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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO DO LARGO DE SÃO FRANCISCO Iahn Jorge Soares O MONSTRO DE 1988: UMA ANÁLISE DAS RELAÇÕES CRIADOR-CRIATURA São Paulo 2021

O monstro de 1988: uma análise das relações criador-criatura

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE DIREITO DO LARGO DE SÃO FRANCISCO

Iahn Jorge Soares

O MONSTRO DE 1988:

UMA ANÁLISE DAS RELAÇÕES CRIADOR-CRIATURA

São Paulo

2021

IAHN JORGE SOARES

O monstro de 1988:

uma análise das relações criador-criatura

Relatório final como requisito de conclusão de

iniciação científica realizada na Faculdade de

Direito da Universidade de São Paulo

(FDUSP), sob orientação do Professor Doutor

Ari Marcelo Solon

Grande área: Ciências Sociais Aplicadas

Área: Direito

Subárea: Teoria do Direito

Palavras-chave: Assembléia Nacional Constituinte de 1987-1988; Frankenstein; Húbris

São Paulo

2021

A todos criadores que se aventuraram

por um projeto popular para o Brasil

Nossa Rebeldia é o Povo no Poder!

AGRADECIMENTOS

Ao Bom Pastor e Criador, que jamais se esqueceu de sua ovelha desgarrada e

providenciou que a sua criatura sempre retornasse ao seu rebanho;

À Maria das Dores, que muito me ensina a amar na simplicidade e a suportar as

Cruzes que vêm pelo caminho, sem jamais perder a visão do fim, o seu Filho;

Aos Santos e Anjos por incessantemente intercederem por mim e pelos meus

próximos, enquanto desbravamos a caminhada terrestre;

À Juliana, minha gata, que jamais saiu do meu lado, mesmo quando o sono batia, lá

vinha ela para deitar no meu colo enquanto eu lia algum livro, ou escrevia este trabalho,

confortando o meu coração;

Ao meu pai, Elysio Jr., por ter topado se aventurar nesta pesquisa comigo,

contribuindo com as suas opiniões e considerações, com longas discussões sobre assuntos

desconhecidos por nós;

À Isabel, por ser a razão desta pesquisa ter nascido, afinal jamais teria pensando em

Frankenstein se você não tivesse me emprestado o seu livro, bem como pela ajuda,

principalmente na parte do inglês, aqui estendo também o meu agradecimento à sua mãe;

Ao meu orientador místico e amigo, Prof. Dr. Ari Marcelo Solon, muito obrigado pela

orientação, por ter me acolhido como seu aprendiz e mostrado o caminho para um Direito

menos engessado e mais vivo;

À Camila e ao Luiz Felipe, por terem me apoiado, cada qual do seu jeito, a realizar

este estudo, principalmente com seus comentários, o resultado não seria o mesmo sem vocês;

Aos professores José Reinaldo, Mafei, Samuel e Scaff, que, cada um à sua maneira,

contribuíram para este trabalho, seja com as aulas, textos ou sugestões de bibliografia;

À minha mãe, Ione, por ter sempre me incentivado e apoiado nas minhas aventuras,

em especial na educação e imaginação;

À minha madrinha, Letícia, por ser uma inspiração na área da ciência, principalmente

em tempos que ela é muito atacada, obrigado por ser esse colinho na Academia e na vida;

Ao Mini Jovem e à Santo Afonso, por ter sido um marco na minha história e na minha

conversão, além de me presentear com grandes amigos para a vida, aqui eu agradeço nos

nomes de: Amanda, Andressa, Ana Maria, Aninha, Arthur, Bean, Big, Clara, Doca, Expedito,

Fabio, Fraga, Filipe, Gabi, Guga, Juliana, Karina, Karol, Lívia, Lucas, Luma, Meirim, Poli,

Rafa Lind, Rayssa, Sara, Sel, Thiago, Tiago, Tia Jarina, Tia Lu, Tio Hélio, Tupi, Yuri e Yvia;

Ao Arcadas, por ter me mostrado um novo caminho para a educação e dado mais

sentido à minha vida, um muito obrigado especial para: Amanda, Carol, Isa, Jacque, Madu,

Rebs, Pedro e Vitinho.

Ao Levante Popular da Juventude, por me mostrar que existe um futuro para um Brasil

melhor, com um projeto popular e com o povo no poder. Muito obrigado célula da SanFran,

nos nomes de: Flôres, Helena, Madu, Nath, Sophia e Vini;

Ao Shitpost XI de Agosto, por ser o alívio cômico de todo dia, agradeço em especial a:

Alan, Alê, Bia, Felipe, Giovanna, Gustavo, Lucas, Tulio e Vitor;

Às turmas 23/24 pela companhia diária, principalmente para: Amanda, Andrew,

Caratinho, Dani, Ellen, Eunice, Felipe, Gabi, Giulia, Gui Pai, Icha, Lívia e Prika;

Ao Jiu-Judô, por ter me ensinado que o único crime do homem é amar demais. Espero

podermos voltar logo aos treinos, especialmente para derrubar o Sano. Muito obrigado, time.

À São Francisco, por ter colocado ao meu lado pessoas incríveis e ter aberto muitas

portas para construir o meu futuro do jeito que eu sonho. Agradeço em especial a: Alessandro,

Gabi, Gi, Grazi, Isa, Janaína, Juana, Julia, Júlia R., Júlia Y., Laura, Lívia, Luciana, Renan,

Sano e Vic;

Aos meus professores ao longo da minha história, que marcaram este pequeno

estudante e são exemplos de quem eu desejo ser no futuro, nas pessoas de: Elisa, Léo,

Matheus, Nathalia e Quintas.

À minha família, sem vocês não seria quem sou hoje e sou muito feliz e grato por ter

nascido conectado a cada um: Andrielly, Anthony, Ash, Dione, Eliane, Filipe, Giulia, Isabela,

Karla, Liv, Luiz, Maguila, Marcus, Márvio, Pedro, Rafael, Raíssa, Stella, Tia Lúcia e Vovó

Lúcia. E, agradecimentos especiais para aqueles que sempre estarão em nossos corações, in

memoriam: Cláudia, Elysio, Eudocia, Guaraná, Jorge, Marinalva, Naná e Pipoca;

Por fim, meus sinceros agradecimentos a cada pessoa que passou pela minha vida, a

lista acima não é exaustiva, nem pretende ser. Só sou quem sou hoje pelos diversos encontros

e acasos que surgiram ao longo da minha vida. Ouso dizer que a conclusão desta pesquisa é

culpa de cada um de vocês, sinto muito hahaha. A única forma de tentar retribuir toda essa

gratidão e esse amor é continuar vivendo, dia após dia, com foco no objetivo de levar adiante,

em meu coração, cada uma dessas pessoas, cada um dos seus sonhos e buscar fazer da nossa

realidade um lugar melhor, coletivamente. Aqui, minha singela homenagem, com coração

puro e sincero. Muito obrigado, amo muito vocês!

“Em todas as circunstâncias, dai graças, porque esta é a vossorespeito a vontade de Deus em Jesus Cristo” (1Ts 5, 18)

RESUMO

A presente pesquisa busca investigar a relação entre o homem e a norma, pela perspectiva doDireito pela Literatura. Assim, o romance “Frankenstein” de Mary Shelley é utilizado comobase literária para fornecer o modelo de relação entre o criador e a criatura, que éconsequência da estrutura fundante do enredo, a húbris, postura prepotente e obsessiva queleva à ruína do criador. Em seguida, o molde jurídico empregado se baseia na AssembléiaNacional Constituinte de 1987-1988 e na Constituição Federal de 1988, que possuem arelação constituinte-constituição. O polo constituinte é formado pelos constituintes eleitos,pelo governo, pelos lobistas e pela sociedade civil, que é a criadora primária da Constituição,pois o poder de criar constituições emana do povo. Dessa forma, o objetivo principal dotrabalho consiste em responder a seguinte questão: como a relação criador-criatura podeauxiliar na compreensão da relação constituinte-constituição? No intuito de gerar dados paraembasar a resposta, adota-se a metodologia de pesquisa qualitativa, exploratória ebibliográfica. Nesse sentido, o estudo utiliza a comparação entre os objetos de estudos paraextrair as conclusões. A relação criador-criatura possui um caráter histórico-dialético, deforma que o criador e a criatura se (re)criam a cada instante. No entanto, existe uma relaçãocriador-criatura particular ao Frankenstein, a relação criador-monstro, cuja diferença principaldefine-se pelo fato das partes da relação buscarem a (auto)destruição, porque o fim de umaacarreta o fim da outra. Por outro lado, a relação constituinte-constituição também éhistórica-dialética, mas o lado constituinte guarda o sentimento de posse para com aConstituição, bem como uma forte identificação com a Carta, ela que, por sua vez, osconsome. Portanto, entende-se que, a partir da comparação entre as relações, o modeloproposto por Frankenstein pode ser aplicado na Constituinte, de forma que a Constituição nãoé apenas uma criatura, mas um monstro criado pelo polo constituinte, em virtude da suahúbris. Por fim, a conclusão propõe uma referência para melhor entender, de forma geral, asrelações dos indivíduos com as normas.

Palavras-chave: Assembléia Nacional Constituinte de 1987-1988; Frankenstein; Húbris

ABSTRACT

This research seeks to investigate the relation between men and norm, from the perspectiveof Law through Literature. Thus, the novel “Frankenstein” by Mary Shelley is used as literarybasis to provide a model for the relation between creator and creature, which is a consequenceof the founding structure of the story, the hubris, an arrogant and obsessive behaviour thatleads to the creator's ruin. On the other hand, the legal model employed is based on theNational Constituent Assembly of 1987-1988 and the Federal Constitution of 1988, whichpresents the constituent-constitution relationship. The constituent pole is formed by theelected representatives , by the government, lobbyists and civil society, which is the primarycreator of the Constitution, as the power to create constitutions emanates from the people.Hence, the main objective of this paper is to answer the following question: how can thecreator-creature relationship help in understanding the constituent-constitution relationship?In order to generate data to support a response, the qualitative, exploratory and bibliographicresearch methodology is adopted. In this sense, the study uses a comparison between objectsof study to draw conclusions. The creator-creature relationship has a dialectical-historicalcharacteristic, so that the creator and the creature (re)create each other at every moment.However, there is a creator-creature dynamic particular to Frankenstein, the creator-monsterrelation, whose main difference is the fact that the parts of the relation seek (self)destruction,because the end of one entails the end of the other. On the other hand, theconstituent-constitution relationship is also historical-dialectical, but the constituent sideretains a feeling of ownership of the Constitution, as well as a strong identification with theBill, which, in turn, consumes them. Therefore, it is understood that, by comparing therelationships, the model proposed by Frankenstein can be applied to the ConstituentAssembly, so that the Constitution is not just a creature, but also a monster created by theconstituent pole, by virtue of its hubris. Finally, the conclusion proposes a model to betterunderstand, in general terms, the relations between individuals and norms.

Keywords: National Constituent Assembly of 1987-1988; Frankenstein; Hubris

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Diagrama 1 - Triângulo de Antonio Candido 15

Diagrama 2 - Organograma da ANC 44

Diagrama 3 - Triângulo Base 54

Diagrama 4 - Triângulo de Pachukanis 54

Diagrama 5 - Triângulo de Pachukanis Adaptado 55

Diagrama 6 - Transformação do Triângulo 55

Diagrama 7 - Triângulo de Pachukanis Extrapolado 56

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AI Ato Institucional

ANC Assembléia Nacional Constituinte de 1987-1988

CF Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

CN Congresso Nacional

CPEC Comissão Provisória de Estudos Constitucionais

DVS Destaque para Votação em Separado

EC Emenda Constitucional

FHC Fernando Henrique Cardoso

MI Mandado de Injunção

Min. Ministro do Supremo Tribunal Federal

MP Medida Provisória

PDT Partido Democrático Trabalhista

PFL Partido da Frente Liberal

PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro

Prof. Professor

RIANC Regimento Interno da Assembléia Nacional Constituinte de 1987-1988

STF Supremo Tribunal Federal

SUMÁRIO

1. O INÍCIO DA JORNADA 10

2. PARA ONDE IREMOS? 12

3. COMO CHEGAREMOS LÁ? 13

4. O MAPA DA JORNADA 14

5. A HISTÓRIA DO HERÓI 19

6. AFINAL, O QUE É UM HERÓI? 36

7. A HISTÓRIA DO MONSTRO 397.1 Redemocratização e a década de 80 39

7.2 Convocação da Constituinte 41

7.3 Funcionamento da Constituinte 42

7.3.1 O regimento interno 43

7.3.3 A virada do Centrão e as votações 47

7.4 Promulgação da Constituição e futuro 50

8. LABORATÓRIO DO CIENTISTA 528.1 A norma jurídico-política 52

8.2 Teoria do Estado 58

9. A PRIMEIRA BATALHA 639.1 O mito do Prometeu moderno 64

9.2 Os monstros 67

9.3 A relação criador-criatura 73

10. A SEGUNDA BATALHA 7710.1 O enredo e os atores 77

10.2 A relação constituinte-constituição 93

XI. A BATALHA FINAL 98

12. ESPÓLIOS DA VITÓRIA 106

13. BIBLIOGRAFIA 109

1. O INÍCIO DA JORNADAO senso comum vincula a imagem do Direito a uma prática engessada, que decora leis

e procedimentos para aplicá-los nas cortes. No entanto, é necessário entender que o Direito é

uma ciência interdisciplinar, que se relaciona com a Filosofia, Sociologia e Política, por

exemplo. Dessa forma, mais e mais se tem buscado analisá-lo em conjunto com outras áreas

do conhecimento. É nesse contexto que se insere a relação Direito e Literatura, para esta

pesquisa Direito pela Literatura, já que é reconhecida a importância da Literatura na

compreensão do fenômeno jurídico e de sua relação com os indivíduos. Com isso em mente,

este estudo busca se afastar do dogmatismo jurídico para avaliar a relação entre o homem e a

norma.

Para tanto, o modelo jurídico utilizado é o marco da Nova República Brasileira, a

Assembléia Nacional Constituinte de 1987-1988 (ANC) e a Constituição da República

Federativa do Brasil de 1988 (CF), que romperam com a ditadura militar, no intuito de dar um

novo caminho para a Nação. Assim, tanto o processo político, como a relação entre os

indivíduos com o texto serão analisados, para compreender profundamente como esse

processo se deu à época. É importante ressaltar que os atores envolvidos são múltiplos,

compreendendo desde os constituintes, até o governo, lobistas e, principalmente, o povo. De

fato, é uma massa heterogênea e complexa, porém compartilha semelhanças internas,

permitindo a utilização no sentido de uma visão geral. Por outro lado, a base literária

escolhida foi o romance gótico de Mary Shelley “Frankenstein”1, que apresenta uma história

de horror instigante, em que um dos personagens decide criar um indivíduo, gerando toda a

trama e, principalmente, a relação entre o criador e a criatura, a partir da húbris, o sentimento

de arrogância obsessiva que leva a pessoa à ruína. Essa relação é o centro para a análise do

fenômeno brasileiro, unindo o Direito e a Literatura.

Nesse sentido, a proposta da pesquisa é conectar essas duas realidades, pela

comparação, a fim de analisar a relação entre o homem e a norma. Para tanto, a Literatura é

utilizada como um instrumento de interpretação do Direito, o que nos permite ter uma visão

mais crítica frente à realidade jurídica, a fim de, constantemente, refiná-la. Por conseguinte, a

importância deste estudo se baseia no melhor entendimento da nossa posição frente às normas

jurídicas, pois elas não são um produto descolado da realidade humana. Pelo contrário, as leis,

a interpretação e os demais dispositivos do Direito estão presentes em cada momento da

1 Escolhida a terceira edição, de 1831. SHELLEY, Mary W. Frankenstein. [1831]. New York: MillenniumPublications, 2014.

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sociedade, com um propósito pré-estabelecido. Consequentemente, esperamos obter mais

respostas e avaliações acerca da condição social no seu choque com o ordenamento jurídico.

Com isso em mente, o itinerário deste trabalho se dá por quatro momentos. O primeiro

é a introdução da história, seja do enredo de Frankenstein, ou dos acontecimentos da ANC.

Em seguida, delimitamos o referencial teórico de cada área, que é o norte para a análise dos

objetos de estudo. Posteriormente, a terceira parte é o exame da base literária e do modelo

jurídico, cujo foco é o desenvolvimento das relações existentes em cada um. Por fim, o centro

da pesquisa é a colisão das investigações e dos vínculos traçados no ponto anterior, a partir da

ideia do Direito pela Literatura. Assim, ao término, faremos breves considerações para,

esperamos, criar um singelo modelo de análise da relação entre o homem e a norma a partir

das ideias e das relações contidas em Frankenstein e na ANC.

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2. PARA ONDE IREMOS?O objetivo geral da pesquisa é analisar a relação entre o homem e a norma, baseada na

relação entre o Direito e a Literatura. Para atingir esse fim, duas relações serão analisadas. No

campo do Direito, será utilizada a ANC e a CF. Já na Literatura, a obra Frankenstein, de Mary

Shelley, fornecerá as bases da relação entre o criador e a criatura, a partir de Victor

Frankenstein e o seu monstro. Dessa forma, foi elaborada a seguinte pergunta norteadora da

pesquisa: de que maneira a relação criador-criatura, presente na obra Frankenstein, pode

contribuir para a compreensão da relação existente entre a Assembléia Constituinte e a

Constituição Federal no processo constituinte de 1987-1988?

Como suporte ao objetivo geral, foram elaborados os seguintes objetivos específicos:

a) Analisar a relação existente entre criador e criatura na obra Frankenstein;

b) Analisar a relação existente entre a ANC e a CF;

c) Analisar os pontos de contato entre as relações dos objetivos específicos “a” e “b”

Para tanto, essas metas geram os dados necessários para responder à pergunta do

trabalho, porque examinam as relações presentes nos objetos de estudo, permitindo a

formulação do entendimento da ANC pelo romance gótico. Assim, para atingir tal objetivo, o

caminho a ser seguido será descrito detalhadamente no próximo capítulo.

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3. COMO CHEGAREMOS LÁ?Este estudo consiste em uma pesquisa qualitativa de caráter exploratório, situada na

área do Direito, dentro da subárea da Teoria do Direito, por meio de pesquisa bibliográfica.

Consideramos o paradigma da pesquisa qualitativa mais apropriado para a realização do

estudo proposto, pois, segundo Godoy2:A pesquisa qualitativa não procura enumerar e/ou medir os eventos estudados, nememprega instrumental estatístico na análise dos dados. Parte de questões ou focos deinteresses amplos, que vão se definindo à medida que o estudo se desenvolve.Obtendo dados descritivos sobre pessoas, lugares e processos interativos pelocontato direto do pesquisador com a situação estudada, procurando compreender osfenômenos segundo a perspectiva dos sujeitos [...]

Com isso, a abordagem qualitativa corrobora para uma compreensão dos eventos

narrados nos objetos de estudo, bem como convém para a determinação das características das

relações estudadas. Em seguida, o caráter exploratório deve-se ao objetivo de “proporcionar

maior familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo mais explícito ou a constituir

hipóteses. Podemos dizer que estas pesquisas têm como objetivo principal o aprimoramento

de idéias ou a descoberta de intuições”3. Assim, é necessário tornar evidente os elementos que

permeiam a ANC e o Frankenstein, justificando a escolha do sentido exploratório da pesquisa,

afinal a relação entre o Direito e a Literatura é um recorte pouco tradicional. No que tange ao

método para geração e análise de dados, adoto neste projeto a pesquisa bibliográfica,

conforme propõe Gil: “desenvolvida com base em material já elaborado, constituído

principalmente de livros e artigos científicos”4. Dessa forma, a coleta de dados bibliográficos

confere uma base segura para a comparação dos resultados da investigação dos objetos de

estudo, a fim de responder aos questionamentos que norteiam os objetivos da pesquisa.

Esperamos que a análise dos dados conduza a considerações relevantes para o campo da

Teoria do Direito ao discutir as relações estabelecidas entre o homem e a norma jurídica,

interpretadas com base na obra de Mary Shelley e na ANC.

4 Idem, p. 44.3 GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 41

2 GODOY, Arilda Schmidt. Introdução à pesquisa qualitativa e suas possibilidades. São Paulo: Revista deAdministração de Empresas, 1995. p. 58.

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4. O MAPA DA JORNADAApesar de ainda ser um campo de baixa produção, a área de Direito e Literatura vem

crescendo5 no Brasil conforme os anos passam, porque a visão de que o Direito é uma ciência

rígida e independente não é necessariamente a única, permitindo que surjam novas

abordagens a todo momento. Nesse sentido, nos apoiamos nas importantes obras do Prof. Dr.

Antonio Candido6,7, em conjunto com Judith Martins-Costa8 e Rafael Carneiro9.

De início, a definição escolhida de Literatura é a mais ampla possível, considerando

todas as criações poéticas, ficcionais e dramáticas de qualquer sociedade10. Para a crítica

literária, é necessário avaliar como os fatores sociais influenciam na estrutura do Romance.

Há duas possibilidades: fornecer apenas a matéria da história ou ser parte constituinte da

essência da obra11. Antonio Candido traz essa afirmação12, utilizando o exemplo do livro

“Senhora”, de José de Alencar. Isso porque o ponto central dessa obra é a “compra” de um

marido, elemento que reverbera na estrutura fundante do livro, já que a lógica de compra é

vista ao longo da trama. Então, o fator social da época, o dote para casamentos, não é um

simples pano de fundo da história, mas o próprio esqueleto do livro. Ademais, a arte não é

somente influenciada pelo social, ela é o próprio social13, em certo nível. Essa relação se dá

de duas maneiras: ao externalizar a ação de fatores do meio; e ao incutir nos leitores algum

efeito prático, podendo modificar ou reforçar sentimentos sobre os valores sociais14.

Consequentemente, o valor social da obra não é uma mera reprodução da vida ou de ideais,

mas sim de uma força real de provocar mudanças, até mesmo no Direito, por exemplo.

Em seguida, pode-se propor um diagrama (Diagrama 1) a partir do que Candido

afirma, no qual os vértices são: Autor, Obra e Público. Ele vê como um trio impossível de se

separar15, pois cada aresta influencia e dá sentido para a outra. O Autor cria a Obra, que, de

15 Idem, p. 47-48.14 Idem, p. 30.13 Idem, p. 30.12 Idem, p. 15.11 CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 9ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. p. 14-15.10 CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004. p. 174.

9 CARNEIRO, Rafael Prince. A César o que é de Deus: magia, mito e sacralidade do direito. 2008. 44f. Tese deLáurea (Bacharelado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.

8 MARTINS-COSTA, Judith. A Concha do Marisco Abandonada e o Nomos (Ou os Nexos entre Narrar eNormatizar). Revista do Instituto do Direito Brasileiro, Lisboa, ano 2, n. 5, p. 4121-4157, 2013. Disponívelem: https://www.cidp.pt/revistas/ridb/2013/05/2013_05_04121_04157.pdf. Acesso em: 27 dez. 2020.

7 CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004.6 CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 9ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.

5 Apesar da fonte ser de 2017, podemos perceber essa taxa crescente a partir dos seus dados e das suasconclusões. RIBEIRO, Iara Pereira; RUIZ, Pedro do Amaral Fernandes. Produção científica em direito eliteratura no brasil. Revista de Direito e Literatura, Anais do Colóquio Internacional de Direito e Literatura, v.05, n. 02, p. 409-426, jul. 2017. Disponível em: http://rdl.org.br/seer/index.php/anacidil/article/view/327/pdf.Acesso em: 21 jan. 2021. p. 414.

14

certa forma, cria o Público, que recria o Autor. Ainda, a obra é um meio de comunicação entre

o Autor e o Público16, sendo que ela só tem valor se for reconhecida por este, o que permite a

realização daquele. De fato, após criada, a obra se desliga do seu criador e só retoma a ligação

por meio da ação do Público, que pode ser positiva, ou negativa, porém ela existe.Diagrama 1 - Triângulo de Antonio Candido

Fonte: Autoria Própria, 2021

Paralelamente, Candido trata das manifestações literárias, em especial confrontando a

literatura oral com a escrita, pois, como um cientista social, buscava trazer reflexões17 sobre

os grupos “iletrados” e os “eruditos”. Nesse sentido, traça três funções18 primordiais da

Literatura: total, social e ideológica. A primeira advém da criação de um sistema simbólico19,

para transmitir determinada visão de mundo. Assim, ela representa visões individuais que

transcendem ao momento, permitindo a sua inserção no ideário do grupo. No entanto, por

essa característica, costuma se limitar somente aos grupos em que ela atua e que a

produziram; o que a faz aparecer menos na literatura oral, porque nesta o autor detém menos

autonomia20, enquanto a obra exerce maior influência, principalmente na organização social.

Contudo, apesar da restrição a determinados grupos, há casos em que ela consegue se

universalizar pela similaridade entre os temas e vivências, atuando de forma parecida aos

mitos21. A segunda função22 trabalha o papel das obras nas relações sociais, nas necessidades

humanas, sejam materiais ou espirituais, e nas ordens sociais, para mantê-las ou mudá-las.

Essa função é inerente à essência da obra, independentemente da vontade de seu criador ou do

22 Idem, p. 54-55.21 Idem, p. 54.20 Idem, p. 53.19 Idem, p. 54.18 Idem, p. 54.17 Idem, p. 54-55.16 Idem, p. 47-48.

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público. Todavia, ainda assim, geralmente, o autor tem uma certa finalidade e o leitor uma

certa expectativa23. E é justamente esse lado consciente que inaugura a terceira função, a

ideológica. Para tanto, pode-se concluir que a Literatura funciona como uma lente da vida,

passando os fato reais para o mundo da ilusão das letras, orações e períodos24. É nela que o

mágico e o lógico se encontram25, fundando e influenciando as mais diversas formas sociais.

Além disso, é inegável como a Literatura se trata de uma criação universal de todos os

humanos ao longo da história26. Seria impossível conceber uma vida em sociedade sem entrar

em contato com ela, afinal “assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de

passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo

fabulado”27. Dessa forma, a Literatura executa uma importante função para a vida do

indivíduo, sendo essencial para a própria manutenção da vida de forma digna. Nisso, Candido

aprofunda a reflexão28:Alterando um conceito de Otto Ranke sobre o mito, podemos dizer que a literatura éo sonho acordado das civilizações. Portanto, assim como não é possível haverequilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sema literatura. Deste modo, ela é o fator indispensável de humanização e, sendo assim,confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte nosubconsciente e no inconsciente.

Consequentemente, cada sociedade cria a sua própria Literatura baseada em suas

visões de vida, que são passadas pelas gerações a partir do poder socializante das obras29. Por

conta disso, é possível apreender os valores sociais pelo o que ela consome e produz no

campo literário, o que pode servir em muito para a atuação do Direito. Isso porque ela

proveria o campo fático e das ideias para que o jurista melhor analise o grupo e consiga

aplicar as leis de forma mais justa, ou para que ele compreenda os fenômenos jurídicos mais

claramente, em uma espécie de “Direito pela Literatura”, por exemplo. Ademais, ela pode

contribuir até para a criação das leis em si, pois o legislador pode entender melhor os anseios

e as necessidades do povo pela assimilação literária; bem como pelo poder de gerar empatia,

já que, na Literatura Social, por exemplo, as desigualdades e mazelas da sociedade são

explicitadas. Por fim, Candido reforça30 essa ideia pelo contato da Literatura com o Público,

de forma semelhante a Lukács:

30 CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004. p. 175.29 CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 9ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. p. 178.28 CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004. p. 175.27 Idem, p. 177.26 Idem, p. 177.25 Idem, p. 53.24 Idem, p. 63.23 Idem, p. 55.

16

A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apóia e combate, fornecendo apossibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é indispensáveltanto a literatura sancionada quanto a literatura proscrita; a que os poderes sugerem ea que nasce dos movimentos de negação do estado de coisas predominante.

Após entender o papel social e político da Literatura, cabe compreender como ela se

relaciona com o Direito, porque esta pesquisa deseja abordar questões jurídicas por meio de

uma obra literária. Anne Teissier-Ensminger formula a ideia de Direito pela Literatura31. Essa

é a corrente defendida nesta pesquisa, porque ela utiliza as obras literárias como uma

ferramenta para detalhar as relações que o Direito por si não consegue, por exemplo a questão

de como “se engrenam normas e costumes, o amor e o ódio às leis, as instituições e as

trajetórias sociais”32. Dessa forma, ela enxerga, na Literatura, a possibilidade dos juristas

serem “mais hábeis a perceber, no destino dos indivíduos e do grupo, o alcance e a razão das

clivagens fundamentais entre o legal e ilegal, o permitido e o ilícito, o público e o privado”33.

Para tanto, nós adotamos essa visão, pois é possível perceber, compreender e ensinar o Direito

pelas obras literárias, dado que elas contêm todo o sabor da vida social e, então, dos

fenômenos jurídico-políticos. Isso porque, tanto o Direito, como a Literatura são formas de ler

o mundo, expressando as suas visões por meio dos textos escritos, ou não escritos.

Por fim, a interdisciplinaridade não-ortodoxa do Direito não se limita somente à

Literatura. Neste estudo, buscamos formar a ligação com o mito, elemento essencial da magia

e da religião. Assim, a tese de láurea do Rafael Carneiro se encaixa como uma luva, pois ele

explicita as relações entre o Direito, a magia e a religião. Inicialmente, pode-se pensar em

como isso é válido, afinal foge do dogmatismo jurídico. No entanto, as origens do Direito são

fortemente atreladas à religião, até mesmo no início do Direito Romano34 percebe-se essa

relação pelo apego às tradições e ao formalismo, bem como pela presença de sacerdotes nas

atividades jurídicas. Assim, partindo para um lado mais filosófico, a forma com a qual o

Direito adquire eficácia é, necessariamente, mágica e religiosa35, afinal, após algumas

palavras em certo local com determinadas pessoas, a propriedade de algo pode passar de uma

pessoa para outra, por exemplo. Os fenômenos jurídicos não são justificados no plano fático,

35 CARNEIRO, Rafael Prince. A César o que é de Deus: magia, mito e sacralidade do direito. 2008. 44f. Tesede Láurea (Bacharelado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. p. 14.

34 XAVIER, Renata Flávia Firme. Evolução histórica do direito romano. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano16, n. 2782, 12 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18474/evolucao-historica-do-direito-romano.Acesso em: 28 jan. 2021.

33 Idem, p. 4131.32 Idem, p. 4131.

31 No original: Droit en Lettres. MARTINS-COSTA, Judith. A Concha do Marisco Abandonada e o Nomos (Ouos Nexos entre Narrar e Normatizar). Revista do Instituto do Direito Brasileiro, Lisboa, ano 2, n. 5, p.4121-4157, 2013. Disponível em: https://www.cidp.pt/revistas/ridb/2013/05/2013_05_04121_04157.pdf. Acessoem: 27 dez. 2020. p. 4130.

17

porque, exemplificando, ninguém vê uma obrigação andando pelas ruas. Na verdade, tudo se

atém ao mundo das ideias e, em especial, ao plano linguístico. O Direito existe pelo poder

mágico das palavras36, como em um ritual, sendo, pois, o seu instrumento a palavra, em

essência.

36 Idem, p. 14.18

5. A HISTÓRIA DO HERÓIFrankenstein foi escrito por Mary Shelley e a primeira edição foi publicada em 181837,

sob autoria anônima. No entanto, como o livro obteve muito sucesso, ela publicou outras duas

edições, em 182138 e 183139. A terceira edição foi revista pela própria autora, após algumas

polêmicas envolvendo o enredo original. A principal diferença entre a primeira e a terceira

edições é o relacionamento40 entre Elizabeth e Victor Frankenstein, porque ela é a prima dele

na edição de 1818 e, em 1831, ela se torna apenas uma órfã adotada pela família Frankenstein,

apesar de que, nas duas versões, eles se chamam de primos. Pode parecer vantajoso utilizar a

primeira edição, por ser um texto mais fiel ao pensamento da autora, porém, para a análise

pretendida, as diferenças são irrelevantes. Assim, utilizamos a terceira edição por ela ter sido

a mais popularizada e conter a autocrítica da autora. De todo modo, este capítulo trata de

resumir o enredo da obra com o recorte para a posterior análise da relação entre o criador e a

criatura, a partir da versão em inglês41, a fim de preservar os sentidos originais pretendidos

pela autora. Vale ressaltar que o romance conta com três narradores: o Victor Frankenstein, o

monstro e o Capitão Walton. A história é contada ao leitor pelo Capitão, por meio de suas

cartas à sua irmã Margaret Saville, a partir do que ele soube dos acontecimentos por Victor,

que, por sua vez, escutou do próprio monstro uma parte de sua história.

Os acontecimentos se passam no século XVIII e a trama se inicia a partir do desejo de

Walton de desbravar novas rotas na região do Ártico, a fim de contribuir para o

desenvolvimento da humanidade. Assim, viaja até São Petersburgo para contratar uma equipe

de marujos experientes e um navio resistente, mas confessa à sua irmã que está um tanto

desanimado com a viagem, por não poder contar com nenhum amigo. É nesse contexto que

ele se lança ao mar e, após alguns meses, encontra Victor Frankenstein, perdido no meio do

Polo Norte, em um estado deplorável. Em Victor, o Capitão encontra aquele amigo tão

desejado, pois eles possuem muitos valores parecidos, além da vastidão de conhecimento do

jovem Frankenstein. Victor foi se recuperando no navio e se aproximando de Walton, até

confiar-lhe a sua história, contando quase todos os detalhes, já que ele escondeu os

pormenores da criação do demônio42 para morrerem consigo.

42 Assim é como Victor primeiro se refere à sua criação. Idem, p. 26.41 SHELLEY, Mary W. Frankenstein. [1831]. New York: Millennium Publications, 2014.40 Idem, p. 48.39 Idem, p. 43.38 Idem, p. 42.

37 ALMEIDA, Rogério de; ARAÚJO, Alberto Filipe; BECCARI, Marcos (orgs.). O mito de Frankenstein:imaginário & educação. São Paulo: FEUSP, 2018. p. 39

19

Nesse contexto, Victor começa a contar a história de sua miserável existência. Ele teve

uma boa infância em uma família abastada, com pais muito amorosos e atenciosos. Em uma

viagem, eles encontraram uma garota, a Elizabeth. Como ela era órfã e a família que cuidava

dela era muito humilde, os Frankenstein se dispuseram a adotá-la. Todos logo se apaixonaram

pela menina, em especial Victor, que se intitulou como o seu protetor. Apesar de ser adotada,

Elizabeth e Victor se chamavam de primos e construíram uma relação muito próxima, ao

ponto de ele não se ver sem ela. A família, então, se estabeleceu em Genebra, após o

nascimento de William, o filho mais novo. Na cidade suíça, Victor conheceu o seu melhor

amigo, Henry Clerval, filho de um importante mercador local, e desenvolveu o gosto pelo

aprendizado, principalmente sobre questões metafísicas e segredos do mundo, assuntos que

encontrou na Filosofia Natural de Cornelius Agrippa e similares. Foram justamente esses

filósofos que mais influenciaram o pensamento de Victor, que não foi devidamente corrigido,

na juventude, quanto à superação das ideias desses teóricos.

Conforme foi chegando à idade adulta, ficou decidido que iria para a faculdade se

aprofundar nos seus estudos, mudando-se para Ingolstadt, na Alemanha. Entretanto, logo

antes da viagem, Elizabeth contraiu escarlatina, sendo cuidada pela mãe, apesar das

advertências do alto contágio. A jovem se curou, mas passou a doença para a sua cuidadora,

ao ponto de os médicos atestarem ser inevitável o falecimento da matriarca. No seu leito de

morte, a mãe segura as mãos de Victor e Elizabeth e pede para que eles se casem, porque esse

era o seu desejo e serviria de consolo para o patriarca após a passagem de sua companheira.

Após o luto, Frankenstein foi para a faculdade e lá, pela dinâmica educacional, deveria

encontrar um professor para ser o seu tutor, que o direcionaria em seus estudos. De início, foi

se encontrar com o Prof. Krempe, de Filosofia Natural, a área de seu interesse. No entanto,

durante a conversa, Victor revelou seus estudos sobre Agrippa, sendo repreendido pelo

professor, que lhe recomendou uma lista de livros para desintoxicá-lo dos pensamentos

"errados". Tal fato decepcionou muito Frankenstein, obstinado em estudar a linha desses

autores. Foi em uma aula de química do Prof. Waldman que o jovem encontrou a sua saída e

um fiel amigo, pois foi recebido com acolhimento e incentivado a perseguir os estudos

conforme desejava.

