significa a presença pessoal do poeta sobre as suas próprias ideias. É o personalismo como atitude estética. Contra o «poema-palavra bela» reivindica-se o «poema-palavra-experiência vivida». Em vez da «poesis», no sentido de criação ou fabricação, a «lírica» como poesia que canta. Enquanto para os modernistas as palavras dizem mais do que se pode explicar e contêm algo mas não transmitem nada, para os «presencistas» as palavras participam na nossa subjectividade, ou seja, transmitem uma experiência que não contêm. Na essência desta dupla atitude está latente o eterno problema do homem no seu diálogo com as coisas: a sua configuração clássica, culta, estilizada, artificial, desrealizadora, criadora, pura, e a configuração romântica, popular, espontânea, natural, realizadora, imitadora, impura. Uma, dá lugar à arte trovadoresca, ao renascimento, ao gongorismo, ao barroco e ao modernismo; outra, à «cantiga de amigo», ao «romance», ao vilancico, ao romantismo e ao populismo.

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Os «presencistas» pretendiam «re-humanizar» a arte que as gerações anteriores tinham desumanizado. Não vêem inconveniente em deixar-se contaminar pelos elementos esteticamente «impuros», como o assunto, o argumento, o sentido da frase, as emoções. Não recusam nada do que é natural, desde a pedra à mulher. Recusavam-se a falar, à maneira de Mallarmé, da «mulher nenhuma» ou da «hora ausente do quadrante», em vez de falar de Maria ou da hora do relógio. A ausência das coisas será para eles um absurdo — e nunca a matéria do poema, como para o modernista. Por isso procuravam a ressonância vital e a comunicação plena, contra o hermetismo e a incomunicação simbolistas. Usam a imagem e a metáfora, mas sem fazer da poesia, segundo as palavras de Ortega, «a álgebra superior da metáfora». O «presencista» fundamenta a sua criação poética por intermédio da realidade exterior e não pretende «fundar» a realidade, como afirmava Heidegger da linguagem poética pura.

E os jovens poetas da Presença não veriam inconveniente em subscrever os versos de Machado, o eterno reconciliador, em que propõe o abraço das duas estéticas contrárias:

«Canto y cuento es la poesía.

Se canta una viva historia

contando su melodía».

(Poesía y Prosa, de Antonio Machado, ed. Losada, Argentina, 1973, pág. 12)

Por tudo isso se compreende que as preferências dos escritores da Presença se tivessem voltado, no âmbito da poesia espanhola contemporânea, para António Machado, Unamuno e, mais tarde, Garcia Lorca.

Em suma por não haverem tomado em conta a relação ambivalente entre a admiração pessoal dos «presencistas» pelos «órficos» e as suas reais diferenciações estéticas andaram por muito

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tempo confundidos e quase irmanados os dois movimentos contrários. Sob esta perspectiva, cabe a Eduardo Lourenço o mérito de haver esclarecido esta situação difusa e de ter definido o movimento da Presença como «uma contra-revolução no modernismo», uma espécie de «bonapartismo poético» que, parecendo conduzir ainda a «revolução» (modernista), e de algum modo a conduzindo, se serve dela para fins privados e mesmo opostos ao impulso revolucionário inicial». («Presença ou a contra-revolução do modernismo português», in «Revista do Livro», Rio de Janeiro, n.° 23/24, 1961, p. 69.

No entanto, João Gaspar Simões, continuou sempre a defender a tese contrária: «Não posso calar que a Jorge de Sena se fica devendo — fica devendo a posteridade da 'Presença — algo que só ele viu com lúcida penetração. Em verdade, dizer-se que o movimento coimbrão foi 'contra-revolucionário' é de um simplismo que só não brada aos Céus, porque os Céus nestas coisas das letras, não ouvem ninguém. Em verdade, a distinção que Jorge de Sena faz entre 'vanguardismo' e 'post-simbolismo', situando a 'Presença' na confluência das duas facções ou correntes posteriores ao 'Orpheu' (não obstante o quinhão bem largo de post-simbolismo que também existe, quanto a nós, no movimento de 1915), basta para calar as vozes de alguns que, no presente momento, ao julgarem a «Presença», o fazem ou sem o tal espírito verdadeiramente crítico ou sem a devida ponderação daquilo que, no fim de contas não pode ser esquecido quando se proferem juízos de valor em matéria literária: a natureza intrinsecamente literária dessa matéria». («Jorge de Sena e a «Presença», in «Diário de Notícias», 25 de Maio de 1978)

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«Presencistas» em

debate com Ortega y

GassetUm indício expressivo do anti-modernismo, «malgré eux», dos

«presencistas» foi o mau acolhimento que fizeram à lúcida análise de Ortega sobre o modernismo artístico no seu célebre livro, La deshumanización dei arte. Se fossem aquilo que pretendiam ser, autênticos modernistas — mesmo numa «segunda fase», como alega João Gaspar Simões — não poderiam deixar de aceitar de bom grado as características que Ortega aponta para o modernismo. E não sucedeu assim. Não só se contrapõem, como jovens ansiosos de auto-afirmação, ao filósofo madrileno, como conclamam que o modernismo não é o que Ortega diz ser e intentam defini-lo pelo que desejariam que ele fosse.

É certo que, passados cinquenta anos, o único sobrevivente dos primeiros dirigentes da Presença e principal impugnador de Ortega, o mesmo João Gaspar Simões, veio repudiar publicamente esse erro de juventude, acentuando que outrora não entendera bem o pensamento do autor de La deshumanización dei arte. Ao recordar e comentar um livro de juventude do seu companheiro de doutrinação artística Fernando Lopes Graça, escreveu João Gaspar Simões: «Não posso esquecer que foi na Presença que se discutiu, na altura da sua publicação, o livro de Ortega intitulado La deshumanización dei arte, ensaio publicado em 1928 e cujas ideias qualquer presencista repudiaria, contrárias que eram às concepções altamente humanistas — de humano, claro está, não de greco-

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latino — dos doutrinários do movimento». E pergunta o crítico: «Teria razão o fulgurante pensador espanhol? A arte caminhava, realmente, para uma progressiva desumanidade?». E responde: «Parece que sim». A terminar, declara com certa melancolia: «Relembro esta pugna, que não foi pugna, claro está, porque Ortega era espanhol, pensador consagrado, e nós apenas uns buliçosos rapazes da beira do Mondego» («Diário de Notícias», Lisboa, 7/2/1974).

Do que pretendiam convencer-se a s i mesmos os «presencistas» (já que a mais ninguém poderiam fazê-lo) relativamente ao modernismo e em contrário das teses de Ortega? Pois nada menos de que o modernismo era um movimento humanizante em arte, opostamente ao que Ortega afirmava no seu ensaio. Entre a tese do francês Julien Benda, que defendia a «humanidade» da arte moderna e a contrária de Ortega, os «presencistas» inclinavam-se para a do ensaísta francês. (Presença, n.° 16, Coimbra, 1928).

O que há de verdadeiramente escandaloso na crítica de Gaspar Simões ao ensaio de Ortega não é propriamente a impugnação da sua tese — que o jovem crítico «presencista» não seria capaz de fazer — mas o atrevimento de inculpar o filósofo espanhol, com a sua meridiana clareza, do pecado de confusão e até de erro no que respeita à definição de humanidade e de realidade. Ortega, que sempre abundou na suprema cortesia de todo o bom filósofo, que é claridade; que sempre pensou que a claridade é a plenitude da vida — como poderia cair no pecado que sempre considerou mortal em qualquer pensador? Como veremos, Ortega é claríssimo. Obscuro e confuso, infelizmente, é o precipitado crítico «presencista». Vejamos o que diz Ortega no referido ensaio relativamente ao que entende por humanidade e realidade:

Entre os diversos aspectos da realidade que correspondem aos vários pontos de vista há um de que derivam todos os demais e que em todos os demais está pressuposto: o da realidade vivida... Na escala das realidades, corresponde à realidade vivida uma peculiar

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primazia que nos obriga a considerá-la a realidade por excelência». E no exemplo que apresenta — a agonia dum homem, que é contemplada por um médico, um pintor, um jornalista e a própria mulher do moribundo — cabe a esta última a vivência da agonia do moribundo de maneira mais profunda e autenticamente vivencial, relegando as restantes personagens para segundo lugar e com as mais diversas conotações — visto que há uma escala de distribuição das vivências. E acrescenta: «O ponto de vista humano é aquele em que 'vivemos' as situações, as pessoas, as coisas. E, vice-versa, são humanas todas as realidades — mulher, paisagem, peripécia — quando apresentam o aspecto sob o qual costumam ser vividas. Um exemplo, cuja importância o leitor verificará mais adiante: entre as realidades que constituem o mundo encontram-se as nossas ideias. Usámo-las 'humanamente quando com elas pensamos as coisas. Quer dizer: ao pensarmos em Napoleão, o que é normal é que atendamos exclusivamente ao grande homem assim chamado. O psicólogo, pelo contrário, adoptando um ponto de vista anormal, 'inumano', desprende-se de Napoleão e, fitando o seu próprio interior, procura analisar a sua ideia de Napoleão como ideia... Em vez de ser a ideia o instrumento com que pensamos um objecto, fazemos dela objecto e termo do nosso pensamento». (La deshumanización dei arte, pág. 363). Assim, para Ortega, uma realidade é tanto mais realidade quanto mais seja vivida, não apenas pensada. E uma realidade, quanto mais vivida, mais humana será.

A ideia que capte esta realidade vívida será uma ideia mais humana do que a que se contente com ser meio e fim da mente do pensador ou do artista. Este processo de «mentalização» acaba por ser um processo de desumanização. Toma-se por vida pessoal apenas uma parte do ser humano, a razão, deixando omisso tudo o mais que constitui a pessoa: afectividade, experiência, reflexo das coisas na mente. Por este rumo combatia Ortega o que considerava dois grandes excessos na história da filosofia, desde Aristóteles a Hegel, passando pelos Escolásticos, Descartes e Kant: o realismo filosófico e o racionalismo - idealismo. O homem não é humano

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enquanto apenas racional, nem a humanidade lhe chega quando nele é inoculada, sem mais, a realidade exterior. A realidade humana, vivida, nem a criamos nem a ingerimos: vivemo-la. E isso quer dizer que a coisa e o eu coexistimos, que ao coexistir nos fazemos, eu como pessoa e a coisa como coisa. Sem este mútuo encontro, nem eu sei de mim nem a coisa de si — porque ambos, como seres insuficientes, necessitamos um do outro: o eu para viver e a coisa para existir. Desta fundamentação do humano pouco ou nada chegou a adivinhar o crítico «presencista». E, no entanto, tudo isso está subjacente às ideias sobre a arte moderna. Ortega faz-nos ver que a realidade vivida é a realidade primordial, mas sem a desvincular da razão, já que uma vivência sem razão é tão inumana como a razão sem vida vivenciada. Assim se gerou e estruturou o método mais original e fecundo do mestre madrileno para a análise de toda e qualquer realidade humana: a razão vital, histórica e narrativa, a razão da conta da vida e a vida da razão e ambas acontecem na história, a qual se exprime de forma narrativa.

O crítico «presencista», ainda jovem, sem linguagem filosófica e sem rigor de expressão, confundiu o que é pessoal, seja mental ou não, com o humanismo, escrevendo: «Se o mundo que (o artista moderno) realiza na sua arte é diverso do realizado, de facto, objectivamente, para todos os homens, é porque o seu é duma realidade mais directa, mais viva, mais evidente, e, no fim de contas, mais real: da única realidade concedida ao homem -- a sua própria». E acrescenta: «O intelectualismo destes artistas ainda é a expressão de um intenso humanismo. A fuga do mundo, do real, é ainda um meio, neles, de se entregarem a si próprios, de se volverem à conquista perigosa e trágica da sua humanidade mais íntima e essencial». Mais adiante não hesitará em escrever: «Os simbolistas foram os primeiros a descobrir o mundo interior e a possibilidade duma arte distante do mundo externo. Se a humanidade da arte moderna não é realista é porque se estriba no subjectivo e na visão individualista do homem. Ora não sendo ela realista, quer dizer, não aceitando o mundo externo como realidade superior à sua realidade interna — é a esta que dá preferência.

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Neste ponto, apenas, pode a arte ser desumana para os que acreditam unicamente na humanidade ordenada e concreta. Uma ideia da realidade, por menos real que seja, é, contudo, real e humana na medida que o parece à consciência que a vive. Deste modo um quadro de Miró ou Carré é humano contra toda a irrealidade das suas linhas, porque exprime, além de tudo, uma visão da realidade: a visão da realidade de Carré ou Miró. O homem só cria humanidade com a sua própria e, isso, em virtude de o espiritual só ao espiritual ser perceptível». (João Gaspar Simões, revista Presença, n.° 16, Novembro de 1928, «Realidade e humanidade na arte, a propósito de La deshumanización del arte de Ortega y Gasset).

Destas palavras se deduz que o crítico «presencista», em 1928, não sabia distinguir entre o viver a realidade exterior e o viver, pensando,'a ideia. Daí que não possa ter compreendido a mensagem do filósofo espanhol e por isso não tenha atingido o cerne da arte moderna. Daí, também, a ambiguidade dos «presencistas» em relação aos «órficos», que levaram a cabo, à sua maneira, uma verdadeira revolução ontológica, fazendo prevalecer sobre a ideia das coisas o mundo interior de cada ideia em si, elaborando um discurso sobre a ausência da realidade objectiva e concebendo a ideia de ausência total. De tudo isso, os «presencistas» não chegaram sequer a dar-se conta. E o pior é que, impugnando Ortega, perderam a única ocasião que o destino lhes proporcionou para chegarem ao conhecimento real da arte dos que consideravam seus mestres.

Na falsa polémica da Presença contra Ortega o mais paradoxal foi o facto de os seus arautos terem impugnado um pensador que, na sua estética pessoal, estava muito mais próximo da sua linha doutrinária do que o solipsismo modernista de Pessoa. É bem significativo que José Régio, por exemplo, tenha coincidido com Ortega no conceito de que a arte consiste na exigência duma realização perfeita da individualidade pessoal, na sinceridade e na autenticidade. Assim, perante o padrão normativo do dever ser kantiano que a razão pura propõe, Ortega prefere o ser próprio de

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cada indivíduo; perante a estética do dever ser, prefere a estética da realização vital, da perfeição individual. O princípio de Píndaro, expresso na fórmula «chega a ser o que és» seria o imperativo que a vida nos exige no caminho da perfeição, segundo a estética orteguiana. Ortega põe sempre em relevo, quando estão em causa obras de arte excelentes, o carácter irrecusável da sua autenticidade. É a autenticidade que confere valor radical à obra de arte viva. Propõe também, ante o gosto pelo colectivo e anónimo, o valor da personalidade na história e, em particular, na história da arte. A vida é sempre vida individual e toda a criação artística consiste- em realizar uma intimidade. A intimidade que se realiza na obra de arte é um ponto de vista sobre o universo e é insubstituível na conquista da verdade humana. Muito orteguianamente, os «presencistas» proclamaram a visão própria, irredutível, contra a mera imitação.

Até na actividade crítica fizeram ver, à maneira do pensador espanhol, que o que interessa na obra de arte é definir o seu carácter, ou seja, descrever qualificando-a, a sensibilidade que na obra de arte alcançou expressão.

É destas características expressivas e personalistas, da sinceridade e da autenticidade, que encontraremos o exemplo plenamente realizado na obra de Miguel Torga.

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Dados na biografia do

poetaOs críticos estruturalistas não tomaram em conta, geralmente, a

biografia dos poetas criticados. O texto chegava-lhes e sobrava-lhes. Para eles nada existia anterior ao texto que pudesse orientar o seu rumo, nada condicionava a sua aventura. Escrever era qualquer coisa como sondar no vazio que nos cerca. Só o texto nos revela o seu sentido e se nos propõe. A linguagem não é expressão de um sentido que lhe seja precedente mas sim produção de sentido. O artista, segundo os críticos estruturalistas, nada tem de auto - erótico freudiano: é o impessoal no mais alto grau. O que importa não é o que diz um poema mas o que ele é em si mesmo. É uma criação sem criador. É um filho sem pai. A poesia existe em estado de orfandade, segundo o estruturalismo. A desumanização continuou e pulverizou as ciências humanas. Esta foi a grande proeza dos objectivistas em linguística que felizmente morreu como morrem todos os movimentos que excluem aspectos integradores da vida humana individual.

Em contraste com a tendência objectivizante apresenta-se a tendência personalista. Todo o processo criador é sempre duplo, diz Jung: humano-pessoal e impessoal. O criador cria a partir da sua pessoa. A pessoa é o arco que dispara a flecha. Também para Ortega «cada obra de arte é um troço de vida de um homem e da sua intimidade, que se exprime por meio da obra». Com efeito, ele que fez da vida pessoal a sua metafísica, ou seja, a realidade radical, e da razão vital o seu método de análise filosófico, vincula toda e qualquer obra humana à «vida biográfica», à trama complexa de sensações, dores e esperanças que é a vida para o homem. Daí a importância que o filósofo atribui à biografia do artista ou do

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pensador. Para ele, as ideias também têm a sua biografia, já que são sempre ideias de um homem concreto. E o mesmo se dirá dos sentimentos.

A biografia, no sentido orteguiano, não se refere propriamente a uma acção psicológica. A vida não é o que se passa dentro de nós mas o que nos acontece: «A vida é o mais distante que se possa pensar de um facto subjectivo. É a mais objectiva de todas as realidades. É encontrar-se o eu do homem submergido precisamente no que não é ele, no puro outro que é a sua circunstância.» Quando Ortega invoca, por exemplo, um Goethe «desde dentro» não se refere a um Goethe intimista, solipsista, mas ao Goethe «dentro da sua vida», do drama vital do poeta alemão. «Não se trata de ver a vida de Goethe como Goethe a via, com a sua visão subjectiva, mas penetrando como biógrafo no 'círculo mágico da sua existência, para assistir ao 'tremendo acontecimento objectivo que foi a sua vida e da qual o próprio Goethe não era senão um ingrediente'. (Goethe desde dentro, IV, p. 401).

Em qualquer biografia são de grande importância os factos humanos da trajectória do biografado, como ponto de partida para qualquer comentário ou consideração. Os factos humanos duma vida não são um puro passar e acontecer: funcionam dentro da vida humana como partes dum organismo de factos em que cada qual tem um papel dinâmico e activo. Mas os factos humanos começam por ter uma data no tempo social e no tempo genético da pessoa. São, simplesmente, dados. Nenhum homem começa a ser homem: todos continuam o humano já existente. Um homem é sempre o reflexo de um tempo social: a sua época. Mas é também reflexo de um tempo que se fixa na sua estrutura psico-biológica. Não quer isto dizer que o homem se explique pelo «meio», mas que o meio é uma entre as muitas possibilidades com que se entrecruza uma vida, com o qual coexiste, convive, dialoga e até dramatiza. Não quer dizer que o homem seja o seu corpo, mas que conta com o seu corpo, onde o viver funciona duma certa maneira.

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Por isso os dados, os factos comprovados, são de importância vital numa biografia, embora haja que ter em conta a sábia advertência de Ortega a respeito dos dados: «Os dados, diz o filósofo madrileno, são sintomas ou manifestações da realidade e são dados a alguém para alguma coisa. Esse alguém é o autêntico historiador e essa coisa é a realidade histórica». (La «Filosofia de la Historia» de Hegel e a Historiología, IV, p. 533). Os dados biográficos não são toda a realidade mas são uma manifestação dela. São como hieróglifos que é necessário interpretar para que se desentranhe a realidade humana que está oculta neles.

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Dados Psico-Sociais

da biografia de TorgaA obra poética de Torga não nasce no espaço abstracto: é um

bloco de vida humana. A vida humana, biográfica, circunstancial do poeta é constituída por factos concretos — e estes factos são decisivos, merecem ser referidos, embora sucintamente.

Os factos e circunstâncias ambientais que podem ser considerados condicionantes de Torga como pessoa serão redutíveis a quatro elementos básicos: família rural de aldeia trasmontana; Seminário conciliar de Lamego; emigração no Brasil; residência em Coimbra. Neste último ponto devem incluir-se duas vertentes: a sua vocação artística e a sua profissão médica. A partir daqui terão evidentemente influência, em maior ou menor grau, as circunstâncias sócio – político - culturais do país real (salazarismo, censura, etc.) e até as da vizinha Espanha, sobretudo a sua Guerra Civil. Mas estas influências serão acompanhantes do processo vital, enquanto as outras são condicionantes mais radicais na medida em que são mais subjacentes à pessoa.

Nascer numa aldeia trasmontana de pais camponeses modestos é entrar na vida, já em si mesma incerta e laboriosa, pela porta da insegurança sem arrimo. A vida rústica, em todo Portugal, tem sido signo de servidão sem recompensa nem trégua. Pelo começo do século, e em Trás-os-Montes, o campo pesaria como condenação a morte lenta, a agonia sem fim. O pai de Miguel Torga não se conformou com a pena da enxada sobre a gleba a que o filho seria votado e concebeu uma saída mais benigna: o Seminário. A carreira eclesiástica tem servido para matar muitas fomes em Portugal. Para o frágil camponês que é o pai do futuro poeta a instituição eclesiástica apresenta-se como solução social esplêndida

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para o problema do destino do filho. E, não sendo acanhado nem preguiçoso, logo diligenciou o ingresso do pequeno Adolfo, por intermédio do pároco local, no Seminário de Lamego.

O Seminário, porém, à parte a face positiva que apresentava para o humilde rural de S. Martinho de Anta, também implicava um reverso, como toda a moeda que circula neste mundo pícaro. O reverso ia senti-lo na sua carne ainda débil o adolescente Adolfo. O regime austero, um tanto caserneiro, o esquema anquilosado das ideias e, sobretudo, das crenças, o mundo sem horizontes, a vida sem comunicação com o exterior, o dogmatismo religioso, tudo vai fazer brotar na alma do seminarista forçado uma ansiedade de ave ferida, de homem aferrolhado em cárcere estreito. Quem não nasceu com vocação de Job paciente e não abdica da sua vocação de rebelde, não tarda a lançar — qual outro Job, dirá o poeta mais tarde — os seus primeiros gritos de socorro. Pede que o libertem das mãos de um Deus que ele não quer e que os adultos lhe impõem — um Deus de fórmulas secas, de mandamentos exigentes, de justiça implacável. O Deus que fala entre trovões ficará gravado na sua alma infantil como um terrível ditador com quem lutará dia e noite. E o jovem, resoluto, decide abandonar o Seminário logo no segundo ano.

A lembrança desta experiência não se lhe apagará facilmente. Quando recebeu no seu consultório de médico, em 1963, quatro ex-seminaristas, foi nele despertada esta reflexão: «Hoje foram quatro ex-seminaristas, agora estudantes universitários, que vieram à confissão. Indelevelmente marcados pelo ferro teológico, hirtos ainda no molde da sotaina abjurada, sacrílegos nas vestimentas laicas, andam nocturnos à luz do dia. Lembrado de certo rapazinho de antanho que, embora menos demorado nos bancos eclesiásticos e mais rebelde às sombras da batina, também sentiu no corpo e na alma as pisaduras canónicas, tentei acudir aos infelizes...» (Diário, vol. IX, 21/2/1963, p. 164).

A saída do Seminário é o grande símbolo para toda a sua vida: evadindo-se de todos os becos sem saída em que os homens o

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queriam encurralar. Sempre se sentirá inseguro, como homem que é -- mas livre. A liberdade será a grande opção da vida de Miguel Torga.

Em 1920 encontra-se no Brasil, na fazenda de Santa Cruz, em Minas Gerais, confiado a um tio. Foi a segunda carta que seu pai tirou da manga no intuito de libertar o filho da grilheta da terra de S. Martinho de Anta. O mar sempre assentou bem no português, pelo menos como aventura. Por outro lado, o Brasil afigurou-se sempre urna possibilidade de futuro feliz para muitos portugueses. Adolfo, pensou o cavador trasmontano, pode ser um desses afortunados. A experiência, infelizmente, não lhe deu razão. O jovem Adolfo não encontrou as suas «américas» no Brasil. Veio rico, sim — mas em dor, em sonhos, em esperanças e decepções. O Job rebelde regressou dorido. O azar deparou-lhe urna tia por afinidade que era mulher ressentida, desconfiada e receosa de perder os bens que cobiçava para os filhos orfãos de um seu anterior casamento. E o jovem Adolfo, que era apenas um humilde guardador de rebanhos na fazenda brasílica, sentiu ali abrir-se-lhe mais uma vez a ferida da desventura originária na terra ingrata. Recordando a aventura brasileira, o homem amadurecido virá a cantar, dolorosamente:

Brasil onde vivi, Brasil onde penei,

Brasil dos meus assombros de menino:

Há quanto tempo já que te deixei,

Cais do lado de lá do meu destino!

Que milhas de angústia no mar da saudade!

Que salgado pranto no convés da ausência!

(Diário, 16/6/1970, vol. XI, p. 93)

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Em 1925 está de volta a Portugal. É um jovem exasperado mas não frustrado. Estuda sem conta nem medida. Sabe que tem de recuperar o tempo perdido, já que, «quando devia estar a ler os clássicos, andava a capinar café» no Brasil (Diário, 12/8/1946, vol. III, p. 193). E consegue-o, por obra e graça duma vontade de Job rebelde, obstinado e imperioso. Em três épocas fez o curso do liceu e ingressou no curso universitário de Medicina, O sedimento psicológico desses anos leva-o a cantar assim a infância:

No meu jardim aberto ao sol da vida

Faltavas tu, humana flor da infância

Que não tive...

(Diário, 2/5/1958, vol. VIII, pág. 105)

E em outro poema resume assim estas iniciáticas mas definitivas experiências:

Do céu dos astronautas olho a Terra.

A minha Terra...

A Terra onde nasci...

Um balão de criança

Iluminado

Pelo sol da lembrança,

Meu eterno pecado.

Deixei-a num impulso aventureiro,

E foi como se eu próprio me roubasse.

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Nunca mais tive paz

Ou fui capaz

De sonhar

Outro lar

Que me abrigasse.

(Câmara Ardente, poema «Terra Natal», págs. 42-43, 1962)

Em Coimbra deu Miguel Torga começo à grande aventura espiritual da sua vida, a aventura que ele mesmo escolheu com amor e paixão: a poesia. O estudo da medicina constituirá a sua obrigação social. A poesia é a sua devoção íntima e pessoal. Assim nasceu, em 1928, o seu primeiro livro: Ansiedade. O título é significativo duma personalidade sofreada, irrequieta, indócil e trabalhosa que preferiu o risco da insegurança na independência à segurança domesticada. O jovem Job sente-se ansioso na sua vida pessoal, sente-a como um perigo que o espreita, poderoso e inexorável e contra o qual se sente impotente, como Job. Mas, ao contrário da personagem bíblica, que é paciente, o poeta ergue-se rebelde contra todo o poder anónimo e cego, venha ele dos céus ou da terra.

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Profissão e vocação:

médico e poeta. A

caçaEm qualquer biografia, diz Ortega, desempenham acção

concertante a vocação, a circunstância e o acaso. A primeira carece da segunda e ambas do acaso, que exerce sempre na vida um papel determinante A vocação dá o impulso, com a sua qualidade de misteriosa chamada, anterior à circunstância e independente dela. Daí se segue que a primeira questão a determinar numa biografia é a de saber qual seria a verdadeira vocação do biografado e a sua fidelidade ou infidelidade a esse destino singular. A vocação não deve ser confundida com a profissão. A vocação é muito mais que uma profissão: é todo um programa integral e individual de existência. A vocação coincide com o eu, com aquilo que, em cada instante, cada indivíduo sente que «ter de ser» no instante seguinte e após este, numa perspectiva temporal mais ou menos dilatada... É uma tarefa. Este eu coincidirá com a vocação, ou seja, com o seu autêntico projecto vital, se se tratar de um eu autêntico e não de um eu arruinado num homem frustrado.

Sendo assim, a vocação não coincide necessariamente com a profissão. A profissão é, muitas vezes, um instrumento de adaptação social. E, nesse sentido, há duas classes de profissões, segundo Rof Carballo: «acolhidas» e «desacolhidas», segundo coincidam ou não com o estilo existencial de um grupo humano. A profissão de médico é uma das vocações «acolhidas» pela sociedade. A vocação

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de poeta ocupa um lugar intermédio entre as vocações «acolhidas» e «desacolhidas» socialmente. Por via de regra os poetas, pelo menos antigamente, eram considerados seres extravagantes, uma espécie de outsiders, de deslocados. A vocação de poeta não abriga ninguém e, pelo contrário, desampara. E isso devido, entre outras coisas ao facto de uma das missões do poeta, talvez a primacial, ser a de chamar a si a realidade total. Por outras palavras: reabilitar a vigência das coisas preciosas que a sociedade, na sua estruturação do real, abandona nas margens do seu sistema. Por isso um bom artista é sempre um pouco outsider, um tanto deslocado. E, se não o for, fica sempre a suspeita de que não se trata de um artista verdadeiramente bom. (Medicina y actividad creadora, «Revista de Occidente», Madrid, 1964, págs. 256 a 259).

Quanto a Miguel Torga, cumpre dizer que, embora a profissão de médico não coincida com a vocação de poeta, há iniludivelmente entre essas suas duas formas existenciais um pacto de não-agressão ou até uma secreta aliança. Desde que abriu consultório em Leiria em 1937, depois em Coimbra, e até ao presente, nunca o médico Adolfo Rocha faltou à convocatória dos seus doentes por malquerença do poeta Miguel Torga. A coexistência destas duas personagens na mesma pessoa assegurou a uma delas segurança e honorabilidade sociais, à outra densidade espiritual. Dessa coexistência pacífica temos largos testemunhos no Diário do poeta-médico. Admirando-se consigo mesmo mas aceitando a sua decisão afirmava em 1933 que, contra toda a lógica das suas tendências aparentes, que naturalmente pareciam exigir Letras ou Direito, resolveu ser médico.

O jovem Adolfo Rocha sabia muito bem o que significava o desamparo socioeconómico. Por isso quis optar por uma profissão respeitável e rendosa, que não anulasse a vocação do seu eu mais puro e autêntico: o do poeta. Dos resultados da opção dá conta em 1961: «Ao invés doutras profissões, que estrangulam no indivíduo o espírito de aceitação e compreensão do semelhante, esta faz o contrário. O médico, como tal, nem pode fechar as portas da alma, nem apagar a luz do entendimento. É todo o humano que o solicita

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a todas as horas: o que sofre, o que simula, o que teme e o que desvaria. E só a graça de uma certa dimensão afectiva e mental permite corresponder eficientemente a tantos e tão diversos apelos. Ora, essa dimensão está implícita na condição do artista, o mais receptivo e perceptivo dos mortais. Por isso, quando o acaso sobrepõe a uma vocação criadora uma condenação clínica, não há dramas sangrentos. A caneta que escreve e a que prescreve revesam-se harmonicamente na mesma mão». (Diário, 20/1/1961, IX, pg. 59).

Mais ainda: na sua profissão de médico encontrará verdadeiras satisfações poéticas de observação, como assinala em 1960: «Há um lance no exercício da profissão que sempre me apaixonou: a anamnese. O relato dos padecimentos feito pelo doente à cordialidade inquisidora do médico. É ele o grande momento humano do acto clínico. O instante em que o abismo se abre ou não abre, a verdade vem à tona ou não vem, se realiza ou não o encontro da aflição com a piedade». (Diário, 26/12/1960, IX, pp. 55-56).

Como seria inevitável, este aspecto propiciatório do exercício da medicina é acompanhado de alguns sofrimentos, como o da monotonia quotidiana do consultório. Já em 1947 o poeta Torga se dava conta, claramente, dos sacrifícios que lhe eram impostos pelo médico Adolfo Rocha. Assim o evoca com mal contida amargura: «Regresso ao consultório. Ainda ontem andava à solta pelas fragas, e já hoje passei o dia amarrado a este tronco, a cheirar ozenas. O que isto representa na minha vida de artista, só eu é que o sei. Esterilizo-me como água fervida. Não tenho inspiração nem vontade de criar. Nasci para falcão da serra, e não para codorniz de baixio. Nos lavados ares do monte, tudo me excita, e os versos nascem às catadupas. Aqui, tiro-os a forceps, como fetos monstruosos que não querem viver». E logo adiante: «...as férias passo-as eu aqui (no consultório) o ano todo, à espera de dois meses de trabalho fecundo. Porque eu sou artista, não sou médico. Operar como eu opero, observar como eu observo e receitar como eu receito, qualquer meu colega honesto e com alguma habilidade o

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pode fazer. Mas escrever os versos que eu escrevo, bons ou maus, é que só eu». E, melancolicamente, alude aos amigos que o subestimam como poeta: «...quem eles respeitam um pouco é o clínico que de vez em quando os assoa ou lhes compõe o fígado. O poeta nunca fundamentalmente os interessou, ou porque não gostam do que escrevo, ou porque em Portugal nunca um artista teve qualquer categoria. Até ao dia de hoje não encontrei uma alma caridosa que me dissesse:

— Homem, deixe a porcaria da profissão e seja escritor!

Nem um só de tantos indivíduos que conheci, e estimei, me empurrou para o meu caminho verdadeiro.

— Tenha paciência, em Portugal nunca ninguém viveu da pena... E

aqui estou, mais uma vez a servi-los, ou a servir aquilo

que eles julgam ser o meu destino». (Diário, 13/10/1947, IV, pp.

62-63).

Bem o havia dito Ortega: «Todos levamos esta dupla existência: a lendária, na mente dos outros; e a autêntica, no segredo da nossa vivente solidão». (Goethe sem Weimar, IX, p. 589). Esta foi uma das cargas mais difíceis de suportar para o poeta que o médico de Coimbra esconde. Mas nem sempre a profissão é sofrimento. Em alguns momentos, pelo contrário, é duplicado prazer. Em 1953 escreve: «Um dia em cheio. Desde as nova da manhã até às sete da tarde a semear confiança. E ...] É bom isto de ser médico e poeta. São dois a dar. Os jovens vêm-me pedir ajuda, porque faço versos; os velhos, porque os posso medicar. E lucramos todos. Eles por sentirem que não estão sós no mundo; e eu, afinal, também. [...] Quando pela manhã abro a porta da tenda, há sempre dentro de mim dois sujeitos a dialogar. Um a dizer mal do destino e o outro a dizer bem. Mas se consigo, como hoje, dar realmente um empurrão

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à vida, fecham-na ambos, à noite, reconciliados». (Diário, 2/3/1953, VI, pp. 175-176).

Por outro lado, o profissional secundou a obra do poeta resolvendo-lhe os problemas económicos, que assumiram em Torga um cunho peculiar, dado que é o autor o editor dos seus próprios livros. Por tudo isso foi bem merecido o preço que por vezes teve de pagar na sua alma a quem lhe tem pago os versos.

Em 1946 escrevia: «Trinta e nove anos. Meia vida passada, se isto se for aguentando, tomba daqui, tomba dali. E tudo por fazer! [ ] Ao cabo de cada livro sinto-me insatisfeito e culpado como um pecador que não cumpriu bem a sua penitência. Não tenho ambições fora da arte ] mas não consegui ainda dar-lhe tudo, jogar a vida e a morte por ela. Para isso era necessário calcar aos pés o homem civil que sou, e não posso. Necessito de ter as minhas contas em dia como qualquer mortal honrado [ ] Quando me apetece escrever, estou a curar anginas; e quando é preciso salvar o artista, ponho-me a salvar o homem». (Diário, 12/8/1946,. III, p. 192).

Esta coexistência, por vezes dramática, da profissão com a vocação, não só serviu ao poeta Torga para saldar as dívidas da economia caseira como lhe valeu para não contrair outras de natureza espiritual que os escritores que vivem do ofício da literatura são obrigados, muitas vezes, a contrair. É frequente que quem vive do que escreve acabe por escrever do que vive, ou melhor: na dependência de quem vive. Neste caso, seria o público. E escrever para agradar, mesmo ao público, teria sido um pecado que Torga nunca perdoaria a si mesmo, dado o seu sentido do pundonor e da independência espiritual. Pelo contrário, o escritor que conta com outras fontes de rendimentos para a sua subsistência não se sente na necessidade de escrever para comer — e muito menos para agradar seja a quem for. Escreve, sim, e apenas, por dever vocacional, que é a única necessidade transcendente para um escritor. Evitar qualquer servidão: eis o que o médico Adolfo Rocha tornou possível ao escritor e poeta Miguel Torga.

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Outro aspecto da vida de Torga relacionado com o problema vocacional é a sua paixão pela caça, ocupação favorita profundamente arraigada no complexo das suas vivências pessoais. Virá a propósito recordar o que diz Ortega sobre as «ocupações» humanas: «Todo e qualquer homem se sente chamado a ser feliz; mas, em cada indivíduo, esse difuso apelo concretiza-se num perfil mais ou menos singular com que se lhe apresenta a felicidade. Felicidade é a vida aplicada em ocupações para as quais cada homem sente singularizada vocação. Entregue a elas, não precisa de mais nada; o presente preenche-o na íntegra, liberto de afãs e nostalgias. Exercemos as actividades trabalhosas, não porque se sinta estima por qualquer delas mas pelos resultados que proporcionam — ao passo que às ocupações vocacionais nos entregamos por complacência com elas mesmas, sem nos importarmos com o seu ulterior rendimento. Assim estão os humanos colocados ante dois repertórios opostos de ocupações: as do trabalho e as da felicidade. É sempre comovente ver como em cada indivíduo combatem ambos. Os trabalhos tiram-nos o tempo para sermos felizes e as delícias das ocupações vocacionais reduzem quanto podem o tempo exigido pelo trabalho». E acrescenta: «Se nos ativermos aos factos, descobriremos, quer o queiramos quer não, com simpatia ou repulsa, que a ocupação venturosa mais apreciada pelo homem normal tem sido a caça». ( Prólogo a un tratado de monteria dei Conde de Yebes, VI, pp. 423-424).

Estas palavras, de admirável exercício filosófico da razão vital sobre a caça, escritas em Lisboa no ano de 1942, situam-nos na pista dos conteúdos afectivos do gosto permanente de Torga pela ocupação venatória. Para o poeta transmontano, de facto, a caça tem constituído, juntamente com a vocação literária, uma ocupação verdadeiramente propiciatória de felicidade.

É o próprio que o diz, sem circunlóquios: «Não consegui ainda explicar a causa deste sentimento de segurança que se apodera de mim quando me embrenho pelas serras à caça. É uma paz de preservação, de anonimato, de intangibilidade. Não sendo eu cobarde nem medroso, a verdade é que fora de aqui constrange-me

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sempre o presságio dum perigo iminente. Mas à solta por estas brenhas, um perfeito equilíbrio da alma e do corpo dá-me a plenitude do homem normal, casado e harmonizado com o meio. Talvez seja porque atrás destas fragas me posso defender de tudo e de todos. Seria o homem primitivo com o seu sílex afiado na mão no meu caso particular uma arma de cinco tiros». (Diário, 3/10/1949, vol. V, pág. 53).

Porquê esta paz de sentimentos em Torga caçador, que ele próprio não sabe como explicar? Pois porque, como acentua Ortega no citado prólogo, a caça desportiva funciona no autêntico aficcionado como «férias de humanidade». Quer isto dizer que, quando caçamos, intentamos viver uma vida enormemente simples e sem problemas. Mais ainda: quando o homem caça diverte-se radicalmente porque se diverte de ser homem e retorna à sua quase olvidada vida animal. O princípio da caça desportiva é o de perpetuar artificialmente, como possibilidade para o homem, uma situação sumamente arcaica: a situação dos primórdios da humanidade em que o homem, sendo já humano, vivia ainda numa órbita de existência animal. Caçando, o homem consegue anular toda a evolução histórica, desprender-se da actualidade e renovar a situação primigénia. Ao dirigir-se para o monte o caçador despoja-se das preocupações, do carácter e dos modos de ser da personagem actual que é, deixando de novo brotar em si o homem silvestre. Parece então que a vida perde peso e que circula nela a atmosfera fresca e flagrante duma adolescência. Quando o homem é inserido na natureza pela caça, sente que regressa à sua casa solarenga. («Prólogo a um Tratado de Monteria», VI, pp. 476-481-482).

De todas estas considerações podemos deduzir a razão porque Torga caçador experimenta aquela soberana segurança, sem tristes presságios; porque vive em estado de felicidade; e até porque, certeiramente, se compara ao homem primitivo, ao homem que não caiu ainda no logro que ele mesmo inventou para seu bem e para seu mal: a vida em sociedade. E será agora oportuno perguntar: — Não será devido a esta íntima vivência de felicidade que se poderá explicar o facto notório de que o poeta seja tão parco,

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quase silencioso, em cantar a sua ocupação venatória? Da felicidade não reza a história — nem a dos povos nem a dos homens.

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Poeta independenteAdolfo Rocha, o homem que se acomoda docilmente ao

império do social através duma profissão respeitável, manterá livre e puro de qualquer servidão o fundo insubornável da sua pessoa exprimindo-se pela vocação poética. Mais ainda: nesta esfera espiritual a sua independência assumirá tonalidades de estremada rebeldia, como se quisesse compensar de algum modo a honesta docilidade da pessoa civil que o acompanha. O Job paciente que é na sua profissão de médico, transforma-se por obra e graça do temperamento poético num Job rebelde, autónomo, arisco, contestatário, implacável com quaisquer tabus, com grupos de pressão e até com os círculos de intelectuais anodinos e retóricos. Assim o ratificou nas palavras proferidas quando da entrega do Prémio Internacional de Poesia, em Bruxelas: «Solidário mas autónomo, o poeta é um rebelde que sabe que a poesia apenas subverte porque transfigura, e que será esse sempre o seu vanguardismo... Todos vivemos exilados dentro de nós [...) na transparência da poesia. Só não trai o seu semelhante quando não se trai a si próprio». (Diário, 6/6/77, XII, pp. 197--198).

A este sentimento de autenticidade chama Ortega vocação: realização plena do nosso eu, compromisso com a verdade que não é senão a coincidência com nós mesmos. A vida de um poeta é, por excelência, intimidade. E, pelo próprio, só pode ser vista de dentro da sua interioridade. A interioridade de Torga está, na verdade, inteiramente reflectida nos seus poemas. «A poesia é a mágica possibilidade concedida ao homem para se evadir, de vez em quando, do seu efectivo viver», diz Ortega em «Goethe sin Weimer,( IX, pág. 579) . É deste efectivo viver que, para Torga, pressupõe a aceitação do médico Adolfo Rocha, quotidianamente, no seu consultório, sem protestar ante os seus semelhantes necessitados.

Esta mágica possibilidade de evasão utilizou-a Torga não só para se evadir do cárcere da sua vida civil como da trivialidade do

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quotidiano, descobrindo novos caminhos para o reino das coisas belas e possíveis, incluindo a solidariedade humana. A literatura nunca pôde ser para Torga, como pôde ser para Fernando Pessoa, uma «palhaçada» que servisse para escamotear o absurdo da vida ou, como proclamam Cesariny e Jorge de Sena, para exprimir a ausência de sentido do mundo. Para o poeta do Cântico do Homem a poesia é a liturgia duma fé humana, duma atitude vital e comprometida — é o acontecimento mais importante do seu viver como peregrino de um reino futuro e humanizado para o homem. Em 1951 escreve: «O que fez da Poesia um dos picos imaculados da cultura europeia, e ao mesmo tempo um factor decisivo da consciência universal, foi o seu heroísmo e a sua fidelidade a tudo o que é eterno. E para que continue entre os povos europeus essa missão purificadora e unificadora, é necessário que ela seja a expressão dos mais puros anseios de cada um e de todos. É preciso que abrace não apenas um indivíduo ou uma classe, mas o Homem. O Homem que as religiões salvaram para o céu nas catacumbas e no martírio, e que a Poesia deve salvar para a terra, à clara e alegre luz da beleza. Porque só a beleza nos arranca à solidão e nos une na mesma comunhão fraternal». (Diário, 11/3/1951,. VI, p. 19).

Para Torga a poesia situa-se nos antípodas do modernismo. Atribui-lhe uma missão integradora do cosmos, entende-a como instrumento de conexão universal, que os grandes artistas, desde Platão, utilizaram para conceber a harmonia do universo. Por solidariedade com os que entendiam a poesia como «documento humano, superiormente pessoal», como «atitude original e sincera», o jovem Torga aderiu ao movimento da Presença. Mas logo que esse grupo poético, a seu ver, se desviou dessa função primária de autenticidade humana e enveredou pelos meandros do esteticismo na forma e da ambiguidade no fundo, Torga abandonou o grupo, não sem antes dirigir aos responsáveis da revista uma carta testemunhal, juntamente com outros insolidários. Por duas vezes mais intentou o poeta poetizar em grupo — mas acabou por desistir quando chegou à conclusão de que a autenticidade poética é

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demasiado sublime e exige o máximo de pureza e de fidelidade pessoal. E isso não se consegue em grupo.

Daí por diante, Torga percorre o seu largo caminho poético como solitário. Coimbra defende-o das possíveis seduções literárias de Lisboa e preserva-o das hipocrisias e falsificações. Na sua solidão conimbricense intentará «ser de todos em vez de «camarada de poucos». Sobre isto escreve no seu Diário:

«Dizia-me hoje alguém: — Homem, se você pudesse ser na vida

literária o que é na vida clínica — conciliante, passa-culpas,

carregado de perdão —, que maravilha! Sem se lembrar, o pobre, da

diferença que há entre assistir a um irmão doente, que precisa de nós

num sentido cósmico de piedade e amor, e reagir a uns tartufos sãos e

gordos, que fazem desta coisa sagrada que é para mim escrever um

meio de chegar aos seus mesquinhos e nojentos fins». (Diário,

22/6/1942, II, p. 37).

