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O Mundo Em Desordem

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Fichamento.

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  • O mundo em desordem

    Le Corbusier: A nova ordem da Arquitetura

    A arquitetura e o urbanismo tinham uma misso social, de carter estratgico: superar o desnvel entre a esfera da modernidade, expressa nas tecnologias da industria, e a

    esfera do atraso, materializada nas cidades informes e nas residncias populares

    arruinadas. A escolha verdadeira das sociedades era entre arquitetura e revoluo. Uma

    ou outra.

    A alternativa conformava o ttulo de um artigo publicado naqueles anos. No texto, o arquiteto enfatizava a fenda entre a riqueza dos espaos da vida produtiva, atravessados pela modernidade e pela exposio aos novos bens de consumo, e a

    pobreza, to material quanto simblica, dos espaos consagrados vida familiar e ao

    lazer.

    Gropius se manteve propositalmente afastado das polmicas polticas. Le Corbusier, por outro lado, considerava-se o agente de uma reforma poltica do mundo que operava

    por meio da arquitetura. Da cidade contempornea, de 1922, ao plano da cidade radiosa, de 1935, h uma crucial mudana de fundo. Na primeira, os bairros residenciais se segregavam segundo linhas de renda; na segunda, as moradias se

    distribuam de acordo com o tamanho das famlias. O arquiteto separava-se da viso

    liberal, definindo uma posio claramente favorvel a uma interveno estatal coercitiva

    na planificao urbana. Na base dessa interveno estava a possibilidade de mobilizar a

    terra urbana de acordo com aquilo que o Estado definiria como o interesse coletivo.

    A nova arquitetura rejeitava a organicidade: a tradio medieval e sua releitura romntica. O passado devia ser ultrapassado, no reinventado. A arquitetura tinha a

    misso de mudar o mundo.

    Em busca da autoridade

    A mais importante das conferncias da arquitetura moderna discutiu a cidade funcional, estabelecendo um programa urbanstico que teria ampla e duradoura influncia.

    Ao longo dos anos 20, Le Corbusier moveu-se numa direo ideolgica que seduzia inmeros intelectuais da poca: a defesa de um Estado forte e de uma organizao

    corporativa ou comunitria da sociedade. O comunismo sovitico e o fascismo italiano

    continham elementos significativos de sua viso de mundo.

    A invocao de um poder forte, de um plano central capaz de produzir ordem, libertando a sociedade dos impulsos da concorrncia e da seduo do mercado, o trao

    comum das diferentes tendncias representadas no CIAM.

    O movimento da arquitetura moderna no surgiu do nada, como um raio no cu limpo. A praa modernista, ampla e aberta, sem rvores, imaginada como ponto de

    contemplao das edificaes que a circundam, bebeu nas fontes da praa medieval e da

    praa renascentista a Piazza del Campo, de Siena, e a Pizza della Signoria, de

  • Florena. J o conceito da cidade-modelo do IV CIAM sofreu influncias diversas de

    projetos de renovao urbana do sculo anterior.

    O mais notrio o plano de renovao de Paris encomendado por Napoleo III e dirigido pelo prefeito Georges-Eugne Haussmann entre 1852 e 1870, com sua rede de

    largas avenidas de circulao e sua rgida regulamentao de aletura e recuo das

    edificaes. No mesmo perodo, Viena conhecera sua reforma urbana, articulada em

    torno da abertura da Ringstrasse, o grande anel circular que surgiu no lugar dos antigos

    muros da cidade, e ps-se no papel o plano da Cidade Nova de Barcelona, com seu

    desenho de quadrculas e ngulos chanfrados, finalmente realizado na primeira dcada

    do sculo XX. Fora da Europa, nas colnias britnicas e francesas, multiplicavam-se as

    experincias de planejamento urbano baseadas nos critrios da circulao eficiente e em

    padres repetitivos de volumes e formas.

    Contudo, o movimento liderado por Le Corbusier promoveu uma operao de descontextualizao, por meio da criao de um modelo urbano ideal, despido de

    histria. Na Carta de Atenas, a cidade ideal se organiza pela definio conceitual e separao espacial de quatro funes bsicas: produo, habitao, lazer e circulao. A ltima das

    funes articula as demais segundo regras de eficincia. O sistema de zoneamento

    evidencia a presena, lado a lado, de uma cidade-instrumento, uma cidade-dormitrio e

    uma cidade-espetculo. Todo o conjunto se assenta sobre um plano ordenado, regido

    por uma geometria simples e uma lgica matemtica.