Assim, Victor iniciou sua trajetória na faculdade, de forma solitária, por não receber

muita correspondência de seus amigos e familiares. Ele se lançou obsessivamente aos estudos,

em especial sobre o princípio da vida, o que o fez passar dias e noites em necrotérios,

analisando os corpos que lá ficavam. Em um dado momento, teve uma ideia inédita sobre a

causa da geração da vida, tornando-se capaz de reviver a matéria morta. Com isso em mente,20

acreditou estar apto a criar algo à imagem do homem, mas logo percebeu que as proporções

de um humano comum dificultariam o processo. Resolveu criar um ser de grandes

proporções, por volta de 2,4 metros de altura. Ele ainda não tinha se dado conta da

monstruosidade que estava por criar, porque tinha uma tempestade de emoções em seu

coração, afinal, o mistério da vida e da morte estava diante dos seus olhos. Ele pensava que

seria eternamente marcado na história da humanidade, repleto de louros, já que iria criar uma

nova espécie, que o abençoaria43 como o seu criador. De fato, talvez fosse possível até

devolver vida àqueles que jaziam na terra dos mortos.

Além de estar criando um ser, o próprio Victor foi modificado no processo, não só no

aspecto físico, mas o emocional e psicológico dele ficaram extremamente abalados. Isso se

revela pela forma como o experimento foi realizado, totalmente escondido em um quarto

separado de sua moradia, como se estivesse envergonhado. Esse momento foi doloroso para

Victor, porque, mesmo tendo escolhido conscientemente se isolar e se dedicar ao trabalho,

estava se destruindo, ao ponto de ter febres pela ansiedade e pelo nervosismo, repleto de um

sentimento de culpa, como se fosse um criminoso. Em uma certa noite, o monstro enfim nasce

após um raio atingir o seu corpo. Contudo, apesar de ter sido o momento mais esperado de

sua vida, Victor se decepcionou44 muito com o resultado, o oposto do que se poderia imaginar.

Logo correu para fora do laboratório, por conta do mal estar gerado pela visão da criatura. Ele

tentou dormir, na expectativa de fugir daquela realidade, porém foi atormentado por

pesadelos terríveis. No meio da noite, ele acorda assustado e percebe o monstro ao lado da

cama, olhando-o fixamente. Victor sente remorso e medo tão intensos que foge do local,

refugiando-se no pátio do prédio até o dia raiar.

Na manhã seguinte, ele é surpreendido por seu amigo Henry chegando em uma

carruagem, o que o fez se esquecer momentaneamente dos horrores da noite anterior. O seu

amigo foi até à cidade por conta da preocupação de todos com Frankenstein, bem como para

44 No original: How can I describe my emotions at this catastrophe, or how delineate the wretch whom with suchinfinite pains and care I had endeavoured to form? His limbs were in proportion, and I had selected his featuresas beautiful. Beautiful! Great God! His yellow skin scarcely covered the work of muscles and arteries beneath;his hair was of a lustrous black, and flowing; his teeth of a pearly whiteness; but these luxuriances only formed amore horrid contrast with his watery eyes, that seemed almost of the same colour as the dun-white socks inwhich they were set, his shrivelled complexion and straight black lips [...] I had worked hard for nearly twoyears, for the sole purpose of infusing life into an inanimate body. For this I had deprived myself of rest andhealth. I had desired it with an ardour that far exceeded moderation; but now that I had finished, the beauty of thedream vanished, and breathless horror and disgust filled my heart. Idem, p. 45.

43 No original: A new species would bless me as its creator and source; many happy and excellent natures wouldowe their being to me. No father could claim the gratitude of his child so completely as I should deserve theirs.Pursuing these reflections, I thought that if I could bestow animation upon lifeless matter, I might in process oftime (although I now found it impossible) renew life where death had apparently devoted the body to corruption.Idem, p. 43.

21

estudar na faculdade, a fim de aprimorar os seus negócios. Assim que o viu, Henry percebeu o

estado deplorável de seu amigo, justificando a preocupação. Os sentimentos desses dois

intensos dias fez com que Victor caísse em uma febre nervosa por meses, sendo cuidado pelo

seu amigo. Quando já se sentia melhor, foi mostrar a faculdade ao seu companheiro para se

distrair e aproveitar o tempo antes de sua viagem de retorno à Genebra.

Durante os preparativos para a volta, Victor recebe uma carta de seu pai. Infelizmente,

ele teve de informar ao seu filho a morte do irmão mais novo, William, enquanto ele brincava

com Ernest, o irmão do meio. A família estava caminhando, quando, na hora de retornar,

William não apareceu. As buscas duraram a noite inteira, mas ele só foi encontrado no dia

seguinte, com as marcas do assassino em seu pescoço. O corpo foi levado para casa, e

Elizabeth, ao ver a cara angustiada do pai, insistiu em vê-lo. Desmaiou assim que viu as

marcas, porque percebeu a ausência de um pingente precioso da mãe que ela havia

emprestado ao irmão. Assim, esse teria sido o motivo que levou ao assassinato, fazendo-a se

sentir culpada. Essa notícia arrasa o coração de Frankenstein, que deseja retornar o quanto

antes à Genebra, chegando à cidade à noite, quando os portões estão fechados, então se

hospeda em um vilarejo próximo. Como não conseguia dormir, decidiu visitar o local onde

encontraram o seu irmão, pegando um barco para atravessar o lago. Enquanto realizava o

trajeto, surgiu uma tempestade, tornando o caminho mais aterrorizante. Em um dado

momento, ele viu um vulto atrás de algumas árvores, suspeitando ser o monstro, fato que se

confirmou logo em seguida com a luz de um raio. De imediato, associou a morte de seu irmão

à sua criatura.

No dia seguinte, chegou em casa bem cedo, enquanto todos dormiam, até que Ernest

foi falar com ele. O irmão ficou muito feliz com a sua chegada, ainda mais porque acreditava

que ele poderia melhorar os ânimos de seu pai e de Elizabeth, que ainda não acreditava na

culpa de Justine Moritz, uma empregada muito querida da família. Essa revelação espanta

Frankenstein, afinal ele sabia quem era o assassino. No entanto, as circunstâncias apontavam

para a pobre empregada, porque o pingente que estava com William foi encontrado em um

bolso da roupa dela, que foi incapaz de explicar qualquer coisa, pois estava dormindo em um

celeiro próximo à cena do crime e não sabia dos acontecimentos. Em seguida, seu pai e

Elizabeth aparecem para cumprimentá-lo, ambos preocupados com o julgamento,

principalmente a jovem, pois não sabia se iria aguentar a perda de duas pessoas amadas,

William e Justine. Passados alguns dias, o julgamento ocorreu. O resultado foi a pena capital

para a Justine, apesar dos esforços da família Frankenstein em atestar a sua bondade.

22

Após todos esses acontecimentos, a família Frankenstein decide passar um tempo em

outra casa, para descansar. Isso elevou o ânimo de Victor, que se martirizava pela sua criação.

Durante o tempo que estava nessa casa, o jovem Frankenstein constantemente procurava se

acalmar por meio de caminhadas. Em uma delas, resolveu ir aos vales alpinos. Logo que

alcançou o topo do Mont Blanc, viu a figura de um homem avançando aos pulos em sua

direção. Em determinado momento, percebeu que se tratava do monstro que havia criado.

Victor o aguardou se aproximar mais para travar um combate mortal. A criatura, no entanto,

se mostrou calma, apesar da fúria de Victor, tentando tranquilizá-lo para que ele a escutasse.

O monstro, então, revela que só desejava, e até merecia, ser feliz e amado. Contudo, o

seu criador o abandonara, o que o levou a ter uma vida miserável, sendo desprezado pelas

pessoas e impedido de participar das dinâmicas sociais. Consequentemente, tornou-se um

demônio por conta desse desprezo. Assim, suplica para que Victor o faça feliz, pois será,

então, virtuoso novamente. Essa felicidade viria pela criação de uma companheira da mesma

natureza que a dele. Victor rebateu diversas vezes o pedido do seu “filho”, porque ele o

enxergava como um ser maléfico, afinal havia matado o seu irmão mais novo. A criatura

coloca as suas mãos nos olhos de Frankenstein, para que ele não tivesse a visão que o

abominava e pudesse suportar a sua presença. Em seguida, pede para que ele ouça a sua

história, a fim de auxiliá-lo na decisão sobre a criação de uma companheira. Em seu íntimo,

pela primeira vez, Victor sentiu que era de sua responsabilidade como criador dar-lhe a

felicidade antes de se queixar das suas maldades.

O monstro começa, então, a contar a sua história. Assim que Victor o abandonou,

pegou uma das roupas de seu criador e fugiu para a floresta próxima a Ingolstadt, onde buscou

abrigo e refúgio. Após um descanso, ainda era noite e se sentiu com medo, já que estava

sozinho, porém prosseguiu com a sua caminhada, descobrindo a todo instante algo novo.

Decidiu procurar uma nova morada. Ao ver uma cabana em um campo aberto coberto de

neve, provavelmente utilizada por algum pastor, resolveu dirigir-se até ela. Chegando lá,

percebeu que a porta estava aberta, então adentrou na casa e viu um senhor de idade

preparando o seu café da manhã. O humano prontamente reparou a criatura, o que o fez fugir

do local. O monstro, com fome, foi se alimentar e descansar na cabana. No dia seguinte,

partiu em sua viagem, até encontrar um vilarejo. As crianças que lá haviam, assim que

perceberam o monstro, saíram correndo e gritando, até mesmo uma mulher desmaiou por

causa da feição do ser. Logo em seguida, todo o vilarejo estava pertubado, algumas pessoas

fugiram, outras tentaram atacá-lo com pedras. Ele fugiu para uma área descampada, onde se

refugiou em uma choupana, próxima a um chalé. Segundo a experiência recente, a criatura23

receou entrar na casa vizinha, permanecendo no local em que estava, por sua segurança,

apesar das condições precárias. Em seguida, logo ao raiar do dia, resolveu conhecer a área

enquanto os humanos não apareceriam, para recolher comida, água e materiais a fim de cobrir

os buracos da choupana e torná-la mais agradável.

Foi nesse local que o monstro acompanhou a rotina de uma família que morava no

chalé. Inicialmente, não compreendia a dinâmica deles, porque não entendia o que falavam,

mas sabia que havia um jovem, uma jovem e um senhor de idade. Ele desejava ardentemente

viver junto daquela família, por conta do afeto e do amor que eles tinham entre si, mas não

ousava se aproximar, por causa da maneira com que já havia sido recebido anteriormente.

Assim, decidiu se manter escondido, apenas espiando os vizinhos, no intuito de entender os

motivos para agirem daquela forma, até resolver o que fazer.

Apesar de se tratarem bem, não eram sempre felizes, pois o monstro os via chorando

frequentemente, o que era curioso para ele, já que, na sua visão, tinham de tudo. O fato de eles

serem também infelizes, de certa forma, o consolava, porque não seria de todo estranho que

uma criatura solitária e miserável como ele também fosse infeliz. Demorou um tempo até

perceber o motivo da tristeza deles: eram bem pobres. Por diversas vezes, os jovens tiravam

de seus pratos para colocar no do senhor, em um tocante ato de altruísmo. Isso mexeu muito

com o monstro, em especial porque ele roubava parte da comida deles à noite. Ao perceber,

então, que prejudicava ainda mais a situação dos vizinhos, deixou de roubar, passando a viver

somente do que encontrava na mata próxima, além de auxiliá-los em suas tarefas, como a

coleta de lenha.

Uma outra descoberta que animou bastante o monstro foi a apreensão do modo com

que os vizinhos se comunicavam. Ele percebeu que eles articulavam determinados sons uns

aos outros. Além disso, percebeu que os sons estavam associados a certos símbolos, porque,

frequentemente, o jovem emitia ruídos parecidos ao olhar para certos papéis quando se

sentava com a jovem. De todo modo, a criatura encontrou muita dificuldade para

compreender plenamente, obtendo sucesso apenas na fala, em um primeiro momento. Assim,

entendeu os nomes de cada um dos vizinhos, apesar do jovem e da moça terem mais de um,

na visão dele. O senhor era o único com um nome só: “pai”. A moça poderia ser: “irmã” ou

“Agatha”. O jovem tinha três denominações: “Felix”, “irmão” e “filho”.

Com o passar do tempo, a criatura foi se afeiçoando cada vez mais por seus vizinhos,

assumindo mais tarefas para ajudar a família, que agradecia aos “bons espíritos” pelas

bênçãos. No entanto, ela ainda desejava entender o motivo da tristeza dos jovens. Chegou até

a pensar que estaria a seu alcance a restituição da felicidade dessas pessoas. De fato, sua24

obsessão com os vizinhos se tornou tão grande que inclusive os vislumbrava em seus sonhos.

Assim, criava inúmeros cenários nos quais ela se apresentava à família, imaginando possíveis

reações de cada um. Na sua cabeça, eles ficariam, de início, horrorizados, mas que, com as

suas palavras e seu modo gentil, conseguiria conquistar a simpatia deles e, depois, o amor.

Em um dado momento, uma jovem moça árabe chegou ao chalé, modificando

totalmente a atmosfera da casa. Felix, em especial, ficou extremamente alegre. Contudo, ela

não falava a mesma língua que eles, mas se mostrava desejosa a aprender. Assim, Felix

utilizou um livro para ensinar a jovem, Safie, enquanto a criatura, bem atenta às explicações,

aproveitou a oportunidade para compreender melhor a língua. O livro lhe deu uma perspectiva

geral sobre os costumes, governos e religiões de muitas nações. Essa leitura o inspirou

estranhos sentimentos, afinal, refletiu o monstro: seria o homem, de fato, ao mesmo tempo tão

poderoso, virtuoso e magnífico e, também, tão cruel e vil? De início, não conseguia

compreender como um homem poderia assassinar outro, nem mesmo o motivo da existência

de leis e governos. No entanto, tomando conhecimento da perversidade humana, tudo fez

sentido e somente pode sentir desgosto e repugnância.

A partir desse momento, o monstro foi adquirindo cada vez mais consciência do

mundo que o rodeava, porém não se limitou a isso. Os aprendizados serviram para refletir

sobre si. Ele aprendeu que, para ser respeitado, era necessário cumprir pelo menos um dos

seguintes requisitos: pertencer a uma linhagem nobre ou ser rico. Caso contrário, o homem

era considerado escravizado ou vagabundo. Entretanto, ele se pergunta: e o que sou eu?45;

porque era totalmente ignorante sobre o seu criador e a sua criação, além de saber que não

possuía nenhum bem material e nenhum amigo. Em adição, tinha conhecimento da sua feição

horrenda, diferente da natureza humana, e das suas capacidades físicas e de sobrevivência

sobre humanas. Não havia visto ninguém parecido com ele, muito menos ouvido alguém falar

a respeito de uma criatura semelhante. Assim, admite, por reflexão, a sua natureza

monstruosa46. O monstro, então, reconhece que, apesar de desejar ardentemente viver entre os

seus vizinhos, ele não era digno.

Demorou um tempo até que o monstro soubesse da história dos seus “amigos”. A

família em questão era a dos De Lacey, com grande renome na França. No entanto, eles

caíram em desgraça após a condenação do pai de Safie, que era um comerciante turco. Isso

porque ele se tornou um inimigo do governo francês e Felix, para agradar a sua amada e

46 No original: Was I, then, a monster, a blot upon the earth, from which all men fled and whom all mendisowned?. Idem, p. 84.

45 Tradução própria. No original: And what was I?. Idem, p. 84.

25

conquistar a bênção do pai dela, resolveu pôr em prática um plano para libertá-lo da prisão.

No entanto, após o sucesso da missão, Agatha e o seu pai foram presos por conta do que o

jovem realizou, chegando tal notícia até ele, que precisou retornar ao país para tentar livrar

sua família, enquanto a sua amada permaneceria com o pai dela em uma cidade italiana.

Paralelamente, o pai de Safie desejava trair o Felix, tentando fazer a sua filha se esquecer

dele, pois não aceitava a ideia dela se casando com alguém de cultura diferente. Entretanto,

ela não achava isso justo e traiu o próprio pai, fugindo da cidade com parte do dinheiro dele.

Foi dessa forma que ela chegou até a nova casa dos De Lacey na Alemanha.

Um tempo depois, a criatura se deparou com uma mala com alguns livros, enquanto

estava na floresta para pegar madeira e comida. Para a sua sorte, os livros estavam escritos na

língua que aprendia com os De Lacey, ajudando-o a estudar mais a fundo. As obras eram:

Paraíso Perdido de John Milton, Os Sofrimentos do Jovem Werther de Goethe e um volume

de Vidas Paralelas de Plutarco. O conhecimento que esses livros deram ao monstro são de

difícil descrição. Eles produziram diversas novas imagens e sentimentos, que, por vezes, o

levaram ao êxtase, mas, na maior parte do tempo, o levaram à mais profunda depressão.

Os três livros muito marcaram o monstro e serviram para o seu aprendizado sobre o

mundo e a humanidade. O mais relevante deles foi o Paraíso Perdido, porque a criatura se viu

nos personagens. De início, a identificação era com Adão, pois foi criado por Deus e era feliz

no Paraíso. Entretanto, o amor do criador pela criatura afastou a identificação, porque era o

que faltava para o monstro. Assim, deixou de se perceber no homem para se encontrar em

Satã, o anjo caído. Isso porque os dois eram miseráveis e haviam perdido o afeto de seus

criadores. Tal visão corrobora com a sua conclusão a respeito de sua monstruosidade. Por

outro lado, a criatura também leu o diário de Victor, pois ele estava em uma das roupas que

ela levou na noite de sua criação. Esse caderno assombrou profundamente o monstro, porque

expunha os horrores do processo criativo.

Com isso em mente, a criatura tentou se afastar das ideias horrendas com o sonho de

ser aceita pelos vizinhos, fomentando ainda mais os seus planos de se revelar a eles. A ideia

era conquistar primeiro o afeto do pai, pois era cego, e depois dos jovens, a partir do

testemunho do patriarca. Após meses de preparação, o dia em que o pai ficou sozinho no

chalé chegou. Reunindo toda a coragem que tinha em si, foi até a porta e bateu. Sentou-se

perto do fogo e começou a conversar com o patriarca. O monstro se apresentou como um

viajante que ia encontrar amigos muito queridos, mas que jamais haviam se encontrado,

demonstrando a sua preocupação com a aceitação deles, pois, caso contrário, estaria sozinho

no mundo. De Lacey dá alguns conselhos, encorajando-o a buscar o afeto desses amigos,26

porque, se eles forem mesmo gentis, não o deixariam de lado. Pela primeira vez, o monstro

recebe palavras gentis e afetuosas direcionadas a si. Em seguida, o pai pergunta o nome

desses amigos, o que faz a criatura chorar copiosamente. Nesse instante, ela ouve os jovens se

aproximando. Rapidamente, suplica ao pai que a salve, pois os amigos de quem falara eram

ele e a sua família. Contudo, o pedido foi em vão. Assim que os jovens viram o monstro,

ficaram horrorizados. Felix avançou para atacá-lo a fim de livrar o pai daquela presença.

Durante o tumulto, a criatura foge do chalé para a choupana, sem machucar qualquer um

daquela família, apesar de ter toda a capacidade para tanto.

A partir daquele momento, o monstro declarou guerra contra os humanos, em especial

contra o seu criador. Assim, decidiu procurá-lo em sua cidade natal, Genebra. Victor era a sua

única esperança de receber socorro, apesar de sentir somente ódio contra o seu pai. No trajeto

até a cidade suíça, o monstro encontra uma criança que tinha caído em um rio de forte

correnteza. Ele logo corre para salvá-la da morte. No entanto, um camponês aparece atrás dela

e, ao vê-la com o monstro, atira contra ele. Novamente, mostrando que, mesmo com os

esforços para ser bondosa, a criatura continua sendo rejeitada pela humanidade por causa da

sua aparência. Após a recuperação das feridas, ela chega nos arredores de Genebra, porém é

perturbada por um pequeno menino. O monstro tem a ideia de se aproximar dele para criá-lo

como um amigo, já que não deveria ter nenhum preconceito por ser muito novo. No entanto, a

criança começa a gritar e chamá-lo de monstro, acreditando que ele iria matá-la. Logo em

seguida, ela afirma que o seu pai, Sr. Frankenstein, era juiz e iria puni-lo. A criatura, ao ouvir

o nome Frankenstein, associou o menino ao seu criador, decidindo fazer dela a sua primeira

vítima. Agarrou o pescoço da criança para a calar, mas foi suficiente para ela cair morta. O

monstro urrou de animação, pois também conseguia causar destruição ao seu inimigo.

Percebeu que o menino carregava consigo um pingente com o retrato de uma bela mulher. Por

conta da beleza, o monstro pega esse pingente para si e foge da área, encontrando mais à

frente um celeiro, que acreditava estar vazio. Na verdade, havia uma moça dormindo no local

e, maliciosamente, coloca o pingente do menino em um dos bolsos dela, para que fosse

incriminada pelo assassinato.

Após ter saído do celeiro, ficou vagando na área por um tempo, na expectativa de se

encontrar com o seu criador. Isso porque desejava ardentemente algo que somente Victor

poderia satisfazer. Ele queria uma companhia, mas, como os homens o desprezavam, teria de

ser de uma criatura como ele, que não o rejeitaria por compartilhar da mesma natureza. Por

conta disso, chamou o seu criador para ouvir a sua história, na expectativa de que a sua

miséria comovesse Victor a atender ao seu pedido. Até antes da parte de William e Justine,27

Frankenstein estava inclinado a aceitar os rogos de sua criatura, porém o final trouxe de volta

toda a raiva que sentia. Frankenstein recusou o pedido, sob a justificativa de que a criação de

uma companheira poderia levar à destruição da humanidade. O monstro, então, tenta

persuadir o seu criador, porque a companheira serviria para livrá-lo do seu sofrimento,

imposto por Victor ao rejeitá-lo e deixá-lo sozinho no mundo, privado de todo e qualquer

contato e amor. O discurso do monstro comoveu Frankenstein, apesar de ele se preocupar com

as consequências do seu aceite, mas sentiu que o pedido era justo. O criador ainda estava um

pouco dividido quanto ao desejo e perguntou se o monstro realmente não seria mal, dada a

destruição já causada. A criatura responde que, por ora, só poderia entregar o mal, porque

assim era tratada, mas, a partir do momento que tivesse a companhia de um igual, ela deixaria

o seu antigo caminho para trilhar o das virtudes e da bondade, longe de todos os homens. Para

tanto, Victor aceita o pedido, porque acredita na palavra do monstro e sentia que era seu dever

dar-lhe a felicidade que estava ao seu alcance. Antes de deixá-lo, o monstro afirma que o

acompanhará na sua empreitada, para verificar o seu progresso e estar pronto quando for o

momento de conhecer a sua companheira.

Em casa, o jovem Frankenstein passa semanas reunindo forças para cumprir com a sua

promessa. Ele pede ao seu pai para que adie o casamento com Elizabeth, pois havia, enfim,

aceitado o pedido de sua mãe no leito de morte, porém não poderia realizá-lo sob o peso do

pacto com o monstro. Assim, ele parte em viagem para a Inglaterra, sob o pretexto de acalmar

os ânimos e se preparar para o casamento. Na realidade, a viagem serviria para obter mais

informações a respeito de sua segunda criação. Sem que Victor soubesse, seu pai combinou

com Elizabeth e Henry que o amigo o acompanharia a fim de tirá-lo da solidão. Em um certo

dia, os companheiros receberam uma carta de um conhecido convidando-os para ficar em sua

casa, em Perth, na Escócia. Os dois receberam o pedido com muita animação, porém Victor,

ao chegar na cidade, é acometido por um mal estar, pois lembrara do acordo com o monstro.

Dessa forma, ele abandona o seu amigo para se isolar em uma ilha no arquipélago de Órcades,

para não atrapalhar a visita com seu estado de espírito e poder, então, se dedicar à criação. No

novo local, Frankenstein estava praticamente sozinho e, a cada dia de trabalho que passava,

maiores eram os tormentos pelo seu ofício. Na primeira criação, uma espécie de frenesi o

cegou dos horrores de seu trabalho, inebriado pelo desejo de consumá-lo. Agora, porém,

precisava trabalhar a sangue frio, por ter noção do que fazia. No meio tempo, pelo avanço da

sua criação, contemplava a conclusão com um misto de ansiedade e hesitação, que não ousava

questionar, apesar de pressentir o mal que inquietava o seu coração.

28

Em uma certa noite, com pouca luz lunar, Victor estava no laboratório refletindo se

pararia os trabalhos naquela hora ou se continuaria noite adentro para terminá-lo rapidamente.

Logo em seguida, uma série de pensamentos vieram a sua cabeça, a respeito das

consequências de seu pacto com o monstro. Três anos antes, ele se dedicava ao mesmo

trabalho, criando a razão da sua futura tristeza irreparável, o maior arrependimento de sua

vida. E, agora, ele estava prestes a dar vida a mais uma criatura como aquela. Ele não sabia

como ela seria, como ela iria reagir à vida e ao pacto feito com o que seria o seu companheiro.

Ela poderia ser muito mais maligna que o monstro ou recusar a proposta de se isolar da

humanidade com ele. Talvez, até o abandonasse, deixando-o sozinho e mais miserável ainda,

já que teria sido desprezado pela sua própria espécie. Ainda que fossem para longe da

humanidade, uma das primeiras consequências dessa relação seria o desejo de ter filhos, o que

poderia criar e propagar uma nova raça de demônios, tornando a existência humana miserável

e repleta de terror. Ele acreditou no discurso da sua criatura, deixando ser levado pelas suas

ameaças, mas agora tinha retomado a sua consciência. Enfim, sentiu o impacto da

perversidade do seu acordo. Ele estremeceu com a ideia de ser amaldiçoado pelas futuras

gerações como o seu algoz, que, por um ato egoísta, buscou a própria paz ao preço, talvez, da

existência da humanidade.

Victor olhou pela janela e viu o monstro, com um sorriso horripilante e olhos fixos no

seu criador. De fato, ele havia o seguido durante toda a viagem e agora estava ao seu lado para

reclamar o seu prêmio. Enquanto o olhava, Victor percebeu a expressão de seu rosto, que

demonstrava a maior das maldades. Em um ato súbito, tendo em mente a promessa de criar

outro igual ao monstro, destruiu a criatura que esteve trabalhando por tanto tempo. O monstro

uivou de desespero, clamando por sua vingança, porque depositara toda a sua felicidade

naquela companheira, que agora estava em pedaços. O demônio logo chegou ao local,

ameaçando Victor por conta do que acabara de fazer: “Escravo, eu antes discuti contigo, mas

você provou ser indigno da minha condescendência. Lembre-se que eu tenho poder; você

acredita que é miserável, mas eu posso fazê-lo tão miserável que a luz do dia será odiosa para

você. Você é meu criador, mas eu sou seu mestre; obedeça!”47 (grifos nossos). No entanto,

Frankenstein não se submete a sua criatura novamente, muito pelo contrário, ele se posiciona

contra ela e se mostra decidido a não realizar o seu perverso desejo. Vendo que nada mais era

possível, o monstro respeita o pedido de seu criador, mas com um adendo: “Está bem. Eu vou;

47 Tradução própria. No original: Slave, I before reasoned with you, but you have proved yourself unworthy ofmy condescension. Remember that I have power; you believe yourself miserable, but I can make you sowretched that the light of day will be hateful to you. You are my creator, but I am your master; obey! Idem, p.113.

29

mas lembre-se, eu devo estar contigo na sua noite de núpcias”48 (grifo nosso). Frankenstein

estremecia com a ideia de quem poderia ser a próxima vítima de sua insaciável vingança. Em

seguida, tornou a pensar nas suas últimas palavras, sobre estar com ele na noite de núpcias.

Esse era, então, o prazo para se cumprir o seu destino, seria a hora de sua morte, para

satisfazer e pôr um fim à perversidade do monstro. A ideia de morrer não o atormentava,

porém, ao pensar na tristeza que Elizabeth sentiria, ele mesmo chorou, derramando as

primeiras lágrimas em meses, e determinou não se entregar ao seu inimigo antes de uma

amarga luta.

Após esses acontecimentos, Victor recebe uma carta de Henry, avisando-o que o

retorno à Genebra estava próximo e que eles deveriam se encontrar em Perth para partirem

juntos. Frankenstein pega, então, o seu barco e parte rumo ao amigo no meio da madrugada,

para não levantar suspeitas. No meio do trajeto, ele joga os restos do seu trabalho no mar, a

fim de se livrar de vez daquilo que o atormentava. Ao olhar a costa, percebeu que era habitada

e resolveu se dirigir até ela, pois lá poderia encontrar ajuda para encontrar o caminho até

Perth. Contudo, a recepção dos cidadãos não foi a mais convidativa. Enquanto ele ajeitava o

barco, uma multidão se formou ao seu redor, cochichando e fazendo gestos entre si, o que o

deixaria atento se fosse em outro contexto. Ao se lembrar que falavam inglês, Victor

perguntou-lhes onde ele estava, sendo respondido de forma grosseira por um deles. Após

perguntar sobre a estalagem e ninguém respondê-lo, partiu para a cidade, porém foi parado

por um deles. O sujeito disse-lhe que ele precisaria prestar contas ao Sr. Kirwin, o juiz local,

pois ele deveria ser interrogado pelo magistrado por conta do assassinato de um homem.

Frankenstein foi logo apresentado ao juiz, que o olhou com severidade e pediu para

que as testemunhas, um grupo de homens, falassem. A história contada dizia que eles estavam

retornando de uma pescaria quando um deles tropeçou em um corpo à noite. Logo perceberam

que o corpo estava sem vida, porém não foi morto por afogamento, mas por estrangulamento,

pelas marcas arroxeadas no pescoço. Assim que soube dessas marcas, Victor logo se lembrou

de seu irmão William, o que o fez estremecer, fortalecendo a suspeita sobre o jovem

Frankenstein. Em seguida, após esse testemunho ser comprovado por muitos, eles passaram

para o ponto de chegada de Victor no local. Ele aportou um pouco depois do corpo ser

encontrado e em um local próximo, o que se juntou ao fato da agitação marítima para

sustentar o argumento de que Victor não teve muita escolha senão retornar para o local de

onde saíra, após o assassinato. Após ouvir tudo isso e ver a agitação de Victor, o juiz decidiu

48 Tradução própria. No original: It is well. I go; but remember, I shall be with you on your wedding-night. Idem,p. 114.

30

levá-lo ao local em que o corpo estava, a fim de observar a sua reação. Frankenstein

simplesmente não suportou o que viu ao entrar no quarto, era o seu melhor amigo deitado sem

vida. Por consequência, o seu espírito ficou muito abalado e teve uma febre nervosa por dois

meses, próximo de morrer.

Um dia, quando já estava se recuperando, o Sr. Kirwin foi visitá-lo. O juiz, para

surpresa do jovem, afirmou-lhe que logo estaria fora da prisão, afinal as provas eram claras

sobre a sua inocência, apesar de todo o sofrimento infortuno que recaíra sobre ele. Após ter

sido preso, o magistrado pegou os documentos que estavam com Victor e chamou o seu pai,

que havia chegado quando da recuperação do jovem. Assim que o patriarca entrou no quarto,

o filho chorou perguntando de Elizabeth e Ernest. Todos estavam bem, o que acalmou seu

coração atribulado. Enfim, o momento do julgamento chegara, o grande júri decidiu em favor

da inocência do jovem, por conta das provas de que ele estava nas ilhas de Órcades no

momento em que o corpo foi encontrado. Logo foi liberto da prisão, para a maior felicidade

de seu pai. Entretanto, Victor não conseguia se alegrar com aquilo, pois já se sentia

condenado a ser miserável. O desejo de defender a sua família dos planos do monstro era

tamanho que, mesmo contra a vontade de seu pai, por conta da sua saúde, desejou

ardentemente retornar logo para Genebra. O pai aceitou após muita insistência, embarcando

em um navio rumo ao lar.

No dia do casamento, Elizabeth estava melancólica, com o pressentimento de que algo

de ruim aconteceria. Logo após a cerimônia, uma grande festa se deu na casa do pai, mas o

casal não participou, pois ficou combinado que eles começariam a viagem rumo à lua de mel.

Esses foram os últimos momentos de felicidade na vida de Frankenstein. Eles, enfim,

chegaram na cidade onde passariam a noite durante o caminho. Victor logo reviveu todos

aqueles medos e aquelas inquietações de outrora, que viriam prendê-lo e subjugá-lo para

sempre. Ele estava muito ansioso, segurando a pistola que tinha consigo. Elizabeth observou

em silêncio a agitação de seu marido, até que perguntou, trêmula, qual era a razão de seu

medo. Ele respondeu para que ela descansasse, pois, daquele dia em diante, tudo ficaria bem,

mas que aquela noite seria terrível. Ficou nesse estado por uma hora, até que percebeu o quão

horrível era esse combate para a sua esposa. Como realmente desejava que ela descansasse,

resolveu não se juntar a ela até que soubesse a situação do seu inimigo.

Elizabeth foi para o quarto e Victor ficou andando pela casa inspecionando cada canto,

a fim de encontrar o seu adversário. Por não encontrar vestígio algum, imaginou que, por

alguma sorte, ele havia desistido da sua ameaça. No entanto, justamente nesse momento, ele

ouviu um grito estridente e terrível vindo do quarto de Elizabeth. Assim que ouviu,31

compreendeu de imediato toda a verdade. O grito se repetiu e ele foi correndo ao quarto.

Chegando lá, viu a cena que não imaginava nem nos seus piores pesadelos. Victor desmaiou

e, quando recobrou a consciência, estava rodeado pelos funcionários da hospedaria, com

expressões aterrorizadas. Desvencilhou-se deles e correu para o quarto. Eles tinham mudado a

posição do corpo, agora ela estava com a cabeça coberta por um lenço e apoiada no braço,

quase como se estivesse dormindo. Ele a abraçou com ardor, porém percebeu que quem

segurava já deixara de ser a tão amada Elizabeth. No pescoço, jazia a marca do frio assassino.

Olhando pela janela, viu, iluminado pela luz da lua, a mais horrenda e abominável figura. O

monstro estava sorrindo para ele, apontando com o dedo para o cadáver de sua esposa em

atitude de deboche. Isso o irritou profundamente, atirando, em vão, contra o monstro. Tal

atitude fez as pessoas que lá estavam procurarem na mata os rastros do alvo de Frankenstein.

Após um tempo, a memória de suas dores o fez relembrar de quem ainda vivia, seu pai e

irmão. Para tanto, prontamente, trilhou o seu caminho de volta para casa.

Em Genebra, viu que seu pai e irmão estavam vivos, porém o patriarca não estava nas

melhores condições. O fardo da perda de alguém que fora muito mais do que uma filha

arrasou o pobre pai, que, em poucos dias, faleceu nos braços de Victor. O jovem Frankenstein,

então, estava desolado e com sede por vingança, iniciando as buscas pelo monstro. No início

de sua perseguição, à noite, encontrou-se na porta do cemitério onde estavam enterrados

William, Elizabeth e seu pai e, aos pés da tumba, ele prometeu dedicar todo o restante de sua

miserável vida a ir ao encontro do monstro para que, em um combate mortal, toda a questão

fosse resolvida. Logo em seguida, ele ouve a maldita voz sussurrar em seu ouvido: “Eu estou

satisfeito, desgraçado miserável! Você escolheu viver, e eu estou satisfeito”49. Victor correu na

direção da voz, mas a criatura se esquivou. A lua, então, a iluminou, mostrando-a correndo

rapidamente. E assim a caçada do monstro por Frankenstein se iniciou, uma tarefa que duraria

muitos meses. Apesar da rapidez da criatura, Victor sempre tinha alguma pista para continuar

perseguindo-a, quase como se quisesse ser procurada, pois poderia temer que o seu criador

morreria de desespero se não pudesse encontrá-lo. Além disso, mesmo em um trajeto de

difícil sobrevivência, Frankenstein encontrava refeições no meio do nada, como se tivessem

sido preparadas especialmente para ele, o que acreditava ser obra de bons espíritos. No

entanto, era novamente o monstro. Ele havia pensado em tudo, porque o caminho trilhado não

foi escolhido à toa, ele desejava50 que Victor sofresse tanto ou mais do que ele sofreu com a

50 No original: Prepare! Your toils only begin; wrap yourself in furs and provide food, for we shall soon enterupon a journey where your sufferings will satisfy my everlasting hatred. Idem, p. 137.

