O Método Etnográfico Em Pesquisas Na Área Da

Embed Size (px)

DESCRIPTION

A autora pretende com este artigo !refletir sobre as possíveis contribuições teórico-metodológicas das ciênciassociais para as pesquisas na área da saúde, dada a crescente incorporação de metodologias qualitativas, em especial do método etnográfico, nessas pesquisas! .

Citation preview

  • ResumoO artigo tem como objetivo refletir sobre as possveis contribuies terico-metodolgicas das cincias sociais para as pesquisas na rea da sade, dada a crescente incorporao de metodologias qualita-tivas, em especial do mtodo etnogrfico, nessas pesquisas. O ponto de partida dessa reflexo so trs pressupostos terico-conceituais fundamentais consolidao do mtodo etnogrfico em sua origem, concomitantemente prpria afirmao da cincia antropolgica, entendendo que na compreenso do que seja a prtica etnogrfica, tambm se compre-enda a importncia da anlise antropolgica na explicao dos diferentes fenmenos socioculturais, dentre eles a sade, o adoecimento e as estratgias de tratamento ou de cura. Esses pressupostos et-nocentrismo, relativismo e cultura marcaram de tal forma a pesquisa e a produo de conhecimento antropolgicos, que mtodo e teoria se tornaram in-dissociveis. Pensar na possibilidade de reiterao e reposio constante dessa indissociabilidade, em um movimento dialtico da experincia concreta com as teorias apreendidas, pode ser uma das prin-cipais contribuies das cincias sociais, em parti-cular da antropologia, para as pesquisas na rea da sade. A ausncia dessa reflexo parece colocar em risco o compromisso dessa possvel interface com o rigor terico-metodolgico na produo e divul-gao do conhecimento cientfico, pela reduo e simplificao do mtodo tcnica. Por outro lado, essa mesma indissociabilidade leva-nos a indagar sobre as possveis contribuies da incorporao do mtodo etnogrfico em pesquisas na rea da sade ao conhecimento antropolgico.Palavras-chave: Antropologia; Cultura; Pesquisa Qualitativa; Metodologia.

    Eunice NakamuraDoutora em Antropologia. Professora Adjunta I do Departamento de Sade, Educao e Sociedade UNIFESP. Campus Baixada Santista.Endereo: Rua Governador Pedro de Toledo, 3, ap. 51, CEP 11045-551, Boqueiro, Santos, SP, Brasil.E-mail: [email protected]

    1 Texto elaborado a partir de apresentao no II Encontro Paulista de Cincias Sociais e Humanas em Sade, junho de 2009.

    O Mtodo Etnogrfico em Pesquisas na rea da Sade: uma reflexo antropolgica1

    The Ethnographic Method in Health Researches: an anthropological thinking

    Sade Soc. So Paulo, v.20, n.1, p.95-103, 2011 95

  • AbstractThe article aims to reflect on the possible theoretical and methodological contributions of social science research in health, given the increasing incorpo-ration of qualitative methodologies, particularly ethnography, this research. The starting point for this discussion are three theoretical and concep-tual keys to the consolidation of the ethnographic method in its origin, in conjunction with the very assertion of anthropological science, assuming that by understanding what is the ethnographic practice, we also understand the importance of the anthropological explanation of the different socio-cultural phenomena, among them health, illness and strategies for treatment or cure. These assumptions - ethnocentrism, relativism and culture - marked so the research and production of anthropological knowledge, theory and method that have become inseparable. Thinking of repetition and constant replenishment of inseparability in a dialectical movement of concrete experience with learned theories can be a major strength of the social sci-ences, particularly anthropology, for research in health. The absence of this reflection seems to risk the compromise that can interface with the theoreti-cal and methodological rigor in the production and dissemination of scientific knowledge, the reduction and simplification of the technique. On the other hand, this same inseparability leads us to inquire about possible contributions of the incorporation of ethnographic method in research in the health of anthropological knowledge.Keywords: Anthropology; Culture; Qualitative Re-search; Methodology.

