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O MUNDO NO QUAL O BRASIL SE INSERE HOJE: CAPITALISMO, INTERNACIONALISMO, SOCIALISMO PEDRO PINCHAS GEIGER 1 Universidade Federal do Rio de Janeiro A espécie é um real abstrato que se realiza por intermédio de seus indivíduos, estes sendo reais materializados. Porém, os indivíduos só se reproduziam através da espécie (LEFEBVRE, 1947). Do mesmo modo, as instituições humanas, como a família, a tribo, a nação, são coisas concreto- abstratas, que se realizam por meio de seus membros individuais. Mas é pelas instituições que se realiza a reprodução da cultura dos indivíduos. O mundo também é um real concreto-abstrato que se realiza pelos lugares, pelos indivíduos e pelas instituições, que mantêm permanentes intercâmbios. Compreender um indivíduo, ou uma instituição, requer conhecer o mundo em que eles se inserem e seus intercâmbios. Compreender o Brasil, um ente geográfico socialmente criado, requer conhecer o mundo em que se insere e os laços que mantém com o mesmo. Esse é um dos sentidos do presente texto. Acontecimento é o termo que expressa o aparecimento de um ser, de um objeto ou de um fato. Ocorre uma única vez (DELEUZE e GUATTARI, 1992). Um Moisés, um Platão, um Picasso aconteceram uma vez. A erupção do Vesúvio, com a destruição de Pompéia, aconteceu uma vez. O descobrimento do Brasil, em 21 de abril de 1500, também foi um acontecimento, ocorreu uma vez. Um acontecimento pode se identificar com um ato de imanência. Por exemplo, a invenção do tear, ou a invenção da máquina a vapor, é um ato de imanência. O acontecimento também pode resultar de um movimento de transcendência. A descoberta do Brasil transcendeu o movimento do intercâmbio que utilizava o caminho marítimo entre Portugal e as Índias. 1 Geógrafo, Pesquisador Sênior do CNPq 26

o Mundo No Qual o Brasil Se Insere Hoje, 2009

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o mundo no qual o Brasil se insere

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  • O MUNDO NO QUAL O BRASIL SE INSERE HOJE: CAPITALISMO, INTERNACIONALISMO, SOCIALISMO

    PEDRO PINCHAS GEIGER1Universidade Federal do Rio de Janeiro

    A espcie um real abstrato que se realiza por intermdio de seus indivduos, estes sendo reais materializados. Porm, os indivduos s se reproduziam atravs da espcie (LEFEBVRE, 1947). Do mesmo modo, as instituies humanas, como a famlia, a tribo, a nao, so coisas concreto-abstratas, que se realizam por meio de seus membros individuais. Mas pelas instituies que se realiza a reproduo da cultura dos indivduos. O mundo tambm um real concreto-abstrato que se realiza pelos lugares, pelos indivduos e pelas instituies, que mantm permanentes intercmbios. Compreender um indivduo, ou uma instituio, requer conhecer o mundo em que eles se inserem e seus intercmbios. Compreender o Brasil, um ente geogrfico socialmente criado, requer conhecer o mundo em que se insere e os laos que mantm com o mesmo. Esse um dos sentidos do presente texto.

    Acontecimento o termo que expressa o aparecimento de um ser, de um objeto ou de um fato. Ocorre uma nica vez (DELEUZE e GUATTARI, 1992). Um Moiss, um Plato, um Picasso aconteceram uma vez. A erupo do Vesvio, com a destruio de Pompia, aconteceu uma vez. O descobrimento do Brasil, em 21 de abril de 1500, tambm foi um acontecimento, ocorreu uma vez. Um acontecimento pode se identificar com um ato de imanncia. Por exemplo, a inveno do tear, ou a inveno da mquina a vapor, um ato de imanncia. O acontecimento tambm pode resultar de um movimento de transcendncia. A descoberta do Brasil transcendeu o movimento do intercmbio que utilizava o caminho martimo entre Portugal e as ndias. 1 Gegrafo, Pesquisador Snior do CNPq

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  • Acontecimentos, imanncias e transcendncias se integram em processos, nos quais exercem funes para seus desenvolvimentos. A rigor, o mundo passa por um processo nico, universal, que teria se iniciado com o big bang. Desde ento, esse processo foi se desdobrando em processos diferenciados, tornando o mundo cada vez mais complexo. O surgimento do homem desencadeou o processo social, que por sua vez passou a se desdobrar em diferentes subprocessos, cada um adquirindo graus de autonomia e, por isso, designados tambm, simplesmente, de processos. Os acontecimentos ocorrem, cada um, num devido lugar. Quanto aos processos, eles assumem dimenses locais, regionais ou universais. Vulcanismo um processo universal que se manifesta em diversas regies da Terra, mas cada erupo e cada vulco se constituem num fenmeno local.

    A solidificao do modo de produo capitalista foi um processo que dependeu da integrao de acontecimentos, como a inveno da mquina, das formas de movimentos de intercmbio entre Inglaterra, Flandres e Pases Baixos e de suas extenses, abrangendo outras regies e o mundo (MARX e ENGELS, 1996; WOOD, 2000). O intercmbio estabelece elos entre acontecimentos e processos, entre imanncias e transcendncias, entre o singular, o particular e o universal. Ele move a histria. A teoria marxista v o processo como um complexo de interaes, no qual se estabelecem contradies. O movimento do processo ento direcionado segundo as convergncias e as divergncias oriundas das contradies. A teoria marxista no aceita a ideia de fatores no processo social, uma vez que cada fora social influenciada por todas as outras. Aceita a ideia de uma hierarquia nas contradies, a existncia de uma contradio maior e de contradies menores.

    O Brasil, como um corpo, territorializado, apresenta dois lados. Um, o interior, a fonte de foras imanentes produzidas pelas sociedades que foram sendo estabelecidas no territrio brasileiro. O outro, o exterior, exibe as relaes internacionais, transcendentes, mantidas com o mundo exterior. A histria do pas uma histria da realizao desses dois lados (RANGEL, 1981).

    O momento atual mostra o Brasil vivendo uma transio acentuada, para a qual convergem e interagem as foras nacionais internas e as foras oriundas de suas relaes internacionais. As foras internas se referem ao elevado grau de crescimento econmico e social do pas. As foras externas se referem densidade crescente das relaes do pas com outros

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  • pases, em todas as instncias. Dessa convergncia e interao resulta o Brasil se elevar de posio no chamado mundo globalizado. Note-se que globalizao no cobre apenas relaes internacionais realizadas no nvel das instituies. Elas incluem relaes entre indivduos pelas redes internacionais da internet. Os indicadores brasileiros quanto a domiclios providos de computador pessoal e quanto a acesso internet figuram entre os maiores do mundo. O Brasil expande sua presena nos mercados mundiais econmicos e culturais, e se empenha na conquista de posio hierrquica mais elevada no concerto poltico internacional. O presente trabalho busca justamente focalizar as condies do mundo onde o Brasil est inserido. Um quadro a ser compreendido, ante as opes a serem tomadas pelos cidados e pelos governantes, frente a questes de natureza comercial, ideolgica ou poltica. Particularmente agora, quando o mundo entrou numa fase de aguda recesso econmica e financeira desvelada desde meados de 2008. Uma crise que se reflete em todas as instncias sociais e cuja sada trar, certamente, um mundo modificado economicamente, politicamente e geograficamente. A crise atual est sendo comparada, em termos de abrangncia universal e dimenso das perdas de capital e empregos, depresso mundial dos fins da dcada de 1920. Esta prolongou a recesso at desembocar na Segunda Guerra Mundial. A crise atual sucede a um longo perodo de inovaes tecnolgicas e de acumulao capitalista, iniciado no ps-guerra, embora entrecortado por momentos de recuos e de graves crises locais.

    O texto, portanto, enfatiza aspectos das transies do modo de produo capitalista ocorridos desde os anos 1930 e dos ensaios diversos para a introduo de regimes de natureza socialista. Esses movimentos foram marcados pelo desenvolvimento de novas formas de colaborao internacional, entre governos, entre organizaes pblicas e privadas, e condutoras para uma nova ordem sistmica denominada globalizao. Desenvolvimentos que compreendem, igualmente, a persistncia de conflitos de antiga origem, que se juntam a novos, para dar margem a movimentos antissistmicos. Movimentos antissistmicos que se dividem entre os que se ope a qualquer forma de globalizao, a qualquer tendncia de maior mixagem de culturas e de internacionalizao, e aqueles que se batem por uma outra globalizao.