Torga teve rapidamente a intuição do estatuto próprio da independência do verdadeiro poeta. Se os poetas não se fincam em nenhum terreno, se são demasiado largos — escreveu um dia — é porque a lei que rege o poeta não é conhecida por ninguém: o poeta não cabe no destino que se lê na mão. Sentirá, por vezes, que terá de pagar um preço por esta sua independência pessoal. Duvida, consequentemente, da sua normalidade, mas corta a questão com a espada da «vocação poética». A anormalidade, se é criadora, não lhe mete medo.

E, aprofundando o tema, afirma que lhe interessa muito mais saber até que ponto o homem normal combate o artista e intenta destruí-lo. A normalidade causa-lhe pavor, precisamente porque é destruidora. De facto, a normalidade humana é constituída pelo homem médio, que se alimenta de tópicos, de crenças e de falsas seguranças. A pretexto de igualitarismo democrático, as pessoas

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«normais» medem todos pela mesma rasoura, cerceando qualquer tentativa de desigualdade, por muito pessoal que seja. A desigualdade, sem dúvida, implica dignificação da inteligência e da vontade. E os «normais» não se mostram dispostos a reconhecê-lo — em parte porque as desconhecem. Escreve, a propósito: «É verdade que tenho tido muitas doenças, muito sofrimento, avivo as rugas do desespero, aguço os velhos cilícios». Mas em contrapartida, acrescenta, «poucos devem ter tido no mundo a minha sorte: ser um homem inteiramente livre». Afirma ainda: «Permaneci na minha pureza natural, cidadão livre do mundo e português. Mas não há dúvida que, para a maioria, me cerquei de arame farpado». (Diário, 20/5/1947, IV, pp. 42-43).

Esta independência humana e poética está na mesma linha que Ortega confere ao exercício da teoria que o escritor representa. Diz o filósofo espanhol: «O engagement é a mais radical possível das contradições da essência mesma da teoria, que é revocabilidade permanente. A nossa mente, quando é o que tem de ser, é um pêndulo meditabundo; e tudo o que não seja isto é a definição da brutalidade... A teoria é algo que nasce da dúvida e pervive nela permanentemente... A dúvida é a entranha vivente da verdade... O homem é um animal hipotético que vive de hipóteses, como Platão sempre ensinou. Quando deixa de o ser ou não o consegue, começam automaticamente a funcionar a estupidez e a brutalidade, que são as suas mais proeminentes inclinações». ( El lado jovial de la filosofia, VIII, pp. 314-315).

Torga tem-se comportado sempre como homem da dúvida, da hipótese. Daí que tenha fugido dos grupos que se encerram em sacristias para elaborar dogmas, para comprometer-se em programas partidários irrevogáveis. Para não cair na brutalidade, preferiu incessantemente a solidão. Se esta vocação da teoria o tem mantido fiel a si mesmo, isso só foi possível porque ninguém tem sentido mais do que o homem Torga a obsessão metafísica da liberdade. Sobre a necessidade de liberdade se fundamenta toda a atitude de independência pessoal — e o sentido da liberdade é a pedra de toque dessa independência. Já dizia Hegel que «realidade

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independente e realidade livre são sinónimos». E mais ainda: para o filósofo alemão, o Espírito, que dirige o processo da história humana, manifesta-se precisamente como liberdade. Por isso o «progresso na consciência de liberdade» constitui para Hegel o conteúdo da história universal. Também segundo a antropologia metafísica de Ortega a liberdade não pode deixar de funcionar quase como fatalidade. Sendo a vida humana um que fazer que se nos impõe, não temos outra possibilidade de adquirir a nossa própria identidade — visto que não podemos tê-la naturalmente — senão conquistando-a por meio de actos selectivos e, portanto, livres. A circunstância em que nos encontramos apresenta-nos diversas possibilidades de fazer e, por conseguinte, de ser. E isto obriga-nos a exercitar, queiramos ou não a nossa liberdade. Somos livres à força. No entanto o ser humano, em virtude de ser livre, é livre em face do seu destino. Pode aceitá-lo ou resistir-lhe.

É claro que a liberdade nunca é absoluta. Aceitamos a fatalidade e é nela que nos decidimos por um destino. Foi esta fidelidade ao destino pessoal que motivou o fervor ardente de Torga pela «flor da liberdade». Por isso a canta:

Liberdade!

Liberdade do homem sobre a terra,

Ou debaixo da terra.

Liberdade!

O não inconformado que se diz.

A Deus, à tirania, à eternidade.

(Orfeu Rebelde, Coimbra, 1970)

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Quando sente que lhe falta o ar da liberdade aos seus pulmões de Orfeu rebelde, não pode deixar de esbracejar como um náufrago:

Ar livre que não respiro!

Ou são pela asfixia?

Miséria de cobardia

Que não arromba a janela

Da sala onde a fantasia

Estiola e fica amarela!

(Cântico do Homem, Coimbra, 1974)

A liberdade, que é o pão metafísico do homem, as mais das vezes haverá que conquistá-la na vida social, já que toda e qualquer sociedade acaba por desumanizar o homem nas suas qualidades fundamentais. Daí a obstinação conquistadora do poeta:

Livre não sou, que nem a própria vida

Mo consente.

Mas a minha aguerrida

Teimosia

É quebrar dia a dia

Um grilhão da corrente.

Livre não sou, mas quero a liberdade.

Trago-a dentro de mim como um destino.

(Cântico do Homem, 1974)

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O destino da liberdade é sempre dramático para quem toma o

pulso das suas ansiedades, como o poeta transmontano. O sentimento da liberdade é a glória e o fardo de todo o verdadeiro poeta:

Livre, poeta, livre!

A noite é o teu Jardim das Oliveiras:

Ninguém te vê, nem ouve, nem pressente.

Dormem os inimigos

E os amigos.

Corre, e canta a correr, água corrente!

(Penas do Purgatório, Coimbra, 1954)

Mas, suceda o que suceder, o poeta será sempre fiel ao seu destino de conquistador da liberdade. A flor da liberdade vale bem o esforço. Por isso a sua vida será uma vigília permanente. Soldado da liberdade, faz a guarda sob as estrelas em todas as noites da vida:

Não me posso render, haja o que houver.

Salvar a vida pouco me adianta.

O pendão que levanta

A minha decidida teimosia,

Transcende a noite e o dia

De uma breve e terrena duração.

Luto por todos e também por mim,

Mas, assim:

Desprendido da própria perdição.

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É o espírito da terra que eu defendo,

Numa cega constância

De namorado:

Esta causa perdida em cada instância,

E sempre a transitar de tempo e de julgado.

(Penas do Purgatório, Coimbra, 1954)

É esse o preço da independência interior do poeta para quem a liberdade é a -única razão de viver, a permanente conquista em que se forja a sua personalidade de herói esforçado e anónimo, de lutador sem tréguas. Porque não é pedra, canta e sente — e aspira a continuar sendo águia sobre os cumes agudos de todas as serranias.

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Poeta sinceroUma das características dos «presencistas» de Coimbra é a

sinceridade da criação artística. Ou melhor: do criador da obra de arte, já que a sinceridade diz respeito ao artista. Os «órficos» situam a tónica fundamental na obra de arte, os «presencistas» no artista. O artista será sincero pela autenticidade. E a autenticidade é a coincidência da obra com o nosso fundo indeclinável, com a nossa vocação. Os «presencistas», leitores de Ortega, pensarão como ele nas Glosas (1902), que «por trás de cada coisa, de cada facto, está o criador da coisa, o autor do facto» e que cada obra de arte é «como que um pedaço de um homem». O indivíduo Quixote será um indivíduo da estirpe Cervantes. Aos modernistas interessava somente a obra em si, independentemente do seu criador. E mais ainda: num poema, por exemplo, não lhes interessava sequer o que o poema dizia mas sim o poema em si. A linguagem não é expressão de um sentido que a preceda, mas produção de sentido em si mesma. Como acentuou Gaêtan Picon, «a revolução da modernidade começa no momento em que a linguagem de expressão é substituída por uma linguagem de criação, isto é, quando a linguagem produz um mundo que não expressa». (L'Écrivain et son Ombre, Gallimard, Paris, 1967, pág. 159).

Aos modernistas não dá cuidado o problema da sinceridade, que os «presencistas» proclamam. Ou, pelo menos, entendem-na de maneira muito diferente. Fernando Pessoa, o pontífice supremo do modernismo português, define assim a função poética na sua célebre Autopsicografia:

O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

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Têm sido inúmeras e contraditórias as interpretações feitas desta estrofe. E talvez todas sejam verdadeiras sob o prisma do modernista. Haverá sempre que tomar em conta, no entanto, o que o próprio Pessoa comunicou a Francisco Costa quando escreveu: «Pouco importa que sintamos o que exprimimos; basta que, tendo-o pensado, saibamos fingir bem tê-lo sentido». (Citado por Jacinto do Prado Coelho em Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa, Lisboa, 1969, pág. 102). Deste modo, o fingimento que Pessoa invoca não é da ordem da insinceridade pessoal, como tantos pressupõem, mas da ordem da pura estética modernista. O poeta modernista perfilha expressamente o que Ortega y Gasset designa por «sentimentos especificamente estéticos». A suprema realidade, para ele, não é a realidade vivida mas a realidade pensada. Daí a «desumanização» que Ortega denunciou em toda a arte modernista ou nova. Em vez de reproduzir situações vividas emocionalmente, o poeta modernista apenas as vive mentalmente. Não faz da ideia um instrumento do pensamento para captar um objecto, mas sim objecto e termo do próprio pensamento, como assinala Ortega.

o prazer estritamente estético o que o modernista oferece por meio da linguagem, que não exprime o que sente mas o que pretende criar o artista que pensa. Daí que Ortega afirme que «a arte nova é uma arte para artistas no sentido mais amplo da palavra, ou seja: não só os produtores de arte como todos os que tiverem a capacidade de perceber valores puramente artísticos». (0.C., La deshumanizaeión dei arte, vol. III, pág. 365). A suprema aspiração do modernista é evadir-se da realidade vivida para se encerrar na realidade inventada — donde deriva a sua pretensão de falar da «ausência das coisas», já que é através da ausência dos objectos reais que pode alcançar os objectos ideais. Neste sentido pôde Casais Monteiro atribuir a Fernando Pessoa «o estranho poder duma imaginação única» (Fernando Pessoa, Poesia, apresentação, ed. Agir, 1968, pág. 9) pois que a constante fuga da realidade exige um grande poder imaginativo— a «coisa mais difícil do mundo», no dizer de Ortega. Por tudo isso, a sinceridade do poeta modernista

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pertencerá à ordem dos objectos estéticos e não ao da experiência vivenciada. Essa sinceridade estética equivaleria à «insinceridade em segunda potência» de que fala Ortega ao referir-se ao classicismo, arte de convencionalidade constituída. (Sobre la sinceridad triunfante, IV, p. 515).

O poeta «presencista», pelo contrário, repudia o esteticismo acionalista e confere todo o valor à vivência pessoal. A autenticidade, para ele, é a transmissão directa do mundo das suas vivências. À desurnamzação artística por obra da inteligência opõe a re-humanização da arte pela vivência pessoal e sincera, embora com certa tonalidade dramática, retórica, declamatória e persuasiva, como tem sido assinalado por vários críticos. A «autopsicografia» de um poeta como Torga, parafraseando a de Pessoa, poderia tomar esta forma: «O poeta é um sentidor. / Sente tão completamente / que chega a sentir a dor / que recria poeticamente».

A ideia foi substituída pela vivência. É mais sincera esta atitude do poeta «presencista»? É mais humana, sem dúvida, ao nível das situações vividas pela imensa maioria dos humanos. Por isso Juan Ramón Jiménez, significativamente, dedicou a sua faina poética «a la minoría, siempre», ou seja: aos que foram capazes de o acompanhar através da floresta dos valores puramente estéticos.

De facto, na linha duma estética vivencial, de sinceridade dramática e patética, Torga é um caso exemplar. É um artista «monstruosamente» sincero — artista que não «faz» a obra de arte e que deixa que esta, transbordando-o, o faça mais do que é. Ou, pelo menos, assim o crê. De facto, incorre muitas vezes na ênfase da sinceridade e até num certo histrionismo. Sobre a sinceridade confessa o poeta: «Cada qual recebe ao nascer a sua herança. A minha foi esta: um largo cenário de sinceridade». (Diário, 11/2/1961, vol. IX, pág. 60). Toda a sua obra poética está impregnada, sem dúvida, de estados afectivos representados com grande probidade humana:

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Vou aqui como um anjo, e carregado De crimes!

Caminho nesta ingénua confiança

De criança

Que faz milagres a bater as mãos.

(Penas do Purgatório, «Inocência»)

Pisa os meus versos, Musa insatisfeita! Nenhum deles te merece.

São frutos acres que não apetece Comer.

Vestígios digitais do evadido

Que deixa atrás de si as impressões marcadas.

E corta-me de vez as asas que me deste.

Mandaste-me voar;

E eu tinha um corpo inteiro a recusar

Esse ímpeto celeste.

(Penas do Purgatório, «Maceração»)

O poeta tem que narrar os seus sentimentos em forma dramática, tal como brotam da sua alma de homem atormentado:

Ah, não! Assim eu possa resistir!

Os próprios versos são a mais, aqui.

É, no fundo, contar o que senti

Todo este tempo que passou e passa.

(Penas do Purgatório, «Decisão)

E ainda, em confissão aberta:

A vida é um medo que não sei vencer.

Vivo nela uma espécie de saudade

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De viver...

(Penas do Purgatório, «Dissonância»)

Quando sente dentro de si o abandono de tudo, não se entrega ao nada, como o seu mestre Fernando Pessoa, antes se prende mais ainda à sua condição de poeta. A poesia é a sua salvação pessoal, a sua linguagem de náufrago:

Vê se brilhas no céu, ó minha estrela

De poeta!

Sem ti, como há-de ser?

(Penas do Purgatório, «Súplica»)

Poetizar, para Torga, implica uma tal faina de sinceridade pessoal que não terá dúvida em afirmar que a maior prova de amor que um poeta pode dar a uma mulher é a sua intimidade; que escrever versos diante dela é como parir com um Cristo à cabeceira da cama. Por isso se manterá sempre afastado das intrigas literárias, para não ter que deixar «a sinceridade no tinteiro». A sinceridade, para um poeta marcado pelo patetismo, como Torga, tem sempre conotações afectivas. Muitos dos seus livros apontam no próprio título o grau da sua emotividade: Ansiedade, Abismo, O Outro Livro de Job, Lamentação, Libertação, Nihil Sibi, Cântico do Homem, Penas do Purgatório, Orfeu Rebelde, Câmara Ardente, etc.

O poeta essencialmente afectivo que é Torga leva-o sempre, também, a ser persuasivo, a convencer o «outro» que o escuta dos seus sentimentos e das suas ansiedades. Por isso a sua poesia está em constante antagonismo perante o modernista: o leitor não pode re-criar nada com a poesia de Torga, só pode escutá-lo. Roland Barthes, orientador duma linguística que se conjuga com o modernismo poético, diz que «o escritor não deve servir-se da

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linguagem para persuadir o leitor, mas sim para o comprometer na possibilidade de invenção que a língua torna possível». E continua: «Um poema não deve ser um labirinto onde todos os caminhos estejam previamente traçados, mas um amplo campo de liberdade re-criadora». Nada disto é fácil com a poesia de Torga. O seu expressíonismo dramático e persuasivo rodeia-nos, envolve-nos e obriga-nos a ceder perante a sua força pessoal. É como se, em cada poema, Torga quisesse impor-se-nos como nosso salvador. Mais do que um esteticista, quer ser um profeta. Por isso, quando chegou à conclusão de que o movimento «presencista» começara a degenerar em esteticismo, abandonou o grupo.

E Torga sempre afirmou que não há maior desgraça para um artista do que começar pela literatura e não pela vida. Ser poeta, para ele, é uma missão de verdade — e o poeta tem que exercer essa missão para ser autêntico:

Sou poeta,

Vou de poeta,

E são versos que sei.

Versos, pois, vos direi,

Ouvintes verdadeiros!

O mar também só diz

O que sabe:

Que não cabe

Nos abissais sepulcros onde mora

E por isso transborda o sofrimento

Em ondas de ilusão — versos em movimento

Que o infinito lê e a solidão decora.

(Diário, 27/7/1954,. VII, p. 111,«Missão»)

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Porque está convicto do seu espírito de missão na sinceridade e na autenticidade pode levantar, «atrevido, / a voz de sonhador» e passar «como um rei / sem dar mostras de íntimo terror». (Diário, 6/4/1973, XI, p. 203). O poeta, para Torga, é «um maluco que rouba quanto vê», é «um deus que passeia o seu caminho / a beber a amargura de quem chora». (Diário, 5/3/1943, II, p.134). A poesia deste poeta comprometido distancia-se de qualquer forma estilizada de poesia, de qualquer concessão de ideias estereotipadas da sociedade: «Homem de ar livre, a minha poesia não é de autógrafos nem de gavetas. É um golpe de vento no alto duma serrania, onde subo a ver se consigo oxigenar o sangue e a vida. Não, quando eu morrer, queimem tudo quanto escrevi e não publiquei». (Diário, 18/6/1950, V, p. 100).

Sente por vezes essa missão profética na sinceridade pessoal como um esvaziamento interior: «O artista, à medida que o tempo passa, não enriquece Empobrece, é que é. Devagar, mas ininterruptamente, foi dando tudo à arte: a seiva, a inteligência, a vida. E acaba por ficar pobre como Job». (Diário, 8/4/1949, V, p. 10).

Significa isto que o poeta analisa todos os seus estados espirituais, faz a cada passo um profundo «exame de consciência» de todas as suas vivências:

Por tudo passa o artista:

Primeiro pela alegria

De se julgar criador

No seio da natureza;

Depois, por esta tristeza

De ver morrer o que fez,

Sem ter nas mãos a certeza

De erguer o sonho outra vez.

(Diário, 7/4/1949, V, p. 9)73

Sendo o poeta tão pessoal, tão comunicativo e expressivo, continuará para os seus leitores tão desconhecido e inapreensível na sua personalidade como é, por exemplo, Fernando Pessoa? Vem a propósito lembrá-lo ante uma afirmação sua que pode dar lugar a diversas interpretações. Diz: «Que insondável mistério é um ser humano! [...] Converso, escrevo páginas maciças de confissão, actuo, pareço transparente. E quem um dia quiser saber o que fui, terá de me adivinhar...». (Diário,20/2/1969, XI, p. 37).

Será esta adivinhação uma exigência desmedida, quando Torga é o poeta da sinceridade pessoal por excelência? Pablo Neruda, outro poeta de sensibilidade aberta e força telúrica, de pulsação cósmica, escreveu também: «Se me perguntam o que é a minha poesia, terei que dizer-lhes: não sei. Mas se o perguntam à minha poesia, ela lhes dirá quem sou». Se toda a comunicação verbal é projectiva, muito mais o será uma comunicação expressionista como a do poeta-médico. Contudo, bem se sabe que o individual é sempre inacessível; que o podemos pressentir, supor, mas nunca conhecer verdadeiramente. Nesse sentido dirá Ortega que «uma biografia é sempre, ao cabo, um labor estético em que o acerto permanece eternamente duvidoso». (Asamblea para el progreso de ias Ciencias, I, p. 101).

Por esta via poderemos ir compreendendo o pensamento de Torga sobre a «adivinhação» para o possível conhecimento—sem deixarmos de tornar em conta a deficiência dos instrumentos de comunicação inter-individual. A linguagem, por exemplo: a palavra escrita, que é um dizer em segunda potência quando comparado com a palavra falada. É certo que uma linguagem, quando não formalizada nem utilitária como no caso da linguagem poética, é sempre projectiva do sujeito comunicante. No entanto, haverá que considerar, como diz Ortega, que todo o dizer é deficiente e, ao mesmo tempo, excessivo ou exuberante; que sempre se diz mais de que o que se «quer dizer»; e, além disso, que a todas as palavras acontece serem, na sua significação autêntica, ocasionais; que o seu

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sentido preciso depende da situação ou circunstância em que forem ditas.

Sendo assim, quem poderá ter a ilusão de conhecer um poeta por intermédio da sua poesia? Não há palavra mais carregada de intimidade do que a palavra poética. A palavra poética é um facto personalíssimo. Ora os factos humanos são como figuras de um hieróglifo. E o sentido do hieróglifo só o captamos pela interpretação -- e esta, necessariamente, tem muito de adivinhação. Neste sentido, haveria que levar em conta a circunstancialidade de cada facto humano, mesmo de cada frase ou palavra, dado que há poetas para os quais criar é contradizer a sua própria vida, buscando na obra o que na vida lhes faltou, como diz Ortega de Goethe. Para outros, a criação é uma redundância da própria vida. Por isso a adivinhação que Torga nos exige para o conhecimento da sua pessoa não implica ausência de sinceridade da sua parte, mas apenas consciência da deficiência instrumental da palavra.

Sob esta perspectiva, a poesia de Torga, por muito expressiva que seja, será também o que os modernistas faziam dos seus poemas: não predicados de um sujeito mas sujeitos de uma nova predicação interpretativa e criadora por parte do leitor. Torga não impede totalmente o voo imaginativo e criador do possível leitor. A sua mensagem permanece aberta e misteriosa, embora expressiva e comunicat iva . Foram es tas qual idades humanas que proporcionaram à arte de Torga essa «imensa maioria» de amigos-leitores, sobretudo se tomarmos em conta a minúscula proporção dos leitores dos poetas de Orpheu, incluindo o próprio Fernando Pessoa. Basta verificar este simples dado: enquanto Pessoa morreu quase inédito, Torga tem conhecido um certo êxito editorial. Para ele contribuiu o próprio poeta, editando em Coimbra a sua obra sob pessoal iniciativa e responsabilidade, com todos os riscos e sacrifícios que tal circunstância implica, como ele o tem confessado. Como diz Ortega, «o romanticismo conquista prontamente o «povo», para o qual a velha arte clássica (digamos, neste caso: a modernista) não havia sido nunca coisa que no povo se entranhasse... Daí que as obras românticas sejam as primeiras,

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desde a invenção da imprensa, a registar grandes tiragens. O romanticismo tem sido, por excelência, o estilo popular. Primogénito da democracia, foi tratado com o maior carinho pelas massas». (Deshumanización dei arte, III, p. 354).

Uma dada forma de arte atrai um público quando lhe oferece o que ele deseja: as suas dores, os seus amores, as suas preocupações, os seus próprios sentimentos quotidianos. E, na ordem inversa, dificilmente as massas toleram as formas propriamente artísticas, as irrealidades, as aventuras imaginativas ou, por mais exactas palavras, excessivamente racionalizadas e abstractas. É claro que esta desvantagem das formas artísticas, tal como a vantagem de que gozam as formas populares perante determinado público, são o anverso e o reverso da arte que pretenda ser autêntica. Ambas as atitudes são arriscadas, a do solipsismo como a da fraude artística, ao oferecerem como matéria de arte o que não passa de gozo sentimental — visto que o verdadeiro objecto artístico só o é na medida em que não é real. Nisto radica, a nosso ver, o risco da arte de Torga, como da arte de quase todos os «presencistas»: o risco de produzir certo contágio psíquico que pouco ou nada tem que ver com a aventura artística, que é sempre obra da inteligência. O prazer estético tem que provocar um prazer ante o objecto artístico e não um prazer do sujeito consigo mesmo. «Uma poesia carregada de matéria humana, como diz Ortega, pode converter-se num objecto pesado que se arrasta sobre a Terra, ferindo-se contra as árvores, as esquinas e os telhados como um balão sem gás. Por isso foram necessários poetas como Mallarmé (e como Pessoa, acrescentaremos) para devolverem ao poema o seu poder aerostático e a sua capacidade ascendente». (La deshumanización del arte, III, p. 371).

Poderemos assim compreender a razão por que Pessoa preferiu ser um «fingidor» a um puro «sentidor». E também como o poeta «sentidor» pode acabar por ser um «sentidor» bastardo, um «fingidor» fraudulento e inartístico. Torga, felizmente para todos, é suficientemente inteligente para se deter num mero mecanismo estético. Tem bem firme na sua consciência a missão do ofício de

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poeta, dispensando-o de fazer chantagem seja a quem for. Ser poeta, para Torga, é uma vocação integral da sua pessoa ante um destino salvador. Não precisou de mendigar a popularidade. Nem de a fomentar. Pelo contrário: faz parte da coorte dos artistas puros que amam a solidão, a pátria dos homens fortes e autênticos, dos grandes criadores, dos homens sinceros e totais. Escreve e publica poemas que «dizem», mas também poemas que «são», como diria um estruturalista. E a sinceridade do poeta trasmontano é uma qualidade humana e artística que brota duma pessoa humana e se condensa em arte verdadeira.

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Poeta do sentimento

trágico da vida Não será muito aventuroso admitir que se Miguel de Unamuno

tivesse conhecido o poeta Miguel Torga o incluiria na lista dos seus irmãos de alma, entre os quais figuravam, além de Obermann, Senancour, Leopardi e Carducci, os portugueses Camilo Castelo Branco e Antero de Quental. O que não aconteceu, por motivos óbvios, com Unamuno, sucedeu com o poeta português: Torga atribuiu sempre a Unarnuno um lugar primacial entre os seus ascendentes trágico-religiosos. Na verdade, quanto mais Torga é ele mesmo — quero dizer: mais pessoal, dramático, agónico, rebelde, desesperado, religioso, castiço e até «provinciano» — maior é a sua semelhança com o reitor de Salamanca. Se lhe falta a capacidade batalhadora no domínio das ideias filosóficas, nada desmerece dele no sentimento do desespero irracional perante a vida e as crenças religiosas. Até na sua rebeldia política contra a ditadura salazarista — e, aliás, contra qualquer sujeição ideológica — o poeta de Orpheu Rebelde tem muitas afinidades com o autor de Contra Esto y Aquello. Ocorre, ainda, que ambos viveram a maior parte da sua vida em cidades universitárias do mais alto prestígio: Coimbra e Salamanca. Poetas sentimentais, ambos escreveram densas biografias do homem com linguagem de náufragos, como diria Ortega y Gasset: o reitor de Salamanca sob a forma de tratado filosófico-poético, o médico de Coimbra à maneira de poema humanista da razão lírica. A obra Del Sentimiento Trágico de la Vida retrata a têmpera irracionalista e, ao mesmo tempo, vitalista de Unamuno; Cântico do Homem traduz a capacidade reflexiva e dolorida de Miguel Torga. Os dois poemas são inventários do homem, do homem concreto «de carne y hueso» — do homem- -

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irmão que pode chamar-se Kant, Spinoza, Pascal, Kierkegaard, Antero, Unamuno, Torga, de homens mais carregados de sabedoria que de ciência, como diria o mestre salamantino, portadores típicos do sentimento trágico da vida, que é o da consciência dilacerada pela dúvida. A dúvida é a doença crónica desta espécie de homens radicais.

Acompanhemos Miguel Torga no seu itinerário humano e trágico. O poeta trasmontano começa por desvendar-nos um «inventário» original da sua humanidade concreta, dolorida e poética — inventário humano de sabedoria trágica, mais que de ciência, como queria Unamuno:

E, apesar de tudo, sou ainda o Homem,

Um bípede com fala e sentimentos!

Ao cabo de misérias e tormentos,

Continua

A ser a minha imagem que flutua

Na podridão dos charcos luarentos!

Sou eu ainda a grande maravilha

Que se mostra no mundo!

……………………….

Obra de Arcanjo ou de Satanás,

Eu é que fui capaz

De fazer o que fiz!

Podia ser melhor o meu destino,

Ter o sol mais aberto em cada mão...

Mas, Adão,79

Dei o que a argila deu.

E, corpo e alma da degradação,

O milagre é que o Homem não morreu!

Não! Não me queiram na cova que não tenho,

Porque eu vivo, e respiro, e acredito!

Sou eu que canto ainda e que palpito

No meu canto!

Sou eu que na pureza do meu grito

Me levanto!

(Cântico do Homem Inventário, Coimbra, 1974)

Logo que este Adão, de alma e coração degradados, dá os seus primeiros passos, sente a agressão da sua inimiga, a terra:

Magoei os pés no chão onde nasci.

Cilícios de raivosa hostilidade

Abriram golpes na fragilidade

Da criatura

Que não pude deixar de ser um dia com lágrimas de pasmo e de

amargura Paguei à terra o pão que lhe pedia.

Comprei a consciência de que sou

Homem de trocas com a natureza.

……………………………….

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(Idem, poema «Começo»)

Este destino dramático, porém, pode acabar com tudo, menos com a

nossa esperança última de homens — humilhados, sim, mas não

completamente perdidos.

Peço-te, Vida, que não leves tudo.

Dá-nos a caridade

Desta humana ilusão

De que não foi a nossa cobardia

Que nos perdeu.

Humilhados e tristes no caixão,

Será mais triste ainda apodrecer

Sob o peso de ver

Que nem sequer de nós temos perdão.

(Idem, poema «Maceração»)

Como nas exasperadas litanias unamunianas, o poeta português clama a sua fome de imortalidade. A biografia pessoal exige eternidade. A consciência dilacerada do homem não desaparecerá da História:

Não. Não podeis levar tudo.

Depois do corpo,

E da alma,

E do nome,

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E da terra da própria sepultura,

Fica a memória de uma criatura

Que viveu,

E sofreu,

E amou,

E cantou,

E nunca se dobrou

À dura tirania que a venceu.

Fica dentro de vós a consciência

De que ali onde o mundo é mais vazio

Havia um homem.

(Idem, poema «Ficam as sombras»)

O sentimento da consciência doente não invalida, apesar de tudo, a verdadeira dignidade do homem, que é a luta contra toda e qualquer fatalidade. Por decisão pessoal, Torga é «o outro Job», o rebelde, que a personagem bíblica não foi. É um «Orfeu rebelde» por vocação poética. Para o poeta, o homem comprometido com a salvação do humano consubstancia-se com a luta — luta desproporcionada, é certo, mas luta digna — de que se alimenta a única possibilidade de ser estrela na noite do nosso laborioso esforço metafísico:

Um contra o mundo, é pouco.

Mesmo que seja louco,

E muito pouco ainda.

Mas que pode fazer o homem que endoidece

E se esquece82

De medir o poder do seu tamanho?

Ah, se houvesse um fotógrafo no céu

Que filmasse

Uma aventura assim, ridícula e perfeita!

D. Quixote sozinho

A combater as velas do moínho

Que mói, ronceiro, a última colheita.

(Idem, poema «Luta»)

A arma de combate do poeta lutador é o seu canto. Por isso lança o seu canto como D. Quixote brande a lança contra todos os passivos, os alienados, os conformistas. Torga não se conforma em morrer no mundo que herdou. E afronta-o com o seu canto exasperado e viril:

Apetece cantar, mas ninguém canta.

Apetece chorar, mas ninguém chora.

Um fantasma levanta

A mão do medo sobre a nossa hora.

Apetece gritar, mas ninguém grita.

Apetece fugir, mas ninguém foge.

Um fantasma limita

Todo o futuro a este dia de hoje.

Apetece morrer, mas ninguém morre.

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Apetece matar, mas ninguém mata.

Um fantasma percorre

Os motins onde a alma se arrebata.

Oh! maldição do tempo em que vivemos,

Sepultura de grades cinzeladas

Que deixam ver a vida que não temos

E as angústias paradas!

(Idem, poema «Dies Irae»)

Uma das feridas por onde sangra a consciência humana foi aberta pela flecha da temporalidade que um deus ignoto arremessou com o seu arco tenso de eternidade. Por isso a vida é laboriosidade fundamental, fungibilidade, sentimento trágico de sentir-se água que corre, que passa e nada detém, areia deslizante. Impotente e minúsculo deus sem ceptro nem coroa, o homem sente-se perdido numa ilha rodeada de mares de silêncio. E o poeta sofre como ninguém o desgarramento da sua temporalidade:

Tempo — definição da angústia.

Pudesse ao menos eu agrilhoar-te

Ao coração pulsátil dum poema!

Era o devir eterno em harmonia.

Mas foges das vogais, como a frescura

Da tinta com que escrevo.

Fica apenas a tua negra sombra:

—O passado,

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Amargura maior, fotografada.

Tempo...

E não haver nada,

Ninguém,

Uma alma penada

Que estrangule a ampulheta de uma vez!

Que realize o crime e a perfeição

De cortar aquele fio movediço De areia

Que nenhum tecelão

É capaz de tecer na sua teia!

(Idem, poema «Tempo»)

Por vezes o sentimento trágico transforma-se em sentimento báquico com tonalidades irónicas, de sarcasmo. Estamos em Portugal — e aqui é curta a distância entre a lágrima e a troça. A paixão que faz brotar aquela, determina esta. «Parece um povo que não sabe senão chorar ou zombar», dizia Unamuno; e «zombar é um modo de chorar». (Por tierras de Portugal y Esparla, pág. 34.) Um laivo de zombaria na poesia de Torga:

O que sonho, não digo.

O que sofro, talvez fosse melhor

Encobri-lo também.

Ninguém sabe o que sonha uma videira,

Nem que tristeza chora, tesourada.

Mas o mosto que der, a bebedeira85

Que produzir,

Será contada

No céu.

……………………………..

Ah! quem pudera

Nem ser deus,

Nem videira,

Nem sonhar,

Nem chorar,

Nem andar nesta triste bebedeira!

(Idem, poema «Boémia»)

Mas acentue-se bem: o sentimento trágico que perfura a consciência do poeta não lhe aliena, antes lhe potencializa o sentido ético da sua vida, a fidelidade ao compromisso convivencial. O poeta sente que tem de ser o que é — e este dever não é um jogo de escondidas com o destino mas sim um exercício de lealdade. Miguel Torga está muito longe de sentir-se um palhaço num mundo absurdo. O poeta «presencista» situa-se nos antípodas do «órfico» Pessoa. Assim, esta «Exortação»:

— Homem, lembra-te bem! —,

Sê viril,

E leal

E limpo, na concisa condição.

Traz à compreensão

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Todos os sentimentos recalcados

De que te sentes dono envergonhado;

Leva, doirado,

O sol da consciência

Às íntimas funduras do teu ser,

Onde moram

Esses monstros que temes enfrentar.

Os leões da caverna só devoram

Quem os ouve rugir e se recusa a entrar.

(Diário, 27/9/1960, vol. IX, pág. 42)

O sentimento trágico da vida brota sob um manto de ensimesmamento donde cresce, altaneiro e dialéctico, o eu. Um eu mais monologante do que dialogante. O princípio orteguiano de composição da personalidade, «eu sou eu e a minha circunstância», fica reduzido nos grandes trágicos sentimentais ao «eu sou eu». Deste reducionismo resultam o narcisismo histérico, a identificação ansiosa e o antropomorfismo obsessivo. O «euismo» monologante de Unamuno ficou famoso. Mas no poeta português essa tonalidade não apresenta as arestas unamunianas, embora não se mostre ausente a sua tendência identificadora. Costumava dizer Ortega y Gasset que «Unamuno tinha a mania de colocar o seu eu entre os interlocutores, tornando-se centro da paisagem e falando das coisas como se falasse de si mesmo». Esta «mania» foi catalogada pelos psiquiatras como «neurose» obsessiva instalada sobre a ideia de imortalidade pessoal». Assim a definiu Abellan ao analisá-la sob a perspectiva duma psicologia patológica. (José Luís Abellán, Miguel de Unamuno a la luz de la psicología, Madrid, 1964). Devemos notar, todavia, que este tipo de classificações psiquiátricas pouco ou nada interessa quando o doente da neurose é um genial escritor

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que, como a abelha, transforma a sua enfermidade em doce favo de mel estético. E assim sucedeu com Una- muno. Diz justamente Torga, a este respeito, que a anormalidade é criadora e não lhe mete medo. O que lhe causa pavor é a normalidade, exactamente porque é destruidora. E destruidora, obviamente, quando a normalidade se confronta, como tal, com o artista, com o homem excepcional e independente. Nunca a ciência dissecará o homem na totalidade que é. Só a arte, que é sempre totalizadora, o poderá desvendar. A poesia de Unamuno não se nos apresenta como fruto de egocentrismo neurótico mas como verdadeira beleza e criação estética. E o mesmo se poderá dizer da arte de Miguel Torga.

As suas identificações e os seus monólogos foram as fontes criadoras de um dos mais altos cumes da poesia portuguesa. O poeta não compartilha com ninguém a sua personalidade, prefere identificar-se com quem admira, com quem canta. Através de cada personagem exprime a sua opinião ante o grande espectáculo do mundo. Ou como Cristo nos braços de Maria:

Vejo-te ainda, Mãe, de olhar parado

Da pedra e da tristeza, no teu canto,

Comigo ao colo, morto e nu, gelado,

Embrulhado nas dobras do teu manto.

(Diário, Natal de 1939, vol. I, pág. 124)

Ou como a serrania do Marão:

Fui ver o mar.

Homem de pólo a pólo, vou

De vez em quando olhá-lo, enraizar

Em água este Marão que sou.

(Diário, 10/4/1940, vol. 1, pág. 143)

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Da sua arte mitificante é exemplo a apóstrofe do poema «Moisés», no 1.0 volume do Diário, onde clama com a maior naturalidade: «Moisés de Miguel Angelo e meu». E como se afirma «Orfeu rebelde», chama a Eurídice «minha mulher». Nos Poemas Ibéricos abundam as identificações, como veremos mais adiante. E também nestas tonalidades afectivas teremos de reconhecer o parentesco espiritual com Unamuno. Por estas afinidades psico-afectivas com o excelso teorizador do sentimento trágico da vida — sentimento de que está embebida toda a obra de Torga — é levado o poeta português a falar assiduamente do reitor de Salamanca, dirigindo-lhe por vezes invocações dramáticas. Num dia em que o acabrunha o cansaço espiritual em torno da sua pátria ibérica dirige-se-lhe como se quisesse travar diálogo com ele, então já morto: «Ah! Unarnuno, porque morreste? Porque não posso eu falar-te nesta hora dramática do mundo, aqui nesta nossa Ibéria carregada de sol e de tristeza...?». (Diário, 28/7/1942, vol. II, pág. 45). E recordando a Grécia, escrava de Roma: «Isto é tão natural como ver Unamuno perdido na Espanha de 1936». Já antes destas referências o poeta, transmudado em novelista dos «primeiros dias da criação do mundo», escreverá no «quarto dia», publicado em 1939 e estrangulado pela censura salazarista, a propósito da célebre altercação entre Unamuno e Millan Astray: «E Salamanca aparece. Foi aqui, entre soldados invasores, entre os novos bárbaros do norte e do sul, que tu, meu Mestre, ouviste o grito de morte. Contra a inteligência! Foi aqui que tu morreste, ou às suas mãos ou aos seus pés. Mataram-te porque lhes tinhas dito que havia por aqui almas «solitárias» a quem apetecia «algo de que reviente». Mataram-te como mataram o Outro (referência a Lorca), aquele meu irmão maior, só porque o seu peito cantou:

España!

No hagas caso de lamentos

ni de falsas emociones;

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las mej ores devociones

son los grandes pensamientos.

Y, puesto que, por momentos,

el mal que te hirió se agrava,

resurge, indómita y brava

y antes que hundirte cobarde.

estalla en pedazos y arde.

Primero muerta que esclava!»

(O quarto dia da criação do mundo, edição, Coimbra, 1939, pág.

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Mais tarde, em Salamanca, contemplando o busto de Unamuno por Victorio Macho, na escadaria de Anaya, exclamará Miguel Torga: «Que tristeza de mundo! Tudo medido pela mesma rasoira niveladora. Não, D. Miguel: os versos que transcreveste do cemitério de Mallona mentiam. A ressurreição que prometiam da carne e da pele, era ilusória. A única eternidade possível é esta da tua glória: um busto duradoiro como um pesadelo». (Diário, 13/9/1951, vol. VI, pág. 53). E em outra ocasião, ao contemplar a massa pétrea da Clerezia, não dei~á de lamentar-se: «Pobre Unamuno! Como a sua Universidade Literária, racional, à medida do homem, é frágil ao lado da Clerezia, dogmática, à medida de Deus! Mesmo que à saída da porta o protegesse, com o seu espírito desempoeirado de precursor, Frei Luís de León, caía-lhe logo sobre os ombros o sambenito negro da sombra de Santo Inácio...». E termina com este grito de sentimento trágico, que lhe aflorou no seu contacto com Castela: «Pensar em Castela é deambular numa prisão. A prisão da Fé e da Pátria». (Diário, 28/8/1950, vol. V, pág. 118)

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Casticismo do poetaUma das características que se apresentam com imediata

evidência na poesia de Miguel Torga é, sem dúvida, a do seu fervoroso amor à terra: à terra física, como gleba, e à terra espiritual, que é a sua pátria cultural. Deste aspecto da obra do poeta disse Sophia de Mello Breyner Andresen: «A terra que Torga canta é uma pátria. E quem lê o Diário percorre Portugal de lés a lés, o seu espaço telúrico, humano, e o espaço histórico e cultural. Na sua poesia está o tom natural da voz humana em português: a dimensão trágica e o realismo sem ilusões». (Associação dos Escritores homenageou Torga», «Diário de Notícias», 1976, 7/77). Também Jacinto do Prado Coelho insiste no mesmo tópico: «Torga não é apenas a expressão de uma paisagem ou de uma «alma colectiva»; a sua obra é ele e a Natureza; ele e Portugal, um Portugal que o fez, mas que em parte ele inventou». (Diário de Notícias, 7/7/76).

Precisamente pelo caminho da terra, que é gleba, paisagem, voz e pátria, encontrará o poeta, mais uma vez, o seu mestre Unamuno. Para este, como para Torga, a terra materna será refúgio amoroso, regaço, pulmão — a salvação, enfim, na luta infausta entre os homens. Chegados a este ponto, não podemos deixar de perguntar: — Teria sido em homenagem ao casticismo de Unamuno que Adolfo Rocha se baptizou com o nome de Miguel para as suas actividades literárias, tal como tomou da sua terra natal o símbolo mais belo e representativo: a planta silvestre que se chama «torga»? É altura de lembrarmos, em anotação de passagem, que diversos escritores portugueses devem muito a Unamuno, pela influência espiritual que exerceu com o seu livro Por tierras de Portugal y Esparza. De facto, foram muitos, entre eles, os que corroboraram essa opinião. Recordemos apenas dois, como testemunhos significativos. Teixeira de Pascoaes escrevia acerca daquele livro de Unarnuno, em 1911: «Não sei se esse livro, simplesmente

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admirável, foi lido em Portugal. É de crer que não. E, todavia, nada se escreveu em livros estrangeiros a nosso respeito nada de mais belo, de mais profundamente interessante e verdadeiro. A nossa paisagem e a nossa alma aparecem, ali, surpreendidas nos seus aspectos mais ocultos, transcendentais e originais». (Vide Morejón, p. 15). Em 1930, por seu turno, Novais Teixeira consignaria na «Gaceta Literaria» de Madrid, o seguinte: «Por tierras de Portugal y Espafia é o melhor livro que ainda se escreveu sobre Portugal. Incluindo mesmo os portugueses, ainda não houve quem como Unamuno penetrasse mais fundo na nossa difícil complexão. Nem com maior fidelidade nem com mais exaltado carinho. Escalpeliza emotivamente todos os componentes, os mais vários e os mais subtis, da nossa personalidade. Conhece-nos profundamente, e eu português, aprendi na obra de Unamuno a conhecer uma grande parte de mim mesmo». (Textos citados por Julio Garcia Morejón em Unamuno y Portugal, ed. Cultura Hispánica, Madrid, 1964, págs. 15-16, 1.a edição).

Mas voltemos a Torga e ao seu enraizado casticismo. No seu amor pela terra, chega Miguel Torga a dizer que as coisas mais válidas que escreveu «sabem a terra nativa», à terra que traz agarrada aos pés. Para ele, o conhecimento da terra no seu sentido estritamente material, a «terrosidade do solo», como diz, é condição primaz para se pertencer verdadeiramente a uma nação. E por isso se impôs a si mesmo como dever de ética pátria percorrer todo o corpo físico de Portugal. São de 1949 estas palavras: «É por funda necessidade cultural que eu peregrino esta pátria. [ Eça falhou na Cidade e as Serras porque nunca calcorreou as serras. Camilo é muito mais autêntico porque atolava os pés no barro que moldava. Temos de conhecer a nossa terra. Mas conhecê-la por dentro, sem preocupações históricas, arqueológicas, políticas ou outras. Conhecê-la como se conhece a mulher que se ama, com quem se dorme e com quem se repartem as alegrias e tristezas». (Diário, 7/12/1949, vol. V, pág. 60).

Porque a Pátria, para Torga, é antes de mais nada gleba, é assim que a canta:

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Serra!

E qualquer coisa dentro de mim se acalma...

Qualquer coisa profunda e dolorida,

Traída,

Feita de terra

E alma.

Uma paz de falcão na sua altura

A medir as fronteiras:

— Sob a garra dos pés a fraga dura,

E o bico a picar estrelas verdadeiras...

(Diário, 20/8/1943, vol. II, pág. 57)

Até à própria mãe embala numa canção telúrica, sentindo-a como «terra lavrada e quente». E, do seu conhecimento da terra portuguesa, diz em 1955: «Ah, sim, lá conhecer Portugal conheço-o eu! Não houve aceno de monte ou de planície a que não respondesse. Subi a todas as serras e calcorreei todos os vales desta pátria. Por isso quando chegar a hora da grande jogada, tenho um trunfo a meu favor que há-de desconcertar a morte: a íntima certeza de que não vou estranhar a cama, seja qual for o sítio onde me enterrem». (Diário, 21/10/1955, vol. VIII, pág. 11).