    IntroduoA crescente incorporao em pesquisas na rea da sade de mtodos qualitativos, no geral originados nas Cincias Sociais e Humanas, coloca aos cientis-tas sociais que atuam na interface com a sade, em especial na formao de profissionais, tanto no nvel de graduao como na ps-graduao, a necessidade de uma postura crtica em dois planos: quanto observao de certos pressupostos na utilizao de mtodos qualitativos e na produo do conhecimen-to cientfico mediante a utilizao de referencial terico-conceitual apropriado.

    Se, por um lado, o processo de disseminao dos mtodos qualitativos aponta para uma necessi-dade de a rea da sade buscar novos referenciais terico-metodolgicos que deem conta de seus objetos, por outro lado, isso nos leva a indagar se os pesquisadores tm se preocupado de fato com os pressupostos terico-conceituais que funda-mentam tais mtodos, e no simplesmente com a aplicao de tcnicas (Nakamura, 2009). A origem dessa indagao baseia-se na compreenso de que metodologia o conhecimento crtico dos limites e das possibilidades do processo cientfico, em que a questo tcnica encontra-se vinculada discusso terica (Martins, 2004), ou seja, implica a produo de conhecimento.

    Ao refletir sobre a produo do conhecimento cientfico no mbito dos mtodos e tcnicas qua-litativos de pesquisa, Martins (2004) ressalta que fazer cincia implica no apenas o compromisso do pesquisador com alguns pressupostos a serem considerados no processo cientfico, mas fundamen-talmente a expresso de uma qualidade essencial sua utilizao. Dentre os pressupostos apontados pela autora, referidos mais especificamente so-ciologia, cuja fronteira com outras disciplinas das cincias sociais, no entanto, na maioria das vezes difusa, destaca-se a anlise intensiva e em profun-didade de microprocessos, a flexibilidade quanto s tcnicas de coleta de dados e a heterodoxia na anlise dos dados. Soma-se a eles a qualidade men-cionada, a capacidade integrativa e analtica do pesquisador, desenvolvida a partir de sua capaci-dade criadora e intuitiva. Trata-se, nesse caso, da capacidade intuitiva resultante da formao terica

    96 Sade Soc. So Paulo, v.20, n.1, p.95-103, 2011

  • e dos exerccios prticos do pesquisador, ou seja, de sua competncia terica e metodolgica (Martins, 2004, p. 292-293).

    Na antropologia, qualidade semelhante do pes-quisador e igualmente essencial apresentada por Oliveira (1998, p. 18) como faculdades do enten-dimento, as quais consistem na integrao entre percepo (da realidade emprica) e pensamento (terico), que conduz ao ato cognitivo propriamen-te dito, de natureza epistmica, a partir do qual se torna possvel a construo do saber.

    Em relao reflexo crtica proposta neste artigo quanto observao de certos pressupostos terico-conceituais e efetiva produo do conhe-cimento, toma-se como caso exemplar o mtodo etnogrfico, na medida em que sua origem no pode ser dissociada da prpria origem da cincia antropo-lgica e que, portanto, na sua escolha como mtodo para as pesquisas na rea da sade, dois conceitos fundamentais constituio da antropologia como cincia devem ser considerados: etnocentrismo e cultura (Nakamura, 2009), alm de um terceiro a ser destacado nesse processo, o relativismo, indis-socivel, em sua origem Boasiana, de um conceito de cultura.

    Da a importncia de que, ao pretender utilizar o mtodo etnogrfico, os pesquisadores sejam convidados a conhecer um pouco da histria da antropologia, dada a relao existente entre etno-grafia, etnologia e antropologia, como trs etapas ou trs momentos de uma mesma pesquisa, sendo a preferncia por uma delas apenas a expresso pre-dominantemente voltada para um tipo de pesquisa, que no poderia nunca ser exclusivo dos dois outros (Lvi-Strauss, 1975, p. 396). Ressalta-se, em especial, a relao estreita entre antropologia e etnografia, desde suas origens, e a correspondncia entre seus pressupostos tericos, os quais tm garantido aos pesquisadores a manifestao e reposio constante de sua capacidade criadora e intuitiva (Martins, 2004) ou de atos cognitivos (Oliveira, 1998), to essenciais produo do conhecimento sobre os fenmenos socioculturais, dentre eles a sade, a doena, as formas de tratamento e de cuidado.