    O prprio termo globalizao, com as razes globo e ao, tem suscitado polmicas. Correntes de historiadores tm contestado seu uso restrito contemporaneidade, sob a alegao de que sempre existiram intercmbios entre todos os pontos da Terra. Concedendo que at o sculo

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  • XVI as Amricas e outras partes do mundo se encontravam fora dos circuitos normais, uma chamada corrente quinhentista admite o termo globalizao vlido apenas para depois dos grandes descobrimentos.

    Contudo, so encontradas justificativas para o emprego restrito do termo globalizao para os tempos atuais. No apenas pela densidade e pela velocidade alcanadas pelas atuais redes sociais, conectando todos os tipos de instituies, e sustentadas pela informtica e pelos satlites artificiais que permitem, inclusive, transmisses ao vivo. Nem pelos trilhes de divisas que circulam diariamente entre os principais mercados mundiais. Nem pelo fato de que massas annimas se comunicam entre si, individual, nacional e internacionalmente. O argumento principal muito simples. O termo globalizao est internalizado na populao comum, que o utiliza como a expresso de um mundo mais aberto e de intercmbios em todos os nveis e em todas as instncias.

    A entrada de bilhes de indivduos em sistemas de comunicao direta, via internet, evoca mensagem de Marx e Engels:

    exatamente esta unio de indivduos (pressupondo naturalmente as atuais foras produtivas desenvolvidas) que coloca sob seu controle as condies livres de desenvolvimento e de movimento dos indivduos condies que at agora encontravam-se merc do acaso (1996:112-118). O ponto de vista do velho materialismo a sociedade civil; o ponto de vista do novo a sociedade humana dar a humanidade socializada (1996:128).

    Os dois autores consideravam que qualquer modo de produo se move no sentido de atingir uma plenitude e formar uma totalidade. Totalidade representada pelo envolvimento de todas as instncias sociais e por sua expanso no sentido de ocupar todo o planeta. Plenitude e totalidade a ser alcanada no interior de um intercmbio universal. O capitalismo teria amealhado o maior poder de fora para atingir tal plenitude, porm no conseguiria ultrapassar um limite, dada a falta de totalidade de capacidades. Essa falta residiria na diviso interna do capitalismo, entre capitalistas individuais, de modo que s a introduo do socialismo traria as possibilidades de uma plenitude total, atravs da eliminao de produtores individuais (1996:105).

    Compreende-se ento a ideia de Marx e Engels quanto mudana para o socialismo s poder se iniciar em um pas de capitalismo avanado,

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  • mais prximo de totalidade, mas incapaz de alcan-la por si mesmo. Embora no tivessem formalizado a expresso formao econmica e social (SERENI e LUPORINI, 1974), ela estava implcita na concepo de Marx e Engels quando distinguem pases de capitalismo mais avanado de outros, ou quando tratam de transies no capitalismo, na busca de uma plenitude ou totalidade. Como na declarao de que a autonomia do Estado ocorre hoje em dia apenas naqueles pases onde estamentos ainda no se dissolveram totalmente at se transformarem em classe (1974:98). A opo de Marx e Engels pelo proletariado se fundamentava no fato de que este no teria nada a perder com seu despojamento de classe, tornando-se o mais apto a liderar um movimento por maior humanizao. Em suas vises do movimento social, os dois autores j introduzem a ideia de um sentido, tema central do pensamento heideggariano.

    Compreendem-se, tambm, as deturpaes originadas da ideia da totalidade e presentes na proposio totalitria, como se regimes censores de intercmbios livres entre os homens pudessem alcanar alguma plenitude.

    A instalao de um modo de produo no se d no vazio. Ela se d envolvendo estruturas sociais j existentes, a serem transformadas ou ajustadas. Transformaes e ajustes so contnuos, produzindo o quadro histrico real de uma sociedade, a cada momento. Isto , modo de produo se refere a formas estabelecidas nas relaes sociais de produo de uma sociedade. No capitalismo elas separam proprietrios de meios de produo, de um lado, e trabalhadores, operadores dos meios de produo, em troca de salrios, do outro. Trata-se, portanto, de um modelo, abstrato. J a formao econmica social expressa a realizao concreta, materializada, do modo de produo, j que considera as interaes que o modelo provoca em todas as instncias. A formao apresenta, a cada momento, no s a evoluo das formas resultantes dos encontros de um novo modelo de relaes de produo com o quadro social herdado do passado, como a influncia dinmica do prprio processo, alterando continuamente os aspectos do modo de produo vigente. Considere-se, por exemplo, a expanso no capitalismo moderno do setor de gestores do capital e da produo. Estes no so operadores manuais, nem burocrticos, da produo, mas, tambm no so, propriamente, os proprietrios dos meios de produo. Denominam-se de transies as fases pelas quais um mesmo modo de produo vai passando, atravs das alteraes nas suas formaes. Um aspecto da atual globalizao consiste justamente no transbordamento do modelo do capitalismo americano sobre

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  • o mundo (HARDT e NEGRI, 2001). Modelo que Marx considerou o exemplo mais acabado de Estado moderno (MARX e ENGELS, 1996:98). Transbordamento que provocou fortes mudanas nas demais formaes, conduzindo transies no capitalismo mundial.

    Portanto, as formaes econmicas e sociais se diversificam no espao e no tempo. No interior de uma delas, pode ter incio a germinao de um novo modo de produo cujo desenvolvimento depender de sua capacidade de expanso. Tal quadro tem levado a uma reassuno crescente da dimenso geogrfica no pensamento da cincia social, necessria para a compreenso da histria (SOJA, 1993). Nessa linha, Milton Santos props acrescentar a palavra espacial designao da formao social: formao econmica, social e espacial. Julga-se tal medida, no entanto, imprpria, por criar na prtica um pleonasmo O termo formao j significa movimento espacial e temporal. A palavra forma a terceira pessoa do singular do presente do verbo formar e o substantivo forma (HEIDEGGER, 1966). Se acrescentar espacial, por que no acrescentar, tambm, e temporal?

    I. Transies no capitalismo. Surgimento do Estado socialista. A Segunda Guerra Mundial

    Desde os meados do sculo XIX acentua-se significativamente uma transio no modo de produo capitalista. Destaca-se a introduo do telgrafo, o crescimento crescente do setor financeiro e a presena do capitalismo americano. Por outro lado, em 1917, em meio Primeira Guerra Mundial, nascia a Unio das Repblicas Socialistas Soviticas (URSS) ou Unio Sovitica.

    1. O crescimento do setor financeiro. O setor capitalista financeiro se concentrou inicialmente na Inglaterra, apoiado sobre a sua economia industrial exportadora. Londres se tornou o principal centro financeiro mundial e a maior metrpole mundial. Investimentos industriais passaram a fluir de pases capitalistas para outros pases capitalistas, assim como para suas colnias e para pases independentes da periferia. A fbrica onde Marx colheu o material utilizado em O capital, situada na Inglaterra, pertencia famlia de Engels, na Alemanha.

    No Brasil, no comeo do sculo XX assistiu-se entrada da empresa Light & Power, com capitais iniciais de cerca de 10 milhes de dlares, na

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  • poca o maior investimento estrangeiro no pas. A novidade: o capital estrangeiro no se restringia mais produo agroindustrial, a frigorficos de carne, usinas de acar ou de leo, o que j acontecia desde a segunda metade do sculo XIX. Nem se destinava apenas a equipar o pas com ferrovias e portos para atender exportao dos produtos de origem agrcola, ou mineral, consumidos nos pases do centro. Agora o capital estrangeiro passava a participar do desenvolvimento urbano e industrial de um pas perifrico. O investimento da Light se voltou para as duas grandes cidades brasileiras da poca, Rio de Janeiro e So Paulo, e se estendeu a capitais estaduais e diversas cidades mdias, introduzindo energia, transporte, comunicaes, gua e esgoto urbanos. Mantendo monoplios sobre esses servios durante anos, o carioca apelidou a Light empresa de investidores americanos, ingleses e canadenses sediada em Toronto de polvo canadense. A Light serviu de alvo no desencadeamento de movimentos nacionalistas urbanos, mas teve papel fundamental na modernizao da vida urbana brasileira e na evoluo de So Paulo e do Rio de Janeiro para se tornarem modernas metrpoles nacionais.

    Observando o quadro europeu de pr-guerra dos anos 1930, -se tentado a considerar que a chamada poltica de apaziguamento liderada por Chamberlain, em face das agresses cometidas por Hitler, j era a expresso do capitalismo financeiro. Mais internacionalista do que o capitalismo industrial nacional, o financeiro teria propenso maior para sadas negociadas de confrontos. A liderana nazista alem certamente no avaliou corretamente o comportamento ingls em Munique, tomando-o apenas como sinal de fraqueza. Tambm no percebeu que a Inglaterra no era apenas mais um pas europeu, com um imprio colonial. As enormes colnias de povoamento, Canad e Austrlia, eram como que suas extenses e faziam da Inglaterra, igualmente, um pas extra europeu. Tal condio certamente influiu para que resistisse, mesmo quando se viu s na Europa, at a vitria final.

