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1 O MUNDO DO TRABALHO NO CAIS DO PORTO DA MANAUS MODERNA: O CARREGADOR DE BAGAGENS E O TRABALHO PRECÁRIO Maria Milene de Souza Gomes Mestranda do Programa de Pós-graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia – Ufam. E-mail: [email protected] Drª Elenise Faria Scherer Professora do Departamento de Serviço Social - Universidade Federal do Amazonas e pesquisadora do CNPQ. E-mail: [email protected] Área temática: O serviço Social e o Desenvolvimento RESUMO: Este trabalho pretende discutir algumas características do mundo do trabalho no porto da Manaus Moderna – Manaus/AM, mais especificamente acerca das condições de trabalho dos carregadores de bagagens daquele porto. Tais condições perpassam a saúde e segurança no trabalho, proteção trabalhista e social e condições físicas do ambiente do trabalho. Para isso buscou-se aproximar-se da realidade dos trabalhadores portuários, identificando as conseqüências nefastas do trabalho precário e as principais doenças que afetam esses trabalhadores. Foi possível constatar que o Porto da Manaus Moderna é caracterizado pela inexistência de uma infra-estrutura adequada às atividades portuárias, condicionando os trabalhadores ao esforço físico e a frágil qualidade de vida, marcada pela ausência de proteção trabalhista e/ou social. Palavras-chave: Porto da Manaus Moderna; Trabalho precário; Carregadores de bagagens. ABSTRACT: This paper aims to discuss some features of the world of work in modern port of Manaus - Manaus / AM, more specifically about the working conditions for baggage handlers that port. These conditions go beyond the health and safety, labor protection and social and physical conditions of the work environment. For that sought to approach the reality of port workers, identifying the harmful consequences of precarious work and the main diseases affecting these workers. It was found that the Port of Manaus Moderna is characterized by the absence of an adequate infrastructure to port activities, conditioning workers to physical effort and the fragile quality of life, marked by the absence of labor protection and / or social. Keywords: Port of Manaus Moderna; Precarious work, baggage handlers.

O MUNDO DO TRABALHO NO CAIS DO PORTO DA MANAUS … · O porto de Manaus ao longo da história teve importância significativa para a cidade, tornando-se um de seus ícones eleitos

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O MUNDO DO TRABALHO NO CAIS DO PORTO DA MANAUS MODERNA: O CARREGADOR DE BAGAGENS E O TRABALHO PRECÁRIO

Maria Milene de Souza Gomes Mestranda do Programa de Pós-graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia – Ufam.

E-mail: [email protected]

Drª Elenise Faria Scherer Professora do Departamento de Serviço Social - Universidade Federal do Amazonas e pesquisadora do

CNPQ. E-mail: [email protected]

Área temática: O serviço Social e o Desenvolvimento

RESUMO: Este trabalho pretende discutir algumas características do mundo do trabalho no porto da Manaus Moderna – Manaus/AM, mais especificamente acerca das condições de trabalho dos carregadores de bagagens daquele porto. Tais condições perpassam a saúde e segurança no trabalho, proteção trabalhista e social e condições físicas do ambiente do trabalho. Para isso buscou-se aproximar-se da realidade dos trabalhadores portuários, identificando as conseqüências nefastas do trabalho precário e as principais doenças que afetam esses trabalhadores. Foi possível constatar que o Porto da Manaus Moderna é caracterizado pela inexistência de uma infra-estrutura adequada às atividades portuárias, condicionando os trabalhadores ao esforço físico e a frágil qualidade de vida, marcada pela ausência de proteção trabalhista e/ou social.

Palavras-chave: Porto da Manaus Moderna; Trabalho precário; Carregadores de bagagens. ABSTRACT: This paper aims to discuss some features of the world of work in modern port of Manaus - Manaus / AM, more specifically about the working conditions for baggage handlers that port. These conditions go beyond the health and safety, labor protection and social and physical conditions of the work environment. For that sought to approach the reality of port workers, identifying the harmful consequences of precarious work and the main diseases affecting these workers. It was found that the Port of Manaus Moderna is characterized by the absence of an adequate infrastructure to port activities, conditioning workers to physical effort and the fragile quality of life, marked by the absence of labor protection and / or social. Keywords: Port of Manaus Moderna; Precarious work, baggage handlers.

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Introdução

No porto da Manaus Moderna, construído a partir do início do século XX, a dinâmica de trabalho dos trabalhadores portuários se desenvolve com muita precariedade. Há um intenso fluxo portuário de embarcações de diversos portes que são responsáveis por um complexo de atividades comerciais com as feiras e os mercados.

Dentro deste contexto, sempre existiu a figura do trabalhador carregador de bagagens que historicamente disputa o espaço dos portos de Manaus. Eles fazem parte, portanto, da memória da cidade, no entanto, permanecem esquecidos, e segundo Santana (2006) não aparecem nem nas estatísticas dos trabalhadores informais manauenses. Nesse espaço, sem quase nenhuma unfra-estrutura pública, os carregadores de bagagens dividem o espaço do porto com muitos outros trabalhadores e com o lixo, tendo de maneira improvisada que se adequarem a dinâmica da cheia e da seca dos rios.

Diante desse contraditório quadro, o presente trabalho objetivou estudar as conseqüências que a violência do trabalho precário do carregador de bagagens do Porto da Manaus Moderna tem sobre o mesmo, trazendo à tona a questão do trabalho portuário, bem como as condições degradantes de trabalho dos carregadores de bagagens do porto de Manaus, sua especificidade dentro dessa dinâmica, nos seus impactos para a saúde mental e física destes, condições tais que, pode-se afirmar, tornam esse tipo de trabalho altamente patogênico.

O caminho investigativo percorrido para o alcance do objetivo foi identificar as condições de trabalho e os fatores psicopatológicos do trabalho que podem se tornar patogênicos para o carregador de bagagens do Porto da Manaus Moderna. Para isso mapeou-se as principais patologias que mais afetam esses carregadores e descreveu-se as situações de vulnerabilidade do trabalho dos carregadores de bagagens do Porto da Manaus Moderna. A pesquisa traçou o percurso metodológico buscando apreender o objeto de pesquisa através da pesquisa exploratória com vistas a oferecer uma visão panorâmica do cotidiano de vida dos carregadores E compreender as características desse cotidiano nas relações sociais entre os sujeitos e entre estes e o ambiente.

A Manaus (nada) Moderna

O Porto da Manaus Moderna está localizado na Zona Sul de Manaus, em um local estratégico (no Centro da cidade). Este porto está localizado entre os igarapés do Educandos e São Raimundo. Este aspecto geográfico é um importante ponto estratégico para a circulação, acesso e comunicação entre aquele espaço e os referidos igarapés. Ele está próximo aos mais importantes entrepostos da capital amazonense, como a Feira da Pan Air e o secular Mercado Municipal Adolpho Lisboa, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional como Patrimônio Histórico Nacional (IPHAN). Também está próximo a outro ancoradouro da cidade, o antigo Roadway, construído no início do século XX para dar vazão à riqueza da borracha.

Tanto a localidade onde está situado como o porto receberam esta denominação na década de 80, no mandato do então governador Gilberto Mestrinho, durante um projeto de urbanização que transformou a área em zona portuária e de comércio. O projeto objetivava o melhoramento da fluidez

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do tráfego de automóveis e cargas na área portuária de Manaus. O chamado Porto da Manaus Moderna se resume a um muro de concreto e os ancoradouros são feitos por balsas de propriedade particular. Hoje, verifica-se que a pretendida modernização não se concretizou, pois a realidade do Porto da Manaus Moderna confronta-se diretamente com as novas instalações o antigo Porto de Manaus, agora da Estação Hidroviária de Manaus, local oficial de embarque para destinos nacionais e internacionais.

De acordo com Edinea M. Dias (1999):

A modernidade em Manaus não só substitui a madeira pelo ferro, o barro pela alvenaria, a palha pela telha, o igarapé pela avenida, a carroça pelos bondes elétricos, a iluminação a gás pela luz elétrica, mas também transforma a paisagem natural, destrói antigos costumes e tradições, civiliza índios transformando-os em trabalhadores urbanos, dinamiza o comércio, expande a navegação, desenvolve a imigração.