49 Tradução própria. No original: I am satisfied, miserable wretch! You have determined to live, and I amsatisfied. Idem, p. 135.

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humanidade. Para tanto, era necessário que Frankenstein continuasse vivo para continuar

padecendo, a fim de que a vingança da criatura se completasse. Continuando a peregrinação,

Victor chegou a uma cidade costeira no Polo Norte, onde, pelos cidadãos, informou-se do

caminho do monstro mar adentro, rumo ao nada. Ele se desesperou com a ideia de ter perdido

a sua caça. No entanto, partiu para alcançá-la, sabendo que provavelmente não voltaria.

Ao longo do caminho, os cachorros que levavam o seu trenó foram morrendo pelo

cansaço, na tentativa de se aproximarem do monstro. Contudo, após muitos dias, quando

finalmente estavam próximos, o mar revoltoso separou o caçador de sua caça, no que ele

acreditou ser o seu derradeiro fim, se não fosse pela chegada do navio do Capitão Walton. A

esperança de Frankenstein era que o navio seguisse na mesma direção do monstro, mas não

foi o caso, então teve a ideia de pedir um bote emprestado para cumprir a sua tarefa.

Entretanto, as suas condições de saúde eram tão frágeis que mal conseguia se manter de pé.

Por fim, Victor roga que Walton termine a sua vingança51, caso ele se encontre com o

monstro. Assim termina a história contada por Victor, e, em seguida, quem toma à frente da

narração é Walton por meio das suas cartas endereçadas a sua irmã.

O Capitão, temendo pelo estado de Victor, percebeu que somente pela morte ele

alcançaria a paz que outrora tivera. O navegante, enfim, encontrou o amigo tão procurado,

mas somente para poder conhecer o seu valor e, em seguida, perdê-lo, pois Frankenstein não

desejava continuar vivendo. Para ele, só havia mais uma tarefa52, destruir o demônio ao qual

dera vida. Além de Frankenstein, as condições da viagem também estavam delicadas, por

conta do clima. Walton desejava continuar a sua odisséia, porém a tripulação receava por suas

vidas, que estavam em perigo pelo desejo obsessivo do capitão de não voltar para casa. Por

certo, o comandante cedeu aos apelos dos demais, pois temia um motim, porém ainda odiava

essa ideia por acreditar ser covardice. Com o retorno, Victor tentou sair do barco para

continuar a sua caçada, porém desmaiou logo após se levantar da cama. Walton sabia que

eram os últimos momentos do seu amigo, assim como ele também já compreendia o seu

52 No original: I must pursue and destroy the being whom I gave existence; then my lot on earth will be fulfilledand I may die. Idem, p. 141.

51 No original: Oh! When will my guiding spirit, in conducting me to the daemon, allow me the rest I so muchdesire; or must I die, and he yet live? If I do, swear to me, Walton, that he shall not escape, that you will seekhim and satisfy my vengeance in his death. And do I dare to ask of you to undertake my pilgrimage, to endurethe hardships that I have undergone? No; I am not so selfish. Yet, when I am dead, if he should appear, if theministers of vengeance should conduct him to you, swar that he shall not live - swear that he shall not triumphover my accumulated woes and survive to add to the list of his dark crimes. He is eloquent and persuasive, andonce his words had even power over my heart; but trust him not. His soul is as hellish as his forms, full oftreachery and fiend-like malice. Hear him not; call on the names of William, Justine, Clerval, Elizabeth, myfather, and of the wretched Victor, and thrust your sword into his heart. I will hover near and direct the steelaright. Idem, p. 139.

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destino. Frankenstein, então, reunindo todas as suas forças professa as suas palavras finais53,

alertando o companheiro dos perigos de uma ambição desvairada, vale mais procurar a

felicidade na tranquilidade, por experiência própria do jovem cientista. Após esse discurso,

Victor tentou novamente falar, mas não conseguiu, apertando as mãos de Walton para, enfim,

fechar os olhos para sempre.

À meia-noite, Walton escuta uma voz na cabine onde estava o corpo de Victor. Lá

estava o monstro, debruçado sobre o corpo de seu criador. A criatura parou as suas

lamentações e se aproximou da janela quando ouviu o Capitão entrar no local. Ele não

suportou a aparência monstruosa, fechando os olhos involuntariamente. Walton pediu para

que a criatura ficasse, afinal precisava terminar o trabalho de Frankenstein. O monstro logo

falou:

“Esta também é minha vítima!!” ele exclamou. “Em seu assassinato, meus crimesestão consumados; a série miserável do meu ser está quase acabando! Oh,Frankenstein! Ser generoso e dedicado a si mesmo! De que adianta eu agora te pedirque me perdoe? Eu, que te destruí irremediavelmente ao arruinar tudo que amou. Aide mim! Ele está frio, não pode me responder ”54.

O Capitão queria destruir a criatura, porém foi impedido pela sua curiosidade. Os dois,

então, começam um diálogo, em que Walton tenta mostrar o lado de Victor à criatura,

54 Tradução própria. No original: “This is also my victim!!” he exclaimed. “In his murder my crimes areconsummated; the miserable series of my being is wound to its close! Oh, Frankenstein! Generous andself-devoted being! What does it avail that I now ask thee to pardon me? I, who irretrievably destroyed thee bydestroying all thou lovedst. Alas! He is cold, he cannot answer me”. Idem, p. 146.

53 No original: Alas! The strength I relied on is gone; I feel that I shall soon die, and he, my enemy andpersecutor, may still be in being. Think not, Walton, that in the last moments of my existence I feel that burninghatred and ardent desire of revenge I once expressed; but I feel myself justified in desiring the death of myadversary. During these last days I have been occupied in examining my past conduct; nor do I find it blamable.In a fit of enthusiastic madness I created a rational creature and was bound towards him to assure, as far as wasin my power, his happiness and well-being. This was my duty, but there was another still paramount to that. Myduties towards the beings of my own species had greater claims to my attention because they included a greaterproportion of happiness or misery. Urged by this view, I refused, and I did right in refusing, to create acompanion for the first creature. He showed unparalleled malignity and selfishness in evil; he destroyed myfriends; he devoted to destruction beings who possessed exquisite sensations, happiness, and wisdom; nor do Iknow where the thirst for vengeance may end. Miserable himself that he may render no other wretched, he oughtto die. The task of his destruction was mine, but I have failed. When actuated by selfish and vicious motives, Iasked you to undertake my unfinished work, and I renew this request now, when I am only induced by reasonand virtue. Yet I cannot ask you to renounce your country and friends to fulfil this task; and now that you arereturning to England, you will have little chance of meeting with him. But the consideration of these points, andthe well balancing of what you may esteem your duties, I leave to you; my judgment and ideas are alreadydisturbed by the near approach of death. I dare not ask you to do what I think right, for I may still be misled bypassion. That he should live to be an instrument of mischief disturbs me; in other respects, this hour, when Imomentarily expect my release, is the only happy one which I have enjoyed for several years. The forms of thebeloved dead flit before me, and I hasten to their arms. Farewell, Walton! Seek happiness in tranquillity andavoid ambition, even if it be only the apparently innocent one of distinguishing yourself in science anddiscoveries. Yet why do I say this? I have myself been blasted in these hopes, yet another may succeed. Idem, p.144-145.

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enquanto ela busca se defender. O monstro confessa que só desejava o amor, sem se importar

de quem fosse, porém isso lhe foi constantemente negado. Por conta disso, odiou

profundamente o seu criador, porque ele podia usufruir de tal sorte, enquanto a criatura estava

destinada ao desprezo e à solidão. A criatura tinha dimensão dos seus atos e os cometia para

atingir Frankenstein. Entretanto, como ele estava morto, a sua vida não mais possuía sentido,

os seus trabalhos estavam completos. Consequentemente, deveria morrer, não por mãos

humanas, mas pelo fogo que acenderia em meio ao Polo Norte, encerrando todo o seu

sofrimento, o que, enfim, traria felicidade. Ela se despede de Walton após esse discurso e sai

pela janela, desaparecendo no gelo e na escuridão, para, então, pôr um fim à sua miserável

existência. Ninguém foi testemunha da fogueira que queimou o monstro, mas nunca mais ele

foi visto. Assim termina a infame história de Frankenstein, o louco criador que tentou ser

Deus e que, nessa tentativa, destruiu a sua vida e a de sua família e amigos.

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6. AFINAL, O QUE É UM HERÓI?De início, é importante trilharmos o caminho literário para compreendermos como

analisar a Literatura para inseri-la na sua relação com o Direito. Nesse sentido, optamos pela

grande obra “Teoria do Romance”55 de Georg Lukács, com o auxílio do artigo de Tiago

Martins56, a fim de consolidar as bases literárias necessárias para a nossa posterior análise de

Frankenstein.

No mundo criado pelos homens, as teorias são utilizadas para analisar se os dados

estão corretos, ao invés de utilizá-los para aprimorar as teorias, no intuito de adequar o

instrumento à realidade57. Dessa forma, cria-se um verdadeiro cárcere58 para a vida humana,

controlando todos os indivíduos. Isso porque, por mais que os desejos dos indivíduos sejam

válidos, as normas vigentes são tão fortes que os proíbem. Consequentemente, o Romance

surge para lutar contra essa prisão, em que os heróis se sentem descolados da realidade e das

convenções, buscando nadar contra a corrente para realizarem os seus desejos. Assim, Lukács

se propõe a estudar essa relação entre as pessoas e o mundo dentro do Romance59, com os

personagens assumindo questionamentos e vivências de pessoas que poderiam existir no

plano real.

Mas qual foi a metodologia adotada pelo húngaro? Ele analisou, de primeiro, as

Epopéias gregas, a fim de compará-las com a literatura que ocorria em seu tempo. O mundo

grego era, segundo Lukács, um local em que o homem não era dividido em essência e

exterioridade, porque o que se passava em sua alma era refletido na estrutura social vivida,

dado que o mundo ainda não era um cárcere60. Claro que ele não era o mundo, divergindo em

certos pontos, mas não chegava no nível de castração do mundo-cárcere. Então, a Epopéia

surge como uma literatura que expressa os valores gerais da sociedade, em que os

personagens não são indivíduos únicos e isolados, pelo contrário, eles fazem parte de um

todo, representando a sua comunidade inteira61. Esse é o ponto-chave de diferenciação entre a

61 Idem, p. 250.60 Idem, p. 250.59 Idem, p. 250.58 Idem, p. 249.57 Idem, p. 249.

56 MARTINS, Tiago. Notas sobre o romance e sobre a teoria do romance: a questão da condição humana em umgênero que ainda vive. Revista Virtual de Letras, Jataí, v. 04, n. 02, p. 247-267, ago./dez., 2012. Disponívelem: http://www.revlet.com.br/artigos/167.pdf. Acesso em: 14 jan. 2021.

55 LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. SãoPaulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.

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Epopéia e o Romance, isto é, a ligação com a sociedade em que vive. Em todo Romance, o

personagem foge de sua realidade, pois ele não consegue identificar o seu interior refletido na

sua comunidade62. Dessa forma, ele só se revela pelo embate63, o que gera o enredo das obras,

porque o herói trilha a sua jornada em busca dessa sua essência, pela mudança do mundo. É a

busca incansável pela essência que destaca os heróis dos demais habitantes do mundo-cárcere,

quase como se estivessem, pelas palavras de Lukács, possuídos por demônios64. Nesse

sentido, o Romance busca contrariar a ordem social vigente65, representando uma realidade

interior que não é refletida na sociedade e, então, gera o cárcere das almas.

Como um seguidor de Marx, Lukács utilizou, também, o materialismo

histórico-dialético em sua obra sobre o Romance, o que pode ser verificado na forma com que

ele identificou a criação da estrutura desse gênero literário. Isso porque teria sido a sociedade

capitalista, com a sua não identificação com o mundo que criou o Romance, pela diferença

“entre o que queremos ser/fazer e entre o que temos de ser e fazer”66. Por conseguinte, pelo

esvaziamento do mundo exterior, nós somos estimulados a buscar novamente a nossa

essencialidade interior, o que pode ser atingido pelas obras romanescas. Novamente, no

mundo grego esse vazio era inexistente, então não havia necessidade dessa busca. No entanto,

o homem não se sente mais completo, pois é regulado pela sociedade, distanciando-se dos

seus reais anseios67. Consequentemente, a humanidade se identifica com os heróis, que

passam pelos mesmos problemas, porém, diferentemente deles, nós geralmente não

conseguimos vencer os grilhões sociais, pois as estruturas da sociedade dependem disso para

sobreviver e nos reprimem de tal maneira que é criada uma barreira quase intransponível68.

Com isso em mente, o Romance pode ser entendido como um gênero de reflexão69,

afinal trata do herói em busca de si mesmo, após perceber que o mundo ao seu redor não o

representa. Por conseguinte, revela ao leitor, pela identificação com o personagem, o seu

próprio interior. Para tanto, ao colocar a narrativa na visão do herói, o Romance consegue

desvelar um novo mundo para os leitores, que, percebendo as incoerências, podem criar em si

as suas próprias reflexões e conclusões sobre as suas vidas70. De fato, “atingir esse novo

patamar nos modifica radicalmente, pois é quase como descobrirmos que o mundo em que

70 Idem, p. 255.69 Idem, p. 254-255.68 Idem, p. 253.67 Idem, p. 253.66 Idem, p. 253.65 Idem, p. 252.64 Idem, p. 257.63 Idem, p. 251-252.62 Idem, p. 251-252.

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vivíamos não era real. Descobrimos quem somos e agora temos de viver em uma terra em que

ninguém fala a nossa língua”71. Lukács tem uma visão pessimista sobre esse

autoconhecimento72, porque o abismo entre ser e dever-ser nunca será superado. As ideias

jamais se refletirão na realidade. Contudo, é nesse mundo das ideias que a humanidade

encontra algum sentido para vida e para a sua essência. Assim, ele mesmo afirma: “esse mero

vislumbre do sentido é o máximo que a vida tem para dar, a única coisa digna do investimento

de toda uma vida, a única coisa pela qual essa luta vale a pena”73.

Para tanto, não só o Romance, mas a própria Literatura e as Artes se preocupam com a

reflexão74, de forma a proporem análises e reconstruções sobre qualquer assunto por meio de

suas obras. Assim, elas tratam de problemas essenciais da vida humana, tanto para os

personagens, como para quem os vislumbra. Afinal, os indivíduos se espelham no enredo75, de

forma a se aproximar (modelo) ou a se afastar (antítese) dele. Portanto, é a Arte que liberta a

população de sua cegueira e inércia76 frente ao que o Capitalismo propõe como Belo e correto,

dando vida àqueles que antes se encontravam mortos.

76 Idem, p. 257.75 Idem, p. 257.74 Idem, p. 257.73 Idem, p. 255.72 Idem, p. 255.71 Idem, p. 255.

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7. A HISTÓRIA DO MONSTROApós a primeira parte desta pesquisa, atinente à Literatura, adentramos, então, no

espaço jurídico e político, que diz respeito à Assembléia Nacional Constituinte de 1987-1988

(ANC). Ela foi um marco da redemocratização brasileira após a Ditadura Militar (1964-1985),

culminando na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF). Dessa forma,

este capítulo trata de resumir tal evento histórico, a fim de compreendermos melhor as suas

etapas e o seu modo de funcionamento, para a posterior análise da relação entre a ANC e a

CF.

7.1 Redemocratização e a década de 80

Em 1964, os militares, aliados a certos setores da sociedade, derrubaram o governo de

João Goulart, por meio de um golpe, instaurando a Ditadura Militar, que perdurou até 1985. O

marco desse período foi a repressão que a população sofreu, sendo perseguida e censurada,

por exemplo, por expressarem suas opiniões. As ações dos militares, apesar de condenáveis,

eram amparadas na legislação, em especial nos atos institucionais (AIs), baixados diretamente

pelo Executivo. Como o golpe rompeu com o período anterior, foi necessário elaborar uma

nova Constituição. Nesse sentido, o governo convocou uma Constituinte por meio de uma

Emenda Constitucional (EC) para elaborar, sob a pressão dos militares, uma nova Carta,

promulgada em 1967, incorporando os atos institucionais. O mais repressivo foi o AI-5, que

decretou, por exemplo, o fechamento do Congresso Nacional (CN) pelo presidente, aumentou

a censura às obras de arte e suspendeu o habeas corpus77 em crimes de motivação política.

Assim, a luta78 pelo fim da Ditadura foi muito presente, em especial nos últimos dois

governos, responsáveis pela abertura do regime. Um dos importantes movimentos foi o

Diretas Já, que buscou garantir a eleição direta para a presidência da república, uma vez que,

durante a Ditadura, ela se manteve de forma indireta por meio de um colégio eleitoral. Dessa

forma, a população desejava romper com a Ditadura para criar uma nova ordem

constitucional79, capaz de reatar o pacto político-social com o povo brasileiro, por meio da

79 Idem, p. XX.

78 LIMA, João Alberto de Oliveira; NICOLA, João Rafael; PASSOS, Edilenice (orgs.). A gênese do texto daconstituição de 1988. v. I. Brasília: Senado Federal, 2013. p. XX.

77 O habeas corpus é um dos remédios constitucionais, que são ações judiciais para a proteção, por exemplo, dedireitos constitucionalmente garantidos. Nesse sentido, o seu objetivo é a defesa do direito à liberdade delocomoção em casos, geralmente, de abuso de autoridade, como as prisões ilegais. É importante ressaltar que ohabeas corpus é o remédio constitucional mais antigo do Brasil e um dos mais importantes, então a suasuspensão durante a Ditadura Militar mostra o quão repressivo foi esse momento da história brasileira. SILVA,Virgílio Afonso da. Direito constitucional brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2021.p. 323-325.

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eleição de um governante pela sociedade, detentora do poder constituinte originário80. No

entanto, apesar dos esforços, o movimento não conseguiu obter êxito e o primeiro presidente

civil foi eleito indiretamente.

A chapa vencedora era composta por Tancredo Neves como presidente e José Sarney

como vice, ambos do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). No entanto,

logo antes da posse, Tancredo adoece e é internado, impossibilitando a sua cerimônia de

posse. Assim, ocorre um impasse político, porque não se sabia quem deveria ocupar a

presidência enquanto o “herdeiro” se recuperava. Alguns políticos argumentaram que Sarney

não era legítimo, pois ele, como vice, não poderia substituir aquele que não tinha tomado

posse de seu cargo. Contudo, o General Leônidas, Ministro da Defesa do novo governo,

intervém para garantir a posse de Sarney, a fim de evitar mais desgastes políticos e receios

sobre os militares. Essa decisão, para a surpresa de muitos políticos, foi aceita por Ulysses

Guimarães, o então presidente da Câmara dos Deputados e sucessor do cargo de presidente,

posto que era um de seus objetivos enquanto político.

Sarney toma posse de forma interina no dia 15 de março de 1985, mas ela se torna

definitiva com o falecimento de Tancredo um pouco mais de um mês depois, no dia 21 de

abril. É importante ressaltar que Sarney não se sentia digno de ocupar a presidência, porque

ele foi eleito vice e só estava naquela posição pelo falecimento de seu companheiro. Para

tanto, de início, comandou o cargo de forma bem tímida, buscando dar prosseguimento aos

ideais de Tancredo, como a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte para

elaborar a Carta Magna que romperia com a época opressiva anterior, abrindo os caminhos

para o retorno da democracia no Brasil.

Como a figura política do Sarney estava muito fragilizada com o falecimento de

Tancredo, antes de convocar a ANC, ele formou a Comissão Provisória de Estudos

Constitucionais (CPEC), mais conhecida como Comissão Afonso Arinos, por ter o político

homônimo como o seu presidente, ou como a Comissão dos Notáveis. O propósito desse

grupo era o de elaborar um anteprojeto de Constituição para servir de base aos trabalhos da

ANC. A comissão foi composta por 50 integrantes, dentre eles diversos juristas, como Miguel

Reale, Miguel Reale Júnior e Sepúlveda Pertence, e estudiosos importantes da época, como

Celso Furtado, Gilberto Freyre e Jorge Amado. Dentre os integrantes, alguns participaram de

forma direta na ANC, como Afonso Arinos, que foi o presidente da Comissão de

Sistematização, e José Afonso da Silva, um dos assessores jurídicos. A CPEC funcionou a

80 SILVA, Virgílio Afonso da. Direito constitucional brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de SãoPaulo, 2021. p. 45.

40

partir da sua convocação com o Decreto nº 91.450, de 18 de julho de 1985, até o término do

anteprojeto em 18 de setembro de 1986. A ideia do Executivo enviar um anteprojeto para

Constituintes costuma estar associada a figuras executivas fortes81, o que não foi o caso de

Sarney82, dada as tribulações do início de seu governo. No entanto, o presidente insistiu com a

CPEC, porque seria a ideia de Tancredo e, principalmente, pois a aprovação desse texto pela

ANC consistiria em uma vitória pessoal e política dele, de forma que a CF poderia ser

conhecida como “O Projeto de Sarney”83.

7.2 Convocação da Constituinte

Enquanto a CPEC trabalhava, discutia-se no Brasil como seria a ANC: soberana?

livre? Congresso Constituinte? Constituinte exclusiva? Dentre tantas alternativas, o presidente

Sarney e o CN deram as suas respostas por meio da Emenda Constitucional 26 (EC 26) de 27

de novembro de 1985. Pelo art. 1º, a ANC seria84 um Congresso Constituinte livre e soberano,

reunido unicameralmente no dia 1 de fevereiro de 1987. Dessa forma, os candidatos eleitos

em 1986 iriam compor essa assembleia, além dos senadores eleitos quatro anos antes, durante

a ditadura militar. Uma das primeiras discussões era se esses senadores detinham a

legitimidade para participar do processo constituinte, já que não tinham sido eleitos para tal

fim e faziam parte do aparato político ditatorial, que contava com os senadores biônicos.

Apesar desse entrave, ficou decidido que eles participariam como qualquer outro constituinte,

sem discriminação. Além disso, a questão de a ANC ser um Congresso Constituinte foi muito

debatida também, porque trazia contradições intrínsecas ao modelo proposto por Sarney, já

que o CN ainda era regido pela Carta de 1967-1969, o que poderia macular a CF em sua

origem. Contudo, esse embate também foi logo resolvido a favor da decisão do governo, por

dois principais argumentos: funcionamento de dois plenários simultaneamente e confusão

eleitoral. O primeiro ponto se baseava no receio do funcionamento de dois órgãos (CN e

84 BRASIL. Constituição (1967). Emenda constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985. Brasília:Congresso Nacional, 1985. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc_anterior1988/emc26-85.htm. Acesso em: 14jun. 2021.

83 É a impressão que o jurista integrante da CPEC Joaquim Falcão tem sobre a ideia da ANC aceitar oanteprojeto elaborado pelo grupo. Idem, p. 294.

82 Nelson Jobim: O presidente Sarney não tinha autoridade política - como teria o Tancredo - de mandar o projetoda Comissão Affonso Arinos, a Comissão dos Notáveis, que ele mesmo convocara, e que apresentou umanteprojeto pronto. Por isso a Constituinte partiu do zero - sem prejuízo da utilização, como consulta, do projetoda Comissão dos Notáveis. Idem, p. 202.

81 Sobre isso, Nelson Jobim, constituinte e ex-ministro do STF, afirma: Foi o que aconteceu em 1891, o[marechal] Deodoro [da Fonseca] mandou o projeto. Aconteceu com o Getúlio Vargas, em 1934, que mandou oprojeto. E ainda em 1967, no regime militar, quando o [general] Castelo [Branco] também mandou. Quandotinha um governo fraco, como em 1946, começou do zero. CARVALHO, Luiz Maklouf. 1988: segredos daConstituinte. Os vinte meses que agitaram e mudaram o Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2017. p. 202.

41

ANC) ao mesmo tempo, porque poderia dificultar o andamento das funções, tanto do

Legislativo federal, quanto da Constituinte, além de criar um clima de inimizade entre os dois.

Já o segundo argumento, mais sólido, era sustentado pela lógica eleitoral, em duas

considerações. Seria muito custoso e logisticamente difícil elaborar duas eleições tão

próximas, podendo até confundir a população quanto aos diferentes processos. Paralelamente,

o capital político de uma Constituinte é muito maior que o de um cargo no CN. Para tanto, é

difícil de pensar que algum político de carreira famoso85 deixaria de se candidatar para a ANC

somente para ser eleito para o CN. Assim, o resultado final para a ANC seria muito parecido,

tanto se as eleições fossem únicas (Congresso Constituinte), como se fossem separadas

(Constituinte autônoma). Dessa forma ficou decidido que a ANC seria também o CN.

7.3 Funcionamento da Constituinte

As eleições de 1986 seguiram como o previsto, com a instalação da ANC no dia 1º de

fevereiro de 1987, em sessão presidida pelo então presidente do STF, o Min. Moreira Alves.

Em seu discurso, o ministro faz uma afirmação que se mostrou verdadeira ao longo do

processo constituinte: “Os olhos conscientes da Nação estão cravados em vós”86. Todo o

processo constituinte foi intensamente publicizado, afinal a tecnologia de comunicações já

estava disponível e o país passava por um momento extremamente importante para a

recuperação de sua legitimidade. De fato, o programa inaugurado por Getúlio Vargas, a Voz

do Brasil, passou a se chamar a Voz da Constituinte87. Após o discurso, iniciou-se a votação

para o presidente da ANC, um importante cargo político, haja vista a projeção que teria após a

conclusão dos trabalhos constituintes. Concorreram ao cargo o já presidente da Câmara dos

Deputados, Ulysses Guimarães, do PMDB de São Paulo, e o presidente nacional do PDT,

Lysâneas Maciel, eleito deputado federal constituinte pelo Rio de Janeiro. O candidato de São

Paulo, devido a sua influência, venceu a disputa e assumiu, então, a presidência de duas

87 BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. História constitucional brasileira: mudança constitucional,autoritarismo e democracia no Brasil pós-1964. Brasília: Edições Câmara, 2018. p. 236.

86 ALVES, José Carlos Moreira. Assembléia Nacional Constituinte: instalação. Revista de informaçãolegislativa, Brasília, v. 24, n. 93, p. 5-14, jan./mar. 1987. Disponível em:https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/496825. Acesso em: 16 mar. 2021. p. 14.

85 Visão defendida pelo jurista Miguel Reale Júnior, assessor da ANC e membro da CPEC: Você acha, porexemplo, que um Paulo Maluf ia deixar de se candidatar à Constituinte? Não ia. Mesmo que fosse para ser sóconstituinte, ele não ia perder o seu eleitorado, não ia deixar na mão os seus redutos. Então, no fundo, o fato deser Constituinte exclusiva, ou um Congresso Constituinte, não ia trazer modificação na composição.CARVALHO, Luiz Maklouf. 1988: segredos da Constituinte. Os vinte meses que agitaram e mudaram o Brasil.Rio de Janeiro: Record, 2017. p. 202. p. 298.

42

instâncias do CN da época. Na visão de Ulysses, isso era essencial para a infraestrutura

operacional, que seria dependente de ele ocupar os dois cargos88.

7.3.1 O regimento interno

Em seguida, era necessário discutir como seria o Regimento Interno da Assembléia

Nacional Constituinte de 1987-1988 (RIANC). Fernando Henrique Cardoso (FHC), senador

pelo PMDB-SP, por decisão autoritária de Ulysses, foi o relator. A primeira decisão do

Plenário foi de não aceitar qualquer anteprojeto prévio89, como o elaborado pela CPEC, que

nem chegou a ser enviado pelo Presidente Sarney, porque a Constituinte desejava ser

totalmente desvinculada do passado, repleto de momentos repressivos. O Brasil estava

inaugurando uma nova era em sua história, então assim também deveriam ser os trabalhos da

ANC, começando do zero para que a democracia e todos os valores almejados pela população

fossem eternizados na Carta Magna. Com isso em mente, FHC elaborou o primeiro projeto do

RIANC, junto de alguns constituintes, dentre eles Nelson Jobim, um jovem político que havia

estudado os regimentos internos de diversas constituintes90. Esse primeiro projeto foi

duramente criticado pelos constituintes, porque formava uma comissão inicial, que trataria de

escrever um anteprojeto de Constituição para, então, o Plenário iniciar as votações, de forma

semelhante à Constituinte de 194691. Uma das críticas92 era que, dessa forma, seriam criadas

duas classes de constituintes, os de primeira categoria e os de segunda, em que estes ficariam

sem o que fazer enquanto aqueles deliberavam o texto inicial.

Dessa forma, tiveram de refazer o projeto de regimento. Nelson Jobim foi quem

resolveu esse problema. Havia no Senado diversas constituições de outros países. Então, ele

recortou os títulos93 mais recorrentes e definiu os temas para as comissões e subcomissões da

ANC. Assim, todos participariam da elaboração do anteprojeto de constituição e,

93 JOBIM, Nelson. O Colégio de Líderes e a Câmara dos Deputados. In: O desafio do Congresso Nacional:mudanças internas e fortalecimento institucional. Cadernos de Pesquisa, CEBRAP, São Paulo, n. 3, p. 37-59,nov. 1994. Disponível em: http://bibliotecavirtual.cebrap.org.br/arquivos/o_colegio_de_lideres_d.pdf. Acessoem: 31 mar. 2021. p. 39.

92 O constituinte Fernando Lyra foi o primeiro a trazer essa crítica sobre a criação de categorias de constituintesdurante a eleição para presidente da ANC, porque Ulysses pediu um esboço do RIANC segundo o modelo daConstituinte de 1946. Assim, quando foi apresentado o primeiro projeto do RIANC, Lyra novamente se mostroucontra, junto de outros constituintes, pelos mesmos motivos. Idem, p. 201-203.

91 A Constituinte de 1946 começou os trabalhos do zero também, elegendo uma comissão para tratar doanteprojeto, a Comissão Nereu Ramos. Idem, p. 202.

90 Idem, p. 199.

89 Essa escolha se explica, em partes, pela ruptura com o regime militar, como FHC afirma em entrevista: Nóstínhamos saído de um regime autoritário. Então tinham horror a qualquer coisa que limitasse . Cada um queria asua parte na história. Todos. E não aceitavam a existência de regras, a existência de alguém mais maduro, nadadisso. Era uma infantilidade, na verdade. Idem, p. 112.

88 CARVALHO, Luiz Maklouf. 1988: segredos da Constituinte. Os vinte meses que agitaram e mudaram oBrasil. Rio de Janeiro: Record, 2017. p. 200.

43

posteriormente, das discussões no Plenário. Para tanto, o regimento aprovado previa a divisão

da ANC em 8 comissões temáticas, cada qual com 3 subcomissões, e a Comissão de

Sistematização. Cada subcomissão temática elaboraria um texto sobre o seu tema, que iria

para votação na sua comissão, junto dos textos das outras duas subcomissões, e, então, a

comissão fecharia um texto só. Os oito textos das comissões seriam unidos pela Comissão de

Sistematização, que, então, passaria o seu projeto para votação e discussão no Plenário em

dois turnos. Após o fim das votações, o projeto passaria ainda pela Comissão de Redação para

que a escrita fosse corrigida e adequada à versão final da Constituição, que seria votada no

Plenário para efeitos de ratificação. Assim, o organograma de funcionamento da ANC foi

estabelecido como demonstra o Diagrama 2:Diagrama 2 - Organograma da ANC

Fonte: CARVALHO, 2017. p. 31-32 (adaptado).

Para melhor visualização, segue a lista das comissões com as suas respectivas

subcomissões:

I - Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher

a - Subcomissão da Nacionalidade, da Soberania e das Relações Internacionais

b - Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias

c - Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais

II - Comissão da Organização do Estado

a - Subcomissão da União, Distrito Federal e Territórios

b - Subcomissão dos Estados44

c - Subcomissão dos Municípios e Regiões

III - Comissão da Organização dos Poderes e Sistema de Governo

a - Subcomissão do Poder Legislativo

b - Subcomissão do Poder Executivo

c - Subcomissão do Poder Judiciário e do Ministério Público

IV - Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições

a - Subcomissão do Sistema Eleitoral e Partidos Políticos

b - Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança

c - Subcomissão de Garantia da Constituição, Reformas e Emendas

V - Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças

a - Subcomissão de Tributos, Participação e Distribuição das Receitas

b - Subcomissão de Orçamento e Fiscalização Financeira

c - Subcomissão do Sistema Financeiro

VI - Comissão da Ordem Econômica

a - Subcomissão de Princípios Gerais, Intervenção do Estado, Regime da

Propriedade do Subsolo e da Atividade Econômica

b - Subcomissão da Questão Urbana e Transporte

c - Subcomissão da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária

VII - Comissão da Ordem Social

a - Subcomissão dos Direitos dos Trabalhadores e Servidores Públicos

b - Subcomissão da Saúde, Seguridade e do Meio Ambiente

c - Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e

Minorias

VIII - Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia

e da Comunicação

a - Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes

b - Subcomissão da Ciência e Tecnologia e da Comunicação

c - Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso

Com essa organização, foi necessário dividir os 559 constituintes. De início, seis deles

não poderiam participar, porque iriam compor a mesa diretora. Dos 553 restantes, 49 foram

escolhidos para compor a Comissão de Sistematização, que contaria94 ainda com os

94 Disposto no art. 13, §1º do RIANC: Além das Comissões referidas neste artigo, haverá uma Comissão deSistematização, integrada inicialmente por 49 (quarenta e nove) membros e igual número de suplentes, a qualterá sua composição complementada com os Presidentes e Relatores das demais Comissões, e os Relatores dasSubcomissões, assegurada a participação do todos os partidos com assentos na Assembléia. BRASIL.

45

presidentes e relatores das comissões e os relatores das subcomissões, totalizando 89

membros. Entretanto, no momento da sua instalação, percebeu-se que havia 53 membros

titulares, quatro a mais do que o previsto pelo RIANC, porque a mesa da ANC95 decidiu

aumentar a quantidade de membros a fim de que os partidos menores fossem mais bem

contemplados, alterando o total de membros para 93. Como essa mudança foi realizada após a

divisão inicial dos constituintes, ainda restavam 504 para distribuir entre as comissões e

subcomissões. Assim, das 8 comissões, cada uma teria 63. Em cada comissão, os

constituintes se dividiram em três subcomissões, em que cada uma ficou com 21

parlamentares ao final. Tendo em mente essa divisão, o próximo passo seria resolver a

votação. Dessa forma, ficou decidido que os projetos passariam por maioria simples. Essa

quantidade era de 32 e 11 votos para, respectivamente, as comissões e subcomissões. Já na

Comissão de Sistematização a maioria simples era de 47 votos e no Plenário era de 280.

Uma das marcas e novidades dos trabalhos da ANC foi a ampla participação popular.

A sociedade brasileira podia ocupar o espaço do CN de diversas maneiras, cabe aqui destacar

algumas. A mais próxima da própria atuação dos constituintes era o projeto de emendas

populares, assegurado pelo RIANC96. Ao todo, a população enviou 12297 emendas, que, dada

a natureza jurídica, foram analisadas como as emendas dos próprios constituintes, porém,

diferentemente destas, elas só poderiam ser descartadas com a decisão unânime da Comissão

de Sistematização. Estima-se98 que entre dez e doze por cento da população tenha assinado

esses projetos. Paralelamente, a população também enviou cartas ao Senado Federal com as

suas próprias ideias, por meio do projeto "Diga Gente e Projeto Constituição"99. As cartas

99 O projeto foi uma parceria entre o Senado Federal e o Correios, que disponibilizou gratuitamente umformulário para que fosse preenchido com os dados do cidadão e a sua ideia. As sugestões ainda podem serconferidas na base de dados do Senado e no Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados.Para acessar a versão digitalizada, basta acessar este site: http://www.senado.leg.br/atividade/baseshist/bh.asp#/ ebuscar pela base da Sugestão da população brasileira à Assembléia Nacional Constituinte de 1988 (SAIC),

98 Idem, p. 235.

97 BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. História constitucional brasileira: mudança constitucional,autoritarismo e democracia no Brasil pós-1964. Brasília: Edições Câmara, 2018. p. 234.