    Ao destacar alguns pressupostos quanto utili-zao de mtodos e tcnicas qualitativas, chama-se a ateno de pesquisadores, tanto os da rea da sade

    como os das cincias sociais, para possveis riscos da incorporao e banalizao desses mtodos e tc-nicas em pesquisas na rea da sade, pela reduo da complexidade que sua utilizao exige.

    Esse convite reflexo retoma o debate surgido na dcada de 1980, apontado por Cardoso (1988), em relao ao pragmatismo atribudo s pesquisas qua-litativas, ao mesmo tempo em que se desqualificou como ocioso o debate sobre os compromissos teri-cos que cada mtodo supe (Cardoso, 1988, p. 95). Os riscos de tal pragmatismo, especificamente em relao ao mtodo etnogrfico, so aqui retomados como objeto de reflexo antropolgica, numa tenta-tiva de requalificar o debate terico-metodolgico em termos da reiterao e reposio constante do movimento dialtico da experincia de campo com as teorias apreendidas, uma possibilidade tambm a novas revelaes tericas.

    Pressupostos Terico-conceituais: a constituio do mtodo etnogrfico e da antropologia

    Em antropologia ou, de qualquer forma, em antropologia social, o que os praticantes fazem etnografia. E justamente ao compreender o que a etnografia, ou, mais exatamente, o que a prtica da etnografia, que se pode comear a entender o que representa a anlise antropo-lgica como forma de conhecimento (Geertz, 1989, p. 15).

    Considerando-se a relao estreita entre esses momentos da pesquisa, podemos afirmar tambm que ao conhecer mais sobre a antropologia, poss-vel compreender melhor o que o mtodo etnogrfi-co, como se originou, quais os seus princpios.

    A relao entre esses dois momentos da pesquisa possibilita-nos vislumbrar o processo de construo do conhecimento cientfico, em que a etnografia corresponderia aos primeiros estgios da pesquisa, ao trabalho de campo orientado pela observao e descrio aprofundada dos fenmenos, complemen-tado pela etapa de sntese consolidada na e pela antropologia (Lvi-Strauss, 1975).

    Lvi-Strauss (1993) atribui a origem da antro-pologia social a Marcel Mauss, que no final da

    Sade Soc. So Paulo, v.20, n.1, p.95-103, 2011 97

  • dcada de 1930, no sculo XX, teria introduzido o termo para ressaltar, nos estudos sobre as diferentes sociedades, a importncia da relao entre as vrias dimenses da vida social e cultural que as consti-tuem e da observao emprica dos fatos sociais como condio imprescindvel sua compreenso.

    Assim, Mauss como terico e Malinowski como experimentador foram os primeiros a compreen-der, segundo Lvi-Strauss (1993), que no suficien-te decompor e dissecar os fenmenos sociais, pois estes so vividos por homens. A vida social e cultural de uma sociedade apreendida em sua totalidade, a partir da observao de como os diferentes aspectos da vida social se expressam em situaes particu-lares, revelando valores, comportamentos, modos de vida e vises de mundo diferentes. A sntese emprica e subjetiva operada a partir das contribui-es desses autores tornou-se uma caracterstica fundamental do conhecimento antropolgico, uma garantia de que a anlise pode contemplar, ou ao menos deveria, a totalidade da vida social.

    Percebe-se na definio do que seja antropo-logia social, de acordo com Lvi-Strauss (1993), a importncia da relao entre a reflexo terica do antroplogo e a pesquisa de campo, sendo possvel afirmar que o pesquisador pode ser considerado um intrprete, o mais fiel possvel, da realidade vivida pelos homens em outras sociedades, grupos sociais ou culturas.

    Ao referir-se consolidao do pesquisador de campo profissional na primeira metade do sculo XX, o etngrafo como o melhor intrprete da vida nativa, em oposio ao viajante, ao missionrio e ao administrador, Clifford (1998) tambm ressalta a importncia da fuso da teoria geral com a pesquisa emprica, da anlise cultural com a descrio etno-grfica, embora numa perspectiva crtica acerca da formao e desintegrao da autoridade etnogr-fica na antropologia social do sculo XX (Clifford, 1998, p. 18).