    Aps a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos e a cidade de Nova York passaram a ocupar as posies de liderana do movimento do capitalismo financeiro.

    2. O desenvolvimento do capitalismo na Amrica do Norte. A industrializao dos Estados Unidos a partir do sculo XIX introduziu novas formas no modo de produo e na sua formao social. Essas formas comearam a transbordar sobre o mundo aps a Segunda Guerra Mundial, dado o peso da presena poltica e dos investimentos americanos ao redor

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  • do mundo (HARDT e NEGRI, 2001). Entre as caractersticas trazidas pela formao capitalista americana, muitas so comuns a todas as naes americanas e se devem s condies semelhantes da colonizao inicial do continente.

    i. A imigrao de populaes e de capitais provenientes de outras partes do mundo. Uma vez que nenhum grupo tnico colonizador pode reclamar ancestralidade, a identidade nacional, em todas as Amricas, deixou de se basear na linearidade, ou no sangue, e passou a se fazer por meio do lugar geogrfico de nascimento fato fundamental para desenvolvimentos ideolgicos e polticos nos continentes americanos e no mundo atual.

    ii. A dimenso territorial alcanada pelos Estados Unidos, coast to coast, do Atlntico ao Pacfico, propiciou a criao de uma primeira economia nacional industrial desenvolvida em escala continental. O formato em grande massa retangular oferece vantagem estratgica que, associada posse de longas costas abertas sobre os dois maiores oceanos, deu ensejo para que pas se tornasse, simultaneamente, um poder terrestre e martimo.

    iii. O deslocamento horizontal das populaes no processo colonizador ofereceu possibilidades para a mobilidade social vertical, a ascenso de indivduos em classe. O pas se tornava uma vlvula de escape de tenses de classe acumuladas na Europa, permitindo que emigrantes sassem de pobreza extrema e que muitos enriquecessem. Uma enorme reforma agrria, por parcelamento de territrios que iam sendo conquistados a oeste das 13 colnias originais, realizada pelo governo federal instalado aps a independncia, contribuiu para a melhor distribuio da renda. Termos como self-made man, winners and losers, millionaire so criaes da cultura americana.

    iv. Em tal atmosfera social, a produo acabou se colocando frente do consumo. Isso se deu mediante diversas estratgias voltadas ao estabelecimento de uma sociedade de consumo de massa, como: o modo fordista de produo industrial; salrios mais altos do que na Europa, de modo a desencorajar consertos de objetos e estimular a compra de novos; o lanamento sucessivo de modelos novos de objetos fabricados; a introduo constante de novos objetos; o desenvolvimento da publicidade; e o incentivo de compras a crdito. Os alimentos passaram a ser industrializados, enlatados, empacotados, e se criaram os supermercados, os shopping, com suas vitrines sedutoras do consumo. O sistema do crdito

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  • contribuiu para a expanso bancria. O grupo Citi foi criado j em 1812, quando Napoleo se aventurava pela Rssia; o American Express existe desde meados do sculo XIX. No Manifesto de 1848, seus dois autores expunham dvidas quanto a formatos sociais futuros, tendo em vista justamente a incgnita representada pelo desenvolvimento norte-americano, sem reminiscncia de estamentos. J tinham insinuado que no novo continente nenhuma parte da populao pode chegar a dominar as outras (MARX e ENGELS, 1996:98). Marx passara algum tempo nos Estados Unidos, onde escreveu para o New York Times. Trocou correspondncia com A. Lincoln e apoiando a guerra anti escravagista.

    A diversidade da identidade nacional dos imigrantes nos Estados Unidos influenciou certamente as aspiraes pela paz mundial, que passaram a crescer naquele pas. A Liga das Naes, estabelecida aps a Primeira Guerra Mundial, foi ideia do presidente Wilson. Se os Estados Unidos nem chegaram a nela ingressar, uma das razes foi sua discordncia em relao aos termos duros impostos Alemanha pelo Tratado de Versalhes. Prevendo o seu potencial para um novo conflito, uma das justificativas do nazismo em suas confrontaes com a Entente Cordiale, a aliana franco-inglesa. Posteriormente, durante a Segunda Guerra Mundial, apesar de a maioria americana se posicionar a favor da Inglaterra, o mximo que Roosevelt conseguiu do Congresso foi o envio de armamentos financiados para aquele pas, que se viu s, aps a queda da Frana em 1940. Os Estados Unidos s entraram no conflito devido ao ataque japons a Pearl Harbor, em 7 de dezembro de 1941.

    Os novos aspectos do capitalismo americano compreenderam suas instncias culturais e ideolgicas, como o enorme desenvolvimento da publicidade para o consumo de massa, a popularizao da comunicao por imagens, a difuso do cinema, da pop art, do jazz e de diferentes formas de dana, popular e erudita. A integrao do popular e do erudito foi bem expressa na msica de Gershwin. O movimento inovador continuou no ps-guerra, com a TV, ou com o estilo ps-moderno introduzido na arquitetura, e depois nas artes plsticas. A difuso de cartazes de propaganda estatal, produzidos com esmero artstico, e muito praticada na antiga Unio Sovitica, foi influenciada por esse movimento de popularizao da imagem no meio urbano..

    Embora Heidegger (1966), em dado momento, justificasse a Alemanha hitlerista como representando a defesa europeia frente a culturas materialistas, a da Amrica do Norte e a da Unio Sovitica, o fato que

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  • Hitler se voltou para a introduo na Alemanha de diversas realizaes americanas, como a difuso do uso do automvel, do Volkswagen, a construo das Autobahnen, rodovias comparveis s highways, e o incentivo indstria do cinema como instrumento de cultura ideolgica nacional de massa. Hitler tambm procurou alargar a escala territorial da Alemanha, promovendo conquistas militares, e criar uma Europa como um continente submetido s regras germnicas. No entanto, marchou nach Ost, para o Este, onde os peles-vermelhas eram outros.

    3. O surgimento de Estados socialistas e a bandeira da Internacional. Em novembro de 1917, numa Rssia esgotada pela guerra, ocorreu a chamada Revoluo de Outubro (pelo calendrio da Igreja Ortodoxa). Iniciada em So Petersburgo e liderada por Lnin, a revoluo transformou o regime imperial da Rssia na Unio das Repblicas Socialistas Soviticas, o primeiro Estado fundado na ideia do modo de produo socialista.

    Desde o sculo XIX o socialismo inspirou diversos movimentos ideolgicos e polticos na Europa. O movimento comunista de Marx e Engels se mostrou o mais decisivo para provocar eventos como a revoluo comunista na Rssia. No ambiente conturbado do fim da Primeira Guerra Mundial, ocorreram outras tentativas de revoluo comunista, na Hungria, na Alemanha (com o grupo Spartacus, tendo Rosa Luxemburgo entre seus membros), mas que fracassaram. Na sia, na dcada de 1920, iniciou-se o movimento comunista armado chins, igualmente num ambiente conturbado pelas agresses japonesas e por presenas imperialistas ocidentais. A revoluo logrou se manter at alcanar o poder, em 1949.

    Os termos do socialismo tambm foram apropriados por correntes polticas que nada tinham a ver com suas origens histricas. Como no caso do hitlerismo, que comps a expresso Nationalsozialismus, nacional-socialismo, nazismo. Exerccio quantitativo interessante seria o de medir o uso de termos associados a socialismo desde os anos 1920 e segundo perodos cronolgicos. Nos Estados Unidos, o New Deal de Roosevelt, plano para enfrentar a recesso dos anos 1930, introduziu o Social Security, a Seguridade Social. Depois, com a Guerra Fria, a palavra socialismo se tornou tabu nos USA, porm, vem tendo um novo ingresso no vocabulrio do pas, particularmente aps a crise econmica de 2008-9.

    Para Marx e Engels, o capitalismo, comparado a modos de produo anteriores, representava progresso, entre outras razes, por ter reduzido a

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  • autonomia do Estado e a influncia dos estamentos que antes se encontravam em seu topo. No entanto, o capitalismo no atingiria a totalidade, funo reservada ao socialismo (alvo possvel ou meta assinttica?). A Ditadura do proletariado no seria uma proposta ao retorno do Estado autnomo, totalitrio, mas a de criar uma condio na qual a classe proletria, ao assumindo a hegemonia do Estado, e tendo menos a perder, conduziria para a eliminao da classe e do Estado, e para o internacionalismo. No se confundia totalidade com totalitarismo.

    realmente surpreendente o chamamento internacionalista, visionrio, do Manifesto, num mundo sem internet e naves interplanetrias. Certamente cientes das limitaes da poca, seus autores no trouxeram um receiturio amplo para a criao do socialismo. Eles citaram a nacionalizao de bancos e ferrovias, o controle para um crescimento equilibrado das cidades. interessante observar que o documento no inclui empresas de navegao. Provavelmente porque nesse caso no h necessidade de integrar, num mesmo empreendimento, o meio do transporte, a via do transporte e o controle de trfego, como ocorre no sistema ferrovirio..

