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Entrevista à sobrinha de Fernando Pessoa

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“O meu tio Fernando era a pessoa a que eu achavamais graça no mundo”

23 Novembro 2015

ESPECIAIS

Fernando Pessoa morreu há 80 anos, a 30 de novembro de1935. Manuela Nogueira tinha dez anos, mas nunca se

RitaCipriano

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esqueceu da figura do tio "muito especial" nem dasbrincadeiras de faz­de­conta.

Mimi tinha dez anos quando o tio Fernando morreu. O tio Fernando dospresentinhos, dos poemas engraçados e das moedinhas para comprarchocolates. “Foi a minha primeira morte”, lembra. Oitenta anos depois,os seus olhos, muito azuis, ainda brilham quando fala daquele tio tãoquerido, que a mimou “muito”. Um tio “muito especial”, que haveria deser motivo de romarias à casa dos pais na Lapa, para onde foi levada afamosa arca de madeira. O tio Fernando Pessoa.

Da arca já não há sinal, mas a casa de Mimi, que já não é Mimi, tem onome de Fernando Pessoa escrito por todo o lado. Nas capas dos livros eaté nas almofadas. “Deram­me estas almofadas do Fernando Pessoa”,diz Manuela Nogueira enquanto arranja espaço no sofá. Por cima,pendurado na parede, está um boneco do poeta que oferece chocolates auma criança.

— É a pequena do Come chocolates pequena, come chocolates! Não hámais metafísica no mundo senão chocolates… — diz, olhando para afigura.

— Da Tabacaria.

— Sim, da Tabacaria.

— Talvez seja a pequena do poema.

Enquanto se senta no sofá, Manuela Nogueira olha para nós, sorridente.“Talvez seja.”

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"É assim que eu me lembro dele", disse Manuela enquanto olhava para a fotografia. "Este éo meu Fernando Pessoa." HUGO AMARAL/OBSERVADOR

Que memórias é que tem do seu tio Fernando? Conviveu comele desde muito cedo.

Vivi com ele desde que abri o olho. Exceto numa altura em que o meupai, que era militar, esteve situado em Évora. Nessa altura, o meu pai, aminha mãe e eu fomos para Évora, e ele aproveitava todos osbocadinhos para nos ir visitar. Todos os que podia! Foi só nessa alturaque estivemos mais separados. E isto que eu estou a dizer não é daminha cabeça, porque nunca digo nada da minha cabeça. Já se diz tantamentira sobre o Fernando Pessoa — tanta, tanta, tanta — que eu nãocolaboro com isso. Vem escrito nas cartas da Ophélia. Está lá escrito:“Lá foste tu ter com a tua irmã, o teu cunhado e a tua Mimi, em vez deficares aqui comigo”. Eu na altura era a Mimi.

Quanto tempo é que estiveram em Évora?

Dois anos e meio, talvez. Não tenho bem a certeza. É engraçado, eu eratão pequenina mas tenho uma vaga ideia de haver uma mesa com uma

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braseira de camilha e de ouvir o meu pai a conversar com a minha mãe ecom ele, e de eu estar escondida debaixo da mesa a fazer graças. A únicacoisa de que me lembro de lá é justamente isso — é a figura dele, aaparecer na sala. Porque do resto não me lembro. Só me lembro depois.

Lembra­se melhor dele em Lisboa?

Sim, sim. Quando voltámos para a Rua Coelho da Rocha, onde vivemos.No ano em que ele morreu estávamos a estrear uma casa que os meuspais construíram em São João do Estoril, que ainda lá está e que éminha hoje em dia. Foi nessa casa que recebemos a notícia — horrível —da morte dele, e que ninguém esperava. Morreu em três dias.

"As coisas que inventam agora — que foi do vinho,que foi daquilo — é tudo mentira. Não foi nadadisso. Ele teve uma coisa que se chama 'volvo',que é um nó no intestino. Se fosse hoje em dia,era operado e ficava ótimo. "

Foi uma morte repentina? Ele não estava doente?

Não. As coisas que inventam agora — que foi do vinho, que foi daquilo— é tudo mentira. Não foi nada disso. Ele teve uma coisa que se chama“volvo”, que é um nó no intestino. Se fosse hoje em dia, era operado eficava ótimo. Naquela altura não havia meios de diagnóstico, não sepercebeu de onde vinham as dores que ele tinha. Deram­lhe remédiospara as dores no hospital.

Como é que souberam que ele tinha sido internado? Foi no

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aniversário da sua mãe.