    A complementaridade entre teoria e pesquisa tem sido uma preocupao recorrente na antropologia, embora no observada em seus primrdios, no scu-lo XVI. Os viajantes e informantes (administradores que vinham conhecer as colnias recm-descobertas ou missionrios que procuravam levar a f para n-dios sem alma, entre outros) traziam as impresses

    coletadas nas sociedades recm-descobertas, sendo muitas informaes filtradas pelo olhar europeu, no geral bastante preconceituoso com relao a esses outros povos.

    Na busca de um conhecimento sistematizado so-bre o ser humano, a nascente antropologia buscava compreender as diferentes sociedades em termos de uma classificao comparativa e evolutiva das sociedades humanas, a partir de critrios estabele-cidos pelo mundo europeu civilizado.

    A essa viso de mundo, contrria ideia de di-versidade das sociedades e culturas, fundamentada em valores de uma nica sociedade, denominou-se etnocentrismo, o primeiro conceito:

    A atitude mais antiga, e que se baseia indiscuti-velmente em fundamentos psicolgicos slidos (j que tende a reaparecer em cada um de ns quando nos situamos numa situao inespera-da), consiste em repudiar pura e simplesmente as formas culturais: morais, religiosas, sociais, estticas, que so as mais afastadas com as quais nos identificamos. Hbitos de selvagem, na minha terra diferente, no se deveria permitir isto etc., tantas reaes grosseiras que traduzem esse mesmo calafrio, essa mesma repulsa diante de maneiras de viver, crer ou pensar que nos so estranhas (Lvi-Strauss, 1993, p. 333).

    A lgica do etnocentrismo consiste, pois, em pensar o mundo por meio de um referencial nico, ou seja, tendo como referncia a cultura, os valores e costumes de uma sociedade em detrimento de outra, manifestando-se por meio de julgamento de valores da cultura do outro, seu modo de pensar e agir.

    O etnocentrismo que possibilitou a classificao comparativa das sociedades humanas, baseado principalmente no pensamento evolucionista, foi criticado por Franz Boas, no final do sculo XIX e primeiras dcadas do sculo XX. Boas redefiniu os fundamentos da antropologia ao considerar a hu-manidade formada por grupos ou culturas nicos e distintos em suas prticas e valores. As sociedades ocidentais, europeia e norte-americana deixaram de ser o padro de civilizao a partir do qual outras sociedades eram julgadas, sendo cada uma delas e suas culturas vistas como produto de contextos histricos particulares, expresso em um conjunto de crenas, valores e comportamentos (Greenfield,

    98 Sade Soc. So Paulo, v.20, n.1, p.95-103, 2011

  • 2001; Silverman, 2005). A essa nova viso acerca das sociedades humanas denominou-se relativismo cultural, o segundo conceito.

    A atitude crtica de Boas em relao ao pensa-mento evolucionista baseou-se na oposio siste-mtica classificao das pessoas em categorias, muito comum na postura etnocntrica, insistindo na importncia de suas particularidades. Um de seus principais desafios foi questionar o rigor cientfico do pensamento evolucionista, tarefa realizada com base em dados etnogrficos (Greenfield, 2001, p. 42-43) e por meio da elaborao terica simultnea das noes de relativismo e cultura.

    Boas ressaltou a importncia do trabalho de cam-po no estudo das sociedades primitivas, ao mesmo tempo em que redefiniu a noo de cultura, o terceiro conceito aqui apresentado, fortemente influenciado pelo conceito de cultura formulado por Tylor com-preendida como um conjunto complexo, onde se ordenam todos os conhecimentos, crenas, arte, moral, direitos, costumes e todas outras aptides ou hbitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade (Tylor, 1871 citado por Lvi-Strauss, 1975, p. 34). Uma diferena fundamental em relao a esse conceito, entretanto, deve ser apontada a partir da redefinio dos fundamentos da antropologia proposta no pensamento de Boas. Nele, cultura no sinnimo de civilizao, mas definida num sen-tido plural, enfatizando a diversidade das culturas, consideradas como contextos de comportamentos humanos apreendidos (Silverman, 2005, p. 262), de acordo, portanto, com sua perspectiva relativista.