    O mundo real, porm, muito mais complexo para permitir uma concepo final a seu respeito. No fosse assim, no haveria a retomada contnua dos mesmos temas de pesquisa. Ao contrrio do previsto, a revoluo comunista se instalou primeiro num pas de desenvolvimento capitalista menor, onde um tsar regia um Estado muito autnomo. O quadro social herdado pela Revoluo facilitaria o recobrimento do comunismo pelo stalinismo. Ou seja, o stalinismo significou o tolhimento, ao extremo, da capacidade do comunismo russo incentivar o desenvolvimento de sociedades civis nas repblicas soviticas, para servirem de fontes de poder. Em vez disso, fez retornar o Estado autoritrio r produziu o chamado socialismo real. Realidade que estancou a maior internalizao de valores socialistas na populao, apesar da propaganda estatal e proclamar estar criando um novo homem. O stalinismo negou as leis da hereditariedade gentica de Mendel por razes ideolgicas, assim como, proibiu a psicanlise de Freud. Este falava da permanncia perene de Tanatos, morte, ao lado de Eros, amor, mas que o conhecimento poderia fazer crescer o controle sobre Tanatos (FREUD, 1975). Mendel e Freud apontavam para limites,algo inaceitvel para o stalinismo.

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  • A conseqncia de tudo isso foi a extrema facilidade com que se deu a dissoluo da Unio Sovitica, na dcada de 1990. mngua de maior apoio popular interno, mas provocando a maior comoo no mundo.

    A Unio Sovitica. plausvel pensar que a dimenso territorial ajudou a implantao do novo regime. Ao mover a capital para Moscou, resistiu melhor aos ataques contra revolucionrios em suas periferias e que contaram com ajuda exterior. Vitoriosa, a revoluo se utilizou da entidade imperial anterior, reunindo diversas etnias nacionais na Unio das Repblicas Socialistas Soviticas (URSS), como reafirmao de sua orientao marxista internacionalista. Esta Unio seria a etapa inicial de seta histrica na forma de capitalismo > socialismo > comunismo internacionalista.

    Pouco depois da morte de Lnin, no comeo dos anos 1920, iniciou-se a evoluo para o stalinismo, com as atividades do Partido e do Estado ficando a reboque de confabulaes palacianas maquinadas por Stalin. O Estado passou a adquirir caractersticas de entidade totalitria autnoma, controlando todas as instncias sociais.

    O jargo comunista tinha denominado seus membros a vanguarda das foras sociais voltadas para a introduo do socialismo. O termo vanguarda surgira tambm no meio das artes, desde os fins do sculo XIX, para designar movimentos que introduziam novas formas na produo artstica, associadas aos novos conceitos na arte e sobre a arte. A antiga Unio Sovitica dos anos 1920, em intercmbio cultural com o Ocidente, apareceu como importante centro mundial, inovador nas artes plsticas, nas artes cnicas, no cinema, na poesia, na arquitetura, reunindo alinhados e no alinhados com as ideias comunistas e marxistas. A chamada escola construtivista, que daria origem ao estilo concretista, foi criada na URSS.

    No entanto, o stalinismo passou a exigir uma cultura a servio da propaganda do regime, fazendo abortar o movimento cultural livre, por meio da censura e do banimento. Separaram-se realismo social, no qual a arte incorpora o social e o poltico, e realismo socialista, no qual o social e o poltico incorporam a arte. Assim, acompanhando o ltimo, a arte figurativa foi identificada com o realismo e o materialismo, enquanto a arte abstrata foi tachada de idealista e burguesa. Naturalmente, abriam-se as portas para a adulao e a mediocridade. Esse recuo cultural foi um dos motivos da ampliao do trotskismo em meios intelectuais mundiais, no Brasil representado por Mrio Pedrosa, admirador do concretismo.

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  • A adulao surgida na instncia artstica se propagou s cincias, ao pensamento filosfico e poltico. No se chegou ao racismo nazista, mas houve o charlatanismo de Lysenko durante anos, negando as leis genticas de Mendel este um judeu, em meio s estratgias antissemitas do stalinismo. Para se opor ao livre intercmbio internacional das ideias, criou-se o termo cosmopolitismo, que seria um internacionalismo ruim, produzido no interesse do capitalismo. O totalitarismo stalinista no podia, no entanto, se despojar das origens, fazer, como a Alemanha nazista, discursos racistas explcitos, autos de f primitivos com queima de livros em praa pblica. Porm, o regime stalinista passou a valorizar os comportamentos morais tradicionais, a homenagear a famlia e condenar o amor livre, enquanto no Brasil, como em outros pases, durante os anos 1930, e mesmo depois da guerra, o comunismo era apontado como a pregao da dissoluo dos bons costumes e da famlia, da entrega dos filhos ao Estado, alm de aptrida, propondo a entrega do pas Rssia vermelha.

    Grande divrcio entre a poltica sovitica e princpios originais marxistas se manifestou no trato do intercmbio. Aps a guerra, mesmo tendo sido aliado e tendo contado com o apoio de Roosevelt contra Churchill em diversas questes polticas, Stalin manteve o Estado cerrado para o exterior. O intercmbio favorece o novo. O stalinismo se comportava como o velho antes do tempo, temeroso, no confiando em seu prprio povo. Em troca, aps a guerra, a Unio Sovitica se envolveu, equivocadamente, em disputa por hegemonia mundial, com altos gastos militares, quando se via s voltas com a necessidade de reconstruo das enormes extenses territoriais arrasadas pelo conflito. Ficou com pouca margem para investir no consumo civil. O Estado enveredou por explorar e pressionar pases de sua rea de influncia, provocando rupturas e revoltas. Romperam Tito, da antiga Iugoslvia, e Mao Zedong, da China. Passou a incentivar ou dar suporte a movimentos revolucionrios, ou a regimes que se colocassem contra os interesses do centro capitalista, particularmente contra os Estados Unidos. Note-se que a estratgia preconizada por Trotski, banido da Rssia em 1929, tambm se restringia a aes polticas imediatistas, revoluo permanente, a ser promovida em todas as partes do mundo. Bem diferente do que faz a China comunista na atualidade, desenvolvendo fantstico comrcio internacional.

    Para manter sua legitimidade e fazer crer que preservava o compromisso internacionalista, a Internacional foi mantida como hino do Estado. At meados da guerra, quando se apelou para a guerra patritica.

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  • Uma vez que setores blticos, de bielorrussos e principalmente de ucranianos passaram a colaborar com o invasor alemo, apelou-se para a resistncia nacional russa, vestida de vermelho. Foi mais uma manifestao de um jogo, que se aprofundaria no ps-guerra, no qual os governantes soviticos seguiriam os interesses nacionais do Estado, enquanto externamente sua poltica era tida como de interesse para o internacionalismo socialista. J anteriormente, at 22 de junho de 1941, quando os alemes desencadearam a operao Barbarossa, a invaso da Unio Sovitica, a guerra era vista por amplos setores comunistas mundiais, segundo a retrica sovitica, como uma guerra de interesses imperialistas. Uma salle de guerre, uma guerra suja para os comunistas franceses, que somente aps a invaso da Unio Sovitica deram outro colorido ideolgico ao conflito e assumiram a Resistncia.

    Mantendo, internamente, uma sociedade estreitamente submetida a interesses palacianos de perpetuao, e, externamente, um campo de satlites dirigidos por comunistas, impondo prticas econmicas e polticas de exclusive interesse do Estado sovitico, a dimenso ideolgica, socialista e internacionalista foi perdendo credibilidade em seu prprio campo geogrfico. No interior da Unio Sovitica, multiplicavam-se os refusnik, uma expresso que mistura sons da lngua inglesa e russa, e que se refere recusa no meio intelectual esclarecido russo de aceitar o estado de coisas. Cresciam tambm os movimentos por autonomia entre as etnias no russas. Nos pases da Europa Oriental e Central de regime socialista, este acabou se transformando em imposio sovitica, mantido por colaboracionistas, e objeto de revolta popular. Nesse contexto, a imploso da Unio Sovitica seria uma surpresa apenas no Ocidente.