96 Disposto no art. 24, caput: Fica assegurada, no prazo estabelecido no §1º do artigo anterior, a apresentação deproposta de emenda ao Projeto de Constituição, desde que subscrita por 30.000 (trinta mil) ou mais eleitoresbrasileiros, em listas organizadas por, no mínimo, 3 (três) entidades associativas, legalmente constituídas, queresponsabilizarão pela idoneidade das assinaturas, obedecidas as seguintes condições. BRASIL. AssembléiaNacional Constituinte. Regimento Interno, estabelecido pela Resolução nº 2, de 1987. Brasília: AssembléiaNacional Constituinte, 1987. Disponível em:https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/publicacoes/regimento-interno-da-assembleia-nacional/resolucao-2-1987. Acesso em: 22 jun, 2021.

95 PILATTI, Adriano. A constituinte de 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem econômica e regras dojogo. 4ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2020. p. 73.

Assembléia Nacional Constituinte. Regimento Interno, estabelecido pela Resolução nº 2, de 1987. Brasília:Assembléia Nacional Constituinte, 1987. Disponível em:https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/publicacoes/regimento-interno-da-assembleia-nacional/resolucao-2-1987. Acesso em: 22 jun, 2021.

46

poderiam ser endereçadas especificamente para algum constituinte, ou para qualquer um, que

seria escolhido de acordo com o tema. Em seguida, ele leria e decidiria se a ideia seria

aproveitada para algum projeto seu. A adesão a esse projeto foi tamanha que o Senado

recebeu 72.719 cartas100. Além desses dois mecanismos, a população também se fez presente

fisicamente no CN. Algumas comissões e subcomissões realizaram audiências públicas101

para ouvir diretamente dos cidadãos quais eram as suas demandas e impressões. Por fim, o

Plenário também esteve aberto para a participação da sociedade, que poderia assistir às

discussões e, dependendo do caso102, falar na tribuna. Portanto, a sociedade brasileira teve

múltiplas ferramentas para se mostrar presente no processo constituinte, bem como para

pressionar os constituintes, algo diferente do que o povo vivia nos anos anteriores.

7.3.3 A virada do Centrão e as votações

Passada essa fase inicial de recebimento das propostas e análises, o foco é, então, a

votação dos projetos e emendas. Para tanto, houve muitos acordos internos e conchavos para

combinar os votos, como os encontros na casa de Ulysses103 e Covas104. De fato, Brasília

104 Mário Covas, por exemplo, convocava reuniões com os líderes dos partidos pelas manhãs a fim de alinharcomo seriam votados os projetos à tarde. Dessa forma, o resultado já estava definido antes mesmo dosconstituintes se reunirem no Plenário. Essa parte é contada pelo jurista Miguel Reale Júnior a Maklouf (emnegrito): Depois que começou a Comissão de Sistematização, a Constituinte foi toda construída nas reuniões nacasa do dr. Ulysses e nas reuniões matinais das lideranças, presididas pelo Covas, que era o líder do principalpartido. [Essa reunião era chave?] Tudo passava por lá, antes de ir a Plenário. O Mário chegava com a lição decasa pronta: qual vai ser a matéria a ser votada hoje, quais são as emendas principais, o que é que nós temos quenegociar. Só mesmo um engenheiro dedicado como ele. Às vezes, era questão de escolher uma palavra, ou outra,

103 As reuniões na casa do Ulysses foram tão importantes que, na visão de José Serra, eram quase uma outrainstância da ANC: Uma coisa importante, para entender o processo, é que outra instância da Constituinte,informal mas muito forte, eram as reuniões na casa do Ulysses. Ulysses chamava os relatores. O Mário [Covas]não ia - e ficou numa situação esdrúxula. Essa instância era muito importante. CARVALHO, Luiz Maklouf.1988: segredos da Constituinte. Os vinte meses que agitaram e mudaram o Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2017.p. 155.

102 Por exemplo, no caso das emendas populares, era permitida a fala de um representante para defender as ideiascontidas no projeto. Uma dessas defesas mais ilustres foi a de Ailton Krenak, coordenador da Campanha Índiosna Constituinte. Ele proferiu um discurso em defesa da Emenda Popular 040, sobre os direitos dos indígenas, em04 de setembro de 1987 e, no meio do Plenário, pintou a sua cara com a tinta de jenipapo, um símbolo de lutopara a tribo Krenak. O protesto revelava o receio da emenda ser rejeitada. ÍNDIO CIDADÃO? - O FILME.ÍNDIO CIDADÃO? - Grito 3 Ailton Krenak, 2014 (04:01). Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=kWMHiwdbM_Q. Acesso em: 28 maio 2021.

101 Essa etapa foi muito importante para reforçar o caráter popular da Constituição que era escrita. O constituinteCarlos Eduardo Mosconi destaca: A Constituição não seria o que foi se não tivesse toda essa saudável confusãoda primeira fase [audiências públicas]. Aí é que as discussões começaram, e as tendências dos diversos setoresforam se colocando. CARVALHO, Luiz Maklouf. 1988: segredos da Constituinte. Os vinte meses que agitaram emudaram o Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2017. p. 106.

100 A história de algumas delas foi registrada em documentário pela TV Senado, intitulado “Cartas ao país dossonhos”. TV SENADO. Cartas ao país dos sonhos, 2019 (57:14). Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=T1HLuPu9O5E. Acesso em: 20 nov. 2020.

filtrando os resultados de acordo com palavras-chave. SENADO FEDERAL. Senado Federal, 2021. Atividadelegislativa, bases históricas. Disponível em: http://www.senado.leg.br/atividade/baseshist/bh.asp#/. Acesso em:28 jun. 2021.

47

encheu-se de festas e jantares particulares, com o único intuito de discutir e organizar o

processo constituinte. Com o avanço nas votações, os textos passaram das subcomissões para

as comissões, que enviaram para a Comissão de Sistematização. Essa fase foi crucial no

andamento do processo constituinte, porque o texto que saísse de lá iria para votação em dois

turnos no Plenário, então já traria consigo a essência e o esboço do que viria a ser o resultado

final, a CF. Nesse sentido, vale relembrar que a composição da Comissão de Sistematização

se deu praticamente pelas mãos de Mário Covas, porque ele, enquanto líder do partido da

maioria, escolheu105 os personagens-chave de todas as comissões e subcomissões. Por conta

disso, a composição da Comissão de Sistematização ficou mais à esquerda do que a média do

CN.

Com a chegada dos textos à Comissão de Sistematização, o relator, Bernardo Cabral

(PMDB-AM), teve o trabalho inicial de reunir tudo em um anteprojeto, que seria discutido e

votado pelos membros da comissão. Entretanto, pela composição das comissões e

subcomissões, o texto inicial, de 501 artigos, foi recebido com muitas críticas, porque o teor

político não agradou os setores mais à direita. De fato, a imprensa106, amparada pela opinião

dos políticos, como o próprio Sarney107, apelidou esse anteprojeto de “Frankenstein”, a fim de

associá-lo à figura monstruosa do romance de Mary Shelley, apesar do nome ser do cientista e

não da criatura. Ainda que parte do texto fosse reescrita, a essência do anteprojeto se manteve

até o projeto final da Comissão de Sistematização.

Dessa forma, houve um impasse quando as votações no Plenário se iniciaram. Os

constituintes mais conservadores estavam insatisfeitos com a metodologia da votação e com o

que estava escrito nos projetos. Esse fato levou108 à criação do que ficou conhecido como o

“Centrão”109, um grupo mais ao centro e à direita que realizou uma “revolução” para mudar o

RIANC e como as votações eram realizadas. Isso porque eles perceberam que a organização

em comissões e subcomissões levava a uma falsa maioria. Essa questão se dava110 da seguinte

maneira. O caminho natural de um artigo era, nesta ordem: subcomissão, comissão, Comissão

110 Idem, p. 206.109 O nome oficial era “Centro Democrático”. Idem, p. 268.

108 CARVALHO, Luiz Maklouf. 1988: segredos da Constituinte. Os vinte meses que agitaram e mudaram oBrasil. Rio de Janeiro: Record, 2017. p. 186.

107 Ele realizava entrevistas criticando abertamente o anteprojeto Frankenstein, estimulando estratégias paraajustá-lo. Idem, p. 151.

106 PILATTI, Adriano. A constituinte de 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem econômica e regras dojogo. 4ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2020. p. 151.

105 Nelson Jobim: O Covas nomeou [após a sua eleição como líder do PMDB] toda a esquerda do PMDB para oscargos-chaves nas comissões e subcomissões. [...]. Acabou que a Comissão de Sistematização estava à esquerdado Plenário. Ficou com uma composição toda à esquerda, por causa desse fato político. Idem, p. 205.

para que se pudesse chegar a uma forma de compromisso. A Constituinte foi votada de manhã, pelos líderespartidários. Quando ia a Plenário já estava tudo conchavado. Idem, p. 307.

48

de Sistematização e Plenário. Para derrubar o artigo, era necessário ter a maioria simples,

assim como para aprová-lo, porém o ônus residia no grupo que desejava a rejeição. No

entanto, conforme ele avançava no caminho, a quantidade de votos para barrá-lo aumentava,

caracterizando essa “falsa maioria”.

Por exemplo, assumindo sempre quórum máximo, a subcomissão tem 21 constituintes,

então seriam necessários 11 votos para barrar o artigo. Imaginemos que somente 10 votaram

para barrar, então os 11 votos a favor mandaram o texto para a comissão. Ela é composta por

63 constituintes, logo 32 votos impediriam o caminho do artigo. Imaginemos que somente 31

constituintes foram contra, então 32 mandaram o artigo para a Comissão de Sistematização.

Ou seja, os 11 votos a favor na subcomissão venceram os 31 votos contra na comissão. Na

Comissão de Sistematização, o quórum total era de 93 constituintes, então 47 votos barravam

o encaminhamento do texto. Se o mesmo artigo recebesse 46 votos para vetá-lo, ele

continuava para o Plenário. Dessa forma, os mesmos 11 votos iniciais eram mais

significativos que os 46 da Comissão de Sistematização. No Plenário, esse cenário piorava,

porque eram 559 constituintes, então a maioria começava em 280 votos. Nesse sentido, se o

veto chegasse a 279 votos, ele não vingaria e o artigo iria para o texto final. Novamente, os

11 votos a favor na subcomissão eram mais valiosos que os 279 votos contra no Plenário.

Portanto, ocorre uma supervalorização dos votos das subcomissões, porque eles tinham o

poder de “vencer” a visão de quase 50% do Plenário, daí a justificativa da “falsa maioria”, já

que a maioria precisaria realmente estar consolidada para encaminhar os projetos segundo a

sua maneira, caso contrário apenas 11 votos poderiam barrá-los.

Após perceber isso, o Centrão se articulou para mudar o RIANC e inverter a lógica.

Para isso, utilizaram um dispositivo existente no Regimento Interno do Senado Federal, o

Destaque para Votação em Separado (DVS)111. Caso alguma parte do texto fosse para o DVS,

era necessária a maioria absoluta do Plenário para mantê-la no texto final. Ou seja, a proposta

que chegou no Plenário por conta de 11 votos teria a parte polêmica separada para ser votada

isoladamente, sendo necessários 280 votos a favor para mantê-la, acarretando em uma

mudança substancial pela inversão do ônus de obter a maioria absoluta. Esse não foi o único

mecanismo, algumas mudanças112 envolvendo as emendas e os substitutivos aos textos

votados foram realizadas, porém a importância delas é subsidiária a do DVS. Por conseguinte,

112 PILATTI, Adriano. A constituinte de 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem econômica e regras dojogo. 4ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2020. p. 224-225.

111 Idem, p. 207.

49

o Centrão conseguiu emplacar a sua pauta e modificar alguns pontos dos textos que o

incomodavam, devido ao teor político à esquerda.

7.4 Promulgação da Constituição e futuro

Após a virada do Centrão, a votação conseguiu voltar aos trilhos e se encaminhou sem

muitos problemas. Assim, a última parada desse projeto era a Comissão de Redação,

responsável por dar o trato final na forma com que os textos seriam escritos. Essa comissão

foi o centro de algumas polêmicas, porque ela alterou o texto113 de certos artigos114 de forma a

mudar o sentido também, o que não foi devidamente comunicado ao Plenário e muito menos

era do escopo de sua atuação. No entanto, o texto final foi votado pelo CN, mesmo sem os

constituintes terem completa noção disso, e foi aprovado, mostrando que a ANC ratificava a

versão da Comissão de Redação, como Ulysses defendeu115. Por fim, a CF foi aprovada pela

ANC no dia 22 de setembro de 1988, sendo promulgada no dia 5 de outubro de 1988. Os

discursos proferidos quanto à nova Constituição brasileira são imbuídos de um tom

esperançoso, que, apesar de não ser perfeita, ela foi feita para e pelo povo brasileiro, a fim de

dar o norte para os novos rumos da nascente nação, que há pouco saíra de um dos seus

períodos mais sombrios. Sobre isso, cabe destacar parte do discurso116 do presidente da ANC,

Ulysses Guimarães, na sessão em que a CF foi promulgada:Não é a Constituição perfeita. Se fosse perfeita, seria irreformável. Ela própria, comhumildade e realismo, admite ser emendada, até por maioria mais acessível, dentrode 5 anos.

116 BRASIL. Assembléia Nacional Constituinte 1987-1988. Atas de plenário. Diário da Assembléia NacionalConstituinte, ano II, nº 308, p. 14380-14382. Brasília: Senado Federal, 05 out. 1988. Disponível em:https://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/308anc05out1988.pdf. Acesso em: 01 jun. 2021. p. 14381-14382.

115 Ulysses manifestou ao Plenário, logo antes da votação final, a finalidade daquele rito, qual seja, a dehomologar, ratificar e confirmar o trabalho da Comissão de Redação. CARVALHO, Luiz Maklouf. 1988:segredos da Constituinte. Os vinte meses que agitaram e mudaram o Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2017. p.198.

114 Um dos exemplos, trazidos por Nelson Jobim, é do artigo sobre divisão dos poderes (art. 2º), porque,inicialmente, a CF previa um regime parlamentarista, em que não há um perfeito equilíbrio entre os poderes. Noentanto, houve a mudança para o presidencialismo durante a votação no Plenário e não alteraram a questão dadivisão dos poderes. Dessa forma, um dos integrantes da Comissão de Redação sugeriu a modificação para o quese tem hoje, de independência e harmonia entre os poderes, e a comissão aprovou de forma unânime. Éimportante ressaltar que a metodologia de alteração dos artigos na Comissão de Redação se baseava naunanimidade, então o artigo só era modificado se todos concordassem. MIGALHAS. Nelson Jobim -Constituição de 1988, 2013 (04:11). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7E-n_ndVAc0. Acessoem: 29 mar. 2021. 01:28-02:19.

113 A questão das alterações feitas pela Comissão de Redação surgiu um mês antes da promulgação, emsetembro, antes mesmo da votação final. No entanto, apesar de estarem ferindo o regimento e algunsconstituintes se oporem a isso, a votação correu normalmente. Nelson Jobim foi um dos que defendeu asmodificações, apesar de saber que era uma quebra do RIANC, porque: Tudo isso foi discutido, às claras. O queaconteceu? 474 [votaram] sim, quinze [votaram] não, [houve] seis abstenções, total [de] 495 votantes. É avotação da redação final, que ratificou tudo, inclusive as modificações feitas pela Comissão de Redação. Foitudo aberto. Mas aí veio o bafafá, o pedido de impeachment contra mim, o diabo a quatro. Idem, p. 198.

50

Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora. Será luz, aindaque de lamparina, na noite dos desgraçados. É caminhando que se abrem oscaminhos. Ela vai caminhar e abri-los. Será redentor o caminho que penetrar nosbolsões sujos, escuros e ignorados da miséria.

[...]

Termino com as palavras com que comecei esta fala: a Nação quer mudar. A Naçãodeve mudar. A Nação vai mudar.

A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo àmudança.

Que a promulgação seja nosso grito:

- Mudar para vencer!

Muda, Brasil!

51

8. LABORATÓRIO DO CIENTISTA

8.1 A norma jurídico-política

Evguiéni Pachukanis117 desenvolveu uma teoria jurídica marxista mais fiel ao ideário

de Karl Marx, contido em “O Capital”. Essa teoria foi escolhida para esta pesquisa, pois

estuda, de forma crítica e política, como o Direito se instaura na sociedade. Assim, cabe

explicar os pensamentos de Pachukanis com enfoque nos pontos que serão utilizados para a

investigação da ANC. Ademais, algumas partes da teoria pachukaniana serão criticadas e

adaptadas, porque ela se diferencia da nossa visão em certos aspectos que são importantes

para a análise pretendida.

Como se busca delimitar uma teoria, é necessário, antes, buscar uma raiz metodológica

para a “ciência do Direito”. Dessa forma, a metodologia do Direito, assim como as demais,

deve buscar decompor a realidade118 em uma combinação de elementos e abstrações simples.

De fato, o campo das abstrações é especialmente importante para as Ciências Sociais, já que

muitos conceitos não são perceptíveis como um átomo para a Química119. Nesse sentido, o

caminho trilhado é quase indutivo120, partindo do mais simples ao mais complexo, para

compreender a totalidade do fenômeno jurídico, a saber: sociedade, população e Estado, que

deve ser o fim de toda pesquisa e não o meio. Como se trata de uma teoria social marxista, é

imperativo compreender como os conceitos se desenvolvem, tanto no âmbito teórico, quanto

no prático. Pela metodologia do materialismo histórico-dialético121, o desenvolvimento da

sociedade de classes com os seus embates transmite mudanças nas instituições sociais. Então,

o desenvolvimento dos conceitos coincide com o seu desenvolvimento na forma prática122.

Por exemplo: o conceito de Estado foi adquirindo complexidade, conforme as sociedades se

desenvolviam e modificavam as suas estruturas123. O Estado moderno só surgiu após a

sociedade medieval passar da estrutura estamental para uma estrutura mais maleável, com o

protagonismo da classe burguesa. Da mesma forma ocorre com o Direito124, as relações

jurídicas e as outras instituições do campo se alteram ao passo que novas necessidades sociais

124 Idem, p. 77.123 Idem, p. 74.122 PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 74.

121 PIRES, Marília Freitas de Campos. O materialismo histórico-dialético e a educação. Interface, Botucatu, v.1,n.1, p. 83-94, ago. 1997. Disponível em:https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32831997000200006&lang=pt. Acesso em: 28jan. 2021. p. 86.

120 Idem, p. 73.119 Idem, p. 72.118 Idem, p. 72.117 PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017.

52

surgem, influenciadas diretamente pelas formas de produção. Para tanto, a forma com que

Pachukanis propõe125 a redução da realidade se assemelha em muito com a Fenomenologia de

Husserl126. Isso porque ele sugere que é possível extrair, ou reduzir127, para usar um termo

husserliano, as formas originais e menores das estruturas mais complexas, dado que aquelas

nutriam uma forma embrionária destas. Logo, um único objeto de estudo é capaz de fornecer

tanto os moldes passados, de onde veio, como os moldes futuros, os quais ele carrega em si.

Pachukanis, parafraseando Reisner, defende um Direito enquanto um dos subtipos

gerais de ideologia128, cuja definição fundamental é conferir um caráter jurídico à

regulamentação das relações sociais em determinadas condições129. Por conseguinte, o Direito

se define pelas relações sociais130, de forma a regulá-las e, então, se confundir com elas.

Assim, para esta obra, é essencial nos debruçarmos mais sobre essas relações, principalmente

com as normas. As relações jurídicas, para Pachukanis131, são relações abstratas unilaterais,

revelando-se como produtos do desenvolvimento da sociedade. De fato, o Direito é uma

abstração que só existe nas relações jurídicas, porque uma norma só é relevante no plano

prático, ou seja, quando é aplicada132. Essa posição é acertada, para a nossa visão, pois o

conceito de ordenamento jurídico é pura ficção dos teóricos, criado para justificar um sistema

de normas, tanto é ficção que nem todos os direitos positivados são garantidos. Em seguida,

Pachukanis busca relacionar as superestruturas jurídica e política ao analisar a forma com que

as normas jurídicas são instauradas na sociedade133. Em um primeiro instante, pode-se pensar

que a superestrutura jurídica advém da política, afinal as normas são promulgadas por uma

autoridade política. No entanto, a superestrutura jurídica revela nada além das relações de

produções já existentes, enquanto a política, na figura do Estado, se desenvolve por conta

dessas relações. Consequentemente, é a superestrutura política que deriva da jurídica. Por

exemplo: primeiro surge a relação de compra e venda, que gera a relação jurídica, já que ela

tem o papel de evidenciar as relações de produção, para, depois, surgir a relação política, com

133 Idem, p. 95-96.132 Idem, p. 91-93.131 Idem, p. 76.130 Idem, p. 83-88.129 Idem, p. 84128 PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 79.

127 A redução transcendental, fenomenológica, ou eidética, consiste em refletir acerca do objeto de estudo deforma a retirar qualquer possível reificação da consciência no intuito de extrair a sua essência apodítica, termorelacionado à lógica aristotélica sobre proposições que podem ser demonstradas. MORAN, Dermot.Introduction to phenomenology. London: Routledge, 2000. p. 131.

126 A Fenomenologia, para Husserl, é a filosofia que se atém às experiências como elas se apresentam, a fim de,assumindo o óbvio como duvidável, explicar os fenômenos. HUSSERL, Edmund. A crise das ciênciaseuropeias e a fenomenologia transcendental: uma introdução à filosofia fenomenológica. Rio de Janeiro:Forense Universitária, 2012. p. 147.

125 Idem, p. 77.

53

as leis para regular e determinar essas relações de troca134. Com isso em mente, pode-se criar

um itinerário de formação das relações para Pachukanis, de forma que as relações de classe

(econômicas) geram as relações jurídicas que, enfim, geram as relações políticas. As três

estão intimamente ligadas umas às outras, apesar dessa “ordem” de nascimento, porque ele

afirma135 que o Direito é a base do Capitalismo, uma vez que toda troca demanda um aparato

jurídico para embasá-la.

Consequentemente, é possível criar alguns diagramas que nos permitem compreender

melhor essas relações. De início, percebe-se a conexão entre Classe, Direito e Política, que se

dá na forma de um triângulo (Diagrama 3), no qual cada um se localiza no vértice e as arestas

simbolizam as relações, em que cada ponta influencia a outra e vice-versa.Diagrama 3 - Triângulo Base

Fonte: Autoria Própria, 2021

Contudo, para Pachukanis, não é um triângulo perfeito, a aresta entre Classe e Direito

é muito mais explorada que as outras duas, afinal ele buscava criar uma nova teoria jurídica.

Além disso, ele expõe o itinerário criador: Classe gera Direito, que gera Política, que sustenta

Classe (Diagrama 4).Diagrama 4 - Triângulo de Pachukanis

Fonte: Autoria Própria, 2021

135 MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2019. p. 421-422.134 Idem, p. 97.

54

Nós divergimos em dois pontos do pensamento pachukaniano: ordem criadora e

separação entre Direito e Política. Primeiro, apesar dele afirmar que o Direito externaliza as

relações de produção das Classes, entendemos que a Política é o que inicialmente traz isso à

tona. Ou seja, a estrutura política é a ferramenta pela qual a estrutura de classes se mostra e se

funda, de forma que, então, a estrutura jurídica é criada para sustentar o todo. Dessa forma,

Classe gera Política, que gera Direito, que sustenta Classe (Diagrama 5).Diagrama 5 - Triângulo de Pachukanis Adaptado

Fonte: Autoria Própria, 2021

Ademais, há o ponto de separação entre Direito e Política. Vemos como indissociável

o conteúdo jurídico do político, de forma que eles devem constituir uma única categoria, a

jurídico-política, representando a ferramenta pela qual o Capitalismo surge e é mantido com a

exploração das classes menores. Nesse sentido, o triângulo passa por uma transformação

(Diagrama 6), até atingir o estado final de uma simples reta (Diagrama 7).Diagrama 6 - Transformação do Triângulo

Fonte: Autoria Própria, 2021

55

Diagrama 7 - Triângulo de Pachukanis Extrapolado

Fonte: Autoria Própria, 2021

Isso porque a Política é um conceito muito mais amplo, incluindo desde a política

partidária dos deputados, ministros e similares, como a política realizada pelos movimentos

sociais, exemplificado pelo Movimento dos Sem Terra (MST) e pelo Levante Popular da

Juventude. Assim, adota-se a visão da Política136 enquanto atividade de participação coletiva

para organização e direção da sociedade. Dessa forma, a superestrutura política contém a

superestrutura jurídica, afinal é impossível o fazer jurídico sem o fazer político, porque o

Direito é uma ferramenta do sistema social, no caso o Capitalismo. Assim, por mais

instrumentalizado, ou burocrático, que um ato jurídico pareça ser, ainda há, em seu interior,

um direcionamento político determinado. Vejamos pela ótica da norma:

1. O criador da norma jurídica não é um jurista puro, mas um político, seja do

Legislativo ou do Executivo, a depender da organização do Estado. Por mais que essas

figuras possam ser coincidentes, no caso de políticos com formação jurídica, a pessoa

no ato de criação é a pessoa política, representando o Estado ou uma instituição, por

exemplo. Isso porque o indivíduo é revestido de poder pelo povo, o criador primário

das normas, que é a essência do ser político.

2. Nenhuma norma é válida sem o povo, que a ratifica de forma direta ou indireta. A

primeira pode ser observada pelo seguimento ou não do conteúdo normativo. Já a

segunda é mais sutil, em que o povo confere a soberania e o poder de criação das

normas aos seus representantes, então tudo o que eles fizerem, de certa forma, já está

de acordo com a vontade dos seus eleitores, a não ser que se expressem de forma

contrária. Em suma, o povo, que participa da criação das leis, é, como um todo, um

corpo político e não jurídico.

136 ARAÚJO, Joane dos Santos. Juventude, participação e projeto popular: a experiência político-organizativado movimento "Levante Popular da Juventude". 2016. 119f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) -Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016. p. 77.

56

Por outro lado, a Política é mais do que o mero jurídico. Ela extrapola a esfera das

normas para atuar no dia-a-dia dos indivíduos, externalizada pelas relações de Classe, em que

os grupos dominantes tentam controlar os demais. Dessa forma, pela indissociabilidade entre

Direito e Política, surge a categoria Direito-Política, com as normas, relações e instituições

jurídico-políticas. Apesar de serem visões distintas, não são muito diferentes em essência. Em

ambas, o fim da luta de classes leva ao fim do Direito, como o conhecemos, e do Capitalismo,

criando a sociedade marxista. Entretanto, a divergência é no momento após a queda, porque a

estrutura criada por Pachukanis se desmonta com o fim do Direito, enquanto a nossa ainda se

sustenta, haja vista que a Política engloba o Direito, então somente parte do diagrama se

desmontaria. Isso porque, tomamos um conceito de Política, de certa forma, positivo,

diferente de uma ferramenta para perpetuação da opressão de classes. A nossa Política pode

ser usada para esse fim, a depender de quem está à frente da sociedade, mas a sua essência é o

ato político lato sensu. Portanto, na sociedade marxista, ainda há Política e ela ainda se

relaciona com os indivíduos (Classe), então não faria sentido aboli-la com o fim do

Capitalismo. Com essa pequena alteração, fundamos a base jurídico-política desta pesquisa,

que será utilizada para melhor analisar as relações existentes no processo criador da CF pela

ANC.

Além de uma Teoria do Direito, é interessante firmar uma Teoria Hermenêutica do

Direito para este trabalho, porque é uma área que lida com a interpretação do mundo jurídico,

em especial com relação aos sujeitos. Nesse sentido, o Prof. Dr. Ari Solon137 traça um

histórico desse campo ao longo do desenvolvimento do Direito. Ao fim, traz a sua teoria

radical, firmada na fenomenologia de Husserl, criando a Hermenêutica Fenomenológica

Radical. O texto normativo permite um horizonte138 de interpretações diversas, em que todas

são possíveis e válidas, porque não existe uma regra determinada sobre a interpretação. No

entanto, bem como a Fenomenologia139, somente pode ser compreendido aquilo que está

escrito no texto, pois não há espaço para a extrapolação das ideias escritas. Nesse fazer

interpretativo, o intérprete acaba por criar normas140, mas não no sentido estrito, como faz o

Legislativo brasileiro. Ele cria um aparato jurídico, a norma decisória, a ser aplicado no caso

concreto para resolvê-lo com base nas normas jurídicas, que não passam de meros textos;

140 SOLON, Ari Marcelo. Hermenêutica jurídica radical. São Paulo: Marcial Pons, 2017. p. 99-100.

139 A Fenomenologia trabalha com os objetos pela intuição, de forma imanente, porque qualquer extrapolação doque é mostrado pode levar ao erro. Por exemplo, se alguém sente dor de dente, ela não pode apontar qual dentedói, pois pode errar, já que ela só conhece a dor e não a sua localização específica. Consequentemente, aFenomenologia é muito útil para encontrar erros de pensamento, já que adestra os praticantes a lutar contra afalibilidade. MORAN, Dermot. Introduction to phenomenology. London: Routledge, 2000. p. 130-131.

138 Idem, p. 133.137 SOLON, Ari Marcelo. Hermenêutica jurídica radical. São Paulo: Marcial Pons, 2017.

57

porque a interpretação não é puramente do que está nos códigos e sim da ação dos homens e

das suas consequências. Então, a norma jurídica só existe de fato no momento que é

aplicada141, estando suspensa nos demais momentos, de forma semelhante ao que Pachukanis

pensava sobre o Direito. Nesse sentido, unindo os dois pensadores, pode-se concluir que a

Hermenêutica trata da existência do Direito, porque ele só existe quando é aplicado e só é

aplicado quando há interpretação. Portanto, a Hermenêutica não é simplesmente a aplicação

das normas, mas o próprio oxigênio que o Direito respira e sustenta, pois, o Capitalismo e a

opressão de classes.

8.2 Teoria do Estado

Com as bases jurídicas fundadas, partimos para a Teoria do Estado, uma vez que este

trabalho trata da Constituição Federal, que está intimamente ligada à organização do Estado e

à relação dele com o povo. Para tanto, escolhemos a abordagem política de Carl Schmitt142,

um importante jurista do século XX, conjuntamente às obras do Prof. Ari143 e do Prof.

Mascaro144,145. Contudo, é importante salientar que o seu apoio ao regime nazifascista alemão,

bem como às demais ideias conservadoras não têm espaço nesta pesquisa. Assim, buscamos

compreender os seus importantes conceitos sobre o Estado a fim de usá-los para se juntar à

teoria marxista. Além disso, ao final deste subcapítulo, traçaremos, de forma breve, uma

Teoria Constitucional, também de Schmitt146, porque constituições são normas jurídicas

intimamente ligadas à organização do Estado. Consequentemente, é importante termos uma

base constitucional para examinar a ANC, ainda que o foco dessa análise esteja no âmbito

histórico, político e filosófico do evento e não nas suas implicações constitucionais.

Uma das frases mais famosas de Schmitt é a que inaugura o primeiro capítulo do livro

“Teologia Política”147: “Soberano é aquele que decide sobre a exceção”148. Ela é um pouco

genérica, por conta da sua construção gramatical e dubiedade acerca de como se dá essa

decisão149. É importante pontuar como se deve interpretá-la. O soberano assume uma dupla

149 Idem, p. xi-xii.148 Tradução própria. No original: Sovereign is he who decides on the exception. Idem, p. 5.

147 Tradução própria. No original: Political Theology. SCHMITT, Carl. Political theology: four new chapters onthe concept of sovereignty. Chicago: University of Chicago Press, 2005.

146 SCHMITT, Carl. Constitutional theory. Durham: Duke University Press, 2008.145 MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo, Boitempo, 2013.144 MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2019.

143 SOLON, Ari Marcelo. Teoria da soberania como problema da norma jurídica e da decisão. Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris Editor, 1997.

142 SCHMITT, Carl. Political theology: four new chapters on the concept of sovereignty. Chicago: University ofChicago Press, 2005.

141 Idem, p. 100-101.

58

função, ele é tanto quem decide quando se tem uma exceção, como quem decide o que fazer

para retornar à normalidade150. Dessa forma, ele assume uma postura decisionista e

pragmática, em que se debruça sobre os casos não previstos pelo sistema normativo, por

exemplo. De fato, diferentemente de outros teóricos, Schmitt define o soberano como aquele

com o monopólio da decisão e não da violência ou da coerção151. Consequentemente, é

justamente no momento em que ele decide sobre a exceção que a sua soberania se revela,

afinal, caso tudo corresse como previsto, a sua decisão não seria nada além do que um mero

seguir de regras152.

Nesse sentido, ao decidir sobre a exceção, o soberano deve romper com o

ordenamento vigente para realizar um ato inédito153, por isso ele deve estar acima da norma,

mesmo que, paradoxalmente, esteja submetido a ela. Isso se explica pelo fato de que a

exceção corrompe o sistema, já que é um acontecimento não esperado, então demanda uma

decisão tão extraordinária quanto o fato em si para poder ser resolvida. Como consequência, a

soberania se liga ao Estado mais do que qualquer norma jurídica154, mesmo a constitucional,

sendo até anterior ao Direito em si. Com isso, Schmitt se separa claramente do juspositivismo

encabeçado por Hans Kelsen155, porque a norma não é o suprassumo do Estado, mas o próprio

soberano com o seu poder sobre a exceção. Ademais, as normas não são um conteúdo

estritamente jurídico, mas decisões políticas, que orientam a vida social para determinado

sentido. Schmitt afirma tal fato analisando a Constituição e vai além. Não somente a

Constituição é política, mas o controle constitucional não deve ser feito por um jurista, e sim

pelo político soberano, uma vez que as decisões acerca da Constituição devem ser políticas156,

o que fugiria da atuação dos juristas.

Paralelamente, adiantando um pouco do assunto da Teoria Constitucional, Schmitt se

aproxima da nossa visão do diagrama de Classe, Direito e Política, porque enxerga o Estado

como uma unidade essencialmente política157, sendo ela quem incita a criação da Constituição

(Direito), que delimita a forma e o modo com que essa unidade política opera. Apesar de ele

não entrar no mérito da Classe, é notório como essa questão está intimamente ligada à

política, constituindo a sua base, principalmente nos regimes democráticos representativos

157 SOLON, Ari Marcelo. Teoria da soberania como problema da norma jurídica e da decisão. Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris Editor, 1997. p. 91.

156 Idem, p. 363-364.155 Idem, p. 360-361.154 Idem, p. 360-361.153 MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2019. p. 360.152 Idem, p. 15.151 Idem, p. 13.150 Idem, p. xi-xii.

59

Isso porque os dirigentes políticos são escolhidos direta ou indiretamente pelas classes,

conforme as suas visões e projetos, caso não tenha nenhuma interferência externa, como no

caso da compra de votos. Para tanto, é possível conciliar a Teoria Schmittiana com a nossa

adaptação da Teoria Pachukaniana. Consequentemente, enquanto o Estado é, em uma de suas

faces, uma unidade política, a Constituição se mostra como a “virtude da vontade política

existencial daquele que a cria”158. Essa característica de tratar a norma como pressuposta de

uma vontade política se aplica para qualquer tipo de lei, dado que a essência do texto e a

forma com que ele é criado são, praticamente, as mesmas da Constituição. Por fim, ele trata

dos conceitos de legitimidade e legalidade. Como são assuntos bem amplos, vamos

recortá-los para o que interessa nesta pesquisa. Schmitt traz uma nova perspectiva sobre esse

duplo, porque ele, nas palavras do Prof. Ari, descobre a “mais-valia política”159, em que a

legitimidade é a mais-valia da legalidade. Isso se explica na medida em que a legitimidade vai

além da mera lei, ela é baseada no carisma, na religião, na autoridade, por exemplo. Assim, o

soberano tem a possibilidade de ultrapassar os limites legais por conta da sua legitimidade,

daí o uso de “mais-valia”, como Marx utilizava no campo da Economia.