    Essa viagem empreendida por autores clssicos da antropologia permite que se compreenda como se estabeleceu a relao entre a antropologia e o mtodo etnogrfico, concomitantemente definio de seus fundamentos terico-conceituais e metodo-lgicos, conforme anteriormente apontado.

    Os conceitos de etnocentrismo, relativismo e cul-tura, apresentados como fundamentos ao mtodo e ao conhecimento cientfico por ele produzido, sofre-ram inmeras crticas, reformulaes e adaptaes aos novos contextos de pesquisa, principalmente na perspectiva hermenutica de Geertz e na crtica autoridade etnogrfica feita pelos ps-modernos na antropologia; entretanto, na perspectiva antro-polgica permanece a ideia de que:

    [...] etnografia uma descrio densa. O que o etngrafo enfrenta, de fato a no ser quando (como deve fazer, naturalmente) est seguindo as rotinas mais automatizadas de coletar dados , uma multiplicidade de estruturas concep-tuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas s outras [referindo-se noo de cultura], que so simultaneamente estranhas, irregulares e inexplcitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar. (Geertz, 1989, p. 20).

    Desde suas origens, falar de etnografia pressu-pe considerar a cincia antropolgica e vice-versa, pois se trata o tempo todo da relao intrnseca que se estabelece entre mtodo, pressupostos terico-conceituais e produo do conhecimento, na busca de uma compreenso a respeito dos homens, a partir de suas experincias particulares.

    Ao assumir como fundamental essa relao, busca-se refletir sobre as possveis contribuies da antropologia, tambm dos antroplogos, na escolha pelo mtodo etnogrfico em pesquisas na rea da sade.

    Contribuies Terico-metodolgicas da Antropologia para as Pesquisas em SadeSade, doena, formas de tratamento e cura no so temas estranhos s pesquisas antropolgicas, pois tm sido estudados, direta ou indiretamente, por antroplogos desde o final do sculo XIX, pos-sibilitando cincia antropolgica, por meio da descrio e da anlise proporcionadas por estudos etnogrficos, acumular um vasto conhecimento acerca das diferentes experincias de sociedades e grupos sociais sobre esses fenmenos (Nakamura, 2009, p. 27).

    No geral, a maioria desses estudos no tinha como objeto especfico esses temas, mas por meio de outros, como a religio e a magia, puderam revelar aspectos importantes sobre os sistemas explicativos que integram sade, doena e cura em diferentes sociedades.

    Mais recentemente, verifica-se o aumento do in-teresse da antropologia pelos temas sade e doena,

    Sade Soc. So Paulo, v.20, n.1, p.95-103, 2011 99

  • principalmente na dcada de 1980, num movimento que poderia ser aqui denominado de penetrao das cincias sociais na sade. Destacam-se nesse processo os estudos sobre sade e doena das classes trabalhadoras ou de grupos especficos da populao; saberes e prticas populares de cura; saberes e prticas da medicina oficial; a loucura e o desvio; sexualidade; medicalizao; servios de sade; escolhas teraputicas, entre outros, segundo autores que sistematizaram a produo do conheci-mento sobre o tema (Canesqui, 1994; Carrara, 1994; Duarte, 1998).

    Na maioria desses estudos, fica evidente a utili-zao do mtodo etnogrfico vinculada (necess-ria) produo de conhecimento antropolgico, sendo o problema menos em relao aos pressupostos terico-metodolgicos e mais de ajustes necessrios em relao ao mtodo como, por exemplo, a relao entre pesquisador e pesquisados e o questionamento da autoridade do etngrafo (Cllifford, 1998; Geertz, 1989) e de escolhas tericas adequadas para dar conta dos novos objetos e contextos de pesquisa, no geral pouco comuns disciplina.