    A China substitui a Unio Sovitica como superpotncia comunista. Iniciado nos anos 1920, o movimento armado da revoluo chinesa, sob a direo de Mao Zedong, alcanou o poder em 1 de outubro de 1949. Diferia da revoluo russa em diversos aspectos. Na antiga Unio Sovitica, a revoluo aproveitou o esgotamento russo com a Primeira Guerra Mundial. A Rssia, porm, no era propriamente um pas derrotado, apenas saiu da guerra. A revoluo, refletindo movimento ideolgico urbano presente em toda a Europa, foi deflagrada na capital, ocupou logo o poder e se estendeu para ocupar o territrio. Sobreps-se ao antigo imprio, integrando variedade enorme de etnias, de blticos a mongis e turcomanos. Desse modo, o novo regime manteve a multiplicidade nacional em nome do ideal internacionalista. Na China a revoluo comunista se moveu pelo campo, por trs dcadas, apoiada em

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  • massas camponesas, e deixou de ser o nico alvo do governo nacionalista de Nanquim. Este se via s voltas com as sucessivas invases japonesas, contra as quais as tropas comunistas, abastecidas pela Unio Sovitica, tambm combatiam. Finalmente, depois da guerra, os comunistas se impuseram e ocuparam as grandes cidades.

    Na China, a revoluo passou a se identificar como reconquista de autoestima e como estratgia para uma nova integrao. A China tambm se compunha de uma variedade de etnias, mas que estavam unidas desde os tempos milenares do Imprio do Centro e participando da cultura chinesa. Essa China vinha sendo dilacerada e humilhada por um Japo armado de tecnologia ocidental, que lhe arrancava regies inteiras, e por imposies de potncias ocidentais, inclusive criando enclaves exclusivos em suas principais cidades. Caberia revoluo integrar aquele passado rico da China modernidade ocidental, em todas as suas instncias.

    Para alcanar esse propsito, seria necessrio superar o modelo stalinista. Foi normal que, num pas majoritariamente rural, se reproduzisse inicialmente o tradicional autoritarismo e fosse implantado o culto personalidade a Mao. O lder chins introduziu a ideia de que a natureza dos pases perifricos ante o centro capitalista reproduzia natureza das classes perifricas frente classe capitalista. Essa seria a razo de a revoluo comunista no se iniciar no centro, como previsto por Marx, mas em sua periferia, onde a classe capitalista e a classe mdia eram mais fracas e a ideologia burguesa menos injetada na sociedade. Tais argumentos justificariam os cortes de intercmbio com os pases capitalistas.

    Todavia, entre avanos e recuos, a China acabou se abrindo para o intercmbio comercial com os pases capitalistas e para a absoro da cultura ocidental, enquanto construa um novo ambiente urbano e industrial. Linhas de ao que impediram a formao de uma nova cortina de ferro, e que se realizaram em meio a agudos debates e lutas pelo poder no Partido e no Estado, com a vitria, entre outros, de Zaho Ziyang e de Deng Xiaoping. A China ainda mantm um regime autoritrio, para os moldes das democracias capitalistas, porm j mais brando. A questo quanto ao futuro prximo se ele trar maior ocidentalizao da China ou um ambiente mundial mais autoritrio.

    H a considerar outras particularidades chinesas. Como a ausncia de idealismos associados a uma religio coercitiva; uma histria de intensas atividades comerciais com pacientes prticas de negociaes; a criao de

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  • enorme dispora, de dezenas de milhes espalhados pelo mundo, localizadas principalmente em cidades-metrpole, e envolvida em atividades comerciais. Chineses, como judeus, se adaptam bem a qualquer ambiente livre de xenofobia e tendem a manter a identidade original. A estrutura social tradicional fundada em famlias, e que procede de tempos profundos, influi certamente no comportamento chins de assumir a cidadania dos pases em que nascem sem perder a identidade chinesa e de manter ligaes com o pas de origem. Chineses, como judeus, guardam os mais antigos calendrios e cultuam fundadores biolgicos ancestrais, uma fora de permanncia de identidades milenares.

    As relaes entre a China e sua dispora, a importncia dos investimentos da dispora direcionados para o pas de origem, certamente influenciaram sua abertura econmica da China para o mundo. Outros fatos vividos pela China mostram o seu entendimento da complexidade e do hibridismo presentes no mundo contemporneo. Como a manuteno da economia capitalista de Hong Kong, aps a sua re-incorporao; ou a procura de uma soluo negociada para uma reunificao com Formosa, na base de um pas, dois regimes; e na proposio de um socialismo de mercado. Ao contrrio da Unio Sovitica, a China comunista se vale das foras de economia privada para o crescimento econmico e da participao de investimentos de empresas estrangeiras (ZENIN, 2002). Como se seguisse as ideias da Ideologia alem, ou as de Nicos Poulantzas (MARTIN, 2008), para quem o essencial do socialismo o regime de partido poltico nico. Para Poulantzas, a classe burguesa pode ampliar as suas concesses na rea econmica, mas no pode abrir mo da pluralidade partidria. A China no se concentra em propaganda ideolgica verbal para alargar sua influncia no mundo, mas na fora de seus intercmbios econmicos e de suas realizaes.

    No entanto, a principal diferena entre a antiga Unio Sovitica e a atual China Comunista reside certamente no fato de que esta se instalou somente em meados do sculo XX, desse modo dispondo de uma distncia crtica, para aprender com os erros da primeira. E avaliar as novas teorias contemporneas, relativas complexidade, irreversibilidade, indiferena, entre outras.

    O crescimento brasileiro vem se apoiando em articulaes cada vez mais com a expanso chinesa, atravs da intensificao do comrcio bilateral e dos investimentos brasileiros naquele pas, como na indstria aeronutica. A China atualmente o maior produtor mundial de ao, e

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  • grande parte de seu minrio fornecida pela Vale. O exemplo chins influi no declnio, em setores da esquerda, de ideias radicais de ruptura traumtica com o capitalismo e a globalizao.

    4. Capitalismo degenerado, formas fascistas. O avano tecnolgico e industrial, promovendo desde o sculo XIX a acelerao demogrfica e a concentrao urbana, introduziu a massificao palavra criada para caracterizar a afluncia de enormes massas populares para atividades polticas e culturais, antes mais restritas s classes superiores. Porm, ao contrrio de termos como consumo de massa e incluso social, massificao, apesar de tambm ser associado a democratizao, empregado frequentemente com sentido depreciativo. Por expressar uma incorporao acelerada de populaes que se encontravam excludas, ela pode baixar, por um dado perodo, os nveis mdios de atividades culturais e acadmicas. Ou pode servir a manobras de grupos polticos para a introduo de regimes demaggicos ou totalitrios, ao chamado populismo. Este termo descreve um quadro no qual, em troca de pequenas melhoras pecunirias ou ambientais, as populaes de baixa renda oferecem a lealdade e o voto a polticos provedores dessas melhoras. O populismo no propriamente fascismo, mas pode facilitar seu caminho. Durante a acelerao da urbanizao brasileira iniciada por Vargas e que deu margem a movimentos populistas, o humorista brasileiro Baro de Itarar escreveu que, cada vez mais, os vivos so governados pelos mais vivos.

    A insatisfao social com o quadro econmico capitalista aps a Primeira Guerra Mundial deu margem a movimentos polticos dirigidos por lderes que aproveitavam as massas imbudas de sentimentos anticapitalistas, de chauvinismos nacionalistas e de preconceitos anticomunistas. Nascia o fascismo formalizado em partidos polticos, cuja agressividade crescia at proporcionar a ignio da Segunda Guerra Mundial. A primeira instalao de um Partido Fascista no poder estatal se deu na Itlia, em 1922. O fascismo identificava o capitalismo liberal, criador de classes, como a origem do mal-estar econmico e social. O comunismo, porm, seria ainda mais malfico, dissolvente de valores morais e colonizador a servio dos dirigentes russos.

    O nome de Partido Fascista na Itlia vinha de fascio, feixe, antigo smbolo romano, para simbolizar a fora do povo unido. O fascismo se dizia destinado a superar a estrutura de classe, pela submisso da classe ao nvel mais alto do Estado, criando-se uma totalidade nacional dirigida pelo Estado. Por isso, necessitava a submisso de toda a sociedade ao partido

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  • nico e a sua aceitao do fim da liberdade de pensamento e de crtica. O olhar para trs, para o classicismo do passado, reintroduzindo mitos e smbolos, servia para reforar o conservadorismo, mas tambm para atrair intelectuais da estatura de um DAnnunzio. A Itlia alimentava o retorno imperial da antiga Roma, expulsar a esquadra inglesa do Mediterrneo, de novo mare nostrum.