A crítica à modernização urbana da virada do século XIX para o XX e, em especial, aos

processos de segregação e exclusão que vinham embutidos nos discursos de embelezamento, higienização, progresso e moralização, ganhou corpo desde a década de 1980 e abriu espaço para que se pudesse visualizar a pobreza urbana e os segmentos sociais a ela mais diretamente associados.

O porto da Manaus Moderna é um local de intenso fluxo comercial e cultural, tendo extrema

relevância para a cidade de Manaus. No local, existe, desde sempre, um complexo sistema de abastecimento de feiras e mercados, o que impulsiona o frenético movimento de consumo dos mais variados gêneros. No porto da capital amazonense vende-se e compra-se de tudo. Junto com mercadorias, vão as histórias de milhares de pessoas que têm no rio Negro o principal caminho. Nesse porto, as feiras, principalmente no período das cheias tendem a ficar abarrotadas de produtos, e esse fenômeno cria uma realidade de fartura que contribui para o barateamento dos preços e, conseqüentemente, se dá a elevação do consumo (SANTANA, 2006).

O porto de Manaus ao longo da história teve importância significativa para a cidade, tornando-se um de seus ícones eleitos. Do interior e de outros estados, os visitantes chegavam à cidade através de seu porto, como também era nesse espaço que era centrado, em maior medida, o comércio regional. Essa perspectiva econômica para a capital possibilitou uma nova configuração para Manaus: a de entreposto comercial, sendo através do porto a primeira conexão de Manaus com o mundo. Foi objetivando atender a tais funções e suas necessidades de expansão da economia da borracha que se fez necessário incrementar a cidade com uma base portuária.

Para se entender a importância desse porto, dentre todos os outros da cidade, é importante perceber que o porto da Manaus Moderna é um território estratégico, pois este é o elo que alimenta reciprocamente a cidade de Manaus e o interior do Estado. De um lado têm-se o abastecimento do comercio local, através da variada produção das localidades da região que transportam para cá, através dos barcos, sua vasta produção. Do outro lado, têm-se essas mesmas localidades que “importam” para lá, gêneros que lá não se fabricam. A maioria dos comerciantes do interior do Estado tem viagem semanal certa para a capital do Amazonas, quando levam ou encomendam através dos barcos os produtos comercializados no interior.

É importante ressaltar a relação de confiança que se estabelece entre os comerciantes do interior, os do Porto da Manaus Moderna e os donos de barco. Isso porque as relações comerciais entre esses três atores sociais se sustentam através de um compromisso que vai além da simples relação comercial, há no dizer deles, uma relação de “camaradagem”, ou seja, de ajuda mútua, o que faz sobreviver essa

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dinâmica. É comum fazer uma encomenda de determinada mercadoria, através dos barcos que viajam diariamente ou semanalmente para o interior, através de conhecidos.

De acordo com Santana (2006), no final da década de 1980 e início da década de 1990, período das primeiras intervenções na infra-estrutura na Orla, para a pavimentação da atual Avenida Lourenço Braga, a idéia era de facilitação do tráfego e atracamento dos barcos no espaço do porto da Manaus Moderna.

Na verdade, desde os primeiros anos de planejamento e implantação infra-estruturais na orla do Porto da Manaus Moderna pelo poder público, teve-se como objetivo maior, fiéis às diretrizes impostas pelo capital, a construção de uma via de ligação estratégica entre a Estação Hidroviária de Manaus (antigo Rodway) ao Pólo Industrial de Manaus. E ainda, desde as últimas décadas do século XIX, em função da expansão da economia gumífera, que tornou necessário dotar a cidade de uma infra-estrutura portuária adaptada às necessidades das configurações assumidas por Manaus enquanto entreposto comercial (PINHEIRO, 1999,p. 34). Assim, a modernização do Porto de Manaus foi realizada no mesmo momento em que estava em marcha uma política governamental que previa a reestruturação e a modernização dos portos do país.

Esta conexão rápida possibilitaria a redução de custos através do eficiente escoamento de cargas pesadas e insumos via Avenida Lourenço Braga. Contudo, hoje o que se vê no entorno da Manaus Moderna são filas de carros estacionados estrangulando o cruzamento das ruas estreitas. Sobre este aspecto é importante ressaltar que as políticas de intervenção e modernização da Estação Hidroviária foi uma exigência de adaptação do capital, enquanto o porto da Manaus Moderna continua relegado a segundo plano, evidenciando uma segregação espacial que demarca um porto “popular”.

A orla do porto da Manaus Moderna é um território de inúmeras relações sociais. A realidade frenética dessas relações chega a causar espanto a quem não está acostumado. Quem chega ao mais movimentado porto de Manaus, logo precisa se ajustar à correria de caixas e engradados, de gente com malas, pacotes, de vendedores, de mudanças inteiras. São verdureiros, peixeiros, fruteiros, barraqueiros e tarefeiros postados ou circulando com mercadorias, caixotes e fardos no entorno da “Manaus Moderna”, esbarrando nos transeuntes. Todos têm pressa de embarcar ou desembarcar suas mercadorias nos porões das dezenas de barcos ancorados, que em breve vão partir tendo o Rio Negro como sua estrada. As pessoas espremem-se num ambiente caótico, sujo, com grande risco de acidentes no interior e fora dos barcos.

No mais movimentado porto da capital amazonense, não é fácil decifrar a lógica dos valores cobrados no embarque de produtos. As tarifas seguem uma ordem pouco compreensível para quem está à margem desse universo que tem o Rio Negro como via de acesso a centenas de cidades do norte do país. Todo o comércio entre essas localidades depende de uma complicada matemática que dá preços a tudo que se pode imaginar, sem que as cifras façam sentido para quem desconhece o mundo das águas e dos porões dos barcos. Uma moto embarca por R$ 60,00. Um carneiro pode ir por R$ 4,00. Cachorro com dono vai de graça.

A dinâmica desse espaço, assim como o cotidiano da vida amazônica, é determinada pelas condições naturais, ou seja, pelo ecossistema da cheia e da vazante dos rios da Amazônia. Como diz Pinheiro (1999, p. 31) “tanto a atividade portuária quanto o cotidiano da própria cidade refletem o caráter sazonal da economia amazonense”.

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No período da vazante, a enorme praia submersa na cheia abre espaço para que os diversos atores sociais assumam seus lugares no mundo das relações comerciais que nela se concretizam. Toda a extensão dessa praia é tomada por barcos dos mais diversos portes. Os maiores, de grande porte, de recreio, responsáveis pelas viagens que transportam diária e semanalmente pessoas e cargas para as mais diversas localidades da região, aportam nas balsas que servem de atracadouro para essas embarcações. A praia fica quase que totalmente tomada por caminhões que fazem a descarga de mercadorias para os barcos, caminhões de frete, pequenos carros de frete, carros particulares, já que na vazante é possível descer com o automóvel até a praia. O fluxo é intenso, mesmo com as precárias condições de tráfego na praia, principalmente quando chove.

Tudo é muito simples no porto de Manaus Moderna. Três grandes balsas servem de atracadouros para os barcos de viagens receberem e desembarcarem seus passageiros e cargas. Elas unem-se à terra firme por pontes de madeira e escadas de concreto, muitas deterioradas pela presença constante da água do rio Negro. Os guichês são guarda-sóis, a lanchonete é um trailer improvisado e o anúncio das partidas é feito com o apito dos barcos. As últimas chamadas são no grito e aumentam a correria por alguns instantes.

Cada balsa representa o lugar certo de cada barco aportar, elas são a referência para a população encontrar o barco procurado. São elas também, que determinam a localidade de origem e destino dos barcos. As 03 balsas, denominadas de “Balsa Amarela”, “Balsa do Boisão” e “Balsa do Produtor” são de propriedade privada, e, portanto cobram taxa pré-estabelecida de todos os atores que desempenham alguma atividade comercial que necessite do acesso as mesmas. Dos donos de embarcações é cobrada uma taxa que varia de acordo com o porte do barco e a periodicidade com que ele se utiliza da balsa. Dos pequenos comerciantes estabelecidos nas balsas com seus lanches é cobrada uma determinada taxa semanal. Dos carregadores de bagagens, para poder buscar seus clientes nos barcos é cobrada uma taxa diária de R$3,00.