    Por outro lado, num outro movimento, o de in-corporao (pela sade) do mtodo etnogrfico, verifica-se um aumento considervel, principalmen-te nos anos 2000, de artigos que fazem referncia ao mtodo etnogrfico.

    Numa rpida consulta na base Scielo, utilizando-se o termo etnografia, constata-se a existncia de 76 artigos publicados, dos quais 73 somente nos anos 2000. A maioria desses artigos provm da rea de cincias sociais, mais especificamente da antropologia, mas 17 esto relacionados a pesquisas da rea da sade e foram publicados em peridicos das reas de enfermagem (10), de sade coletiva (5) e de psicologia (2).

    A disseminao do mtodo etnogrfico em pesquisas dessa rea, assim como a anlise de fe-nmenos contemporneos de sade e adoecimento por antroplogos, coloca a necessidade de refletir criticamente sobre as contribuies terico-me-todolgicas do referencial antropolgico a essas pesquisas, questionando-se, tambm, em que me-dida elas tm contribudo para a renovao desse conhecimento.

    Um primeiro aspecto a ser destacado nessa refle-xo refere-se observao, como j citado, de alguns

    pressupostos inerentes ao mtodo etnogrfico: o afastamento do etnocentrismo e a relativizao. Para realizar essa tarefa, duas condies essenciais so exigidas do pesquisador: contatar os pesquisa-dos (os nativos das pesquisas em sade, usurios de servios de sade, trabalhadores ou gestores da sade, entre outros) e despir-se de seus preconcei-tos e valores para compreender os de outros. Essa ltima condio refere-se principalmente ao risco de que os conhecimentos adquiridos nas cincias biomdicas e a viso cientfica sobre sade, doena e formas de tratamento e cura se sobreponham a ou-tros sentidos que esses fenmenos possam adquirir para os nativos.

    Esses pressupostos iro definir a entrada do pesquisador em campo, sua atitude em relao aos pesquisados e coleta de informaes, na medida em que dizem respeito ao modo particular como sua interpretao dos fenmenos dever se orien-tar pelas qualidades quanto s formas de olhar e ouvir e domesticada pelo esquema conceitual da disciplina (Oliveira, 1998).

    Essa percepo particular dos fenmenos com-plementada pelo pensamento, fundamental ao ato de escrever, momento em que, segundo o mesmo autor, ocorre a articulao entre os dados do campo e a produo do texto etnogrfico, tambm baseado no sistema conceitual disponibilizado pela antropo-logia. Esse momento refere-se a um segundo aspecto necessrio reflexo.

    [...] no que tange antropologia, como procurei mostrar, esses atos esto previamente compro-metidos com o prprio horizonte da disciplina, em que olhar, ouvir e escrever esto desde sempre sintonizados com o sistema de ideias e valores que so prprios da disciplina (Oliveira, 1998, p. 32).

    Se o objetivo final da aventura antropolgica atingir o ato cognitivo capaz de conduzir ela-borao do conhecimento cientfico, pergunta-se em que medida a penetrao das cincias sociais na sade e a incorporao (pela sade) do mtodo etnogrfico tm possibilitado que esse objetivo seja alcanado.

    A reflexo sobre as possveis contribuies terico-metodolgicas da antropologia para as pesquisas em sade no se esgota, portanto, nessas

    100 Sade Soc. So Paulo, v.20, n.1, p.95-103, 2011

  • consideraes, sendo antes um convite continuida-de do debate surgido na dcada de 1980 em relao ao pragmatismo atribudo s pesquisas qualitativas, simultaneamente desqualificao do debate sobre os compromissos tericos de cada mtodo (Cardoso, 1988).

    Em relao ao mtodo etnogrfico, assumir tal pragmatismo pode tornar-se um risco pela simpli-ficao do mtodo, transformado em tcnica. Para evit-lo, urgente retomar esse debate e, nesse sen-tido, o esforo de reflexo talvez deva ocorrer menos em direo ao modo como outras reas, como a da sade, utilizam o mtodo etnogrfico e contribuem (ou no) para a produo do conhecimento antropo-lgico, do que no interior da prpria antropologia.