    A cidade modelar de Le Corbusier ganhou formatos diversos, mas conservou uma estrutura bsica imutvel, expressa no zoneamento funcional, nos cintures verdes de

    separao entre zonas, nos arranha-cus do ncleo comercial, nos blocos residenciais

    repetitivos e nas vias elevadas de circulao. Os planos verdadeiramente faranicos do

    arquiteto para Argel traduzem essa estrutura na forma da cidade linear costeira,

    articulada em torno de um viaduto com extenso de vrios quilmetros, que abrigaria,

    em pavimentos distintos, escritrios, lojas, restaurantes, clulas residenciais e vias de

    circulao de pedestres.

    Braslia, cidade descontextualizada

    No relatrio do Plano Piloto de Braslia, escrito para a Comisso Julgadora do concurso

    da nova capital, Lcio Costa esclarece que a cidade propriamente dita (...) no ser (...) uma decorrncia do planejamento, regional, mas a causa dele: a sua fundao que dar

    ensejo ao ulterior desenvolvimento planejado da regio e conclui: trata-se de um ato deliberado de posse, de um gesto de sentido ainda desbravador, nos moldes da tradio

    colonial. A sntese encontrou expresso na frase mais clebre do texto, segundo a qual a concepo urbanstica de Braslia nasceu do gesto primrio de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos em ngulo reto, ou seja, o prprio sinal da cruz.

    O Brasil deveria ser refundado e comear de novo a sua histria, inscrevendo-a num mrmore limpo, isento das marcas do passado.

    A bela pea retrica, equilibrada entre as chaves pica e lrica, apresenta a proposta como uma iluminao genial. A Braslia de Costa no era relacionada nem histria

    brasileira nem s demais cidades do pas. A nica meno ao passado brasileiro so as

  • palavras finais do texto, que entretanto constituem uma aluso de natureza mtica a Jos

    Bonifcio de Andrada: Braslia, capital area e rodoviria; cidade parque. Sonho arquissecular do Patriarca. A descontextualizao atingia um pice.

    A mais acurada crtica histrica da concepo urbanstica de Braslia se deve ao antroplogo James Holston. Ele evidencia que o relatrio de Costa funcionava como um

    jogo de ocultao.

    O urbanista justificou sua concepo evocando a simbologia da cruz, que remete a signos csmico de um tempo mtico, e a forma do triangulo equiltero, expressamente

    relacionada a padres arquitetnicos de uma remota antiguidade.

    Braslia no uma mera verso, mas uma inveno. Contudo, a sua originalidade est firmemente enquadrada no rgido programa normativo da arquitetura moderna.

    O conceito de uma cidade igualitria, na qual estratos sociais diversos convivessem nos mesmo espaos de moradia, foi adotado por Le Corbusier na fase da cidade radiosa. Era uma ideia cara a Costa, e mais ainda a Niemeyer, que ainda jovem se filiara ao Partido Comunista Brasileiro e estabelecera laos com a corrente da

    arquitetura social sovitica. O plano de Braslia a aplicava s superquadras, os blocos residenciais de vizinhana nos quais deveriam habitar, sem distines, os diferentes

    escales da burocracia federal.

    As superquadras no expressavam apenas o conceito da igualdade, mas tambm o da comunidade. Na superquadra tpica, da qual s subsistem dois ou trs exemplares em

    Braslia, os blocos residenciais compartilham o comrcio local, uma escola bsica, uma

    igreja e um clube de vizinhana. A comunidade assim constituda, pela fora da

    concepo urbanstica, teria o papel de socializar e integrar pessoas de estratos sociais

    contrastantes, funcionando, como um modelo para o conjunto da sociedade.

    Braslia, registra Holston, foi planejada por um liberal de centro-esquerda, seus prdios foram desenhados por um comunista, sua construo foi feita por um regime

    desenvolvimentista, e a cidade consolidou-se sob uma ditadura burocrtico-autoritria,

    cada qual reivindicando uma afinidade eletiva com a cidade. A meta comum a todos esses agentes, a afinidade eletiva geral, encontrava-se inscrita na concepo da nova capital: fazer a ordem, de cima para baixo, por meio de um ato voluntarista de Estado

    que se apresenta como imperativo da razo. Ou, em outras palavras, salvar a sociedade

    de si mesma, retificando-a por uma tcnica que substitui a revoluo.