Percorrer a terra, para este poeta trasmontano, não se limita a um exercício muscular das pernas: é uma íntima convivência com todas as coisas de qualquer lugar, desde as terras cultivadas ao pão acabado de cozer: «Chego a um lugar e não resisto: tenho que entrar pelos campos, pelas serras, por montes...». E quer inteirar-se dos cultivos, beber o vinho da região, provar o pão fresco ainda fumegante. Por isso pôde dizer sempre, sem reticências, que a sua

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poesia não é de «sessões de autógrafos» nem de escrevaninhas, que é um golpe de vento no alto duma serrania, aonde sobe para oxigenar o sangue e a vida. Se alguma vez entrar em agonia com a sua arte como poeta, se alguma vez sentir esse fracasso íntimo que todo o escritor experimenta ao rever a sua obra, quando já ninguém puder valer-lhe no seu dorido sentir de minúsculo deus impotente, brotará nele o desejo de fugir da cidade e refugiar-se no regaço da terra mãe, único cautério para a sua ferida aberta e jamais cicatrizada Em 1942, num dia em que se sentiu mais angustiado na sua Coimbra de médico e poeta, escreveu: «Nestes dias assim (e nos outros) o que me apetecia era acabar com estas literaturas por uma vez e ir para S. Martinho cavar. Mas depois pergunto a mim próprio se, no meio da lavoura, este meu destino de poeta me não faria erguer os olhos da leiva, contemplar o céu ou a alma, e escrever a seguir um poema na pá da enxada». (Diário, 28/11/1942, vol. II, pág. 81). Outras vezes, terá necessidade de semear na própria terra o grão da sua poesia. Assim o diz numa ode à gleba:

Também eu quero abrir-te e semear

Um grão de poesia no teu seio!

Anda tudo a lavrar,

A abrir leques de sonho e de centeio,

E são horas de eu pôr a germinar

A semente dos versos que granjeio.

………………

Terra, minha aliada

Na criação!

………………..

Poesia desfeita,

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Fruto futuro de nós dois.

Terra, minha mulher!

………………

Terra, minha canção!

Ode de pólo a pólo erguida

Pela beleza que não sabe a pão

Mas ao gosto da vida!

(Odes, Coimbra, 1956, poema «À Terra»)

Assim, também, escutará a água:

Ninguém ouve a canção, mas o ribeiro canta!

Água impoluta da nascente,

És a pura poesia

Que se dá de presente

Às arestas da humana penedia...

(Idem, poema «À Água»)

Quer que a sua faina de poeta esteja no próprio centro do cósmico acontecer da terra mãe. Por isso entra em comunhão com o camponês e com o pastor, para oficiar a grande missa campal, à maneira de Teilhard de Chardin. Assim entoa o poeta a sua comunhão telúrica:

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Tal como o camponês, que canta a semear

A terra,

Ou como tu, pastor, que cantas a bordar

A serra

De brancura,

Assim eu canto, sem me ouvir cantar,

Livre e à minha altura.

Semear trigo e apascentar ovelhas

É oficiar à vida

Numa missa campal.

Mas como sobra desse ritual

Uma leve e gratuita melodia,

Junto o meu canto de homem natural

Ao grande coro dessa poesia.

(Cântico do Homem, poema «Comunhão»)

O poeta não se contenta com cantar a terra como força fecunda e natural: canta a Pátria como recordação, como gesta, como heroismo, com heróis e santos, como história viva em cada gota do seu sangue de poeta. A sua pátria espiritual não tem fronteiras, é a pátria peninsular, larga e luminosa: a Ibéria.

O estremado amor de Miguel Torga à terra ibérica faz situá-lo, na longa polémica entre casticistas e os chamados «estrangeirados», ao lado daqueles. Entendem alguns que Portugal não está culturalmente integrado na Europa e empenham-se nessa integração. Pretendem outros que ser português, à antiga maneira,

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é a melhor maneira de ser europeu. Deve-se lembrar que a mesma questão foi debatida em Espanha. A polémica foi capitaneada, ao findar o século passado, pelo autor de En torno ai casticismo, Miguel de Unamuno. Pouco depois entrou na liça um jovem que se opôs com veemência às teses unamunianas: o ardente e luminoso Ortega y Gasset. Entre as duas correntes de opinião, Miguel Torga inclinou-se decididamente para a ideia unamuniana de europeização e, expressamente, contra as teses de Ortega. Lê-se no seu Diário, em 1943: «Quando a mim próprio ponho a questão de saber quem terá sido na Península o homem que depois de Cervantes e de Camões nos levou à Europa com mais firmeza e sentido, ocorre-me sempre este nome cada vez mais novo: Unamuno. É claro que penso no Ganivet do Ideário Espalïol, no Antero das Causas da Decadência dos Povos Peninsulares e no Oliveira Martins da História da Civilização Ibérica. Mas volto ao vasco. É que, para mim, o grande erro de quantos, depois de terem a consciência do nosso caso, quiseram fazer da Ibéria uma terra da Europa, foi tentarem semear neste tórrido chão frias ideias que não eram nossas. Só Unamuno (e Ganivet, mas com menos afinco) teve o génio de entender o problema a fundo, e de arrancar do nosso húmus aquela esponja que, sem perder o justo orgulho da origem, podia sorver o orvalho doutra cultura. [ Falar do sentimento trágico da vida, perscrutando a nossa alma mística e solitária, é dizer a Pascal quem somos, e ouvir de Pascal quem é. Ora é numa fraternidade assim de confissões e confidências que a cultura se faz. Quer dizer: só revelando as suas características fundas, e caldeando-as depois no grande lume universal, se pode fazer dum montão tosco de homens de certo canto da terra cidadãos do mundo. Foi o que Unamuno tentou ensinar-nos e ensinar à Europa. Recusando-se, activamente, a africanizar a Ibéria, ou a americanizá-la, ou a europeizá-la pura e simplesmente, querendo pelo contrário arrancar o nosso verdadeiro valor continental da nossa intra-história, conseguiu esta maravilha: que a Europa tivesse consciência de nós, e nós dela. E é ver como apareceram logo os Cassous do lado de lá, e os Ortegas do lado de cá». E termina com este

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conselho moralizante: «Tudo está em aprender e seguir a grande lição do velho mocho de Salamanca. Fincar primeiro, com amor e com força, os pés na terra esbrazeada da Ibéria; e, uma vez ela na sensibilidade e no entendimento, olhar então com humana e natural curiosidade para o que se passa do outro lado do muro». (Diário, 11/11/1942, vol. II, pág. 75-76).

A longa transcrição esclarece muito, mas não tudo. Quais eram, concretamente, as duas posições espanholas, visto que Torga se inclina para um casticismo português segundo o modelo hispânico de Unamuno?

O futuro sonhado para Espanha pelo jovem de Salamanca, tal como o resume Laín Entralgo no seu ensaio La Generación dei Noventa y Ocho, abrangeria dois modos, ou fases: o primeiro, corresponderia à época da publicação de En Torno al Casticismo (1895) e é designado por «quixotismo quixânico». A sua modalidade próxima é definida pela palavra de ordem da época: europeização da Espanha, a ideia que já aparecera com Joaquin Costa. A europeização proposta por Unamuno não consistiria num mero mimetismo do estrangeiro, mas na assimilação espanhola da cultura europeia moderna. Este sonho de Unamuno compreende três elementos: um protagonista, que deverá ser a juventude animosa e rebelde; um método, a prosseguir em dois tempos: primeiramente, submergir-se no próprio povo, amorosamente; depois, abrir os olhos para a actualidade exterior; por fim a meta: uma nova vida de Espanha. Mais tarde, numa segunda fórmula ou fase, Unamuno substitui o «quixotismo quixânico» pelo «quixotismo quixotesco», modificando a sua maneira de entender o acesso da Espanha ao caminho do futuro. A fórmula anterior de «europeização da Espanha» contrapõe outra fórmula nova e inaudita: a «espanholização da Europa». Em 1906, um ano depois da publicação da sua Vida de Don Quijote y Sancho, afirma que a europeização da Espanha não poderá iniciar-se enquanto os espanhóis não se empenharem em impor-se na ordem espiritual da Europa, em «hacerles tragar lo nuestro, a cambio de lo suyo». Unamuno imagina sair da sua casa, como Quixote, com ânimo de

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conquista, e impor a todos (à Europa) o espírito quixotesco de Espanha. Não pretende Unamuno ignorar Kant ou Goethe; mas a melhor maneira de os conhecer, na sua opinião, é impondo aos europeus São João da Cruz, Calderón, Cervantes — e até, de certo modo, Torquemada.

Não pode oferecer dúvida que, sob o ponto de vista da eficácia, estas ideias não passam de sonhos literários. Não propõem nada de concreto. E mais ainda: o próprio Unamuno, em certa ocasião, num gesto de histrionismo, lançou a célebre frase: «que inventem eles» — dando com isso a entender que, sendo ele literato, não tinha que ocupar-se do que haveria a fazer em Espanha de especificamente europeu: a ciência.

A geração seguinte à de Unamuno repeliu radicalmente estes sonhos literários. Ortega y Gasset, com 25 anos, escreve sobre esta questão: «Encontro um defeito nos programas de curopeísmo até agora pregados, um esquecimento imposto, talvez, pela falta de precisão e de método, única herança que nos deixaram os nossos maiores. Porventura não é legítima a vacilação relativamente ao que é a Europa? Não foi esta vacilação secular que manteve a Espanha em perene decadência e anulou tantos esforços honrados, mas míopes? Não começou a Espanha, no século XVII, por maldizer Espanha e volver os olhos em busca do estranho, proclamando a imitação da Itália, da França, da Inglaterra? Não foi passando, durante a última centúria, e pouco a pouco, toda ou quase toda a legislação estrangeira pela Gazeta castiça?». (Asamblea para el progreso de ias ciencias, O. C., vol. I, pág. 99). Foi esta herança negativa, tantas vezes assinalada, que impediu outros escritores de coincidirem integralmente com a solução proposta por Ortega y Gasset para o problema de Espanha. A definição da Europa encontra-a Ortega na seguinte fórmula: «Europa = ciência; tudo o mais lhe é comum com o resto do planeta». Se o europeu se distingue dos homens dos outros continentes, deve-o apenas à ciência. E Ortega pergunta: «Houve acaso, de 1898 para cá, algum programa que considere a ciência como o labor central donde unicamente pode sair a nova Espanha?». O problema espanhol, por

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conseguinte, é um problema pedagógico. Mas «o que é característico do nosso problema pedagógico é que necessitamos primeiramente de formar alguns homens de ciência, ainda que poucos, suscitar ao menos uma sombra de preocupações científicas, pois que sem esta acção prévia toda a demais acção pedagógica será vã, impossível e sem sentido. Creio que algo de análogo ao que estou dizendo poderia ser a fórmula precisa da europeização». E termina o artigo citado com estas agudas palavras: «Se acreditamos que a Europa é ciência, teremos de simbolizar a Espanha na «inconsciência», terrível doença secreta que, quando infecta um povo, costuma convertê-lo num dos bairros degradados do mundo». (Idem, pág. 104).

Em 1910 precisa melhor ainda o seu pensamento sobre a questão incessantemente debatida: «Quando postulamos a europeização da Espanha não queremos senão a obtenção de uma nova forma de cultura distinta da francesa, da alemã... Queremos a interpretação espanhola do mundo. Mas para isto falta-nos a substância, falta-nos a matéria que temos de adubar, falta-nos a cultura... A altura ideal donde se dominam espaços ilimitados é, para Espanha, a Europa». E remata: «Só olhada da Europa é possível a Espanha».

(España como posibilidad, O C. vol. I, pág. 138). Através destes conceitos podemos constatar quanto Ortega y Gasset estava longe de propor um mimetismo do estrangeiro, preconizando antes uma originalidade espanhola bem fundamentada. A decadência da Espanha, para o filósofo, «teria sido o resultado da inadequação entre a espontaneidade das massas e a reflexão da minoria dominante. Libertem-se as massas daquelas pegajosas influências, volte-se à espontaneidade étnica, reconstitua-se a unidade espontânea das reacções castiças — e Espanha retornará ao rumo que um destino prévio lhe tinha apontado». (Observaciones, O. C., vol. I, pág. 168).

Este roteiro proposto por Ortega tinha-lhe sido inspirado pelo homem que primeiro o concebeu, Joaquín Costa, cuja influência foi

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decisiva na juventude de Ortega. Costa viu desde logo que «Espanha era o problema e a Europa a solução», como Ortega recorda. (La pedagogia social como programa político, O. C., vol. I, pág. 521). Mas a dificuldade estava, precisamente, em definir o que poderia significar a Europa para Espanha. E a dificuldade venceu-a Ortega, da única maneira precisa: como ciência e cultura. Todos falavam de europeização mas poucos tinham ideias claras sobre o que deveria conter-se em tal conceito. Por isso teve Ortega que entrar em polémica com vários contendores e, principalmente, com Unamuno. Ao comentar, numa conferência proferida na própria terra natal de Unamuno, em Bilbau, os diversos comportamentos europeizantes daquele, afirmou Ortega y Gasset: «Um grande bilbaíno disse que o melhor seria a africanização da Espanha; mas este grande bilbaíno, Miguel de Unamuno, não sei como se arranja: ainda que se nos apresente como africanizante é, quer queira quer não, pelo poder do seu espírito e da sua densa religiosidade cultural, um dos orientadores das nossas ânsias enropeias». (La pedagogia social como programa político, O. C., vol. I, pág. 501). Para Ortega, sistemático pensador da razão vital, as divagações do reitor salmantino sobre o espírito espanhol eram puros sonhos de um «pathos do Sul, movimentos reflexos, instintos, barbárie, fisiologia vasca ou castelhana» (El «pathos» dei Sur, O. C., vol. I, pág. 501). E a pretendida espanholização da Europa, tal como a africanização da Espanha, seriam puras logomaquias desse ilustre «energúmeno espanhol» que sempre Unamuno se afigurou a Ortega. O doutrinador da razão vital combate, justamente, esse reinado da espontaneidade e dos instintos, o romanticismo

e o energumenismo, defendendo contra eles a ironia, a ficção

e a lei «que é luxo do homem forte». Nietzsche e Renan situam-se do lado do que ele defende, mas sobretudo Kant, a quem se deve a observação de que a aparência influi no carácter e de que do trato com as ficções pode resultar alguma coisa séria. Daí a oposição aberta de Ortega à «africanização» da Europa que Unamuno sugere, oposição conseguida fingindo-nos europeus

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e defensores das ficções fundamentadas ao longo da história. «Depois de tudo, nada se perde em provar. Tal como a função cria o órgão, o gesto cria o espírito e uma atitude digna facilita a dignidade». (Renan, O. C., vol. I, pág. 463).

Em certa ocasião não teve Ortega hesitações ao falar da «geração de 98» como «geração historicamente espúria... geração fantasma». (Competencia, O. C., vol. X, pág. 227). Falou de Espanha, sonhou Espanha, mas ao nível de factos e de eficácia não fez coisa alguma. E, sobre este ponto, continua Ortega: «Mas o que havia de fazer (essa geração)? Criar o mundo a partir do nada? Não foi por culpa sua que não viveu em plenitude. Sem vida nacional não há vida individual. Num mar sem vento não se enfunam as velas. Teve que reduzir-se à forma mais irreal da vida: só viveu teoricamente; e, menos ainda: criticamente». Não deixa, porém, de reconhecer: «Pois bem: creio que com isto (a geração de 98) cumpriu a primeira parte da sua missão. Quando não é possível fazer nada, o mais que se pode fazer é, criticar, analisar o que outros fizeram. Deste modo se prepara a possibilidade duma nova vida. É na palavra «europeização» que se cifra a vida dos homens de trinta anos. (Neste passo está Ortega a referir-se à sua própria geração). Não existindo a Espanha, tiveram que fingir um ideal nacional e a partir dele conduzir uma existência imaginária. Tiveram que elucubrar urna pátria ideológica, já que alheios pecados lhes tinham arrebatado a pátria real. Esta pátria de aspiração gerou o pensamento da europeização da Espanha e o patriotismo teve que tomar a forma de crítica do passado nacional. 1913: foram precisos catorze anos para que aqueles espanhóis de 98 voltassem a sentir passar uma rajada de história, de vida colectiva real... uma geração que se encontrou sem uma nação em que pudesse realizar-se, sem individualidades a quem seguir, que se encontrou sem casa e sem pais na ordem espiritual». (Competencia, O. C., vol. X, pág. 227) .

A geração de 98, como geração de literatos que era, não fez senão escrever — e de maneira excelsa. Só à geração de Ortega y Gasset — e sobretudo ao próprio Ortega — cabe a honra de ter renovado a sensibilidade cultural e científica em Espanha. Por volta

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dos anos 30 não havia livro europeu de ciência com alguma importância que não tivesse sido traduzido e posto em circulação por Ortega ou por sua influência. As revistas que fundou, especialmente a «Revista de Occidente», e as colecções de livros que lançou dão testemunho dessa acção fecunda. Como exemplo da sensibilidade científica espanhola nos anos de maior esplendor da irradiação orteguiana., bastará dizer que foi a Espanha o primeiro país do mundo onde as obras de Freud foram traduzidas e publicadas integralmente, inseridas na «Biblioteca Nueva» de Madrid que Ortega dirigia. A edição mereceu os mais vivos elogios do próprio I-rreud, que achou por bem rever ele mesmo a edição castelhana, em Viena, no ano de 1923.

Assim se poderá entender melhor, talvez, a preferência de Miguel Torga por Unamuno e, sobretudo, a sua oposição a Ortega y Gasset. Estarão em jogo, no caso, apenas as suas afinidades temperamentais e literárias com o «velho mocho» de Salamanca, ou também o seu desconhecimento, em profundidade, dos verdadeiros processos ideológicos e sociais dos dois pensadores espanhóis? Será legítimo perguntar se o pensamento europeizante que Torga perfilha não se situará melhor na teoria e na prática de Ortega do que nos sonhos sempre arbitrários e displicentes do seu mestre irracionalista Miguel de Unamuno.

O que mais importa, porém, é que tanto Unamuno como Ortega y Gasset na Espanha e Miguel Torga em Portugal contribuíram, cada um à sua maneira, para europeizar a Península — e também, porque não? para tornar a Europa um pouco mais ibérica. Nisto consiste, realmente, o verdadeiro casticismo: em projectar-se no mundo, no universal.

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POETA

DESESPERADO E

RELIGIOSOO desespero,

A triste madrugada dos poetas

(Penas do Purgatório, «Canção da Noite»)

Não, não tenho certezas;

Tenho bruma.

(Diário, 111011949, V, p. 52)

Entre as características que Unamuno aponta ao «homem português» através da literatura, urna das mais constantes é a do desespero religioso. Diz o mestre salmantino que os portugueses são «almas atormentadas pela sede de infinito, pela fome de eternidade», constitucionalmente pessimistas; que Portugal «é um povo de suicidas»; que «a brandura, a meiguice portuguesa se encontram apenas na superfície: raspa-se um pouco e encontra-se logo uma violência plebeia que chega a assustar... A brandura é urna máscara... é um povo não só sentimental mas apaixonado». (Por tierras de Portugal y España, pp. 34-63-130-139).

Estes traços apanhados no ar pelo lírico caçador vasco, porque são muito genéricos, costumam ser bastante tópicos entre

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artistas de todas as latitudes. Haveria que fundamentá-los pela razão científica e histórica com mais profundeza do que o fez Unamuno. Nunca este pôde utilizar o método analítico para compreender os fenómenos vitais pela simples razão de que, como irracionaliSta que era, não confiava na razão para analisar a vida humana. Não lhe seria possível demonstrar por que razões os portugueses são almas religiosamente desesperadas. Por um lado, nem todos os portugueses artistas o são; por outro lado, suicidas encontram-se na história de todas as literaturas.

E, no entanto, não se pode recusar que a intuição unamuniana tem certos visos de veracidade. Unamuno não falou de Portugal arbitrariamente. As suas afinidades psíquicas com esta pátria lírica levaram-no a captar com bastante verosimilhança certos rasgos comportamentais. Além disso, leu apaixonadamente Camilo e Antero, almas atormentadas e suicidas; conviveu intimamente com Manuel Laranjeira, médico em Espinho, também alma atormentada e também suicida. Conversou largamente com Guerra Junqueiro, o autor heterodoxo e «blasfemo» de A Velhice do Padre Eterno; e conviveu igualmente, em relações de aberta familiaridade, com Teixeira de Pascoaes, o místico panteísta da saudade lusa. Acompanhou, em certo sentido, a história portuguesa e por pouco não assistiu ao assassinato do rei D. Carlos. Por fim, viu com pessimismo o começo da ditadura salazarista. Ao cabo de tudo isso, porém, deixou por explicar as suas intuições sobre o carácter português. É o que intentaremos analisar a seguir, à luz do pensamento de Ortega — mentor excelso para todas as empresas espirituais do homem histórico.

A primeira coisa a assinalar no problema da desesperação religiosa em Portugal é que se trata de um fenómeno relativamente recente. Os poetas medievais não sentiram «o desespero em ceda madrugada», como diz Torga. Desde as «cantigas de amigo» aos sonetos de Antero desdobra-se um longo caminho andado. Entre os dois extremos, onde se opera a mutação mais pronunciada? Este será o ponto mais importante na análise sociológica da História de

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Portugal. A transformação mais radical na mentalidade portuguesa parece processar-se no século XIX.

Portugal, tradicionalmente católico, sente um dia que já não o é. Ou, pelo menos, que já não o é como anteriormente. O homem médio e, sobretudo, una minoria intelectual, que tinham vivido repousadamente sobre as crenças herdadas, verificam em dado momento que começa a faltar-lhes a terra firme das velhas crenças e que as suas consciências vivem em crise. O estado de crise das crenças produz uma perturbação emocional — e os primeiros que dão por ela são os poetas, sempre a captar antes dos demais as transformações de espírito que se anunciam no ambiente colectivo.

Há em Portugal, de facto, um grupo de artistas que não só se antecipa a mudança como se torna o motor da transformação espiritual e vai obrigar a entrar em crise toda a comunidade nacional: esse grupo é a geração de 70 e dela fazem parte os jovens idealistas Antero de Quental, Eça de Queirós, Oliveira Martins, Ramalho Ortigão. A eles se ficou devendo a maior revolução cultural que se processou em Portugal nos tempos modernos. Recorde-se a frase célebre com que Antero rematou a sua segunda conferência no Casino Lisbonense: «O cristianismo foi a revolução no mundo antigo; a revolução é o cristianismo no mundo moderno». Para o tema que tem vindo a ser aqui tratado a frase é profundamente significativa, visto que coloca precisamente a definição da crise portuguesa no terreno das crenças religiosas. E isto obriga-nos a uma reflexão mais detida.

Diz Ortega : «A realidade radical é a nossa vida e esta é como é, tem a estrutura que tem porque as anteriores formas de vida foram tais e tais, e tal como foram em linha concretíssima de destino único. Por isso não se pode entender rigorosamente uma época se não se entenderem todas as demais […) A canção da história só se pode cantar inteira. A história é sistema, um sistema linear estendido no tempo». (En torno a Galileo, V, p. 95).

Ora o conjunto das formas de vida que está por trás de todas as formas actuais da vida portuguesa é a forma cristã de estar no

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mundo. E, sendo tão importante esta estrutura espiritual na estrutura geral da vida portuguesa, caberá perguntar o que significou originariamente para os primeiros cristãos essa circunstância de ser cristão. «Não se entende o cristianismo sem tornar como ponto de partida a forma radical de vida do homem mediterrânico no século I, que é o desespero, diz Ortega». (Ibidem, pág. 119).

Quase sem o querermos, encontramo-nos desde já com os dois dados do nosso tema: a religião e o desespero. É a religião que trespassa toda a história de Portugal, até ao momento da crise cultural que se opera no século XIX e da qual vai brotar o cunho típico do desespero.

Ao analisar o aspecto psico - sociológico do cristianismo, Ortega faz-nos ver como surge o desespero no mundo romano, precisamente numa época de crise histórica em que o homem mediterrânico do século I não sabe em que firmar-se relativamente a tudo o que o rodeia, ou seja: num momento em que deixou de aceitar as crenças que lhe serviam de terra firme onde se apoiar e se encontrava num mar de dúvidas. É o momento da desesperação e é dela que se gera a dúvida vital, sua filha exasperada. O cristianismo veio resolver esse conflito existencial por meio duma nova crença. O homem, em tempos de desespero, faz-se cristão. Ao sopesar o volume inteiro das suas possibilidades vitais e ao verificar que não pode valer-se a si mesmo, sentindo-se indigente na totalidade do seu ser, o homem natural tem necessidade de se apoiar em Deus. Feita esta descoberta, o homem vai viver a sua vida sob uma nova perspectiva. Tudo o que é nela e tudo o que faz nela é referido à nova realidade, quer dizer: ao que é perante Deus ou em Deus. Deste modo reabsorve a existência temporal na eternidade de Deus. E mais ainda: o homem assim transfigurado dispõe-se a viver de costas para a vida e de rosto voltado para a ultra- vida. Com esta dialéctica automática e por meio do cristianismo, o homem mediterrânico do século I vai converter o desespero em salvação. A salvação chega-lhe pelo caudal da cultura hebraica que, diferentemente da greco-latina, não encontrou na vida natural uma

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satisfação plena e autêntica e recorreu sempre a Deus como compensação psico-afectiva.

Sob este novo prisma salvador, o homem mediterrânico considera a realidade da vida terrena não como a verdadeira realidade mas como um erro de óptica. É a vida terrena que engendra a insegurança e o desespero. É a ultra-vida que proporciona segurança e paz. Há que dar atenção primacial, por conseguinte, à vida eterna. A vida do cristão torna-se teocêntrica. O mundo real, para ele, passa a ser desde logo o trans-mundo sobrenatural. Este extremismo, porém — como todos os extremismos — vai ter que pactuar. A negação do intra-mundano é uma solução arbitrária. Entendendo-se com Deus, o homem caminha dificilmente no mundo e mostra-se incapaz de o compreender.

Ora o mundo reclama os direitos que, como realidade, não deixa de possuir, e, pouco a pouco vai-se interpondo de novo entre o homem e Deus. A partir do século XIII o universo da ciência humana começa a interpor-se entre o homem e o universo simbólico da Alta Idade Média. Assim vai gerar-se uma verdadeira crise: a do Renascimento. A natureza começa novamente a separar o homem de Deus. E, a partir do século XV, em muitos países da Europa onde o renascentismo é uma autêntica revolução cultural, a transformação profunda que se opera consiste precisamente em que o homem deixa de estar no cristianismo.

Há que distinguir, todavia, entre o estar em alguma coisa e o ser alguma coisa. Somos muitas coisas mas só estamos em algumas. Somos, em certo sentido, o nosso passado; estamos em algo do passado ou novo e original. Desde o século XV o homem não deixa de ser cristão, evidentemente, como também não deixou de ser platónico, estóico, etc.; mas sente-o como sido, como ter sido cristão — por ter vindo da fé. Assim se constitui a vida humana numa dualidade de raiz que foi a desdita e a impureza essencial da Era Moderna, que não foi ainda eliminada do homem contemporâneo. Vive-se por partidas dobradas: a da fé e a da razão, sabendo-se

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muito bem que são princípios antagónicos. E isto é idêntico para o cristão e para o ateu. O cristão contemporâneo, quer o queira ou não queira, tem que ser também racionalista e naturalista, sejam quais forem as subtilezas — sempre leais, é claro — de que se valha para confirmar na sua intimidade a sobrevivência da fé. Por sua vez, o ateu moderno e contemporâneo conserva uma zona decisiva da sua vida a que não chegam nem a razão nem o naturalismo: vê essa zona, sente-a em si, ainda que se esforce por negá-la. Quer dizer: acredita sem conteúdo sincero de crença, vive uma fé desabitada e no vácuo.

O dualismo da fé e da razão é introduzido em Portugal, precisamente, no século XIX, por meio de duas revoluções culturais levadas a cabo por duas gerações-chave: a geração de 1830 e a de 1870. Na primeira, de modo ainda suave e incipiente, através do seu primacial mentor: Alexandre Herculano; na segunda, de modo radicalizado, por intermédio de Antero de Quental. O dualismo mental provoca nas consciências mais sensíveis a desorientação e o desespero — o desespero de não poder encontrar repouso espiritual nem na fé nem na razão. O português do século XIX sente que foi cristão mas que já o não é. E, no entanto, sente-o como um «ter sido», como algo que já não lhe basta mas de que não pode desprender-se. E o mesmo se dirá, embora em menor grau, da razão. Muito diferentemente do homem do século XV, que só se sentia desesperado perante a sua fé, o homem português, a partir do século XX, sente-se desesperado por partida dobrada: por causa da sua fé e por causa da razão. São tantos os desesperados da razão como os da fé — e, num certo sentido, mais os daquela do que os desta, dado que a fé é um precedente mais antigo e, de certo modo, menos incisivo na problemática moderna em determinadas classes sociais. Vive-se na dúvida porque duas crenças incompatíveis batalham dentro do homem, fazendo-o oscilar e flutuar. Uma crença não desaparece sem mais nem menos para deixar um vazio: se o homem deixa de crer em alguma coisa, tem logo que germinar nele a fé, ainda que confusa, em outra ou outras. O duvidoso, diz Ortega, «é uma realidade líquida sobre a qual O homem não pode

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sustentar-se e cai... Sobre o mar de dúvidas em que caiu não pode sustentar-se e, de facto, cai até ao fundo. O fundo é o desespero... A dúvida sem caminho à vista não é dúvida, é desespero. E o desespero não leva à filosofia mas ao salto mortal». (Orígen histórico de la Filosofia, VIII, p. 268).

Desse salto mortal é paradigma o remate da vida do mentor da geração de 70, Antero de Quental. Sem encontrar saída para uma autêntica filosofia da vida, saiu desta em desespero pelo alçapão do suicídio.

Em breve síntese, teríamos assim a razão narrativa do processo histórico que vai da fé religiosa ao desespero psico-afectivo no homem português — o desespero de que Unamuno testemunhou a intuição eloquente e que vamos encontrar expresso na obra de Miguel Torga. O poeta é um homem em crise, como o foi o do mundo romano no século I da nossa era e como o foram os artistas da geração de 70. Em crise, manifestamente, porque já não tem a fé da infância e, não encontrando uma visão filosófica da existência por intermédio da qual a razão compreenda a vida e a vida, por sua vez, -dê maior força à razão, se vê numa situação mental de infância da fé, com todas as consequências negativas que daí resultam num temperamento exaltado e sentimental.

É através deste cunho da sua personalidade psico-social que Torga emparelha com o seu admirado mestre espiritual Miguel de Unamuno: não estar no catolicismo e não ter deixado de ser cristão, sem poder, no entanto, cair no ateísmo. Ilustram emotivamente esta crise as palavras escritas pelo poeta português ao atingir os 65 anos, em 1972: «Respondi-lhe que sim, que era ateu. Mas um ateu a conviver com divindades desde a pia baptismal. Primeiro, na catequese, a aprender o nome das pessoas da Santíssima Trindade; a seguir, nas senzalas do Brasil, a conhecer pessoalmente várias potestades tropicais; mais tarde, a ler na História da Grécia e de Roma a genealogia dos senhores do Olimpo; por fim, a soletrar um catecismo pagão nas fragas do próprio berço. — Ateu! — filosofei. — Quem o poderá ser no seio de uma cultura onde noventa e nove

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por cento do oxigénio que se respira é de natureza celeste?». (Diário, 15/9/1972, XI, p. 176).

Acompanhando esta linha de pensamento aponta o crítico e ensaísta Eduardo Lourenço: «Deus não é uma palavra morta na poesia de Miguel Torga. Digamo-lo sem rodeios: este homem de expressão voluntariosa e forte vive crucificado numa contradição e dela germina, «como um joio imortal», a sua angústia e desespero. Que contradição? A de um homem que escreve deuses e pensa Deus, que escreve Deus e não sabe ao certo se pensa Nada. Mas esse Nada o inquieta como se fosse Deus. […) A ambiguidade da situação religiosa de Torga, tal como se reflecte nas suas obras, é ainda mais acentuada que a de José Régio, que parecendo jogar sempre em dois tabuleiros, ao mesmo tempo, na realidade, jogou preferentemente no tabuleiro de Deus. Miguel Torga, ao contrário, joga no tabuleiro de Deus e do Homem, -um homem que ele não concebe, a maioria das vezes, senão como o opositor de Deus; mas o seu jogo é desconcertante porque não joga nos dois tabuleiros ao mesmo tempo, mas sucessivamente». «O Desespero Humanista de Miguel Torga e o das Novas Gerações», in Tempo e Poesia, Porto, 1974, pp. 110-111).

Esta vivência em íntima e perpétua contradição poderá ser um dos motivos inconscientes da alergia de Torga pelos grupos literários ou políticos. «Como há-de lutar com outros o que vive em luta consigo mesmo?», diz Ortega. E acrescenta: «Os homens que combatem com os demais são os fanáticos, quer dizer, os que estão em paz consigo mesmos. Como há-de ter ânimo para disputar com os outros o que a toda a hora o faz consigo? Quem sabe que a íntima disputa é o ser autêntico do homem não pode sentir grande empenho em convencer ninguém de coisa alguma. Só o fanático, o que não é para si mesmo homem, o que é feito de pedra, é persuasivo, lutador, proselitista. Quer dizer: os que não pensaram nada por si são os que se afadigam em convencer os outros de muitas coisas». (El Espectador, Revés de Almanaque, II, pág. 737).

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Se Torga passou pelos cárceres salazaristas não foi devido a um comportamento estritamente político, pelo menos activo, mas em consequência da sua obra literária comprometida, crítica, inconformista e denunciadora. Já se sabia: quando Torga soltava uma das suas calhandras poéticas, os caçadores de serviço preparavam os seus bacamartes. Como Unamuno, o poeta português preferiu ser um homem reservado nos seus comportamentos civis para poder cumprir com honestidade o ofício predestinado de profeta e samaritano da amargura alheia:

Triste, lá vai à ronda dos segredos

O maluco que rouba quanto vê.

Branco, do coração aos dedos,

É todo antenas onde apenas lê.

Murcha-lhe nos pés o rosmaninho,

E a própria rosa, de o sentir, descora;

Mas é um Deus que passeia o seu caminho

A beber a amargura de quem chora.

Magro, lá passa, e lá se vai consigo

A luz das coisas e a flor de tudo.

É um bruxo lento, tenebroso e antigo,

Pálido, sério, solitário e mudo.

(Diário, 5/3/1943, II, p. 134)

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Ainda sobre o desespero religioso de Torga cumpre salientar que não aparece sem mais nem menos na sua vida. Foi-se forjando lentamente, como a agonia, como todo um processo de amadurecimento pessoal. Contrastando as crenças herdadas com as ideias conquistadas através da sua experiência da vida, sente que algo se desvanece dentro de si. Já em 1936 anota meticulosamente no seu Diário: «Isto de religião está cada vez pior em mim. Depois duns arrancos fundos e angustiosos, a coisa foi secando, secando, até chegar a esta mirra mística, que já não há Jordão teológico capaz de vivificar. Mas quanto mais pobre estou desse conteúdo humano, mais cheio me sinto de desespero. O que eu dava para me levantar cedo esta manhã, ir à missa, e voltar da igreja com a cara que trazia o meu vizinho... Queria era sentir-me ligado a um destino extra-biológico, a uma vida que não acabasse com a última pancada do coração». (Diário, 16/8/1936, I, p. 27).

Aos 27 anos, o poeta sente a angústia de viver fora do regaço das crenças que anteriormente lhe tinham dado segurança, que eram solo firme debaixo dos seus pés. E a criança, recôndita sob o homem romântico, queixa-se e suspira. Como Unamuno, também Torga experimentou a «arrancada angustiosa e religiosa». Mas, também como o pensador salmantino, não soube dar-lhe continuidade — pelo menos sob as normas tradicionais e ortodoxas. Conforme vai alcançando níveis mais amadurecidos da sua personalidade, o poeta tem a intuição de que o homem Torga, se quer ser autêntico consigo mesmo, terá de prescindir da ortodoxia clerical duma fé, que pode dar segurança, é certo, mas que só subsiste à custa da renúncia do verdadeiro sentir original. E o que o poeta quer, acima de tudo, é ser fiel ao seu destino de homem pensante e humanamente comprometido. Por isso pondera: «A Igreja, como morada de transcendência e redil materno do rebanho, deixou de ter o sentido profundo de outrora... Cada qual salva a sua alma na solidão. Como forças colectivas capazes de semear o mundo de catedrais ou de cruzadas, as religiões estão mortas». (Diário, 15/11/1951, VI, p. 60).

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As religiões, no entanto, continuam a exercer o seu império como forças colectivas na área em que o homem-massa predomina. Só deixam de funcionar como tais nos homens da têmpera de Torga, em que existem outras forças interiores como a ciência, a filosofia ou o pensamento activo e o terrível poder de recusar. A religião clerical acaba por massificar, ao passo que o pensamento pessoal individualiza, personaliza. Quanto mais indivíduo queira ser o homem, menos permeável será aos dogmas e cânones de qualquer igreja.

O individualismo de Torga perante qualquer imposição ritual manifesta-se nas ocasiões mais diversas. Conta ele que, quando foi internado no Hospital de Jesus, em Lisboa, para ser operado, uma monja enfermeira ofereceu-lhe candidamente uma medalhita, com intenções salvadoras. E Torga comenta: «Enquanto o meu corpo e o meu espírito puderem esbracejar, nunca farei o jogo sujo de erguer as mãos por cálculo diante de nenhum altar. Mas dado que sim, que exista um Deus cioso que a minha miopia me não deixa ver claramente, quero crer que é esta mesma atitude de rebeldia que espera de mim. Tragicamente postas num pé de dúvida irremediável, as nossas relações teriam de ser, e foram sempre, difíceis mas viris. De potestade a potestade. A omnipotência divina enfrentada pela inconformação humana». (Diário, 22/6/1972, XI, p. 157).

E, sobre o seu inconformismo constitucional dirá ainda: «Uma autêntica vivência religiosa deslumbra-me sempre. Mas um sistema religioso apavora-me como a própria morte. A semelhança do que ela faz às vítimas, também ele apaga a chama divina acesa no rosto da revelação, e lhe desenha o esqueleto mundano por debaixo da pele». (Diário, 27/3/ /1955, VII, p. 176).

São frequentes em Torga os textos de aparente ateísmo mas que na realidade, como advertiu Eduardo Lourenço, funcionam como pretextos para espraiar a sua alma religiosa e desesperada:

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Não tenho deuses.

Vivo Desamparado.

Sonhei deuses outrora,

Mas acordei.

Agora

Os acúleos são versos

……………………….

A paz possível é não ter nenhuma.

(Penas cio Purgatório, «Princípio»)

O poeta, ao ver extintas as suas crenças, sabe que não pode contar senão consigo mesmo para não naufragar no mar dos desamparados. O mais autêntico, nele, é a faina de poeta, é a sua vocação — ao fim e ao cabo a sua salvação. Não importa que termine o poema, como faria o seu mestre modernista Fernando Pessoa. A ausência da paz não é um gesto de ironia contra o destino mas, pelo contrário, um desafio humilde de homem autêntico que sabe que não é a paz o estado do ser humano, mas sim a luta. Ou então não seria ele outro Job, o Orfeu rebelde de todas as horas: «A terra tem um senão: a mudez. E o poeta é um homem de perguntas. Desde que me conheço que me dilacera o cilício de a interrogar sem esperança». (Diário, 15/8/ /1955, VII, p. 199).

Colocado na situação de independência afectiva perante as antigas crenças, o poeta exclama:

A que Deus implorar qualquer ajuda,

Se sou eu que fabrico as divindades!

Imagino, Imagino,115

E, de tanto subir, chego ao divino.

Mas nenhum sequioso mata a sede

A beber na miragem de uma fonte.

Grito,

Grito,

E, quanto mais acima, mais aflito.

(Diário, 20/7/1954, VII, p. 190)

Sobre este conceito do divino como projecção de desejos humanos afirmou Torga em 1960, no Diário, que «quando o homem sublima as coisas, nascem os deuses pagãos; quando sublima o semelhante, nasce Cristo; quando se sublima a si próprio, nasce o tirano». Torga conseguiu personalizar a sua fé religiosa, com tudo o que isso implica de risco, chegando à conclusão de que o único Deus que nasce entre os homens é o Deus do homem. Mas, até chegar a esta personalização, o poeta passou por diversos sentimentos na dependência do Deus da sua infância. Tem o sabor de um «Tantum ergo» litúrgico este cântico a Deus:

Meu Deus: aqui onde não chega o teu amor,

é tudo igual

ao teu gesto de desprezo...

A Vida não tem sentido,

e o próprio sol que nos mandas

nem regela nem aquece!

Apenas luto eu, por ser Poeta116

e ser teu inimigo desde o berço!...

(O Outro Livro de Job, 1936)

Cai o poeta, por vezes, na tentação de «estar» na vida somente como Poeta; mas logo os seus sentimentos de homem mortificado o alertam e o obrigam a ser o Sísífo que sabe que é, a carregar de novo com o penedo da sua responsabilidade humana, encosta acima, a caminho do seu destino: «Dói-me ser homem aqui como se sofresse duma ciática de consciência. O remédio seria a resignação, e eu odeio semelhante palavra, ou o suicídio, e eu não queria enfileirar na triste procissão dos nossos desesperados. Basta de tiros no coração e na cabeça! Por que razão hão-de ser sempre os bem intencionados a desistir, sempre eles a abandonar o terreno?». (Diário, 26/9/1957, vol. VIII, pág. 85). Nem por isso o suicídio deixa de estar recalcado no seu subconsciente, insinuando-se surdamente uma vez por outra: «Piorei da saúde... Dantes, a morte parecia-nos vir de fora, num ataque bruto e frontal. Agora não. Agora, conseguimos vê-la crescer em nós, milimetricamente, insidiosamente, como uma semente na terra ou um afecto no coração». (Diário, 6/3/1953, vol. VI, pág. 178-179). Lançado no desespero, desespera de tudo, de si e do homem em geral. E mais ainda: por vezes pensará que a síntese do seu desespero, como escreveu em 1942, se resumirá nestas palavras candentes: «que cheguei, em matéria de descrença no homem, ao zero». E o canto que lhes corresponde é o do pleno pessimismo:

Homem, que perdição!

Que desgraça!

Um arco de triunfo em cada praça

A consagrar a tua servidão!

(Cântico do Homem, «Desespero»)

Ante a desgraça humana chama pela morte: «Vem, doce morte!»; e este chamamento da morte, datado de 1949 no Diário,

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não é uma voz de circunstância, pois quando a sua fé em Deus se manifestava ainda era a Deus que a pedia:

Senhor, acaba comigo

Antes do dia marcado;

Um golpe bem acertado,

O tiro dum inimigo...

Qualquer pretexto tirado

Dos sarcasmos que te digo.

(Diário, 11/12/1934, I, p. 16)

A insatisfação do homem de grande sensibilidade é uma constante na história psicológica do género humano. Mas à insatisfação congénita numa alma sensível há que acrescentar em Torga o eco desfavorável da visão pessimista de certo cristianismo tradicional. O próprio poeta confessa, no volume IV do Diário, com data de 1947, que o cristianismo fez da vida uma cruz porque lhe pôs à cabeceira a consciência da morte. E ante um progressista pós-conciliar que lhe falou fervorosamente da «nova Igreja» dirá consigo mesmo: «Já não chegas a tempo, por muito que te esforces! A Igreja tolheu o homem durante vinte séculos. Agora é tarde de mais para lhe anunciar a liberdade». (Diário, 5/5/1972, XI, p. 171).

É Miguel Torga injusto nesta opinião? O poeta só sabe que a sente, que a vive. E isto basta para a sua denúncia. Forçaram-no a «ser» muitas coisas que lhe roubaram a fé em tudo. Em 1943 ainda escreve que a fé é possível, que é preciso alimentar a esperança, mas logo acrescenta: «Mas, francamente: fé em quê?». Não verá outro recurso senão o de agarrar-se ao seu ser de Poeta, à sua vocação, e ir tentando suavizar a vida até pedindo socorro, como no poema «S.O.S.»:

Vai ao fundo o navio,

Mas eu sou o homem da telegrafia, 118

O que lança nas asas do vazio

O adeus da agonia...

Sei que ninguém acode à íntima certeza

De que tudo acabou quando naufraga

O veleiro do sonho.

Mas honrado poeta sinaleiro

Do destino de quantos aqui vão,

Ponho

A correr mundo o grito derradeiro

Da nossa desgraçada perdição.

(Cântico do Homem, «S.O.S.»)

O apelo é profundamente significativo na vida do poeta. Se lança o seu pedido de socorro é porque algo espera. O poeta desesperado não o é ao ponto de deixar de ser humano e de poder esperar: «Um poeta, por mais pobre que seja, tem sempre que dar. E eu dou isto: esperança», escreve no Diário em 1957. Numa mensagem dirigida aos Encontros Internacionais de Poesia, de Knocke, em 1951, corrobora a mesma ideia: «...É de esperança, eterna e sempre renovada esperança, a nossa lúdica presença na terra». E a esperança é por ele situada na criação poética: «Um acto de fé na Poesial... Por ela ser o derradeiro pão do espírito. Por ela ser a única vida que não morre. Por ela ser a liberdade!». (Diário, VIII, p. 38-39).

O poeta religioso e desesperado acaba por ser, também, o poeta religioso da esperança. Como disse certeiramente Eduardo Lourenço, o desespero de Torga dá-se a si mesmo um tempo de reflexão. Em vez de ser um desespero desumanizado, converte-se em desespero humanista. Aceitar um tempo de reflexão no desespero é o mesmo que abrir-se à esperança — pelo menos à

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esperança de poder combater o próprio desespero. Mas não será esta forma de esperança do poeta trasmontano como que um eco religioso da salvação última a que o cristianismo reporta? Porque o cristianismo, que num primeiro tempo envolve uma interpretação quase trágica da vida, num segundo tempo pretenderá que tudo acabe em bem, em salvação. A ponto de desesperar de tudo e de todos, o poeta entrega-se, quase sem resistência, a essa nova deidade: a esperança. Mas somente a intervalos que sucessivas visões angustiadas vão absorvendo: «... Coube-me a escuridão dum poço de onde tento sair a todo pano. Sísifo, como toda a gente, mas convencido de que há-de ser transitória a actual condenação do homem, empurro a pedra sem acreditar no mito.