Ressalte-se que a enorme quantidade de barcos, comerciantes e carregadores que pagam por esse serviço representam um lucro vultoso, que segundo os administradores das balsas é revestido para a manutenção das mesmas. Contudo, é visível o precário estado de conservação dessas estruturas, que se encontram enferrujadas, com fios da rede de energia passíveis de perigo para a população por estarem, muitas vezes, em contato com a água ou dispostos pela praia, além da precária condição das pontes de madeira que fazem a interligação das balsas com a praia, as mesmas não tem sequer corrimão.

Os preços das passagens no Porto da Manaus Moderna são entre 20% e 50% mais baratos do que no embarcadouro oficial (Estação Hidroviária), algo decisivo para quem vive às margens dos rios amazônicos. Isso porque, segundo dezenas de vendedores de passagens que circulam na calçada estreita da Orla, a negociação é feita direto com o dono do barco, sem os impostos cobrados no outro porto. Além disso, há outras "facilidades": o embarque é feito com mais agilidade, livre inspeções, cobrança de taxas ou limites de carga. Obviamente, é esse o principal motivo de a Manaus Moderna ter fama de ser o local de onde entra e sai de tudo.

As embarcações que não aportam nas balsas se colocam na extensão da praia, na vazante. São principalmente pequenas embarcações como, vendedores de gelo, vendedores de combustível, “voadeiras” de pequeno porte que fazem fretes, pequenas viagens e passeios para portos e locais próximos, os principais clientes dessa última são turistas. Elas ficam ancoradas na praia a espera de clientes.

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A realidade no porto da Manaus Moderna é de constante assédio pelos diversos tipos de comerciantes que oferecem seus serviços às pessoas que por ali circulam. São os carregadores de bagagens, são os carros de frete, são os vendedores ambulantes de alimentos, são os vendedores ambulantes de miudezas, são os donos de barcos chamando clientes, em fim, há uma conturbada inter-relação principalmente no interior dos barcos e das balsas, onde quase não se tem espaço para caminhar com segurança.

O espaço da orla também é território de contato com uma estranha mistura de pessoas com a areia poluída da praia, com a sujeira depositada em todo o espaço tanto da praia quanto da orla urbana e com os urubus. Nesse espaço também moram pessoas, e até famílias. Não somente aqueles que vivem no interior dos barcos, mas também aqueles que constroem pequenas tendas para se estabelecerem ali mesmo na praia ou nos espaços das escadarias. As escadarias, por sua vez, além de apresentarem perigo às pessoas, pois se encontram totalmente enferrujadas por ficarem certa época do ano submersas, os espaços embaixo das mesmas servem de depósitos de coliformes fecais e de compartimentos para guardar os pertences das pessoas que vivem e trabalham no porto da Manaus Moderna.

Na orla da esquecida Manaus Moderna pode ser constatado, mesmo pelos mais distraídos, toneladas de lixo, que acompanham a subida do rio, é uma verdadeira agressão aos olhos. Mesmo antes de chegar na Manaus Moderna é possível sentir o mau cheiro não só do lixo, mas também dos esgotos, que se misturam com a fumaça dos veículos e dos churrasqueiros que infestam aquele ambiente esquecido. Tudo isso é um prato cheio para atrair moscas e espantar os visitantes que se deparam com toda sorte de insetos, considerados pelos dirigentes locais como manifestações da natureza manauara.

Não se pode deixar de comentar a precariedade da infra-estrutura portuária da Manaus Moderna. O sistema viário fluvial, o atracamento do grande número de embarcações de vários portes, bem como os processos de carga e descarga, embarque e desembarque de produtos, bagagens e passageiros apresentam grandes desgastes aos trabalhadores e das pessoas em geral que utilizam os serviços realizados naquele ambiente. Destacam-se ainda, as especificidades nos períodos da cheia e da vazante dos rios, que minimizam ou acirram as dificuldades dessas atividades portuárias, obrigando carregadores e passageiros a entrarem na água para adentrarem às embarcações, pois as escadas de acesso às embarcações atracadas são escassas.

É um tanto contraditória a precariedade no porto da Manaus Moderna, visto que este porto representa importante função no contexto da globalização, na qual ele esta inserido, o que denuncia a omissão e o desleixo das políticas públicas voltadas para os problemas da orla fluvial de Manaus. Acerca disso, Oliveira (2003, p.146) ressalta que:

“[...] A pesar de, desde e sempre, o transporte fluvial se constituir no principal meio de circulação no Estado do Amazonas, o porto para embarque e desembarque de pessoas em barcos de pequeno porte sempre foi improvisado e precário”.

Segundo Oliveira (2003), data da década de 1950, o descaso e o conseqüente caos do porto da Manaus Moderna, período em que os barcos ancoravam na Cidade Flutuante, onde havia uma balsa que precariamente funcionava como ancoradouro. De acordo com este autor:

Pelo ancoradouro, em que tudo era transitório, chagava-se à cidade, sendo difícil identificar naquele lugar, à primeira vista, algo que a qualificasse como tal. A improvisação do local onde

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paravam barcos dava a quem chagava a impressão de que na cidade nada era perene, tudo era temporário, a movimentar-se, desordenadamente articulado. (OLIVEIRA 2003, p.147)

Isso retrata que desde sempre, e de lá para cá, não existiram políticas públicas voltadas para a melhoria infra-estrutural e da organização da orla. E ainda, o Porto da Manaus moderna, como porta de entrada e saída da cidade, explicita ainda hoje as contradições da cidade produzida desigualmente, sem parâmetros de investimentos públicos, dado o consumo coletivo das pessoas que utilizam. Ainda segundo este autor, “o porto, mais que ponto de chegada e saída, é um local de encontros e desencontros, esperanças e desesperanças e saudades sempre” (OLIVEIRA, 2003, p. 148). Muitas pessoas freqüentavam o porto não para viajar ou trabalhar, mas para se despedir, receber ou simplesmente conversar, ver o barco, saber notícias. Era o lugar por excelência para se obter informações do interior.

De acordo com Santana (2006), a Capitania dos Portos afirma que na Amazônia Ocidental, existem 45 mil embarcações; desse total, 35 mil só no Amazonas, porém apenas 20 mil estão registradas no órgão. Desse número cerca de 8 mil embarcações utilizam o porto da Manaus Moderna por mês, para serviços de embarque e desembarque de passageiros, bagagens e cargas. A maioria dos barcos, além de utilizar os rios para transporte, gera resíduos que são depositados diretamente na água.

No período da cheia, quando o nível das águas está mais acentuado, ocorre aglomeração de embarcações em condições precárias, isso se deve a ausência de atracadouros adequados para aportarem nessa época do ano. Chama-se atenção para a segurança, pois por ficarem muito próximas umas das outras, há a possibilidade de ocorrência de acidentes, principalmente pela formação de constantes banzeiros que fazem com que o emaranhado de embarcações se choque.

Diante do exposto, pode-se concluir que o porto da Manaus Moderna é um território contraditoriamente estratégico, tanto por sua característica de produção, comércio, circulação e consumo de produtos regionais, mas, sobretudo por sua condição de lócus da precariedade e do descaso público e da degradação ambiental. Tal contexto evidencia a dualidade dessa contraditória realidade que, por um lado, coloca a importância desse porto diante das funções estratégicas que exerce e, por outro, evidencia o abandono pelas políticas públicas principalmente em relação à infra-estrutura portuária e à degradação socioambiental.