    O fascismo alemo, o nazismo, tambm se declarou, retoricamente, contra a estrutura de classe, criticando o comportamento pequeno-burgus, atingindo tanto os princpios democrticos, como colocando a burguesia industrial a servio dos interesses do Estado. Na verdade os regimes fascistas implantados expressaram um conluio, do qual participaram lderes provenientes de todas as classes sociais, inclusive da aristocrtica. As classes eram mantidas atrs do biombo do Estado. Na Itlia, a monarquia foi mantida e o genro de Mussolini, no cargo de ministro do Exterior, foi agraciado com o ttulo de conde Ciano. O pas retornou formao de corporaes representativas das classes produtoras para participarem do processo estatal, poltico e de gesto Na Alemanha, Hitler foi escolhido pelo velho marechal prussiano Hindenburg como seu sucessor. alta burguesia capitalista, caberia produzir para sustentar os objetivos estratgicos definidos pelo Estado: crescimento econmico, hegemonia internacional e expanso territorial, assim justificando a manuteno do poder nas mos do grupo e do ditador do dia. O fascismo inflou o interesse nacional a tal ponto que se tornava aceitvel qualquer agresso moral em seu nome, inclusive a conquista de outras naes pela guerra processo iniciado por Mussolini contra a Abissnia, em1935. Da o ttulo de capitalismo degenerado.

    Na Alemanha, a implantao do nazismo se valeu, alm da crise econmica, do revanchismo deixado pela Primeira Guerra Mundial. Em 5 de janeiro de 1919 foi fundado, em Munique, o Partido dos Trabalhadores Alemes, que ano depois passou a se chamar de Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemes. Nazismo deriva de Nationalsozialismus em alemo. O fascismo se apoderava do termo socialismo. Como diria Chacrinha, ele veio para confundir, no para explicar. Em 1933, o partido nazista ascendeu ao poder e rapidamente a Alemanha se tornou lder dos pases fascistas.

    O nazismo mobilizou mitos germnicos, elegeu smbolos do classicismo grego e romano para suas aes e levou o preconceito racial e o chauvinismo nacional, o Deutschland ber alles, ao mais alto grau. O

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  • liberalismo permissivo do capitalismo teria possibilitado que raas inferiores, particularmente a mais perniciosa, a judaica, penetrassem o capitalismo dos pases democrticos, tornando-o plutocrtico e internacionalista. Os judeus tambm eram responsabilizados pela introduo das ideias socialistas marxistas e do comunismo no mundo. O irnico do anti-semitismo alemo que ele ocorria no pas onde os judeus mais se assimilavam e contribuam para a cultura do pas. No entanto, o antissemitismo serviria ao propsito ganhar adeptos entre massas com velhos preconceitos arraigados.

    Contudo, para o fascismo cada nao por si. A nao alem era superior s outras e precisava preservar sua pureza, abominando mestiagens que solapariam sua unidade nacional. Por meio do nazismo seria criada uma economia a servio do povo, subordinada ao Estado da raa superior, e por isso merecedora de pilhagens imperialistas, de ocupaes de territrios de outros pases para seu Lebensraum, seu espao vital. O fato de a Polnia ser governada nos moldes fascistas no impediu sua invaso pela Alemanha. Posteriormente, j depois da guerra, quando regimes militares fascistoides (sem narrativas formais de fascismo) se instalaram na Amrica do Sul, Argentina e Chile quase foram guerra, pelo canal de Beagle, e a Argentina tentou ocupar as ilhas Malvinas fora.

    O Japo. O Japo esteve fechado ao mundo at o sculo XVIII. Quando entrou na arena mundial, demonstrou alta capacidade de absorver rapidamente a tecnologia ocidental, enquanto mantinha a estrutura social em moldes tradicionais e conservadores. Sua necessidade de matrias-primas para sua industrializao foi uma das motivaes de suas agresses imperialistas, ocupando a Coreia e desmembrando a China. Desinteressado de redigir ideologias formais para o mundo, como o Mein Kampf (Minha luta), de Hitler, o comportamento da formao japonesa afinava, no entanto, com as prticas do fascismo e desembocou na formao do Eixo, a aliana alem, italiana e japonesa, dirigida inicialmente contra a Unio Sovitica, Atritos militares entre soviticos e japoneses eram frequentes nos anos 1930 na fronteira entre a Manchria, ocupada pelo Japo, e a Sibria.

    As barbries praticadas pelos japoneses na China foram de uma escala que tem dificultado at hoje a reconciliao do povo chins. Nos anos 1930 os Estados Unidos impuseram um bloqueio para as exportaes de petrleo ao Japo, para for-lo a parar com a extenso de suas

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  • conquistas de territrio chins, o que acabou provocando Pearl Harbor e a entrada de ambas as potncias na Segunda Guerra Mundial.

    5. A difuso das ideologias pelo mundo. Os pases do centro, URSS includa, se empenharam em difundir suas ideologias pelos pases perifricos e assumir ascendncia sobre os mesmos. A revoluo fascista na Espanha (1936-38), liderada por Francisco Franco, se tornou um marco de interveno estrangeira nos confrontos internos nacionais. A guerra espanhola colocou em causa o princpio da interveno em defesa de pases atacados do exterior. A interveno j fora defendida pela URSS em 1935, na Liga das Naes. E depois, ante a militarizao alem, quebrando clusulas do Tratado de Versalhes, quando Litvinov ainda era seu ministro do Exterior. Quadro distinto do que foi visto quando da ocupao do Kuwait pelo Iraque, em 1991. A URSS e a esquerda pediam ao contra Mussolini, quando invadiu a Abissnia, atual Etipia, apesar da natureza anacrnica vivida por esse pas, cujo imperador Selassie (que o carnaval brasileiro transformou em Sei l se ) era carregado em liteira e abanado por serviais. Enquanto Mussolini era o ditador esclarecido, que saneara o vale do P, onde se instalaram enormes arrozais, objeto do filme clssico Arroz amargo (1949). Ante a impotncia anglo-francesa de ajudar os republicanos espanhis, atacados por soldados italianos e avies alemes (Guernica), apesar de a Frana ser governada pelo Front Populaire, liderado pelo socialista Leon Blum, organizaram-se as brigadas internacionais, com voluntrios de diversas partes do mundo. Entre eles, brasileiros, americanos, como o escritor Hemingway, e outros, que foram lutar pelos republicanos.

    Nos pases perifricos de forte urbanizao e massificao, as ideologias comunista e fascista encontravam eco, dada a agitao j existente em torno de interesses nacionalistas, que debitavam o atraso de seus pases presena dos capitais e das ideologias procedentes do centro capitalista. Ou dada a agitao j existente por causa das reivindicaes de classes populares e mdias. Naturalmente, nos pases perifricos, majoritariamente rurais, com forte presena da religio, seria mais fcil a grupos governantes se apropriarem de posies prximas ao fascismo, que permitiam a manuteno da estrutura de classe e sem o compromisso temido com a URSS. Nesses casos, era reforado o papel do Estado intervindo na economia e atendendo a um nmero de reivindicaes trabalhistas e de melhoramentos dos ambientes urbanos de reas populares e de populaes pobres em troca da aceitao da reduo das liberdades da democracia burguesa, da imposio do totalitarismo e da perpetuao

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  • dos governantes no poder. Sucessos econmicos obtidos ajudavam a manuteno do esquema. Desse modo se organizaram as formas mais extremas dos regimes populistas.

    No Brasil, durante os anos 1920 foi fundado o Partido Comunista Brasileiro. Este participou inicialmente da formao da Aliana Libertadora, que levou Getlio Vargas ao poder. Na dcada seguinte, surgiu o Partido Integralista, de orientao fascista. Plnio Salgado, seu dirigente mximo, era denominado chefe, correspondente a Fhrer. Camisa verde, em lugar da parda, o smbolo sigma, em lugar da cruz gamada, o brao estendido saudando anau, termo indgena, em vez de heil Hitler, faziam parte do ritual.

    O governo Vargas, no entanto, no se deixou envolver pelos comunistas e integralistas Ele se aproximou do fascismo e de seus regimes totalitrios por conta prpria. O Eixo lhe acenava trocar produtos manufaturados por matrias-primas, sem que o pas necessitasse gastar divisas. A Constituio de 1937, redigida por Francisco Campos e outorgada por Getlio, para reger o Estado Novo, foi alcunhada de Polaca, dada a semelhana com a da Polnia. O regime, inspirado no corporativismo italiano, criou uma srie de organizaes patronais. Ao comeo da Segunda Guerra Mundial, o Brasil mostrou simpatia pela Alemanha. S mudou de lado, se alinhando com os Estados Unidos, em seguida a Pearl Harbor. Getlio s foi apeado do poder em 1945, depois da guerra, e depois do curto perodo de 15 anos pouco menos que a ditadura militar iniciada em 1964.