Com isso em mente, ele enxerga a representação como algo do campo existencial e

não do normativo160, pois não deriva de alguma norma, mas da própria existência da pessoa e

da posterior identificação do povo com ela. Ademais, a representação constitui uma unidade

do Estado de forma geral e não do povo em específico161. Isso porque, tomando o Brasil como

exemplo, é ilusório imaginar que os 513 deputados federais e 81 senadores, que compõem162 o

Legislativo federal, representam a população brasileira como um todo. Eles são eleitos pelo

povo e, de certa forma o representa, porém não de forma completa, como poderia se dar em

uma democracia em que os cidadãos participam diretamente das decisões. Para tanto, já que

não representam o povo, eles representam, então, a totalidade do Estado, enquanto um órgão

criado para gerir uma Nação, dentro dos moldes schmittianos de Soberania.

Por fim, com o intuito de aproximar mais a ideia de Estado de Schmitt com o

marxismo de Pachukanis, o Prof. Mascaro163 traça alguns pontos interessantes sobre a visão

marxista do Estado. Ele é uma parte essencial do Capitalismo, porque é o que dá o caráter

163 MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo, Boitempo, 2013.

162 BURLE, Silvio. Como funciona o Congresso Nacional. Senado Notícias, Agência Senado, 09 set. 2014.Disponível em:https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2014/09/09/como_funciona_o_Congresso_Naciona. Acesso em:27 jan. 2021.

161 Idem, p. 97.160 Idem, p. 97.159 Idem, p. 96.158 Idem, p. 92.

60

impessoal164 para as relações entre as classes, senão ficaria muito exposta a exploração que a

burguesia faz sobre o proletariado, para tomarmos termos de Marx. Assim, o Estado atua

como uma terceira pessoa nas relações sociais, principalmente nas de cunho econômico e nas

trabalhistas. Sob esse prisma, o Estado age de forma semelhante ao de Hobbes165, porque

serve para assegurar os direitos das partes, como o Leviatã assegura que os homens não vão se

destruir ao construir uma comunidade. No entanto, a diferença consiste em que o Estado

burguês somente finge ser um terceiro imparcial166, pois ele, na realidade, serve como

ferramenta para perpetuação das opressões de classe. Por isso, ele é um instrumento

fundamental para a manutenção do poder da burguesia e, então, do próprio Capitalismo.

Portanto, a secularização dos institutos teológicos, provocada pelo Capitalismo, subverte o

sentido original para servir ao capital e às classes dominadoras167.

Em seguida, sobre a Teoria Constitucional168, é importante definir o que é uma

Constituição, cabendo três significados principais. O primeiro169 é o da Constituição como a

condição concreta e coletiva da unidade política e da ordem social de determinado Estado, em

que ele é a Constituição. Já o segundo170 é dela como um tipo especial de ordem política e

social, também com o Estado sendo a Constituição, já que ela é a forma das formas. Por fim, a

terceira171 definição diverge das anteriores, porque enxerga o texto constitucional como uma

forma dinâmica e não estática. Assim, ela é entendida como o princípio da emergência

dinâmica da unidade política, que é constantemente renovada a partir de um poder

fundamental172. Como tomamos a visão política do Direito, não poderíamos ver o Estado e a

Constituição como iguais, é necessário diferenciá-los. Por conta disso, adotamos a terceira

visão sobre a Constituição, até mesmo pelo conteúdo, de certa forma, dialético, que dialoga

com as dinâmicas de Classe marxistas. Para tanto, a Constituição é o texto revelador das

condições da unidade política de um local, de forma a evidenciar as relações entre as classes,

de modo dinâmico, pois está submetida a constantes mudanças a depender do tecido social.

Consequentemente, pode ser utilizada para a inauguração dos sistemas políticos e

econômicos, bem como para a perpetuação das opressões desses sistemas, uma vez que existe

um fim político para o texto constitucional.

172 Idem, p. 61.171 Idem, p. 61.170 Idem, p. 60.169 Idem, p. 59-60.168 SCHMITT, Carl. Constitutional theory. Durham: Duke University Press, 2008.167 Idem, p. 41.166 MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo, Boitempo, 2013. p. 21.165 HOBBES, Thomas. Leviathan. [1651]. Oxford: Oxford University Press, 1998. p. 114.164 Idem, p. 19-20.

61

Ademais, Schmitt afirma que a Constituição só é válida e só se estabelece, porque

advém de uma capacidade de criar constituição173, conhecido também como poder constituinte

originário. Ele dá o exemplo da Constituição de Weimar174, pois o Estado Alemão não se

fundava nos artigos ou na validade deles, mas na existência política do povo alemão; que,

com a sua vontade, garantia um poder “místico” para a Constituição, fazendo-a existir não

somente no mundo jurídico, mas no plano fático também. Por conta do aval do povo, o texto

constitucional consegue se estabelecer e ter poder sobre todos175. De certa forma, é como se a

própria população se desse a Constituição. Assim, não se pode mais conceber a Constituição

como o código completo, porque ela depende estritamente das condições sociopolíticas da

época em que é criada, já que advém do povo e dos seus representantes176. De fato, podemos

encontrar muitos dispositivos que não deveriam estar na Constituição, porém que foram

inseridos por conta das decisões políticas dos partidos e do momento histórico da

sociedade177. Por exemplo: o art. 149, 3 da Constituição de Weimar diz que “as faculdades

teológicas nas universidades devem ser preservadas”178. Tal dispositivo não precisaria estar na

Carta Magna, bastava constar em algum outro texto jurídico. No entanto, o contexto histórico

e político de 1919 explica a inserção desse e demais dispositivos na Constituição, já que os

partidos da época acreditavam ser necessário conferir o grau constitucional179.

Entretanto, podemos pensar como essa Teoria Constitucional se aproxima da Teoria de

Estado de Schmitt. De fato, até então não entramos no mérito do Soberano. Após expor esses

conceitos, ele traz a diferença entre Constituição e Leis Constitucionais180, em que aquela é o

fenômeno como um todo junto dos seus preceitos fundamentais e esta apenas alguns dos

dispositivos do todo. Nesse sentido, a principal diferenciação se dá por duas vias:

identificação da essência e modos de alteração. A primeira se explica na medida em que a

essência da Constituição não está contida em alguma lei, mas na própria decisão política que a

originou181. Já a essência das leis constitucionais se detém ao texto normativo, por exclusão. A

segunda diferenciação demonstra a facilidade com que as leis constitucionais podem ser

revistas e alteradas182, de forma similar às Emendas Constitucionais (ECs) no caso brasileiro.

No entanto, a mudança da Constituição como um todo é um processo muito mais complexo e

182 Idem, p. 79.181 Idem, p. 76-77.180 Tradução própria. No original: constitution; constitutional laws. Idem, p. 75-76.179 Idem, p. 67.178 Tradução própria. No original: The theological faculties in universities are to be preserved. Idem, p. 67.177 Idem, p. 65.176 Idem, p. 65.175 Idem, p. 65.174 Idem, p. 65.173 Idem, p. 64.

62

delicado183, pois é necessária, para a democracia, por exemplo, uma vontade geral do povo,

com o poder constituinte originário, para que a decisão política surta efeito e uma nova Carta

seja redigida. Consequentemente, pode-se concluir que, assim como essa diferenciação, a

distinção entre o Congresso Nacional e a Assembleia Nacional Constituinte é notória184. Por

fim, a figura do Soberano entra nessa discussão quando se forma um estado de exceção. Isso

porque a Constituição é inviolável, enquanto as Leis Constitucionais não, podendo ser

suspensas durante os períodos de exceção e violadas sem prejuízos, se assim o Soberano

achar pertinente185. Assim, mostra-se que até mesmo o Soberano deve respeitar a força

política da Constituição, já que, no momento em que a sua soberania é mais proeminente, ele

é incapaz de ultrapassá-la por si só, devido à dependência da determinação da sociedade.

185 Idem, p. 80.184 Idem, p. 80.183 Idem, p. 80.

63

9. A PRIMEIRA BATALHAApós o resumo da história e das bases teóricas literárias, é possível explorar a obra de

Mary Shelley, tendo em vista o objetivo específico “a”, de analisar a relação entre o criador e

a criatura em Frankenstein. Para tanto, a investigação ocorrerá em três etapas: o mito, os

monstros e a relação entre Victor e a criatura. Na primeira etapa, verificaremos o aspecto

mitológico do enredo, que permite a sua melhor aplicação nesta pesquisa. Em seguida, a

atenção será dada aos monstros do romance, de forma individual, para compreender a

natureza de alguns personagens. Por fim, a relação criador-criatura será, enfim, observada

para definirmos a base da resposta à pergunta norteadora.

9.1 O mito do Prometeu moderno

O primeiro ponto para análise está contido no próprio título original186 do livro:

“Frankenstein, ou o prometeu moderno”. A menção a Prometeu remete ao mito grego187

homônimo. Nesse sentido, Mary Shelley188 busca, explicitamente, traçar um paralelo entre a

sua história e o mito de Prometeu, de forma que podemos analisar essa comparação da

seguinte maneira189: Victor é o titã e o monstro é o castigo divino que cai sobre o jovem

Frankenstein. Isso porque Victor tenta, assim como Prometeu, se assemelhar a Deus,

roubando o poder de criar vida, culminando na criação de seu monstro. No entanto, pela

desobediência com o divino, a punição recai sobre o criador, fadado à desgraça com a revolta

de sua criatura, que não foi amada por nenhum humano. Além disso, um traço marcante das

histórias gregas é a força intransponível do destino, que tudo rege e nada consegue impedir.

Dessa forma, o destino também está presente na obra de Mary Shelley, como algo que Victor

189 ARAÚJO, Alberto Filipe; GUIMARÃES, Armando Rui. Victor Frankenstein: um prometeu moderno?. In:ALMEIDA, Rogério de; ARAÚJO, Alberto Filipe; BECCARI, Marcos (orgs.). O mito de Frankenstein:imaginário & educação. São Paulo: FEUSP, 2018. p. 108.

188 Durante o século XIX, principalmente na Alemanha, há uma revalorização do mito pelos filósofosromânticos, o que permitiu o seu renascimento no século seguinte. Assim, pode-se atestar a intencionalidade deMary Shelley com o título de sua obra não só pela comparação com o mito de Prometeu em si, mas com amitologia como um todo, já que era um assunto recorrente de sua época. SIRONNEAU. Jean-Pierre. Introdução.In: ALMEIDA, Rogério de; ARAÚJO, Alberto Filipe; BECCARI, Marcos (orgs.). O mito de Frankenstein:imaginário & educação. São Paulo: FEUSP, 2018. p. 18

187 ÉSQUILO. Prometeu acorrentado. In: KURY, Mário da Gama. O melhor do teatro grego: prometeuacorrentado, édipo rei, medeia, as nuvens. Edição comentada. Rio de Janeiro: Clássicos Zahar. 2013.

186 GUIMARÃES, Armando Rui. Mary Shelley: vida e obra. In: ALMEIDA, Rogério de; ARAÚJO, AlbertoFilipe; BECCARI, Marcos (orgs.). O mito de Frankenstein: imaginário & educação. São Paulo: FEUSP, 2018.p. 39.

64

percebe e revela em algumas passagens190,191,192. Ele sabia, desde o momento da criação, que a

sua vida seria miserável, como também Prometeu sabia de sua sorte, afinal era filho de Gaia, a

mãe dos oráculos.

Ademais, um traço importante nas tragédias gregas, em especial nas mitológicas, é a

húbris dos heróis, cujo exemplo claro é o mito de Ícaro193. Atualmente, húbris significa uma

combinação de orgulho com arrogância que cega o herói enquanto realiza algo, permitindo

que caia em desgraça após agir de forma prepotente. Por conseguinte, podemos entendê-la

como o orgulho que antecede a ruína. Inicialmente, era entendida como o limite social194,

imposto pelos deuses e pela cultura, para conter os instintos humanos. Quando alguém

ultrapassava esse limite, era duramente punido pela ira dos deuses, cuja responsável, na

mitologia grega, era a deusa Nêmesis195. Nesse sentido, é visível como Prometeu e Victor

cometeram o pecado da húbris, dado que desafiaram o divino para realizarem as suas ações,

de forma prepotente, o que acarretou em desprestígio.

Paralelamente, existem outras semelhanças entre eles. Assim que Victor cria o

monstro, é como se ele estivesse no lugar de Prometeu, roubando o fogo do Olimpo, com a

ciência de que logo Hefesto irá acorrentá-lo, a partir da morte do seu querido irmão, William.

Em seguida, no momento em que a criatura pede a sua companheira, pode-se perceber a

similaridade com a figura de Hermes, que pergunta a Prometeu qual seria a causa da queda

de Zeus, fato que poderia livrá-lo da prisão. No entanto, os dois personagens negam os seus

pedidos: Victor até aceita criar uma companheira, mas a destrói nos momentos finais; ao

passo que Prometeu nada conta a Hermes. Ambos tinham conhecimento das consequências

que essas atitudes teriam, a de sofrer mais ainda, porém se mantiveram firmes em suas

decisões, pois assim acreditavam ser o correto. A última semelhança direta são as conversas

que eles mantêm ao longo do enredo. Prometeu confia às ninfas, filhas do Oceano, e à Io a sua

195 Idem, p. 12.194 BORDONI, Carlo. Hubris and progress: a future born of presumption. New York: Routledge, 2019. p. 11.

193 O jovem Ícaro, tomado pela sua húbris, desobedece o seu pai e voa mais próximo do sol, fazendo a cera desuas asas derreterem. Consequentemente, ele cai no mar e morre. Por conseguinte, é visível como a sua atitudede confiança exacerbada o condenou. OVÍDIO. As metamorfoses. Rio de Janeiro: Ediouro, 1983. p. 147-148.

192 Victor também expressa diretamente a imutabilidade do destino, quando conta sobre a sua quase desistênciada Filosofia Natural de Agrippa. No original: It was a strong effort of the spirit of good, but it was ineffectual.Destiny was too potent, and her immutable laws had decreed my utter and terrible destruction. Idem, p.35.

191 Victor revela, novamente, o seu destino quando inicia a contar a sua história. No original: [...] I also recordthose events which led, by insensible steps, to my after tale of misery, for when I would account to myself for thebirth of that passion which afterwards ruled my destiny [...]. Idem, p. 33.

190 Logo nas primeiras cartas, Walton relata uma fala de Victor que afirma a força do seu destino. No original: butyou are mistaken, my friend, if thus you will allow me to name you; nothing can alter my destiny; listen to myhistory, and you will perceive how irrevocably it is determined. SHELLEY, Mary W. Frankenstein. [1831].New York: Millennium Publications, 2014. p. 28.

65

história, a motivação que o levou a ser castigado daquela maneira por Zeus. De forma

semelhante, Victor conta a sua história para Walton, a fim de que ele não siga os seus passos e

evite uma vida miserável.

A partir disso, seria possível considerar Frankenstein um mito? Apesar da relação

indiscutível com o mito de Prometeu, podemos dizer, de imediato, que a resposta seria

negativa, pois, afinal, do que se trata um mito? Para Lévi-Strauss196, o mito é linguagem,

porém uma linguagem na qual o sentido extrapola o fundamento linguístico que o iniciou, de

forma que ela se manifesta em unidades constitutivas. Essas unidades se relacionam em feixes

de relações, que sustentam a dupla natureza temporal do mito: sincrônica e diacrônica. A

sincronia advém da atualidade dos eventos narrados, de sorte que se mantém válido na

comunidade sobre a qual ele atua a todo instante. Já a diacronia é a faceta de perpassar a linha

temporal: passado, presente e futuro. O mito não é obrigado a seguir a cronologia dos

homens, afinal quem o narra no presente não é o mesmo que o narrou no passado e não será o

mesmo do futuro. Ou seja, a sincronia versa sobre a validade temporal da aplicação dos mitos

e a diacronia sobre a independência deles em relação às pessoas tomadas em si, bem como a

sobrevivência do mito ao tempo. O duplo sincronia-diacronia é essencial para a perpetuação

do mito, bem como para o seu impacto nos indivíduos, na formação de crenças, na construção

de valores e do sentimento de pertencimento, por exemplo.

Nesse sentido, podemos afirmar que o romance de Mary Shelley não é apenas uma

história, mas um mito, porque, dentre outras justificativas, ele dialoga com muitos outros

mitos197,198 e tem uma característica de universalidade sincrônica-diacrônica evidente, apesar

de localizar certos pontos da história no espaço-tempo humano. Isso porque a ideia da criação

da vida não tem um espaço temporal definido, pois é um assunto que instiga a curiosidade

humana, permitindo a sua aplicação até os dias de hoje, vide a questão das células-tronco e

clonagem. Já a diacronia de Frankenstein dialoga com a repetição do mito pela população,

que será analisada mais adiante. O romance de Mary Shelley não é um apenas mito, mas é um

198 Goethe, um dos autores lidos pelo monstro, escreveu também sobre o famoso mito de Fausto, que seassemelha com a história de Frankenstein. A trama retrata um cientista ávido de conhecimento que busca pelajuventude eterna, o que o leva a realizar um pacto com o diabo. Consequentemente, o seu acordo o leva àdestruição, assim como o acordo de Victor com o monstro para a criação de uma companheira. ALMEIDA,Rogério de. O mito de Frankenstein no cinema. In: ALMEIDA, Rogério de; ARAÚJO, Alberto Filipe;BECCARI, Marcos (orgs.). O mito de Frankenstein: imaginário & educação. São Paulo: FEUSP, 2018. p. 160.

197 Na comunidade judaica, existe o mito do golem, relacionado ao misticismo judaico. Esse mito trata da criaçãode um a partir do barro, em que a inserção de um papel com a palavra “emet” confere vida à criatura. O golemera um servente ideal ao homem, porém o seu crescimento não parava, sendo necessário apagar uma das letrasdo papel para que ele se desfizesse. RIBEIRO, José Augusto. A utopia da fabricação do homem. In: ALMEIDA,Rogério de; ARAÚJO, Alberto Filipe; BECCARI, Marcos (orgs.). O mito de Frankenstein: imaginário &educação. São Paulo: FEUSP, 2018. p. 140.

196 LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. 4ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. p. 242.

66

mito de criação, pois trata do surgimento da vida, que é um dos assuntos desse gênero

mitológico, junto da criação do universo e de uma comunidade, por exemplo. O mito de

criação está presente, principalmente, nas religiões, como a história de Adão e Eva.

Entretanto, Frankenstein é um mito de criação deformado, já que a criação não obtém o

sucesso desejado. Pelo contrário, o criador busca se equiparar a Deus, ao criar vida do nada,

porém não ama a sua criatura e a renega, ao ponto de ela se voltar contra ele.

No entanto, permanece outra dúvida: como a história de Frankenstein, enquanto um

mito, sobreviveu e chegou aos dias atuais, exercendo a sua diacronia? Após a publicação da

primeira edição em 1818, o livro logo começou a ganhar fama, ao ponto de, três anos depois,

o pai de Mary Shelley editar a sua segunda edição. Contudo, foi apenas em 1831 que o livro

realmente conquistou o globo, pois essa edição é a mais difundida199 e utilizada. Mary Shelley

realizou algumas mudanças substanciais200 no enredo da primeira para a terceira edição, a fim

de torná-lo mais agradável201 à população da época. Diante disso, sua popularização

incentivou o desenvolvimento de outras formas artísticas do enredo202, como peças de teatro,

pinturas e, principalmente, produções para o cinema. Consequentemente, o romance de Mary

Shelley adquire vida e independência em relação à criadora, fugindo ao seu controle. Com o

monstro vagando pelo mundo, foi possível a sua consolidação mitológica, porque conseguiu

adentrar no imaginário203 da população, ao ponto de se tornar uma referência. É interessante

pontuar que essa consolidação não é de toda correta, pois, geralmente, a imagem criada, ao se

pensar em Frankenstein, não é de Victor ou da história de forma geral, mas do monstro.

Ocorre, então, uma inversão: a criatura, antes sem nome, recebe, por assimilação, o nome de

seu criador, como se fosse o próprio Victor.

Portanto, concluímos que a faceta mitológica da criação de Mary Shelley é válida, o

que permite a sua especial utilização nesta pesquisa, porque, do contrário, a associação da

Literatura com o Direito se tornaria fechada a um contexto específico; porém, por se tratar de

um mito, podemos utilizá-la de forma mais ampla, sem prejuízos.

203 ARAÚJO, Alberto Filipe; GUIMARÃES, Armando Rui. Como criar um monstro: o manual de instruções doDr. Victor Frankenstein. In: ALMEIDA, Rogério de; ARAÚJO, Alberto Filipe; BECCARI, Marcos (orgs.). Omito de Frankenstein: imaginário & educação. São Paulo: FEUSP, 2018. p. 73.

202 LECERCLE, Jean-Jacques. Frankenstein: mito e filosofia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. p. 98.

201 É possível afirmar que o texto foi “aburguesado”, reduzindo o seu teor radical para se adequar ao públicoleitor da época, em maioria mulheres abastadas. Idem, p. 49.

200 GUIMARÃES, Armando Rui. Mary Shelley: vida e obra. In: ALMEIDA, Rogério de; ARAÚJO, AlbertoFilipe; BECCARI, Marcos (orgs.). O mito de Frankenstein: imaginário & educação. São Paulo: FEUSP, 2018.p. 48.

199 MELLOR, Anne K. Making a monster. In: BLOOM, Harold (Ed.). Mary Shelley’s Frankenstein. (Bloom’sModern Critical Interpretations). New York: Chelsea House, 2007. p. 44.

67

9.2 Os monstros

A história de Frankenstein não apresenta somente um monstro, mas, de certa forma,

três: o Capitão Walton, o Victor e a criatura. Curiosamente, são os três narradores do romance,

afinal quem conta a história é o Capitão, por meio das suas cartas à sua irmã, a partir do que

ele ouviu de Victor, sendo que uma parte foi contada ao criador pela criatura no Mont Blanc.

Para tanto, cabe analisar a monstruosidade desses personagens, como elementos-chave da

narrativa de Mary Shelley. O primeiro monstro apresentado ao leitor é o Walton. O livro se

inicia com as suas cartas, contando das expectativas sobre a viagem ao Polo Norte, a partir de

São Petersburgo, a fim de encontrar um novo caminho, que poderia revolucionar as

navegações e o comércio da época. Após contratar a sua equipe de marujos e alugar o navio,

parte rumo ao norte, até que a embarcação encalha no meio das geleiras. É nesse cenário que

o Capitão encontra o jovem Frankenstein, abatido com a perseguição ao monstro, depois de

perder praticamente todos a quem amava.

Feita a breve recapitulação, o aspecto monstruoso em Walton é um pouco mais sutil do

que nos demais personagens, porque ele não cria ou é, efetivamente, um monstro. Contudo, a

sua empreitada é digna de um cientista louco como Victor204, afinal ele busca,

incansavelmente, alcançar o seu objetivo, o de descobrir uma nova rota marítima, mesmo com

os pedidos da sua equipe para voltarem à casa, evidenciando a sua húbris. Ele se torna

obsessivo com a sua viagem, da mesma forma que Victor ficou quando da criação do monstro.

De fato, foi justamente essa semelhança que estreitou os laços entre os dois, enquanto

Frankenstein era cuidado pelo Capitão e contava-lhe as histórias de sua vida. Walton chegou a

considerar Victor como o amigo que ele tanto esperou ter durante a viagem, alguém com

quem conseguiria compartilhar os seus sonhos e as suas aspirações. O sentimento foi

recíproco, porém Victor sabia de seu destino, a morte se aproximava. Dessa forma,

Frankenstein não pôde deixar de aproveitar a oportunidade para alertar o seu amigo dos

perigos de sua compulsão. Apesar de abominar o medo diante do desconhecido, Victor contou

sua história com o objetivo de aconselhar Walton sobre as suas decisões, de forma que o

Capitão não tivesse o mesmo miserável fim. Essa mensagem pode ser entendida como

204 Não só ele se aproxima de Victor, como também é um Prometeu. BLOOM, Harold. Introduction. In:BLOOM, Harold (Ed.). Mary Shelley’s Frankenstein. (Bloom’s Modern Critical Interpretations). New York:Chelsea House, 2007. p. 7.

68

endereçada a toda a humanidade205, em especial àqueles cegos pela húbris206, para que tomem

cuidado com os rumos escolhidos e não se tornem novos Ícaros. Felizmente, o Capitão cedeu

ao apelo de seus marujos e decidiu retornar para casa.

A vida e a morte de Victor foram marcos na história de Walton, como ele confessa à

sua irmã: “Eu desejei tanto um amigo; eu procurei por alguém que simpatizaria comigo e me

amaria. Veja, nestes mares desertos eu encontrei tal pessoa, mas temo que a ganhei apenas

para conhecer o seu valor e perdê-la em seguida”207. Indiscutivelmente, ele tem uma

capacidade enorme de se identificar com o Victor, assim como os leitores se reconhecem nos

heróis românticos208, porque Victor, claramente, não se enxerga no seu mundo e busca romper

com ele a partir da sua pesquisa científica - o que o Capitão imita com a sua viagem. Assim,

por meio da empatia, o Capitão se aproxima de Victor, em um movimento que é espelhado

pelos leitores de Mary Shelley.

O segundo monstro, Victor Frankenstein, é a peça-chave do enredo, porque não

haveria história sem ele. Como o romance é um mito de criação, Victor busca se assemelhar a

Deus ao tentar dar vida ao inanimado. Dessa forma, se Adão209 foi criado à imagem e

semelhança de Deus, o monstro210 foi criado à imagem e semelhança de Victor. Para tanto, a

monstruosidade do criador pode ser revelada e medida a partir da monstruosidade de sua

criatura, afinal as criações se relacionam com a natureza211 de seus criadores. Entretanto, o

aspecto do duplo criador-criatura será explorado com maior profundidade no próximo

211 Até mesmo a criatura percebe essa relação, revelando-a a Victor. No original: [...] my form is a filthy type ofyours [...]. Idem, p. 90.

210 A criatura, conversando com Victor, revela o seu ódio por ter sido criada de à imagem e semelhança de seucriador, porém de forma distorcida, ao contrário do que ocorreu com Adão. No original: I sickened as I read.“Hateful day when I received life!” I exclaimed in agony. “Accursed creator! Why did you form a monster sohideous that even YOU turned from me in disgust? God, in pity, made man beautiful and alluring, after his ownimage; but my form is a filthy type of yours, more horrid even from the very resemblance. Satan had hiscompanions, fellow devils, to admire and encourage him, but I am solitary and abhorred”. SHELLEY, Mary W.Frankenstein. [1831]. New York: Millennium Publications, 2014. p. 90.

209 As referências ao Cristianismo, principalmente, se tornam válidas na medida em que a criatura se identificacom os personagens da obra “Paraíso Perdido” de John Milton, um dos livros encontrados enquanto estavapróximo da família De Lacey.

208 MARTINS, Tiago. Notas sobre o romance e sobre a teoria do romance: a questão da condição humana em umgênero que ainda vive. Revista Virtual de Letras, Jataí, v. 04, n. 02, p. 247-267, ago./dez., 2012. Disponívelem: http://www.revlet.com.br/artigos/167.pdf. Acesso em: 14 jan. 2021. p. 253.

207 Tradução própria. No original: I have longed for a friend; I have sought one who would sympathize with andlove me. Behold, on these desert seas I have found such a one, but I fear I have gained him only to know hisvalue and lose him. SHELLEY, Mary W. Frankenstein. [1831]. New York: Millennium Publications, 2014. p.141.

206 RIBEIRO, José Augusto. A utopia da fabricação do homem. In: ALMEIDA, Rogério de; ARAÚJO, AlbertoFilipe; BECCARI, Marcos (orgs.). O mito de Frankenstein: imaginário & educação. São Paulo: FEUSP, 2018.p. 153-154.

205 O testemunho de Victor mostra a Walton a necessidade de consciência de si e preocupação pelos seuscompanheiros, sendo uma mensagem não só para o capitão, mas para todos nós. TROPP, Martin. The monster.In: BLOOM, Harold (Ed.). Mary Shelley’s Frankenstein. (Bloom’s Modern Critical Interpretations). NewYork: Chelsea House, 2007. p. 25.

69

subcapítulo. Feito esse adendo, a genialidade monstruosa do jovem Frankenstein esteve

presente em sua vida desde os primórdios, quando ele começa a estudar a Filosofia Natural,

em especial o ramo de Cornelius Agrippa e similares. Com isso em mente, Victor alimentou,

diariamente, os seus anseios científicos, tornando a sua busca por conhecimento incansável212,

ao ponto de passar noites em cemitérios e mortuários para estudar mais a fundo os segredos

da anatomia humana. Ele sabia213, desde o início, que a sua criação seria monstruosa, porém a

sua obsessão o impediu de enxergar e de refletir sobre as suas ações, dado que foi guiado pela

sua húbris. Consequentemente, abateu sobre o cientista um profundo remorso assim que a

criatura deu o primeiro suspiro. A partir dali, a sua vida já estava marcada pela miséria e

destruição, já que ele sempre negou a paternidade daquele filho abominável. A sua situação só

piora ao longo do enredo, com as suas ações atingindo as pessoas que mais amava na vida:

sua família e seu melhor amigo, Henry Clerval.

A monstruosidade de Victor jaz, então, na sua faceta de criador, que detinha o poder da

criação, porém, em suas mãos, ele se tornou o poder da destruição. Por nunca ter feito nada

para evitar os desastres, Victor é, inegavelmente, o cúmplice214 de sua criatura, em cada

horrendo ato que ela realiza. Por outro lado, não podemos esquecer do papel que ele teve em

cada uma das ações do monstro, afinal não é à toa que o senso comum o confunde215 com a

sua criatura e, muito menos, que ele tenha passado a história inteira se culpando e se

martirizando por ter criado tal monstro. Victor é a clara imagem do Prometeu acorrentado,

com a diferença de ter se arrependido pelo roubo do fogo do Olimpo, algo que o titã jamais

215 MELLOR, Anne K. Making a monster. In: BLOOM, Harold (Ed.). Mary Shelley’s Frankenstein. (Bloom’sModern Critical Interpretations). New York: Chelsea House, 2007. p. 43.

214 Essa cumplicidade pode ser atestada pela falta de responsabilização que Victor tem para com a sua criatura esuas ações, de forma que a sua negligência referenda as atitudes do monstro, quase como se elas fossem de suavontade. Um exemplo disso é quando a criatura o ameaça sobre a sua noite de núpcias. Victor, com o seuegocentrismo, não pensa que a Elizabeth poderia ser a vítima, apenas ele. Nesse sentido, acaba por permitir que asua esposa fosse assassinada. Joyce Oates sustenta também essa visão. No original: When the demon warnsFrankenstein (in traditional Gothic form, incidentally), “I shall be with you on your wedding-night,” itseems only natural, granted Frankenstein’s egocentricity, that he worry about his own safety and not hisbride’s and that, despite the warning, Frankenstein allows Elizabeth to be murdered. His wish is his demon-self’s command, though he never acknowledges his complicity. OATES, Joyce Carol. Frankenstein’s fallen angel. In:BLOOM, Harold (Ed.). Mary Shelley’s Frankenstein. (Bloom’s Modern Critical Interpretations). New York:Chelsea House, 2007. p. 39.

213 Ele confessa isso a Walton quando estava contando sobre a criação da companheira do monstro. No original:During my first experiment, a kind of enthusiastic frenzy had blinded me to the horror of my employment;mymind was intently fixed on the consummation of my labour, and my eyes were shut to the horror of myproceedings. SHELLEY, Mary W. Frankenstein. [1831]. New York: Millennium Publications, 2014. p. 111.

212 Victor se comporta como o aprendiz de um feiticeiro, porque, durante a criação, ele deixa de lado todo limitepara poder se exceder nos estudos, a fim de construir o “homem perfeito”. Obcecado pela sua utopia, o criador seesquece de todo o processo horrendo, focando unicamente no resultado sem ligar para as consequências.RIBEIRO, José Augusto. A utopia da fabricação do homem. In: ALMEIDA, Rogério de; ARAÚJO, AlbertoFilipe; BECCARI, Marcos (orgs.). O mito de Frankenstein: imaginário & educação. São Paulo: FEUSP, 2018.p. 143-144.

70

sentiu. Victor é tão miserável que, em seu leito de morte, nem mesmo a criatura, que o odiava

mais do que tudo, conseguiu não se compadecer de suas dores.

Por fim, o terceiro monstro é o mais óbvio, a criatura. Ela deixa claro, por diversas

vezes, o seu descontentamento com o seu nascimento, dado os eventos que o sucederam. De

início, ela é criada e, logo em seguida, abandonada pelo seu pai. Assim, sozinha e sem

conhecer nada, tenta compreender esse novo mundo por conta própria, até se encontrar com a

civilização. A criança que tanto ansiava por afeto familiar transfere essa expectativa para as

pessoas que encontra pelo seu caminho. Entretanto, sempre que se aproxima de um humano, é

recebida com ódio, nojo e medo, o que frustra em muito o pobre ser. Apesar das rejeições, a

criatura ainda mantém a fé na humanidade e a esperança de um dia ser amada, como um igual,

pelos homens. Com isso em mente, após uma de suas fugas, ela se esconde próximo da

família De Lacey, em quem deposita as suas expectativas de, enfim, satisfazer os seus desejos.

A esperança é tamanha que ela se esforça ao máximo para que a sua aparência horrenda não

seja um empecilho para o encontro, que é planejado e ensaiado incansáveis vezes em sua

mente. Ela aprende, até mesmo, a língua dos De Lacey, o francês, e os ajuda em suas tarefas

cotidianas.

O esforço do monstro para se conectar com essa família foi essencial para a sua

autopercepção, porque os livros por lá encontrados formaram o seu conhecimento de mundo,

em especial o “Paraíso Perdido” de John Milton. Inicialmente, ele se identifica com Adão,

mas com uma diferença: Deus amava o homem e a criatura mal conhecia o próprio criador,

pois Victor logo a abandonou. Com isso, o monstro se faz a pergunta mais importante de sua

história: “E o que sou eu?”216 A resposta não é clara, afinal o seu criador não estava por perto

para respondê-la, além da criatura não ter encontrado nenhum outro ser parecido e ser tratada

com medo e ódio por cada humano. A criatura se via descolada do mundo e de tudo que ele

representava, como os heróis, apesar de ela não se encaixar no que poderíamos pensar de um

herói em Frankenstein, dadas as suas ações maléficas. A partir disso, ela mesma chega a uma

possível resposta: “Seria eu, então, um monstro, uma mancha na terra, da qual todos os

homens fugiram e a quem todos os homens repudiaram?”217. Consequentemente, ela abandona

a aproximação com Adão e passa a se enxergar em Satã, o anjo caído, que muito foi amado

217 Tradução própria. No original: Was I, then, a monster, a blot upon the earth, from which all men fled andwhom all men disowned?. Idem, p. 84.

216 Tradução própria. No original: And what was I?. SHELLEY, Mary W. Frankenstein. [1831]. New York:Millennium Publications, 2014. p. 84.

71

por Deus, porém, pela traição, foi destinado à miséria. Por ser bondosa218, a criatura buscava

se afastar dessa natureza maléfica, tentando ao máximo conquistar a afeição da humanidade.

No entanto, apesar do seu plano de se apresentar para os De Lacey correr como havia

pensado, ainda assim é rejeitada pela família, justamente pela aparência. Por consequência, a

criatura explode de raiva e assume a sua faceta demoníaca contra toda a humanidade.

O seu primeiro ato violento se deu logo em seguida, o assassinato de William

Frankenstein, o irmão mais novo de Victor. No entanto, ainda que estivesse com ódio pelo seu

criador, espera, à espreita do local, o jovem Frankenstein aparecer para lhe fazer um pedido, o

de criar uma companheira para satisfazer a sua húbris da busca pelo afeto. A criatura não

queria aquele ódio que nutria, ela desejava, incessantemente, ser feliz com alguém ao seu

lado, de igual para igual, e longe da humanidade, que só lhe causava mal. Para persuadir o seu

criador, ela conta toda a sua condição de sofrimento e miserabilidade, o que comove não só

Victor, como quem lê a obra de Mary Shelley. A dor sofrida é tamanha que se torna uma

tarefa hercúlea não se compadecer. Por conta disso, é possível entender as ações da criatura ao

longo de sua vida, até mesmo perdoá-la pelas suas iniquidades, porém devemos tomar

cuidado, pois esses fatos são contados diretamente pelo monstro, então é um relato apelativo.