Os carregadores e transportadores de cargas e bagagens

Historicamente a figura do trabalhador carregador de bagagens disputa o espaço de trabalho nos portos de Manaus. Eles fazem parte, portanto, da memória da cidade, no entanto, permanecem esquecidos sem sequer aparecerem nas estatísticas dos trabalhadores informais amazonenses. Num espaço sem quase nenhuma infra-estrutura pública, os carregadores de bagagens dividem o espaço do porto não apenas com outros trabalhadores, mas também, com a insalubridade do local. Nesse cenário, tais trabalhadores têm, de maneira improvisada, que se adequar a dinâmica da cheia e da seca dos rios e suas respectivas dificuldades. Segundo Caldas (2004) aqueles indivíduos, sem ofício e sem trabalho, que chagavam a Manaus por seus próprios meios e, que não se mostravam propensos a trabalhar nos seringais, iam ser carregadores e estivadores no Porto de Manaus.

Ao observador desatento pode parecer que o trabalho do carregador de bagagens é extremamente simples, baseado apenas na força física para o manuseio das cargas. Importa então evidenciar que este trabalhador em seu cotidiano articula conhecimentos construídos no exercício de seu trabalho, inserindo-se numa complexa malha de relações com aqueles que dividem com ele o espaço do porto -

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carregadores, proprietários das balsas, comerciantes, passageiros, e mais uma série de outras ramificações de trabalhadores que têm importância garantida para a dinâmica deste porto.

Para se analisar as condições de trabalho dos carregadores devem ser levados em cosideração os seguintes fatores: condições degradantes de trabalho, saúde, qualidade de vida a que estes sujeitos encontram-se expostos, ocasionadas e/ou agravadas pelo transporte inadequado do peso por entre as pontes dos barcos e as escadarias do porto e, sobretudo, ao condicionamento ao enorme esforço físico no qual se traduz o trabalho cotidiano. Submetidos a periculosidade de um trabalho que ao menor descuido pode acarretar acidentes que podem atingir não apenas a carga, mas, sobretudo o próprio trabalhador e, inseridos no contexto adverso que caracteriza o mercado de trabalho na atualidade, os carregadores de bagagens da Manaus Moderna estão sujeitos a um trabalho sem nenhuma proteção social. Contudo, tal problemática nunca apresentou muita visibilidade política e social, ficando secundarizada pelo poder público.

Não se trata aqui de romantizar a figura do carregador de bagagens como um elemento típico da realidade amazônida, mas de mostrar que este também é parte integrante da classe que vive do trabalho, uma vez que para Antunes (2005, p. 48-49) esta “compreende a totalidade [...] de homens e mulheres que vivem da venda de sua força de trabalho e são despossuídos dos meios de produção, não tendo alternativa de sobrevivência senão a de vender sua força de trabalho...”.

Para Martins (2000) “esse homem que luta para viver a vida de todo dia que trabalha não só às margens dos rios, mas que vive à margem da história”, merece ser colocado como pauta na agenda das políticas públicas e de organização/reivindicação social, pois este universo de trabalho sem nenhuma proteção trabalhista, sem ganhos fixos e em condições degradantes de trabalho expressa o distanciamento do Estado, no qual estas pessoas não se sentem representadas. Cabe pontuar também, que apesar de a categoria existir desde a formação dos portos, ainda encontra-se desorganizada e desamparada quanto a direitos.

Almeida (2005) destaca que destes, grande parte não usufruiu da modernização pela qual passou o Porto de Manaus com a privatização no início de 2002. Sob a insígnia da eficiência, da produtividade e da qualidade observou-se a privatização do antigo Roadway. No bojo desse processo os carregadores foram organizados em categorias, dentre as quais apenas os selecionados pelo sindicato poderiam atuar no novo porto. Assim, portanto, inúmeros carregadores foram obrigados a se deslocarem e passaram a disputar no Porto da Manaus Moderna outro espaço de sobrevivência.

Tal processo favoreceu de forma mais intensa a reprodução do capital e não as condições de sobrevivência e qualidade de vida das classes trabalhadoras que cotidianamente construíram naquele espaço suas condições de sobrevivência, podendo atuar naquele local somente os escolhidos pelo sindicato, o que aumentou a concorrência no Porto da Manaus Moderna.

A presença dos carregadores é imprescindível para a dinâmica do porto, uma vez que são eles que levam a mercadoria dos passageiros e viajantes das ruas para dentro dos barcos. Alguns impressionam pela força e destreza com que equilibram os produtos transportados, disputando espaço com os vendedores ambulantes de tudo quanto é tipo de mercadoria, que aproveitam a presença de milhares de pessoas para oferecer uma infinidade de produtos - óculos de sol, doces, salgados, frutas, biscoitos, panos de prato e de chão, rádios, fones de ouvido, DVDs, redes para dormir e mais uma série de artigos que sempre encontram sua utilidade na hora da partida. E ainda existe o comércio feito pelos próprios passageiros, que adquirem os produtos na capital do Estado por preços mais em conta e os revendem em suas cidades, fazendo dessas viagens um meio de sobrevivência.

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Caracterizando esses sujeitos na cadeia produtiva do caótico mundo da Manaus Moderna, os entrevistados somam um total de onze carregadores, todos do sexo masculino; 63,63% têm idades compreendidas entre 31 e 60 anos de idade; e 36,36% têm entre 18 e 30 anos de idade. Na verdade, a grande maioria dos carregadores não é composta por jovens.

Acerca do fato desse tipo de ocupação ser composta fundamentalmente por homens, Pochmann (2002, p. 73) revela que do total das ocupações abertas nos últimos 10 anos, quase sete milhões das vagas do trabalho no mercado formal foram ocupadas pelas mulheres. Somente 3,1 milhões dos postos de trabalhos gerados foram preenchidos por homens além do fato de que a ocupação do carregador, como o próprio nome já revela, requer fundamentalmente força e resistência física. Ao contrário da evolução positiva das ocupações femininas, os postos de trabalho assalariados masculinos tiveram baixa. Entre 1989 e 1999, houve a diminuição de mais de 500 mil empregos assalariados com registro ocupados pelos homens.

É primordial colocar também a origem desses trabalhadores portuários. Eles se originam principalmente de municípios do interior do Amazonas. Em termos percentuais temos: 72,72% do Estado do Amazonas, e 27,27% de outros estados, como o Pará e Maranhão. Apenas um dos carregadores entrevistados é natural da cidade de Manaus, e dos dez que migraram para esta cidade 54,54% já vivem na mesma há mais de 30 anos, e, para muitos deles todo esse tempo foi dedicado ao trabalho portuário degradante na beira-rio da cidade de Manaus.

Um dado interessante sobre esse assunto é que a maioria dos entrevistados, que se declarou amazonense, é do interior do Estado, isso revela que muitos deles migraram para a capital em busca de trabalho ou acompanharam parentes que também vieram com esse objetivo. Ainda é comum verificar esse tipo de êxodo. Dentre os municípios de origem dos carregadores, verificou-se a migração dos municípios de Tefé, Jutaí, Boca do Acre, Eirunepé, Maués, Tabatinga e Iranduba. Destaca-se ainda, que muitos migraram para a cidade com o advento da Zona Franca de Manaus e até conseguiram emprego nas indústrias, mas com o acirramento da competitividade do mercado perderam seus empregos e foram parar nos portos de Manaus como estratégia de sobrevivência.

Grande parte deles é composta por pais de família, têm em média 3 filhos, moram em sua maioria na Zona Leste, seguida da Zona Norte de Manaus, em bairros surgidos de invasões. Têm no trabalho como carregador a sua única fonte de subsistência e sendo os únicos provedores da família. Quando perguntados sobre o motivo da migração para Manaus, 63,63% dos carregadores responderam que vieram em busca de trabalho, 18,18% se mudaram com a família e, 9,09% vieram visitar parentes e acabaram ficando na cidade, conforme demonstra o gráfico a seguir.

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Motivo da migração

Acomp. família18,18%

Busca de trabalho63,63%

Visitar parentes e ficou9,09%

Acomp. família

Busca de trabalho

Visitar parentes e ficou

Gráfico 01: Motivo da migração para Manaus. Fonte pesquisa de campo, 2009.