    As contribuies terico-metodolgicas da antropologia para as pesquisas em sade parecem estar bem caracterizadas nos pressupostos terico-conceituais do mtodo etnogrfico e na possibilidade de produo do conhecimento antropolgico, como norteadoras do rigor cientfico nas pesquisas em sade, servindo, ao mesmo tempo, como parmetro para que alguns riscos de simplificao sejam evita-dos. Outro plano de contribuies, mais pertinente s questes aqui apontadas, parece estar vinculado capacidade dos antroplogos de realizarem uma reflexo crtica no interior da prpria disciplina, revendo seus compromissos com os pressupostos terico-metodolgicos a serem observados no apenas pelos de fora.

    Alguns Desdobramentos do Exerccio da Reflexo CrticaO convite reflexo crtica sobre a interface das cincias sociais com a sade, em especial da antro-pologia e do mtodo etnogrfico, possibilitou que um pequeno passo no debate sobre os compromissos tericos do mtodo fosse dado. O avano ocorreu prin-cipalmente em funo de deslocamento da postura crtica em relao observao de certos pressupos-tos na utilizao do mtodo etnogrfico (por outros) para uma indagao (por parte dos cientistas sociais, em particular dos antroplogos) quanto ao rigor na utilizao de referenciais terico-conceituais dis-ponibilizados pela disciplina, tambm em relao produo de (novos) conhecimentos.

    Na possibilidade de consolidao dessa interfa-ce em pesquisas, concomitantemente produo do conhecimento, a reflexo crtica em relao incorporao de certos referenciais terico-meto-dolgicos originados nas cincias sociais passou a ser complementada pelo compromisso necessrio, por parte dos cientistas sociais e em especial dos antroplogos, com a anlise em relao ao seu papel na formao profissional e na divulgao do conhe-cimento cientfico.

    No processo de formao profissional, indaga-se sobre a reiterao e reposio constantes, nesse pro-cesso, da relao dialtica entre experincia de cam-po e reflexo terica, como apontada por Da Matta (1981). Nas pesquisas antropolgicas, os estudantes se movem em suas experincias de campo por meio dos referenciais terico-conceituais apreendidos na disciplina, utilizam nessas experincias os culos tericos, to fundamentais ao modo particular de olhar, ouvir e escrever sobre o mundo ob-servado. Na rea da sade, entretanto, um grande desafio aos antroplogos no processo de formao em pesquisa, em se tratando do mtodo etnogrfi-co, parece estar na garantia de que esses culos tericos modulem a observao, a percepo e a interpretao do pesquisador em todas as fases da pesquisa. Trata-se, como ressaltado anteriormente, da formao necessria para garantir a apreenso de referenciais terico-conceituais que orientem o pesquisador, evitando, assim, que tome a tcnica no lugar do mtodo. Espera-se, assim, que em estudos sobre percepes, representaes ou signi-ficados de sade, doena e cura, os referenciais tericos estejam claramente enunciados, segundo a complexidade exigida pelo mtodo etnogrfico, de modo a evitar que este seja reduzido descrio de procedimentos de um conjunto de tcnicas, como a observao ou as entrevistas em profundidade.

    Outro compromisso a ser assumido nessa in-terface, no apenas pelos antroplogos, mas pelos cientistas sociais em geral, refere-se anlise crtica acerca de seus papis na divulgao do conhecimen-to produzido, seja quando atuam como avaliadores ou quando buscam divulgar os resultados de seus estudos por meio de artigos. A questo que se apre-senta em relao a esse aspecto refere-se ao risco de adequao dos textos etnogrficos a critrios

    Sade Soc. So Paulo, v.20, n.1, p.95-103, 2011 101

  • nem sempre familiares disciplina, muitas vezes retirando deles aquilo que os qualifica, ou seja, o exerccio criativo que caracteriza a produo do conhecimento e o pensamento antropolgico: uma maneira particular de escrever (Oliveira, 1998).