Pode lá ser verdade este neo-romantismo sem esperança, só tédio e angústia, agónico na forma e no conteúdo». (Diário, 7/11/1950, p. 167). E aos que não conseguem compreender corno pode ele ser ao mesmo tempo a incarnação do desespero e da esperança, sugere que imaginem na sua personalidade dois andares sobrepostos: «O da minha humanidade profunda, radical, e o da minha humanidade circunstancial, histórica. Num, tudo era escuridão e descrença; no outro, claridade e confiança. Para dissipar as trevas do primeiro, não havia luz possível. [...) Jano de duas faces irredutíveis que há em todos nós, e que felizmente poucos são capazes de consciencializar em si, e, desgraçadamente, menos ainda de entender no semelhante» (Diário, 20/12/1972, XI, p.183-184).

Para espanto de todos — e até dele próprio — este poeta do sentimento trágico e do desespero religioso, concedendo a si mesmo um tempo de espera reflexivo, encontra-se sem saber como nos braços da esperança. Toda e qualquer reflexão, quando é verdadeira e sincera, acaba por descobrir a dupla condição do viver humano, o seu drama e o seu festival, a que Ortega faz referência ao longo da sua faina de filósofo, porque funciona nela como mentora a razão da vida e a vida da razão vital.

O poeta, quando se encontra com a esperança, não pode deixar de a cantar:

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Sei o teu nome e chamo-te em silêncio.

Não quero despertar

O rancor assassino

Dos guardas vigilantes

Que te negam...

Vem, se puderes passar

Através do seu ódio secular,

A única tarimba onde sossegam.

Ah, que festa haveria nos meus braços,

Se batesses à porta como outrora!

Toda a casa acredita nessa hora,

E ouve, em sobressalto,

Cada leve rumor que se aproxima...

Vem, se puderes passar.

Vem, se puderes, mostrar

A eterna juventude que te anima.

(Câmara Ardente, 1962, «Esperança»)

Pergunta Eduardo Lourenço se a esperança em Torga não será mais irredutível do que o desespero. Cremos que não, muito simplesmente porque também não cremos que o desespero o seja. Pelo contrário: pensamos que ambos têm uma função vital na estrutura psico-afectiva da personalidade do poeta trasmontano: o desespero como catarse da fuga da razão no poeta, homem desorientado na selva de ideias sentimentais; a esperança como espera cordial e temporal da autenticidade existencial do homem - poeta. Ambos funcionam dentro duma totalidade humana, situada, que dialoga com o mundo circundante e, ao mesmo tempo,

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interpela a sua consciência temporal. Por isso a esperança, em Torga, é uma ave lançada para o futuro:

Passo a noite a sonhar o amanhecer.

Sou a ave da esperança.

Pássaro triste que na luz do sol

Aquece as alegrias do futuro,

O tempo que há-de vir sem este muro

De silêncio e negrura

A cercá-lo de medo e de espessura

Maciça e tumular;

O tempo que há-de vir — esse desejo

Com asas, primavera e liberdade;

Tempo que ninguém há-de

Corromper

Com palavras de amor, que são a morte

Antes de se morrer.

(Penas do Purgatório, «Ave da Esperança»)

Ave que sente que um sol generoso aquece as suas penas, as suas ilusões de futuro, o seu tempo vindouro que promete ser sempre melhor, sempre belo, como a vida exige cada vez mais vida e vida melhor. A esperança nascida do desespero, todavia, não pode ser um sentimento claramente definido. Na vida do poeta poucas coisas haverá definidas duma vez por todas. Também a esperança lhe surge vestida de várias formas a que receará entregar-se:

Tantas formas revestes, e nenhuma122

Me satisfaz!

Vens às vezes no amor, e quase te acredito.

Mas todo o amor é um grito

Desesperado

Que ouve apenas o eco...

Peco

Por absurdo humano:

Quero não sei que cálice profano

Cheio dum vinho herético e sagrado.

(Ibidem, «Esperança»)

Todos estes sentimentos do poeta nos obrigam a concluir que, em Torga, o desespero religioso é trespassado de esperança; e que esta esperança, por sua vez, transporta sob as asas o perdigão do desespero.

Não se pode deixar de assinalar, neste passo, o paralelismo dos dois sentimentos em Torga e em Unamuno, seu mestre espiritual. Tanto o poeta de Coimbra como o poeta de Salamanca conviveram intimamente com o desespero e a esperança. O «voluntarismo sentimental» de Unamuno soube encontrar uma saída airosa para o seu tragicismo existencial através de «uma esperança densamente listrada de incerteza mas nem por isso menos vencedora», como diz Laín Entralgo no seu estudo La Espera y la Esperanza,1964. «Revista de Occidente», «Miguel de Unamuno o la desesperación esperanzada», pág. 388).

Sobre esta vivência pessoal de Unamuno, em contraste com as vivências pessimistas da geração portuguesa de 70, diz Dámaso Alonso: «Unamuno não é um «vencido da vida»; não pôde dizer como o seu grande amigo Laranjeira

...a vida

123

dá vontade de morrer».

E acrescenta, acerca das predilecções de Unamuno pela literatura portuguesa: «Penso por vezes se parte da reacção que a literatura portuguesa produzia nele não seria precisamente por oposição, por necessidade de contraste. Entre as contradições em que se debatia o áspero unamunismo de don Miguel algumas vezes se entreabre a ideia do ser vencido, mas para transformar-se logo em instantânea vitória:

Dios a quien vence mete

por sua mano en el seno

de la eterna victoria.

Unamuno é um centro de indomável vontade, um querer e um quefazer: «quiero y hago mi obra», disse um dia; e acrescentava, dirigindo-se a Deus: «Sólo espero de tí». (Prólogo a Unamuno y Portugal, Julio Garcia Morejón, o.c. pág. 13).

Também a esperança em Torga é a salvação pessoal que encontrou na sua faina vocacional de poeta. E embora esta esperança não tenha fundamentado o edifício duma vida espiritual, como em Unamuno (assim nos diz Laín Entralgo da esperança unamuniana), não podemos deixar de reconhecer na esperança expressa pelo poeta português uma capacidade de recreação poética que suscita espaços interiores de paz afectiva. E é neles que alivia o peso amargo do seu desespero, evocando as recordações litúrgicas da infância. Disso dão testemunho os poemas que sistematicamente o Natal em S. Martinho de Anta lhe inspira. Eis um deles:

Dia de sol e de Natal;

Andam guerras no mundo e dói-me a vista;

Mas, com Deus no Marão sem neve, não há mal

124

Que resista.

(Diário, 24/12/1940, I, p. 175, «Dia Santo»)

No Natal de 1953 faz tilintar esse guizo da criança íntima que Ortega diz ressoar em todo o homem que se mantém autêntico:

Um Deus à nossa medida...

A fé sempre apetecida

De ver nascer um menino

Divino

E habitual.

A transcendência à lareira

A receber da fogueira

Calor sobrenatural.

(Diário, 24/12/1953, VII, p. 84, «Natal»)

Um ano mais tarde, o Deus do Natal será um menino a adormecer nos seus versos de poeta:

Estranho Menino Deus é o dum poeta!

O que nasce e renasce há muitos anos

Na minha noite de Natal, fingida,

Mal corresponde à imagem conhecida

Das sucursais do berço de Belém.

É uma criança tímida que vém

Visitar os meus sonhos, e, ao de leve,

125

Com mãos discretas, tece

Um poema de neve

Onde depois se deita e adormece.

(Diário, 24/12/1954, VII, p. 163, Retábulo,)

Miguel Torga, poeta do desespero religioso em cada madrugada de esperança, será o «poeta da hora absurda» de que falava Fernando Pessoa? Cremos que não nem o julgamos defensável. Poeta, sim, de todas as horas do homem — e até das horas de Deus.

126

A pátria ibérica do

poeta.Quando se analisa o casticismo do poeta trasmontano

vislumbramos através do seu amor ardente pela terra um amor não menos fervoroso pela terra que é uma Pátria e por uma Pátria que é sentida pelo poeta como pátria ibérica. O testemunho eloquente desse amor é o livro Poemas Ibéricos.

Não haverá equívoco se dissermos que Torga não sentiria qualquer estorvo em proclamar «nobre», como Camões, «essa cabeça de Europa que é Espanha». Torga é um dos portugueses que sentem mal - estar nos pequenos espaços. Não se resigna a viver limitado pela fronteira com a Espanha. Aspira a ser um cidadão peninsular, ibérico. Para o poeta, a pátria é cultura. E a cultura que rega o húmus fecundante da sua alma é a cultura ibérica — uma cultura que não aceita limites fronteiriços entre Portugal e Espanha. O seu povo «substantivo» é formado por vários povos ou étnias. Assim se compõe a sua geografia:

Povo sem outro nome à flor do seu destino;

Povo substantivo masculino,

Seara humana à mesma intensa luz;

Povo vasco, andaluz,

Galego, asturiano,

Catalão, português:

O caminho é saibroso e franciscano

127

Do berço à sepultura...

(Poemas Ibéricos, «A Vida», 1965)

Temperamento dramático como é, Torga não «joga irónico» com a História pátria, como o seu mestre modernista Fernando Pessoa na Mensagem. Pelo contrário: sente-a viva e pessoal como um destino que lhe está cravado no peito. Os Poemas Ibéricos são a história patética de um passado que continua presente no seu coração de português. E considera-se, nada menos, como filho primogénito da Ibéria.

É uma marca característica na experiência da vida deste poeta peninsular o sentimento de satisfação que manifesta cada vez que pisa terra espanhola. A Ibéria não é para Torga uma palavra: é uma sensação telúrica. Atravessar a fronteira portuguesa e sentir que o seu coração se dilata é uma constante que se repete na sua vida interior. Está em Mérida e escreve no Diário, em 1960: «Não há dúvida que me sinto bem a pisar terra espanhola! É uma sensação agradável de alargamento físico, de reconciliação íntima, de fome satisfeita. Parece que se completam em mim não sei que crescimento celular interrompido, que voo espiritual travado, que compreensão esboçada. Qualquer coisa de semelhante a uma orfandade que fosse subitamente anulada pela ressurreição milagrosa do amparo progenitor. [ ...] A minha humanidade tem agora as dimensões da Península, com todas as contradições que a dilaceram harmonizadas. Vou do realismo minhoto ao misticismo castelhano, do transbordamento andaluz à contensão asturiana, da resignação galega à insubmissão catalã, sem tropeções. Sou outro homem. Ou mesmo, esquecido de Aljubarrota e do tratado de Tordesilhas». (Diário, 8/6/. IX, pág. 33).

No prefácio à tradução espanhola do seu livro Bichos, com data de 1944, insiste na mesma ideia: «...A Espanha foi sempre um dos meus pontos de honra. Desde que num remoto dia fui a Santiago de Compostela ver a Porta da Glória, nunca mais pisei o seu chão ou pronunciei o seu nome sem amor. A minha pátria cívica acaba

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em Barca de Alva; mas a minha pátria telúrica só finda nos Pirinéus. Há no meu peito angústias que necessitam da aridez de Castela, da tenacidade vasca, .dos perfumes do Levante e do luar andaluz. Sou, pela graça da vida, peninsular». (Diário, 18/5/ III, p. 47).

Em Miguel Torga, porém, como em qualquer português, este sentimento de comunhão vai sempre impregnado de um certo sentimento de insegurança e irritação. O amor do português por Espanha é sempre ambivalente. O poeta assim o confirma: «É curioso: com tantos anos de iberismo na pele, e continuo a sentir a espinha arrepiada quando piso a raia espanhola! Há reflexos condicionados latentes no meu subconsciente que a linha divisória desperta». E logo adiante acrescenta: «Ao cabo de alguns quilómetros de internamento por terras «hermanas» reencontro a serenidade perdida, e o espírito espaneja-se, até, num contentamento peninsular». (Diário, 12/8/1963, IX, pág. 187). Por isso nunca deixará de lamentar a nefasta pedagogia contra essa pátria telúrica e sentimental que é para ele a Espanha — uma pedagogia deformadora que se insinua na alma de cada português desde os bancos da escola: «A nossa personalidade individual e colectiva foi modelada de tal maneira de encontro ao perigo raiano, que o simples nome de Espanha desencadeia uma girândola de reflexos em cada um de nós. Não é ódio, como às vezes se julga. É, simplesmente, pânico. Medo terrífico de perder a independência, que sabemos negada no subconsciente dos vizinhos. Homens livres sem contestação em todas as terras do mundo, mesmo que nelas sejamos miseráveis ganhões, aqui, até sentados à mesa dum restaurante nos sentimos súbditos potenciais. E, desde os habitantes às obras de arte, só conseguimos ver em cada grandeza pessoal ou monumental instrumentos virtuais de domínio». (Diário, 23/9/1971,XI, p. 142).

Sempre Torga combateu esta distorsão da alma. E daí que nunca regateie o reconhecimento de todas as qualidades que vê no povo espanhol e na história de Espanha. Encontrando-se em Paris, escreve: «A latinidade já só tem um povo verdadeiramente vivo: a

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Espanha. Ali, ou matar ou morrer. Quanto a esta pobre França, se um dia lhe sopra um vento a valer, pulveriza-a com a cegueira de se julgar uma nova Grécia, cuida que devorará todos os invasores...». (Diário, 2/10/1950. V, p. 150). E, não deixando de reconhecer as coisas positivas que a França apresenta em relação aos países peninsulares, escreve em outro passo do mesmo livro: «É preciso reconhecer que passados os Pirinéus o ar é mais leve, a terra é mais fecunda, a paisagem é mais doce». Mas logo acrescenta: «Mas eu prefiro o pesadelo, a pobreza e a agressividade do outro lado. (...] Há uma grandeza que não se mede em calorias e salamaleques. É coisa mais profunda e significativa. (...) Ora essa grandeza tem-na a Espanha, faminta, esfarrapada, a arder em febre desde que nasceu». (Diário, 7/9/1950, V, p. 126).

Outro dos traços relevantes da «espanholía» que Torga soube captar foi o da capacidade de humanização — a capacidade que se manifesta no génio espanhol para fazer do homem, do «outro», do seu semelhante, o epicentro do seu interesse e proximidade humanista. Em certo dia, estando em Salamanca, escreve o poeta:

«Em Espanha o humano configura tudo. O espírito encarna em D. Quixote; o anti-espírito em Sancho Pança. Cristo apodrece em Palência, concretamente cadavérico. As próprias cidades acabam por ter um rosto de gente. Trujillo, o de Pizarro; Medellín, o de Cortez; Toledo, o de Greco; Ávila, o de Santa Teresa; Soria, o de Machado; Granada, o de Lorca; Valência, o de Ibañez... A fisionomia que tenho agora diante dos olhos — milagre antropomórfico que encontra precisamente a justificação na singular individualidade que o impõe — é uma máscara patética de poeta, talhada em calcáreo róseo, alanceada de fé e de cepticismo, possessa de temporalidade e de intemporalidade, onde os arados que lavram a planície circundante prolongam os sulcos doridos do eternamente agónico sentimento trágico da vida». (Diário, 12/6/1960, IX, p. 35).

Já noutro sentido, não poderá Torga esconder o seu profundo desprezo pelas nações que se serviram da Espanha para os seus

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interesses mais vis Em visita a Guadalajara recorda dolorosamente a guerra civil espanhola:

«Mil anos que eu viva, nunca perdoarei o cinismo duma França socialista, duma Inglaterra liberal e duma América democrática a contemplarem de palanque o drama da guerra civil, como se estivessem a assistir a uma gigantesca tourada humana». (Diário, 13/6/1958, VIII, p. 127).

É com essa carga interior de ideias e afectos espanholistas que se dispõe a percorrer os dilatados horizontes ibéricos, com olhos contemplativos e perscrutadores de poeta. O poeta quer uma «seara infinita», onde «até os espantalhos se podem dar ao luxo de voltar desdenhosamente as costas aos pardais...:

«Sim, porque «ninguém pode pedir largueza de espírito, fidalguia de gestos, nobreza de atitudes a um homem que viva a tropeçar nas fronteiras da pátria e a contar os grãos de centeio da courela que amanha». (Diário, 20-4-1960, IX, p. 25). Todos os heróis da terra peninsular são seus heróis — são humanidades interpelantes. Estão muito longe da sua maneira de ser e de pensar essas «ironias superlativas» que Fernando Pessoa inventa na forja da sua razão lírica quando contempla a história portuguesa. Torga sempre considerou a sua faina de escritor como um combate pela liberdade no Portugal do seu tempo, como afirmou na sua entrevista ao «Le Soir» de Bruxelas, recordando o Portugal de ontem contra todos os esbirros que servem a intolerância humana.

A sua autenticidade vocacional de poeta não lhe consente a acrobacia artística do seu mestre de Orpheu. Os heróis de que fala Pessoa nunca se apresentam de modo a dar-nos a visão segura do que são e parecem títeres nas mãos «fingidoras» do seu criador. A sua virtuosidade de artista permite todos os jogos malabares com as coisas mais sagradas e mais reais. E o poeta «órfieo», assumindo as ideias corno objecto e termo do seu pensamento, está a realizar o irreal como irreal e só dá autêntica personalidade aos seus esquemas mentais. O poeta «presencista», pelo contrário, submete-

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se à realidade que se lhe impõe, observa o real do alto da sua atalaia histórica, exaltando os heróis e resistindo aos «fingidores».

Só se pode interpretar como tragicómica a atitude de certos pseudo-nacionalistas (recorde-se que o livro Mensagem, de Fernando Pessoa, recebeu apenas um segundo prémio no concurso literário aberto pelo Secretariado da Propaganda Nacional do «Estado Novo» de Salazar, em 1934) quando pretendem que o poeta modernista fale uma linguagem de académico da História, procurando assim recuperá-lo para os seus interesses patrioteiros. Por isso tanto se tem empenhado Torga em zelar pela sua independência poética — coisa que nunca preocupou Fernando Pessoa — visto que a arte de um poeta personalizante e afectivo, como afirmou o próprio poeta trasmontano quando da entrega do Prémio Internacional de Poesia, pode ser igualmente «aniquilado pelos césares do momento» ou «utilizado até que lhe suguem o sangue».

O herói que rompe a marcha no retábulo histórico de Torga é Viriato, o primeiro herói lendário da Lusitânia. É introduzido pelo poeta com certa unção religiosa, com patetismo, como o do evangelista S. João ao falar de Cristo:

No princípio era o Verbo e a sua fome.

………………………..

Tudo se anuncia nebuloso e oculto.

Identificando-se com a personagem, Torga relata a sua vida em traços

largos:

No impreciso azul é que eu morava,

Emigrado feliz da minha ausência.

Longe do berço quente que pisava,

132

Realizava a humana transcendência.

Mas nisto um lobo astuto e desmedido

Uivou ao meu destino em voz de guerra;

E eu de repente ouvi o teu gemido

Dentro de mim transfigurado em terra!

(Poemas Ibéricos, «Viriato»)

Se a personagem é mito ou realidade não interessa ao poeta. Basta-lhe que seja uma ideia com conotação afectiva que funciona na sua mente com misteriosa urgência, clamor de guerra em defesa da sua terra lusitana. As gestas guerreiras e libertadores do lendário Viriato são as suas gestas, as do homem Torga ante qualquer intuito de cerceamento da sua liberdade, da sua independência pessoal e da independência colectiva. Torga não é um Orfeu rebelde dado em espectáculo mas um homem que se rodeia das suas rebeldias como a rosa se rodeia de espinhos, para defender a verdade diamantina da sua alma. Urge-lhe ser «aquele que tem de ser», segundo o ditame de Píndaro.

Se Viriato-Torga é o grito da independência lusitana, Séneca-Torga, pelo contrário, será o cântico da dependência ante a cultura romana:

Recebi o legado

De que Roma se ufana:

A severa moral,

O estoicismo teimoso da vontade,

E o alto ideal

Duma pobre e cristã fraternidade...

(Ibidem, «Séneca»)

133

Invocando o Cid, de novo sente Torga o ressurgir da aventura mística e guerreira:

Vinha a manhã nos longes do futuro

Mas a noite da Ibéria era cerrada;

Fiz então sol brilhante e prematuro

Do aço limpo desta minha espada.

E fui à sua luz abrasadora

O primeiro Quixote conhecido...

(Ibidem, «O Cid»)

O iberismo de Torga não pode deixar de ser dialéctico, como o da própria história peninsular. A fraternidade telúrica das duas pátrias está sempre a ponto de quebrar-se como um vaso de alabastro em mãos trémulas. Os povos ibéricos entremostram a cada passo as suas secretas rebeldias. Tal como a vida individual, também a vida colectiva tem que pagar o seu tributo na alfândega das diferenças imaginadas e defendidas. Na vida, tudo tem que ser conquistado a ponta de lança — e não há heranças recebidas pacificamente. A conquista defendida duma terra querida e lusitana chama-se, no retábulo do poeta trasmontano, Nuno Álvares Pereira:

Pátria — é um palmo de terra defendida.

A lança decidida

Risca no chão

O tamanho do nosso coração,

E todo o inimigo que vier

134

Tem de retroceder

Com a sombra da morte no pendão.

Eu assim fiz,

Surdo às razões da força e da fraqueza.

(A liberdade não discute os meios

De se manter).

Mais difícil era a empresa

Que a seguir comecei:

Já sem cota de malha, combater

Por outro Reino e por outro Rei!

(Ibidem, «Nun'Álvares»)

A história da Ibéria, porém, não é um rosário de graças. Também há quem recite litanias de blasfémias contra o homem. Ressoam nos ouvidos do poeta os timbres agrestes, sente na boca os travos amargos, como os da fruta verde que corrói os dentes. Torga não se identifica com Torquemada — ou não seria o Orfeu rebelde de todos os instantes:

Há sempre um nome triste

Na longa vida de cada nação.

Um nome que resiste

Ao esquecimento,

E que é um sinal de atenção

Ao pensamento e ao sofrimento.

(Ibidem, «Torquemada»)

135

Ao longo da sua vida de poeta conheceu Torga vários Torquemadas em funções. Também quiseram emudecer a sua lira, como a de Camões. Até no seu corpo conserva a recordação de alguns ressentimentos dos Torquemadas políticos. É o seu título de honra como poeta português. Em 1971 faz esta evocação:

«Visita melancólica ao Aljube, a recordar horas más do passado, continuada no Limoeiro por intenção de Bocage, que a 10 de Agosto de 1977, como consta dum velho livro de assentos guardado na cave, deu entrada naquela casa. Afonso Lopes Vieira, em maus versos, que cito de cor, diz «Os poetas portugueses que não passam pelas prisões / não são dignos descendentes de Camões». Assim é, de facto. Todos os que nesta terra empunham uma lira e se louvam no grande mestre, já que não podem acompanhá-lo nos arroubos do génio, seguem-lhe ao menos as passadas rebeldes. Assim lhe são fiéis». (Diário, 7/ 1011971, XI, p. 143).

Entram a seguir os famosos navegadores do sonho e da liberdade do novo reino de Portugal, que semearam de glória marinheira o estuário do Tejo. Em Bartolomeu Dias vê «um herói sem remate». Em Vasco da Gama ressoa um desafio ao triunfo:

O que é preciso, pois, é triunfar.

Nunca meia viagem consentida!

Nunca meia medida

Do vinho que nos há-de embriagar!

(Ibidem, «Vasco da Gama»)

Fernão de Magalhães é todo um símbolo do destino do homem português que no próprio Torga se personifica:

Ter um destino, é não caber no berço

136

Onde o corpo nasceu.

É transpor as fronteiras uma a uma

E morrer sem nenhuma,

Às lançadas à bruma;

A cuidar que a ilusão é que venceu.

(Ibidem, «Fernão de Magalhães»)

Afonso de Albuquerque imagina a história final e verdadeira da pequena

Goa:

Por isso a índia há-de acabar em fumo

Nesses doirados paços de Lisboa.

Por isso a pátria há-de perder o rumo

Das muralhas de Goa.

(Ibidem, «Afonso de Albuquerque»)

Aos mareantes e guerreiros portugueses seguem-se os conquistadores espanhóis, uns de impérios terrenos, outros de impérios celestiais. O primeiro é Cortés, o dramático estremenho, o da epopeia heróica e sangrenta:

Queimar primeiro as naus da retirada.

Depois o próprio crime

Agiganta e redime o criminoso.

É um repto ao futuro...

Um acto absoluto,137

Puro,

De tão cego tão bruto.

(Ibidem, «Cortez»)

Vem, também, a negra batina, que prega a obediência, a razão da sem-razão do jesuíta Loiola — figura enigmática que perturbou as melhores cabeças raciocinantes da Península: Oliveira Martins, Junqueiro, Unamuno, Ramón Perez de Ayala, Ortega y Gasset, tantos mais. Fazendo-se a voz de todos esses companheiros na razão, anota o poeta:

É um pesadelo a ressoar no ouvido:

— Obedece! Obedece! Obedece!

A razão endurece,

A vontade resiste,

Mas em nome do eterno

E do inferno,

O cantochão insiste:

Obedece! Obedece!

E o mundo natural

E universal

Que o sol peninsular doira e aquece,

De repente, aparece

Mergulhado

Numa tristeza negra, que arrefece,

Num luar de sotaina, regelado.

138

(Ibidem, «Loiola»)

Encontra-se com a santa de Ávila, identificado com a sua paixão telúrica em contraste com a sua aspiração ao céu:

Terra...

Era em Ávila da Ibéria a minha terra...

Terra!

Mas eu não vi a terra que me teve!

Nem lhe dei o calor que um filho deve

A sua Mãe!

……………………………

Terra!

Nem lhe sabia o nome verdadeiro!

Nem a cor! nem o gosto! nem o cheiro!

Nem calculava o peso que ela tem!

…………………………..

Terra! ...

E andei eu a morrer a vida inteira!

E andei eu a secar a seiva da raiz

Que do Céu ou do Inferno me prendia

A ti, humana terra de Castela!

…………………………………

Terra! ...

E andei eu a legar este legado:

139

«Vivo morrendo primeiro»,

Derradeiro Castelo a que subi!...

(Ibidem, «Santa Teresa»)

Com a silhueta austera da freira de Ávila contrasta a outra silhueta que se lhe revelou ante a figuração que lhe foi dada por Bernini, tal como o poeta a viu em Roma em 1950. E seja dito que esta mais parece um «poster» turístico... Diz Miguel Torga no registo de viajante:

Outra vez te visito,

Filha da Ibéria, mística doutora

Dos celestes e alados devaneios;

Nesta Roma papal e redentora

Outra vez quero ver

Tremer a eternidade nos teus seios!

……………………….

A mais rica seara de Castela

Onde o lume do mundo se acendeu!

E nunca mais o fogo se apagou!

Bernini, o homem que te desposou

Nessa hora de entrega e de brancura,

Nesta nova morada te deixou,

Santa mulher e frágil criatura...

(Diário, 151911950, V, pág. 133)

140

Em Camões, que aparece nos Poemas Ibéricos meio perdido entre os santos espanhóis, assinala a «anormalidade» criadora do poeta e a do homem de acção:

Chamar-te génio é justo, mas é pouco.

Chamar-te herói é dar-te um só poder.

Poeta dum império que era louco,

Foste louco a cantar e louco a combater.

(Poemas Ibéricos, «Camões»)

Filipe II é para o poeta solitário de Coimbra um solitário, também. Ave de mau agouro para o homem português, este rei do Escorial que quis proclamar-se, pela teimosia portuguesa que trazia inscrita no seu sangue, rei de Portugal, o poeta desvenda-lhe o signo trágico:

Solitário,

Luta dentro do próprio corpo o coração,

Velho presidiário

Que não crê nos limites da prisão.

……………….

Com vestes de funéreo inquisidor,

E da cela blindada dum convento,

Ei-lo a mandar, tirânico senhor

De todo o transitório sofrimento.

Homens e coisas são razões de Estado,

Razões de Estado são razões de Deus;

141

Por isso eu fui apenas governado

A governar os meus.

(Ibidem, «Filipe Segundo»)

No Diário, porém não deixa de reconhecer a «grandeza» desse sinistro soberano, escrevendo em 1960 que «é por sua ordem ainda que o «pudridero» pátrio do Escoriai se alarga ao Vale dos Caídos, no titânico esforço absorvente de recolher num único cemitério todos os espanhóis mortos desavindos». Logo a seguir, evocando S. João da Cruz, aponta o poeta a sua própria contradição existencial através da contradição idêntica no santo castelhano:

Um santo e um poeta de mãos dadas!

Um a negar o outro, e sempre unidos...

Um no céu das vivências sublimadas,

Outro a penar no inferno dos sentidos...

(Ibidem, «S. João da Cruz»)

De D. Sebastião, morto em cheiro de juventude e fantasia, em Alcácer Kibir, diz que é o amante infeliz, qual poeta perdido no dédalo dos seus sonhos:

Quem vai à luz do Céu com luz da Terra,

Encontra a escuridão no seu caminho;

Quem vai buscar a noiva em som de guerra,

Morre sem noiva e sem amor, sozinho.

………………………..

Morre na areia seca do deserto,

142

Seu corpo nu a apodrecer no chão,

Simplesmente coberto

Pelo pranto sem fim duma Nação.

(Ibidem, «D. Sebastião»)

Com grande prazer íntimo mete-se o poeta na peie de um seu irmão maior da Ibéria, o genial Cervantes:

O génio é humilde como a natureza.

É também numa lenta e obscura

Tenacidade

Que realiza

Os milagres que faz...

Num apagado esforço pertinaz,

A partir dum lampejo de ironia,

Transforma dia a dia,

Hora a hora,

O louco temporal que em mim vivia

No louco intemporal que vive agora.

(Ibidem, «Cervantes»)

Num texto do Diário, em que se surpreendem conotações profundas, Miguel Torga põe em paralelo Cervantes e Camões, ou antes, Don Quijote e Os Lusíadas. E é a Cervantes que proclama vencedor nessa confrontação artística. Segundo o seu ponto de vista, não há comparação possível entre as duas criações literárias, sob uma perspectiva humanista. Ao passo que Cervantes levanta os

143

véus de todos os mistérios da vida humana, como um genial dramaturgo, dando-nos urna plena visão espanhola do mundo, Camões contenta-se em encaixar uma enfiada de histórias fantasiosas que já não podem ter hoje qualquer sentido. E acrescenta: «... Foi a nossa limitação que se cantou ali (em Os Lusíadas). Nunca o relato grandíloquo das façanhas dum povo podia constituir em si matéria de eternidade. A isso era preciso juntar-lhe qualquer coisa de mais simbólico e geral, uma síntese que ficasse para sempre a ser um marco de imaginação e de poder criador. (...] Nas piores páginas do Quixote permanece vivo o diálogo infindável e universal do espírito e da matéria, e é isso que nele importa fundamentalmente. Ora Camões não levantou o pano a nenhum mistério. Deu a volta ao mundo, como Fernão de Magalhães, a cantar as nossas glórias. E as nossas glórias passaram...». (Diário, 6/4/1944, III, pp. 28-29). Até como epopeia, dirá Torga em outro lugar, Os Lusíadas é «urna epopeia para uso interno. Não se pode comparar Vasco da Gama com Eneias ou Ulisses».

Como poeta e sonhador não podia esquecer Torga os «cachos de sonhos» que brotaram no solo ibérico. Sonhos do padre António Vieira,

«filho peninsular e tropical /

de Inácio de Loiola»,

fantasia ardente enclaustrada entre as paredes da sua razão jesuítica:

……………………………

No Quinto Império que sonhou, sonhava

O homem lusitano

À medida do mundo.

E foi ele o primeiro.

144

Original

No ser universal...

Misto de génio, mago e aventureiro.

(Ibidem, «António Vieira»)

Outro sonhador, mas este da razão que gera monstros, é Goya. O poeta encara, de preferência, a sua rebeldia, em luta pela liberdade do solo ibérico contra os invasores. Texto-pretexto de português que vê reflectida em qualquer pátria «um palmo de terra defendida», como sempre tem vivido Portugal:

Tu, apenas, rebelde e desterrado,

E fica povoada a solidão!

No deserto do tempo atraiçoando,

Basta uma afirmação.

Surdo à sonora voz da tirania

E ao ciciar do oiro reluzente,

Nada te corrompeu.

E deixaste a correr, vermelho e quente,

O sangue da injustiça onde correu.

Homem oposto aos homens

Que o não souberam ser,

Foste a raiva do povo, a combater

Com a luz da vingança nos pincéis.

E tiveste a fortuna de vencer:

Bruxas, as tintas foram-te fiéis.

145

(Ibidem, «Goya»)

Ao seu mestre Unamuno dedica Torga o perfil que o visionário reitor de Salamanca mais teria desejado:

D. Miguel...

Fazia pombas brancas de papel

Que voavam da Ibéria ao fim do mundo...

Unamuno Terceiro!

(Foi o Cid o primeiro,

D. Quixote o segundo)

Amante duma outra Dulcineia,

Ilusória, também,

(Pátria, mãe,

Ideia

E namorada),

Era o seu defensor quando ninguém

Lhe defendia a honra ameaçada!

……………………………

E falava com Deus em castelhano.

Contava-lhe a patética agonia

Dum espírito católico, romano,

Dentro dum corpo quente de heresia.

(Ibidem, «Unamuno»)

146

A Picasso, também filho da Ibéria, retrata-o como «outro pintor das grutas de Altamira» que:

«solta os bisontes da imaginação» e,

«com mãos selvagens de Vulcano/atira raios e setas de renovação»,

restituindo a matéria às suas formas simples, virginais».

Em Fernando Pessoa, o poeta «presencista» que é Miguel Torga rende preito de homenagem ao

«poeta da Poesia / sibilina e cauta».

Em traços breves esboça a estética modernista que admira em

Pessoa mas a que nunca aderiu, por autenticidade e fidelidade à voz interior do seu destino pessoal. Por todos os caminhos se chega ao cânone da beleza: pelo mar azul da poesia pura e pelo mar tenebroso da poesia romântica e impura. De Fernando Pessoa, seu «mestre», diz Torga:

Oculto no seu corpo e no seu nome

(Aranha que negava a própria teia

Que tecia),

Poeta da Poesia sibilina e cauta,

Foi o vidente filho universal

Dum futuro-presente Portugal,

Outra vez trovador e argonauta

(Ibidem, «Fernando Pessoa»)

147

Frederico Garcia Lorca, em contrapartida, foi para a geração da Presença como que um irmão mais velho. Nascido em 1899, a sua ascensão poética foi fulgurante. Em 1927 o poeta granadino era já o autor consagrado do Romancero Gitano. E se, como poeta, a sua fama era grande entre os jovens «presencistas», a sua morte trágica e absurda fez dele o primeiro mito da Ibéria contemporânea. Canta-o assim o seu «irmão» português:

Garcia Lorca, irmão:

Sou eu, mais uma vez...

Venho negar à humana condição

A humana pequenez

Da ingratidão.

Venho e virei enquanto houver poesia,

Povo e sonho na Ibéria.

Venho e virei à tua romaria

Oferecer-te a miséria

Duma oração lusíada e sombria.

………………………

Filho novo de Espanha!

Venho, e não digas nada;

Deixa a um pobre poeta da montanha

Trazer torgas à rosa de Granada!

Indomável cigano

Dos caminhos do tempo e da ventura,

Sensual e profano,

148

O teu génio floresce cada ano...

Venho ver-te crescer da sepultura!

Bruxo das trevas onde alguém te quis,

Nelas arde a paixão do que escreveste!

……………………..

E o peregrino vem.

Reza devotamente,

Põe no altar o que tem,

E regressa mais livre e mais contente...

Assim faço, também!

(Ibidem, «Federico Garcia Lorca»)

Embora não esteja incluído em Poemas Ibéricos, merece a honra de figurar entre eles o que foi inspirado a Torga, em 1946, pela notícia da morte de Manuel de Falia:

A vida é breve, Falia.

Mas é breve

Para quem apodrece na mortalha.

Não a tua!

No Concerto de Cravo

Uma vida mais alta continua.

Não, não há génio breve,

Nem morre o homem que na vida o teve,149

Como tu!

Dorme e descansa o corpo velho e gasto,

Porque o teu nome é um astro

No céu da Ibéria

Desolado e nu.

(Diário, 15/11/1946,. IV, pág. 19, «A Manuel de Falia, que

morreu ontem»)

A parte final de Poemas Ibéricos é precedida de um título patético e significativo: «O pesadelo». Seguem-se três poemas em que o poeta se identifica com a amargura dos que repudiam a situação sociopolítica da Ibéria no momento em que escreve: Para Torga, a Ibéria é uma mulher dolorida que se queixa da sua sorte e da sua reclusão. No primeiro poema da tríade surge Dom Quixote, com cuja personalidade coincide a do próprio Torga. O exaltado cavaleiro fica de guarda até ao romper do dia, sempre pronto a denunciar e a combater todos os atropelos dos perversos que lhe aparecerem no caminho. Acorda Sancho do letargo nocturno para a aventura justiceira, clamando:

Sancho, ouço uma voz etérea

Que nos chama...

Ibéria, dizes tu?! ... Disseste Ibéria?!

Acorda, Sancho, é ela a nossa dama!

Pois de quem hão-de ser estes gemidos?!

Pois de quem hão-de ser?!

Só dela, Sancho, que nos meus ouvidos

150

Anda o seu coração a padecer...

(Poemas Ibéricos,«Pesadelo de D. Quixote»)

O pesadelo que atormenta D. Quixote-Torga é relatado entre o repetido refrão da resistência republicana: «Não passarão!». E a trágica circunstância histórica é acentuada com veemência de quem a viveu intensamente:

Não passarão!

Só mesmo se parasse o coração

Que te bate no peito.

Só mesmo se pudesse haver sentido

Entre o sangue vertido

E o sonho desfeito.

Só mesmo se a raiz bebesse em lodo

De traição e de crime.

Só mesmo se não fosse o mundo todo

Que na tua tragédia se redime.

(Ibidem, «Não passarão»)

Como se reflecte nos versos pungentes de Miguel Torga, também em Portugal a palavra de ordem repercutiu com timbre de tragédia. Miguel Torga, como tantos outros artistas de todo o mundo, optou pelo campo republicano durante a guerra civil espanhola: como Antonio Machado, Rafael Alberti, Miguel Hernández, Pablo Neruda, André Malraux, Bernanos, tantos outros. Meia Espanha contra outra meia Espanha, ambas lutando pelo ideal duma Espanha melhor mas diferindo radicalmente nos meios e nos fins. Um Espanha melhor é sempre uma Espanha

151

possível — e são diversas as possibilidades duma nova Espanha. É uma disputa em família, mas que se resolve pelas armas. Ou não fosse Espanha a pátria do Cid, de Quixote e até de Nuno Álvares Pereira.

Quando o poeta português publica aqueles poemas passaram já alguns anos sobre a trágica contenda. Mas Torga não se conforma com o destino que coube a Espanha, tal como não verga ante o ditador que governa Portugal. Por isso a sua voz poética é o eco do clamor republicano e popular não passarão. E assevera à mãe ibérica:

Não desesperes, Mãe!

O último triunfo é interdito

Aos heróis que o não são.

Lembra-te do teu grito:

Não passarão!

……………………………

Seja qual for a fúria da agressão,

As forças que te querem jugular

Não poderão passar

Sobre a dor infinita desse não

Que a terra inteira ouviu

E repetiu:

Não passarão!

(Ibidem, «Não passarão»)

O Orfeu rebelde que Torga continua sendo dirige a Sancho Pança uma exortação que vem do mais profundo dos sentimentos

152

reprimidos — última invocação poética do poeta ibérico para que liberte das mãos dos sequestradores sua senhora, a Ibéria:

Senhor meu, Sancho Pança enlouquecido,

Servo vencido

Na terra sonhada,

Tem a coragem da verdade nua:

Olha esta Ibéria que te foi roubada,

E que só terá paz quando for tua.

…………………………

Nega-te a ser passiva testemunha

Do amor cobiçoso

Que os falsos namorados

Fazem crer impoluto e arrebatado

………………………..

Venha o Sancho da lança e do arado,

E a Dulcineia terá, vivo a seu lado,

O senhor D. Quixote verdadeiro!

É neste largo espaço poético que habita o iberismo de Miguel Torga. Espaço livre, espaço limpo, sem fronteiras, espaço por onde se pode voar em liberdade. E por onde podem voar todos os homens e todos os povos. O iberismo de Torga, além de historicamente fundado, é profundamente fraterno e comunitário. Não é sedicioso nem admite federalismos retrógrados entre povos que sempre foram anéis da mesma corrente pátria. A Ibéria é para Torga o que tem sido durante séculos: vários povos, duas pátrias, uma cultura. Mas a Ibéria é também, para este poeta, tudo o que

153

queira ser de hoje e voltado ao futuro: o futuro duma nova pátria que se inventa a partir da pátria em que se insere. O português supera o complexo da terra breve suprimindo as fronteiras inúteis. Qualquer português pode deambular por caminhos vicinais até aos Pirinéus. E Torga sente e afirma que tem um berço, Portugal, e uma pátria mais larga por onde calcorrear: Ibéria.

A comunhão reinante entre os heróis que o poeta reuniu no seu retábulo ibérico é densamente simbólica: do que é o passado para cada pátria separada; do que pode ser o futuro para a nova pátria imaginada. Se por um espaço histórico caminham juntas personagens tão díspares como Viriato, o Cid, Santa Teresa, Torquemada, Cervantes, Camões, Gama, Vieira, S. João da Cruz, Pessoa, Lorca, Unamuno, Picasso, D. Quixote e Sancho, é porque esse espaço é muito mais que uma pátria, é um império: o império duma vontade de ser, de inventar, de sonhar e de saber com que contar em cada momento, por meio duma razão vital que atende a cada coisa no seu próprio ser e compreende cada pessoa na sua maneira de agir.

Só um grande poeta, coexistindo num homem íntegro, podia ter adoptado como seu destino cultural o espaço afirmativo duma pátria sem fronteiras.

154

Torga, poeta da

«Portuguesía»

O grande suscitador e «assassino» de temas culturais que foi Ortega, segundo a expressão do seu fiel colaborador de sempre, Fernando Vela, propôs também como tema de reflexão a «portuguesía», ou «meditação da saudade», mas nunca chegou a escrever sobre ele. Retomando neste ensaio a palavra «portuguesía», devemos começar por interrogar-nos sobre o que Ortega pretendia dizer com ela. Desde as suas primeiras leituras de Oliveira Martins até à permanência, durante alguns anos, em Lisboa, por volta dos anos 40 — no decurso da qual conseguiu reunir à sua volta um grupo selecto de discípulos, amigos e confidentes — Ortega acompanhou e observou muito de perto a cultura portuguesa e sabia, seguramente, o que entendia por «portuguesía». Desde logo, era, pelo menos, uma perspectiva:

a perspectivação de Portugal por um espanhol, uma meditação

virtual sobre a maneira portuguesa de estar na história e de os

portugueses existirem no mundo.

«Portuguesía» é, por conseguinte, um termo operacional. Uma palavra que, como ampola de vidro, cada qual enche, à sua maneira, de significado. Em princípio, o seu significado não poderá ser de conteúdo estritamente psicológico, mas antes psico-social. Ortega manifestou-se desde muito cedo contrário à caracterização psicológica dos povos. Tão-pouco concordou com os esquemas do «carácter nacional». Nisto, como em tantas outras coisas, o mestre madrileno antecipou-se à liquidação do conceito de «carácter

155

nacional» levado a cabo pela psicologia moderna, que é sempre uma psico-sociologia. O conceito de «carácter nacional» implicava uma noção estática dos homens vivendo em sociedade. Era um esquema mental contrário à filosofia da razão vital e histórica que Ortega foi elaborando como instrumento de «percatación» da vida humana.

«É preciso extirpar da história o psicologismo, diz o pensador, que foi já sacudido de outros ramos do conhecimento... Enquanto se acreditar que um povo possui um carácter prévio e que a sua história é uma emanação desse carácter, não haverá maneira, sequer, de iniciar uma conversação. O carácter nacional, como todo o humano, não é um dom inato mas uma fabricação. O carácter nacional vai-se fazendo, desfazendo, refazendo ao longo da história. Ainda que custe, neste caso, à etimologia, a nação não faz: faz-se. É uma empresa que sai bem ou mal, que se inicia após um período de ensaios, que se desenvolve, que se corrige, que perde o fio urna ou várias vezes e tem que volver a começar ou, pelo menos, a reatar». (Rebelión de las masas —Epílogo para ingleses, IV, pág. 282).

Em outro passo acrescenta ainda o filósofo: «Quando se fala de carácter étnico não se entende com isso nada de absoluto e definitivo. O carácter de um povo não é senão a acumulação do seu peculiar passado até ao presente, a sua particular limitação, que não procede, em última instância, de uma imposição absoluta com que se encontrou: raça, clima, etc., mas do que fez livremente de si perante essas circunstâncias fisiológicas e climáticas. É neste radicalíssimo sentido que um povo é a sua história». (Un rasgo de la vida alemana,. V, pág. 200).

Na linha do pensamento de Ortega a «portuguesía» também não poderia fundamentar-se na pura geografia, por mais que se admita que a terra condicionou certos comportamentos do homem português. Não pode existir correlação de causa a efeito entre a terra, o clima e as formas da vida humana. Assim como os fenómenos psíquicos não se explicam fisiologicamente, também os fenómenos históricos não podem ser explicados geograficamente.

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«As condições geográficas, diz o filósofo, são uma fatalidade somente no sentido clássico do fata ducunt, non trahunt: a fatalidade dirige, não arrasta. Corno todo e qualquer organismo vital, o homem é um ser reactivo. E isto quer dizer que a modificação produzida nele por qualquer facto externo nunca é um efeito que se segue a uma causa. O meio não é causa dos nossos actos mas apenas um excitador deles. O dado geográfico é muito importante para a história, mas no sentido oposto ao que lhe dava Taine. Não é utilizável como causa que explique o carácter de um povo, mas sim, pelo contrário, como sintoma e símbolo desse carácter». (Temas de viajes, II, pp. 370-371).