Afirma Scherer (2005, p. 66) que nos anos dourados da Zona Franca de Manaus, a criação de novos postos de trabalho não foram suficientes para absorver a imensa demanda de trabalhadores e as conseqüências mais visíveis foram o desemprego e o crescimento do setor informal.

Tal conjuntura coaduna-se com os processos de transformações no mundo do trabalho, verificados a partir dos idos da década de 1970 as quais são dinamizadas pelo processo de globalização e expansão do neoliberalismo. Dentre as conseqüências desses processos evidencia-se a subproletarização do trabalho em suas distintas formas – parcial, temporário, subcontratado, precário, terceirizado, informal – que caracterizam a precarização do mercado de trabalho, levando a heterogeneização, complexificação e fragmentação da classe trabalhadora (ANTUNES, 2003).

Dessa forma, a informalidade demonstra a flexibilidade do atual mercado, imposta pelo novo modelo de trabalho decorrente da reestruturação produtiva (TAVARES apud ALMEIDA, 2005). Nesta linha, Scherer (2005), ressalta que começou a identificar os sinais da desestruturação do mercado de trabalho brasileiro, através da redução do salário destacado pela expansão do desemprego e do trabalho informal. Ocupações assalariadas com carteira assinada são aquelas com pleno direito, consagradas pela Constituição Federal de 1988, assim como pelas garantias expressas pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostra que, em 1992, os trabalhadores informais no Brasil representavam quase 52% dos trabalhadores. O índice subiu em 1999 e caiu um pouco em 2001 e em 2005. Mas nas metrópoles brasileiras a informalidade só subiu: de 24% em 1992 para 34% em 2005.

Quanto à escolaridade dos carregadores, a maioria não chegou a concluir o ensino básico ou até mesmo o médio. 36,36% são apenas alfabetizados, tendo freqüentado escola por pouco tempo. A esse respeito Pochmann (2002) ressalta que diante das novas tecnologias, identificou-se a elevação nos requisitos de contratação de trabalhadores por parte dos capitalistas, como também a necessidade de ampliação de escolaridade e da aprendizagem da força de trabalho. Segundo ele, este entendimento ampara-se no pressuposto de que a mudança técnica termina por alterar, entre outras coisas, o conteúdo do trabalho no interior da ocupação, passando a exigir, por sua vez, um outro tipo de qualificação, em geral mais complexa.

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Na pesquisa verificou-se que 100% dos entrevistados disseram já ter exercido outras atividades laborais, exercendo ocupação como industriário, ajudante de pedreiro, ajudante de caminhão, marítimo, pescador entre outras.

Isto leva-nos a inferir que,

“[...] a marca da reestruturação produtiva no Brasil é a redução de postos de trabalho, o desemprego dos trabalhadores no núcleo organizado da economia e a sua transformação em trabalhadores por conta própria, trabalhadores sem carteira assinada, desempregados abertos, desempregados ocultos pelo trabalho precário [...]” (MOTA, 2000, p. 35).

A redução dos postos de emprego, a crescente flexibilização do mercado de trabalho da Zona Franca de Manaus e a frágil ou inexistente qualificação profissional, dentro do contexto da globalização reforçam a permanência do carregador nos círculos de trabalho e da atividade portuária nos portos de Manaus.

Inseridos nesse contexto adverso do mundo do trabalho, os carregadores pesquisados sinalizam integrar o contingente daqueles impulsionados para a informalidade. De acordo com Santana (2006), o mundo do trabalho dos carregadores do Porto da Manaus Moderna, como na maioria dos portos, caracteriza-se por atividades extenuantes e degradantes. As longas jornadas de trabalho, o ganho incerto e a inexistência de proteção social definem o mundo do trabalho dessa categoria.

Segundo Filgueiras et.all (2004) pode-se considerar “o conceito de informalidade a partir da junção de dois critérios: ilegalidade e/ou atividades e formas de produção não tipicamente capitalistas”. De acordo com eles a informalidade abrange as atividades não regulamentadas pelo Estado, desprovidas das leis de proteção social e trabalhistas, inconstância na demanda e nos rendimentos, jornadas de trabalho extensas. Assim, a inexistência de amparo legal e retorno financeiro adequado, tornam frágil a manutenção das relações de trabalho que sustentam esses trabalhadores.

Antunes (1999) explica que essa nova morfologia do mundo do trabalho faz parte da tese de que o capital necessita “cada vez menos do trabalho estável e cada vez mais das mais diversificadas formas de trabalho parcial ou terceirizado, que são, em escala crescente, parte constitutiva do processo de produção capitalista”. Entende-se que a crescente informalização do trabalho, integra um processo maior outrora denominado por Antunes (2008) de desconstrução do trabalho, processo este que atende as necessidades de uma sociedade involucral. A precarização que se observa no mundo do trabalho caminha lado a lado com os números do desemprego. No concernente ao emprego com carteira assinada, 63,63% afirmaram nunca ter trabalhado com carteira de trabalho assinada. Apenas 36,36%, responderam já ter trabalhado com carteira de trabalho. Note-se que a redução do operariado industrial e fabril ocorrida nas últimas décadas, se deu ao mesmo tempo em que houve uma ampliação do trabalho precário.

No bojo de seu estudo sobre as metamorfoses da questão social, Castel (1997, 1998) denuncia o processo de desestabilização dos estáveis, da instalação da precariedade e do crescimento dos sobrantes, ou seja, daqueles que não tem mais lugar nesta sociedade. A estes últimos, com quase nenhuma chance de entrar e/ou retornar ao mercado de trabalho, resta viver o dia a dia numa busca incessante pela subsistência.

Afastados do segmento formal do mercado, estes trabalhadores vivenciam a precariedade na qualidade da atividade de vida, nas condições de trabalho, de salário e de organização da categoria. No

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caso especifico do mundo do trabalho dos carregadores do Porto da Manaus Moderna, como a maioria dos portos da orla de Manaus, seu cotidiano caracteriza-se por atividades extenuantes e injustas socialmente. Para Scherer (2005), tanto longas jornadas de trabalho, ganhos incertos e variados quanto à flexibilidade na obtenção da renda acompanhados pela inexistência de proteção social definem o mundo do trabalho na informalidade.

O gráfico abaixo expõe os anos de trabalho na Orla:

Tempo de trabalho na Orla

27,27%

9,09%

9,09%18,18%

36,36%6m a 1a

2 a 3 a

7 a 8a

10 a 20

mais de 20

a

Gráfico 02: Anos de trabalho na Orla da Manaus Moderna. Fonte pesquisa de campo, 2009.

A pesquisa demonstrou que a maioria dos carregadores entrevistados trabalha no local há mais de 20 anos, isso corresponde a 37,37% dos entrevistados, seguidos de 27,27% que trabalham de 10 a 20 anos no Porto. Os dados em análise permitem refletir que a informalidade não é uma questão nova, e que envolve grupos de trabalhadores com qualificação diferenciada.

Diante da escassez generalizada de vagas, a concorrência no interior do mercado de trabalho aumentou drasticamente, levando aquele que vivencia o desemprego passível de fazer qualquer coisa para sobreviver. Cabe pontuar também, a tendência utilitarista vigente, pela qual os trabalhadores são convidados a ‘se virar’ no mercado. Nesta visão a desigualdade, o desemprego é visto como natural e os indivíduos são ‘livres’ para assumir os riscos, as opções e as responsabilidades por suas ações numa sociedade desigual.

O atual modelo econômico produz o desemprego, gerando exclusão social de grandes proporções. Perde-se a dimensão coletiva da questão social, culpabiliza-se o individuo e não há alternativa de enfrentamento decente uma vez que essa situação resulta de uma opção política (POCHMANN, 2002).