    6. Teorias sobre guerras mundiais. Segundo Marx e Engels, as colises na histria tm origem na contradio entre as foras produtivas e a forma de intercmbio (1996:115). Aps a Segunda Guerra Mundial, crculos marxistas atriburam as guerras mundiais necessidade de destruir meios de produo e populaes produtivas para o interesse capitalista de reequilibrar dimenso de capacidade produtiva com relaes de produo. A tese servia para lanar sobre os pases capitalistas a responsabilidade pelos conflitos armados locais e por uma anunciada Terceira Guerra Mundial que nunca ocorreu. O ponto mais prximo de uma hecatombe ocorreu em 1962, quando da crise dos balsticos soviticos instalados em Cuba. Kennedy ameaou retir-los fora, mobilizou a esquadra e Kruschev recuou e os retirou.

    Historiadores argumentaram contra a teoria apresentada acima, considerada mecanicista. Foi exposta a influncia cultural, exercida pela

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  • aristocracia, que continuava a ocupar posies na direo dos Estados. A aristocracia trazia as tradies de luta fsica, desde os tempos da cavalaria e de suas lides armadas. O comportamento diferenciado de oficiais de estirpe aristocrtica e soldados da burguesia, durante a Primeira Guerra Mundial, apresentado magistralmente no filme A grande iluso, de Jean Renoir (1937).

    No processo social, normalmente, no atua um nico fator, ou fatores isolados, mas a interao de vrios desenvolvimentos (WOOD, 2000). Desse modo, ambas as ideias expostas so aceitveis e descrevem diferentes momentos como quando se pe em marcha um automvel. necessrio o manejo inicial da chave de ignio, mas, para o carro se mover, ele depende do estado de toda a sua estrutura. O assassinato do herdeiro de Franz Josef ao trono do Imprio Austro-Hngaro em Sarajevo deflagrou a Primeira Guerra Mundial, mas foi apenas a fagulha, num quadro poltico propcio.

    O arrefecimento continuado da Guerra Fria, depois de 1962, mostrou a fora de dissuaso do terror atmico e a propenso a negociar do capitalismo avanado e de um comunismo ps-stalinismo. As guerras de escala mundial capazes de eliminar naes foram substitudas por guerras entre gigantescas corporaes transnacionais, capazes de devorar umas s outras, e por conflitos armados de escala local, transferidos para as periferias, embora envolvendo grandes potncias por exemplo, na ajuda a um parceiro ou na ao conjunta de apagar o incndio que ameaa fugir ao controle.

    A paz pode ser figurada como uma plancie. Nesta, as guas correntes fluem lentamente, depositam sedimentos e se subdividem por anastomose. Do mesmo modo, na paz as correntes ideolgicas tendem a se dividir em inmeras subcorrentes. A guerra como a encosta ngreme, na qual as guas tendem a se encaixar em caneluras. As subcorrentes ideolgicas devem ceder a alinhamentos singelos em luta. A Segunda Guerra Mundial funcionou como encosta ngreme, com as trs grandes correntes citadas democracia capitalista, socialismo, fascismo. Depois da guerra, aps um primeiro intervalo, voltaram os diversos desdobramentos ideolgicos.

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  • II. Transies para a globalizao

    Finda a Segunda Guerra Mundial, surgiu um novo mundo, e uma nova correlao de foras passou a se mover at chegar ao momento atual. Cada presente deste movimento continha todo o seu passado, e o seu futuro em estado virtual. Um processo povoado simultaneamente por inovaes e acontecimentos e pela ressurgncia de antigas culturas e prticas.

    O fantstico nvel tcnico alcanado pela humanidade o marco mais impressionante da atualidade. Ele d continuidade a uma acelerao iniciada com os esforos de guerra, quando foram inventados o avio a jato, o radar, o computador eletrnico, o balstico, a utilizao da energia atmica, o antibitico, entre outros. Antes de surgir o termo globalizao, Manuel Castells (1989) propusera definir uma Era da Informao e um conceito de modo de desenvolvimento, identificado como modo da informatizao. Sem a web, a rede, a servio de corporaes, rgos de pesquisa, instituies pblicas, sociedades civis e pessoas fsicas, a atual forma de globalizao e de internacionalismo seria impensvel. O progresso tecnolgico envolve todas as instncias sociais, fez o planeta encolher e inaugurou a aventura interplanetria.

    O nvel alcanado pelo progresso tecnolgico fez Heidegger ver, no mesmo, a maior aproximao ao real, capaz de dar fim Filosofia. Spielberg viu a possibilidade da entrada no surreal, com Parque dos dinossauros. No entanto, quando o homem pisou na Lua, houve certo desconforto na percepo de que no se encontrava nada sobrenatural fora da Terra. A humanidade participa da construo de um mundo cada vez mais complexo, mas que no transcende, nem alcana totalmente o real, tantas vezes sonhado. Como sugerido no antolgico 2001, Uma odissia no espao (KUBRICK, 1968), que transmite o estranho sentimento paradoxal, de que tudo muda, enquanto tudo continua a mesma coisa plus a change, plus cest la mme chose. E, no entanto, o mundo passou por profundas transformaes em meio sculo.

    A populao humana passou de cerca de 3,5 bilhes de pessoas para os atuais mais de 6 bilhes. Trata-se de um crescimento acelerado (associado ao progresso da medicina), que faz uma grande diferena no mundo. Multiplicaram-se instituies pblicas internacionais, a comear pela ONU, revivendo a antiga Liga das Naes num patamar mais elevado, passando por FMI, Banco Mundial, FAO (na rea alimentar), Unesco (na rea cultural), OIT (Organizao Internacional do Trabalho), GATT (hoje

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  • OMC, Organizao Mundial do Comrcio), entre tantas outras. Foram iniciados encontros peridicos dos governantes das potncias polticas e econmicas, para tratar das questes mundiais primeiro os do G7+1 (Estados Unidos, Canad, Inglaterra, Frana, Alemanha, Itlia, Japo, mais a Rssia), seguidos pelos do G20 (China, ndia, Brasil, Mxico, entre outros). Na atualidade os dois grupos se renem num s. Em contrapartida s articulaes governamentais, surgiram organizaes da sociedade civil, como ONGs, grupos em movimentos sociais urbanos. Estes passaram a promover os encontros internacionais do Frum Social, a ocorrerem na mesma poca dos encontros do G7+1. Paralelamente, setores de movimentos sociais que se colocam contra esta globalizao promovem manifestaes ruidosas nas cidades onde h os encontros do G8 e do G20. Todos esses acontecimentos contribuem para a reafirmao do conceito de um sistema-mundo (WALLERSTEIN, 2009).

    O avano tcnico e cientfico reflete-se em todas as instncias sociais, originando um novo quadro civilizatrio. Formulam-se novos princpios e conceitos, d-se novo sentido a outros, alguns em contradio dialtica. Por exemplo, indiferena, para enfatizar igualdades presentes nos gneros e o merecimento de direitos comuns; diversidade, para acentuar a diversidade cultural das sociedades humanas. A justaposio de estilos produzidos em pocas diferentes, ou de meios diferentes, em obras de arte contemporneas tem sido chamada de hibridismo e uma das caractersticas do ps-modernismo. O termo, porm, pode ser aplicado em outras instncias sociais, como na promoo explcita de mistura de componentes de modos de produo opostos numa mesma formao social. Como faz a China, promovendo a constituio de grandes empresas nacionais privadas, para a construo do que chama a economia socialista de mercado. Mimetismo, irreversibilidade (PRIGOGINE e STENGERS, 1984), incerteza (Heisenberg), caos (Em toda realidade funciona a dinmica que compreende um estado de desordem seguido de auto-organizao e estabelecimento de uma nova ordem. Que acaba por se desfazer em novo caos, nova ordem e assim sucessivamente, Edgar Morin) so tantos outros termos transportados das cincias fsicas e biolgicas para o campo social.

    Atualmente, trs quartos das reservas globais de petrleo se encontram em mos de Estados, enquanto as irms petrolferas, que esto entre as mais ricas empresas mundiais, atuam na produo e na distribuio por concesses ou contratos. Os controles do Estado e de seus bancos centrais sobre a economia assumem grande variedade de formas e de

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  • sofisticao que colocam o capitalismo sob rdeas. Trata-se de um quadro explicativo da aparente interrupo da gigantesca crise econmica e financeira mundial que se visibilizou em 2008. Que mostrou o governo americano injetando emprstimos de bilhes de dlares em bancos e empresas industriais privadas, em alguns casos por troca de aes, para evitar sua falncia. Que mostra Estados comporem seus fundos soberanos, retirando reservas cambiais da circulao e influindo, desse modo, sobre o comrcio e o valor das moedas. Mais do que isso, o quadro atual mostra atuaes domsticas e internacionais conjugadas de Estados e de bancos centrais visando o controle do curso da economia mundial como um todo.