Justamente por esse caráter subjetivo, Victor retoma a sua consciência e percebe que criar

uma companheira pode ser a causa para a destruição da humanidade, levando-o a destruí-la

logo antes de terminar o seu trabalho. Após dizer “basta” diversas vezes, agora a criatura

realmente chega ao seu limite. A sua vingança era, então, o único motivo para a sua

existência. Entretanto, é uma vingança peculiar, que requer não somente o fim de seu criador,

mas também o seu sofrimento extremo. Isso se evidencia pelas provisões deixadas ao longo

do caminho ao Polo Norte, para que Victor não morra na perseguição.

Ou seja, é uma brincadeira de pega-pega em que a criatura quer e não quer ser pega

simultaneamente. É uma contradição que somente a relação criador-criatura poderá explicar,

pelo seu caráter dialético e mutualístico. Fato é: a criatura nunca foi má por essência, mas se

tornou má pela influência humana, ao ser rejeitada constantemente. Por conta disso, é possível

notar a influência de Rousseau219 em Mary Shelley, que desenhou uma criatura bondosa por

natureza. No entanto, foi o convívio com os homens que corrompeu a sua essência, de forma a

se tornar odiosa, porque o contrato social a excluiu sistematicamente. Consequentemente,

219 ARAÚJO, Alberto Filipe; GUIMARÃES, Armando Rui. O monstro de Frankenstein: uma leitura educacional.In: ALMEIDA, Rogério de; ARAÚJO, Alberto Filipe; BECCARI, Marcos (orgs.). O mito de Frankenstein:imaginário & educação. São Paulo: FEUSP, 2018. p. 116.

218 Podemos citar a ajuda que ela deu à família De Lacey, já que, à noite, fazia algumas das tarefas que Felixrealizava durante o dia. Além disso, logo antes de se encontrar com Willian Frankenstein, salvou uma menina doafogamento, resgatando-a sem consciência de um rio de forte correnteza.

72

revoltou-se contra a humanidade, transformando-se no inimigo do homem, até a destruição de

seu criador.

Por conseguinte, é possível atestar a monstruosidade de cada um dos três personagens.

Walton é o monstro que representa toda a humanidade, em sua busca incessante pelos louros

da glória, esquecendo-se de ponderar os riscos e o que realmente importa. Victor é o monstro

que buscou desafiar as leis divinas para obter o poder da criação, tal qual Prometeu. A criatura

é o monstro, literal e figurativamente, criado, um acidente da criação que se torna monstro

pela rejeição220 de seu criador e semelhantes. Victor não seria um monstro sem a criatura,

assim como ela não seria um monstro sem ele. Esses dois formam um par de monstros, em

uma espécie de mutualismo, já que a existência de um depende da existência do outro.

9.3 A relação criador-criatura

Após analisarmos os personagens individualmente e compreendermos o papel

mitológico de Frankenstein, que permite a sua aplicação nesta pesquisa, cabe, enfim, tratar do

objeto de estudo literário, a relação criador-criatura existente entre Victor e o monstro.

De início, para que exista tal relação, é necessário termos os polos: o criador e a

criatura. Eles formam um duplo indissociável, de forma que um nasce a partir do nascimento

do outro, bem como somente existem enquanto as suas existências perdurarem, afinal o que

seria de um criador sem a sua criatura e vice-versa? Assim, Victor só se torna o criador no

momento em que a criatura dá o seu primeiro suspiro, pois antes ele era apenas um cientista

desenvolvendo a sua pesquisa. Paralelamente, Victor não é criador apenas uma vez, mas duas,

pois, não bastasse o seu ato inicial de criação, ele se esforça, também, para criar um monstro.

Isso porque, originalmente, a criatura não se tornaria maléfica, muito pelo contrário, a história

mostra, no início, um ser bondoso que só queria companhia e amor, porém foi privado desses

tesouros do convívio social. De fato, dentre as duas criações, Mary Shelley revela com

detalhes somente a segunda, da criação do monstro, já que Victor não confessa para Walton

como formou a criatura, para que ninguém mais seguisse o seu caminho. Contudo, mal sabia

ele que a segunda criação é a mais destrutiva, pois não se aplica somente às criaturas feitas em

laboratório, mas a tudo.

220 Somente em dois momentos a criatura foi tratada com o mínimo de afeto. O primeiro foi na casa dos DeLacey, em que o pai, cego, conversou com a criatura e tentou acolhê-la. O segundo é no final do livro, quandoWalton se encontra com a criatura, porém tapa os olhos para poder conversar com ela sem sentir repulsa. Dessaforma, além de não ter recebido praticamente nenhum afeto, quando ele ocorreu, esteve relacionado aincapacidade de ver a criatura. Portanto, a sua aparência exerceu uma grande influência na sua condenação, algodiretamente decidido por Victor, que poderia ter feito um ser menos horrendo, mas preferiu aumentar asproporções.

73

Nos momentos iniciais, a criatura era apenas um ser, uma tábula rasa e bondosa.

Contudo, três questões principais221 permitem a sua criação como monstro: aparência

horrenda, abandono e falta de diálogo. A mais importante delas é a aparência horrenda,

porque é a causa de todo abandono e falta de diálogo que a criatura sofre ao longo de sua

vida, já que nenhum humano tem capacidade de se aproximar dela com o mínimo de afeto. De

certo, apenas em dois momentos podemos dizer que a criatura foi realmente ouvida: pelo pai

dos De Lacey em sua casa e por Walton nas cenas finais. Entretanto, essas duas ocasiões

ocorreram pela obstrução da visão, seja pela cegueira do pai, ou pelas mãos nos olhos de

Walton, que impossibilitou a vista das feições da criatura. Para tanto, não importava o quão

boa ela pudesse ser, bastava se parecer com um monstro que ela se tornaria um, porque a

visão não permitia que fosse tratada com dignidade.

No entanto, por que a criatura teve de se tornar um monstro? A resposta reside na

própria estrutura fundante de Frankenstein. Poderíamos pensar que ela é a relação

criador-criatura, afinal é o nosso objeto de estudo. Contudo, a relação criador-criatura não

passa de uma consequência da estrutura fundante real, a húbris. Assim, por que a húbris é a

estrutura fundante, o elemento mais essencial de Frankenstein? O motivo reside no fato de

que a história seria completamente diferente caso ela não estivesse presente no enredo,

principalmente nas ações de Victor, além de reverberar na história como um todo.

Por conseguinte, seria possível pensar em três cenários para a ausência da húbris. O

primeiro deles é aquele no qual o monstro não seria criado. Victor leria Cornelius Agrippa e

similares, mas seguiria o conselho do Prof. Krempe e abandonaria essa vertente da Filosofia

Natural. Consequentemente, ele não teria criado o monstro, porque não teria tido aquela

influência para entrar no galvanismo e buscar incessantemente dar vida ao inanimado.

A segunda possibilidade seria a de criar o monstro, porém nas proporções humanas. O

ponto decisivo durante a criação foi quando Victor escolheu aumentar o tamanho do ser para

facilitar o processo e diminuir o tempo, mas foi essa a decisão que condenou a criatura ao

desprezo, devido à aparência. Por conseguinte, caso Victor não estivesse cego pela húbris, ele

poderia ter determinado moldar a criatura conforme o homem, optando pelo caminho mais

lento e seguro. Com isso, ele teria abandonado a ansiedade de correr contra o tempo,

permitindo que criasse espaços de relaxamento, como socializar na faculdade e visitar a sua

221 Araújo e Guimarães elencam oito passos para que um monstro seja criado, porém três deles são maisdecisivos, sendo a aparência o fator mais crucial dentre todos para a história de Frankenstein. ARAÚJO, AlbertoFilipe; GUIMARÃES, Armando Rui. Como criar um monstro: o manual de instruções do Dr. VictorFrankenstein. In: ALMEIDA, Rogério de; ARAÚJO, Alberto Filipe; BECCARI, Marcos (orgs.). O mito deFrankenstein: imaginário & educação. São Paulo: FEUSP, 2018. p. 75-79.

74

família e amigos em Genebra. Dessa forma, ele não se deixaria ser absorvido pelo processo e

a criatura poderia ter uma aparência mais agradável, o que impediria a sua rejeição pela

sociedade e pelo seu próprio criador.

O terceiro cenário é o da criação nas mesmas proporções exageradas, porém sem a

decepção que Victor teve com o ser. Caso ele não agisse pela húbris e decidisse seguir o

caminho de Agrippa, ou, pelo menos, uma versão melhorada, a criação teria sido feita com

maior consciência, respeito e senso de realidade. Nesse sentido, a expectativa não teria sido

tão alta, diminuindo a sua decepção quando a criatura nascesse, pois saberia que ela seria algo

próximo de um “projeto alfa” e não de um filho, ou de uma nova espécie que deveria

vangloria-lo. Assim, perceberia a aparência horrenda da criatura, porém a manteria escondida,

dando afeto e atenção para poder estudá-la e compreender como melhorar.

No entanto, o propósito deste trabalho não é divagar sobre o horizonte de

possibilidades, é necessário se ater aos fatos. Victor ficou imerso em seu projeto por dois anos

de forma totalmente solitária, pois o seu único amigo em Ingolstadt era o Prof. Waldman.

Então, a sua vida resumia-se à criação e nada mais. Nesse sentido, quanto mais ela chegava ao

fim, mais ansioso e atordoado ele ficava, por dois motivos principais. O primeiro é devido ao

ato horrendo que Victor realizava. Ele estava indo aos mortuários e aos cemitérios para pegar

partes de corpos a fim de melhor compreender a anatomia humana e coletar peças para a sua

criação. Assim, o primeiro passo do seu mal-estar é consequência do terror do experimento

em si. Já o segundo motivo é mais natural, pois, quanto mais perto alguém chega de seus

objetivos, mais ansiosa a pessoa fica com a expectativa do resultado. Nesse momento de

animação, as expectativas aumentam, dado que já é possível começar a perceber os moldes

finais daquilo para o qual a pessoa tanto se empenhou.

A partir disso, podemos compreender porquê a expectativa de Victor estava elevada, o

que foi o seu erro, pois, durante o êxtase da esperança, ele tomou a decisão de aumentar as

proporções da criatura para agilizar e facilitar o seu trabalho. No entanto, essa escolha

provocou uma forte decepção quando da criação, pois o resultado foi totalmente diferente do

que ele sonhava. A proporção exagerada definiu a miséria da criatura, porque foi a causa

principal da sua rejeição, devido à aparência horrenda como consequência. Dessa forma, a

húbris de Victor impediu que a criatura pudesse ter qualquer tipo de afeto, incitando a criação

não apenas do ser, mas do monstro também; pois Frankenstein não parou para refletir e se

preocupar com o ser que estava por criar, uma vez que a húbris atrapalhou o seu correto

raciocínio. Por conseguinte, ele somente percebe a criação do Anjo Caído, ao invés de Adão,

no momento em que a criatura dá o primeiro suspiro, caindo em desgraça logo em seguida75

pela intensa decepção. O criador, que estava no Céu, sofre a maior queda da sua vida e para

no Inferno. Consequentemente, Victor, frustrado, escolhe abandonar a criatura, porque o

semblante dela o fazia relembrar de todo processo doloroso da criação, que culminou no seu

dissabor.

Como resultado, o monstro é criado e Victor, então, forja uma nova relação

criador-criatura, a relação criador-monstro. Isso porque a relação criador-criatura entre

Frankenstein e o monstro não é apenas uma relação criador-criatura genérica, mas específica

para o contexto de nascimento do monstro. Por mais que o embrião do monstro já estivesse na

criatura quando da sua criação, ele só se estabelece posteriormente, de forma a alterar a

possível relação que Victor e a criatura tivessem caso ela não se transformasse em um

monstro, devido ao afeto que receberia, impedindo-a de se tornar um ser maléfico. No

entanto, a relação criador-monstro guarda elementos centrais de uma relação criador-criatura

comum, permitindo uma definição geral. A relação criador-criatura é uma relação

histórico-dialética entre o criador e a criatura, de forma que os polos da relação se criam

e se recriam continuamente, um influenciando diretamente o outro. Já a relação

criador-monstro é muito similar, porém, em determinado momento, a criação e

recriação contínuas passam a ter um caráter destrutivo, com cada parte desejando o fim

da outra. Ademais, por se tratar de uma relação de duplos, para que um exista, é necessário

que o outro também exista. Consequentemente, a relação criador-monstro leva à aniquilação

tanto do criador, quanto do monstro, independentemente de quem morreu primeiro, porque,

assim que isso acontece, o outro também perde o sentido de sua existência.

A questão de ser uma relação histórica se dá pelo continuum das existências e pelas

frequentes interações entre as partes, que não se limitam a um espaço histórico restrito. Por

outro lado, a parte dialética advém dos contatos entre o criador e a criatura, de forma que as

posições nos polos se invertem na criação e na recriação. A história exemplifica a dialética da

relação quando William morre, porque, até então, Victor se encontrava em uma posição de

poder, por ser o criador. Contudo, o monstro assume o seu lugar de dominação sobre

Frankenstein, pois ele pôs em prática a sua capacidade de superar todas as habilidades físicas

humanas. Ou seja, a relação não é mais uma via criativa de mão única, o monstro pode,

também, criar o seu criador, de certa forma. Após o evento no Mont Blanc, percebemos uma

mudança substancial em Victor, que começa a agir e a pensar de forma diferente de antes, por

conta das influências de sua criatura, que, justamente, pediu uma companheira para se livrar

da solidão e se isolar da humanidade. Tal questão se agrava ao final do livro, em que o jovem

Frankenstein perde praticamente todos a quem amava, restando apenas a vingança, o único76

combustível para a sua miserável existência. Nesse momento, fica clara a inversão de papéis.

Na medida em que a perseguição ocorre, há uma humanização do monstro e uma

demonização do criador. A criatura ajuda seu criador a se manter vivo, deixando para trás

alguns mantimentos e comidas, o que ele, ingenuamente, acredita ser a ajuda de bons

espíritos. Enquanto isso, Victor alcança um estado deplorável222. Por fim, o aspecto

mutualístico é evidenciado ao se encerrar223 o enredo de Frankenstein, quando a criatura vê a

morte de seu criador e lamenta, prometendo a Walton que se mataria em uma fogueira, pois a

sua vida já não tinha mais valor.

223 No original: “But soon,” he cried with sad and solemn enthusiasm, “I shall die, and what I now feel be nolonger felt. Soon these burning miseries will be extinct. I shall ascend my funeral pile triumphantly and exult inthe agony of the torturing flames. The light of that conflagration will fade away; my ashes will be swept into thesea by the winds. My spirit will sleep in peace, or if it thinks, it will not surely think thus. Farewell”. Idem, p.148.

222 Walton descreve a impressão que teve ao vê-lo pela primeira vez. No original: His limbs were nearly frozen,and his body dreadfully emaciated by fatigue and suffering. I never saw a man in so wretched condition.SHELLEY, Mary W. Frankenstein. [1831]. New York: Millennium Publications, 2014. p. 25.

77

10. A SEGUNDA BATALHACom a análise literária feita, passemos para o estudo jurídico-político desta pesquisa, a

ANC. A exploração será feita de forma semelhante, porém em duas etapas: história com

atores e relação. O primeiro ponto tratará da ANC como um todo, de forma a investigar a sua

condução, os seus trabalhos e o seu enredo. Paralelamente, ela versará também sobre a

atuação de alguns indivíduos e grupos relevantes na ANC. Por fim, no segundo momento,

analisaremos o nexo entre a ANC e a CF, em observância ao objetivo específico “b”. É

importante salientar que não se trata de uma análise do processo legislativo, mas do evento

político em si. Dessa forma, o recorte está conforme ao apresentado nas bases jurídicas e

políticas.

10.1 O enredo e os atores

O trabalho aqui pretendido é digno de uma das doze tarefas de Hércules, afinal como

poderíamos analisar os vinte meses de constituinte, além de algumas figuras importantes? Isso

impõe, por certo, limitações iniciais. Não analisaremos a fundo cada mínima questão da ANC,

recortaremos alguns episódios notórios para adequar à pesquisa. Contudo, não é exatamente

uma perda, pois a ANC é uma bela história que permanecerá sendo contada por muitos anos,

tal qual os nossos mitos brasileiros. Além disso, frequentemente trataremos do povo, que é

uma massa muito complexa, compreendendo desde a elite às massas populares. Então, nesta

pesquisa, a população é tomada de forma geral, com foco nos coletivos em detrimento dos

detentores do poder. Feitos esses adendos, como trilharemos o nosso caminho? Pela ordem

cronológica: convocação da ANC pela EC 26/1985, a instalação, os trabalhos das

subcomissões e comissões, a Comissão de Sistematização, a virada do Centrão e os passos

finais da ANC.

De início, a convocação da ANC se deu um pouco depois do término dos trabalhos da

CPEC, o grupo responsável por desenvolver um anteprojeto de Constituição, a fim de facilitar

os trabalhos dos constituintes. Entretanto, o anteprojeto da CPEC nunca chegou a ser enviado

à ANC pelo Sarney por dois principais motivos: soberania e conteúdo. A imagem do

presidente estava muito enfraquecida após a morte de Tancredo, o que desfavorecia a

aprovação de seu anteprojeto pelos constituintes, diferentemente do que havia acontecido em

outras experiências brasileiras224. Nesse sentido, Sarney não se mostrava como um soberano

224 As Constituições de 1981, 1934 e 1967 receberam um anteprojeto enviado pelo Executivo. CARVALHO,Luiz Maklouf. 1988: segredos da Constituinte. Os vinte meses que agitaram e mudaram o Brasil. Rio de Janeiro:Record, 2017. p. 202.

78

schmittiano, apesar de o ser no papel, porque ele não detinha o real poder de decisão sobre a

exceção, a saber: o período de redemocratização brasileira e, em seguida, o período

constituinte. De fato, ele precisaria ser um soberano caso quisesse passar o seu anteprojeto à

ANC, pois assim o povo e os constituintes veriam legitimidade no texto apresentado,

desvinculado do passado ditatorial. Além disso, o conteúdo do anteprojeto da CPEC parecia

não agradar muito o presidente, pois, por exemplo, determinava o modelo

semi-parlamentarista225 para o Brasil, diminuindo os poderes de Sarney, algo impensável para

um político como ele, que, como veremos, ferrenhamente defendeu o seu tempo de mandato.

Nesse sentido, seria negativo para o presidente que esse anteprojeto fosse discutido em

qualquer instância pública, determinando que não fosse enviado à ANC. No entanto, não é

porque ele não foi enviado que não influenciou de alguma forma a redação final da CF, afinal

alguns membros226 da própria CPEC participaram do processo constituinte. Dessa forma, os

trabalhos da Comissão dos Notáveis não foi oficialmente utilizado, mas claramente auxiliou227

a ANC.

Em seguida, surge a problemática da convocação da ANC. Sarney, ao utilizar uma EC,

demonstra a sua escolha de vincular a Nova República à Constituição da Ditadura, pois

oficializa um novo momento constitucional por meio de um instrumento da antiga Carta

opressiva, sem de fato romper com o ordenamento anterior. Isso é um problema, porque o

povo brasileiro desejava muito o fim de qualquer resquício ditatorial. Assim, a subordinação

da ANC à antiga Constituição mostrava uma contradição no Poder Público. Não poderia ter

sido feita de outra forma? A Carta ditatorial ainda era legítima para ser seguida? Pelas vias

burocráticas, talvez Sarney não tivesse outra possibilidade. Entretanto, o momento era de

extrema exceção, porque era o instante da recriação da Nação brasileira, enfraquecida pelos

AIs. Então, cabia a Sarney rasgar a Constituição vigente para abrir os caminhos para a

próxima, para que ela não fosse uma filha, ainda que rebelde, da Ditadura. Contudo, ele não

era soberano o suficiente para realizar dessa forma, optando pelas vias institucionais em vigor.

Apesar dessa decisão para a convocação, a legitimidade da ANC não foi comprometida pela

EC, pois o povo apoiou a escolha de Sarney – tanto de forma direta com a participação nos

227 BASTOS, Marcus Vinícius Fernandes. Comissão Afonso Arinos, Assembleia Nacional Constituinte e aelaboração da Constituição de 1988: construção, procedimento e legitimidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris,2019. p. 52-53. p. 106-109.

226 Alguns exemplos: Afonso Arinos (constituinte), Miguel Reale Júnior (assessor) e José Afonso da Silva(assessor).

225 BASTOS, Marcus Vinícius Fernandes. Comissão Afonso Arinos, Assembleia Nacional Constituinte e aelaboração da Constituição de 1988: construção, procedimento e legitimidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris,2019. p. 52-53.

79

processos constituintes, como indiretamente pelo seguimento das normas por ela criadas, por

exemplo –, conferindo poderes constitucionais aos políticos eleitos.

Sobre os poderes constitucionais se extrai outra discussão sobre a ANC, se ela seria

constituinte exclusiva ou congresso constituinte. A ala mais progressista228 e a população

como um todo defendiam229 a primeira opção, porque ela desvincularia os trabalho da ANC

da Constituição ditatorial, já que seria criado um órgão à parte para tratar unicamente da nova

Carta, o que transparecia uma imagem de maior pureza e comprometimento para com os

projetos da sociedade brasileira. No entanto, essa defesa sofreu dois obstáculos: eleições e

funcionamento. A infraestrutura eleitoral brasileira é muito complexa e exige um orçamento

exorbitante, haja vista a extensão territorial. Nesse sentido, seria demasiado caro e difícil

realizar duas eleições, uma para o CN e outra para a ANC, ainda que fossem em datas

distintas. Se fossem juntas, complicaria ainda mais, pois as corridas eleitorais das duas

instituições seriam feitas concomitantemente, podendo confundir a população, dado que

existiriam dois tipos de candidatos no pleito. Por outro lado, como funcionariam os trabalhos

do CN e da ANC nessa hipótese? Eles teriam de compartilhar o espaço físico do Legislativo

Federal, o que poderia trazer conflitos e problemas para ambos os lados. Com esses dois

obstáculos, optou-se pela via do Congresso Constituinte, como a redação do art. 1º caput da

EC 26/1985230 deixa claro: “Os Membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal

reunir-se-ão, unicameralmente, em Assembléia Nacional Constituinte, livre e soberana, no dia

1º de fevereiro de 1987, na sede do Congresso Nacional”.

Assim, as eleições de 1986 receberam maior peso político, pois não era apenas a

escolha dos dirigentes do Legislativo Federal, mas também de quem escreveria a nova

Constituição. Sobre isso, aventou-se a possibilidade de exclusão dos senadores eleitos em

1982, uma vez que eles não teriam sido selecionados para serem constituintes, porém tinham

mais quatro anos de mandato quando da instalação da ANC. No sentido jurídico, era claro que

eles deveriam participar, pois a EC atesta explicitamente que os constituintes são os membros

do Congresso Nacional, sem vínculos em relação à eleição que os diplomou. Por outro lado, o

sentido político poderia afastá-los dos louros da constituinte, afinal o povo não os escolheu

para tal fim, apenas para legislar sobre matéria ordinária, no máximo sobre ECs. Entretanto,

230 BRASIL. Constituição (1967). Emenda constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985. Brasília:Congresso Nacional, 1985. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc_anterior1988/emc26-85.htm. Acesso em: 14jun. 2021.

229 Idem, p. 21.

228 O termo “progressista”, assim como “conservador” mais à frente, é tomado segundo as visões escolhidas porPilatti em seu livro sobre a ANC. PILATTI, Adriano. A constituinte de 1987-1988: progressistas,conservadores, ordem econômica e regras do jogo. 4ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2020. p. 1-17.

80

essa visão compartilhou do mesmo obstáculo do funcionamento, pois seria necessário criar

um órgão a parte para ser o Congresso Nacional, contendo os senadores de 82 e alguns

membros da ANC. Para tanto, foi decidido231 que eles seriam incluídos no rol de constituintes.

Com as primeiras questões resolvidas, a ANC inicia os seus trabalhos, a começar pelas

discussões acerca da sua soberania e do regimento interno. Apesar da EC atestar a soberania

da ANC, é necessário explicar melhor o que isso poderia significar e a sua utilidade prática,

afinal “soberania” é uma palavra vaga a depender do contexto. Para nós, a soberania é, como

Schmitt defendia, o poder sobre a exceção, ditando quando ela está presente e como resolvê-la

a fim de restaurar o equilíbrio. Dito isso, a questão era se a ANC poderia decidir sobre

situações outras que não as da nova Constituição estritamente. Devido ao seu duplo caráter de

congresso e constituinte, ela deveria poder gozar da soberania da forma mais ampla possível,

legislando com mais simplicidade e afinco sobre matéria atual. No entanto, as alas

governistas232 temiam que isso obrigasse o governo a seguir qualquer ordem da ANC, o que

poderia causar insegurança jurídica ou subordinação do Executivo ao Legislativo,

desequilibrando a relação entre os poderes. Para tanto, surgiu o dispositivo de Projetos de

Decisão, que, como vigorou no RIANC233, versava sobre situações nas quais a ANC teria a

prerrogativa para interferir - apenas nos casos em que a soberania e os trabalhos da ANC

estariam ameaçados. Assim, a soberania da constituinte se limitava à sua função de escrever a

próxima Constituição e aos atos que poderiam atrapalhar tal processo.

Já os debates sobre o regimento interno foram menos consensuais. Os ânimos estavam

elevados, dado que era uma época que inaugurou a derrota da opressão e vitória da

democracia. Dessa forma, os constituintes tinham duas preocupações maiores: fugir de

vínculos com o passado e assegurar o seu nome na história da ANC. Nesse sentido, os

constituintes decidiram rejeitar qualquer tipo de anteprojeto que não fosse diretamente feito

pela ANC, de forma que rejeitariam o trabalho da CPEC se fosse enviado. Sobre isso, Nelson

233 Disposto no art. 59, § 7º: Os projetos de decisão destinam-se sobrestar medidas que possam ameaçar ostrabalhos e as decisões soberanas da Assembléia Nacional Constituinte, necessitando ter o apoiamento de 1/3(um terço) dos Constituintes, e serão encaminhados à Comissão de Sistematização que, num prazo de 5 (cinco)dias, emitirá parecer prévio, sendo arquivado definitivamente o projeto que dela receber parecer contrário. Casotenha parecer favorável, a decisão final será proferida pelo Plenário, por maioria absoluta de votos, em doisturnos de discussão e votação. BRASIL. Assembléia Nacional Constituinte. Regimento Interno, estabelecidopela Resolução nº 2, de 1987. Brasília: Assembléia Nacional Constituinte, 1987. Disponível em:https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/publicacoes/regimento-interno-da-assembleia-nacional/resolucao-2-1987. Acesso em: 22 jun, 2021.

232 BASTOS, Marcus Vinícius Fernandes. Comissão Afonso Arinos, Assembleia Nacional Constituinte e aelaboração da Constituição de 1988: construção, procedimento e legitimidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris,2019. p. 74.

231 A votação ficou em 394 a favor, 124 contra e 17 abstenções, do total de 537 votantes. PILATTI, Adriano. Aconstituinte de 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem econômica e regras do jogo. 4ª ed. Rio deJaneiro, Lumen Juris, 2020. p. 27.

81

Jobim revela234: “Jurista não sabe fazer Constituição. É uma coisa política”. Ou seja, a nova

Constituição brasileira não poderia ser fruto outro senão de políticos, que gozam dos poderes

constituintes pelo apoio popular. De fato, mesmo que fosse apenas um anteprojeto, já

macularia o processo constituinte, pois parte dele não teria sido elaborado por políticos

eleitos. Quando os políticos elaboram a Constituição, é o povo, nele imperfeitamente

representado, que escreve o seu futuro, na lógica da população se dar a própria Constituição,

ao validar a sua existência jurídico-política e fazê-la ser praticada no campo fático. Assim, os

trabalhos da CPEC poderiam auxiliar, de forma subsidiária, os da ANC, mas jamais poderiam

ser o ponto de partida. Isso revela muito o contexto político da época, que desejava destruir o

passado para construir um novo porvir, quebrando os paradigmas e status quo vigentes.

Contudo, como Faoro bem combateu235, as vias da ANC apenas modificaram os nomes sobre

as cadeiras, mas o patronato brasileiro se manteve no poder, ainda que tivesse de ceder em

certos pontos para agradar à população.

O outro ponto é a necessidade dos constituintes participarem de forma “efetiva e

visível”236 dos processos da ANC, tanto por questão eleitoral, de prestação de contas com os

eleitores, como pela vontade de fazer parte do renascimento da democracia no Brasil. O

primeiro ponto é avaliado dentro da lógica eleitoreira, dos políticos continuarem a ser eleitos,

porque mostraram que fizeram o voto valer pelo seu trabalho e pelo acolhimento das

reivindicações dos eleitores. Já a segunda questão é da esfera individual dos constituintes,

afinal, era um momento ímpar da história brasileira, o que elevava os sentimentos de

patriotismo e de dever para com a Nação. Dificilmente algum político eleito não gostaria de

ter o seu nome marcado na história por ter participado, com contribuições concretas, da

Constituição da redemocratização. Consequentemente, foi necessário que a ANC se

organizasse de forma que cada político ocupasse um lugar de destaque para afagar os seus

236 PILATTI, Adriano. A constituinte de 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem econômica e regras dojogo. 4ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2020. p. 40.

235 Joaquim Falcão reforça essa revolta: Faoro defendeu então uma Assembleia Nacional Constituinte originária,convocada não de cima para baixo, mas de baixo para cima. O que isso queria dizer? Queria dizer que era contraa convocação de uma Constituinte através da carta autoritária de 1967 e 1969. Combatia como ilegítima aConstituinte congressual. Onde partes da ‘mobília’ que sobrou do regime autoritário, os senadores biônicos, lá sesentariam. Não como visitas de cerimônia, mas como coproprietários do futuro da casa: a nova constituição.Nasceria contaminada. Onde, provavelmente, os congressistas-constituintes legislariam em causa própria.Perdeu. Ganhou a Constituinte convocada pelo presidente José Sarney. Mais pacífica. Mas Faoro receava queestivéssemos repetindo o conservador caminho. FALCÃO, Joaquim. Construir instituições e depois inventar opovo. In: FAORO, Raymundo. A república em transição: poder e direito no cotidiano da democratizaçãobrasileira (1982 a 1988). Organização de Joaquim Falcão e Paulo Augusto Franco. Rio de Janeiro: Record, 2018.p. 12.

234 Parte da sua resposta sobre a questão da participação dos senadores eleitos em 1982. Jobim comentou sobre acriação acadêmica de Constituições e como isso permitiu a ascensão nazista, a partir da Constituição de Weimar,elaborada por juristas. CARVALHO, Luiz Maklouf. 1988: segredos da Constituinte. Os vinte meses que agitarame mudaram o Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2017. p. 202.

82

egos. Assim, para agradar a todos e permitir, também, uma maior inserção popular no debate,

a proposta das subcomissões e comissões foi acolhida, porque os constituintes teriam, então,

um espaço mais exclusivo para atuar de forma contundente. Isso porque cada constituinte

deveria ser o titular de uma subcomissão e suplente de outra, o que potencializava a sua

participação, dado que as subcomissões eram de apenas 21 membros.

Por outro lado, por mais que a metodologia adotada permitisse uma maior participação

dos constituintes, o que se observou foi a baixa inserção de grande parte dos constituintes nos

debates. De certo, o constituinte José Lourenço237, líder do PFL na ANC, avalia que apenas

por volta de cem constituintes realmente contribuíram para o desenvolvimento da CF, de

forma que os outros 459 somente seguiam as orientações das bancadas e partidos, servindo

para ilustrar como os trabalhos eram realizados. Paralelamente, a categorização que a

metodologia das comissões e subcomissões proporcionava passou despercebida, pois ainda

assim existiriam constituintes mais importantes que outros, por conta do peso temático das

comissões e subcomissões, bem como dos cargos ocupados. O peso temático se explica pela

visibilidade sociopolítica que alguns assuntos tinham frente a outros, apesar da Constituição

tratar de matérias de interesse nacional, em tese. Um exemplo disso seriam as comissões I

(Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher) e V (Sistema Tributário,

Orçamento e Finanças). Mais vale para o político redigir artigos sobre direitos fundamentais

do que sobre o funcionamento do orçamento. Os dois temas são muito importantes, porém,

devido ao passado ditatorial, a garantia dos direitos fundamentais tem um apelo sociopolítico

muito mais forte que o orçamento, apesar deste assegurar aqueles. Dessa forma, os políticos

da Comissão I seriam, aos olhos não-técnicos, mais importantes que os da Comissão V. Por

outro lado, os cargos tinham muita importância na ANC, pois, além dos poderes inerentes às

presidências e relatorias, os presidentes das comissões e todos os relatores fariam parte da

Comissão de Sistematização, junto dos 53 titulares inicialmente designados pelas lideranças

partidárias. A atuação na Comissão de Sistematização era chave para o processo constituinte,

porque ela era responsável pela elaboração do projeto de Constituição que seria discutido no

Plenário. Nesse sentido, ainda que fosse possível alterar o texto, a essência da Constituição

promulgada seria a mesma da apresentada pela Comissão de Sistematização, devido aos

trâmites constitucionais que veremos mais à frente.

237 O constituinte revelou essa impressão a Maklouf (em negrito): Dos 559 constituintes, quantos o senhoracha que fizeram aquela Constituição pra valer? Uns cem. E o resto? O resto é o que sempre é, durante todosos períodos de funcionamento do Congresso Nacional: chegam no outro dia e perguntam “Como é que vota, simou não?”. CARVALHO, Luiz Maklouf. 1988: segredos da Constituinte. Os vinte meses que agitaram e mudaramo Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2017. p. 193.

83

Em seguida, os trabalhos em si das comissões e subcomissões foram muito positivos,

porque o povo pôde realmente participar com as audiências públicas, emendas populares e

cartas enviadas ao Senado, mostrando um maior diálogo com a sociedade, essencial para o

novo momento político que se estabelecia. Tudo isso permitiu que a legitimidade e soberania

da ANC aumentassem, pois a população, em certa medida, ratificou as ações dos constituintes

ao participar do processo na ANC. Porém, uma consequência negativa foi o consentimento

com alguns abusos, na lógica da mais-valia política de Schmitt. Isso porque, em nome da

eficiência e agilidade, nem sempre os constituintes se atentaram à legalidade do RIANC. Por

diversas vezes o regimento interno foi ignorado para que alguns projetos passassem, como a

criação238 de novas duas vice-presidências para a Comissão de Sistematização, a fim de

auxiliar o presidente Afonso Arinos. Tal prática, ainda que comum, mancha o processo

constituinte e se torna perigosa, porque está sob o arbítrio de políticos, que não representam

de forma completa a população, deixando, às vezes, os interesses pessoais falarem mais alto

que os nacionais. Ainda nesse ponto, existe a questão da interferência do governo nas

discussões, em especial nas atinentes ao mandato presidencial e à forma de governo. Sarney

articulou, junto de seus ministros, muitos encontros e concessões239,240 para pressionar os

240 Sobre isso comentou também o jurista assessor do Ulysses Miguel Reale Jr a Maklouf (em negrito) sobre ouso da ANC para garantir mais um ano a Sarney e recuperar a glória do Plano Cruzado: E aí é que entrou aConstituinte… Ele jogou para isso e cooptou a Constituinte na base do mensalão. Pode escrever: mensalãoconstituinte. A Constituição iria proibir que parlamentares fossem donos de canais de rádio e televisão - como defato proibiu, veto que não havia antes. Então o Antônio Carlos Magalhães ministro das Comunicações despejoucanais de rádio e televisão para os constituintes. O senhor acha que o presidente saiu da legalidade ou jogoupesado, mas dentro das regras? Saiu da legalidade. Cooptou a vontade do constituinte através da outorga debenefício. Mensalão não é só dinheiro vivo, é rádio e televisão também. O Sarney começa odiado pelosconstituintes e vai cooptando. Aqueles constituintes que estavam à margem, aguardando a Sistematizaçãoterminar, estavam ali mesmo. E o Sarney virou uma fonte de cooptação. Idem, p. 310.