A vida não é mera recepção do que se passa exteriormente. Pelo contrário: é pura actuação. Viver é intervir, é um processo de dentro para fora pelo qual invadimos o «contorno» com actos, obras, costumes, usos, maneiras, produções, segundo o estilo originário que está prescrito na nossa sensibilidade. Daí as definições de «vida» como «diálogo com o contorno», convivência com os outros que formam o nosso mundo em redor; da paisagem humana como resultado duma selecção entre as infinitas realidades do universo, ao longo da qual cada povo, cada época, operam novas selecções sobre o repertório universal dos «objectos humanos»; e, dentro de cada época e cada povo, o indivíduo executa uma última diminuição. Assim, seria necessário justapor o que cada um de nós vê do mundo ao que vêem, viram e hão-de ver os demais indivíduos, de modo a poder obter-se o cenário total da nossa época. Por isso dizia Goethe, genialmente, que «só todos os homens vivem o humano». (Cf. Ortega, Las Atlântidas,. III, pág. 291).

Se para detectar uma época é necessária uma tão vasta conjunção de elementos, não menos deve ser exigida para definir toda a maneira de estar na vida de um povo, ou seja, no tema em causa, a «portuguesía». E, com a «portuguesía», a «meditação da saudade». Ao fazer incidir na «meditação da saudade» a sua reflexão sobre a «portuguesía», já Ortega estava a encaminhar-nos para todo este universo de selecção perceptiva ou de «percatación» portuguesa perante o mundo e através da sua história.

157

Com efeito, em entrevista concedida, em Lisboa, ao jornalista italiano Indro Montanelli, Ortega comentava assim o sentido «histórico-poetizante» da saudade: «Vasco da Gama e todos os outros não iam em busca de terras; buscavam a alma de uma nação que a não tinha, e encontraram-na na ânsia e na nostalgia do ultramar. Acaso a grande instituição nacional de Portugal não é a saudade, essa espécie de spleen dos seus habitantes, que fogem do concreto, e se vêm impelidos a decorar as suas casas com cerâmicas que representam melindrosos e exóticos azulejos, ou fustas e pabeques perdidos em infinitos horizontes marinhos?». (Indro Montanelli, «Personajes», Madrid,1977, p. 723).

A «saudade», na perspectiva da história portuguesa, que começa por ser um rebento da raiz latina «solus», «solitudo», acaba por se nos apresentar como selva filosófica que só através do conceito de razão vital e narrativa pode desentranhar-se em toda a sua riqueza conceitual histórico-psicológico-afectiva. Como se pode deduzir dos estudos e análises que consagraram à saudade, desde longínquos tempos, os escritores portugueses — a começar por D. Duarte no Leal Conselheiro —esse sentimento teria brotado ao mesmo tempo que a independência portuguesa.

Quer dizer: no preciso momento em que o homem situado no extremo ocidental da Europa se decide a intervir no seu contorno geo-histórico-social de modo individualista. Seria, pois, uma resultante psico-afectiva do compromisso do homem português com a terra, com o mar, com os outros povos do seu «contorno».

Em nosso entender, a saudade contém todo esse perfume psico-afectivo que a «reabsorção da circunstância como destino concreto do homem» (e dos povos), a que Ortega nos convida, produz em quem a realiza com fidelidade e autenticidade. Porque, «a reabsorção da circunstância é a aceitação plena do destino concreto, a complacência nele». Esta resposta à circunstância, porém, «não é tarefa fácil, mas esforçada», dado que sempre ocorre nos homens e nos povos a tentação de falsificar-se, a «eterna

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sedução de trocar a sua retina por outra imaginária». (Verdad y Perspectivismo, II, p. 19).

Para bem ou para mal, Portugal «reabsorveu a circunstância», através da sua história, com maior ou menor fidelidade ao seu destino e seguindo os incitamentos socio-políticos de cada nova circunstância. O resultado psico-afectivo dessa reabsorção será a «portuguesía». Se cada povo é como que uma pupila selectiva debruçada sobre o mundo que o envolve, não o é menos cada indivíduo dentro de cada povo. No caso de Miguel Torga, a sua pupila é um caso de «percatación» do destino português na história, que ele sente como sua própria vida pessoal. São re-interpretações e reabsorções da circunstância portuguesa, porque o poeta está permanentemente em diálogo com os elementos essenciais que forjaram tal circunstância: a terra, o mar, as fronteiras com Espanha, simbolizada por Castela como núcleo geopolítico aglutinador dos povos das orlas marítimas, atlânticas e mediterrânicas.

O indivíduo insere-se num grupo, passa a ser parte de um ente colectivo, por meio da sua própria reabsorção psicogenética, na infância, através do que poderemos chamar, com Ortega, as crenças. Estas são representadas, sobretudo, pelas crenças familiares, terra firme dessa instituição primeira que é a família e da qual vai depender a personalidade básica de cada indivíduo considerado. Tais crenças formam como que um manto do inconsciente colectivo, não devendo ser este entendido como se não tivesse fronteiras, como «universal», à maneira da interpretação de Jung, mas estruturado pelo desenvolvimento psico-social de cada grupo histórico e dentro de cada âmbito cultural.

A nosso ver, não há nada mais diversificante do que as «ideias elementares» de cada cultura, no sentido em que as designava Adolfo Bastián; nada mais diferenciado em cada agrupamento sócio-cultural do que as «representações colectivas» a que se referia Levy-Bruhl ou as «categorias da imaginação»» segundo a teoria das religiões comparadas de Hubert e Mauss. Não devemos cair na

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armadilha do «unitarismo» em que caiu o século XIX, que pretendeu reduzir tudo a uma realidade homogénea em todos os domínios, por intermédio de Darwin, Marx, Freud e Jung — todos eles filhos do idealismo hegeliano e do seu conceito dogmático das leis unitárias do Espírito, elemento exclusivo da História. Adverte Ortega: «Mesmo depois de havermos entendido agudamente cada época e cada povo na sua personalidade diferencial, não teremos ainda esgotado a possível perfeição da sensibilidade histórica. É preciso que dessa fina compreensão se extraiam consequências de ordem estimativa... Cada povo será nosso mestre em alguma coisa, será, numa ordem ou noutra, o nosso clássico». (Las Atlântidas, III, pág.311-312).

Costuma ser, precisamente, por meio duma sensibilidade artística que o inconsciente colectivo fala e se propaga, visto que os «textos literários, não os utilitários, são pretextos de significações profundas», como diz a professora Yvette K. Centeno, e «estas são do domínio do inconsciente, significações latentes que ali se tornam actuais e actuantes quando são projectadas em palavras». («O outro texto», in «Diário de Notícias» de 21/4/1977,Lisboa).

Onde e como dormitam estas significações inconscientes na poesia de Torga, como podem dar-nos conta e razão do que tem sido o ponto de vista português, a sua maneira de olhar a vida e o mundo?

No seu livro Cântico do Homem brindou-nos Miguel Torga com nada menos que um «poema-testamento», em que põe em relevo todo o inconsciente colectivo do povo português, tal como este se foi formando através dos seus oito séculos de independência: as solicitações a que o homem português esteve sempre submetido, a situação dualista perante o mundo circundante, a dialéctica que a circunstância exerceu sobre as almas individuais e a reabsorção realizada na história, que continua sendo actualizada em cada sensibilidade profunda cada vez que a razão vital intenta apreender a realidade circunstancial. O poema, pateticamente intitulado «Quando Chegar a Hora», reza assim:

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Quando chegar a hora decisiva,

Procurem-me nas dunas, dividido

Entre o mar e a terra.

Marujo e cavador, tanto me quer a espuma

Como a folhagem.

Mas se a grande aventura que se espera

Tiver no mesmo fruto sal e seiva,

Venham roubar-me às ondas que namoro

E à sombra das montanhas que me cobre

Com ternuras de amante.

Levem-me nu à festa do combate

Que vai unir os mares e os continentes.

Marujo e cavador terei o mar inteiro

Das esperanças humanas,

E a terra universal

Da redonda e alada perfeição.

(Cântico do Homem »)

Temos aqui um texto descritivo que é, essencialmente, um pretexto lírico para apresentar a perspectiva psico-social do homem português em relação com o mundo natural que tem sido o seu «contorno». Poderemos a dizer-se que o poema de Torga transpõe liricamente a «reabsorção da circunstância natural» realizada por todo um povo ao longo da sua história e que é ainda hoje sentida como a melhor das suas possibilidades perante o destino. O texto descreve, na sua mais simples evidência, a dupla faina de um homem do litoral que ao mesmo tempo cumpre a lavra da terra; de

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alguém a que tanto seduz o mar como a terra; e o duplo incitamento que é exercido pelo contorno diverso, como é normal em povos que habitam grandes extensões litorais. O texto, à primeira vista, não diria nada mais. E no entanto, terminada a primeira leitura literal, o texto volta a fustigar-nos e a interpelar-nos pelas latências que contém de um inconsciente colectivo. O poema que não diz mais do que o atrás resumido, diz algo que não se resumiu: nada menos que a dialéctica determinada pelo destino português entre a terra e o mar, entre ser uma coisa e ser outra. Transmite uma teoria da própria «identidade» de Portugal ou melhor da «mesmidade» dos portugueses, pois os povos não têm propriamente identidade, pois não são coisas: somos os mesmos mas não o mesmo.

O poeta dispõe no seu «testamento» de homem português que, na «hora da verdade», o procurem entre os dois naturais que o acompanharam por toda a vida: a terra e o mar. A voz de Torga, assim expressa, é a voz de Portugal. O poeta é Portugal. Ë o seu país antropomorfizado. Projecta-se na sua poesia como história de Portugal, identifica-se com ela. Também Portugal se tem dividido entre a terra e o mar, o homem português tem sido mareante e cavador. Tudo o que o português recorda da sua aventura histórica sabe a sal e a seiva — talvez mais a sal do que a seiva, porque se tem sentido mais seguro de si mesmo quando coincide com o marinheiro Em certo sentido, o cavador tem sido historicamente tolerado. O mareante, não: foi sempre exalçado, porque o mar lhe outorgou a dádiva da sua identidade colectiva, fez que se constituisse não só como pátria mas também como império. E império é pátria derramada, germe fecundo, obra recriada. Por tudo isso o poeta, sem dar-se conta, quase inconscientemente, guiado pela força irresistível da colectividade herdada e assumida, faz sempre preceder no seu «testamento» o mar à terra, o marinheiro ao cavador, a espuma à folhagem, o sal à seiva, as ondas à montanha. A estrutura do texto é profundamente significativa, visto que põe em relevo as opções afectivas de toda a comunidade pátria. O inconsciente manifesta-se sempre através da selectividade

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psico-afectiva. Portugal escolheu em Torga o mar, de preferência à terra.

Este conteúdo colectivo português que intentamos surpreender no texto poemático não o conseguimos forçando o texto, mas sim lendo-o à luz do contexto poético do próprio poeta. Deixamos omisso o desabafo premonitório, no entanto sintomático, que Torga inscreve a certa altura do seu Diário: «Este nosso destino português! Cercados de mar e de Espanha por todos os lados, impedidos de qualquer osmose natural com ideias e culturas alheias... aqui nos perdemos num monólogo insular». (8/1/1958,VIII, p. 94).

E, entretanto, acercamo-nos do texto de outros poemas, que nos autênticos poetas funcionam sempre como verdadeiro contexto. Estão ausentes nesses poetas, quase sempre, os comentários em prosa a acompanhar as suas criações. É nos próprios poemas que está o poeta, é neles que o encontramos na sua verdadeira dimensão — mais «presente», ainda, quando o poeta, como neste caso, é «presencista» e tem como ponto de honra a autenticidade pessoal. Torga, como homem e como português, «vai sempre de poeta» — mas poeta «sentidor» e não «fingidor» como o modernista.

Ora o contexto poético do poema-testamento integrado no livro Cântico do Homem encontra-se nesse outro livro-história pátria que é Poemas Ibéricos. No primeiro, Torga canta o homem e ergue o seu canto como homem concreto e determinado, isto é, como português. No segundo, este homem concreto português que é o poeta desvenda-nos as raízes secretas do homem que foi cantado em Cântico do Homem.

É logo na primeira composição de Poemas Ibéricos, precisamente intitulada «Ibéria» que o poeta nos apresenta as palavras-chave do seu vocabulário de poeta português, nas quais vai projectar-se a dialéctica pátria ou, por outra forma, a sua alternância histórica. Essas palavras são duas: Terra e Mar. As simples e intrínsecas indicações destas palavras são, só por si, profundamente significativas. A terra, para o poeta português e ibérico, é «tumor-de-angústia de saber», «terra de pão e vinho»,

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mas à qual acenam incessantemente «a fome e a sede»; é uma «terra nua e tamanha» em que vêm a caber «o Velho-Mundo e o Novo, Portugal e a Espanha» e até «a loucura com asas do seu povo». O poeta fala aqui da Ibéria e não só de Portugal. E o que é curioso é que projecta sobre a terra toda da Península o sentimento negativo que experimenta como português ante a sua parcela portuguesa, «rodeada de mar e de Espanha por todos os lados». O mar, pelo contrário, ainda que seja fundo, «deixa passar» — e «a espuma salgada será caminho». A terra não funciona aqui como solo firme mas como angústia de saber se poderá encontrar liberdade para ser. A liberdade que o mar lhe promete. A terra é considerada geralmente sinónimo de segurança. Mas o poeta nega-lhe essa qualidade para a atribuir ao mar, que para os demais personifica a insegurança e o risco, sobretudo quando o mar é «tenebroso», como o foi para o português mediévico.

Este é o cenário natural onde o poeta vai apresentar a tragédia em dois actos da História de Portugal, dois actos com resultados diferentes mas de igual modo trágicos. O primeiro acto é o da História Trágico-Telúrica; o segundo acto é o da História Trágico-Marítima. No primeiro, os dois protagonistas, em partes iguais, são o homem português e a terra. No segundo, é também o homem português, mas agora o mar.

Tinha razão Ortega quando afirmava que «a reabsorção da circunstância, como aceitação plena de um destino concreto não é tarefa fácil mas sim esforçada». E um exemplo objectivo do caso é Portugal. Contorno ambivalente: terra dura e ingrata, tumor de angústia, ave perseguida. Mar, caminho de liberdade, esperança duma posse em paz e sem medo; também aventura. Se é certo que a Espanha se lançou igualmente ao mar, só o fez tardiamente, pelo menos em relação a Portugal; e, ao fazê-lo, não foi fugindo da terra, mas antes por uma espécie de redundância da própria terra, em busca de mais terra para a sua terra, como novo esplendor da glória-terra.

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Quando se encontram, frente a frente, o homem e a terra, o homem é vontade de ser, de afirmação e de glória; a terra é armadilha da vontade do homem:

Como ondulada capa de miséria

A cobrir de negrura a cor das chagas,

Assim és tu, crosta de velhas fragas

Sobre o corpo da Ibéria.

(Poemas Ibéricos, «A Terra»)

Imagina depois o poeta a raça que habita esta terra inabitável, enxame que uma abelha-mestra pousou por breves instantes sobre o «chão seco e moreno», à espera de embarcar com as velas da ilusão:

Enxame rumoroso num cortiço

De paredes de espuma,

Que tropismo secreto e movediço

Trouxe da bruma

A abelha-mestra que o começou?

Que carinhoso aceno

Lhe faria este chão, seco e moreno,

Onde com asas de ilusão pousou?

Talvez que no silêncio lhe dissesse

Que só daqui, materna, poderia

Embarcar o enxame

Que nascesse

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No velame

Doutra ilusão que o tempo lhe daria...

(Ibidem, «A Raça»)

Esta raça não se vai fincar na terra seca e morena. Vai abandoná-la logo que possa — e é a própria terra que a incita a fugir-lhe. «Cada raça, recorda Ortega, transporta na sua alma primitiva um ideal de paisagem que se empenha em realizar dentro do marco geográfico do contorno... Quando o cariz geográfico é tão adverso aos desejos duma raça que todas as reacções desta para a transformar resultariam vãs, então produz-se na história o curioso fenómeno da emigração, que significa precisamente a não aceitação duma terra e a peregrina ânsia por uma campina sonhada, por uma terra de promissão que todas as raças fortes se prometem a si mesmas». (Historia y Geografia,. II, pág. 371).

Tudo isto, que não será mais que um «destino étnico» para um etnógrafo, constitui para o poeta português um «facto». Assim, depois de cantar a raça inquieta e insatisfeita, canta o «fado» desta raça: o seu destino fatal. A significação desta palavra é «fatalidade»; mas a conotação que todo o português encontra nela, porque a contém, é uma fatalidade embalada pelos suaves gemidos da pena e da saudade — essa «voluptuosidade lusitana (e galega), que é um gozar a dor, um embriagar-se com as lágrimas, um comprazimento queixoso na própria tristeza..., um delicioso morrer dissolvido na melancolia atlántica», como diz Ortega. (Destinos étnicos, II, p. 377)

Esta conotação do fado português surge com a saudade marinheira e negreira, segundo parece, mas a sua motivação há que procurá-la na terra. A terra é que provocou em Portugal a saudade e o fado. Bem o diz o poeta:

Tem cada povo o seu fado

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Já talhado

No livro da natureza.

Um destino reservado,

De riqueza

Ou de pobreza,

Consoante o chão lavrado.

E nada pode mudar

A fatal condenação.

No solo que lhe calhar,

A humana vegetação

Tem de viver, vegetar,

A cantar

Ou a chorar

Às grades dessa prisão.

(Ibidem, «Fado»)

Todo o poema não é senão uma paráfrase da palavra fatídica: prisão. Porque «prisão» é para o poeta português a sua morada na estreita parcela de terra que subtraiu à «terra tamanha» da Ibéria. Pequeno espaço para quem quer voar. Destino inibidor das ânsias incontidas duma raça forte e empreendedora. Prisão com grades pontiagudas por causa do inimigo que a espreita intermitentemente. Verdadeira tragédia telúrica na história duma raça. Mas se já é fatal condenação viver aferrolhado numa prisão, é o cúmulo da fatalidade verificar que essa prisão lhe regateia o pão para a boca ou lhe exige por ele um preço demasiadamente elevado. O poeta, nascido na terra trasmontana, áspera e ingrata, descreve em versos dolorosos a tragédia do pão que come:

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De sol a sol, o arado lavra a terra

De sol a sol, cai o suor no chão.

E como cada gota é um grão

Da sementeira,

É puro sofrimento que, à torreira

Da futura colheita,

Ceifa, malha e peneira

A fome insatisfeita.

(Ibidem, «O Pão»)

A raça encarcerada na prisão pobre e tacanha encontra uma consolação falaciosa: o vinho, sua primeira fuga e aventura para as terras livres de ninguém. Antes de se entregar ao mar, entrega-se à bebedeira. Como diz o poeta:

Sumo das pedras, colorida fonte

Onde Narciso se não pode olhar,

É nela que se tenta embebedar,

Nas horas de mais negro sofrimento,

O pobre e atribulado sentimento

De solidão,

Que vive incompreendido

E ressentido

Em cada coração.

(Ibidem, «O Vinho»)

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Esta é a recompensa telúrica, sem grandeza nem recompensa, de Portugal. É certo que vive em liberdade (independência), mas em liberdade imaginada mais do que satisfeita. Este é o suplício de Tântalo do Portugal cavador, segundo o poeta trasmontano. Obstinada vontade de não ser Castela, mas sem pão, sem espaço, ébrio da última bebedeira. São bebedeira as guerras que Portugal «inventa» para abrir a torneira dos ressentimentos secretos: Ourique, Aljubarrota... são troféus dos sonhos dum Segismundo prisioneiro.

Portugal não pode continuar a viver numa prisão, sob risco de morrer de anemia. Não pode continuar a afirmar-se por meio duma negação. Ninguém estrutura a sua identidade pessoal repelindo todo o calor de parentesco. Não quer Castela por madrasta. Resta-lhe o pai: o mar. O primeiro vislumbre desta relação de identidade afirmativa com tal pai elementar surge, como não podia deixar de ser, à maneira de sonho, ilusão e espectrismo:

Num deserto de areia ou de incerteza

O desejo desenha.

Fantasia um fantasma, que lhe venha

Acudir.

Qualquer Preste João,

Também cristão,

Mas rico e generoso,

Que, depois do mar largo e tormentoso,

Possa abrir

As arcas da canela e da pimenta

Aos seus irmãos cristãos,

Que a terra natural já não sustenta.

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(Ibidem, «A Miragem»)

Com este vislumbre de sonho marítimo termina o primeiro acto da História de Portugal: a História Trágico-Telúrica; e começa o segundo acto: a História Trágico-Marítima. O mar é representado na poesia de Torga como única saída da prisão telúrica e secular. O mar é o pai, que, como na relação genética da infância, socializa. A mãe-terra tornou-se para Portugal uma madrasta possessiva. Agora é o pai que saberá cumprir a sua missão educadora. Embora este segundo acto venha a ser tão trágico corno o primeiro, então, tragédia por tragédia, a marítima resultará mais rendosa, mais criadora do que a tragédia telúrica e, sobretudo, não impedirá o voo da sua liberdade. «O mar, disse Ortega, é o grande educador para a liberdade». (Historia y Espíritu, En el centenário de Hegel, V, pág. 429).

O poeta afirma-se decididamente a favor deste segundo acto histórico,

pois que sempre sentiu o mar como:

aquele fruto

dentro do qual existe/

o coração do mundo.

E ainda:

como trasmontano que é, precisa

de vez em quando olhá-lo, enraizar

/ em água este Marão que sou.

(Diário, 10/4/1940, I, p. 143).

E, pelo contrário: tudo o que tiver sabor a terra é por ele sentido tão pobre e seco como a própria terra. Por isso afirma da sua

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própria língua portuguesa o que a muitos soará como blasfémia de lesa-pátria, mas que ele pode experimentar como poeta que é: «Língua de cavadores, esta nossa, quanto mais se leva à bigorna, menos presta. Rude, nas mãos de meu pai, a dar o sensorial e o visual, é que ela está bem. De um pitoresco ilimitado, é difícil conceber outra mais apta para exprimir o colorido das coisas. Mas ninguém queira passar daí, dessa casca grosseira, gretada e policromada que reveste o caule e cobre a seiva dos nossos sentimentos e paixões. (...] Para pedir pão, serve às mil maravilhas. E nós de pouco mais precisamos». (Diário, 5/5/1948, IV, ps. 96-97).

Alguma razão deve ter o poeta: quando esta língua hermética, prisioneira entre as grades agudas das suas consoantes, se faz ao mar, se baptiza no sal atlântico e o cruza, abre-se na nova terra de promissão que é o Brasil em vogais sonoras, como cravos que desabrocham, gerando a alegre fala brasileira. Torga conhece por experiência própria a diferença entre a língua de S. Martinho de Anta e a de Minas Gerais — a mesma diferença que há entre viver aferrolhado no cárcere de uma gleba mesquinha e acossada e morar nas asas dos alísios. Se a língua é uma pátria, como disse Fernando Pessoa, também a pátria é uma língua. E se isto é verosímil, a língua reflectirá o carácter da pátria: se uma é alegre, a outra também o será; se é triste, igualmente o será a outra. Viver acossado e triste na pátria implica que a língua seja hermética e lúgubre. Tem sido este o fado da língua-pátria portuguesa para o poeta de Cântico do Homem: não resiste à prova da bigorna da criação poética.

Ainda na sequência do mesmo trecho do Diário atrás citado acentua Torga: «Sem qualquer experiência psicológica, não tendo até hoje feito nenhuma tentativa larga para abranger com meios próprios a técnica e a filosofia, é uma dor de coração vê-la (a língua portuguesa) a tropeçar de incerteza e de pavor, à medida que a vida se complica e pede novas formulações. De vez em quando, um Garrett ou um Eça dão-lhe um esticão. É o mesmo! De aí a nada, o nosso natural de campónios concretos tem-na de novo atulhada em estrume. Na melhor das hipóteses, a cada tentativa de renovação

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segue-se uma reacção arcádica. Instrumento expressivo de temperamentais, nunca encontrou a neutralidade objectiva de um corpo perfeito». (Diário, 5/5/1948, IV, p. 97).

Mas adiante. Para superar o irremediável acossamento da terra e o hermetismo da língua, para se libertar da tragédia telúrica, existe Sagres na História de Portugal: Sagres que é atalaia da fantasia, Sagres trampolim do medo, Sagres proa de navio pétreo lançado à singradura atlântica e marinheira. Sagres: primeira cena do segundo acto da tragédia histórica de Portugal:

Vinha de longe o mar...

Vinha de longe, dos confins do mundo...

Mas vinha azul e brando, a murmurar

Aos ouvidos da terra um cósmico segredo.

E a terra ouvia, de perfil agudo,

A confidencial revelação

Que iluminava tudo

Que fora bruma na imaginação.

Era o resto do mundo que faltava

(Porque faltava mundo!).

E o agudo perfil mais se aguçava,

E o mar jurava cada vez mais fundo.

Sagres sagrou então a descoberta

Por descobrir:

As duas margens da certeza incerta

Teriam de se unir!

(Ibidem, «Sagres»)

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Para o poeta, o mar trazia no seu ventre azul nada menos que dois mundos: o das coisas novas e originais, o mundo dos novos estímulos dos sentidos, e o mundo novo para o espírito dolorido da identidade lusitana; a segurança das coisas para o corpo e a segurança da cultura para o espírito. Este era o grande segredo que o mar murmurava à terra. As duas margens que se unem são a certeza de poder começar a ser algo de afirmativo e, assim, poder transformar a incerteza do não ser, puramente negativa. O mar, na fantasia do Infante de Sagres, era o primeiro programa cultural para o homem telúrico português. Porque o mar dá a imagem do ilimitado e infinito — e o homem, ao sentir-se nele, anima-se para o mais além, para além de todas as limitações. O mar suscita o valor e a criatividade imaginativa. É um perpétuo mais além das limitações da terra, o verdadeiro espírito da inquietação, que passa do seu movimento elementar às almas dos que o sulcam e faz do existir uma permanente criação. O supremo princípio constitutivo do espírito foi um dia expresso nestes termos: «É necessário navegar, mas não é necessário viver». (Ortega, En el centenario de Hegel, V, p. 428).

Para o poeta trasmontano, o mar, coração do mundo, que pulsa e geme como o nosso, é fonte e consciência biológica de tudo. Ora, neste sentido, navegar foi mais necessário para Portugal do que viver. Foi o seu autêntico sobreviver, como personalidade e história: «Meu pobre Portugal, a resistir há oitocentos anos às seduções de uma Espanha irresistivel! Enfrentar tal sereia, sem cair na tentação de lhe cair nos braços, é realmente façanha digna de respeito e de enternecimento. […) Entrincheirados nos toscos baluartes fronteiriços, como outros Ulisses amarrados aos mastros dos seus navios, os bons lusitanos fecharam os olhos, taparam os ouvidos e arremessaram pelouros. Os cronistas e os poetas que se encarregassem depois de avaliar o preço da liberdade...». (Diário, 23/9/1961, IX, p. 87).

Miguel Torga surge então convertido em cronista da marinharia portuguesa e descreve assim a partida:

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Foram então as ânsias e os pinhais

Transformados em frágeis caravelas

Que partiam guiadas por sinais

Duma agulha inquieta como elas...

Foram então abraços repetidos

à Pátria-Mãe-Viúva que ficava

Na areia fria aos gritos e aos gemidos

Pela morte dos filhos que beijava.

Foram então as velas enfunadas

Por um sopro viril de reacção

As palavras cansadas

Que se ouviam no cais dessa ilusão.

Foram então as horas no convés

Do grande sonho que mandava ser

Cada homem tão firme nos seus pés

Que a nau tremesse sem ninguém tremer. .

(Poemas Ibéricos, «A Largada»)

É alegre e ilusionado o partir, como é -penoso e melancólico o esperar. Tempo de espera e de esperança: tempo da saudade, que é o tempo psicológico do coração de Portugal, terra onde cresce o salgueiro das ternuras e dos sarcasmos, árvore onde penduram as

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cítaras todos os que esperam o milagre que nunca se realiza: milagre sebastianista anteontem, milagre salazarista ontem, milagre socialista hoje. País sempre à espera, eternamente adiado desde a 'primeira, caravela que partiu com a insígnia das cinco quinas. Por isso não podia faltar, em oportuno tempo, a crónica do poeta deste tempo português, num cântico que parece quase suspenso, quase adiado:

E a expedição partiu..

Partiu, e o coração da mãe parou.

E parado de angústia. assim viveu

Enquanto a caravela não voltou.

(Ibidem, «A Espera»)

Este poema coincide com os termos orteguianos da definição da saudade segundo a razão histórica e narrativa — razão vital ordenadora da torrente irresistível da vida, sangue da vida revitalizando o coração da razão. Nada mais real, mais vivo e mais quotidiano. O poema de Torga é menor pelo número de versos. Mas é um poema imenso e ilimitado como o mar, de cujo sal dão razão e conta as lágrimas de Portugal, segundo o verso célebre de Fernando Pessoa.

Este poema de Torga não pode deixar de trazer-nos à memória aquele -outro -Poema, maior e de certo modo precursor do seu mestre Unamuno. Também Unamuno canta a saudade sem a nomear em palavra expressa, mas por forma eminente e inserindo-a num mito: o mito de Portugal histórico. O poema foi reelaborado por diversas vezes, apaixonadamente, e por fim publicado na revista «Águia», do Porto, no número 5 da primeira série, em Fevereiro de 1911. O poema é este soneto, bem conhecido

Del Atlántico mar en las orillas175

desgreñada y descalza una matrona

se sienta al pie de sierra a que corona

triste pinar. Apoya en las rodillas

los codos y en las manos las mejillas

y clava ansiosos ojos de leona

en ia puesta del sol. El mar entona

su trágico cantar de maravillas.

Dice de luengas tierras y de azares

mientras ella sus pies en ias espumas

bañando sueña en el fatal império

que se le hundió en los tenebrosos mares,

y mira cómo entre agoreras brumas

se alza don Sebastián, rey dei misterio.

Morejón descreve-nos a génese deste soneto e das suas várias reelaborações. Entre outros aspectos, anota os seguintes: «A motivação inicial do poema teve-a Unamuno entre os dias 1 e 2 de Julho de 1906, se são exactas as palavras que dirige a Manuel Laranjeira em 8 de Outubro de 1908: «Voltei outra vez a um poema que comecei há três anos no Porto e que intitulo «Portugal». Parece que o conceito inicial do soneto o plasmou Unamuno no comentário que fez ao livro Constança, de Eugénio de Castro, que forma um capítulo de Por Tierras de Portugal y España. Fala de uma dama desprezada, que se lhe afigura símbolo representativo de Portugal, daquele Portugal que, desde o dia lúgubre de Alcácer-

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Kibir, parece viver vagamente submerso em sonhos de passadas grandezas. Essa dama desprezada é Constança, esposa do rei D. Pedro. Com isto deu Unamuno um primeiro passo. E o símbolo germina. A primeira visão simbólica da história e da psicologia lusas resume-se para Unamuno na seguinte fórmula: Portugal = Constança (sonhando passadas grandezas).

Tal imagem deve-a ter intuído Unamuno em 1904, durante a sua primeira visita a Portugal, na leitura do livro do seu amigo Eugénio de Castro, junto às margens do Mondego. E essa primeira intuição, nunca mais a abandonou. Em 26 de Junho de 1907 remeteu do Porto a Maragall um bilhete postal em que transcreve um fragmento do poema dedicado a Portugal. No mesmo dia escreveu outro bilhete a Azorín em que reproduz outro fragmento, ligeiramente retocado, do mesmo poema. Apenas um dia transcorreu e o poema continua a transformar-se, em lenta elaboração. Unamuno continuará a retornar ao poema até que o considera defínido e completo. A versão definitiva tem a data de 28 de Setembro de 1910 e foi integrada no livro Rosario de Sonetos Líricos com o título, que nunca foi modificado, de «Portugal». A reelaboração foi, por conseguinte, profunda, laboriosa, constante, tal como o seu amor a Portugal. Na versão definitiva, Unamuno enriqueceu o símbolo fazendo desaparecer dela a alusão nominal a Portugal. E o que é certo é que Portugal foi sempre para o reitor salmantino muito mais do que uma palavra: foi uma das vivências mais íntimas do seu temperamento lírico, a sua própria agonia». (Génesis y elaboración de un soneto», o. c., pp. 121-134).

No poema de Unamuno a matrona é a própria terra de Portugal. Está desgrenhada e descalça, enquanto em Torga é seca e morena. O mar dá razão da sua existência à matrona, contando-lhe o seu passado, dizendo-lhe quem é: somos, indivíduos e povos, a nossa história. Entretanto, a matrona está embebida em atitude extática e sonhadora, com a saudade dentro do peito. Não está menos submergida no êxtase do que a História Trágico -Marítima de que falará Torga. O rei D. Sebastião é um dos diversos signos de

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carácter histórico que foi mitificado pela razão lírica de todo um povo.

Mas quem espera não tem, necessariamente que desesperar. Há sempre uma «Nau Catrineta» que regressa ao porto donde partiu, com mil arrobas de histórias para contar, umas tristes, outras alegres, mas sempre com um carregamento de novos horizontes:

Lá vem a Nau Catrineta

Que tem muito que contar.

Ouvi, agora, Senhores,

Uma história de pasmar...

(Poemas Ibéricos, «O Regresso»)

O poeta conta e canta depois, em ligeira narrativa, tudo o que recorda do seu caderno de bitácula. De quando em vez atravessa os seus versos um cavalo marinho veloz, tal como relincham os corcéis nos romances medievais. Mas, com o regresso, vem também a cruz do destino, que em outro poema evoca com saudosa eloquência:

Traziam nova terra e nova luz

Nos românticos olhos lusitanos;

E uma cruz

Que depois carregaram largos anos.

Traziam todo o anseio que os levou,

E que nenhuma índia satisfez.

E traziam a fé que lhes sobrou

Da fé sem fim dessa primeira vez.178

Traziam a promessa de voltar

A ver se a cor do sonho se mantinha:

O puro azul de que se veste o mar

Quando o fim da aventura se avizinha...

(Ibidem, «O Achado»)

Foi isto o mar para Portugal: a socialização paterna. O encontro do seu eu com o verdadeiro mundo de novas possibilidades, ultrapassando as quatro paredes da prisão da terra. É o momento da identidade enriquecedora: por afirmações. Cada caravela que volta traz uma nova segurança para as suas incertezas: uma traz a índia, outra o Brasil; uma anuncia-lhe novos reinos em África: Angola, Moçambique, Guiné, as ilhas de Cabo Verde; outra anuncia a presença portuguesa em Macau e Timor. E sabem a Portugal inteiro os arquipélagos da Madeira e Açores. Tal era o fulgor desse sonho no cárcere estreito que é o rincão peninsular.

A partir desta experiência fulgurante, tudo o que há de melhor na história portuguesa virá pelos caminhos do mar, por intermédio dos seus filhos que aprenderam a ser fora da estreita faixa ibérica. Uns trouxeram-lhe a pimenta, a canela, o ouro, os diamantes; outros trouxeram-lhe novos espaços culturais. O «estrangeirismo» passou a ser uma constante na história de Portugal, correspondendo à revitalização da terra lusa pelos que viveram em espaços mais amplos, tanto físicos como espirituais, do que os de Portugal peninsular. António Sérgio chamou aos «estrangeirados», em fórmula eloquente, «a bela falange» que iluminou a noite intelectual da terra pátria. Um Ribeiro Sanches, um Luís António Verney, um Cavaleiro de Oliveira, um Duque de Lafões, um Luís da Cunha, um Alexandre de Gusmão, o próprio Marquês de Pombal, a geração de 70, serão tomados como «estrangeirados» pelos conservadores casticistas. É significativo que a polémica entre os

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que reivindicam uma pátria castiçamente portuguesa e uma pátria humanística e progressista tenha sido reacendida pela Revolução de 25 de Abril de 1974 — e precisamente por causa da liquidação do que restava do antigo império português.

Foram os «estrangeirados» que apressaram as independências nos territórios do antigo império ultramarino português, fazendo cair Portugal numa nova crise de mesmidade: o que pode e o que deve ser Portugal sem o seu império? E, como não podia deixar de ser, surgiu novamente a questão do iberismo — um iberismo que, para muitos, implica o federalismo de todos os povos peninsulares, ao passo que para outros, talvez mais sensatos, significaria somente o federalismo de Espanha e Portugal, as duas nações da Ibéria. No entanto, sob o prisma da psico-sociologia ibérica, parece-nos mais acertado que cada nação peninsular continue sendo o que a circunstância e o destino fizeram que fosse o que tem sido até agora. O federalismo não se ajusta bem a povos carregados de história, com personalidade muito definida e radicalizados nas suas posições tradicionais, como são Portugal e Espanha. Se é certo que ambas as nações peninsulares tiveram histórias paralelas, não quer isso dizer que venham a encontrar-se. Pelo contrário: as paralelas são linhas que só se encontram no infinito; quer dizer: que nunca se encontram. É certo que ambas as nações peninsulares se lançaram a devassar os mares e as novas terras, ambas construíram impérios ultramarinos e ambas os liquidaram. Mas as motivações psicológicas das duas empresas ibéricas foram diferentes. Ao passo que Portugal procurava no mar uma saída para o seu ser colectivo, preso como estava no seu estreito espaço peninsular, a Espanha intentou uma saída, também, mas por superabundância do seu ser plenário, visto que a vida pede mais vida e a terra mais terra e o espírito mais espaço para o espírito.

Por isso, enquanto os grandes heróis portugueses são mareantes e só por extensão necessária guerreiros, os que escreveram epopeias na história ultramarina de Espanha são conquistadores. O mar de Espanha chama-se terra; a terra de Portugal chama-se mar. O poema nacional de Portugal é escrito por um combatente

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ultramarino e o poema épico português decorre nos mares. O poema nacional espanhol é escrito por um homem da terra e o seu assunto consiste nas correrias de um fidalgo manchego com seu rústico escudeiro por terras «secas e morenas», sonhando com terras de alhos e cebolas. Afirmar, como Ramiro de Maeztu, no seu ensaio D. Quijote D. Juan y La Celestina (Col. Austral, 1938, p. 45), que «Dom Quixote e Os Lusíadas constituem a dupla expressão do génio hispânico» não traduz nada de verdadeiramente específico — porque se as duas grandes criações literárias são duplos de um génio, também o são da mesma forma que todos os homens e povos somos duplos de todos os mais. Como dizia Goethe, «é entre todos os homens que vivemos o humano». E assinalava Ortega: «Onde está a minha pupila não está a tua», querendo assim definir o perspectivismo como forma de captar a realidade. Em tais termos, a perspectiva portuguesa completa a perspectiva espanhola e vice-versa. A verdade é que não há um «génio nacional», como pretendia Ramiro de Maeztu — não existe, pelas mesmas razões, um «carácter nacional», como já acentuámos anteriormente. Existem, sim, pontos de vista que, quando enfeixados, formam perspectivas mais amplas e extensas, mais universalizantes.

A perspectiva portuguesa situa-se sempre num horizonte marítimo; a perspectiva espanhola situa-se sempre num horizonte telúrico. O horizonte português encontra-se com o céu num ponto do mar; o horizonte espanhol encontra-o num ponto da meseta castelhana. Dessa sensação do mar que penetra tudo em Portugal dá Miguel Torga a expressão mais bela e acabada, quando remata a história trágico-marítima com o poema-símbolo de toda a história de Portugal:

Mar!

Tinhas um nome que ninguém temia:

Eras um campo macio de lavrar

Ou qualquer sugestão que apetecia...181

Mar!

Tinhas um choro de quem sofre tanto

Que não pode calar-se, nem gritar,

— Nem aumentar nem sufocar o pranto...

Mar!

Fomos então a ti cheios de amor!

E o fingido lameiro, a soluçar,

Afogava o arado e o lavrador!

Mar!

Enganosa sereia rouca e triste!

Foste tu quem, nos veio namorar,

E foste tu depois que nos traíste!

Mar!

E quando terá fim o sofrimento!

E quando deixará de nos tentar

E teu encantamento!

(Poemas Ibéricos, «Mar»)

Todos estes poemas em torno da tragédia telúrica e da tragédia marítima da História portuguesa formam o contexto do poema-testamento de Torga intitulado «Quando Chegar a Hora». A partir deste contexto sabemos perfeitamente com que contar quanto aos símbolos que esmaltam o poema. É ele que nos faculta o conteúdo das conotações encerradas em palavras-chave como «marinheiro» e «cavador». E mais ainda: quando um poeta como Torga, que fala sempre em nome da história pátria, recorre a qualquer símbolo relacionado com a terra ou com o mar, podemos a partir dele

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adivinhar toda uma série de conotações afectivas que se conjugam com a história portuguesa.

Já sabemos, agora, por que razões o homem português, que Torga representa e simboliza, se mostra dividido entre a terra e o mar. Há toda uma série de significações inconscientes que latejam sob essas duas séries de palavras: marítimas e telúricas. As palavras falam em nome de duas tragédias: a telúrica e a marítima. Falam-nos em nome da história pátria que se foi forjando a golpes de gente e a golpes de vento sobre o velame das caravelas. Antropomorfizando Portugal no seu poema-testamento, Torga situa-nos ante a verdade total do homem português em relação com o mundo. Dá-nos a medida exacta da «percatación», do mundo, para empregar a terminologia de Ortega — a visão portuguesa da realidade mundanal e histórica. Desse modo nos serve, no copo do nosso espírito, todo o vinho embriagador contido nos seus poemas.

A história dialéctica de Portugal demonstra que não é a terra que configura o homem, como pensava Taine, mas, pelo contrário, que é o homem que configura a terra, como acentua Ortega. A imagem que o homem constroi de si mesmo é uma resposta à geografia, a resposta da dimensão psico-sociológica da personalidade. Para o português, a terra foi um permanente repto e a sua resposta tem sido o mar. Este repto e esta resposta toynbeeanos estão latentes no poema-testamento de Torga; e o contexto dos «Poemas ibéricos» impõe a sua evidência de forma concludente. Desse constante repto-resposta, entre as inseguranças naturais e permanentes que são a terra e o mar, foi-se forjando o carácter matizado do homem português, predominantemente sentimental, dominado pela saudade, pelo pessimismo, a tristeza e o fatalismo, por um lado; mas, por outro lado, também marcado pelo sarcasmo, a duplicidade e a secreta violência.

O carácter português não é uma maneira estática de ser: é um permanente estado de dinamicidade estrutural. Em cada maneira de «reabsorver a circunstância», como diria Ortega, surge uma nova maneira de estar, de sentir e de pensar. Nos seus textos, em

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poesia e em prosa, Torga dá-nos conta do que o homem português tem sido ao longo da sua história, como tem sentido a vida e como a vida o foi fazendo. Do que será amanhã, só o futuro poderá dizê-lo. Mas o que se pode prever, baseando-nos no que o português foi sendo, é que continuará a ser um homem dividido, como o poeta o sente e o exprime. Nunca a terra peninsular poderá ser-lhe amiga e confidente. E, apesar de liquidado o império ultramarino, sempre o mar continuará a incitá-lo à aventura, à ânsia de novas conquistas, de novos espaços e novas terras de promissão.

A «portuguesía», que o poeta define pela razão lírica, completa-se, por fim, num «auto-retrato português» que inseriu no Diário em 1970:

Nesga humana dum grande mapa humano,

Aqui, a ocidente e ao sol dormito;

O manto do infinito

Veste-me a pequenez;

E o mar cerúleo, aberto à minha ilharga,

Alarga

O meu nirvana azul de português.

Rei que renunciou, cansado,

Ao ceptro da aflição,

Digo não,

Digo sim,

Com igual abandono...

Tão distante de mim

Como do trono...

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Vivi antes da hora o que vivi.

E, agora, vegeto,

Feliz de nada ser,

De nada desejar,

E de nada sentir,

Agradecido ao mar de nunca me acordar

E agradecido ao céu de sempre me cobrir.

( XI, ps. 70-71)

Sempre o poeta nos reporta, a cada passo, aos tópicos constantes que definem Portugal: a pequenez e o mar aberto; e também a experiência da vida histórica: a de um Portugal que viveu, que mandou, que reinou. O ceptro do poder é sempre pesado. E agora que conhece o reverso das coisas, renuncia a elas para viver a felicidade sem desejos e sem ambições. Será esta a nova reabsorção da primitiva circunstância da terra pequena em face do mar aberto? Será que a forma de ser e estar que o português construiu na sua história lhe ensinou que a melhor das atitudes é a resignação radical perante a realidade das coisas? As coisas são o que são; e, por mais que nos empenhemos em que sejam diferentes, continuarão a ser o que são. Depois de ter devassado tantos espaços novos no mundo geográfico, o português chega à conclusão de que o velho solo pátrio é o único que merece a sua atenção e a sua reabsorção. De que a felicidade não está na fuga. De que é melhor estar agradecido ao céu que o fez como é e de que deve aceitar o destino com fidelidade na autenticidade.

Será esta a nova proposta do poeta, com ela mostrando como entende o que é «portuguesía», a partir do seu promontório profético do ano de 1970?

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O português sabe que o mundo continua a rodar, que a história passa, que os homens se dissipam. Percorreu em todas as direcções as terras e os mares. E, agora que tudo sabe, tudo abandona, num gesto supremo de desprendimento. Será tudo inútil? A felicidade consistirá mais em aceitar do que em possuir o mundo das coisas elementares, que são as nossas sempiternas aliadas e com as quais temos de viver o nosso destino?

São estas as esperanças humanas que o mar inteiro oferece ao mareante, é esta a perfeição plena da terra universal do cavador, é tudo isto o que o poeta nos promete no seu poema-testamento? Consistirá a esperança em buscar novas saídas, quando, afinal, todas são já conhecidas? Ou haverá que procurá-la por outro rumo, descansando sobre os louros das que foram outrora esperanças e constituem hoje a coroa da experiência da vida? Não será essa, em suma, a perfeição que a terra universal prometia ao cavador?

Todos estes textos que atrás foram transcritos e comentados serviram a Miguel Torga de pretexto soberano e estético para raciocinar por meio da razão histórica e narrativa sobre a realidade integral que foi e continua sendo a «portuguesía» — essa maneira singular que o povo da faixa mais ocidental da Europa adoptou para perspectivar o mundo, para dialogar com ele e para transformá-lo.