Foi num dia em que tinha havido um grande temporal e não haviatelefone em parte nenhuma. Ele era uma pessoa que preservava muitoos aniversários. Estava sempre presente nessas alturas, até com osprimos direitos. Para ele era muito importante. E a minha mãe, que eraa irmã com quem ele vivia, achava que ele ia aparecer. Mas apareceu sóum telegrama a dar os parabéns, e a minha mãe disse logo ao meu pai:“Ó Chico, não pode ser! Aconteceu alguma coisa! O Fernando nãoaparece e manda um telegrama? Aconteceu alguma coisa!”

Nessa altura, a minha mãe estava de cama porque tinha acabado departir uma perna. Naquele tempo não havia os aparelhos que há agora— eram umas talas. Lembro­me perfeitamente de ela dizer isso e de omeu pai dizer “eu vou já a correr para Lisboa”. E foi. Foi de comboio,porque naquela altura também não havia a avalanche de carros que háagora! [risos]

Bateu à porta, mas ninguém respondeu. Então bateu à porta das DonasVirgínias Sena Pereira (que eram mãe e filha), tias do escritor Jorge deSena. E elas disseram­lhe: “O seu cunhado não se sentiu bem e saiuacompanhado. Penso que até foi com o seu primo”, o Jaime de AndradeNeves, que era médico. Era o único médico da família. O meu pai foi aoHospital de São Luís e achou que ele não estava, aparentemente, amorrer. Não parecia muito mal.

Quando apareceu no Estoril, assim mais à tarde, disse à minha mãe:“Sossega que ele não está assim tão mal, não está com mau aspeto. Deveter sido alguma cólica renal”. E, depois, morreu no dia 30. O espaço detempo foi curtíssimo, e para mim foi um choque. Foi a primeira pessoaque morreu na minha família. Até àquela data não tinha havido mortes.

Quando eu nasci, houve muitos mortos. Eu nasci no ano dos mortos

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[risos]. Morreram várias pessoas íntimas da família no mês em quenasci — morreu a minha irmã, um bebé pequenino, amoroso; morreu amãe do Fernando Pessoa, a minha avó; e morreu o tio­general, que erameu tio­avô e irmão do padrasto do Fernando Pessoa. Era um homemmuito engraçado e muito especial. Quer dizer, de engraçado não tinhanada! Tinha uns bigodes, uns olhos azuis enormes! Metia medo a toda agente. Era muito culto, trabalhou num jornal durante muitos anos — oPimpão, que tinha umas crónicas muito brejeiras sobre senhorasdespidas. E ele, que era general, assinava com o nome ao contrário.Chama­se Santos Roza e assinava “Azor”, que era para esconder aquelasindecências e parvoíces todas.

Então afinal sempre tinha alguma graça!

Tinha, tinha bastante graça! [risos] O meu tio Fernando colaborou nessejornal com o nome “Diabo Azul”, que já existia no jornal quando elepediu ao “tio” para colaborar, para ganhar umas massas. Lendo ashistórias do “Diabo Azul” percebe­se que umas não podem ter sidoescritas pelo meu tio e que outras, pelas graças, tinham mesmo de serdele. Ainda ninguém se debruçou sobre esse problema, que é muitoengraçado. Ele ali ganhava algum dinheiro a fazer charadas. As cartasda Ophélia falam do dinheiro que ele ganhou, mais tarde, a fazercharadas para jornais ingleses. Ele andava sempre preocupado comganhar dinheiro para casar. Mas o problema não era não ter dinheiro,eram outras coisas.

Acha que ele não queria casar?

Não, ele não era casável, porque ele queria era construir a sua obra. Eletinha aquela obra enorme na cabeça para deitar cá para fora, e como éque ele se podia estar a preocupar com contas de eletricidade, dotelefone, escolas para crianças? Ele gostava daquela mulher — gostavamesmo –, mas não era casável por causa disso. Era uma

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responsabilidade enorme. Assim estava livre, sem horas. Quer dizer,nem os patrões observavam sempre os horários dele. Ele entrava, faziaaquilo que tinha para fazer e, como era rapidíssimo, eficientíssimo eescrevia inglês e francês como em português, despachava as coisas quetinha para fazer e acabou. Ele nunca teve muito dinheiro porque nãoestava disposto a cumprir horários.

Não era isso que o preocupava.

Não, não era isso que o preocupava. Eram outras coisas, tão diferentes…Ninguém aprecia as personagens quando elas cá estão.

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Fernando Pessoa e os sobrinhos, Maria Manuela e Luís Miguel, na casa do Estoril

Lembra­se de quando lhe disseram que ele tinha morrido?