239 Uma marca da sua ação durante a ANC foi junto do Ministro das Comunicações Antônio Carlos Magalhães,como o constituinte Benito da Gama revela a Maklouf (em negrito): Como é que atuou o ministro AntônioCarlos Magalhães na concessão das rádios e televisões? Antônio Carlos articulava isso, ele era o ministro dasComunicações. Tinha o poder político, por ser amigo e muito bem relacionado com o Sarney, e também foimuito amigo do poder militar. E aí entrou essa parte da barganha política de rádio e televisão, aquele negóciotodo. Como é que funcionava? Por projeto. O operador político do governo era o Antônio Carlos. Ele chamava,falava, trocava, prometia, vote isso, vote aquilo. Na disputa pelos quatro ou cinco anos do Sarney, ele é queoperou. CARVALHO, Luiz Maklouf. 1988: segredos da Constituinte. Os vinte meses que agitaram e mudaram oBrasil. Rio de Janeiro: Record, 2017. p. 226.

238 Essa mudança não estava prevista no RIANC e foi realizada por Ulysses, pelos líderes dos partidos e pelamesa da Comissão de Sistematização. O Plenário, que não tinha a competência necessária, votou essa criação equem assumiria os cargos. No entanto, a participação dos constituintes como um todo e da justa necessidade nãojustifica a inobservância regimental. PILATTI, Adriano. A constituinte de 1987-1988: progressistas,conservadores, ordem econômica e regras do jogo. 4ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2020. p. 170.

84

constituintes a não mexerem no seu tempo de mandato241 e a manter o presidencialismo242,

haja vista o seu apoio ao Centrão, que lutou pelas reivindicações do governo. Muitas vezes a

mídia foi acionada243 para que o presidente expressasse o seu descontentamento com os

trabalhos da ANC. A figura do Estado como intermediador das classes some e atua de forma

expressa em favor dos grupos mais poderosos, representados pelos lobistas244, e do próprio

presidente. De fato, a própria CF possui esse caráter de intermediação estatal muito evidente,

como o jurista Carlos Ari Sundfeld afirma245 ao ser perguntado sobre o motivo de achar

inadequado o apelido “Constituição cidadã”:Porque o efeito prático da Constituição não foi, na maior parte, o de mudar acondição da cidadania, com a efetiva ou potencial alteração do arranjoorganizacional que já existia. Existem normas que com o decorrer do tempo teriamimpacto na vida do cidadão – os direitos sociais –, mas sempre passando por umaestrutura de organização estatal, consolidada na Constituição que passou a serintermediária entre as demandas sociais difusas na sociedade e a conquista efetiva deprestação do Estado. Falar em Constituição cidadã é ocultar sua característica central– a existência de um Estado intermediário

Por fim, um dos resultados desse processo e da força dos lobbies foi a inserção de

conteúdos desnecessários246 para uma Constituição, que deveria dar apenas as diretrizes gerais

246 O constituinte José Serra traz um exemplo ao falar sobre o regimento interno: Eu fui contra, até o últimomomento, que tivesse um capítulo sobre o sistema financeiro. O Fernando Henrique botou não só porque tinhapressão, mas porque cada comissão precisava ter três subcomissões. Como na do Sistema Tributário podia caberorçamento e tributação, ficava faltando uma terceira perna. Por isso entrou a Subcomissão do SistemaFinanceiro, o que é um absurdo. Nenhuma Constituição do mundo trata do sistema financeiro no seu texto. Podeter um preceito geral, mas não em detalhes. [..] Eu era contra o detalhismo. Porque se você coloca algo vaiacabar dizendo coisas a respeito, e é provável que diga bobagens, e introduza coisas rígidas, impróprias a umtexto constitucional. Idem, p. 151-152.

245 Idem, p. 283-284.

244 A ANC presenciou diversos grupos de lobistas em suas instalações, durante todo o processo, até mesmo naComissão de Redação, como o FHC afirma a Maklouf (em negrito): Tem lobby até na Comissão de Redação.Claro que tem. Tinha lobby em tudo. Uma vez, na Comissão de Sistematização, eu mandei uns juízes seretirarem de uma sala. Era uma vergonha. Os setores organizados da sociedade, que tinham um nível maiselevado, entravam em tudo. O lobby era muito grande na Constituinte. CARVALHO, Luiz Maklouf. 1988:segredos da Constituinte. Os vinte meses que agitaram e mudaram o Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2017. p.127.

243 Um exemplo foi a reação do Sarney em relação ao Anteprojeto de Constituição. PILATTI, Adriano. Aconstituinte de 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem econômica e regras do jogo. 4ª ed. Rio deJaneiro, Lumen Juris, 2020. p. 151.

242 Sobre a forma de governo, Sarney desejava o presidencialismo, para ter maiores poderes. Contudo, ele atéaceitaria o parlamentarismo, porém somente caso pudesse indicar o primeiro-ministro, que indicaria os demais, ese tivesse um ano de estabilidade, sem a possibilidade de voto de desconfiança, junto do mandato de cinco anos.No entanto, Mário Covas não aceitou esse projeto e o vetou, restando nenhuma opção para Sarney senão lutarpelos cinco anos de mandato com presidencialismo. Idem, p. 216.

241 Sarney tinha o direito a seis anos, porém afirmou que desejava apenas cinco anos, a fim de amenizar osânimos e conseguir emplacar a sua política, inspirado pelas ações de Dutra em 1946. Entretanto, Tancredo haviaprometido, em sua campanha, quatro anos de mandato, algo que Sarney ratificou na sua posse, por respeito aofalecido companheiro. Dessa forma, a ANC frequentemente discutiu sobre o tempo de mandato dos presidentes,de forma que desejava influenciar a duração do mandato de Sarney. Isso porque, dentre outros motivos, se osquatro anos fossem aplicados, a eleição para presidente seria em 1988, logo ao término dos trabalhosconstitucionais, fortalecendo as imagens de diversos políticos e constituintes envolvidos na ANC, principalmenteas de Ulysses e Mário Covas. Idem, p. 45-48.

85

para o funcionamento do Estado, sem versar sobre assuntos muito específicos. Sobre isso, o

constituinte Antônio Britto, vice-líder do PMDB na ANC, traz uma avaliação247 interessante

sobre a inserção de temas não constitucionais na CF:Tinha uma movimentação inacreditável: torcedores, invasão de campo, narração dejogo, tudo. Só faltava ser objetivo, “O que é que a gente está discutindo, afinal?”Como o livro estava totalmente em branco, aconteceu outro problema: ficou liberadoque cada um tomasse as suas iniciativas. Então eram 559 livros em branco - o quelevou a uma produção de ideias um pouco descolada da realidade

Contudo, novamente, isso é um reflexo do contexto sociopolítico da época, que

demandava a garantia constitucional de certos assuntos248 para que eles, em teoria, fossem

respeitados.

Ao passar o texto das comissões e subcomissões para a Comissão de Sistematização, o

ritmo dos trabalhos se alterou substancialmente, pois houve um atraso249 enorme no

cronograma, devido aos impasses de conteúdo e de votação. É importante relembrarmos que a

composição da Comissão de Sistematização era mais progressista que a média do Plenário, o

que favorecia certo teor à esquerda na forma com que os temas eram abordados nas emendas.

Nesse sentido, a ANC, que deveria durar menos de um ano, aprovando a nova Carta ainda em

1987, só tem o seu Projeto final de Constituição começando a ser votado pelo Plenário em

janeiro de 1988, porque o Centrão percebe a categorização realizada pela metodologia do

RIANC e paralisa os trabalhos. Para ficar claro, é necessário darmos alguns passos para trás.

O fluxo procedimental250 na Comissão de Sistematização era o seguinte:

1. O relator Bernardo Cabral reuniria os textos das comissões e apresentaria um

Anteprojeto de Constituição à Comissão de Sistematização

2. O Anteprojeto receberia algumas emendas dos membros da comissão e se tornaria o

Projeto de Constituição

3. O Projeto, após aprovação da Comissão de Sistematização, seria discutido no Plenário

da ANC, recebendo novas emendas

250 Idem, p. 148.

249 PILATTI, Adriano. A constituinte de 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem econômica e regras dojogo. 4ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2020. p. 148.

248 Um outro exemplo é fornecido pelo constituinte Delfim Netto a Maklouf (em negrito): O senhor já fezgrandes elogios à Constituição. E as críticas? Ela é muito longa, muito detalhista. E substantivamente? Odefeito fundamental, que precisa ser corrigido, é a indexação das despesas. Por quê? Porque é uma desconfiançasobre a competência do poder incumbente. “Se eu não fixar na Constituição que precisa gastar tanto em saúde etanto em educação, o poder incumbente não vai fazer.” Só que é um erro mortal. Porque a sociedade estáenvelhecendo, e logo as despesas com saúde e com educação vão se alterar. Essas vinculações destroem a boaadministração financeira. Naquele momento, a gente já sabia disso, claro. Mas a desconfiança com o poderincumbente era tal que queriam fixar tudo. Na verdade, estavam querendo dispensar o poder incumbente. Idem,p. 239.

247 Idem, p. 172.

86

4. Após a passagem no Plenário, o Projeto e as emendas retornariam à Comissão de

Sistematização, para o desenvolvimento do Projeto final, a ser discutido e votado em

dois turnos no Plenário

De início, o problema começou com o Anteprojeto “Frankenstein”, porque as

relatorias e presidências das próprias comissões e subcomissões já eram mais à esquerda,

devido às indicações majoritárias de Mário Covas, líder do PMDB, o partido da maioria. Dito

isso, é importante comentarmos sobre o colégio de líderes, o grupo formado pelos líderes de

cada partido na ANC. Esse grupo era responsável por toda dinâmica251 da ANC, em conjunto

com a mesa diretora. Tanto as indicações para os cargos, como as pautas para votação252 eram

sempre decididas em conjunto pelos líderes, por vezes junto do presidente da ANC, Ulysses

Guimarães. Tal fato reforça o peso que os partidos de esquerda tinham nas decisões, afinal,

apesar de terem poucos constituintes, o colégio de líderes era formado apenas por um

representante. Dessa forma, a representação de partidos menores era maior no colégio de

líderes que dos partidos maiores. Contudo, isso não significa que a esquerda tinha o poder de

dominar a ANC por conta do colégio de líderes, a força ainda estava com a maioria

conservadora, porém é inegável a posição de destaque que os progressistas tinham no grupo.

Feito esse adendo, o problema do Frankenstein recai na questão dos conteúdos, que foi

tamanha ao ponto de alguns textos nem serem enviados à Comissão de Sistematização. É o

caso da Comissão VIII253 (Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência

e Tecnologia e da Comunicação), pois ela não conseguiu aprovar um projeto de comissão.

Consequentemente, o relator Bernardo Cabral foi obrigado a montar um texto baseado nas

atas de discussão da comissão. Assim, o Anteprojeto, apresentado em 26 de junho de 1987254,

foi recebido como um texto monstruoso, tanto que o relator negou a paternidade255 quando as

críticas surgiram, porque teve de trabalhar com pouco tempo e com um regimento inflexível,

escusando-se do seu ofício como relator. A situação não melhorou muito com as emendas da

255 Idem, p. 152.254 Idem, p. 149.253 Idem, p. 149.

252 Vale comentar também que o colégio de líderes foi responsável por um atropelamento regimental na votaçãodo Projeto de Constituição na Comissão de Sistematização para enviá-lo ao Plenário. O FHC mostrou, no inícioda votação, um acordo de líderes a fim de que isso acelerasse a aprovação do texto. Tal esquema foi realizadopara cumprir o próprio regimento, na questão de seu calendário, recebendo o aval da Comissão deSistematização, que abdicou de suas competências para melhor exercê-las nas etapas seguintes. PILATTI,Adriano. A constituinte de 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem econômica e regras do jogo. 4ª ed.Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2020. p. 156.

251 Jobim reforça a importância do colégio de líderes para os trabalhos constitucionais: A verdade é que quem feza Constituição foram os acordos das lideranças. Por isso é que demorou tanto. CARVALHO, Luiz Maklouf.1988: segredos da Constituinte. Os vinte meses que agitaram e mudaram o Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2017.p. 219.

87

Comissão de Sistematização, que culminaram no nascimento do Projeto de Constituição, pois

logo foi chamado de “Bebê de Rosemary”256, um texto natimorto, desenvolvido apenas para

cumprir com as exigências regimentais, sendo apresentado em 9 de julho de 1987257. A partir

do Bebê de Rosemary e das discussões no Plenário, enfim nasceu um Projeto, apresentado em

26 de agosto de 1987258, cuja paternidade o relator assumiria, ao ponto de batizá-lo com o seu

sobrenome, o Cabral 1. Retornando à Comissão de Sistematização, o Cabral 1 ainda não era

muito aceito pelos setores mais conservadores, como pelo General Leônidas259, o Ministro do

Exército, o que exigiu algumas adequações, tornando-se o Cabral 2, apresentado em 18 de

setembro de 1987260. Esse texto sim era mais agradável, sendo enviado, de forma definitiva,

ao Plenário em 24 de novembro de 1987261, com o nome de Projeto A.

Contudo, percebemos que há um vácuo de quase dois meses entre a apresentação do

Projeto A e o início das votações no Plenário, que só começaram no ano seguinte, em 27 de

janeiro de 1988262. Por que isso ocorreu? Pela virada do Centrão. Após a contextualização

inicial, podemos retornar ao ponto central de discussão. Durante os trabalhos da Comissão de

Sistematização, os demais constituintes ficaram ociosos, o que não seria muito problemático

se o cronograma inicial fosse seguido, já que o ócio duraria pouco tempo, porém não o foi,

incomodando263 os grupos deixados de fora. Somado a isso, esses grupos perceberam dois

problemas centrais na metodologia do RIANC: a votação e as propostas de emendas. A

questão da votação foi bem explicitada no resumo da ANC, sobre a falsa maioria. Após

perceberem que a maioria conservadora não era, de fato, maioria, ela precisou se organizar

para retomar o controle do processo constituinte. Para tanto, precisariam alterar o RIANC, o

que demandaria uma alta mobilização para aprovar as mudanças antes do Projeto A começar a

ser votado no Plenário, porque, caso essa nova etapa se iniciasse, não seriam mais admitidas

263 Pilatti traz essa informação ao analisar as votações na Comissão de Sistematização: A votação dos textos-basede seis títulos numa mesma noite decorreu de uma tentativa desesperada de aceleração dos trabalhos, afinalabandonada, através da qual as Mesas da Comissão e da ANC, mais uma vez com apoio dos líderes, pretenderamviabilizar, com menores arranhões ao RIANC, a remessa ao Plenário dos Títulos I, II e III, cujos destaques eredação final já haviam sido votados. Isso porque o baixo clero, ocioso, ansiava pelo início das votações dePlenário, de resto insistentemente cobradas pelos conservadores e pela imprensa. Idem, p. 171-172.

262 Idem, p. 229.261 Idem, p. 195.260 Idem, p. 164.

259 O General declarou que o Cabral 1 era “inaceitável”, porque tinha muitas matérias progressistas, como aextensão dos direitos trabalhistas e a restrição do papel das forças armadas. Nesse sentido, o próprio militar sepronunciou publicamente, o que foi recebido de forma bem negativa, haja vista o período ditatorial.Consequentemente, o presidente da ANC, Ulysses Guimarães, respondeu afirmando que a Constituinte não seintimida, enquanto Afonso Arinos e FHC tentaram acalmar o General. Idem, p. 163-164.

258 Idem, p. 161.257 Idem, p. 153.256 Idem, p. 153.

88

retificações do RIANC, como Ulysses atesta264. Sabemos que a resolução da falsa maioria foi

o dispositivo do DVS, que invertia o ônus da continuidade de parte do texto.

Por outro lado, a questão das emendas é assunto mais pertinente ao processo

legislativo em si, pois cada etapa da votação admitia determinadas emendas265. Ademais, por

conta do teor progressista do Projeto A, o Centrão se preocupou com as ferramentas

disponíveis para “corrigi-lo”. Assim, sentiram-se frustrados com as poucas emendas possíveis

de serem feitas após o Projeto A ir ao Plenário. A solução foi costurar acordos a fim de

aumentar as oportunidades de reescrever o texto constitucional. Ao fim, unindo as duas

maiores preocupações, o Centrão paralisou as atividades da Comissão de Sistematização, para

que conseguisse aprovar a alteração do RIANC antes da etapa de votação no Plenário. No

entanto, ainda que a virada conservadora tenha vigorado, as vitórias do Centrão não foram

plenamente garantidas. De fato, por se tratar de um grande grupo, volúvel e heterogêneo, por

vezes as votações ficaram muito acirradas266, com certos membros do Centrão votando junto

dos progressistas. Consequentemente, o Projeto A conseguiu ser alterado em determinadas

matérias, porém não completamente de acordo com o gosto dos conservadores. Podemos

atribuir essa derrota ao atraso na percepção das falhas metodológicas da ANC, porque, após a

conclusão do Projeto A, as alterações textuais eram difíceis de serem feitas, mesmo com a

reformulação do RIANC. Assim, a CF foi salva pelos progressistas, estrategicamente

posicionados nas posições de destaque, e na demora dos conservadores em mudar as regras do

jogo.

Ainda sobre a votação final dos textos, é interessante notar que, em 1988, o ritmo se

alterou. Ulysses, enquanto presidente da ANC, organizou a orquestra constituinte à João

Carlos Martins. A morosidade da Comissão de Sistematização foi compensada pela pressa267

nas votações no Plenário, onde quem mandava era o Dr. Ulysses. O seu sucesso na condução

da fase final da ANC se deu por dois motivos: engenharia dos votos e acordos. A engenharia

dos votos é interessante de comentar, porque mostra uma outra forma de fazer política no

Legislativo, uma vez que os acordos já são de maior conhecimento e foram apresentados no

resumo da ANC. Ulysses era sempre acompanhado de uma equipe, cuja composição contava

267 Idem, p. 310.

266 Pilatti identificou que, durante a votação da alteração do RIANC, o Centrão quase não obteve uma margem devitória expressiva, porque alguns dos seus membros acabavam votando diferente da orientação, demonstrandocomo o grupo não era homogêneo e orientado. Dessa forma, o Centrão não tinha garantias da aprovação de suasideias no Plenário, apesar da sua força de veto ser considerável. Idem, p. 226-227.

265 Como não é o escopo desta pesquisa aprofundar nas minúcias regimentais das votações, optamos por nãoabordar esse ponto. Entretanto, Pilatti faz essa análise no ponto 6.1.2. Regras, ressentimentos e jogos retóricos.Idem, p. 197-204.

264 Idem, p. 204-205.

89

com o constituinte Nelson Jobim, peça-chave para a redação do RIANC antes da

reformulação do Centrão. Ele, como um experiente jurista, entendia de redação normativa.

Assim, prestou assistência268 no sentido de prever a quantidade de votos que determinado

artigo poderia receber com certa redação. Ulysses sempre o consultou para ter noção de como

andavam as votações e para, principalmente, resolver os impasses.

Quando um artigo de interesse do presidente da ANC não tinha a previsão de receber

muitos votos, o que Ulysses fazia? Pedia para Jobim adequar269 o texto, para que ele fosse

mais agradável e recebesse mais votos. Isso era a engenharia dos votos, saber escrever o

artigo de forma a ser aprovado. Tal feito era conquistado com duas técnicas: ambiguidade e

postergar a decisão. A ambiguidade é mais clara, pois se trata de generalizar e introduzir

partes ambíguas ao texto, de sorte que tanto os progressistas, quanto os conservadores se

sentiriam contemplados. Jobim traz um exemplo desse método no ponto sobre o repouso

semanal remunerado: “O texto da esquerda queria ‘repouso semanal remunerado

obrigatoriamente aos domingos’. A direita queria ‘repouso semanal remunerado, na forma de

convenção ou contrato coletivo de trabalho’”270. Para resolver, Jobim uniu as duas propostas e

escreveu o que foi aprovado: “[...] repouso semanal remunerado, preferencialmente aos

domingos’. Ficou o domingo que o Plínio queria, e ficou o enfraquecimento do verbo, que a

direita queria”. Ou seja, a inserção de “preferencialmente”, no lugar de “obrigatoriamente”,

tornou o texto agradável à maioria, sendo aprovado.

Entretanto, nem todos os impasses conseguiam ser resolvidos pelas ambiguidades, o

que demandava a segunda técnica. Postergar a decisão significa que a matéria polêmica

deveria ser regulada por lei complementar ou por lei ordinária, de forma que essa nova norma

seria elaborada após a promulgação da Constituição. Novamente, Jobim traz o exemplo271 de

matéria trabalhista, a respeito da demissão sem justa causa. Sobre ela, o que não conseguiu ser

acordado, ficou para ser definido em lei complementar, como a proteção da relação de

emprego contra despedida arbitrária no inciso I do art. 7º da CF272, que ainda não foi

272 Redação do dispositivo: Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem àmelhoria de sua condição social: I - relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa,nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos. BRASIL.Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 25 jun. 2021.

271 Idem, p. 211.270 Idem, p. 210-211.269 Idem, p. 210-211.

268 Nelson Jobim revela como era o seu trabalho em entrevista ao jornalista Maklouf: O dr. Ulysses olhava aquelenegócio [artigo de lei] e perguntava: “Escuta, quantos votos esse artigo redigido dessa forma tem?” Aí eurespondia: “Isso aí tem cem votos, ninguém vai votar desse jeito que está…”. CARVALHO, Luiz Maklouf. 1988:segredos da Constituinte. Os vinte meses que agitaram e mudaram o Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2017. p.210.

90

regulamentado. Por conseguinte, seria muito difícil o texto não ser aprovado, afinal a

regulamentação específica seria feita posteriormente, sem que o constituinte tenha de se

preocupar com isso naquele momento. Para tanto, a engenharia de votos foi uma importante

aliada de Ulysses na condução das votações, tanto antes da fase do Plenário, bem como

durante.

Finda a penúltima etapa da ANC, falta somente o texto ser tratado pela Comissão de

Redação, composta por constituintes experientes na redação normativa, como Nelson Jobim e

Afonso Arinos, e assessorada pelo Prof. Celso Ferreira da Cunha, filólogo, e Prof. José

Afonso da Silva, livre docente de Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da

Universidade de São Paulo. Não era uma Comissão inserida na hierarquia da ANC, pois

consistia apenas em um grupo de trabalho especializado para dar os toques finais no texto da

futura Constituição. Com isso em mente, ela gozava de certas prerrogativas, como a

adequação gramatical dos artigos. No entanto, algumas polêmicas surgiram à época, porque

algumas das alterações realizadas não apenas mudavam as palavras, mas o sentido dos artigos

também, o que contrariava a decisão soberana do Plenário. Será que a Comissão de Redação

realmente poderia atuar dessa forma? A resposta é simples: sim, pois a Constituição tinha

alguns erros de lógica. Isso pode ser exemplificado273 na questão do modelo de governo

brasileiro, que começou como parlamentarista e terminou presidencialista, sem, porém, a

correção de outros dispositivos, como a independência dos poderes.

Assim, a Comissão de Redação precisava alterar algumas monstruosidades274 para que

a Constituição não fosse um erro jurídico-político, podendo prejudicar o futuro da Nação, ou

exigir demasiadas revisões constitucionais. Além disso, a decisão não parava apenas na

Comissão de Redação, dado que o projeto lá aprovado ainda passaria pelo Plenário para

ratificação. Caso não fosse aprovado por maioria simples, devido às alterações, o texto seria

274 Nem todas foram alteradas, como FHC revela a Maklouf: A Constituição é atrasada. O mundo estavaentrando na globalização e nós estávamos pensando num Brasil autárquico. É uma Constituição muito desigual.É boa na democracia, tem aspirações sociais positivas, mas não tem realismo, nem na economia, nem nofuncionamento do Estado. Sem contar que foi planejada para um regime parlamentarista. Quando isso nãovingou - e ficou o presidencialismo -, o resto não caiu. Se você olhar com cuidado, o Congresso tem poderes quenunca usou, como o de fiscalização e controle do Poder Executivo [art. 49, X], atribuição típica de um regimeparlamentarista. Idem, p. 128.

273 Essa situação foi apresentada pelo Michel Temer, membro titular da Comissão de Redação, a Maklouf (emnegrito): Havia um artigo que dizia: “São poderes do Estado o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.” Eupropus que se colocasse de outra maneira: “São poderes do Estado - independentes e harmônicos entre si - oExecutivo, o Legislativo e o Judiciário.” Foi aprovado, e foi assim que ficou. Por que esse adendo não entrouna primeira versão? Porque a ideia prevalecente era que nós teríamos uma Constituição parlamentarista. E noparlamentarismo a independência entre os poderes não é tão enaltecida. Como fomos para regimepresidencialista, não se fez o ajuste necessário. Só na Comissão de Redação. CARVALHO, Luiz Maklouf. 1988:segredos da Constituinte. Os vinte meses que agitaram e mudaram o Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2017. p.392.

91

readequado conforme a vontade do Plenário. Para tanto, não faria muito sentido frear os

trabalhos da Comissão de Redação, ainda que ela estivesse fazendo mudanças inicialmente

não previstas, porém essenciais. Essa autoridade mostra a soberania da Comissão de Redação,

de poder atuar sobre as exceções, ou seja, sobre as matérias com pontas soltas. A redação final

da nova Constituição foi, então, ao Plenário, recebendo275 474 votos favoráveis, 15 contrários

e 6 abstenções. Dessa forma, independentemente da polêmica da Comissão de Redação, a

ANC ratificou os seus trabalhos e aprovou a CF.

A história da ANC é muito rica, porém a CF não é perfeita, longe disso, porque o povo

brasileiro também não é perfeito, afinal as constituições são feitas pela própria população com

a sua vontade política. Assim, a Constituição se torna um produto do contexto sociopolítico

de sua época e dos indivíduos sobre os quais ela vai atuar. Essa impressão da CF não é

exclusiva, muitos constituintes e pensadores compartilham dessa visão schmittiana, como

José Lourenço: “Toda Constituição muito grande não é boa. Mas para o momento que o Brasil

vivia, tanto no quadro econômico como no quadro político, eu acho que foi boa. Não ótima,

mas foi boa”276. Por outro lado, em certos assuntos, a CF não passa de uma ficção, porque

existe uma assimetria entre o texto constitucional e a realidade. Um primeiro exemplo disso

são as matérias que ainda precisam de regulamentação, como o exemplo dado por Jobim com

a matéria trabalhista. Ao todo, ainda existem 152277 dispositivos constitucionais a serem

regulamentados. Isso é um problema pela falta de concretização dos preceitos da CF, porém

existe solução, pois basta que o Legislativo redija as leis previstas nos dispositivos que tudo

será resolvido. Entretanto, a morosidade do CN impede que isso aconteça, afinal, dos 415278

dispositivos, apenas 263 foram regulamentados em mais de 30 anos de CF.

Para isso, existe o Mandado de Injunção (MI)279, o remédio constitucional para

garantir o cumprimento de direitos constitucionais sobre as quais ainda não houve legislação

específica para a regulamentação. Nesse sentido, caberia ao STF decidir o que fazer com a

matéria constitucional por meio do MI. Desde 2007280, com a mudança da jurisprudência, a

280 Idem, p. 330-331.

279 SILVA, Virgílio Afonso da. Direito constitucional brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de SãoPaulo, 2021. p. 330.

278 Idem.

277 Extraído do site da Câmara dos Deputados. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Câmara dos Deputados, 2021.Atividade Legislativa, Portal da Constituição Cidadã, Regulamentação da Constituição de 1988, dispositivosconstitucionais sujeitos à regulamentação. Disponível em:https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/regulamentacao/dispositivos. Acesso em: 13 jul. 2021.

276 CARVALHO, Luiz Maklouf. 1988: segredos da Constituinte. Os vinte meses que agitaram e mudaram oBrasil. Rio de Janeiro: Record, 2017. p. 194.

275 PILATTI, Adriano. A constituinte de 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem econômica e regras dojogo. 4ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2020. p. 307.

92

alta corte brasileira passa a suprir a lacuna normativa, dando as regras para o exercício do

direito. Por conseguinte, o STF acaba por assumir um papel de, efetivamente, criar leis, por

conta da ineficiência do Legislativo. No entanto, por certo não deveria ser esse o caminho,

porém é o existente para ultrapassar os obstáculos de lacuna. Vale ressaltar que o MI pode ser

uma porta para abusos de poder, afinal o Direito e a Hermenêutica são matérias políticas

também. Então, quando o STF legisla sobre uma matéria, ele tem em suas mãos um poder

político exacerbado, que, se não for levado à sério, pode ser usurpado facilmente, levando a

consequências graves, até que o assunto seja regulamentado pelo Legislativo.

Paralelamente, existe outro obstáculo à concretização dos sonhos da CF: o próprio

Poder Público. Pela teoria jurídico-política, algo a ser assegurado pelo Direito não implica na

sua materialização na realidade, porque o Direito é uma ferramenta do Capitalismo, utilizado

pelos grupos dominantes a fim de pautarem as suas reivindicações. Nesse sentido, por

exemplo, o direito à saúde281 foi frequentemente ignorado pelo Presidente Jair Bolsonaro

durante a pandemia da Covid-19282. Dessa forma, é interessante notar o paradoxo das

constituições, porque elas são fruto dos contextos sócio-políticos de suas épocas, porém isso

não garante que as suas ideias e aspirações serão aplicadas, já que o Direito, sendo a

Constituição parte dele, é uma ferramenta de perpetuação de relações de classe. Ou seja, por

mais que os brasileiros tenham lutado muito em 1987-1988, parte de suas vitórias não são

reais, pois não se verificam no Brasil atual. É importante enfatizar que isso não é

necessariamente negativo nem que a esperança deva ser perdida. Pelo contrário, os ideais

defendidos pela sociedade durante a ANC devem permanecer vivos em cada um de nós, como

o farol que guia o futuro. Hoje certos direitos são negados, mas a luta, inspirada pelos ideais,

vai modificar a realidade. Essa é, também, a avaliação283 do constituinte Roberto Jefferson

sobre a CF:É uma bela Constituição. Coteja muito bem os direitos dos menos favorecidos,idealiza um mundo da saúde e educacional muito bom. Ainda não foi cumprido – atéporque não há orçamento no mundo que sustente um sonho –, mas é fundamental acidadania constar no livrinho.

283 CARVALHO, Luiz Maklouf. 1988: segredos da Constituinte. Os vinte meses que agitaram e mudaram oBrasil. Rio de Janeiro: Record, 2017. p. 416.

282 BRUM, Eliane. Pesquisa revela que Bolsonaro executou uma “estratégia institucional de propagação docoronavírus”. El País, Brasil, 21 jan. 2021. Disponível em:https://brasil.elpais.com/brasil/2021-01-21/pesquisa-revela-que-bolsonaro-executou-uma-estrategia-institucional-de-propagacao-do-virus.html. Acesso em: 20 jul. 2021.

281 Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas quevisem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviçospara sua promoção, proteção e recuperação. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da RepúblicaFederativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 jul. 2021.

93

Para Antônio Britto, esse problema é consequência da metodologia e do contexto

sociopolítico, como afirma284 a Maklouf (em negrito):[A metodologia escolhida – comissões e subcomissões – também não ajudava…]Ajudava a desorganizar. E, de outra parte, o momento no Brasil era de conferirpoderes divinos à Constituição. A sociedade ia para dentro do Congresso propor epleitear absolutamente tudo. Era uma atitude um pouco romântica - própria de quemsai da ditadura. O lema da sociedade com a Constituição era “o que a gente escrever,acontecerá”. Até hoje estamos descobrindo que grande parte do que a gente escrevenão acontece. É por isso que boa parte da Constituição é muito mais umamanifestação de desejo do que um plano de voo.

10.2 A relação constituinte-constituição

Após examinar a história e alguns agentes, cabe, então, analisar como podemos definir

a relação constituinte-constituição entre a ANC e a CF, em consonância com o objetivo

específico “b”. Assim, de forma semelhante ao ponto 8.3, o caminho trilhado será o de

pontuar como a ANC tratou o texto constitucional que se tornaria a CF. Dessa forma, o polo

“constituição” dessa relação ainda não nasceu no momento recortado, já que a ANC deveria

criá-lo ao fim de seus trabalhos. No entanto, o embrião da CF esteve presente em cada

momento constituinte, além de a futura Carta ser referida na ANC antes mesmo da votação

final dos textos. Paralelamente, o polo “constituinte” da relação precisa receber algumas

ressalvas, porque a ANC propriamente dita é um órgão político, não um indivíduo. Nesse

sentido, ela é entendida como o agrupamento dos 559 constituintes, mesmo que seja um

coletivo muito heterogêneo, pois foram eles os eleitos para compor o bloco. Além disso, é

inegável que os constituintes não são os únicos a participar do polo “constituinte”; os

funcionários, a sociedade civil e os demais grupos que participaram da ANC também devem

ser inseridos na relação, porque fizeram parte do processo e o influenciaram. Para tanto, a

relação constituinte-constituição demonstra certas particularidades, que serão destrinchadas.

De início, olhemos para o polo “constituinte”, composto não apenas pelos

parlamentares, mas também pelo governo, pelos lobistas e, principalmente, pelo povo. A

imagem que os constituintes tinham, ao chegarem em Brasília para a ANC, era a de uma festa,

a festa da democracia, como enfatiza o constituinte Antônio Britto: “Era muito mais um

sentimento de comemoração, pelo processo de abertura e de redemocratização, mais uma

sensação de escrever um livro novo do que de saber o que colocar no livro novo”285. Assim, o

primeiro ponto a se destacar do polo “constituinte” é como os desejos pessoais influenciaram

o processo constituinte. Isso porque o sentimento de comemoração incentivou a defesa pelos

285 Idem, p. 172.284 Idem, p. 172-173.

94

constituintes de que todos tivessem um papel relevante na ANC, na lógica de mostrarem o

esforço de forma clara e visível para o Brasil. Dessa forma, com o livro em aberto, eles

desenvolveram um sentimento de posse para com a futura Constituição, porque se

encontravam no centro das atenções da Nova República, responsáveis pela organização

normativa que orientaria o novo momento brasileiro. Tal questão se torna delicada quando

pensamos no que é uma Constituição e qual é a sua finalidade, afinal ela representa a vontade

política do povo e revela de forma dinâmica as relações entre classes, servindo para inaugurar

sistemas políticos. Paralelamente, a revelação286 do lobista Fernando Ernesto Corrêa ao

Maklouf (em negrito) ilustra bem um outro ponto:[O senhor ainda vibra como se fosse hoje…] A participação na Constituinte foi acoisa mais importante que eu fiz na minha vida, do ponto de vista profissional, aminha maior contribuição para a Comunicação Social brasileira. Eu me vejo aqui[aponta para a Constituição], está entendendo? Eu vejo aqui o que eu escrevi com oBritto.

Ou seja, além das experiências descritas, as pessoas verdadeiramente se identificavam

com o texto constitucional. E essa identificação não se limitava apenas aos valores e ideais,

mas a um reflexo das suas próprias identidades. Por conseguinte, a festividade, a posse, os

interesses pessoais e a identificação podem ser nocivos para a Constituição, a depender de

como os constituintes e os demais agentes se permitirem influenciar. Nesse ponto, cabe

mencionar como o presidente da ANC tomava os trabalhos para a esfera pessoal, como se ele

fosse a Constituinte287, na forma de personificá-la em sua pessoa. Para tanto, essas vivências

possibilitam o surgimento dos esquemas de corrupção, dos acordos sigilosos e dos lobbies,

por exemplo, porque abre espaço para a atuação política de indivíduos que pouco pensam no

todo da sociedade brasileira. Podemos compreender esse fato até como uma consequência da

incompletude da representação política, afinal proporciona que certas ideias e certos grupos

tenham maior visibilidade nas discussões governamentais que outros. No entanto, por certo,

essa postura pode ser até benéfica, promovendo um maior empenho nos trabalho dos

constituintes, que estariam mais interessados em incluir a população, o que, de fato, ocorreu

em determinados momentos, porém a regra se tornou a instrumentalização do povo para a

inserção das pautas privadas de políticos, lobistas e grupos dominantes.

Por outro lado, o que é válido aos constituintes, mostra-se verdadeiro para o povo e o

governo também. Não eram somente os parlamentares que enxergavam a ANC como sua,

com interesses pessoais e forte identificação. A própria sociedade brasileira compreendia esse

287 Avaliação revelada pelo jornalista Jorge Bastos Moreno à TV Senado. TV SENADO. A Constituição daCidadania, 2019 (59:40). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yDRPI0a3uZQ. Acesso em: 21nov. 2020. 18:27-18:43.