No descompasso crônico entre o desenvolvimento econômico e social muitos são esmagados com uma carga horária excessiva. As longas jornadas de trabalho, atividades executadas sob o sol e a chuva intensos com baixo rendimento financeiro expõe a baixa qualidade de vida tanto do carregador quanto de outros trabalhadores naquele território. Acerca das horas de trabalho por dia, a pesquisa identificou: 45,45% responderam que trabalham até 12 horas por dia, 36,36% disseram que trabalham 8 horas e, 18,18% revelaram que trabalham 5 horas por dia. A não regulamentação de uma carga horária acrescenta-se à competição vigente entre os próprios carregadores. O depoimento abaixo elucida tal questão:

“[...] geralmente quando o barco chega, aí o carregador ‘vai em cima’ do passageiro que está, às vezes com uma bolsa, uma mala, uma caixa de peixe, aí já chega outro carregador empurrando:

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‘eu levo por 10!’, e o outro: ‘não eu levo por 5!’, aí começa a confusão. Tem muito carregador mal-educado, não tem orientação, você ta conversando com a pessoa e ele já chega tomando a sua frente”. (Informante C)

O relato em analise permite-nos inferir que, para Dejours (1988), a competitividade do trabalho engendra, definitivamente, mais divisões entre os indivíduos do que união. Mesmo se eles partilham coletivamente a vivência do local do trabalho, das condições que a própria estrutura do trabalho lhes impõe, o fato é que, os trabalhadores são confrontados um por um, individualmente na solidão, as violências da produtividade. Ianni (1992) corrobora com isso afirmando que a questão social atinge visceralmente os sujeitos numa luta aberta e surda pela cidadania.

Nesse ínterim, os trabalhadores do Porto da Manaus Moderna, além do trabalho penoso, arcaico e degradante que desempenham, ainda têm que pagar para desenvolver suas atividades no Porto da Manaus Moderna. Dos entrevistados, o percentual de 90,90% declararam ter que pagar uma taxa para trabalhar naquele local. Apenas 1 carregador respondeu que não paga nenhuma taxa. Na ocasião da pesquisa foi possível constatar que esta taxa é cobrada pelos donos das balsas para liberar acesso dos trabalhadores aos barcos lá atracados.

Seduzidos pela idéia de iniciativa individual como solução frente ao desemprego, envolvidos pelo discurso que ressalta a adaptabilidade, a participação e o envolvimento, grande parte dos trabalhadores esforçam-se por dar o máximo de sua capacidade psicofísica no trabalho. Para alguns, apesar de trabalharem sem nenhuma proteção trabalhista ou social, de serem praticamente invisíveis, defendem o fato de se ter liberdade para trabalhar nesse tipo de ocupação, como podemos verificar nos depoimentos a seguir:

”É a independência! Porque trouxe a minha independência, porque eu aqui lucro o meu salário e o meu horário de trabalho quem estipula sou eu mesmo.” (Informante A)

“Aqui nós não temos horário, eu trabalho por minha conta mesmo, no dia que eu não quiser vim eu não venho. No dia que você está cansado, que nem eu, chamo outro carregador: olha o patrão ta chamando ali para carregar, vai lá que eu não vou não, e às vezes o preço não combina também. (Informante B)

Entende-se que há uma tendência em deslocar questões públicas para o foro individual, desconsiderando que neste movimento encontra-se embutido a necessidade do capital de romper com a universalidade dos direitos. O olhar cuidadoso sobre o depoimento dos trabalhadores do porto da Manaus Moderna evidencia a pouca clareza das implicações desse processo. O relato em questão coaduna-se diretamente com a ‘idealização’ do trabalho por conta própria, presente em slogans como ‘seja seu próprio patrão’. Estes não parecem identificar como insalubres, como nocivas as condições e relações de trabalho que vivenciam cotidianamente.

Vejamos também no gráfico a seguir as respostas desses sujeitos quanto ao motivo que os levou a trabalhar como carregador:

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Gráfico 03: Porque decidiu trabalhar como carregador. Fonte: Pesquisa de campo, 2009.

A pesquisa revelou que 45,45% dos entrevistados declararam que decidiram trabalhar como carregadores pela possibilidade de ganho imediato; 27,27% responderam que foi mesmo pela falta de outras oportunidades de trabalho; 18,18% dos carregadores sinalizaram que foi por incentivo ou intermédio de conhecidos e, 9,09% disseram que decidiram trabalhar como carregadores pela independência e liberdade do trabalho sem patrão, sem normas e sem horário rígido.

Pesquisa do DIEESE1 (2000) demonstrou que, hoje, mais de 50% dos trabalhadores brasileiros, nas grandes cidades, estão ocupados com algum tipo de trabalho informal. Grande parte deles encontra-se sem registro de carteira, por conseguinte, sem garantias mínimas de serviços de saúde, sem direito ao FGTS, sem seguro desemprego e aposentadoria. Isto significa dizer que três em cada cinco brasileiros ativos das grandes cidades estão desempregados ou na informalidade, segundo as pesquisas. Destes últimos, parcelas significativas apresentam degradação das condições de trabalho e não têm qualquer tipo de seguridade.

Assim, para Scherer (2005) a condição de desassalariamento destes trabalhadores, em condições precárias de trabalho, os impossibilita de contribuir com a previdência social. Desse modo, as possibilidades de, num futuro próximo, ter direito à aposentadoria ou auxílio doença são remotas. Em contrapartida, a possibilidade de que sofram um acidente de trabalho ou que adquiram uma doença ocupacional é cotidiana.

Importante informação desta pesquisa é quanto ao peso que estes trabalhadores manuseiam diariamente: 72,72% (8) dos informantes declaram que carregam tudo - bagagens (malas ou bolsas dos passageiros), caixas com peixes, frutas, verduras, bebidas, gelo, ou qualquer outra coisa que aparecer. Para estes, “o que tiver vai”, independente dos riscos que esse transporte possa acarretar. Dentre os pesquisados 18,18% (2) indicaram que carregam apenas bagagens e, 9,09% (1) transportam apenas mercadorias de feirantes.

Destaca-se que, na grande maioria das vezes, o ambiente do trabalho informal não se encontra visível aos órgãos de fiscalização do trabalho, o que, de certa forma, contribui para que historicamente esta modalidade de trabalho se perpetue como perigosas e insalubres. Multiplicam-se nesses espaços fatores de risco para a saúde e a ausência de mecanismos básicos de proteção.

                                                            1 Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos sócio-econômicos. Dados obtidos em http//www.dieese.org.br.

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É preciso evidenciar que o mercado informal não é uma escolha, é um mundo que parece flutuar ao acaso das circunstâncias, sem explicitar suas relações com estruturas de poder e dominação. É um mundo no qual não existe contrato formal de trabalho, direitos sociais, representação profissional e sindical, é um mundo onde as necessidades e interesses não podem universalizar-se como demandas e reivindicações coletivas (SHERER, 2005).

São grandes as dificuldades vivenciadas pelos trabalhadores informais, em especial os carregadores do Porto da Manaus Moderna. Na luta pela sobrevivência eles esquecem todas as outras reivindicações de vida e de trabalho e, chegam até a secundarizar a luta pelos direitos relegando a segundo plano a própria saúde.

Os carregadores trabalham em média 12 horas por dia. Esse esforço diário tem como rendimento médio, cerca de R$ 80,00 ao final da jornada de trabalho. No porto da Manaus Moderna, os trabalhadores recebem como forma de pagamento cerca de R$ 2,00 em espécie pelo serviço de carga e descarga dos produtos, a cada ida e volta com a mercadoria na cabeça, independente da quantidade de material transportado numa caixa de madeira que serve como tabuleiro para ele transportar a carga.

De acordo com Pochmann (2002) em 1900, o tempo médio de vida de um brasileiro não superava os 40 anos de idade. Desprovido de um conjunto de regras de proteção social e trabalhista, o brasileiro, em geral, iniciava suas atividades laborais a partir dos 6 ou 7 anos de idade, especialmente no setor agropecuário. A partir disso, exercitava suas forças físicas e mentais até morrer, uma vez que o país ainda não contava com um sistema de aposentadoria ou de pensões voltadas para o financiamento da inatividade decorrente de acidentes de trabalho e de doenças profissionais. Atualmente a expectativa média de vida dos brasileiros é de 71,3 anos, para ambos os sexos, segundo dados do IBGE 2003. A esperança de vida estimada ao nascer no Brasil representou um aumento de 0,8 anos em relação à de 2000 (70,5 anos).