Sim, sim. Isso foi um horror. Eu estava no jardim e a minha mãe estavana cama. O meu pai tinha ido para Lisboa. Lembro­me que estava emcasa, no Estoril, a jogar à macaca no jardim. Lembro­me perfeitamente.E a empregada, que era assim muito gorda, veio­me dizer que o meu tiotinha morrido. Fiquei sem saber o que fazer. Nunca tinha visto a morteao pé, nunca ninguém me tinha falhado por morte. Foi a primeiramorte, a primeira de um tio que eu adorava. Porque eu não tinha outro.Os outros estavam em Inglaterra, vinham cá pouquíssimo. E o outro tio— o meu tio Artur, irmão do meu pai –, era oficial da Marinha e erachamado para muitas coisas em África. Estava cá muito pouco. Poracaso também era muito divertido, como o tio Fernando era.

O meu tio Fernando era a pessoa a que eu achava mais graça no mundo.Que me divertia, que me dava carinho. Era rara a semana em que eulevantava o guardanapo, à hora de jantar, e não tinha lá de baixo umpresente. E a emoção dele a olhar para mim ao ver­me radiante aodescobrir que estava lá um brinquedo — uma coisa qualquer — naqueleguardanapo. A morte dele foi um choque porque nunca ninguém tinhamorrido, mas também porque era um tio especial.

Era um tio que a mimava muito.

Muito, muito. Não houve ninguém que me mimasse tanto.

E brincavam muito os dois. A Manuela costumava “fazer­lhe” a barba, limar­lhe as unhas…

Já contei isso da barba tantas vezes! E pagava­me em dinheiro. Depoisarranjava­lhe as unhas e dava­me mais um suplemento. Era muitodivertido! Hoje em dia toda a gente tem assim uns dinheiros, mas,

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naquela altura, não havia miúdos pequenos com dinheiro. Nunca tiveuma mesada na vida, nós tínhamos o que os pais nos davam. Eradivertido ter aquele dinheiro para ir comprar chocolates ao senhorTrindade, que era lá da rua.

Quando é que se apercebeu que o seu tio não era um tioqualquer?

Foi gradual. Primeiro comecei a ver muita gente a aparecer lá em casapara conversar com os meus pais sobre o que estava dentro da arca. Jámorávamos na Lapa e o célebre baú foi para aí. Lembro­meperfeitamente do Gaspar Simões e até do Montalvor, aquele que sesuicidou [de carro] com a família toda lá dentro. Lembro­me bem dele, eaté vagamente da mulher e do filho. Foi um suicídio coletivo, uma coisapavorosa. Nova como era, aquilo chocou­me doidamente. Recordo­mede muita gente que ia lá a nossa casa para falar especialmente com aminha mãe. Ela tinha uma memória extraordinária.

Que a Manuela herdou.

Que eu herdei! [risos] A minha mãe era uma pessoa muito inteligente,muito espontânea, e lembrava­se perfeitamente daqueles tempos daÁfrica do Sul, do que se passou por lá, das brincadeiras que existiam,engraçadíssimas, que ela contava até à exaustão. Especialmente a mim,que estava mais em casa, mas o meu irmão também ouviu algumascoisas.

Não tínhamos conhecido nada da vida passada porque, quando nósnascemos, já os meus avós tinham morrido. E aquela vida, para ela, eraa mais importante — a vida com o pai, com a mãe, com os amigosestrangeiros. Ela veio para cá com 18 anos, portanto a vida principal foipassada em Durban e em Pretória. Por isso, os amigos deixou­os todoslá. Muitos eram portugueses, mas a maioria eram

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estrangeiros, holandeses e ingleses, que habitavam ali naquela altura eque eram amigos de escolha.

Ela falava, falava — como se fosse uma história. E eu adorava, porqueera uma espécie de história do passado, da tal minha avó e do meu avô.Eu sou uma pessoa que reza e, ainda hoje, rezo pela alma deles porque,de facto, os avós que não conheci ficaram muito vincados em mim. Pelascoisas que eles diziam, faziam, como recebiam em casa. Enfim, erampessoas muito especiais para mim, através da boca da minha mãe.

"Pois, ele previu que ia morrer mais ou menosnaquela altura. Mas sabe, dessas coisas doshoróscopos eu não percebo nada."

Chegou a visitar a África do Sul?

Nunca. Uma das minhas filhas, a Inês, foi lá, mas nunca calhou eu ir.Mas também a África do Sul de hoje não é aquela.