286 Idem, p. 342.

95

espaço como de direito seu, o que de fato era, não à toa tivemos uma intensa participação

popular ao longo do processo constituinte, tanto para contribuir com as discussões e debates,

como para denunciar e criticar os abusos e as decisões contrárias à vontade popular. Podemos

dizer que foi um momento no qual o povo realmente buscou estar no poder, ainda que pelas

vias institucionais, longe do teor revolucionário que havia durante a Ditadura Militar. Todavia,

não quer dizer que não tivemos revoluções, elas existiram. Idealismos à parte, a CF é um

texto muito inovador, se comparado com as demais Constituições brasileiras, pois foi feito

com os mais diversos setores da sociedade logo após um momento de dura repressão.

Consequentemente, a CF sofreu muitas influências de grupos que não só a elite. Assim, o teor

revolucionário da Carta vai além do próprio processo constituinte, mas se estende até o art. 5º

da CF, dos direitos fundamentais, por exemplo. Paralelamente, o documentário “Cartas ao

país dos sonhos”288 revela como o povo verdadeiramente abraçou a ANC com o envio das

cartas ao Senado. As pessoas, por meio desse processo participativo, se viam como

constituintes, como se estivessem viajando rumo a Brasília para levar as suas ideias e os seus

sonhos. Quando algum ponto da carta era inserido na CF, a pessoa tomava aquela vitória

como dela, por mais que nenhum constituinte pudesse ter lido a carta, afinal o sonho se tornou

realidade e ela esteve presente no processo. Tal efeito se intensificava nas participações

populares diretas, pelas emendas e discussões no CN, porque o povo via plenamente o aceite

de suas ideias pelos parlamentares. Dessa forma, poderíamos elencar os brasileiros como

constituintes secundários da ANC, porque atuaram de forma semelhante aos parlamentares e

foram essenciais para o nascimento da CF do jeito que conhecemos, apesar de não terem sido

eleitos para isso.

Por fim, o governo, representado pelo Executivo Federal junto dos lobistas, consolida

a visão do polo “constituinte”, porque eram grandes interessados em possuir a Constituição e

inserir os dispositivos segundo as vontades pessoais. A começar pelo Presidente Sarney, que

ferrenhamente lutou pelo seu tempo de mandato e pela sua forma de governar. É interessante

notar que ele não defendeu as suas ideias como se fossem benéficas para o país e para os

próximos presidentes, mas apenas para benefício próprio, ainda que se amparasse nos

argumentos de interesse nacional. Não à toa ele teceu duras críticas à ANC, acreditando que a

futura Constituição tornaria o país “ingovernável”289, devido ao teor do texto apresentado na

289 BOSCO, João. Sarney: Constituição tornará país ingovernável. O Globo, Rio de Janeiro: 25 nov. 1987.Disponível em:https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/133954/Nov_87%20-%200565.pdf?sequence=3&isAllowed=y. Acesso em: 19 jul. 2021.

288 TV SENADO. Cartas ao país dos sonhos, 2019 (57:14). Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=T1HLuPu9O5E. Acesso em: 20 nov. 2020.

96

Comissão de Sistematização. Para evitar o desastre, na sua opinião, ele lutou pela alteração

dos textos, influenciando na criação do Centrão290 com a força dos lobbies e das concessões,

apesar de negar291 que elas tenham influenciado as decisões dos parlamentares. De fato, a

presunção da sua importância foi tamanha que ele, em entrevista a Maklouf, disse: “Se não

fosse essa minha intervenção, a Constituição não teria saído. Isso eu estou dizendo hoje, pela

primeira vez, não é do meu estilo. Quando eu entrei ela estava parada - e só andou porque eu

entrei”292. Por conseguinte, o governo e os lobistas, como evidenciado pelo trecho do

Fernando Ernesto Corrêa, também viam na ANC a oportunidade de se eternizarem e

perpetuarem as suas ideias.

Em seguida, o polo “constituição” da relação é um texto, que, até o momento da

votação final, tem uma posição mais passiva, permitindo ser alterado e reformulado ao longo

do processo constituinte. Contudo, isso não exclui a característica viva que as normas

jurídico-políticas possuem, pois agem no agora por meio das interpretações, na lógica da

Hermenêutica Fenomenológica Radical. Nesse sentido, mais vale para esta pesquisa avaliar

como os atores se viam diante do texto que estavam por criar, no sentido de como este

influenciava aqueles. Para isso, trazemos duas citações que revelam a ação predatória que a

CF já tinha antes mesmo do seu nascimento, em um estágio embrionário da sua formação. A

primeira é do Mozart Vianna293, assessor da secretaria-geral da Câmara, responsável, dentre

outras atribuições, pelo processamento das emendas populares, a fim de distribuí-las entre as

comissões e subcomissões, após a verificação das assinaturas:Virávamos noites, sábado, domingo. Teve semana que eu fiquei direto, só ia em casatomar banho, café, e voltava, sem dormir. Meu filho nasceu dia 13 de maio. Quemlevou minha mulher no hospital não fui eu, porque virei a noite aqui. Foi a irmã dela.Eu fui ver o meu filho com 15 minutos depois de nascido e voltei correndo pra cá.

Em seguida, a confissão294 do constituinte Carlos Eduardo Mosconi e da sua esposa,

Maria Lúcia (em negrito), a Maklouf:

294 Idem, p. 109.

293 Trecho retirado da sua entrevista a Maklouf justamente sobre o seu trabalho com as emendas populares. Idem,p. 328.

292 Maklouf havia perguntado sobre a virada do Centrão, que demorou muito mesmo com a forte influência deSarney. Além do citado, o presidente afirma que esperava o Ulysses resolver os problemas, quando percebeu queele não resolveria, decidiu intervir. Idem, p. 58.

291 Sarney, ao responder Maklouf sobre o peso da distribuição de rádios e TVs durante a ANC: Nunca recebi umdeputado que diga que votou porque eu pedi pra ele votar e dei uma estação de rádio ou de TV… Idem, p.57.

290 Sarney revela a Maklouf (em negrito) a sua participação na virada do Centrão: É correto dizer que o dr.Ulysses facilitou as coisas para o senhor, deixando, por exemplo, o Centrão evoluir e chegar ao ponto quechegou? O Ulysses não tinha força para impedir isso. Eu era forte dentro do Congresso. Era um homem cujavida foi feita dentro do parlamento. O senhor está sendo muito modesto na sua participação nessa virada demesa… Se eu não tivesse entrado, a Constituição não tinha saído. CARVALHO, Luiz Maklouf. 1988: segredosda Constituinte. Os vinte meses que agitaram e mudaram o Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2017. p. 57.

97

Nessa época, um dos nossos meninos escreveu numa redação da escola: “Tenhohorror da Constituinte.” Porque levou o pai dele. Foi uma época difícil. Porquea gente trabalhou muito. Ela ficou aqui, com os dois filhos. Muitas vezes não davapara vir nem nos fins de semana.

Essas duas citações nos permitem perceber como a ANC consumia os seus atores,

fossem eles constituintes ou não, porque o trabalho era intenso, afinal existiam muitas etapas

e muitos textos a serem analisados, a fim de conferir a validade de inseri-los na CF. Dessa

forma, não só o polo “constituinte” forma o polo “constituição”, mas também o contrário

ocorre, da Constituição escrever os constituintes e os demais atores. E essa característica não

se manteve apenas durante a ANC, pois ela se perpetua até os dias atuais. O movimento de

(re)criação da CF é permanente na história, pois ela é a vontade política da sociedade, que,

pelas ações do meio social, se modifica diariamente, exigindo que a Carta Magna também se

altere para se adequar ao seu povo. Isso pode ocorrer tanto pelas vias de ECs, bem como pela

mudança na interpretação dos dispositivos constitucionais, sendo esta capitaneada pelo STF.

Fato é, como defende o ex-ministro do STF Eros Grau: “Não existe a Constituição de 1988, o

que existe, na verdade, é a Constituição do Brasil tal e qual ela hoje, aqui e agora está sendo

aplicada e interpretada”295. Ao passo que, do outro lado, a Constituição não cessa de alterar os

seus signatários. Ainda que não seja aplicada em sua totalidade, as pessoas se submetem às

suas normas, o que, invariavelmente, deve acontecer no presente de cada dia, influenciando o

agir das pessoas. Assim, nós deixamos de realizar determinadas ações ou somos forçados a

fazer outras, porque é o disposto na CF. E, quando ocorrem mudanças no texto constitucional,

nós somos chamados a uma readequação, para também nos conformarmos à nova realidade

normativa. Portanto, a relação constituinte-constituição pode ser compreendida como

uma relação histórica-dialética entre os agentes constituintes e a Constituição, em que

eles possuem um sentimento de posse para com ela, influenciando-a com seus interesses

pessoais, além de disporem de uma intensa identificação com o texto, este que, por sua

vez, consome os seus atores.

295 ESTADÃO. Fórum Estadão discute Constituição e entrevista FHC, 2018 (03:52:21). Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=tvRB-8ZD9ww. Acesso em: 19 jul. 2021. 01:16:33-01:16:49

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XI. A BATALHA FINALApós as análises do Frankenstein e da ANC, podemos nos atentar ao objetivo

específico “c”, de examinar os pontos de contato entre as relações descobertas nos objetos de

estudo. Nesse sentido, vamos comparar três aspectos: história, atores e relação, de forma

similar às demais análises. Sobre a história, o propósito é averiguar as semelhanças entre os

enredos do Frankenstein e da ANC. Por outro lado, em relação aos atores, o cerne é

investigar como os personagens se portaram em cada história e como as suas ações

influenciaram os resultados. Por fim, a relação está mais próxima do objetivo “c”, pois, após a

exposição dos outros dois pontos, ela se encarrega de confrontar as relações definidas por este

estudo, a fim de verificar a viabilidade da pergunta norteadora, assunto para o próximo

capítulo.

De início, as histórias do Frankenstein e da ANC podem parecer muito distantes, mas

guardam semelhanças fundamentais observadas nesta pesquisa. A primeira delas se baseia no

centro dos enredos: a criação; tanto o Frankenstein, com a criatura, como a ANC, com a CF,

são narrativas em que o nascimento é o ponto principal. Nesse sentido, podemos enxergar as

duas narrativas como mitos de criação. O mito em Frankenstein já foi abordado, porém como

a ANC pode também possuir essa face? De maneira formal, a ANC não seria um mito, porque

é um evento muito recente, o que prejudica o duplo sincronia-diacronia. A sincronia da ANC

é mínima, afinal a atualidade do evento não se dá pelo seu conteúdo ou pela sua essência, mas

justamente pela proximidade temporal, já que a CF é de 1988. Por outro lado, a diacronia

também enfrenta o mesmo desafio, porque a história dessa Constituição não tem a

possibilidade de ultrapassar a linha do tempo, principalmente pelo fato de parte dos

narradores da Constituinte, tanto políticos, como indivíduos da sociedade civil, ainda estarem

vivos. Entretanto, a ANC pode ser um mito na medida em que ela narra um conto de heróis,

que não se enxergavam em suas realidades e, então, decidiram mudá-las a fim de encontrar as

suas verdadeiras essências, além de contar uma história fantástica de ruptura com o passado.

Dessa forma, o polo constituinte é o herói da história, afinal todos os agentes da ANC

desejam a transformação da realidade social que a Constituição ditatorial criou. Para tanto, o

povo, os constituintes e o governo, principalmente, são como o Prometeu, roubando o fogo do

Olimpo para libertar a humanidade, no caso, a sociedade brasileira. Com isso, a ANC mostra

o nascimento de um novo Brasil, com a inauguração de um novo momento constitucional,

mesmo que determinadas partes da CF não sejam aplicadas. Entretanto, a atuação heróica do

polo constituinte dispara a ira dos céus, que enviam uma punição ao Brasil, a CF. Por mais

99

que fosse desejada, é como se o pedido se voltasse contra quem o fez, por ser seguido ao

extremo, tal qual a condenação do Prometeu Moderno, o jovem Frankenstein. Por

conseguinte, podemos dizer que a ANC e os seus ideais ainda vivem no imaginário dos

brasileiros como um mito de criação incompleto, afinal só o titã Chronos poderá conferir

plenitude à faceta mitológica.

Em seguida, um ponto-chave das histórias é a questão da húbris dos seus personagens.

Assim, dando início ao segundo ato, é importante relembrar que a húbris pode ser definida

como a atitude prepotente e obsessiva que antecede à ruína, por cegar o indivíduo das

consequências de suas ações. Nesse sentido, como ela se encaixa nos atores da ANC? A

resposta está, principalmente, no sentimento de posse para com a CF, bem como na

pessoalização do processo constituinte, porque permitiu que a importância dos indivíduos em

si superasse a relevância do coletivo. Dessa forma, ao invés da ANC levar em conta apenas o

interesse geral da Nação, incluindo princípios gerais no texto, ela acabou por privilegiar os

interesses dos grupos dominantes, representados, por exemplo, pelos lobistas, ainda que

incluísse, para isso, certos direitos às minorias. De fato, é uma característica do contexto

sociopolítico adicionar temas desnecessários às constituições, porém isso não exclui o peso da

húbris só pelo fato de ser algo natural. Sem a húbris, parte desses dispositivos poderiam não

ter sido incluídos, por exemplo, pois o propósito da Constituição seria seguido mais fielmente.

Tal atitude não é necessariamente negativa ou positiva, mas é existente e deve ser levada em

conta, afinal o momento histórico de 1987-1988 foi muito delicado, com o país passando por

toda uma reestruturação. Por conseguinte, assim como Victor apenas olhou para o seu próprio

interesse no momento de dar vida à criatura, também a ANC, com todos os seus agentes, fez

com a Carta Magna, dando voz ao individual em detrimento do coletivo. Por outro lado, isso

se valida pela função do Direito no Capitalismo, de agir como um instrumento de opressão e

perpetuação da lógica classista, por mais que permita certos avanços, pois eles somente se dão

para apaziguar os ânimos, como cortina de fumaça, escondendo o real interesse.

Para tanto, vale comentar sobre a húbris em alguns dos agentes da ANC e as suas

consequências para o nascimento da CF. De início, a húbris do povo pode ser vista como a

menos proeminente, porque ele é o detentor do poder de criar constituições. Por

consequência, ele não só tem o direito, como também o dever de se inserir na ANC, tomando

posse do processo para lhe garantir a legitimidade necessária para a escrita da CF. Com isso

em mente, ainda que a húbris da sociedade civil tenha sido a menos expressiva, podemos

percebê-la por meio dos instrumentos de participação popular na ANC. Entretanto, a mera

presença do público não é, em si, uma marca de sua húbris, por conta do papel originador de100

constituições. Nesse sentido, a húbris do povo surge em outro contexto, no da mais-valia

política, observada pela atuação na ANC. Isso porque o sentimento de posse e a euforia do

contexto sociopolítico permitiram a legitimação, pelo povo, de condutas ilegais ou imorais

dos constituintes em prol da redação de uma Constituição que o livrasse das amarras

ditatoriais tão logo fosse possível.

Contudo, seria injusto creditar apenas adjetivos negativos a essa atitude, pois foi por

meio dela que, também, muitos dispositivos progressistas foram inseridos na CF. Afinal a voz

dada às pessoas tinha um forte peso político, que nenhum constituinte deixaria de lado tão

evidentemente. Consequentemente, o sentimento de posse que a população tinha, em conjunto

com a identificação e desejos individuais, providenciou a promulgação e a ratificação de uma

Constituição mais voltada aos direitos sociais, por exemplo. É difícil de imaginar que, sem a

presença e a húbris do povo, a CF poderia ser considerada uma “Constituição Cidadã”, como

as outras constituições brasileiras não foram, pois o poder incumbente se isolou para

produzi-las. Enfim, o pecado da húbris do povo não foi punido durante a ANC, mas,

principalmente, após o nascimento da CF, pois a não concretização de certos dispositivos,

como os próprios direitos sociais, faz a sociedade brasileira sofrer pelos equívocos passados.

Isso não quer dizer que o povo de 1987-1988 cometeu um erro crasso, que deixou de fazer

algo que era de seu dever, ou algo do gênero. No entanto, a húbris o cegou para as

consequências da mais-valia política, bem como das usurpações de poder que a elite, em

especial a política, realizava.

Em seguida, o governo e os lobistas tiveram uma ação mais contundente no processo

constituinte, por conta das posições de influência que gozavam. No caso deles, é mais

evidente como a húbris interferiu na ANC, porque coordenaram reuniões paralelas e

concessões, por exemplo, exercendo os seus poderes para conquistar o que desejavam.

Consequentemente, as aspirações individuais e o sentimento de posse tiveram um maior

espaço para aparecer e conduzir a escrita da CF. Por outro lado, a pena do pecado deles está

também na própria Constituição, já que, por vezes, os dispositivos incluídos não agradavam

os seus gostos, porque a ANC foi uma disputa de interesses, e nem sempre o deles era o

vencedor.

Por fim, os constituintes foram os principais articuladores da ANC, afinal eram os

indivíduos eleitos para tal fim. Assim, a húbris desse grupo, a mais evidente, pode ser

percebida pela própria condução do processo constituinte, em que os 559 livros abertos se

priorizaram frente à vontade popular. Nesse sentido, os parlamentares realmente tomaram

posse de seus cargos para comandar a ANC segundo os desejos pessoais, usurpando o poder101

do povo para extrapolar os limites legais dos seus cargos. Por outro lado, diferentemente dos

outros agentes, eles foram os que mais sofreram, durante os trabalhos, as consequências das

suas húbris, por conta da natureza predatória na relação constituinte-constituição. A regra

entre os constituintes ativos no processo era o consumo extenuante de suas energias pela

ANC, que os obrigava a permanecer em Brasília, no CN, praticamente todos os dias o dia

inteiro. Dessa forma, o desejo deles de perpetuar os seus nomes nos anais da história da

democracia brasileira foi uma faca de dois gumes. Isso porque foi positiva na medida em que

eles se empenharam mais nas suas atribuições, se identificavam com o texto e se orgulhavam

de ter participado da sua redação. Por outro lado, ela foi negativa, por exemplo, quando eles

perdiam momentos preciosos de suas vidas para a ANC, como no caso trazido do constituinte

Carlos Mosconi. Além disso, as consequências após a promulgação do texto ocorrem não pela

natureza constituinte dessas pessoas, mas por integrarem a sociedade brasileira, então o que se

aplica ao povo, também é verdade para eles. Contudo, já que fazem parte de uma elite

política, a posição deles diante da CF é singular, porque, como os engenheiros da obra, eles

sabem, de certa forma, cada mínima estrutura constitucional, tanto os seus pontos fortes,

como fracos. Consequentemente, podem ser as melhores pessoas para utilizarem a CF em

seus favores, não à toa alguns fizeram carreira na política, como FHC, Lula e Temer, que

conseguiram se tornar presidentes. Tais feitos foram possíveis, em parte, porque eles

aplicaram, incansavelmente, os seus desejos íntimos na ANC, pessoalizando o processo, em

virtude da húbris.

Para tanto, essa postura arrogante antes da queda, ainda que não nos moldes do

Frankenstein, foi e é presente na história da CF, de forma que ela é a sua estrutura fundante.

Isso porque, sem esse sentimento, o resultado seria muito diferente. Não podemos mensurar

com exatidão o quanto ou como, porém, sem dúvidas, o desejo de se projetar no texto

constitucional favoreceu interações que priorizaram o individual frente ao coletivo. Tal

característica se evidencia na própria extensão da CF, que trata de muitos assuntos

constitucionalmente desnecessários, como consequência da húbris de cada um dos agentes da

ANC. Foi a húbris que gerou a CF do jeito que conhecemos, bem como é ela que permite a

renovação e atualização da Constituição segundo os modelos dos atuais políticos, juristas e

indivíduos da sociedade civil, cada um com um diferente grau de responsabilidade e

importância.

Em seguida, sobre as relações no Frankenstein e na ANC, como podemos associá-las?

De início, a relação criador-criatura entre Victor e a criatura se mostra muito semelhante com

a relação constituinte-constituição na ANC, porque as duas são relações históricas e102

dialéticas, o que já nos permite uma primeira aproximação. Assim, podemos enxergar o polo

constituinte como criador do polo constituição, a criatura. No entanto, quem é, de fato, o

criador da CF, dado que o polo constituinte é tão complexo? É o povo. Apesar de

considerarmos a sociedade como constituintes secundários, já que falta o elemento legalista

da eleição, ela é o grupo do qual emana o poder legítimo para criar constituições. Dessa

forma, a CF só pôde ser criada e legitimada, devido ao apoio e à participação popular.

Consequentemente, os demais agentes políticos do polo constituinte se tornam criadores

secundários, ainda que sejam parte do povo, pois, no momento da ANC, o papel deles é

diferente, o de ser um instrumento pelo qual a sociedade consegue se organizar para criar para

si uma nova Constituição. De todo modo, essa avaliação não altera a essência da comparação

da relação constituinte-constituição com a relação criador-criatura, porque aquela permanece

sendo uma relação histórica e dialética similar a esta, pela existência de um criador e de uma

criatura que, constantemente, se (re)criam.

Paralelamente, mais importa para esta pesquisa a outra relação presente em

Frankenstein, a relação criador-monstro. Entretanto, a fim de examinar a relação

constituinte-constituição, é necessário termos em mente que a relação existente na ANC não é

apenas histórica e dialética; possui uma vertente predatória do polo constituição frente ao

polo constituinte, bem como este se identifica fortemente com aquele, por conta, também, dos

interesses pessoais. Ademais, para a comparação dessas relações ser mais real e válida, é

necessário que a CF também seja um monstro. De fato, ela não é apenas uma criatura, mas um

monstro, porque o polo constituinte, com a húbris, cometeu um erro similar ao de Victor;

afinal, durante a criação, ele resolveu aumentar as dimensões do ser, tornando a sua aparência

horrenda, o que desencadeou a transformação de criatura em monstro. Diante disso, qual

seria o erro que fez da CF um monstro? A despeito dos constituintes não terem seguido

aqueles oito passos296 fielmente, dado que é um texto, eles redigiram uma Constituição com

uma aparência horrenda, principalmente, por causa dos temas tratados e da não concretização

de determinados dispositivos. Essas são as causas da CF parecer com um monstro, pois

tornam o texto maléfico e promovem o seu afastamento dos criadores, descolando-se da

realidade, por meio da instrumentalização constitucional pelas elites.

Por conseguinte, podemos refletir como a “aparência monstruosa” da CF foi criada e

como ela é o ponto-chave para a transformação da Constituição em um monstro. De início, os

296 ARAÚJO, Alberto Filipe; GUIMARÃES, Armando Rui. Como criar um monstro: o manual de instruções doDr. Victor Frankenstein. In: ALMEIDA, Rogério de; ARAÚJO, Alberto Filipe; BECCARI, Marcos (orgs.). Omito de Frankenstein: imaginário & educação. São Paulo: FEUSP, 2018. p. 75-79.

103

constituintes, enquanto criadores secundários, possuíam uma forte responsabilidade frente ao

texto constitucional, porque foram os designados a escrevê-lo. Consequentemente, apesar da

CF derivar do povo, os constituintes tinham o poder para preservar a “aparência humana”,

caso eles se detivessem ao interesse geral da sociedade, ao invés dos desejos de grupos

privados, como os lobistas. Além disso, a população como um todo deveria ter sido mais

ouvida, afinal ela é a criadora de constituições e o Brasil é um país muito extenso, o que

prejudica a representatividade política no Legislativo Federal. Para tanto, um meio que

poderia ter sido utilizado para levar em conta a opinião do povo seriam as consultas públicas.

A ANC poderia ter organizado, nos estados, eventos para que os políticos e as suas equipes

conversassem com os brasileiros para melhor entender cada nuance das demandas. Por outro

lado, as burocracias para o envio de propostas e emendas populares poderiam ter sido

diminuídas, além de haver um mecanismo mais eficiente de governança para a fiscalização da

análise dos pedidos do povo. De todo modo, a ANC buscou incluir mais as massas nas

discussões, porém não foi na medida ideal e possível.

Assim, a população, ao delegar o seu poder constituinte aos políticos da ANC, se viu

em uma posição secundária, mesmo que fosse a protagonista em alguns momentos. Sobre

isso, o constituinte José Lourenço revela297 que, por exemplo, as emendas populares não

passavam de um instrumento para controlar o povo, já que não teriam dado tanta importância

para elas. Além disso, a própria problemática da mais-valia política favorece o apagamento da

sociedade brasileira durante o processo constituinte, a partir do protagonismo da elite e dos

constituintes. Paralelamente, como consequência do distanciamento do texto com a

população, após a promulgação da CF, a elite política atuou de forma a manter a criatura

longe de seu criador. Tal atitude ocorre, por exemplo, pela não concretização completa da CF,

seja por falta de lei regulatória, ou por ineficiência do governo. Por conseguinte, o abandono e

a falta de diálogo com o criador primário são reforçados, o que acarreta no desenvolvimento

da faceta monstruosa. Para tanto, a húbris dos agentes da ANC, em especial dos

parlamentares, promoveu a transformação de criatura para monstro da CF, por tê-la afastada

de seu criador primário, bem como por ter viabilizado a concretização da sua feição,

jurídica-politicamente, horrenda. Por certo, essas reflexões não se limitam no espaço-tempo

de 1987-1988, mas são universais, válidas para todos os momentos da história da CF.

297 Em entrevista a Maklouf (em negrito): E as emendas populares, consideradas um grande avanço?Ninguém deu muita importância para as emendas populares. Aquilo foi uma concessão ao povo para satisfazeregos: “Assinei a emenda popular e tal”. CARVALHO, Luiz Maklouf. 1988: segredos da Constituinte. Os vintemeses que agitaram e mudaram o Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2017. p. 194.

104

Com isso em mente, a aproximação com a relação criador-monstro fica mais evidente,

bastando que encontremos as características principais desse vínculo no processo constituinte.

Para tanto, a essência da relação criador-monstro é o aspecto (auto)destrutivo entre as partes,

já que o monstro tenta aniquilar o criador e vice-versa. Na ANC, isso se verifica no traço da

relação constituinte-constituição de consumo, porque a CF, já enquanto era criada, buscava

arrasar os seus criadores, demandando deles uma alta carga de dedicação. Após a sua

promulgação, o consumo ocorre no dia-a-dia dos brasileiros. O Legislativo permanece com os

trabalhos de edição constitucional, por meio das ECs e LCs, e o Executivo luta com as MPs,

em conjunto com as reuniões com os lobistas, por exemplo. Por mais que sejam as vias

institucionais, inerentes aos cargos, o mecanismo se mantém similar ao de 1987-1988, porque

o desenho estatal firmado na CF não se difere muito do que foi escolhido para a ANC. Assim,

o texto permanece exigindo a atenção dos criadores secundários para se manter. Por outro

lado, o Judiciário atua, incansavelmente, com a interpretação, visando garantir a correta

aplicação da CF, editando, à sua maneira, a Carta Magna. Enfim, o Povo sofre, diariamente,

com privação de seus direitos e dificuldade em reivindicá-los, exceto os poucos grupos

pertencentes às elites, que utilizam o Direito como ferramenta para os seus ideais.

Paralelamente, a CF também recebe os ataques dos seus criadores, porque os Poderes

Públicos e a elite política buscam editá-la tendo em vista os interesses individuais –

principalmente eles – e os da sociedade. Ademais, ela é subjugada pelos seus criadores

primários pela própria não concretização dos seus propósitos, em especial daqueles atinentes

às massas populares, afinal não cumprir com a sua finalidade põe em dúvida o seu próprio

nascimento. Por fim, o Povo, de forma geral, fere a sua criatura ao permitir que os políticos

abusem dela, na lógica da mais-valia política, em um movimento quase de negligência

parental, esquivando-se da sua obrigação para com os poderes criadores de constituições.

Ademais, falta avaliar se a destruição de um dos polos da relação

constituinte-constituição implica no fim do outro, para atestar a dependência mútua. De fato,

podemos pensar que a destruição de um texto constitucional não acarretaria na eliminação de

seu povo e dos Poderes Públicos. Contudo, a Constituição é a obra que revela e consolida as

relações de classe, servindo a determinado fim político. Assim, se ela deixar de existir, a

própria noção de povo, internamente, cai por terra. Por certo, podemos dizer que a sociedade

encontraria o seu fim, pelo menos do jeito que ela era conhecida, já que poderia logo se

reorganizar. De todo modo, a Constituição é o instrumento pelo qual a Nação se sustenta e

mantém as estruturas sociais do jeito que são. Consequentemente, com o seu fim, os criadores

também se extinguem; o povo nessa lógica das classes e o Poder Público de forma mais105

concreta, já que ele emerge, institucionalmente, da própria Constituição. Por outro lado, se os

criadores forem destruídos, a Constituição perde a sua soberania, a sua legitimidade e a sua

função. Afinal, para que serve uma norma jurídica se não tem em quem incidir? E mais, o

povo é o criador primário da Constituição, ela se sustenta pelo seu apoio. Se ele for

aniquilado, ela não tem mais base para existir. Paralelamente, o fim do Poder Público acarreta

sérias consequências para a manutenção da Carta Magna, porque ele, enquanto soberano, é o

seu guardião, zelando pelo seu cumprimento. Nesse sentido, sem o governo, a situação da

Constituição se torna muito vulnerável, logo padecendo caso o povo não constitua uma nova

administração. Para tanto, dentre os criadores das constituições, sem dúvida o povo é o mais

importante, mas elas dependem de ambos para se manter em vigor.

Dessa forma, a CF é um monstro, não só pelas características textuais – do excesso e

falta de legislação específica –, mas também pelos conteúdos que não são aplicados; pela

forma com que é interpretada, pela política permanecer afastada do povo e, enfim, pelo

Direito ser um instrumento do Capitalismo. Além disso, a própria destruição da CF acarretaria

no fim dos seus criadores e vice-versa. Consequentemente, a relação criador-monstro muito se

revela na relação constituinte-constituição, permitindo que tenhamos uma visão mais crítica

da nossa posição frente à Constituição. Portanto, em consonância com o objetivo específico

“c”, os pontos de contato entre as relações presentes em Frankenstein e na ANC são inúmeros,

principalmente pelo caráter mitológico e monstruoso do objeto de estudo, o que nos

possibilita a compreensão de como o romance de Mary Shelley pode auxiliar na compreensão

do fenômeno constituinte, de acordo com a pergunta norteadora

106

12. ESPÓLIOS DA VITÓRIAApós expor e analisar cada um dos objetos de estudo, podemos nos voltar ao objetivo

geral desta pesquisa, que é a análise da relação entre o homem e a norma. Para isso,

precisamos responder a pergunta norteadora: de que maneira a relação criador-criatura,

presente na obra Frankenstein, pode contribuir para a compreensão da relação existente entre

a Assembleia Constituinte e a Constituição Federal no processo constituinte de 1987-1988?

O Romance, em si, já nos coloca contra a parede pelas próprias funções literárias, por

ser um gênero de reflexão. Assim, desde o início, há uma mínima identificação com os heróis

de Shelley, em especial com Victor, o criador, que tanto sofreu pela sua húbris. Além disso, a

trama nos faz pensar sobre os limites da criação e sobre a responsabilização acerca da vida.

Por outro lado, quando juntamos o romance com o evento constitucional, percebemos muitas

semelhanças, não à toa a Literatura contribui em muito para a compreensão do Direito. Dentre

as correspondências mais interessantes, está a húbris do polo constituinte, cujo criador

primário, o povo, abdica de uma atuação mais contundente para que os criadores secundários,

os constituintes, redigissem uma Constituição que mudasse o país, um ato digno de um herói

romântico desprendido de sua realidade. Nesse sentido, é correto afirmar que as relações

existentes em Frankenstein são reproduzidas na ANC, ainda que os atores possam não ter lido

qualquer obra de Mary Shelley. Decerto, isso evidencia o caráter mitológico dos dois eventos,

porque ultrapassam as barreiras do tempo, do espaço e dos personagens, tornando-se obras

universais e perpétuas que se chocam neste estudo. Dessa forma, não existe uma grande

diferença entre Victor e os atores da CF, afinal todos são criadores, cegos pelas suas húbris,

sofrendo, nas mãos de Nêmesis, as consequências desse pecado. Por outro lado, as criaturas,

em suas singularidades, são idênticas, pois foram abandonadas por conta das decisões de seus

criadores, transformando-se em monstros. Por certo, a comparação pode não ser perfeita,

porque são matérias muito distantes entre si: o romance e a ANC. Entretanto, esse pequeno

detalhe não invalida o todo, de que, sim, o romance gótico pode ser utilizado para uma melhor

compreensão do fenômeno constituinte, em especial no que diz respeito às relações:

criador-criatura, criador-monstro e constituinte-constituição. É interessante ressaltarmos que a

relação criador-monstro não estava inicialmente prevista, porém foi descoberta no transcorrer

da pesquisa.

Com isso em mente, podemos nos posicionar melhor, de uma maneira mais crítica, em

relação à norma máxima do nosso sistema jurídico. Esse ponto é muito importante para a

nossa Teoria do Direito, que se apoia em Pachukanis para reavaliar o significado e as

107

implicações dessa ciência. O Direito não existe sem um propósito, que, no Capitalismo, é o de

ser uma ferramenta para a perpetuação das opressões e dos status quo vigentes. Ora, isso é

evidente na ANC, pelo seu caráter de criação monstruosa, em virtude da húbris. Portanto, o

que podemos extrair, como observação máxima, desta pesquisa é que a Constituição não é um

mero texto, escrito por simples pessoas; pelo contrário, ela é um monstro, criada em um

laboratório por uma elite política e apoiada pelo povo. Os dois grupos estavam cegos por um

desejo infindável de ultrapassar o período histórico anterior e de marcar os seus nomes para

sempre nos anais da história brasileira como defensores da democracia, do Estado

Democrático de Direito e dos princípios progressistas, apesar de esconderem, nesses valores,

o individual e os anseios pessoais. Consequentemente, as relações do livro de Mary Shelley

são aplicáveis às relações presentes na ANC e nos dias atuais. A CF, como criatura e monstro,

cria e recria os seus criadores, o povo, de forma geral, em um movimento dialético, histórico e

autodestrutivo. Como será o fim dessa relação? Mary Shelley, ao final do seu livro, já realizou

algumas previsões sobre o desfecho da relação criador-monstro, resta saber como isso se dará

na realidade brasileira.

De qualquer forma, apesar desta pesquisa se limitar à ANC, as suas conclusões podem

ser extrapoladas para formar uma regra geral da relação entre o homem e a norma, de forma a

ser também uma relação criador-criatura e criador-monstro. Por certo, é necessário um estudo

mais aprofundado para desenvolver tal generalização apropriadamente. Entretanto, já

podemos perceber o embrião dessa regra neste estudo, em especial devido ao caráter

mitológico dos objetos analisados, pois ele corrobora a aplicação dos resultados obtidos para

além do tempo, espaço e atores da ANC. De fato, até mesmo quem veio após a geração de

1987-1988 se insere na relação constituinte-constituição, porque faz parte do povo e a relação

é histórica, compreendida no continuum da linha do tempo, atualizando-se rotineiramente.

Por fim, este trabalho não buscou ser revolucionário, na verdade sempre esteve atento

à realidade, buscando, em sua simplicidade, a reflexão sobre a condição humana frente ao

universo jurídico-político, a fim de mudar alguns posicionamentos para nos situarmos melhor

na problemática das relações com o Direito. De fato, sobre esse aspecto, podemos concluir

que a pesquisa foi satisfatória, contribuindo para o aprendizado não só do autor, como,

esperamos, de quem a ler, afinal o choque entre o mundo do Direito com o da Literatura ainda

pode contribuir muito para as duas áreas do conhecimento. Por outro lado, este estudo é

limitado pelo escopo de uma iniciação científica. O caminho para aprofundá-lo está aberto e

convida novos aventureiros para desbravá-lo. As possibilidades são diversas, desde o próprio

aperfeiçoamento do que já foi trazido, com novas fontes e linhas de pensamento, como108

também a mudança do recorte, olhando para outras faces dos objetos de estudo. De todo

modo, esta criatura já está viva e independente de seu criador. Resta saber qual será o seu

destino. Um monstro? Um mito? Nem mesmo Apolo poderá afirmar com certeza.

109

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