Como já citado anteriormente, 63,63% dos carregadores entrevistados nesta pesquisa encontram-se na faixa etária de 31 aos 60 anos de idade. Ressalte-se que a maioria desses anos dedicados ao trabalho degradante na orla da Manaus Moderna, tendo os ombros como instrumento de trabalho.

Vejamos qual a quantidade média de kilos que cada carregador manuseia em seu cotidiano: 36,36% dos carregadores afirmaram conseguir carregar até 90 kilos por carreto (viagem); outros 27,27% responderam carregar em média 50 kilos; 9,09% declararam carregar 100 kilos; outros 9,09% disseram carregar 150 kilos e 18,18% responderam carregar até 160 kilos por vez. Diante desta informação é preocupante o montante de peso que estes trabalhadores transportam diariamente. Alguns dos pesquisados (07) sinalizaram que ao final do dia de trabalho chegam a ter transportado 1 tonelada ou mais de kilos; outro carregador informou que chega a transportar até 600 kilos/ dia.

Não é difícil imaginar o que esse montante de peso causa na saúde desses trabalhadores. A maioria, sobretudo aqueles que têm mais tempo de trabalho desenvolvido nessa atividade, apresentam uma aparência envelhecida e cansada em decorrência da brutalidade de fatores como sol forte, chuva, peso excessivo, longa jornada de trabalho com pouco intervalo para descanso, isso tudo repetido todos os dias.

Ademais, além do excesso de peso que manipulam diariamente, chama atenção o fato de que todos os pesquisados, ou seja, 100% dos informantes declararam que só param de trabalhar na hora do almoço. Sem períodos regulares de descanso, com uma jornada de até 12 horas por dia e com uma

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alimentação de duvidosa qualidade, muitos trabalhadores do porto da Manaus Moderna vivenciam a deterioração gradativa de sua saúde.

Refletir sobre as condições de saúde dos carregadores de bagagens do Porto da Manaus Moderna remete-nos ao debate sobre a psicodinâmica do trabalho2, a qual tem implicações nos campo psicológico e sociológico. Fundada no final da II Guerra Mundial por um grupo de médicos-pesquisadores, inicialmente denominada psicopatologia do trabalho, esta tem por objeto o estudo clínico e teórico da patologia mental decorrente do trabalho. Nos últimos 15 anos esta abordagem ganhou novo impulso e recentemente adotou a denominação de “análise psicodinâmica do trabalho (FRANCO, 2004).

As condições de trabalho abrangidas por Dejours são:

“[...] ambiente físico, (temperatura, pressão, barulho, vibração, irradiação, altitude etc.), ambiente químico (produtos manipulados por vapores, gases tóxicos, poeiras, fumaça), ambiente biológico [...] as condições de higiene, de segurança e características antropométricas do posto de trabalho. (FRANCO apud DEJOURS, 2004)

Segundo Dejours apud Franco, os problemas psíquicos conduzem a uma fragilização que favorece a eclosão de doenças do corpo. Uma compreensão do sofrimento e das defesas contra a doença deve estar fundada num modelo no qual os trabalhadores permanecem sujeitos de seus trabalhos, pensam sobre a sua situação e organizam a sua conduta, seu comportamento e seu discurso, com uma coerência fundada na compreensão da condição de seu estado de trabalho. As defesas consistem nas estratégias coletivas de defesa que trazem a marca das pressões do trabalho.

Decerto que o trabalho assume papel central na vida do ser social. Porém, o trabalho com o advento da sociedade capitalista transformou-se gradativamente em fonte não de realização, mas de exploração e sofrimento. Para Dejours, o trabalho pode se tornar ora patogênico, ora estruturante. Este tem efeitos poderosos sobre o sofrimento psíquico, podendo contribuir sobremaneira para levar o indivíduo progressivamente à loucura ou para potencializá-lo, transformando-o, convertendo-o em prazer. (DEJOURS apud HIRATA).

Consciente da importância do trabalho na vida do ser social, a pesquisa procurou identificar os agravos de saúde relacionados ao trabalho dos carregadores de bagagens da Manaus Moderna. Assim, foi possível identificar que dentre os pesquisados 81,81% (9) responderam que têm ou já tiveram algum problema de saúde em decorrência de sua atividade laboral. Apenas 18,18% (2) dos participantes da investigação responderam que nunca tiveram nenhum problema de saúde relacionado ao trabalho.

Objetivando aprofundar as informações sobre tal questão, a pesquisa questionou-os acerca das doenças mais freqüentes entre eles.

                                                            2 O debate acerca da Psicodinâmica do Trabalho abordado neste estudo toma como referência a produção do médico do trabalho, psicanalista e psiquiatra francês, Christophe Dejours.

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Gráfico 04: Tipos de problemas mais freqêntes. Fonte: Pesquisa de campo, 2009.

Pode-se observar no gráfico em tela que 36,36% responderam já ter tido algum tipo de torção em decorrência do trabalho; 27,27 % disseram ter apresentado problemas na coluna; 9,09% já tiveram infecção intestinal e outros 9,09% foram vítimas de problemas musculares. Vejamos o que relatou um carregador a esse respeito:

”Já tive não, eu tenho! O problema que hoje me afeta é um é a coluna. Foi de um peso que eu carreguei aqui, quando a ponta da prancha estava alta, aí eu desci a minha perna para alcançar a balsa, foi quando a outra perna que estava em cima recebeu todo o peso que eu estava levando, aí eu fiquei com uma dor aqui na ‘cadeira’, aqui no final da coluna. Eu fiquei por três dias sem conseguir trabalhar, e eu ainda não consegui me recuperar, por isso que eu estou usando esta cinta. [...] Eu só trabalho nesse trabalho porque eu realmente preciso, necessito, mas desde quando eu adquiri esse problema, eu passei a usar essa cinta, é como eu consigo trabalhar, eu prefiro nem trabalhar se eu não tiver usando ela” (Informante A)

“Já presenciei um rapaz que foi transportar uma peça de madeira, aí ao baixá-la, não sei se foi por esquecimento dele, ou um descuido, ele deixou que ela caísse da mão dele tirando um dedo dele fora, decepou o dedo. Até que as pessoas responsáveis, hoje em dia, procuram trabalhar com um trabalho de qualidade, tomar cuidado com a bagagem do cliente, mas aqui acolá a pessoa se machuca, porque material de segurança nós não temos nenhum”. (Informante A)

Grande parte dos acidentes acontecidos no carregamento das cargas decorre da não utilização de equipamentos de proteção adequados. A maioria dos carregadores (90,09%) confessou que não usa nenhum tipo de proteção para o trabalho, apenas 1 carregador informou usar. A observação e contato com os pesquisados permitiram constatar, porém, que o que os mesmos consideram equipamento de proteção é uma rodilha de pano utilizada para apoiar as caixas com mercadorias sobre a cabeça, ou uma corda para segurar a carga nas costas.

De acordo com Cohn et al.(1985), o acidentado do trabalho se metamorfoseia de vítima em réu no mundo do trabalho, e de vítima em autor ou agente do próprio acidente. Essa afirmação insinua que o acidente de trabalho ocorre porque o trabalhador praticou algum ato inseguro na realização do seu trabalho, deslocando a questão para as condições inseguras de trabalho, que deveria ser de responsabilidade do capital (patrões). Mas no caso dos carregadores de bagagens, de quem seria a responsabilidade pelo acidente de trabalho? O trabalhador é o réu ou é a vítima?

A resposta para essas indagações têm várias vertentes, na verdade quem vai determiná-las são as relações sociais que se estabelecem entre os carregadores e seus clientes ou “patrões”, e vai depender,

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na maioria das vezes da boa vontade desses, pois não existe nenhum tipo de regulamentação, controle ou planejamento desse tipo de trabalho naquele local.

O cotidiano do trabalho desses sujeitos resume-se na morte lenta do corpo. Eles presenciam a morte lenta dos órgãos vitais básicos, instrumentos de trabalho necessários, que são responsáveis pela habilidade, pela destreza, pela acuidade visual e auditiva, pela racionalidade, pelo cálculo e pela locomoção, ações fundamentais para o exercício do direito ao trabalho, ao direito de ir e vir, ao direito à saúde, ao direito de ter uma qualidade de vida compatível com a dignidade humana.