«Portuguesía» é o ponto de vista infundido nesta orla atlântica pelo espírito dinamizador da palavra, do gesto e da fantasia. É este, afinal, o carácter específico do povo português: ter tomado somente por bússola a fantasia ante o mistério do mar, símbolo permanente da vida.

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EpílogoMiguel Torga, poeta ibérico — porque interpreta em versos esta

áspera e meiga terra peninsular; porque se proclama filho, irmão e pai de todos os que nasceram neste espaço ocidental da Europa; porque congrega todas as glórias ibéricas num mesmo feixe: glórias de Portugal, glórias de Espanha. Mas também porque acreditamos caber-lhe um lugar importante entre os poetas peninsulares e porque, além do mais, tem uma função a cumprir na sociedade ibérica. Que lugar entre os poetas? Que função na sociedade?

Sucedeu na nossa Península com o fenómeno «poesia» algo do que tem acontecido em muitos outros domínios da actividade humana: os homens prevalecerem sobre as ideias. Mas com uma diferença de vulto: enquanto nas demais actividades foram negativas as consequências daquele predomínio, no âmbito da poesia resultaram para seu bem. E isto ainda que se tenha posto em relevo a qualidade do poeta, que é o seu ganho maior.

Com efeito, se analisarmos o espaço poético na trajectória já decorrida deste século, verificamos que tanto em Espanha como em Portugal foi completa a preponderância de uns tantos poetas, para além das suas ideias estéticas Em Espanha, a preponderância deve ser entendida relativamente a toda uma geração de poetas; em Portugal, a um só poeta, mas tão plural na sua essência e na sua criação que equivale a uma geração inteira. A geração espanhola a que nos referimos é a de «27», a que tem por mestres — mas, por sua vez, a diferentes níveis — dois artistas tão diferentes como são Antonio Machado e Juan Ramón Jiménez, incluindo no seu seio um discípulo excepcional: Miguel Hernández. O poeta português, tão diverso como toda uma geração, é Fernando Pessoa, que a si mesmo se definia como «drama em gente». Cada um dos poetas da geração espanhola é como que a voz de um grande coro: Vicente Aleixandre é a voz da terra apaixonada e paradisíaca; Jorge Guillén a de um universo perfeito e impoluto, quase abstracto; Dárnaso

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Alonso reclama a voz dramática de todos os «filhos da ira», ao passo que Pedro Salinas é a voz da razão lírica do amor; Gerardo Diego é voz de espumas inquietas e de «calhandra da verdade»; Federico Garcia Lorca pede emprestada aos ciganos a voz popular do seu «cante jondo»; Rafael Alberti, não contente com possuir a voz graciosa dos anjos, reclama à política a voz popular para ser «poeta en la calle»; e, por último, Luis Cernuda é nada menos que a voz da ontologia e da moral. No caso português, Fernando Pessoa representa as vozes todas de um coro. Basta-se só por si para imitar as vozes da terra e do céu. É como que um arauto do universo.

O que caracteriza esta dupla preponderância poética e peninsular é a forma que toma de magistério exemplar e constante e como tal se ter manifestado. Em Espanha, desde o final da guerra civil, por meio do contacto permanente da geração de «27» com os poetas jovens das gerações seguintes, sobretudo de Aleixandre, que sem sair da sua «chaise-longue» de doente crónico os foi guiando e alentando. O Prémio Nobel de 1977 consagrou, com aplauso unânime do parnaso espanhol, não só uma obra poética como toda uma vida dedicada por inteiro à poesia, sua e alheia. Em Portugal, o magistério foi exercido, de forma diferente mas não menos fecunda, por Fernando Pessoa. Morto como corpo o poeta lisboeta em Novembro de 1935, irrompe o mestre através das vozes diversas dos seus heterónimos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Alvaro de Campos. Consoante vão surgindo os seus poemas, na maior parte inéditos (pelo menos em livro), vai-se impondo o seu magistério único, inconfundível, polifacetado. Magistério que teve o poder de congregar à sua volta, nada menos que num «Congresso Internacional Pessoano», uma pléiade de discípulos vindos de todos os quadrantes do mundo, e que motivou o aparecimento duma revista, intitulada «Persona», para estudo da sua obra. Em torno do magistério de Fernando Pessoa existe em Portugal a mesma unanimidade que se observa em Espanha relativamente a Vicente Aleixandre. A opinião que Miguel Torga fixou no seu Diário quando da morte do poeta lisboeta foi a que prevaleceu até aos nossos dias. Escreveu assim o poeta trasmontano em 3 de

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Dezembro de 1935: «Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os montes e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era».(Diário, 3/12/1935,I, p. 18).

Imediatamente a seguir a esta promoção poética peninsular, Miguel Torga tem direito a ser considerado mestre exemplar, sempre idêntico a si mesmo, pelo que a sua poesia transporta em calor humano, em autenticidade dramática e em biografia comunicante. Se o modernismo, professado por tantos da geração espanhola de «27» como por Fernando Pessoa, está muitas vezes a dois passos da «desumanização», como certeiramente advertiu Ortega y Gasset — também por seu lado patrocinador e divulgador do grupo poético na sua «Revista de Occidente» — a poesia revolvente de Torga veio restituir ao âmbito poético peninsular o sentimento estético a favor da vida, da realidade vivida, da representação psico-afectiva do humano. À vontade de estilo que caracteriza os modernistas opõe Torga a vontade de vida, de expressionismo e dramatismo. Ao poeta que, quando poetiza, se propõe simplesmente ser poeta, propõe Torga que continue a ser, antes de mais nada, homem. Assim, a uma estética consagrada ao culto da linguagem, ao «como se diz», acrescenta Torga o culto da vida pessoal, do «que se diz». Torga não se propõe, «principalmente», ser poeta, para não cair no exclusivismo de ser somente poeta — antes atende ao conselho de Ortega de «estar alerta e sair do próprio ofício e explorar a paisagem da vida, que é sempre total». (V,p. 331). Por isso a sua poesia é tão profundamente humana, tão plenariamente integradora da vida — poesia tão «de carne y hueso», como diria Unamuno.

Foi esta a vertente estética que Miguel Torga trouxe à lírica peninsular desde há meio século. Vertente a que sempre se terá que voltar, sob pena de que os poetas se percam nos labirintos das formas, do experimentalismo linguístico, como tantas vezes tem acontecido nos últimos decénios. Assim o pensa e escreve o poeta e

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crítico espanhol Leopoldo de Luis, antologiador e estudioso de Aleixandre e Miguel Hernández, quando afirma: «Há que voltar à poesia comunicativa, humana, autêntica, e esquecer-nos um pouco do simples experimentalismo verbal... Não creio que a poesia concreta ou experimental tenha chegado a dar-nos uma poesia capaz de autêntica comunicação».

Além desta função humanizadora no âmbito poético, a poesia de Miguel Torga terá ainda uma outra missão dentro ,ola própria sociedade ibérica: restituir a personalidade humana à sua verdade íntima, ao seu fundo incorruptível, à sua identidade, evitando cair na tentação demagógica de um igualitarismo socializante ou colectivista. Diz-se, e com razão, que a poesia não move as massas, que a maioria da gente não lê poesia. De facto, a estrutura social é de tal ordem que a massa social só pode ser movida por uma minoria social. A popularidade do poeta será sempre muito relativa. Era esta relatividade humilde e não um elitismo snob que Juan Ramón Jimenez confessava quando fazia dedicatória dos seus versos «à minoria, sempre». É às minorias de todos os géneros que o poeta se dirige, para que essas minorias, por sua vez, se dirijam às massas sociais em sentido educativo. Queiramos ou não, a história, como dizia Ortega, tem «um sentido aristocrático» — porque são sempre «poucos» os que a fazem. E a história será feliz se esses poucos forem autênticos, infeliz, pelo contrário, se as minorias trairem a sua vôcação de autenticidade.

Ora a função da poesia relativamente à «imensa minoria» não é senão a de a educar na prática da liberdade para alcançar a realização pessoal. Sendo a poesia, como é, uma recreação de beleza através da linguagem renovada, cumpre perfeitamente o programa da identificação pessoal. A língua, que nossas mães tão docemente verteram na nossa alma infantil, converte-se geralmente num dos factores condicionantes mais poderosos do nosso destino pessoal. Diz a este respeito Ortega: «A língua, a fala, é o que a gente diz, é o ingente sistema de usos verbais estabelecidos numa colectividade. O indivíduo, a pessoa, está submetido desde que nasce à coacção linguística que esses usos representam. Por isso,

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talvez, é a língua materna o fenómeno social mais típico e claro. A língua materna socializa o mais íntimo do nosso ser; e, graças a isso, todos os indivíduos pertencem, no sentido mais forte do termo, a uma sociedade... A língua materna marca-os para sempre». (VII, p. 254).

Ora se a língua materna socializa, com tudo o que isso significa de «despersonalização», a poesia como linguagem re-criada, reinventada, possui a virtude contrária: a de individualizar, a de identificar. Consegue-o sem nos desagregar completamente do contexto social e, antes pelo contrário, fazendo-nos reencontrar, através dos elementos sociais, com os nossos caracteres originais, únicos e intransferíveis. A poesia arranca da língua materna como programa comum de comunicação e acaba por distanciar-nos dela através da re-criação e reinvenção da língua. A este poder de transformação se referia Torga ao afirmar que «a poesia subverte porque transfigura».

Se a missão social de toda a verdadeira poesia é a de libertar os homens de certas grilhetas sociológicas, a de Torga é duplamente libertadora: por ser poesia autêntica e por brotar das fontes originais da liberdade e da rebeldia humanas. A «imensa minoria» que abordar a poesia de Torga não deixará de sentir o movimento irresistível da vida em busca de mais vida e de vida mais livre, por vezes de vida rebelde. Por isso o magistério de Torga incide, sobretudo, na vivência dramática da liberdade humana, na sua defesa contra qualquer grupo totalitário de pressão. Torga recorda-nos que a poesia tem sido «um pesadelo e uma fascinação para os poderosos»; e também como «em todas as épocas os césares pretenderam simplesmente aniquilar ou, mais argutamente, utilizá-la, até ao ponto de usurpar-lhe os méritos» (discurso no acto de entrega do Prémio Internacional de Poesia, na Bélgica, 1977). Com estas palavras se demonstra que Torga tem consciência nítida da função social da poesia sobre as minorias e da eficácia com que pode incidir nelas pedagogicamente, propondo-lhes uma verdadeira acção de higiene dos ideais: contra a ambição de poder e o medo da

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servidão, a aceitação do risco de viver na insegurança da nossa indigência humana.

Poderá dizer-se, por fim, que Miguel Torga, poeta ibérico, nos propõe um ideal de vida que tem sido património das minorias mais excelsas da Península, na linha de Camões e de Cervantes: amar a liberdade humana como se fosse a mais idolatrada e sonhada Dulcineia.

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Antologia de textos

auto-biográficos de

TorgaEsta recolha de textos não pretende ser uma antologia no seu

aspecto puramente literário, mas biográfico.

Porque entendemos que o homem Adolfo Rocha fundamenta o poeta Miguel Torga apresentamos este apanhado de textos em prosa. Os diversos relatos auto-biográficos, além de confirmar vários dos pontos de vista analizados no nosso estudo, completam aspectos da vida do poeta que apenas tocamos ao de leve.

Esta recolha de textos tem assim um carácter de apêndice mais do que o de antologia programática e literária.

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INFÂNCIA E

EDUCAÇÃO

RELIGIOSA

A desobriga lavava-nos a alma das impurezas do ano. — Amanhã vais-te confessar — ordenava minha Mãe.

E eu ia. Recitava diante do ralo purificador o rol de pecados veniais, fixava a penitência, recebia a absolvição, e na missa de Domingo tomava Nosso Senhor.

Mas nenhuma daquelas comunhões regulamentares valia a primeira, feita ainda debaixo da tristeza ressentida que me deixara no coração a morte de meu avô. Ouvia as orações do catecismo, que as senhoras da doutrina me ensinavam, e repetia em silêncio as orações poéticas dele. Por fim, lá decorei o mistério da Santíssima Trindade e todos os Mandamentos, e pude apresentar-me à Mesa Eucarística. Antes, porém, fiz uma prédica em nome dos comungantes.

Foi na Senhora do Amparo. No meio da capela apinhada de gente, subi acima dum mocho, e encomendei a miséria humana à misericórdia divina. Escolheram-me para falar por todos, e tomei o papel a sério. A multidão derramada em lágrimas, e eu, seco como as palhas, a clamar:

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— Jesus, meu Salvador, compadece-te da nossa pobre condição de mortais. Dá-nos a força necessária para resistirmos às tentações, afim de que no terrível dia do Juízo Final possamos enfrentar de rosto descoberto o resplendor da tua majestade omnipotente...

Nervoso e inseguro a princípio, à medida que ia pronunciando o sermão decorado, sentia crescer dentro de mim uma alma estranha, feita de não sabia que confiança na força das minhas palavras. Tinha a impressão de que falava realmente com Deus, e de que ele me ouvia, obrigado pela convicção que eu punha no que lhe dizia, meio penitente, meio ressabiado.

No fim, ufano daquela aventura, ao mesmo tempo íntima e pública, engoli então a sagrada partícula sem a chegar aos dentes, e corri cá fora a acabar de encher a barriga de cabrito assado. Estava em jejum natural desde a meia noite, e eram duas da tarde.

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O PAI À PROCURA

DA PROFISSÃOPouco tempo depois dos exames, o senhor Botelho mandou

chamar meu Pai, e teve com ele uma longa conversa na minha presença. Era pena que eu não seguisse os estudos. Sabia das dificuldades em que vivíamos, que os tempos iam maus, e tudo o mais. Em todo o caso, visse lá se podia fazer um sacrifício e mandar-me para o liceu da Vila.

Meu Pai sorriu tristemente. O senhor Botelho estava a mangar... Olha liceu! Só se empenhasse o cabo da enxada... Gostava, gostava, de me ver professor, ou médico, ou advogado. Mas nicles, faltava o melhor! E onde o não há, el-rei o perde... Já se lembrara do seminário. Aí é que talvez pudesse ser. Se arranjasse a meter-me de graça ou a pagar qualquer coisa pouca...

O mestre reagiu. Padre! País desgraçado, o nosso! Os melhores alunos que lhe passavam pelas mãos, ou ficavam ali amarrados à terra, a embrutecer, ou eram arrebanhados pela Santa Madre Igreja. Não! Tudo, menos papa-hóstias. Então, antes o Brasil.

— É o que terá mais certo... — concluiu meu Pai, resignado. A cavar é que não fica. Bem bastou eu.

Não era a primeira vez que fazia tal afirmação. Mas nunca pusera nela tanta firmeza. Como que lhe veio à boca, naquele momento, toda a amargura de uma longa e atribulada crónica familiar, de que fora comparsa, que não queria ver prolongada em

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mim. Crónica que, de tão impressiva, se me gravara na memória através dos anos, um episódio ouvido hoje, outro amanhã.

Meu avô paterno, carreiro; meu avô materno, almocreve. Ambos honrados e trabalhadores, e ambos pobres toda a vida. Recordava a madrugada em que o primeiro, o das orações em verso, descia a costa do Pinhão agarrado às chedas do carro, sem conseguir evitar a tragédia: a junta, ainda nova, desarvorada, a pipa tombada e rebentada, o vinho tratado a correr pelas lajes abaixo, todo o ganho da carregação perdido, e meu Pai, que por um tris não fora atropelado, de aguilhada na mão a chorar a desgraça.

De coração apertado atravessava também o rio a vau, sentado nas molhelhas dos bois, entrava nas quintas à erva, sujeito a levar um tiro, tiritava de frio nas noites de inverno dormidas onde calhava, a roupa encharcada a servir de cobertor, e rilhava uma côdea quando a havia, a enganar o estômago.

Via depois meu avô materno a calcorrear a estrada do Porto à frente da récua de machos, cercado de lobos no Marão, assaltado pelo bando do Reigaz no alto de Quintela, miserável sempre, sem poder dar de bragal a cada filha, quando as casava, mais que uma triste manta. E compreendia que ali apenas me esperava um destino igual. Mas o Brasil ficava longe, e o seminário era ser padre...

— Pois tens de escolher! — insistia meu Pai, inflexível. — Aqui não te quero. Por isso, resolve.

Minha Mãe ouvia-o, calada. Olhava-me com os seus olhos quase verdes, fundos, enxugava uma lágrima teimosa, e continuava a segar o caldo. Depois, a meu pedido, cantava. Perguntava-me o que havia de ser, e eu, sem hesitar, escolhia no seu longo repertório o diálogo dos dois namorados junto ao ribeiro.

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Eu admiro

como no rio

lavas, Engrácia,

dias a fio!

Com os pèzinhos...

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O SEMINÁRIO

Mas quando íamos a Paradela tratar do caso — tirar dinheiro a juros, e ver se um de lá me levava e arranjava emprego —, encontrámos o senhor prior que vinha dum enterro em Gouvinhas. Parou o cavalo, meteu conversa, quis saber o destino que levávamos, e meu Pai foi-lhe franco.

— Tolo! — disse, meio zangado. — Porque não me falaste há mais tempo? Empenhar-te, para quê? O Brasil é em Lamego, no seminário!

— E posses? — insinuou a mãe.

— Entra de graça, ou a pagar uma ninharia. Deixai o caso por minha conta. Voltai para trás.

Voltámos, e meu Pai, pelo caminho, não conseguia calar o espanto.

— Ora aqui está como a vida é! Tantas voltas, tantos rebaixamentos, tantas arrelias, e a sorte à porta de casa! Quem me havia de dizer que, à hora menos pensada, sem a gente pedir nada a ninguém...

— Se ele arranjar...

Minha Mãe. depois do procedimento das suas «meninas», duvidava de toda a gente.

— Arranja! Para fazer figura de sendeiro, não se oferecia!

E, de facto, o senhor prior foi cavalheiro. Padre à moda antiga, liberal e convivente, dava grandes jantares — para o das confissões contribuía toda a freguesia — a que assistiam quantos graúdos havia nas redondezas. Até o Governador Civil vinha da Vila. Por isso tinha influência. Pouco tempo depois, mandou-me a guia de marcha.

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Ia na frente, de fato preto, montado na jumenta, a segurar o baú de roupa que levava adiante de mim. Meu Pai e minha Mãe vinham atrás, a pé, ele com os ferros da cama às costas, e ela de colchão e cobertores à cabeça. Assim percorremos as seis léguas que vão de Agarez a Lamego, pelo caminho velho. Senhora da Guia, Senhor do Bom Caminho, Senhor da Boa Morte, Vila Seca, Poiares, Régua... De alma negra, olhava a paisagem grandiosa que nos acompanhava, e via nela apenas a minha sombra. Papa-hóstias, como dissera o senhor Botelho... Era tudo o que eu podia vir a ser na vida.

Recebeu-nos no pátio da casa do senhor cónego Faria, a quem íamos dirigidos, um sacerdote novo e magricela, que mais tarde vim a saber que se chamava padre Monteiro. Meus Pais cumprimentaram-no respeitosamente, mas, em vez de lhes seguir o exemplo, fiquei ostensivamente calado. O desespero que sentira toda a viagem transformara-se numa raiva cega, que me estrangulava a voz. Meu Pai reparou na má criação, e repreendeu-me. Lá arranjei fala e gaguejei:

— O senhor passou bem?

O sujeito olhou-me de esguelha, disse que sim, e perguntou se eu era piedoso. Ao que meu Pai respondeu solícito que, quanto a isso... Além de ser bom rapaz e muito inteligente.

Comprometido, pus-me a arranjar o cabresto à burra e a relancear as janelas da casa solarenga, a ver se via o bispo. Era uma das minhas aspirações em pequeno: ver um bispo.

Por fim, o homem deu-nos um bilhete pra irmos entregar ao número quarenta e dois de uma rua assim, assim, quem subia, à esquerda.

Lá fomos, e lá fiquei.

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Lavado em lágrimas, despedi-me de meus Pais, que meteram afoitamento pela ladeira acima a tanger a burra, que queria ficar. Ainda em soluços, vi-os dobrar a esquina e desaparecer. A enxugar os olhos, subi os três lanços da escada que levava ao segundo andar, onde encontrei os companheiros que iria ter.

Passei o resto do dia à espera de ouvir daqueles desconhecidos uma palavra de consolo. Mas eram infelizes como eu, que a pobreza trouxera até ali, sem calor no coração para repartir. Benzeram-se e rezaram antes e depois do jantar, e eu imitei-os., Quando bateram as dez, enfiaram-se na cama. O que fiz também.

Dormi mal. Pela manhã, o prefeito mandou-me rapar o cabelo à escovinha. Depois fui submetido a um rigoroso inventário, que escancarou à luz do sol os meus haveres materiais e espirituais. Fiquei no primeiro ano.

O nosso vigilante chamava-se senhor Ramos. Estava no fim do curso e namorava a filha do dono da casa, que tinha alfaiataria no rés-do-chão. A República tomara conta do edifício do seminário e transformara-o em quartel. Por isso, vivíamos em grupos de dez e doze, espalhados pela cidade, comandados por um mais velho, e íamos às aulas à residência dos professores.

No dormitório havia apenas um bacio para cada duas camas. O que me pertencia ficava debaixo da do Arménio, que, quando eu acordava, já o tinha cheio. O recurso, claro, era ir à varanda. A primeira vez que tal me aconteceu, fiquei aflito. Quem é que se atrevia a mijar lá para baixo, diante do palácio das Brolhas, de fachada imponente e brazão coberto de luto, ali a ver-nos? Mas a natureza apertava e o frio também. E abri a torneira.

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Rosa, rosae ; tema em a.

Nominativo …………… rosa

Genitivo ………………. rosae

Acusativo………………rosam

Dativo…….…………… rosae

Ablativo……………. Rosa

Achava estúpido. Mas era preciso declinar, conjugar, tirar significados, ajudar à missa, confessar as mínimas culpas e comungar todos os dias na capela particular do senhor cónego Freitas.

O Ricardo fumava às escondidas, em vez de se agarrar aos livros, e viu-se o resultado. Um dia estava muito refastelado na cama, à hora do recreio, e grita um da varanda:

— Ó Ricardo, olha o teu pai!

Correu ao fundo das escadas, alvoroçado.

— Deite-me a sua bênção...

— Deus te abençoe!... — e caiu-lhe um marmeleiro pela cabeça abaixo.

Sem mais uma palavra, o senhor Olímpio deixou-o a escorrer sangue e foi-se embora. Veio de Vale-de-Mendiz só para aquilo. Nenhum mestre perguntou ao Ricardo o que lhe tinha acontecido.

Meu Pai nunca faria o mesmo. Mas também não era preciso. Uma pessoa que se prezava, devia cumprir a sua obrigação, mesmo que lhe custasse. E custava um migalho! O português, a história, a geografia, sim senhor. Havia versos, havia factos, havia países... Enchia-se a alma, satisfazia-se a curiosidade, dava-se largas à imaginação. Lia-se uma vez, e ficava tudo na memória. O raio do latim é que demorava a entrar na cabeça.

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Caelum et terra transibunt, verba autem mea non transibunt... — declamava o Acácio Fernandes.

Fili mi Absalom! Absalom fui mi! Quis mihi tribuat ut ego moriar pro te, Absalom fui mi! Fili mi Absalom... — soletrava eu.

Mas levei boas notas para férias, acompanhadas dum sentimento de ufania pelo dever cumprido. E também uma bruma de melancolia na alma oprimida, que a luz deslumbradora da paisagem que me agasalhava não conseguia dissipar.

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FÉRIAS NA ALDEIAEm casa receberam-me como se eu fosse outro. Tratavam-me

de tal maneira, que tinha a impressão de que vinha bento. Nem sequer consentiam que fosse tornar a água ao Tapado. Se tentava dar uma cavadela, logo uma voz se erguia reprovadora. Deixasse, que alguém faria o serviço.

Na escola, que fui visitar, o mestre, mal entrei na sala, mandou levantar todos os alunos em sinal de respeito, e nem o Rei Grilo se riu daquele cerimonial, que até discurso meteu.

Depois dum intróito solene, o senhor Botelho mostrou os meus ditados, que guardava ciosamente. Pusessem ali os olhos! Vissem! Vissem! Nem um erro! Nem uma letra tremida! Nem o mais pequeno borrão! Assim, sim. Quarta classe extraordinária, a minha! Apenas o Codinhas... Enfim, uma excepção à regra. Por isso mesmo tivera um suficiente no exame. O único que ele registava na sua longa carreira de professor. Mas os outros... Rapazes aplicados, sensatos, respeitadores, briosos, de que não tinha a mais pequena razão de queixa. Eu, então... Agora, uma corja de malandros. Burros, calaceiros, malcriados...

À despedida, estendeu-me a grossa mão das palmatoadas. Parecia incrível, mas não havia dúvida: era mesmo a mão do senhor Botelho a querer apertar a minha. Quando a fechou, cuidei que me ia estalar os ossos. Qual o quê! Branda e quente, tentava apenas secundar por pequenos abanões a efusão do remate oratório.

— Continua, rapaz! Honra a terra que te viu nascer e o mestre que te ensinou as primeiras letras...

Foi certamente por tantas marcas de consideração diante da escola inteira, que o Rei Grilo e os outros passaram a olhar-me desconfiados.

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Assim me isolei dos pequenos. Dos grandes, já estava, desde que regressei do Porto. Mas as coisas pioraram ainda. Pessoas idosas começaram a chamar-me menino e meu senhor. A Maria Carolina, que não saía da sacristia, à fina força queria que lhe deixasse beijar a mão. E fui ficando irremediavelmente sozinho no mundo.

Passava os dias fechado em casa, ou então ia até à Atafona, e ali ficava horas infindas a ver a burra despontar os tojos arnais. Havia agora em mim qualquer coisa que repelia a naturalidade. A infância ia fugindo das minhas palavras e dos meus gestos, ou ninguém mais a queria neles.

Depois de muitas arrelias, meu Pai lá consentiu que eu fosse à tarde até à loja do ti Faustino.

Sentava-me num caixote de sabão e conversava com o vendeiro. Gordo, baixo, bonacheirão, fora em novo polícia no Porto. Batera-se no Trinta e um de Janeiro, estivera preso, vira-se e desejara-se. Mas a República acabara por triunfar, e agora tinha uma pequena reforma.

Pedia-lhe pormenores da revolta, e ouvia aquelas façanhas a sentir mais emoção do que ele a contá-las. Por fim, calava-se, não sei se cansado de evocar se de inventar, e adormecia às brasas. Punha-me então a olhar o Eirô através da porta envidraçada. Os rapazes da minha idade jogavam o eixo.

Eixo,

Rebaldeixo,

Taramela ou pau de eixo...

— ó Joaquim, anda ver a monarquia, que é tão bonita!

Três dias depois, deu-se a reviravolta, e todos os talassas da terra, que eram muitos, tiveram de fugir. Razão tinha o Soqueiro, quando perguntava ao senhor Arnaldo:

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— Isto estará seguro?

— Seguríssimo! — respondia o cacique.

— É que vejo a coisa começar pelo rabo... Se fosse pela cabeça...

A cabeça era Lisboa, que não aderira ao movimento, e desde a primeira hora tentava reprimi-lo com as forças fiéis.

— Viva a República! — gritou, ao passar, o comandante da coluna que perseguia os revoltosos. E só o ti Faustino lhe respondeu, hirto de emoção, à porta da venda:

— Viva!

O padre Manuel fora dos mais acirrados, e por isso não lhe deram parança. E, enquanto o ajudava a engrolar o latim, via-o a passar armamento na fronteira, cheio de esperança no triunfo, e depois a transpô-la desiludido, disfarçado de carvoeiro.

Mas era nas missas do senhor prior, rezadas ao meio dia na

Igreja matriz, que minha Mãe se regalava toda a ver-me fazer figura. Muito diferente de meu Pai, mais sensível ao colorido das coisas e ao sabor das palavras, gostava dos rituais, das prédicas brilhantes, do fumo do incenso a arder nos turíbulos.

Seguia-me os passos no altar a mudar o missal, as genuflexões diante do sacrário, o gesto de despejar as galhetas no cálice do celebrante. Depois, cá fora, recebia, consolada, as felicitações.

— Maria, que bem que fica o teu pequeno de sobrepeliz! Que respeito que mete!

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A RECUSA DE

VOLTAR AO

SEMINÁRIO

Quase no fim das férias, declarei a meu Pai que não queria ser padre.

Quando tal ouviu, a primeira coisa que fez foi correr à porta da rua a ver se alguém passava que tivesse ouvido a blasfémia. Depois, mandou-me calar, acrescentando que me partia a cara se eu continuasse a dizer baboseiras.

— Pedaço de asno! — concluiu. — A gente a querer tirá-lo da miséria, e ele a agradecer desta maneira!

Aquela atitude desabrida meteu-me medo. Mas a minha decisão era inabalável. Apertado de todos os lados — minha Mãe, coitada, só não se ajoelhou diante de mim —, acabei por jurar que me atirava ao Douro da ponte da Régua se me fizessem voltar para o seminário.

Meu Pai passou a fazer de conta que eu não existia. Nem a bênção me dava. Como, porém, o tempo corria, e a minha resposta era sempre a mesma, resolveu levar as coisas doutra maneira. Um dia à tarde meteu conversa e perguntou-me que vida tencionava governar agora, tolhido para a enxada, com quase dois anos de lombeirice no corpo, parado a meio caminho da fortuna. Não lhe respondi. Começou de novo. Que era uma vergonha no povo, que era uma bofetada no senhor prior, que era um roubo que eu lhe

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fazia, que era um crime contra mim próprio. Por fim, ameaçou-me. Não queria mandileiros em casa. Fosse ganhar os dias a servir.

Falou-me assim, mas à noite teve com minha Mãe outra conversa. Propôs-lhe mandarem-me para o Brasil, a sua ideia de sempre. As coisas pioravam de hora a hora, o ano fora o que se sabia, e meu tio, quando em tempos lhe escrevera a apalpar o terreno, respondera que quem fazia os filhos tomasse conta deles. Além disso, o governo cada vez dificultava mais a emigração. Mas, com posses ou sem posses, com tio ou sem tio, com papéis legais ou falsos, estava dísposto a tirar-me dali.

Minha Mãe contou-me tudo na manhã seguinte, e quis saber se eu estava de acordo. Respondi-lhe que sim, que tanto me fazia. Para o seminário é que não voltava, nem entrava mais na igreja. Fosse ladroeira, fosse crime, fosse o que fosse. Não ia, não ia, e pronto.

Minha Mãe, então, pediu-me um favor: que tivesse paciência e ajudasse à missa mais alguns dias, enquanto se não arranjavam as coisas. Era por causa do senhor prior, de fulano, de sicrano, de aldeano, e nomeava pessoas conhecidas que, pelos vistos, haviam de se regalar com a notícia. Tivesse pena de meu Pai, que lhe custava muito um falatório daqueles. Qualquer noite, antes de as aulas abrirem, ala! E, nessa altura, que mordessem à vontade. Mas, enquanto se davam as voltas precisas, ajudasse à missa, fosse aos baptizados e me portasse bem. Fizesse esse sacrifício, que eles bem o mereciam. Eram apenas meia dúzia de dias.

A muito custo lá lhe disse que sim.

Mas daí por diante já não erguia as mãos, nem rezava o terço no intervalo que vai do Orate Fratres à Comunhão.

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A CHEGADA AO

BRASIL

Mas o senhor Gomes acabou por aparecer mesmo à hora do desembarque, e meu tio também, no fim da ponte que ligava o Arlanza à terra. Tinha o meu retrato na mão, igual ao do passaporte, que lhe enviara com uma grande dedicatória nas costas, e, quando cheguei perto dele, perguntou-me o nome.

— Pois eu é que sou seu tio... — declarou, depois da minha identificação.

Quem havia de dizer! Muito moreno e duro de ouvido, de olhos pretos e meio dente de oiro a reluzir-lhe na boca, nem ares dava de meu Pai, loiro e rosado como um querubim. Só na altura. Nisso, puxava à geração. Agora no resto... Mas pronto: era meu tio. E o senhor Gomes deu a sua missão por terminada.

Apenas nos largou, fiquei logo esclarecido: vinha pior que um selvagem. Não sabia falar, não sabia andar, não sabia nada. E fui imediatamente levado a uma casa que vendia roupa feita, porque o terno que trazia estava bem lá na parvónia. Atrás de um biombo, despi o fato de surrobeco das Pintas, e vesti outro de caqui. A seguir, numa grande chapelaria, troquei o chapéu, que também não prestava. Nem me reconhecia, no preparo em que fiquei.

— Agora sempre está mais apresentável... E preste atenção ao trânsito. Antes de atravessar, repare. E vá aprendendo. Esta é a célebre rua do Ouvidor...

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O TRABALHO NO

BRASIL E UMA TIA

CIUMENTAFiquei a tomar conta do terreiro. O negro Juvenal foi o meu

mestre. Ele e os insultos de minha tia, ensinaram-me em pouco tempo a obrigação de todos os dias. De manhã, carregar o moinho, mungir as vacas que davam leite para casa, tratar dos porcos, ir buscar os cavalos da cocheira ao pasto, limpá-los e arreá-los, rachar lenha, varrer o pátio e atender a freguesia, que vinha comprar fumo, cachaça, carne seca, feijão, ou trocar grão por fubá. De tarde, carregar novamento o moinho e tratar outra vez dos porcos, prender as crias das vacas, curar bicheiras e procurar pelos matagais as porcas e as reses paridas. Ajudava-me nestes serviços o moleque Virgolino.

Ao pôr do sol, ia buscar o correio a Sousa Pais. Depois de voltar, tinha ainda a meu cargo a escrita da fazenda. Por fim, verificar se as portas e janelas da casa estavam bem fechadas. Era o último a deitar-me e o primeiro a erguer-me. Não parava de manhã à noite.

Meu tio, porém, exigia o máximo de cada um, e de mim a medida acogulada. As vezes, com os outros, lá transigia. Comigo não havia contemplações. Um dia à noite, logo nos primeiros tempos, estava eu a acabar a folha do pessoal, entregou-me um pacote de notas e um revólver, e disse:

— Amanhã de manhã vá levar estes quarenta contos de réis ao Banco Predial de Palma.

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Olhei-o pasmado e aterrado ao mesmo tempo. Quis lá saber! Dera a ordem. O resto não interessava. E fiz o percurso dos cento e tantos quilómetros a cavalo e de comboio, disposto a varar o primeiro que se me atravessasse no caminho.

Subira a pulso, e só entendia o triunfo assim. Mas, se o encarregado de qualquer missão a desempenhava a seu contento, embora o não confessasse, lia-se-lhe a aprovação no semblante. Foi o que aconteceu quando regressei com o recibo. Tive a impressão de que ficara sem rugas repentinamente.

Minha tia, pelo contrário, toda se consolava se me via falhar. Desde a primeira hora que pressentira nela um inimigo. O tempo foi confirmando o aviso. Embora casada com separação de bens, vivera sempre na persuasão de que a fortuna do casal iria parar inteirinha às mãos dos filhos. E, às duas por três, entrava-lhe pela porta dentro um sobrinho do marido, possível herdeiro da metade dele. Até certo ponto compreendia-se que ficasse desesperada. Mas não era razão para fazer o que fazia. Dava voltas à imaginação a ver se tornava negativo o que de positivo havia em mim. O seu regalo era no fim do dia desenrolar diante do meu tio o sudário das minhas faltas, verdadeiras ou inventadas. E, apesar do esforço que me custava passar abruptamente da antiga vida àquela penitência, desenterrava da vontade e do corpo quantas energias tinha, a dar conta do recado o melhor que podia, por brio natural e reacção ao ódio dela.

Certa manhã, a Bem-te-Vi apareceu de barriga vazia. Parira. Era preciso descobrir a cria, por causa da bicheira. Corri o capoeirão do Retiro palmo a palmo. Nada. A vaca escondera o filho em lugar seguro. Ao almoço, meu tio perguntou-me pelo bezerro. Respondi que não conseguira encontrá-lo. Calou-se. De tarde bati a Cerrada de todas as maneiras. O mesmo insucesso.

À noite, minha tia encheu-lhe os ouvidos. Estava arranjado comigo. Num lugar daqueles, queria-se outra pessoa, com o sentido das responsabilidades... O vitelo morrera por simples desleixo. Que me tinham visto deitado a uma sombra em vez de o procurar...

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Ouvia tudo do quarto. A surdez de meu tio obrigava-a a falar alto, e eu escutava da cama a conversa. Mordido de raiva, não consegui pregar olho. De madrugada ergui-me, fui buscar as vacas de leite ao pasto, ordenhei-as, tratei dos porcos, carreguei o moinho, arreei a montada de meu tio, e atirei-me ao monte à procura do novilho. Bateu o meio-dia, e zero na conta. Cheguei a casa roto, ensanguentado, coberto de carrapatos, miserável. Meu tio olhou-me, e não teve coragem de romper a direito. Limitou-se a lamentar à mesa o prejuízo que representava perder-se assim por incúria um animal que devia ser um belo exemplar Jersey. Dei uma desculpa qualquer, e desandei sem comer. De tarde, não fui mais feliz. Quando regressei, era a própria imagem da humilhação. Meu tio, de cara fechada. O jantar parecia um velório. Minha tia, impante. No dia seguinte, já ninguém punha esperança nos meus esforços. Menos eu.

Começava a ficar homem. No meio daquela pujança tropical, crescia também. Mas enquanto que o corpo se desenvolvia em tamanho — todos os dias tinha a impressão de não caber na roupa —, a alma apenas medrava em amargura. Amargura de me sentir injustamente odiado por minha tia, de ser como um estranho para meu tio, de viver aperreado no seio da liberdade. A fazenda ia de vento em popa. Os velhos cafezais, capinados, pareciam outros; os novos, já plantados por nós, dava gosto vê-los; os pastos, limpos, estavam cobertos de gado; nos canaviais mal se rompia; as roças verdejavam, semeadas de milho.

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A TIA E O

ISOLAMENTO NO

BRASIL

Não sei se minha tia acreditou no tombo. A Etelvina, essa, é que pela certa adivinhou o que acontecera. Talvez porque já nessa noite não fiquei diante dela na costumada adoração, logo no dia seguinte começou a embirrar comigo. Punha defeitos em tudo o que eu fazia. Pilava mal o arroz, a lenha que trazia estava verde, os quiabos que ia apanhar não se podiam comer. Minha tia, encantada da vida. Realizara, finalmente, o seu intento: isolar-me no terreiro. Há muito já que o Virgolino, a princípio meu amigo, se bandeara com ela. Fui obrigado a castigá-lo por causa de um leitão que deixou morrer entalado na cerca. E, quando o sentiu ressabiado, tantos ámens lhe deu, de tais atenções o cercou — um pastel hoje, uma fatia de goiabada amanhã —, que conseguiu fazer do moleque um seu fiel e conivente aliado. Restava-me, contudo, a simpatia da Etelvina que, embora desalmada em certas horas, era um apoio, mesmo assim. Agora ficava sem ninguém do meu lado.

E era no meio destas lutas e atribulações que as cartas de meu Pai, num estilo embricado, sem pontos nem vírgulas, ditadas a minha irmã, chegavam, recheadas de bons conselhos e notícias de Agarez. Primeiro, que tivesse juízo, fosse sujeito, fizesse a vontade a meu tio e a minha tia; a seguir, que recebera a prestação enviada do dinheiro da passagem; por fim, o relato sumário dos grandes

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acontecimentos da terra: a morte de fulano, o casamento de sicrana, o míldio que atacara as vinhas, as décimas aumentadas.

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A RELIGIÃO

ESQUECIDA

Quase que esquecera, realmente, a doutrina. Não o fizera de propósito. Acontecera assim naturalmente. Desde que saíra de Agarez que nunca mais rezara. Além de não ter fé, em ninguém à minha volta a sentia, também. E, quando o Padre Guilherme mandou dizer o Credo, fiquei admirado de o Credo também ser preciso no Brasil. Ele mesmo, Padre Guilherme, me dava vontade de rir, assim paramentado, com ares de quem levava o papel a sério. Mal se virava no altar para ordenar o Orate fratres, via-o logo de cornetim na boca, muito vermelho, com as veias do pescoço inchadas por causa do cabeção, a solar o samba

Quem tem telhados de vidro

anda muito direitinho...

A grande paixão do Sr. Adalberto era a música. Tanto ateimou, que conseguiu arranjar uma pequena banda formada pelo feitor Macario, pelos dois irmãos Mendes, e pelo Balbino, o que virava lobisomem à sexta-feira. O padre veio aos anos de meu tio e, quando viu brilhar os instrumentos, não se conteve. Morria também por semi-colcheias. Esquecido das horas, esgotou o repertório, enquanto a negrada quebrava os rins no terreiro. E fiquei sempre a vê-lo como dessa vez, obeso, congestionado, bochechudo, a soprar a um bocal, com espuma nos cantos da boca.

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Estava, na verdade, um hereje perfeito. De toda a corte celestial, ficara comigo apenas um vago Santo António para me ajudar a descobrir os bezerros escondidos nos capoeirões:

Ó meu Padre Santo António

Que em Lisboa foste nado

E em Roma santificado...

Era preciso dizer a oração três vezes sem errar. Mas o bezerro, bem procurado, acabava por aparecer, vivo ou morto.

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AS PALAVRAS DO

TIOSubitamente, como se tudo o que dissera tivesse sido apenas um

intróito à missa que desejava rezar, olhou-me muito sério, e mudou de tom. Ia, de facto, vender a fazenda e regressar a Portugal. Estava velho e cansado. A pessoa em quem pusera as esperanças para o substituir na direcção daquele mundo, fora eu. Nunca me dera ordenado que prestasse, atendendo a essa circunstância. Como mais tarde ficava dono de tudo... Ora as coisas tinham-se encaminhado doutra maneira, por várias razões... De resto, via-se que gostava dos livros, e, de posse dum curso, também não ficaria mal governado. Estudasse, pois. Medicina, direito, o que entendesse. E podia escolher: ou continuar em Ribeirão, ou seguir com eles, e começar vida nova em Coimbra. Como quisesse. Na certeza de que tinha o curso da formatura garantido. Pagava-me assim o que me devia... Porque quanto à fortuna... Enfim, escusava de esperar por mais nada. Resolvera assim... Ficávamos, portanto, entendidos. Para já, enquanto o comprador não se chegava ao rego e o advogado estudava a proposta do pagamento ser em letras a longo prazo, voltasse eu para o Ginásio na companhia do Jorge. E fosse homem.

Ser homem! O santo e senha que sempre me dera. A palavra de ordem que, desde o desembarque, lhe ouvia nos momentos cruciais, cujo sentido nunca explicitara. E apetecia perguntar: a meta apontada teria igual significado no seu pensamento e no meu? Porque ser homem nem era melhorar fazendas e vendê-las, nem arranjar amantes e metê-las em casa, nem alvejar a tiro os negros descontentes... Mas, possivelmente, ele próprio saberia isso, e falasse apenas em nome das virtudes reais que também possuia: a vontade inquebrantável, a honradez que todos reconheciam, a simplicidade

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natural e o dom de permanecer o mesmo, quer as visitas fossem bonitas como a Zèzétí ou feias como a Dina.

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O ADEUS AO

BRASILVoltei-me na sela do Beija-Flor para vê-los pela última vez. A

eles e ao terreiro da minha infelicidade. Ali ficavam o moinho, o chiqueiro, os currais, o paiol, todas as estações da Via Sacra. E acudiam-me à memória as palavras da Maria da Purificação em Agarez, na Quaresma, de que me não ria agora:

— Os pontapés que lhe deram foram cento e cinquenta...

—Setenta e oito vezes o arrastaram pela corda que levava atada ao pescoço...

Minha tia, do carro do Anacleto, essa olhava o calvário sorridente. Ia reinar noutras paragens... Alguns colonos continuavam a dizer adeus da encosta do Ingá. Meu tio, montado no Ligeiro, não fazia um gesto. Parecia de pedra. Passámos a olaria, o retiro, o cafezal do sítio Avelar. Tudo aquilo, que fora tão concreto, se me afigurava agora irreal... Em Sousa Pais, minha tia apeou-se, e até dava vontade de rir vê-la encafuada no vestido de folhos. E os outros, nesse capítulo, Deus nos valesse também. Só meu tio mantinha certa dignidade. Por ele, não. Mas pelo resto, sentia-me envergonhado. Sabia que era indigno envergonhar-me deles, mas tinha vergonha. E nem queria pensar no que seria a nossa entrada no salão do primeiro hotel...

O comboio chegou, e instalámo-nos numa carruagem de segunda classe. À medida que avançávamos em direcção ao Rio, ia tendo consciência exacta do pouco que significava toda aquela gente para mim. Salvo a meu tio, a nenhum criara afecto verdadeiro. Estavam plantados em falso. Enquanto durou o cativeiro da fazenda, nunca houve entre nós nada que se pudesse

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confundir com amizade; contudo, que remédio senão considerá-los parentes! Depois, no Ginásio, também senti a necessidade de manter viva socialmente a palavra família (a família da Morro Velho), e mantive-a. Mas agora, olhava-os como estranhos, vagamente encontrados na escuridão duma outra vida. Parecia-me que, se de repente me perguntassem quem era minha tia ou a D. Néné, responderia:

— Olhe que não sei...

E nem a merenda, que as duas estenderam sobre os joelhos, me humanizou. Disse que muito obrigado, e continuei a olhar o Paraíba barrento.

Segunda vez minha tia abriu o cesto do farnel. Segunda vez declarei que não tinha fome... Tinha fome, sim, mas não era de pastéis e goiabada. Tinha fome de ser como aquele rio, que de novo corria ao lado, livre, forte e caudaloso, levando apenas à tona outros troféus: os dentes postiços de minha tia, que me mordiam, e o seu vestido de folhos, que me envergonhava.