É uma realidade completamente diferente.

Completamente diferente. O passado é o passado e as coisas evoluemrapidamente. A África do Sul de agora é outra. E ainda bem! Sou umamulher moderna, que gosta das coisas como elas são.

Quando é que decidiu pegar na obra do seu tio e começar aestudá­la?

Fui estudando aos soluços. Nunca foi uma coisa ordenada porque não

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fui obrigada por escola nenhuma. Eu tinha umas papeladas em casa.Naquela altura não se dava Fernando Pessoa no liceu. Nem as minhasfilhas estudaram Fernando Pessoa. Depois os meus netos já deramtodos.

Chegou a mexer na arca?

Nunca mexi. Para a minha mãe, era sagrada. Depois vieram doMinistério da Educação estragar o que lá estava e baralharam tudo. Maseram pessoas de fora, que o podiam fazer. Os de casa nunca lhetocaram. O respeito que a minha mãe tinha pela obra dele era tanto quenão queria que ninguém tocasse em pacote nenhum. Durante três anos,vieram aquelas três senhoras [do Ministério] fazer uma espécie deseleção, mas a minha mãe nunca me deixou mim ou ao meu irmão (quetem menos cinco anos do que eu) mexer em nada, porque achava queaquilo era sagrado e que só era para intelectuais mexerem.

Mas, de qualquer maneira, mexi em muita papelada solta. Isso sim. Eletinha uma malinha velha que, quando a minha mãe morreu e eu tive devagar a casa dela, trouxe para aqui. Mas eram papéis que não estavamna arca principal. Nisso mexi porque já era adulta. Ele nunca arrumounada, nem teve tempo para isso. Acho que com 47 anos nunca pensouque ia morrer tão cedo.

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Manuela Nogueira era chamada de "Mimi" pelos familiares mais próximos. HUGOAMARAL/OBSERVADOR

Mas fez um horóscopo em que previu a sua própria morte.

Pois, ele previu que ia morrer mais ou menos naquela altura. Mas sabe,dessas coisas dos horóscopos eu não percebo nada. É uma parte daciência dele que eu nunca compreendi e à qual nunca dei muitaimportância. Mas, de facto, aprendi mais com aquilo que certas pessoasescreveram sobre ele. Tenho aprendido verdadeiramente com livros, jáorganizados, que pessoanos escreveram sobre ele. Há alguns trabalhoscom que estou mais de acordo, outros menos, mas de facto houve muitagente a debruçar­se sobre a obra dele, com imenso interesse. EsteRichard Zenith tem feito um trabalho bastante interessante. Esteveagora também comigo em Olinda.

Na Festa Literária de Pernambuco, onde a Manuelaparticipou como oradora. Como é que foi essa experiência?

Foi muito interessante porque foi no Convento de São Bento —lindíssimo — que tem um altar todo em talha dourada. É tão bonito que

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esteve no Guggenheim da América em exposição. Fui eu que abri ocongresso naquele sítio e tinha uma multidão à minha espera, para tirarfotografias. Uma coisa louca, que eu devo ao Fernando Pessoa. Porquenão foi por mim. Eu também sou escritora, escrevi muitos livros, masainda não morri há tempo suficiente! [risos] Talvez se lembrem dealgumas coisas para dizer de mim quando eu morrer. Tive de ter muitacoragem para ir, porque não há nenhuma mulher de 90 anos que semeta num avião para ir a Olinda e estar ali todos os dias com coisas parafazer. Acho que, talvez, fui inconsciente por ter ido até lá.

Mas nota­se que gostou de lá ir.

Gostei muito, valeu muito a pena. Encontrei pessoas interessantíssimaslá, pessoas muito simples que não eram só do mundo cultural — erampessoas que amavam a obra dele e que queriam estar ao pé de mimporque pensavam “esta senhora é da família, esteve com ele, portanto émuito importante para mim, porque é uma pessoa que foi amada porele”.

A maioria eram pessoas simples, que o adoravam. Na pousada ondefiquei não me largaram um segundo. Jornalistas e tudo o que havia. Masa coisa mais importante é pensar que a obra dele fala tanto à intimidadedas pessoas que pessoas tão simples, que nos pareciam desconhecer aobra dele, queriam estar ao pé de mim só porque tinha tido contactocom ele. É formidável pensar onde é que o nome dele vai. Em Portugaltambém há muita gente interessada, mas eles são mais abertos.