Conforme Dejours (1988, p. 137), “o sofrimento é inevitável e ubíquo. Ele tem raízes na história singular de todo sujeito, sem exceção. Ele repercute no teatro do trabalho ao entrar numa relação, cuja complexidade já vimos, com a organização do trabalho”. Segundo este autor, condições de trabalho degradantes conduzem a uma fragilização que favorece a eclosão de doenças do corpo. Assim, identificou-se que o sofrimento no trabalho leva a construção de defesas pelo sujeito que lhe permitam controlar o sofrimento. Elas consistem nas “estratégias de defesa” que trazem a marca das pressões do trabalho.

No caso específico do mundo de trabalho do carregador de bagagens do Porto da Manaus Moderna, a estratégias que muitos desenvolvem para encarar o trabalho árduo é a injestão de bebida alcólica. O comércio desses produtos na orla da Manaus Moderna é constante. Proliferam-se por toda a parte barracas que vendem bebida alcólica. A injestão do alcool é um mecanismo utilizado pelos trabalhadores pesquisados para suportar o dia de trabalho penoso.

Para Dejours, o sofrimento pode tornar-se um instrumento para os trabalhadores desenvolverem uma ideologia defensiva funcional responsável por mascarar, conter ou ocultar uma ansiedade grave, principalemente pela falta de possibilidades para se mudarem ou aliviarem a origem dos problemas de saúde.

Contudo, também pode existir entre o trabalhador e seu trabalho uma relação de prazer. Como já citei, o trabalho pode se tornar ora estruturante, ora patológico para o trabalhador. Na realidade concreta e na vivência individual do tranbalhador, não se encontram apenas sofrimento e mutiliação. Assim, segundo Merlo (2007) a compreensão da maneira como se elaboram as duas facetas da organização do trabalho, isto é, aquelas que são respectivamente, fonte de sofrimento e de prazer, é indispensável para se tentar uma interpretação mais global dos laços entre trabalho e saúde e, também para se procurarem alternativas satisfatórias.

Apesar do trabalho pesado, a minoria dos entrevistados declarou sentir algum tipo de prazer ou divertimento no trabalho: foram 81,81% (9) de respostas positivas, contra 18,18% (2) respostas negativas.

Em suma, o prazer-sofrimento inscreve-se numa relação subjetiva do trabalhador com seu trabalho, o bloqueio da convivência com as singularidades pode levar à alimentação e/ou produção de um sofrimento, muitas vezes, mascarado por defesas, o que dificulta a identificação das suas causas e as possibilidades para sua transformação, imperando desta forma, no espaço de trabalho, o sofrimento e não o prazer.

Considerações Finais

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Neste trabalho envidou-se esforços para contribuir com a discussão acerca das condições de trabalho dos carregadores de bagagens do porto da Manaus Moderna, percorrendo em tal caminho, observamos que tais condições perpassam as condições de saúde e segurança no trabalho, proteção trabalhista e social, condições físicas do ambiente do trabalho desses sujeitos.

É notório que a cidade de Manaus é caracterizada pela dependência em relação aos rios, para a manutenção de suas atividades comerciais. Esse processo de interação é viabilizado pela existência de uma estrutura portuária e pelo próprio transporte fluvial. Contudo, no decorrer da investigação, foi possível constatar, a discrepante precariedade dos portos da cidade, característica da maioria das cidades amazônicas, principalmente do porto estudado. Este - o Porto da Manaus Moderna – apesar de sua importância comercial, expressa o descaso governamental e a inexistência de políticas públicas e de planejamento urbano, imprescindíveis dada a importância comercia deste porto.

Este porto é caracterizado pelo caos urbano e pela inexistência de uma infra-estrutura que possa ser chamada de porto, o que é agravado pela poluição ambiental. Pode-se dizer que sua característica básica é a improvisação, presente desde sempre. Lá se desenvolvem inúmeras relações sociais, cuja realidade frenética é de assustar. Em um ritmo agitado as pessoas espremem-se num ambiente caótico, sujo, com grande risco de acidentes.

Nesse território, a presença do carregador de bagagens é histórica. Disputando o espaço de trabalho de um ambiente sem nenhuma infra-estrutura pública, esses sujeitos dividem o espaço do porto com dezenas de outras categorias de trabalhadores, compartilhando a insalubridade do local. Nesse cenário, tais trabalhadores têm, de maneira improvisada, que se adequar a dinâmica da cheia e da seca dos rios, que assim como o cotidiano da vida amazônica, é determinado pelas condições naturais, ou seja, pelo ecossistema da cheia e da vazante dos rios da Amazônia, com suas especificidades

Quando se fala em violência do trabalho, estou me referindo às duras condições a que este trabalhador está submetido, constantemente condicionado ao esforço físico e a frágil qualidade de vida, marcada pela ausência de proteção trabalhista e/ou social, ou seja, a mercê da própria sorte.

Esses trabalhadores, como a grande maioria dos brasileiros que trabalham no mercado informal, não dispõe das mais rudimentares proteções das leis trabalhistas ou previdenciárias. Tais pessoas, quando adoecem, por exemplo, não contam com uma licença remunerada para tratar da saúde; quando envelhecem, não têm direito a aposentadoria; e depois da morte não deixam nenhum amparo aos seus descendentes.

A desproteção do mercado informal é um fenômeno desumano. Trata-se de uma das mais duras formas de exclusão social. Assim é o mercado de trabalho do Brasil. Ele está dividido em dois mundos: o dos "incluídos", referentes aos 40% que se protegem pelas leis trabalhistas e previdenciárias e o dos "excluídos", referentes aos 60% que vivem em permanente incerteza.

Desta forma, o mundo do trabalho dos carregadores do Porto da Manaus Moderna, como na maioria dos portos, caracteriza-se por atividades extenuantes e degradantes. As longas jornadas de trabalho, o ganho incerto e a inexistência de proteção social definem o mundo do trabalho dessa categoria.

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À margem do segmento formal do mercado, estes trabalhadores vivenciam a precariedade nas atividades que desenvolvem, na qualidade de vida, nas condições de trabalho, de salário e de organização da categoria. No caso especifico do Porto da Manaus Moderna, como a maioria dos portos da orla de Manaus, seu cotidiano caracteriza-se por atividades extenuantes e injustas socialmente. Tanto longas jornadas de trabalho, ganhos incertos e variados quanto à flexibilidade na obtenção da renda acompanhados pela inexistência de proteção social definem o mundo do trabalho na informalidade.

Disso concluiu-se que para alguns, apesar de trabalharem sem nenhuma proteção trabalhista ou social, de serem praticamente invisíveis, defendem o fato de se ter liberdade para trabalhar, nesse tipo de ocupação, até porque é dali que tiram seu sustento.

Identificou-se com a pesquisa que, multiplicam-se nesses espaços fatores de risco para a saúde e a ausência de mecanismos básicos de proteção. É preciso evidenciar que o mercado informal não é uma escolha, é um mundo que parece flutuar ao acaso das circunstâncias, sem explicitar suas relações com estruturas de poder e dominação. É um mundo no qual não existe contrato formal de trabalho, direitos sociais, representação profissional e sindical, é um mundo onde as necessidades e interesses não podem universalizar-se como demandas e reivindicações coletivas.

Em suma, o presente trabalho buscou aproximar-se da realidade dos trabalhadores portuários,

identificando as conseqüências nefastas do trabalho precário do carregador de bagagens, as principais doenças que afetam esses trabalhadores em conseqüência do trabalho. No esforço de detalhar as condições de trabalhos a que esses trabalhadores estão condicionados diariamente, bem como as situações de vulnerabilidade que esse tipo de trabalho impõe, entendeu-se, o que HOBSBAWN (1995) nos sinalizou claramente: que vivenciamos um momento histórico que “nos ensinou, e continua a ensinar, que os seres humanos podem aprender a viver nas condições mais brutalizadas e teoricamente intoleráveis”.

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