A CRIAÇÃO DO MUNDO

(Lembranças auto biográficas)

OS DOIS PRIMEIROS DIAS. 1937

Coimbra,, 1969

220

ENCONTRO COM

MEUS PAIS DEPOIS

DE CINCO ANOS

NO BRASIL

O encontro com meus pais foi três dias depois.

As cartas tinham mentido. Nelas, durante os cinco anos passados, a frescura do rosto de minha Mãe, a profundidade inteligente dos seus olhos, e, sobretudo, a graça natural da sua presença permaneciam imutáveis. De meu Pai, então, nem um indício sequer de velhice e cansaço. E ambos estavam mudados. Quem eu via e apertava nos braços não eram seres iguais às imagens que moravam na lembrança. Faltavam cinco anos a cada um. E como me era impossível preencher essa lacuna do tempo, a minha efusão claudicava.

— Que pau de virar tripas te puseste, rapaz!

Também eles hesitavam diante do meu crescimento tropical. Também eles sentiam que na minha vida o período da adolescência não lhes pertencia, e que lhes seria difícil ligar inteiramente o menino que partira ao galfarro que chegava.

Arrefecia-nos ainda um outro gelo. O reencontro com a pobreza inibia-me. E eles, no seu instinto agudo, sabiam-no. A

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ausência cobrira tudo de uma saudade doirada. E a realidade permanecia inalterável.

—O pai escusava de andar com essas calças!...

—E que é de outras? Tu que cuidas? Que o vou roubar? Ou pensavas que me vinhas encontrar rico?

Enviara-lhe o dinheiro da passagem e mais algum. — Mandei o que pude...

— Quem te diz menos disso? E então não viste que comprei a Barrosa? Ainda devo metade...

A terra era a grande obsessão de todos. Esgotada e pouca, dividiam-na como os soldados romanos a túnica de Cristo, sem olhos e sem amor para mais nada. De cada geira tiravam as migalhas estritas para viver. E ela, tirana e cruel, a troco desse magro pão, exigia-lhes uma submissão inteira. Sujos, rotos, boçais, pareciam mais montes vivos de estrume à procura da cova, do que seres humanos

Quando à frente da família minha tia, vestida de seda, entrou na nossa fuligenta choupana, todas as suas antigas alusões à miséria em que eu fora criado me vieram à lembrança, num clarão de desespero. Minha irmã, humildemente, limpava as velhas cadeiras com o avental. E eu protestei.

— Estão bem assim, deixa lá...

Queria fazer de forte, de natural. E era a inferioridade da humilhação que me roía.

—O Sr. Adalberto e as Senhoras, não; mas eles já sabem como isto é... — disse meu Pai.

Chamava o irmão e o filho à honradez da origem. Esquecia-se de que meu tio era rico e estava ali para exibir os seus triunfos, e que só eu tinha de me ver inteiro e nu no cruel espelho da realidade.

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— Tem paciência... não viesses... E acaba-me lá com esse palavriado! Conversa à moda de cá, que eu assim não te entendo.

Meu Pai, pouco sensível às coisas formais e plásticas, não reagia tanto. Mas minha Mãe protestava indignada contra o meu sotaque brasileiro.

--- Fala-me português, homem!

Era uma clássica, mesmo a tropeçar nas letras. Lia incansavelmente o único livro que havia em casa, e que era também o único objecto que lhe pertencia exclusivamente — um resumo da Bíblia, e tirava da mais pequena cena o espírito e o corpo da própria verdade.

«Havia um varão na terra de Hus, por nome Job...»

—Coitadinho do meu filho! Tão bonito e tão tenrinho que ele ia...

Bem que eu me esforçava por chamar sobre mim a ternura daquela saudade. Tempo perdido. Era o outro que ela guardava no coração.

Meu Pai, terroso, lacónico, obstinado, só sabia repetir o mesmo estribilho:

—Se tens continuado no Seminário, campavas... O Ricardo de Vale-de-Mendiz canta missa nova em Agosto...

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ALUNO DE

MEDICINA —

COLABORADOR

DE VANGUARDA

(PRESENÇA)

Diante dum corpo morto, porém, as minhas possibilidades de bom aluno esvaíam-se. Qualquer coisa de mais forte e de mais emocionante do que os músculos e os ossos impedia-me de sistematizar o que aprendia. A histologia, a fisiologia ou a patologia de órgãos abstractos não me tentava. Era o homem por dentro, vísceras e alma, que o meu instinto e a minha razão queriam tocar. E as lições que eu dava eram más.

Sempre me exprimira mal. Uma espécie de concentração anárquica, de prévias respostas a cada pergunta, ou de novas perguntas a cada resposta, nunca deixou que uma conversa comigo tivesse brilho. Mas era sobretudo a situação humana em frente à realidade que, nos exames, me tornava quase imbecil. Recitar de enfiada os dezassete sintomas duma doença, como via fazer, estava

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para além das minhas forças. Certamente que na prática forçoso seria conhecê-los, e eu aprendia-os. O que não conseguia era desintegrá-los do próprio ser angustiado, doente, tocado pelo dedo da morte. E parece que era essa desintegração que se pedia. A enfermeira, para os mestres, era apenas um ponto de partida para o abstracto. E eu ficava-me ali ao pé dos doentes amarrados à sua cruz, tuberculosos, cancerosos, sifilíticos, ou loucos. Era a eles que a minha compreensão queria chegar, e não a qualquer arranjo mental duma teoria que os considerava sub specie aeternitatis. Mas nem professores nem condiscípulos me podiam ajudar. Iam pelo seu caminho, brilhantes, confiados, e eu seguia-os de sala em sala, desalentado. Publicara já o meu primeiro livro de versos, e toda essa minha insatisfação e angústia se traduzira numa «Balada da Morgue» que foi a primeira consciência poética verdadeira que tive. Os pobres versos que até ali fizera morreram de anemia na manhã dessa revelação da morte. O Alvarenga ficou sem ar quando lhe li o poema. Escandalizado no íntimo da sua natureza higiénica e delicada por aquela brutalidade nua e podre, aguentou estoicamente a pancada, felicitou-me com sincero calor, mas falou no fim com saudade dos meus antigos sonetos sentimentais. Uma nova fase ia começar agora nas nossas relações, fraternalmente amigas. Até ali, a minha admiração pelo brilho da sua personalidade e a gratidão pelo muito que lhe devia de estímulo e de carinho, só tinham os limites morais do meu fundo de cavador. Agora, porém, eram restrições doutra natureza que eu lhe começava a fazer. O mundo da cultura verdadeira dava-me os primeiros sinais. A nebulosa adivinhada abria-se em estrelas e claridade. A arte não era habilidade nem sentimento, o saber não era erudição, a moral não era um conjunto de regras formais. Só quando o homem se despia da saragoça parda dos preconceitos e das ideias feitas, e ficava disponível para toda a compreensão, sem abdicar do seu juízo e da sua escolha, a vida tinha nele uma expressão ao mesmo tempo natural e bela. O Dr. Marinho convidara-me já para escrever na Vanguarda, que era a revista literária do grupo modernista, e eu lançara-me com entusiasmo

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nessa onda renovadora. Agarrado às novelas carlistas de Pio Baroja, o Alvarenga não podia compreender o novo tempo romanesco de Proust ou de Gide. Ele, o imoralão viril, agoniava-se com os senhores de Charlus e Nathanael. Bem que eu me esforçava por lhe demonstrar a originalidade literária que caminhava ao lado de revelações escabrosas. Inteiro e indivisível, o Alvarenga ficava na sua:

—Essas coisas não se fazem, nem se escrevem.

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MÉDICO— Médico!

E, por mais que me esforçasse, esta palavra não acordava cá dentro mais nada do que cadáveres repugnantes que dissecara, ruídos estranhos que ouvira através dum tubo de auscultação, gorjetas ao bedel, e fastidiosos exames, a debitar teorias que decorara. Abstratamente, sabia bem o que a palavra poderia significar: uma técnica e um apostolado. Qualquer coisa como um facho de servidão sacerdotal passado de mão em mão. Hipócrates seria, naturalmente, o primeiro a acender a chama. Dele, o clarão passaria a sucessivos discípulos, até chegar a Marius de Araujo, territorio Villaregalensi natus, licentiae gradum in praeclara Medicinae et Chirurgiae... Os meus mestres seriam os intermediários venerados dessa transmissão sagrada. A escola, o templo do ritual... Mas isto era a abstracção sentimental e mentirosa, tal como saía da boca desdentada do professor de Deontologia. O velho, que tinha sido mau colega nos poucos tempos que exercera clínica, que fora toda a vida um venal, enternecia-se com a perfeição da fórmula: uma técnica e um apostolado. E as suas aulas pareciam-me uma anestesia com cloreto de etilo: gelavam tanto a alma, que a tornavam insensível.

— Médico!

Repeti a palavra no quarto, depois de tirar a capa dos ombros e de ficar outra vez nu. E pareceu-me ver na minha frente, trazida por aquele som, uma legião de sofredores, a que teria de valer sem saber como. Inexplicavelmente, tudo quanto aprendera se me varrera inteiramente da memória. Um vazio imenso, angustioso, interpunha-se entre mim e o resto da humanidade. Nada sabia, nada podia. Era apenas um homem aterrado.

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MALESTAR NA

TERRA NATAL

Deixei Coimbra poucos dias depois, porque meu tio cortara a mesada havia algum tempo. Perguntou em que mês eu acabava, fez os seus cálculos, e deu um talhadoiro na fonte que me alimentava.

Em Agarez esperava-me um silêncio hostil. Embora nas férias muitos já tivessem recorrido aos meus serviços, diante do facto consumado de eu ser doutor, hesitavam. Para os ricos, a minha presença vinha quebrar uma tradição de escravatura e anonimato. Estavam vivos e presentes os antigos patrões de minha Mãe e os que meu Pai servira de enxada na mão, e para quem eu trabalhara também em pequeno, a alumiar nas regas. Os filhos deles tinham naufragado num mar de protecções e de privilégios. E eu, ao cabo de mil lutas e de mil humilhações, chegava médico. Quando em Coimbra o menino Gustavo, que fazia parte dos «ponneys», como eram conhecidos na academia os herdeiros decadentes da nobreza do País, me descobriu ao lado dos eleitos da Vanguarda, só teve uma reacção: denunciar-me como seu antigo criado. O Alvarenga, corrido, veio ter comigo, aflito. Ouvi-o com toda a calma.

— Mas é verdade ou não, o que ele diz?

— Como haver palermas no mundo!

Se os filhos, alunos de uma Universidade, procediam assim, os pais, embalsamados nos panteões solarengos, desciam a viseira da alma em sinal de guerra.

Quanto aos pobres, o caso era ainda mais complicado. A inveja, o despeito, a admiração e o orgulho pelo triunfo de um dos seus,

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misturavam-se na sua reacção. O sumatório final, com o andar dos tempos, talvez viesse a ser positivo. Até lá, dureza e desconfiança.

Havia ainda uma outra razão de mal-estar. Desde o princípio do mundo que a aldeia vivia abandonada e sem assistência. E os seus panarícios tinham de rebentar sozinhos, ao cabo de uivos que abanavam as casas de granito. A doença de cada um era um mal de todos, onde ninguém deixava de colaborar com conselhos e mezinhas. Feridas crónicas, enroladas em folhas de malva e em resignação, acompanhavam a terra nos seus renovos e nos seus outonos.

— A Feliciana lá morreu...

— Chegou-lhe a hora...

Iam acompanhando os estragos da febre, as destruições do cancro, os progressos da tísica, tão integrados no ritmo da morte como no ritmo da vida. Ninguém pensava sequer em pôr um dique no curso daquele rio de fatalidade. Tocar a anjinhos na torre, era tão natural como tocar às avé-marías. Se o sino grande da irmandade abria o seu vozeirão a chamar, ainda um frémito de terror percorria a veiga. Agora se badalava o pequeno, ninguém fazia caso.

— Parece que ouço sinais...

—É um anjo.

E a vessada continuava, alheia às enterites da primavera que dizimavam a freguesia.

— Anda o Senhor a fazer a sua colheita.

Sem outra explicação para as desgraças, aceitavam-nas como desígnios de Deus. E olhavam com bovino cepticismo quem viesse lutar contra uma condenação milenária.

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UMA MISSA DE

ACÇÃO DE

GRAÇAS

Meu Pai, contudo, mandou rezar uma missa de acção de graças na Senhora do Amparo. Quando lhe disse que não assistia, ficou tão ofendido que não tive coragem de teimar. Subi a serra, encostei-me a um pilar da capela, e fiquei a ver o espectáculo com uns olhos tão frios e tão objectivos que até eu me arrepiei. Naquele mesmo altar fizera eu a primeira comunhão e ajudara a outras missas várias vezes, possuído duma fé que me doirava a infância. As rendas da toalha branca, as sedas dos paramentos, o cálice, a hóstia e a água benta da pia eram magias vivas, presenças sagradas e protectoras. E o tempo descorara tudo. Minha Mãe, numa oração fervorosa, agradecia a Deus a graça de me ter feito transcender a sua terrosa condição; meu Pai, ao lado, secundava-a. A quem é que eles haviam de agradecer o milagre de terem um filho que já não compreendiam?

.-----Houve alguma coisa na Senhora do Amparo? — perguntaram os almocreves de Jurjais, quando descíamos.

—Foi aqui o meu filho, que ficou doutor...

Exibiam-me como faziam aos porcos de ceva na feira dos vinte e dois, pelo Natal.

—Ó ti Zé-Maria, esse é de respeito, comeu muita batata!

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Meu Pai, envaidecido, ia alisando as cerdas do bicho, que roncava de gozo. Eu, pelo contrário, quanto mais me coçavam, mais me enfurecia. Havia naquele leilão um apoderamento e um impudor que me rasgavam a alma e o orgulho. Nem eu era um objecto de amostra, nem um produto directo dos seus desvelos. Sobretudo magoava-me que não pensassem sequer nas minhas reacções.

— Aqui é assim! Que queres?!

E parecia um peixe vivo na grelha. Em casa, enraivecia; na rua, descomandava-me. Quando os vizinhos me tratavam por tu, era um desespero; quando me chamavam sr. doutor, era mais desesperante ainda.

Uns dias depois da chegada bateram à porta com aflição. Era a Lúcia. Tinha o irmão a morrer, e o médico de Donelo, que o tratava havia tempos, pedia-me que fosse lá.

Caíu-me a alma aos pés. Eu a fazer uma conferência! O que sabia de cada enfermidade era mais prático do que discursivo. Palavras tinha-as o Professor Saavedra, que nas aulas de clínica fazia discursos o ano inteiro e não acertava um diagnóstico.

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INCOMPATIBILIDA

DES FAMILIARES

Os interesses profundos da aldeia não coincidiam com os meus. E os laços morais não bastavam para me prender.

As virtudes de meu Pai, que admirava objectivamente, embora sem grande entusiasmo, e a sensibilidade de minha Mãe, fonte da minha seiva de artista, eram contrabatidas por vícios e hábitos incorrigíveis. Teimosos até à estupidez, fanáticos nos seus ódios e nas suas paixões de ocasião, as minhas discordâncias pareciam-lhes uma traição. Por causa duma galinha punham-se de mal com o mais íntimo vizinho. E queriam-me solidário naquele rancor. Se no entanto uma semana depois voltavam às boas, impunham-me o recomeço de relações amistosas.

Certa noite que fui chamado em altos gritos para ir ver um rapaz com um ataque, meu Pai reconheceu a voz, e proibiu-me de sair.

— É a Latoeira. Não faltava mais nada! Diz-lhe que não vais lá.

— Hom'essa! Porquê?

— Porque não. Desfeiteou-me aqui há tempos na fonte... — Isso é lá com os senhores, valha-o Deus! Eu cá sou médico, e se me pedem para acudir a um doente, o meu dever é ir.

— Que vá buscar o de Donelo.

Nem compreensão, nem piedade, nem grandeza. Só trágica desumanidade.

— Pois tenha paciência, mas vou.

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Deixou de me falar alguns dias. Cioso da sua autoridade de dono da casa, não podia resignar-se à ideia de que debaixo do mesmo tecto outro homem tivesse vontade. Vivia ao colo de minha Mãe e de minha irmã, amimado como um pequeno rei. Formavam os três uma maçonaria fechada. Surpreendia-os, sem querer, em conluios secretos, de que eu ficava excluído naturalmente. A saída do lar aos dez anos arrancara-me do chão murado em que viviam. Fiscalizavam-me os passos como a uma visita provisória, só cautelosamente estimada. E não se conformavam com a ideia de que eu pudesse lidar, sem ser por seu intermédio, com alguém da terra. Havia ainda o facto desprestigiante de ter tido necessidade de me encostar a eles. Era uma situação de vencido que devia custar o seu preço. Em troca da protecção que me davam queriam obediência, concordância, e confidências íntimas da minha vida. Cada carta que chegava de Alice, lacrada e hermética, passava a ser um pesadelo que os atormentava todo o dia, e sobre o qual faziam congeminações à lareira. Bastava que eu me descuidasse e lhes fornecesse a mais pequena indicação, construíam com ela um mundo de hipóteses, ou guardavam-na ciosos para a voltarem contra mim na primeira altura, a ver se, apanhado de surpresa, eu me traía.

— É muito rica?

— Quem?

— Nem tu sabes! ...

Era um jogo de escondidas permanentes. Não é que me importasse contar tudo, mostrar à luz do sol os meus sentimentos e propósitos. O facto de me quererem obrigar a uma revelação íntima em termos de bisbilhotice e de manha é que me punha na defesa.

— Ela agora escreve de Lisboa...

— Talvez.

Alice começara também o seu calvário de ganhar a vida. Do desterro da Beira, onde estava formada à espera dum lugar que

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havia de vir um dia no Diário do Governo, dava de vez em quando uma saltada a Lisboa para mais um concurso inútil.

— Coitada, mesmo lá não se esquece de ti...

Fazia-me desentendido, e ia para o quarto ler um desalento igual ao meu.

«A gente começa por ter, como o menino Jesus, a bola do mundo na mão….Depois a bola vai-se desfazendo, desfazendo...»

O namoro arrastava-se numa monotonia de pessoas que se amavam dum amor infeliz. Alice era uma força igual à minha, embora mais contida. Voluntariosa, digna, recusava-se a qualquer gesto para apressar o desfecho do nosso caso. Talvez que as suas razões de carácter fossem acrescidas da intuição do mundo que nos separava. Consciência clara dele, não a tinha decerto. Faltava à sua inteligência o poder de me desdobrar analiticamente. A sua ternura abraçava-me inteiro, sem me aceitar inteiro. Mal se apoderava de mim, só o homem sonhado recebia calor. O outro, o eterno angustiado, o inquieto, o demoníaco, esse ficava à margem, desconhecido ou delicadamente repudiado. A natureza negara-lhe a graça de entrar no segredo das coisas belas. A sua sensibilidade era sentimental, não era artística. Diante dum poema ou dum quadro, reagia ou num plano de fria compreensão intelectual, ou sensualmente. E isso não me bastava. Continuava a senti-la perto de mim no amor que lhe tinha, e longe de mim no amor que lhe pedia. Duas metades, não coincidíamos na arquitectura do todo. E sem essa sintonização, era-nos difícil manter certas horas na paz desejada por ambos. Abria-se entre nós o vazio de um silêncio angustioso, que era preciso encher, e só tínhamos para lhe lançar dentro palavras banais que o tornavam ainda mais negro e mais fundo.

Nas cartas era a mesma desgraça. Pela minha parte, ou lhe escrevia banalidades que me regelavam, ou me metia por um labirinto de abstracções e de símbolos que só eu entendia.

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SAÍDA DA ALDEIA— Não te apresentes assim em Fonteita, filho. Muda de roupa,

calça uns sapatos e vai vestido de médico. E acaba-me com a caça, que já dizia minha avó que vida de caçador é vida de ladrão.

Degrau a degrau, o meu natural desmazelo acabara numa cafrealização perfeita. Passava semanas sem fazer a barba, e dava as consultas com as calças sujas do sangue da lebre que matara de manhãzinha. Sem estímulo para qualquer actividade intelectual, incompatibilizado com os antigos companheiros da Vanguarda, que seguiam um rumo diferente do meu, esquecido dos amigos, só as brenhas e a luta com os elementos me solicitavam. A inspiração que até ali me possuíra, transformara-se numa força bruta e cega que me arrastava pelos montes acima. E a pura levitação poética do acto criador realizava-a junto de cada doente que assistia. Não me chegavam às mãos livros novos, nem mesmo o eco de novas ideias. A terra, no que ela tem de íntimo e absorvente, apoderava-se insidiosamente de mim.

Só minha Mãe via o perigo, e só ela reagia. Pela primeira vez o seu formalismo era útil e previdente. Tentando salvar-me a aparência, defendia-me o essencial.

— Não te faças desleixado, nem desanimes! E vê se arranjas qualquer coisa lá por baixo. Não fiques aqui! Isto não é para ti.Meu pai discordava. Continuasse. Desse tempo ao tempo e continuasse. De momento nada se podia fazer, porque eu trazia má fama e não ia à missa. Mas os figurões de Donelo haviam decair um dia, e então quem tivesse unhas é que tocava guitarra...Insensível aos meus problemas essenciais e lisonjeado com o prestígio que lhe dava um médico em casa, queria-me ali a seu lado a construir o meu futuro como ele construíra o seu, pedra por pedra. Casara-se quando conseguiu juntar duas libras. Minha Mãe levara ao todo, como dote, uma manta de tomentos. Receberam-se

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num domingo, e na manhã seguinte cada um foi para o seu lado ganhar a vida. Ao luar, depois dum sol a sol de cava e monda, trabalhavam na casa. Pedra a pedra, eles a fizeram sair do nada e ser realidade. E nela minha Mãe pudera ter as suas dores e os seus filhos.

Olhava enternecido o pardieiro onde nasci. O tempo caiara-lhe as paredes, sem conseguir erguê-lo do rés-do-chão. Continuava a ser ainda o ninho de amor dos velhotes, sem que os muitos invernos lhe tivessem roubado a quentura das penas. Mas a minha emoção era de fora. O meu lar sonhado seria um castelo até às nuvens, de obras maravilhosas que desse à humanidade fraternalmente. Por desgraça, não o consegui. E desesperado, afundava-me em desilusão, a fugir de mim próprio pelos montes.

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FUNDADOR DE

REVISTAS E O

DESEJO DE UMA

ARTE VIVA

Continuavam as corridas para Coimbra, agora duas vezes por semana. Mal saíra da Vanguarda, fundara uma revista para lhe opor, Facho, que morreu ao nascer. Conhecia ainda mal as razões profundas do meu gesto. Deixara-me guiar pelo instinto, que me empurrou para a revolta e para a solidão; mas, quando fui a querer dar corpo doutrinário ao acto, falhei. O único número que apareceu não se podia comparar nem de longe nem de perto em serenidade expressiva a qualquer dos da Vanguarda. Era incerto, confuso e tumultuoso. De resto, não conseguira colaboradores. Enchemo-lo eu e o Sobral, que abandonara comigo o movimento, e era impossível manter uma publicação com duas penas com o tempo, porém, estruturaram-se as minhas razões, surgiram outras discordâncias, e aquilo que fora balbuciado podia finalmente dizer-se em voz inteligível. Surgiu assim Trajecto, que eu dirigi, e onde o Gonçalo e o André colaboravam assiduamente.

Queríamos uma arte viva e atenta ao eterno do circunstancial. A Vanguarda arejara a literatura de bom gosto e de crítica. Mas faltara-lhe força para agarrar o humano com mais coragem.

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Contentava-se com o aprofundamento dos dramas do artista e dos seres de excepção, esquecendo-se de que buscando a profundidade não abrangia a extensão. O velho mundo social estrebuchava já na agonia, desenhavam-se no horizonte os primeiros sinais de combate, e ela cega no seu esteticismo. O muito que fazia era pouco, afinal. O tempo correra mais depressa do que

O seu esforço. Proust e Gide, a última palavra revelada nas suas colunas aos leitores embasbacados, lá fora ou estavam velhos ou pelo menos ultrapassados. Integrados numa cultura universal, eram evidentemente marcos miliários. Mas como polarizadores das angústias presentes tinham perdido a actualização e a significação. Outras consciências se esforçavam numa procura mais geral e menos egoísta. A arte fora finalmente tocada pela fraternidade.

Sabíamos que mergulhar demais a pena criadora nessa consciência social implicava o seu risco. Um sistemático enternecimento do artista pela dor e pela miséria duma classe, sendo humanamente um dever, tornaria a arte unilateral e falsa. De tanto pedir justiça, os versos tingir-se-iam de monotonia. Uma página de prosa a apontar misérias obstinadamente, chegaria ao fim mais seca do que um relatório. E de uma arte abstracta transitar-se-ia para uma arte artificial. Pedir-se ao artista que sacrificasse o seu individualismo criador na fogueira colectiva, era roubar-lhe uma autonomia de movimentos, fundamental a toda a invenção e originalidade.

Por isso procurávamos um caminho de livre e positiva realização, onde nem o homem fosse traído, nem o artista negado. Nenhuma angústia nos era estranha, nem abafávamos com melodias o grito dos oprimidos. Atentos à lição do passado e aos horizontes do futuro, vivíamos o presente como homens de carne e osso, condenados à duração temporal do nosso coração. Fisiologia e circunstância, sabíamos no entanto que só merece a vida quem a sabe transcender em beleza e verdade. E lutávamos por essa beleza e por essa verdade com mãos limpas de artistas e cidadãos.

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Quente e generoso, cada número novo era uma conquista que mais nos iluminava. Ao lado do poema gratuito, a página candente e justiceira. A mesma homenagem comovida ao sábio, ao escritor, ao santo ou ao político que deixavam no laboratório, na banca, no ermitério ou na tribuna uma sincera palpitação humana de solidariedade e de amor. Embora individualistas, não concebíamos a vida sem ser articulada e total. O mundo inteiro unificado e feliz; e dentro dele cada qual na sua intimidade inviolável.

Era para esse sonho que eu agora corria com redobrada pressa.

A CRIAÇÃO DO MUNDO

O terceiro dia. 1958.

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A SUA

JUVENTUDE E O

ESPELHO DO

ESCRITOR

Começava a olhar a passada juventude com olhos abertos. Nem tudo fora limpo nas suas intenções. Descobria agora o que havia de cálculo dissimulado naquelas verduras. Os favores do êxito antecipavam-se às próprias urgências do amor. É verdade que reagira, além doutras, também por essas razões. Mas Trajecto ficara ainda longe da penitência completa. Um leitor atento facilmente descobriria ali impurezas que vinham de trás. Uma certa suficiência, um certo narcisismo, uma certa agressividade gratuita. Pois bem: tudo isso acabaria de vez. A certeza daria lugar à dúvida, o espalhafato à sobriedade, o impressionismo à opinião fundamentada, a contestação por fora à subversão por dentro.

Pago o tributo a essas duas fases, talvez necessárias, de crescimento — a espontânea e a experimental, uma demolidora e outra de tacteio ---, chegara finalmente a hora de meter ombros à tarefa de harmonizar na mesma expressão a fisionomia do homem e a do artista. O tempo acabara por me ensinar que não há espelho mais transparente do que uma página escrita. É nela que fica testemunhada para todo o sempre a verdade irreversível do autor: a

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sua autenticidade, se foi sincero, e a sua falsidade, se mentiu. É aí onde os possíveis leitores de hoje e os de amanhã o surpreendem e julgam, e ele próprio, que se procura, acaba por encontrar uma imagem à sua semelhança ou uma ficção irremediavelmente desfigurada.

Teria, pois, de fazer tudo para não deixar de mim uma versão falsa, mesmo verosímil. Sabia que ninguém é capaz de se conhecer inteiramente e de inteiramente se mostrar. Bichos miméticos que a astúcia e a covardia intrínseca acomodam diariamente à cor das circunstâncias, disfarçamo-nos primeiro e analisamo-nos depois. Além disso, tortos de raiz. Por cada propósito honrado, quantas simulações, quantos sucedâneos e arremedos! Estava decidido, contudo, a levar a determinação até aos últimos extremos. Descer à fundura possível e apertar no rigor da grafia a lisura do pensamento e dos sentimentos. Quanto mais exigente ele fosse, menor margem de oportunidades restaria ao ludíbrio.

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O SOFRIMENTO

CRIADOR DO

ESCRITOR

Desgraçadamente, cada vez sentia a caneta mais perra. Sabia de há muito, desde que assumira dramaticamente o acto acordado de existir, que nunca o melhor do meu esforço beneficiaria do usufruto dos hábitos. Diante de cada trabalho, por mais fácil e repetido que fosse, ficava atarantado como um principiante a ensaiar, na confusão e na dúvida, os primeiros passos. A tropeçar constantemente na originalidade fundamental dos seres e das situações, a exigir para cada experiência uma voz inédita, sem poder deduzir por analogia qualquer padrão invariável de conduta, e incapaz de utilizar em benefício próprio os variados expedientes do êxito, só me restava a dignidade de ser lucidamente um eterno aprendiz. A recusa sistemática de concessões de qualquer natureza, a impugnação radical de todas as ortodoxias e a descrença latente nos meus eventuais méritos não me consentiam outra alternativa na gama apertada das minhas opções. Mas enquanto que, na profissão, a prática ia sancionando o seu exercício, de livro para livro as dificuldades redobravam. Ao cabo de alguns anos de tarimba literária, continuava canhestro, enrodilhado, hesitante, atado como nos primeiros tempos. Talvez mesmo pior ainda, já que agora nem o deslumbramento de neófito cegava a evidência. E tinha plena consciência de trazer um escritor tartamudo e aflito no avesso da

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pele aparente de um escritor fluente e convicto. O palco varrido da página branca, onde outros passeavam impantes a facilidade inspirada, simbolizava para mim um campo maninho e duro que tinha de arrotear e semear penosamente. E sorria por fora, rilhado de amargura por dentro, quando ouvia falar nas alegrias da criação, nos invejáveis contentamentos reservados ao artista. Publicava um volume, e leitores fiéis, a julgarem-se lisonjeiros, reclamavam outro no dia seguinte. De boa fé, atribuiam-me a destreza dum artesão prendado, com a perícia às ordens da vontade. Mal imaginavam que, depois de escrever aos arrancos um poema, um capítulo ou uma simples frase, ficava em pânico, crucificado pela incerteza de repetir a façanha. Nunca poderiam conceber que as tais horas altas de eufórica plenitude se reduziam a longas agonias, em que, às mil dificuldades oficinais, se vinha juntar o terror obsessivo de uma súbita mudez irreversível que selasse para sempre as portas do silêncio.

Nesse desencanto exacerbado, doía-me como uma familiaridade impertinente qualquer alusão menos discreta à minha actividade paralela de escritor. Bastava que um doente se lhe referisse no decorrer da consulta para que tudo ficasse transtornado. Já nem o diagnóstico saía em termos. Num pudor insofrido e quase hostil, por força das mais inesperadas agressões, queria ser respeitado nas razões profundas que me haviam levado a discriminar na própria identificação o acontecimento íntimo de ser poeta do acto público de ser médico. O nome exposto na tabuleta correspondia ao cidadão comprometido na honra do sangue, no grau das habilitações, nos deveres de urbanidade; o outro indeterminava o campo das minhas virtualidades, situava-me para além de todas as heranças e de todos os estatutos. Tornava, sobretudo, menos contingente uma vulnerabilidade tanto mais frágil quanto mais apetecidos eram os declives do abandono e maior a disponibilidade exigida pela construção dialéctica de uma obra que se desejava realizada na comunhão universal de todos os semelhantes.

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O LIVRO

APREENDIDO E O

POETA PRESO

Passados três dias, numa quinta feira cinzenta, à tardinha, desencadeou-se a trovoada. A meio da consulta, momentos depois de receber um telefonema da casa distribuidora a avisar que o livro, posto à venda na véspera, fora apreendido, entrou a polícia. Dois cidadãos à paisana que, intempestivamente, irromperam pelo gabinete dentro e me intimaram a acompanhá-los. A empregada, que em vão tentara barrar-lhes o caminho, atónita, arregalava os olhos sem compreender.

— Mas vou preso porquê?

—O senhor é que deve saber. Nós apenas cumprimos ordens. Despi a bata, vesti o sobretudo, mandei os doentes embora, e desci com os sujeitos.

Debruçada à janela, já livre da repartição, a Cidália espreitava alvoroçada. Sorri-lhe cá de baixo num adeus aprumado e galante, grato pelo toque de graça folhetinesca que aquela curiosidade oportuna vinha emprestar ao anonimato da hora.

A caminhar em direcção à esquadra, ladeado pelos dois, ia-os observando. Instrumentos servis dum senhor sem alma, abastardados de sentimentos, empossados na sua insignificância, ali me levavam, indiferentes à minha humilhação e à minha raiva.

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Bonecos articulados, sabiam somente que estavam encarregados de conduzir um criminoso ao calabouço, a bem ou a mal.

— Francamente! Que país este!

— É melhor não fazer comentários...

— Porquê?

—Por tudo.

—Sim, talvez...

Só depois de dar a resposta é que reparei no tom desdenhoso que lhe disfarçava a prudência. E admirei a presteza com que o consciente e o inconsciente se aliavam nos momentos de perigo.

Ao passarmos diante da barbearia, o Estrela, espantado, parou de tocar, encostou o violão à cadeira do ofício e chegou-se à porta. Ia a abrir a boca, mas estacou a tempo. O instinto de conservação impediu-lhe o passo arriscado.

—Por aqui... — ordenaram os fulanos, diante de uma travessa esconsa que não previra no itinerário.

Desviavam-se das ruas principais, a sonegar o escândalo aos olhares indiscretos. Resolvi acirrar os cães de guarda:

—Se o crime que cometi foi assim tão grave que mereça castigo, porque é que andamos para aqui às voltinhas? Parece-me que era até conveniente que toda a gente tivesse conhecimento do facto, para servir de exemplo...

Um deles ainda resmungou, num arreganho. O outro continuou a caminhar imperturbável, alheio a impertinências dialécticas.

No vão de uma porta, aberta sobre um túnel bafiento, duas velhas, encolhidas no chaile, acotovelaram-se:

—Aquele não é o doutor especialista?

—Parece...

Acenei de cá, numa confirmação.

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Caminhávamos agora numa ruela estreita, habitada por gente pobre. Tratara há pouco, num daqueles buracos, uma criança do garrotilho.

— Nada de manifestações!

— Se querem que não mexa as mãos, atem-mas!

Fizeram ambos de conta.

Numas escadinhas íngremes, onde não cabíamos os três, teve um de ficar para trás e deixar-me passar primeiro.

E descobri de repente que eram eles, afinal, os verdadeiros e lastimáveis prisioneiros que iam ali. Prisioneiros da instituição a que pertenciam, que os esvaziara de toda a personalidade, e prisioneiros do meu próprio arbítrio. Presos aos meus protestos, aos meus silêncios, aos meus gestos, aos meus passos. Se eu parasse, teriam de parar, se eu corresse, teriam de correr. E sem reciprocidade. Até quando me impunham um caminho e uma direcção, viam-se obrigados a seguir comigo, sem poderem fugir, amarrados à própria violência.

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TEMORES NA

PRISÃO

Mal o dia rompeu, baldadamente torci o pescoço na gaiola, esperançado em ver surgir ao fundo da rua o vulto dos dois amigos. A manhã passou, a tarde morreu, e nada. Estava incomunicável, de certezíssima. Olarila! A ausência deles, acrescida do facto, igualmente estranho, de a empregada também não aparecer o dia inteiro a saber de mim e a dar-me notícias do consultório, só tinha uma explicação: ninguém podia contactar comigo. E entrei em pânico. O caso, afinal, era mais grave do que eu supunha. Não se tratava de uma detenção episódica, de um simples gesto de intimidação. A coisa fiava mais fino. Metera-me em trabalhos. A ser como parecia, àquela hora já o meu quarto fora certamente vasculhado, lida a correspondência, apreendidos os livros considerados subversivos — e havia lá muitos — e levado igualmente o original do Diário... O mesmo Diário que tantos engulhos causara ao Lopes em cada fronteira. Mal calculava eu, nessa altura, que ainda viria a sentir idêntica mortificação por causa dele... Não pelos mesmos motivos, evidentemente. Embora a devassa da sua leitura pudesse agravar a minha situação, era uma bofetada suplementar que levavam. Perdido por dez... Temia, sim, a perda irremediável do manuscrito. Se, de facto, lhe tivessem deitado a mão, podia tirar dali o sentido. Depois de o utilizarem como matéria delituosa, levaria tal sumiço que nunca mais lhe poria a vista em cima. E era essa perspectiva que me desesperava. Sentia mais apreensão pelo destino dos papéis do que pelo meu. Um homem, enquanto está vivo, mesmo atado de pés e mãos, tem

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sempre o futuro à sua espera; um livro inédito destruído, é uma esperança eternamente perdida.

Mas nada podia fazer. Apenas cerrar os dentes e aguardar.

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NA SEDE DA PIDE

Entregue na sede da PIDE, horas depois só por dentro continuava a ser gente. Por fora, fiquei reduzido a uma cara fotografada de todos os ângulos lombrosianos, a umas mãos esborratadas que deixavam impressões identificadoras numa ficha, a um nome sem senhoria e sem título, a um monte de ossos que o arbítrio alheio fazia mover.

— Volta a cara... Espalma agora aqui a pata... Levanta-te...

Conhecia já de nome, até bem demais, a casa, que uma legenda negra celebrava. Contavam-se por toda a parte horrores dos suplícios a que eram submetidas nos cubículos do sótão — os famigerados «moinhos» — as vítimas renitentes à confissão. Dias e noites a fio, de pé, sem dormir, ou, mal fechavam os olhos, acordadas a cachação pelos «macaquinhos», os guardas que a rendição frequente mantinha sempre em forma. Havia casos de alucinação por esgotamento, como o de um operário que cuidou ver a mulher violada e o filho único estrangulado e ia matando a sentinela com o escarrador de ferro fundido a que lançara mão. Mas, sem mesmo subir a essas celas de tortura, qualquer consciência livre encontrava no rés-do-chão razões de sobra para se envergonhar da existência legal no mundo de semelhantes infernos de aviltamento. Mais do que as sevícias sofridas e o seu destino ali decidido, importava o massacre da personalidade de cada condenado, a perdição da sua alma tentada de todas as maneiras. De uma criatura digna que dava entrada no covil saía muitas vezes, dias, semanas ou meses depois, um trânsfuga, um traidor, um covarde — um ser psicológica, quando não fisicamente, desfigurado, que a si próprio se desconhecia. Sádica e cientificamente concebida, a máquina de trituração funcionava em tais moldes de eficiência que as peças — tão impessoais que, embora porfiadamente o tentasse, a minha atenção não conseguia

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reter uma fisionomia — já nem sequer necessitavam de impulso motor. Actuavam automaticamente com a mesma brutalidade, fosse qual fosse o cascalho caído na moega que uma dissimulada e disseminada coorte de angariadores nunca deixava vazia. Bastava respirar por alguns momentos aquele ambiente de estagnada opressão, para o corpo e o espírito se sentirem despojados da semelhança anterior. Mas só depois de começar a ser rolado também na britadeira é que o perseguido ficava a conhecer, na exacta dimensão, até que ponto o homem pode humilhar o homem e a que extremos de baixeza é capaz de chegar um funcionário da crueldade. Em que sagrados recessos do eu uma perversidade aracnídea procura instilar a peçonha paralisante.

— És então escritor?

— Sou.

—E poeta também, pelos vistos...

—Também.

— Um tipo formidável! Médico, escritor, poeta... Vais longe! — Hei-de ir até onde puder.

Tinha a impressão de que aquele cinismo me escorria pelo corpo como uma baba.

— Muito me contas! E queres então fazer a revolução social? — Quero que me deixe em paz.

—Deixo. Mas antes vais responder a umas perguntazinhas... — Não tenho nada a acrescentar às declarações que já fiz. — Tens. Ora pensa lá bem...

— Está pensado.

—A sério?

—A sério.

— Ouve: eu podia pôr-te aí já a falar como um papagaio. Era só dar-te corda. Mas não vale a pena. Temos muito tempo. Fica para mais tarde... Verás que daqui a alguns dias mudas de ideias...

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—Não mudo.

—Mudas, mudas...

Sem táctica elaborada para enfrentar a nova situação e ferido nas mais íntimas veras do amor próprio, reagia em bloco, maciçamente, com a dureza das minhas fragas.

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NO ALJUBE

Só apoiado nessa certeza poderia, de resto, habituar-me à ideia de uma vida coercivamente comunitária com pessoas de todas as condições e feitios — o pudor congénito da minha intimidade devassado a todo o momento, dias inteiros, meses a fio, anos, talvez.

Por enquanto, metido no segredo, em matéria de convivência, apenas podia dar sinais de mim a outros encurralados que do lado de lá da escuridão davam sinal de si. Mal acabara de chegar, já discretas pancadas na parede me alertavam. E comecei a bater também, embora a réplica não passasse dum arremedo cúmplice. Levava o seu tempo a decorar aquele morse, linguagem aparentemente tosca e morosa, e na verdade tão subtil e expedita que nada acontecia ali, como depois verifiquei, que, passados momentos, não fosse conhecido em todos os recantos da casa: a entrada de novos presos, os respectivos nomes e profissões, o espancamento de outros nos interrogatórios, a greve da fome de alguns, a libertação de qualquer. Até notícias do exterior atravessavam os grossos muros, sempre a vibrar e sempre com ouvidos encostados à escuta, às vezes auxiliados pela caixa de ressonância dos púcaros do rancho, utilizados como amplificadores. Havia telegrafistas natos, imaginosos, que inventavam códigos simplificados e transmitiam e recebiam mensagens a velocidades incríveis. Uma trave mestra que atravessava todo o edifício foi a descoberta mais sensacional de um deles. Através dela, tinha parte da população cativa ao corrente do que se passava.

Mas os meus pobres sinais eram apenas balbucios de caloiro. Nem sabia dar informações de mim, nem receber as dos outros. E essa incapacidade tornava ainda mais cruciante aquela solidão. A receber a luz do dia por um postigo cego, impossibilitado de ler e de escrever, sepultado vivo, passava as horas sentado no catre,

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regelado, a meditar. Os atropelos que a avidez do mando era capaz de fazer em nome da ordem, da civilização cristã, dos valores morais, da pátria e de quejandas altissonâncias!

O mesmo ser, que no decurso dos séculos e à custa de tantos sacrifícios e coragem conseguira erguer-se do rés da natureza aos degraus de uma dignidade quase divina, não tinha pejo, sempre que lhe convinha, de tentar reduzir o semelhante à simples animalidade do começo. Enjaulado como uma fera, privado dos mais elementares meios de higiene, a ouvir e a cheirar os próprios rumores e odores, sem voz, sem direitos, sem acção, condenado a uma existência meramente vegetativa, funcional, de alambique, a comida a entrar e a sair, o sono e a vigília a alternar na repetição pendular do mesmo absurdo. Um suíno no chiqueiro tinha mais regalias do que ali um filho de Deus: o tratador que vinha espreitá-lo ou nutri-lo, falava-lhe, ao menos. O que não se dignava fazer sequer o servente que trazia a lavagem regulamentar a cada encarcerado, nem os guardas que se sucediam nas rondas.

- Bom dia! — teimava, urbanamente, a tentar reconhecer-lhes um mínimo de parentesco humano sob a odiosa função de que estavam investidos.

Conhecia a história verdadeira de uma sentinela que, sem poder aguentar mais os gritos de uma vítima que estava a ser espancada, entrara pela sala dentro e gritara, de arma aperrada:

— Ou acabam já com isso, ou dou cabo de um!

Mas a minha expectativa recebia com a porta na cara.

Compreendia até que ponto o excesso de zelo pode levar uma mente subalterna a identificar-se cegamente com os desígnios da hierarquia aniquiladora. Mas sentia redobrar dentro de mim a revolta contra os factores impostos dessa degradação, quase sempre motivada pela premência das necessidades mais elementares, e tão abjectamente fomentada pelos donos do bolo. Suborno socialmente ainda mais nefasto do que os manifestos abusos da violência contra as abertas objecções da insubmissão.

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Sujeito às arbitrariedades do poder, imundo, hirsuto, humilhado de tantas e tantas maneiras, conservava, contudo, a possibilidade de consciencializar a desgraça, o dom de lhe circunscrever o alcance, na medida em que estava nas minhas mãos escolher entre a renúncia e a perseverança, de continuar a resistir ou de aceitar o opróbrio. E eles, os serventuários da tirania, os parafusos da engrenagem trituradora? Desde criança que, a meus olhos, a dignidade da existência implicava o respeito pelo seu pleno acontecimento. Cada vida senhora do seu espaço sagrado e da sua duração. A verticalidade de meu Pai dera-me a medida do homem: um ser em que toda a grandeza concebível tinha a obrigação de se reflectir. E desde criança que sabia também que nas representações dos grandes deste mundo havia sempre um pequeno a puxar a cortina do palco. O moço de recados que eu fora no Porto, a dar cumprimento a tal desaforo, sublevara-se. E ficara-me, desse protesto, o gosto da liberdade e a ânsia de a ver também saboreada ou apetecida pelos outros. Mas esse pão, infelizmente, nada dizia ao pa ladar perver t ido daque le s desnaturados. Es tavam irremediavelmente perdidos.

E os dias iam passando na penumbra do curral, iguais no desespero e na determinação. Nomeados a princípio — Sábado, Domingo, Segunda... —, foram pouco a pouco perdendo a singularidade, de tal modo se confundiam uns com os outros na extensão e na monotonia. Tempo amortalhado, sabia que, quando a tampa do sepulcro fosse levantada, nunca mais o poderia encontrar, pois que nem ponteiros nem acidentes o demarcavam ou assinalavam. Se tentasse abrangê-lo na lembrança, sentiria apenas a opressão de um vazio sem margens.