Já afirmei em três ou quatro sítios públicos que o Fernando Pessoacomeçou a ser verdadeiramente notado e apreciado no Brasil. Isto muitoantes de eu lá ir. O povo português é muito contido — somos todosmuito contidos e temos uma grande dificuldade em nos apreciarmosuns aos outros. Quando morremos, ficamos um bocadinho maisconsiderados [risos]. Mas, até lá, há qualquer coisa que se passa na

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maneira de ser do português que o impede de reconhecer o próximo.

Acha que no Brasil há outro entusiasmo em relação à obra deFernando Pessoa?

Talvez haja mais abertura, afetividade. Eu hoje em dia não vejo novelas— não tenho muita paciência –, mas as primeiras que vi era raro nãocitarem Fernando Pessoa. Até quem escrevia as novelas lembrava­se depôr uma frase.

A Manuela também é escritora. Acha que herdou do seu tio ogosto pela escrita?

Perguntam­me sempre isso, mas eu acho que não. Primeiro, a figura domeu tio é de tal maneira enorme que querer copiá­lo era uma coisaimpossível. Depois, eu tenho jeito para escrever por natureza. A minhaavó, a mãe do Fernando Pessoa, escrevia muita poesia, o irmão dele, oLuís (que nós tratávamos por Mike), também. Aquele tio Roza, que nãotem nada a ver com a família do Fernando Pessoa, também escrevia — emuito. Deixou uma grande quantidade de poesia escrita.

Eu acho que, desde muito nova, sempre tive muita imaginação. Porexemplo, na escola, quando me pediam para escrever uma redação,tinha vinte ideias. Nunca sabia qual é que havia de escolher, porqueeram tantas! Às vezes as minhas amigas diziam­me “dá­me ideias, dá­me ideias!”, porque eu tinha muitas.

Hoje em dia podia continuar a escrever — não vou, mas podia — porqueas ideias não acabam. É uma coisa natural em mim. Nunca tive muitojeito para a matemática. Tinha boas notas porque era obrigada aestudar, mas não gostava assim muito. E, realmente, para escreversempre tive muitas ideias, sempre fui muito criativa. Mas acho que issoestava no sangue de várias pessoas.

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"O que ele gostaria de ver que eu também gostode escrever, o que ele gostaria de ver as pessoasda família interessadas. O que ele gostaria de vertanta coisa que não viu. E a falta que fez."

É de família.

Deve ser, porque do lado dos Santos Roza também havia. E gosto dedesenhar, tenho um certo jeito para pintar. Quando não me apeteceescrever nem fazer mais nada, e se tenho tempo, desenho. A única coisaque me dói é que, se tivesse tido a sorte de a ciência estar maisadiantada na altura, não teria morrido com 47 anos. Não era umadoença mortal, era operável. Podia ter vivido. Mas na altura não haviadiagnósticos, não havia nada.

Não havia meios.

Não havia. Foi tão triste. O que ele gostaria de ver que eu também gostode escrever, o que ele gostaria de ver as pessoas da família interessadas.O que ele gostaria de ver tanta coisa que não viu. E a falta que fez. Omeu marido — eu casei muito cedo — diz muitas vezes: “Que pena,gostaria de ter conhecido o teu tio”. Porque ele era realmente umapessoa notável e muito delicada.

O dono do prédio da Coelho da Rocha tinha uma filha, a Dona Sílvia,que mora aqui perto. Ela encontrou­me aqui há tempos e disse­me:“Lembra­se daquela criada antiga, que a minha mãe tinha? Diziasempre que nunca tinha visto um senhor tão delicado”. Quando elavinha carregada das compras e ele estava à porta, ele esperava que ela

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viesse para lhe segurar a porta para ela entrar. Ela dizia sempre: “Ai, é osenhor mais bem­educado que eu já vi!”

Isso fazia parte da maneira de ser dele. Era bem­educado com toda agente. Nunca o vi ser, nem nunca ouvi dizer que ele fosse, mal­educadopara quem quer que fosse. Naturalmente, havia pessoas de quem elenão gostava tanto, mas que punha à parte sem ser mal­educado. Erasempre uma pessoa que prezava os outros. A minha mãe dizia sempre:“O meu irmão Fernando é um gentleman!”. Aliás, eram todos. Aquelesde Inglaterra também eram, o Luís e o João. O João ainda mais. A genteolhava para ele e via logo: era um gentleman. As pessoas quando sãoassim, muito bem­educadas, tratam sempre as pessoas que estão abaixocomo se estivessem ao nível. Nunca há distâncias.

Texto de Rita Cipriano, fotografia de Hugo Amaral.