    No se pretendeu esgotar aqui o debate terico-metodolgico da dcada de 1980 sobre a pesquisa qualitativa, mas retom-lo no contexto de um possvel dilogo das cincias sociais com a rea da sade, especificamente do dilogo a partir da antro-pologia, devido crescente incorporao do mtodo etnogrfico nas pesquisas da rea. A retomada desse debate coloca a necessidade de que os antroplogos, em particular aqueles que atuam na rea da sade, reiterem seu compromisso com a reflexo crtica acerca das possveis contribuies da disciplina s pesquisas nessa rea, especialmente no debate acerca dos aspectos tericos a serem considerados em relao ao mtodo, o que parece ser um debate inesgotvel na disciplina, na medida em que no movimento dialtico entre teoria e mtodo que ela se movimenta.

    O mtodo etnogrfico, aqui tomado como um exemplo do processo de incorporao de um m-todo das cincias sociais s pesquisas em sade, tambm um bom exemplo de como a reiterao e reposio constante do movimento dialtico da experincia de campo com as teorias apreendidas so fundamentais ao rigor e validade dos estudos qualitativos, fundamentados essencialmente nas relaes estabelecidas entre dados empricos e in-terpretaes tericas (Martins, 2004).

    Dada a complexidade e as implicaes das possveis contribuies terico-metodolgicas das cincias sociais para as pesquisas na rea da sade, em particular do mtodo etnogrfico, este parece ser apenas o ponto de partida para a retomada de um exerccio constante de debate.

    RefernciasCANESQUI, A. M. Notas sobre a produo acadmica de antropologia e sade na dcada de 80. In: ALVES, P. C.; MINAYO, M. C. (Orgs.). Sade e doena: um olhar antropolgico. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1994. p. 13-32.

    CARDOSO, R. C. L. Aventuras de antroplogos em campo ou como escapar das armadilhas do mtodo. In: CARDOSO, R. C. L. (Org.) A aventura antropolgica: teoria e pesquisa. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 95-105.

    CARRARA, S. Entre cientistas e bruxos: ensaio sobre os dilemas e perspectivas da anlise antropolgica da doena. In: ALVES, P. C.; MINAYO, M. C. (Orgs.). Sade e doena: um olhar antropolgico. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1994. p. 33-45.

    CLIFFORD, J. A experincia etnogrfica: antropologia e literatura no sculo XX. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998.

    DA MATTA, R. Relativizando: uma introduo antropologia social. 3. ed. Petrpolis: Vozes, 1981.

    DUARTE, L. F. D. Investigao antropolgica sobre doena, sofrimento e perturbao: uma introduo. In: DUARTE, L. F. D.; LEAL, O. F. (orgs.) Doena, sofrimento, perturbaes: perspectivas etnogrficas. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1998. p. 9-27.

    GEERTZ, C. A interpretao das culturas. Rio de Janeiro: Livros Tcnicos e Cientficos Editora, 1989.

    GREENFIELD, S. M. Nature/ Nurture and the Anthropology of Franz Boas and Margaret Mead as an agenda for revolutionary politics. Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 7, n. 16, p. 35-52, dez. 2001.

    LVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.

    LVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural Dois. 4. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993. (Biblioteca Tempo Universitrio, 45)

    MARTINS, H. H. T. S. Metodologia qualitativa de pesquisa. Educao e Pesquisa, So Paulo, v. 30, n. 2, p. 289-300, maio/ago. 2004.

    NAKAMURA, E. O lugar do mtodo etnogrfico em pesquisas sobre sade, doena e cuidado. In: NAKAMURA E.; MARTIN, D.; SANTOS, J. F. Q. (Orgs.) Antropologia para enfermagem. Barueri: Manole, 2009. p. 15-35. (Srie Enfermagem).

    102 Sade Soc. So Paulo, v.20, n.1, p.95-103, 2011

  • OLIVEIRA, R. C. O trabalho do antroplogo. Braslia: Paralelo 15; So Paulo: Editora UNESP, 1998.

    SILVERMAN, S. The Boasins and the invention of cultural anthropology. In: BARTH, F. et al. One discipline, four ways: British, German, French, and American Anthropology. Chicago, USA: The University of Chicago Press, 2005. p. 257-274.

    Recebido em: 20/09/2010Aprovado em: 04/10/2010

    Sade Soc. So Paulo, v.20, n.1, p.95-103, 2011 103