Vazio estranho, em que nunca tanto esperara um aceno do mundo, e nunca tanto interrogara a minha condição, a avaliar-lhe as reservas de energia e os limites de resistência. Transido no frigorífico, a ingerir a mixórdia do rancho e acordado de hora a hora pelas vergastadas de luz da vigilância nocturna, o corpo cedia. Os brônquios acatarroavam, a velha úlcera do estômago começava a refilar, emagrecia a olhos vistos. Mas todo eu era um acto aplicado

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da vontade. Da vontade que sempre soubera vencer — ou convencer — a fisiologia, e que havia por força de levar a melhor mais uma vez.

Não voltara a ser interrogado. E recordava as palavras cínicas do agente, à chegada:

—Verás que mudas de ideias...

Deixavam-me como que esquecido ali, a apodrecer lentamente até que, maduro para uma confissão geral, pedisse eu próprio a barrela. Entretanto, iam certamente investigando...

—Quero fazer declarações... — seria o termo de rendição esperado, logo diligentemente transmitido em cadeia por serventes e guardas.

A engrenagem repressiva era um articulado de pretextos. E, na ausência de culpa formada, ia buscar a matéria de facto à própria substância do medo. Aterrado, o réu inocente acusava-se ou acusava. O que valia o mesmo. Ou ficava justificada a reclusão ou proporcionara-se oportunidade para uma denúncia suplementar.

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A SAIDA DA

PRISÃOO corte da anilha demorou ainda. Entrei de novo na carrinha e

percorri em sentido inverso o trajecto do primeiro dia. E como, só de ver as coisas dum ângulo oposto, eram diversas das outras as percepções actuais! Tinha a impressão de que as ruas haviam mudado de tamanho, que a cor da frontaria das casas vinha à tona do salitre encardido, que as pessoas caminhavam de maneira diferente. Os passeios pareciam mais largos e o trânsito menos agressivo. O próprio verdete das estátuas ganhava não sei que textura de epiderme humana.

Fui descarregado na sede da PIDE, fiquei algum tempo a secar numa sala fria, e por fim um guarda ordenou-me que o seguisse. Mais calmo do que da primeira vez, ia observando a azáfama do palácio inquisitorial. Máquinas a matraquear, presos a transitar, funcionários apressados, campainhas a retinir, e silêncios pesados, aqui e além, como poços de ar. O Santo Ofício em plena carburação.

— Onde vais?

— Lá em cima, com este...

— Ah!

No fundo dum corredor, o polícia estacou respeitoso. — Dá licença?

— Entre.

Como uma potestade ocupada, o inquisidor-mor deixou passar alguns minutos antes de nos dar atenção. Até que se dignou abrir a boca.

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— Que é?

— Vim trazer o preso que o senhor Director...

O sujeito ergueu finalmente os olhos do papel que lia, examinou-me demoradamente em silêncio, e acabou por perguntar, enfadado:

— O senhor é que é o médico de Leiria?

— Sim, sou. — respondi, a encará-lo também.

— Pode-se ir embora. E não volte cá.

Retomou a pose da leitura, e eu virei-lhe as costas sem uma palavra.

No patamar, o agente fez um gesto vago com a mão, a significar que me deixava o campo livre. Eram quatro horas e o tempo estava fusco.

Já na rua, de mala na mão, fui acometido dum pânico súbito: toda a minha natureza parecia estranha ao mundo que agora pisava. Os ruídos magoavam-me os ouvidos, olhava os vultos como se visse aparições, tropeçava no pavimento, inseguro nos pés.

— Desculpe!

Mal refeita do encontrão, de mãos firmes na canastra carregada, a varina não se conteve:

— Você vai parvo, ou quê?

Ia, realmente. Perdera os reflexos, ficava a dançar diante

das pessoas, parava nos cruzamentos abertos, tolhido de indecisão.

—Passe! Passe! Depressa! Estes parolos que vêm à cidade! Ouvia os comentários do sinaleiro sem reagir. Havia um hiato estranho dentro de mim Uma espécie de esquecimento parcelar da realidade...

Aflito, fiz sinal a um táxi que passava devoluto.

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— Para onde?

Sim, para onde? E só me ocorreu o endereço do Santos.

—Poço do Borratém...

Quando a criada veio abrir e anunciou em voz alta o meu nome, o dono da casa reagiu mal no escritório.

— Quem?! — perguntou, num repelão.

Mas era realmente eu, embora assim a parecer ressuscitado. — Como foi isso? — quis saber logo que entrei, ainda mal refeito.

—Soltaram-me.

—Claro, claro...

Havia não sei que obstáculo a impedir o entusiasmo. — Parece que ficaste desiludido?

— É que constou que te iam mandar para o Tarrafal... — Ah, sim?!

— Constou.

Lá dentro as crianças chilreavam. A mesa de trabalho vergava, abarrotada de livros. Cortinados nas janelas, em vez de barras de ferro. O lar! A paz da intimidade, do estudo, da ternura... Como sabia bem, depois da amargura passada...

—Senta-te.

—Obrigado.

Caído na poltrona, dispus-me a gozar aquela felicidade doméstica.

— Ora, sim senhor: em liberdade! É agradável, não? — Bastante.

— Calhou mal foi o dia...

— Como?!

— Digo, para nós...

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—Não percebo...

— É que temos de sair daqui a nada... Vamos tomar chá à Embaixada da Venezuela. A minha mulher até já se está a arranjar...

Pareceu-me de repente que a solidão da cadeia continuava.

—Paciência. Gostava de passar um bocado convosco, mas fica para outra vez...

Eu a dizer, e a Berta a entrar, mundana de cima abaixo. — Que agradável surpresa!

— Um pouco despropositada, acabo de saber...

—É pena, realmente, mas esta nossa vida! Se soubéssemos... Olhe, desculpe.

— Era o que faltava! Quem deve pedir desculpa sou eu, de vos entrar assim pela porta dentro sem mais nem menos. Mas confesso que fiz a coisa sem pensar. Fiquei de tal modo desorientado quando saí, senti-me tão confuso no meio da multidão, que foi quase um acto instintivo. E logo por azar...

—Que maçada!

—Não se preocupem. Enquanto houver cafés neste mundo, os poetas estão sempre governados. Eu é que me tinha esquecido...

Peguei novamente na mala, meti-me noutro táxi, fui ao correio mandar um telegrama para Leiria, e passei o resto da tarde sentado diante dum quarto de água das Pedras, a pensar na vida e a olhar o Rossio. Começara a chuviscar, e uma humidade fria trespassava os ossos.

Ora, pois. Ali estava eu, mal acabado de sair da cadeia, e já com a primeira ensinadela no pêlo: que continuava a ser um asno. Farto de conhecer o Santos — desde Coimbra, desde Bruxelas, desde a visita ao Aljube —, cansado de saber que todo ele soava a falso quando se pretendia encontrar-lhe qualquer firmeza humana, e logo fora procurá-lo no momento em que mais necessitado me

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sentia de um cais de arribação para reparar a esperança! Só mesmo de palerma. No puro plano sentimental, depois da dolorosa experiência daqueles meses, seria ainda lícito alimentar ilusões a respeito dele e doutros que tais? Maldita literatura! No dia em que começara a namorá-la, dera o primeiro passo errado no caminho dos afectos. Numa identificação tola, que nenhuma ingenuidade desculpava, emprestara aos servidores da deusa as virtudes que nela tanto admirava. E, em vez de procurar a amizade nas pessoas simples que a rede das circunstâncias trazia diariamente à tona da vida, teimara em ficar agarrado à seita iluminada dos letrados. Conhecia de cor e salteado a história lamentável das guerras permanentemente acesas nos arraiais da família intelectual. Polémicas ferozes, sarcasmos impiedosos, críticas demolidoras, duelos de sangue e de tinta. Mas nem por sombras admitira a hipótese de que o presente pudesse repetir fielmente o passado, e muito menos de vir a ser um dia acha de certas fogueiras. Cheio de boa fé, passara o tempo a correr, confiado e ansioso, para o seio da confraria. Enquanto estudante, o meu poiso era na roda da Vanguarda; formado em Agarez, pouco mais fizera do que suspirar pela tertúlia; em Sendim, jogava a bisca a saborear de antemão as diatribes do Fontes; em Paris, mal chegara, fora bater à porta do Tavares e do Cana- varro; e há pouco... Resultado: um estendal de rivalidades, intrigas, ódios e amarguras no rol da memória. Sobretudo, isto: o vazio total, a rarefacção completa, todas as vezes que a alma pedia qualquer socorro urgente. De nenhum lado uma solidariedade quente e fraterna lhe acudia. Sem que se visse bem a razão de tal pobreza, faltava aos homens do cérebro a chã humanidade dos outros. Davam ao semelhante beleza, ideias, frases, mas negavam-lhe a mão samaritana. Havia inevitavelmente um chá entre eles e o desamparo alheio. Embora de longa data cheio de razões para abrir os olhos e ver a verdade, fechara-os sempre obstinadamente. Talvez porque nunca tivesse chegado à extremidade do desespero. Agora, porém, não podia mais jogar às escondidas com a realidade. De tantas lições que aprendera

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ultimamente, era essa a mais penosa e a que nunca mais poderia esquecer.

A CRIAÇÃO DO MUNDO

(Lembranças auto-biográficas) O QUINTO DIA

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GOLPE MILITAR

DO 25 DE ABRIL

Coimbra, 25 de Abril de 1974 —Golpe militar. Assim eu acreditasse nos militares. Foram eles que, durante os últimos macerados cinquenta anos pátrios, nos prenderam, nos censuraram, nos apreenderam e asseguraram com as baionetas o poder à tirania. Quem poderá esquecê-lo? Mas pronto: de qualquer maneira, é um passo. Oxalá não seja duradoiramente de parada...

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PIDE: PUDOR DAS

VÍTIMAS

Coimbra, 27 de Abril de 1974 — Ocupação das instalações da Pide. Enquanto, juntamente com outros veteranos da oposição ao fascismo, presenciava a fúria de alguns exaltados que reclamavam a chacina dos agentes, acossados lá dentro, e lhes destruíam as viaturas, ia pensando no facto curioso de as vinganças raras vezes serem exercidas pelas efectivas vítimas da repressão. Há nelas um pudor que as não deixa macular o sofrimento. São os outros, os que não sofreram, que se excedem, como se estivessem de má consciência e quisessem alardear um desespero que jamais sentiram.

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ESPECTADOR

CRITICO DO 1.º

DE MAIO

Coimbra, 1 de Maio de 1974 — Colossal cortejo pelas ruas da cidade. Uma explosão gregária de alegria indutiva a desfilar diante das forças de repressão remetidas aos quartéis.

— Mais bonito do que a Rainha Santa... — dizia um popular.

Segui o caudal humano, calado, a ouvir vivas e morras, travado por não sei que incerteza, sem poder vibrar com o entusiasmo que me rodeava, na recôndita e vã esperança de ser contagiado. Há horas que são de todos. Porque não havia aquela de ser também minha? Mas não. Dentro de mim ressoava apenas uma pergunta: em que oceano de bom senso iria desaguar aquele delírio? Que oculta e avisada abnegação estaria pronta para guiar no caminho da história a cegueira daquela confiança?

A velhice é isto: ou se chora sem motivo, ou os olhos ficam secos de lucidez.

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LITERATURA E

REPRESSÃO

Coimbra, 4 de Maio de 1974 — O Quinto Dia da Criação do Mundo a secar nas montras. Nesta pátria é assim: a apetência de leitura depende dos condimentos policiais. Se o livro tivesse aparecido quinze dias antes, talvez que muitos se felicitassem, não de o ler, mas de o ter nas mãos. Mas saiu uma semana depois do vinte e cinco de Abril, já quando ninguém precisava de exibir credenciais de rebeldia. Todos se justificam nos vivas, no cravo vermelho espetado na lapela, na ida aos comícios, cada um na primeira fila excedendo-se diante dos outros, a alardear os pergarninhos apócrifos da sua nova fé. Não é cómodo cultivar as letras em nenhuma parte do mundo. Mas, entre nós, só por penitência. Nunca um escritor aqui teve direito à dignidade. À dignidade de assumir um unânime destino colectivo ou um solitário destino pessoal, sem que sirva de bandeira para uns e de espantalho para outros.

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O REBELDE E

REVOLUÇÃO

Coimbra, 6 de Maio de 1974 — Continua a revolução, e todos se apressam a assinar o ponto.

-O senhor não diz nada? — interpelou-me há pouco, despudoradamente, um dos novos prosélitos.

E fiquei sem fala diante da irresponsabilidade de semelhante pergunta. Foi como se me tivessem feito engolir cinquenta anos de protesto.

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AGRESSIVIDADE

DA LITERATURA

PORTUGUESA

Coimbra, 7 de Maio de 1974 — Quanto mais me aventuro pelas veredas da nossa literatura e mais desabafos releio dos irmãos de ofício, mais se arreiga no meu espírito a convicção de que em Portugal todos os verdadeiros escritores escrevem em tensão negativa com raiva, com sarcasmo, com ironia ou com amargura. É ver as páginas azedas espalhadas pelo melhor da obra de cada um. A paz de uma grafia sem crispação não é connosco. Tudo o impossibilita, desde o meio hostil em que vivemos, incapaz de compreender o acto criador, às próprias relações inter pares, sempre difíceis e tormentosas. De aí que façamos da caneta um estadulho, um cautério, uma seta ervada ou um cilício. Um instrumento, ao mesmo tempo, de agressividade e de maceração.

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TORGA, O

RELIGIOSO E O

CATOLICISMO

Coimbra, 8 de Maio de 1974 — Sim. Apesar da sedução que no meu espírito exercem outros credos, se tivesse de me converter, seria ao catolicismo. É, afinal, a única religião compatível com a minha natureza torrencial, terrosa, pecadora. Uma religião que sagra de tal modo o profano que nele se fazem agentes demiúrgicos a água, o sal, o azeite, o pão e o vinho. A água e o sal do baptismo, o azeite da unção, e o pão e o vinho da eucaristia. A imanência e a transcendência tão medularmente conjugadas, que a realidade tangível se paradigtnatiza no prodigioso mistério da encarnação e no escândalo bárbaro e sublime de um Deus consubstanciado a quem antropofagicamente o devoto devora a carne e bebe o sangue.

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O POETA E A

POLÍTICACoimbra, 1 de Junho de 1974 — Discurso num comício

socialista. Ainda hei-de escrever meia dúzia de linhas a propósito da situação trágico-cómica de um poeta em bico de pés num estrado cívico, a esforçar-se por estar à altura da sua reputação e ao mesmo tempo a saber que ninguém o ouve.

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TORGA E O SEU

PROCESSO NA

PIDECoimbra, 18 de Fevereiro de 1975 —Uma alma devotada

envia-me um monte de fotocópias do meu processo na Pide. Um acervo de documentos ridículos e trágicos ao mesmo tempo. Os passos que dei durante quarenta anos seguidos hora a hora, reproduções de cartas particulares que escrevi e recebi, denúncias feitas por pessoas insuspeitadas, quanto ganhava e não ganhava no consultório, minúcias de que me esquecera, todo o meu passado coligido, vasculhado, devassado.

E tive pena de mim. Vista através daquele registo laborioso e tenaz de gusanos inexoráveis, a minha vida era a própria imagem da desolação. Descarnada de qualquer substância anímica, mais objectivamente exacta do que a biografia que porventura aflora à tona do que escrevi, parecia o relato de uma autópsia. Exsicado, via-me ali reduzido a um despojo arqueológico, como se todos os meus actos fossem equivalentes e tivesse passado por eles o sopro do nada.

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PRISIONEIRO DA

PÁTRIACoimbra, 19 de Março de 1975 — Apetece fugir, deixar de vez

esta pátria que mais ninguém sabe reconhecer, gramatical, cívica e humanamente, e onde o capricho de um gabado qualquer, a má disposição da sua amante ou a qualidade da aguardente que bebe mudam o curso de uma revolução. Mas abandoná-la de que maneira? Com um saco às costas, como pode fazer um homem sumário, igual ao que há pouco, num filme, mudava de terra sem qualquer entrave, levando nos músculos de trabalho todos os vínculos e honra? Mobilado de valores morais e sentimentais, telúricos, intelectuais e outros, prendem-me ao chão nativo amarras indestrutíveis. Para poder partir teria de meter no bornal o Marão, o Douro, o Mondego, a luz de Coimbra, a biblioteca e as vogais da língua. Sou um prisioneiro irremediável numa penitenciária de valores tão entranhados na minha fisiologia que, longe deles, seria um cadáver a respirar.

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O PORTUGUÊS

PERANTE OS

ESTRANGEIROSCoimbra, 5 de Abril de 1975 —Fazem-se eco os jornais das

palavras de um intelectual francês que veio espairecer o seu tédio vanguardista e bem pesante por estas buliçosas paragens. Parece que vai daqui consolado e nos deixou consolados também. Pobre português! Quer queira, quer não, está sempre de cócoras diante de qualquer estrangeiro. O mais pundonoroso, curva-se reverentemente perante o estatuto de superioridade que de longa data outorgamos aos de fora. Todos nós nos pomos nos bicos dos pés para que o mundo nos veja. Escrevemos para os outros, conspiramos para os outros, fazemos revoluções para os outros. E os outros, naturalmente, procedem em conformidade, dignando-se olhar-nos com a magnanimidade de um soberano que desce à rua e aperta a mão do manifestante.

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O FIM DA

AVENTURA Coimbra, 29 de Setembro de 1975 —Retorno maciço dos

portugueses do ultramar. Na aflição da fuga, até de barco de pesca vieram muitos, a ponto de alguém dizer que fomos descobrir o mundo em caravelas e regressámos dele em traineiras. A fanfarronice de uns, a incapacidade de outros e a irresponsabilidade de todos deu este resultado: o fim sem grandeza de uma grande aventura. Metade de Portugal a ser o remorso da outra metade. Os judeus da diáspora ansiavam por voltar a Canaan. Povo messiânico também, mas de sentido exógeno, para nós o regresso é o exílio. A nossa Terra Prometida estava fora de Portugal.

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A GLORIFICAÇÃO

DO POETAS. Martinho de Anta, 6 de Setembro de 1976 —O Prémio

Internacional de Poesia. Deus me proteja.

Chaves, 8 de Setembro de 1976 —Exausto. Em Portugal, a glória dura um dia, quando muito. Mas chega e sobra.

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POETA

INDEPENDENTECoimbra, 28 de Outubro de 1976 —Não compreendeu a

minha lógica. Paciência. Como os demais, queria apenas utilizar o poeta. Mas isso é que não. Se numa tirania ele é forçado a combater, numa democracia não é obrigado a aplaudir. No primeiro caso, asfixia num ambiente social anómalo, e o menos que se lhe pode pedir é que estrebuche; no segundo, respira num clima normal, e só lhe resta fruí-lo ao serviço da sua vocação criadora. Mal vai a democracia que precisa de utilizar os artistas como cabeças de turco. Deve, sim, é proporcionar-lhes todas as condições de livre e descomprometida expansão. O que não é um favor, mas um privilégio que a razão reconhece a qualquer homem.

Quando as instituições funcionam e a lei impera, o poeta só tem uma servidão: ser o solista autónomo da orquestra autónoma do povo...

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O POETA

DESESPERADOCoimbra, 15 de Maio de 1977 —Está visto: vou acabar mesmo

assim, desesperado. Sempre cuidei que um dia esta angústia tivesse um lenitivo qualquer, mas enganei-me. Pelo contrário. À medida que o tempo passa, mais agónicas são as horas. A saúde piora, a pátria desintegra-se, a solidão aumenta. O que, de resto, era de esperar. Um corpo doente desde criança, dava poucas garantias de uma velhice escorreita; uma pátria repartida pelo mundo, meio século a caminhar obstinadamente ao arrepio da clarividência, estava necessariamente condenada à desagregação; quanto ao isolamento, não há facto que se compadeça de uma timidez existencial cada vez mais arisca. O poeta é um trambolho social. Nem Platão o queria na República dele. Um livro de versos fecha-se quando nos enfastia ou atormenta. Mas o sujeito que o escreveu? A pessoa concreta, singular, insólita, estranha mesmo quando o não quer ser, irredutível a um denominador comum? Que fazer dela? Ignorá-la, é impossível; suprimi-la, também. O certo é que tudo se conjugou para que eu chegasse ao fim da existência nesta desolação humana. E o mais trágico é que fui sempre uma criatura de esperança. Confiei na natureza, confiei na sociedade, confiei nos amigos. Vivi a vida inteira à espera de milagres que nunca aconteceram. E vejo agora, numa lucidez cruciante, que já não podem acontecer.

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O MEDO E A

INTELIGÊNCIA

Coimbra, 2 de Junho de 1977 —Passou o medo. O medo que nestes últimos tempos foi a própria substância da pátria rendida. Mas somos tão medíocres, que, sem ele, ficamos mais pobres. Era para nós o sucedâneo da inteligência. Quanto revolucionário por conta do seu aguilhão! Incapazes de uma atitude fria, académica, diante das ideias, quanto mais as tememos, mais as aplaudimos, na manhosa convicção de que nos será fácil iludir qualquer rebate de consciência com o exorcismo de um fervor

bem desempenhado. E de facto. Uma vez submetidos ao império da ideologia triunfante, é ver até onde pode ir o nosso proselitismo! Mas o perigo passa, o pânico desaparece, e eis-nos descomprometidos e abúlicos. Movia-nos apenas uma motivação exterior; e, como ela cessou, tudo nos é indiferente. O fanatismo dá lugar ao cepticismo, a opulência verbal à indigência mental. Temos a impostura tão entranhada na alma, que só a mentir parecemos homens verdadeiros.

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O PRÉMIO A.

FIDELIDADE ÀS

ORIGENS

Bruxelas, 4 de Junho de 1977 — As voltas que a vida dá, e como acaba por atar as pontas para se fechar num círculo simbólico! Quando há sessenta anos, como emigrante, desembarquei no Rio de Janeiro do porão de um navio, esperava-me no cais um sujeito desconhecido com a minha fotografia na mão, a fim de me identificar; há pouco, ao descer do avião, aconteceu coisa parecida: uma senhora, igualmente estranha, erguia à porta de saída um grande cartão onde li, entre comovido e divertido, o meu nome. O rapazinho de outrora ia comer o pão que o diabo amassou; o velho de agora vinha receber um prémio internacional. O prémio de ser fiel às origens, e de ter sempre, como os antepassados, mourejado na mesma humildade e tenacidade, de enxada na mão ou de caneta na mão.

Coimbra, 22 de Junho de 1977.

CARTA EM QUE OS SIGNATÁRIOS ANUNCIAVAM O SEU ROMPIMENTO COM A REVISTA «PRESENÇA» EM 1930

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Caros Camaradas:

Presença, que se propunha, como folha de arte e crítica, defender o direito que assiste a cada um de seguir o seu caminho, começou a contradizer-se.

A força dos que, dentro dela, nesse sentido trabalham, vai sendo aproveitada, a pouco e pouco, para marcar um caminho padrão.

Aclamando a liberdade em arte e, consequentemente, o individualismo na criação artística, individualismo que a nós se impõe como o que há de mais verdadeiro no modernismo, e acima de qualquer lugar que lhe possa caber em mais definições e interpretações, Presença aponta-nos, confiante, a perspectiva dum tipo único de liberdade.

Ora esta perspectiva é o acenar duma comodidade que, irremediavelmente, implicará desanimo e renúncia por aquilo que se desdobra simultaneamente para melhor atrair e repetir, e dar a própria noção de Eternidade...

Parecendo actual e contínua, como exige a correspondência a uma superior inquietação, Presença deixa envelhecer o título, não vê a queda próxima no arcaísmo estático das escolas, e não sente o ambiente mole do ar viciado pelas insofismáveis flores- -consideração de adepto para adepto.

Presença concebe mestres e discípulos com aquela interpretação convencional em que os mestres fazem lições para os que reputam alunos, — que, aliás, podem viver sem eles; o que não acontece com o público, — e vão-se classificando com mais, menos, dez, quinze valores, e raros vão aos vinte; e nunca aparecerá nenhum a quem dêem trinta, porque a bitola só tem vinte valores e deve levar-se em conta a velha prática do mestre, etc., etc...

Ora nós queremos que se possa reparar no que parece grande e no que parece pequeno; mas isto é impossível com medidas hirtas e aferidas.

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Se, na verdade, a tendência natural da multidão é criar dogma, por que não grita a falsidade do dogma que lhe atribuem, todo aquele que se propõe, ser sincero?

A crítica que tem sido feita na Presença, à- primeira vista, aparenta estar de acordo connosco.

Mas, de facto, não.

A crítica sofre, sem remédio, as condenações peculiares a cada crítico. Este, fatalmente, nunca se poderá esquecer de si e do que lhe convém, e nunca evitará que tudo quanto passe através dele se ressinta da sua peculiar formação.

Nós encontramos na crítica da Presença os elementos necessários para justificar certa exclusividade imperativa.

Amigos:

Como vós, temos repulsa por urna vida de espírito que aparece, suavemente, a pedir aquela vocação, não anterior ao berço, mas talhada nele, e aperfeiçoada à custa de trabalhos e canseiras pelas bibliotecas além, — vocação mais tarde rematada na presidência duma academia ou na filiação garantida em qualquer sociedade de letras e belas artes.

Mas isto não é gritar: — salve-se quem puder!...

Aqui não se trata dum naufrágio.: trata-se duma barca que não vai com os nossos rumos nem para o Norte de cada um...

Por isso, saímos dela; aliviada dos nossos destinos, talvez possa chegar melhor..

E à aventura, sem rei nem roque, pelo mundo de todas as latitudes e longitudes, cá vão os vossos amigos

Adolfo Rocha

Edmundo de Bettencourt Branquinho

da Fonseca.

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O RETORNO DE

UM LIVRO

«EXILADO»

Depois de muitos anos de desterro, regressam novamente ao torrão natal os heróis deste atribulado livro. Numa época em que tantos portugueses de carne e osso emigraram por fome de pão, exilaram-se eles, lusitanos de papel e tinta, por falta de liberdade. Enfarpelados num duro surrobeco de embarcadiços, lá se foram afoitamente em demanda do Brasil, o seio sempre acolhedor das nossas aflições. E ali viveram, generosamente acarinhados, assistidos de longe pela ternura correctiva do autor. Voltam agora ao berço, roídos de saudades. E não é sem apreensão que os vejo pisar, já menos toscos de aparência, o amado chão da origem. É que muita água correu sob a ponte desde que se ausentaram. Quatro décadas de opressão desfiguraram completamente a paisagem do país. A humana e a outra. Velhos desamparados, adultos desiludidos, jovens revoltados — num palco de desolação. Almas amarfanhadas e terras em pousio. Que alento poderá receber dum ambiente assim uma esperança de torna-viagem? Mas a pátria é um íman, mesmo quando a universalidade do homem, como neste preciso momento, sai finalmente dos tacanhos limites do planeta. Poucos resistem à sua atracção ao verem-se longe dela, seja qual for a órbita em que se movam. Até os seus filhos de ficção. Por mais fortuna que tenham pelo mundo a cabo, é com o ninho onde nasceram que sonham noite e día. É que só nele se exprimem correctamente, estão certos

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nos gestos, são realmente quem são. De maneira que não me atrevi a contrariar a vinda das minhas pobres criaturas, como a prudência talvez aconselhasse. Pelo contrário: favoreci-a. Pode ser que o exemplo seja seguido, e o êxodo, que empobreceu a nação, comece a fazer-se em sentido inverso, e as nossas tristezas e pobrezas mudem de fisionomia. Portugal necessita urgentemente de ser repovoado.

S. Martinho de Anta, Natal de 1968

Miguel Torga Prefácio à quarta edição de Contos da Montanha

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O CAVAQUINHO E

A CONSCIÊNCIA

TRANQUILAQuando fiz o exame da quarta classe e fiquei distinto, meu pai,

um pobre cavador sensível, chorou de alegria e comprou-me um cavaquinho em Vila Real, na Bazar dos Três Vinténs.

Foi a primeira prenda que recebi, mas, apesar de merecida, deixou-me tristes recordações. Tanto dedilhei na zanguizarra, que lhe rebentei as cordas. E, já desanimado de arranjar outras, lembrei-me de recorrer ao Xaronda, dono de uma guitarra a valer com restos de bordões que por lá tivesse poderia eu refazer a minha lira. Mas o homem não gostava de crianças. E, farto de ser importunado, numa hora de impaciência, tirou-me a viola das mãos e escaqueirou-a contra uma parede.

Decorridos cinquenta anos de sucessivas ilusões desfeitas, fui surpreendido pela notícia de que me queriam oferecer um novo bandolim. Pedi vinte e quatro horas para responder se o aceitava ou não. Desejava meditar algum tempo, a ver se poderia receber a prenda de consciência tranquila. E cheguei à conclusão que sim, que nenhuma razão válida me impedia de ter esse gosto. O exame de agora constara também de toda a matéria dada, o juri puxara igualmente pelos examinandos, o prémio não fora solicitado, e meu pai havia de ficar contente lá no outro mundo ao saber que o filho ganhara o galardão.

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Assim, apoiado na lógica e no sentimento, meti-me a caminho. E aqui estou, nesta franca simplicidade, a contar a minha pequena história real que se tornou simbólica, a agradecer a vossa generosidade, e a pedir aos deuses que não apareça nenhum Xaronda, e me quebre o cavaquinho.»

Palavras de Miguel Torga, aquando lhe foi entregue o Prémio «Diário de Notícias» — 19 - Abril – 19

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GLÓRIA E RISCOS

DO POETA

Minhas Senhoras e meus Senhores:

A poesia está de festa. Não porque a vemos neste momento celebrada na pessoa de um poeta qualquer, mas porque uma das tonalidades da sua voz foi finalmente ouvida e reconhecida num conclave onde até hoje nenhum Espírito Santo a fizera descer. É o português uma velhíssima e nobre língua latina espalhada pelos cinco continentes. Nela cantaram e cantam grandes vultos inspirados, de Camões a Fernando Pessoa, de Bernardim Ribeiro a Teixeira de Pascoaes. Capaz de dar guarida às mais desabusadas fúrias épicas e às mais discretas confidências líricas, dúctil e colorida em todos os paralelos geográficos que nas suas andanças visitou, poucas a igualam nos fecundos dons proteicos, na sua barroca plasticidade. Mas a Europa culta conhece-a mal, e a lira temperada nos confins ibéricos «onde a terra se acaba e o mar começa», embora com todas as cordas a vibrar de extremo ocidente a extremo oriente, tem sofrido, séculos a fio, a injusta condenação de se ver privada de participar no polifónico coro das nações, e de emprestar à orquestração universal o inesperado concurso de uma vivida e natural simpatia cósmica. Felizmente que o encanto se quebrou por obra e graça do vosso arbítrio. Seja essa a precária virtude dos meus versos: contribuir, na sua exacta medida, para que a singularidade expressiva de um povo, simultaneamente loquaz e sucindo, urdidor de romanceiros e sintetízador de rifões, possa de ora avante patentear à curiosidade cosmopolita toda a sua riqueza e originalidade. É mais um benefício que ficamos a dever às bienais

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de Knocke e ao seu clarividente fundador. Arredondar o mundo da poesia — como Fernão de Magalhães, um lusitano sem fronteiras, fez ao mundo físico —, é dar-lhe a total dimensão que ele deve ter na mais dilatada aspiração da sensibilidade humana.

Hora de regozijo, pois para todos nós, servidores de Orfeu. Mas hora igualmente amarga, se a meditarmos a outra luz menos apaixonada. Se a projectarmos para além desta grata circunstância concreta em que às letras da minha pátria toca o maior quinhão. Fora de tais limites, já o vinho com que nos brindamos tem menos doçura. A negra realidade do que é sobrepõe-se à clara irrealidade do que parece, e um pertinaz mal-estar esmaece a passageira euforia do nosso mútuo encontro.

Bem sabemos que no longo caminho da História muitas vezes a poesia foi coroada de rosas. Na Grécia de Péricles, na Roma de Augusto, nas cortes provençais, na Florência dos Médicis, assim sucedeu. Mas coroada pela tácita confluência de uma admiração espontânea e generalizada, e não pelo expresso voto dos seus obreiros, feitos advogados em causa própria, como é o nosso caso. Uma assembleia de poetas a premiar um dos seus pares tir-;:o significará que a poesia, longe de se mirar no límpido espelho da sua glória, se vai esquivando da melhor maneira que pode ao doloroso reconhecimento da sua imagem diminuída? Não serão tão fraternos galardões partilhados, mais que expansivas manifestações de efectivo alento agoirentos sinais de retractivo desalento? Por muito que nos doa, tais simulacros de sucesso, permutados em circuito fechado, disfarçam mal a evidência de uma crise de identidade que nenhuma retórica consegue exorcisar.

Já lá vão anos, numa mensagem enviada a um congresso de poetas, realizado perto da Via Apia, aludi às catacumbas de resistência onde a poesia, num reflexo de integridade ofendida, teria e recolher para preservar o seu milagre sempre renovado de criação. Gritava então do fundo de um poço de angústia, na incerteza de encontrar ressonância nos meus companheiros na crença e na desgraça. Era no apogeu das triunfantes ideologias de

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massas em que ser poeta inconformado valia por um atestado civil de maldição. A presença de qualquer de nós no seio da sociedade, correspondia, no critério das ditaduras vigentes, à presença aberrante de um tumor maligno nas entranhas de um corpo homogéneo. E enchíamos os cárceres como os demais cidadãos que se sabiam e queriam diferentes e livres. Mas essa violência estava na lógica das coisas. Ao mesmo tempo incómoda e sedutora, a poesia foi sempre um pesadelo e uma fascinação para os poderosos. Em todas as épocas os césares pretenderam simplesmente aniquilá-la ou, mais argutamente, utilizá-la, até ao ponto de usurpar-lhe os méritos. Confusamente conscientes de que para cada verso existe um eco, que o verbo se faz carne em cada poema, que onde esteja um poeta e haja quem saiba ouvi-lo gera uma corrente de comunicação a partir da qual já nenhuma inquietação se deixa iludir de boa fé, nada mais natural do que o desejo de mobilizar essa força em proveito próprio, arremedando-lhe os processos encantatórios ou prestigiando os vates oficiais, promovidos a príncipes da rima. E foi, não a pensar neles, nesses olímpicos rojados aos pés do poder, mas de olhos postos no heroísmo de António Machado e no martírio de Lorca, meus vizinhos e contemporâneos, que toquei a reunir. Mal imaginava eu que não tardaria muito estaríamos diante de nova calamidade: a praga mefítica do poeta refugiado nas suas qualidades menores, a cantar de ouvido hinos que deviam irromper das funduras da alma, a iludir o que não quer revelar, ou a encobrir com palavras de superfície a debilidade do estro. Furtando-se à tutela dos totalitarismos expressos, mas envergonhado da sua condição e a render-se com armas e bagagens a padrões que nem pelo facto de serem mais subtis deixam de ser menos t irânicos, não desl izará irremediavelmente a poesia para os abismos de um totalitarismo implícito? Solidário mas autónomo, o poeta é um rebelde que sabe que a poesia apenas subverte porque transfigura, e que será esse sempre o seu vanguardismo. A cantar ao sabor da moda, um poeta vestido de bardo não é menos trágico do que um poeta ataviado de fâmulo.

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É nesta encruzilhada de perguntas e dúvidas que radicam as minhas apreensões, agravadas dia a dia perante a evidência do isolamento progressivo em que no íntimo vivemos todos. Os que resistiram à tentação e os que se deixaram tentar. Os que persistem em ser descomprometidos apóstolos da liberdade; os que cederam à comodidade de pôr a poesia ao serviço e causas que lhe são alheias; e ainda os que, perplexos, à míngua de um ponto de aplicação, a escamoteiam em jogos herméticos e ambíguos, onde ela se perde como a melhor água numa esponja de areia. Uns por razões de fora, outros por razões de dentro, outros por incidência de ambas, todos vivemos exilados dentro de nós, mesmo quando assim conviventes, a repartir irmamente, num acto compensatório, os louros sagrados do Parnaso. Porque não vale a pena encobrir a verdade. Temos de o confessar lealmente: embora tais festões constituam um mútuo estímulo e um lenitivo, murcha-lhes o viço não sei que sombra de solidão. Talvez a certeza melancólica de que apenas nos dariam inteira alegria na hora em que conseguíssemos merecê-los e recebê-los das mãos rendidas e limpas daqueles que connosco comungassem na convicção de que o poeta, na transparência da poesia, só não trai o semelhante quando não se trai a si próprio.

Miguel Torga

Discurso que Miguel Torga pronunciou, na Bélgica, onde lhe foi

entregue o PRÉMIO INTERNACIONAL DE POESIA — 6 de

Junho de 1977

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ESCRITORES E

POLÍTICACoimbra, 15 de Outubro de 1978 Há tempos, mima conversa

que tive com Gunther Grass, veio à baila o facto cada vez mais notório da presença activa dos intelectuais nos palcos da política. Ambos intervenientes nos assuntos sociais dos respectivos países, fizemos um rápido exame de consciência quanto à legitimidade, pureza e consequências dessa intervenção. Retomo hoje, na intimidade destas páginas, acicatado por mil razões, aquela meditação interrompida, mais seguro de macerar do que acalmar o espírito. Sei bem que só me desassossego quando pergunto até que ponto todos os que subimos às tribunas cívicas estaremos de boa fé será mesmo possível numa gente que em muitos casos faz política com a inconsequência com que faz poemas.

Sabe-se que a política não é uma arte, nem mesmo uma ciência... Se é certo que Maquiavel pensou verdadeiramente política, a pensar sempre no império inexorável das circunstâncias, já outro tanto não aconteceu com Antero, a idear um arquétipo social inscrito na eternidade. Daí o possível equívoco da nossa actuação., pois que mais não fazemos quase sempre do que misturar absurdamente estética com ideologia, urdiendo a indefinição de uma com a indefinição da outra, sem cuidar dos lamentáveis reflexos de mimetismo que porventura possamos provocar na preguiça mental do próximo.

Evidentemente que é grande a tentação de subir a um estrade público. Se um poeta, maior ou menor, participa num comício, o facto de ele ser, ou parecer, um intelectual, reveste-o de urna dignidade superlativa aos olhos da assistência. E é-lhe fácil vender gato por lebre, exaltar doutrinas que não está sequer habilitado a

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criticar, escamoteando essa incompetência com um reforço de ênfase das suas atitudes. Um puro logro, por tanto.

...O fenómeno dos intelectuais activistas é caracterizadamente romântico. Não é por acaso que encontra em Rousseau o seu paradigma, ainda hoje vigente, na medida em que nele se conjugam, nem sempre de maneira feliz, a exacerbada consciência de si próprio com a afectação exibicionista de urna generosa preocupação social. O egotismo pode vestir-se de muitas roupagens... Hoje o intelectual não pode continuar a fingir que a política é ornamento seu, e ele ornamento da política. Por isso, se quer fugir à insinceridade, tem de saber que raramente se cruzam no mesmo indivíduo um criador de beleza e um estadista.

...Nada há de socialmente mais discutível do que a aplicação a uma comunidade do estrito espírito de sistema. E é lamentável que personalidades, que se querem particularmente responsáveis no mundo dos valores, aceitem de ânimo leve tal eventualidade, ingenuamente convencidos de que assim ingressam gloriosamente na falange dos fundadores do futuro. Se é dado ao homem o dom de reflectir, afirmando a liberdade por actos autónomos de inteligência, estranho é que no campo da coisa política, que visa o bem de todos, seja tanta vez o intelectual a trair a nobreza do intelecto, pondo o preconceito adiante de conceito, e dando ainda por cima verosimilhança conceptual aos seus apressados pressupostos...

Alguém que tome para si o nome de intelectual é quase sempre um vaidoso, e, portanto, o mais que teme é o ridículo e o anonimato. Preocupado com a sua reputação, escravo de um tempo mítico, a viver no pavor de ser réu diante dos vindoiros, começa por não ter o desassombro das próprias opiniões, e, de concessão em concessão, acaba por nem opinião ter. É um estereótipo, apenas. Um boneco. Articula-se consoante os ventos da moda, justo entre os justos, companheiro do mesmo medo...

A necessidade que têm de se desmarcar não é a afirmação de uma irredutibilidade medular, mas um desejo irreprimível de estar

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na berlinda. Por isso, mal compreendem a voz efectivamente rebelde de certos inspirados solitários, que, embora preguem aparentemente no deserto, são os únicos que deixam testemunhos em carne viva no corpo dorido do tempo. Penso em Soljenitsine. Penso nessas figuras exemplares, contestatárias, viris, intrépidas, que são trovões no céu do conformismo. Penso naqueles que seguem o seu andamento natural e não temem jogar no mau cavalo. Penso em quantas almas penadas agonizam a lançar o seu grito desirmanado de coragem e de escândalo, que tão mal soa nos ouvidos disciplinados. Penso em todos os que não encontram paz entre os seus pares, remorsos vivos da nossa debilidade. Não a debilidade de não sermos como eles, mas a triste miséria de não sermos nós próprios.

(Publicado em «Cadernos de Literatura», Coimbra, 1978, N.° 1 —

Dezembro)

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Último poema de

Miguel Torga:

DESPEDIDA DA

VIDACoimbra, 10 de Dezembro de 1993.

Miguel Torga, escreveu o último poema como despedida da sua vida para os seus amigos e leitores, no Diário, XVI, p.201.

O poema intitula-se:

«Requiem por Mim»

Aproxima-se o fim.

E tenho pena de acabar assim.

Em vez de natureza consumada.

Ruína humana.

Inválido do corpo

E tolhido da alma.

Morto em todos os órgãos e sentidos.

Longo foi o caminho e desmedidos

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Os sonhos que nele tive.

Mas ninguém vive

Contra as leis do destino.

E o destino não quis

Que eu me cumprisse como porfiei,

E caísse de pé, num desafio.

Rio feliz a ir de encontro ao mar

Desaguar,

E, em largo oceano, eternizar

O seu esplendor torrencial de rio.

«Sem tempo e sem forças para ir mais longe na caminhada», Miguel Torga morreu no dia 17 de Janeiro de 1995. Tinha 87 anos e continuava desajustado, desencantado, solitário na sua intimidade inviolável mas adversário de uma sociedade de solidões.

Com ele morreu, como disse Eduardo Lourenço, «o último grande representante de uma poética criadora, alheia à que preside, desde há meio século, a era da suspeita literária (…) Para ele, a literatura é a existência sublimada, não envenenada».

O poeta regressou definitivamente a S. Martinho de Anta, onde foi enterrado. Outros dias virão «cheios de sol, de flores e de frutos».

Lisboa, Maio de 1978Lisboa, Março de 2013 (Edição revista e Ebook)

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INDICE

Prólogo - 4

Introdução - 15

Circunstância física - 17

Circunstância sócio – política - 20

Circunstância geracional - 28

Geração histórica e sensibilidade vital - 30

Sensibilidade estética da «Presença» - 32

«Presencistas» em debate com Ortega y Gasset - 37

Dados na biografia do poeta - 43

Dados Psico-sociais da Biografica de Torga - 46

Profissão e vocação: médico e poeta. A caça - 51

Poeta independente - 59

Poeta sincero - 67

Poeta do sentimento trágico da vida - 78

Casticismo do poeta - 91

Poeta desesperado e religioso - 104

A pátria ibérica do poeta - 127

Torga, poeta da «Portuguesía» - 155

Epílogo - 187

Antologia de textos auto-biográficos de Torga - 193

Infância e educação religiosa - 194

O Pai à procura da profissão - 196

294

O Seminário - 199

FÉRIAS NA ALDEIA - 204

A RECUSA DE VOLTAR AO SEMINÁRIO - 207

A CHEGADA AO BRASIL - 209

O TRABALHO NO BRASIL E UMA TIA CIUMENTA - 210

A TIA E O ISOLAMENTO NO BRASIL - 213

A RELIGIÃO ESQUECIDA - 215

AS PALAVRAS DO TIO - 217

O ADEUS AO BRASIL - 219

ENCONTRO COM MEUS PAIS DEPOIS DE CINCO ANOS

NO BRASIL - 221

ALUNO DE MEDICINA — COLABORADOR DE

VANGUARDA (PRESENÇA) - 224

MÉDICO - 227

MALESTAR NA TERRA NATAL - 228

UMA MISSA DE ACÇÃO DE GRAÇAS - 230

INCOMPATIBILIDADES FAMILIARES - 232

SAÍDA DA ALDEIA - 235

FUNDADOR DE REVISTAS E O DESEJO DE UMA ARTE

VIVA - 237

A SUA JUVENTUDE E O ESPELHO DO ESCRITOR - 240

O SOFRIMENTO CRIADOR DO ESCRITOR - 242

O LIVRO APREENDIDO E O POETA PRESO - 244

TEMORES NA PRISÃO - 247

NA SEDE DA PIDE - 249

295

NO ALJUBE - 252

A SAIDA DA PRISÃO - 256

GOLPE MILITAR DO 25 DE ABRIL - 262

PIDE: PUDOR DAS VÍTIMAS - 263

ESPECTADOR CRITICO DO 1.º DE MAIO - 264

LITERATURA E REPRESSÃO - 265

O REBELDE E REVOLUÇÃO - 266

AGRESSIVIDADE DA LITERATURA PORTUGUESA - 267

TORGA, O RELIGIOSO E O CATOLICISMO - 268

O POETA E A POLÍTICA - 269

TORGA E O SEU PROCESSO NA PIDE - 270

PRISIONEIRO DA PÁTRIA - 271

O PORTUGUÊS PERANTE OS ESTRANGEIROS - 272

O FIM DA AVENTURA - 273

A GLORIFICAÇÃO DO POETA - 274

POETA INDEPENDENTE - 275

O POETA DESESPERADO - 276

O MEDO E A INTELIGÊNCIA - 277

O PRÉMIO A. FIDELIDADE ÀS ORIGENS - 278

O RETORNO DE UM LIVRO «EXILADO» - 281

O CAVAQUINHO E A CONSCIÊNCIA TRANQUILA - 283

GLÓRIA E RISCOS DO POETA - 285

ESCRITORES E POLÍTICA - 289

Último poema de Miguel Torga: DESPEDIDA DA VIDA - 292

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297

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Ebook versão digital: Janeiro 2013

Agradecimento especial a Marco Moura pelo design da Capa:

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