    De outro lado, o quadro mostra um nmero de objetos que se tornam obsoletos; outros que mudam de funes ou que se elevam de plano depois de fases de hibernao. A antiga mquina datilogrfica foi modernizada, eletrificada, mas no escapou de chegar praticamente a um fim, com a introduo do PC. A vitrola e seus discos de cera foram substitudos pelo CD. Em seguida pelo CD-ROM. Este, consumido em privacidade, atinge o cinema e as salas de pera, afetando com certa perversidade prticas de sociabilidade.

    O amigo e filsofo Fernando Cocchiarale traz as seguintes reflexes, comparando a histria do cavalo e da arte. Com o aparecimento do automvel, o cavalo perdeu praticamente a funo de meio de transporte. Dele ficou a expresso HP (horse power), que compara a potncia de um motor fora de certo nmero de cavalos. No entanto, o cavalo continuou sendo utilizado, em modalidades antigas e novas de equitao, como no esporte de polo, ou de turismo, como puxando coches de turismo no Central Park em Nova York etc. A arte, porm, mesmo com a adio dos novos meios, como o cinema, novos instrumentos musicais, continua mantendo o sentido de sempre.

    Quanto ressurgncias e elevaes de plano, citam-se exemplos de afloramentos de movimentos polticos e culturais que estavam latentes ou submersos pelo peso de foras de camadas hegemnicas. Nesses movimentos, os objetos se vestem de novas formas, ajustadas aos novos tempos; por exemplo: o movimento indgena de aimars e quchuas, nos Andes, adotando lemas do socialismo; a independncia de um sem-nmero de pases, inclusive a criao do Estado de Israel e a ressurreio do hebraico como lngua viva; a ascenso do poder indgena nos Andes bolivianos; o movimento da China e das naes islmicas que as recoloca na primeira linha do desenvolvimento mundial.

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  • O processo que compreende os fatos narrados nesta seo constitui um movimento de natureza histrica e geogrfica que abrange focos e momentos, de imanncia e de transcendncia. Reconhecem-se cinco fases principais para esse movimento.

    1. Da Guerra Fria ao condomnio americano-sovitico. Finda a guerra, emergiram duas superpotncias vitoriosas, Estados Unidos da Amrica (EUA) e Unio das Repblicas Socialistas Soviticas (URSS), expondo a escala continental como uma referncia do alcance de poder hegemnico. Organizou-se um mundo bipolar.

    Acentuou-se o transbordamento da formao capitalista americana e de suas formas de planejamento sobre o mundo. A prevalncia da fora do capitalismo americano se manifestou no formato das novas instituies internacionais criadas aps o conflito e na substituio do ouro pelo dlar como padro de referncia internacional para a paridade de moedas decises iniciadas ainda antes do fim do conflito, na Conferncia de Bretton Woods. Do outro lado, a URSS estendeu sua rea geogrfica de influncia, cresceram os partidos comunistas na Europa Ocidental e difundiu-se o fermento socialista pelo mundo.

    Antes de acentuarem suas divergncias e entrarem numa fase de confrontaes agudas, conhecida como Guerra Fria, as superpotncias convergiram em importantes assuntos, como quanto a dar fim aos histricos regimes de imprios coloniais ou quanto ao banimento do fascismo explcito em literatura ou em estatutos societrios. O confronto comeou a ter forma definida a partir da luta pelo domnio poltico sobre a Alemanha e o bloqueio de Berlim ocidental pelos soviticos.

    Descolonizao. A ideologia da descolonizao se encontra nas razes histricas das revolues, americana e comunista. Na prtica, a descolonizao modertna serviria expanso do capitalismo americano, de um lado, e extenso da influncia sovitica, do outro. Seria impossvel chegar globalizao com enormes reas geogrficas de alto valor econmico, fechadas e monopolizadas por metrpoles imperiais. Ter de pedir visto em Londres para visitar a ndia.

    O desmantelamento colonial acarretou a independncia de toda a frica negra, dos pases saarianos e subsaarianos, de pases de uma faixa que se estende do Oriente Prximo ao Sudeste Asitico e Austrlia. No caso do imprio ingls j foi mencionada sua particularidade, dadas as vastas colnias de povoamento, Canad, Austrlia e Nova Zelndia, com

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  • elevados graus de autonomia e parecendo estados de uma Federao. Isso contribuiu para a sada mais tranquila da Inglaterra do regime colonial. No caso da Frana, a colonizao com populao francesa em regies argelinas e vietnamitas se realizou em pases com fortes culturas j estabelecidas, e as independncias destes pases se deu em meio a lutas sangrentas. O Canad hoje aparece como um trao de unio entre a Inglaterra e os Estados Unidos na poltica internacional.

    A descolonizao multiplicou o nmero de pases rabes e de pases islmicos independentes e deu ensejo ao incio da elevao do chamado mundo rabe e islmico, a ator de primeira grandeza no atual quadro poltico mundial. A luta pela influncia nesse mundo serviu de mais uma motivao da Guerra Fria. Na atualidade, esse mundo rabe e islmico j bastante forte para delinear o seu prprio percurso. Tambm no contexto desse espao geogrfico nasceu o Estado de Israel, com o voto das duas superpotncias.

    O Estado de Israel e o mundo rabe e islmico. A Palestina era uma provncia otomana que passou ao mandato ingls outorgado pela Liga das Naes, aps a Primeira Guerra Mundial. J em 1917, antes do fim do conflito, atendendo a reclamos sionistas, a Inglaterra emitiu a Declarao Balfour, dizendo ver com bons olhos a instalao de um lar nacional para o povo judeu na Palestina. Os ingleses dividiram a Palestina otomana em Palestina propriamente dita, a oeste do rio Jordo, e Transjordnia, a leste. Nesta ltima foi estabelecido um reino, hachemita, que depois passou a se chamar Jordnia. A Palestina propriamente dita passou a ter uma rea de cerca de 26 mil quilmetros quadrados, pouco mais da metade do estado do Rio de Janeiro. Em 1947, a ONU determinou a partilha desse pas em dois, uma parte destinada ao Estado de Israel. Tratava-se, portanto, de um Estado minsculo. Qual, pois, a razo de reservar amplo espao para tratar deste assunto?

    A questo rabe-judaica deflagrada com a criao do Estado de Israel das mais centrais nas presentes tenses internacionais, sendo que Israel presumivelmente uma potncia atmica. Por outro lado, a criao de Israel contribui, de forma nica, para a compreenso das possibilidades plurais, ao assumir uma permanncia ideolgica milenar. Ela ilustra o reaparecimento de uma instituio formal extinta h 1.940 anos. Alm disso, a questo de Israel suscita questionamentos quanto a julgamentos de valor moral e tico sobre acontecimentos histricos atuais.

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  • At o surgimento do Iluminismo e da secularizao, a judeidade na Europa vinha sendo sustentada basicamente pela memria religiosa de linhagem de geraes que conduz aos patriarcas bblicos; e pela resignao religiosa s perseguies anti-semitas. A partir do sculo XVIII, Iluminismo e secularizao, alm de atuarem para a insero cidad dos judeus no Estado moderno, influram no surgimento de movimento polticos internos judeidade. O fato de os judeus continuarem a ser vistos como corpo estranho por amplos setores das outras populaes motivou movimentos polticos surgidos nas comunidades judaicas europias durante a modernidade, dirigidos ao sionismo, ao socialismo e ao comunismo. A viso comunista, propondo a dissoluo de identidade nacional judaica, se ajustava viso proftica, do fim de todas as identidades nacionais. Substitua o movimento da converso religiosa, ou de se assimilar pela cultura laica do pas de nascimento, muito comum entre os educados, nos pases ocidentais. Quanto ao sionismo, foi influenciado pelo descrdito numa soluo utpica, acentuado pelo caso Dreyfuss, Ele nasceria justamente na Viena do Imprio Austro-Hngaro, afetado pelos movimentos de libertao nacional das chamadas minorias, como a tcheca, a hngara, a croata, a eslovena.

    Sionismo e socialismo eram, pois, estratgias defensivas da judeidade. A assimilao total, com perda de identidade judaica, ocorria majoritariamente nas grandes cidades, nas camadas mais cultas, de classe alta e mdia, e nos pases mais modernizados e desenvolvidos, como Inglaterra, Frana e Alemanha. Por outro lado, sionismo, socialismo e comunismo grassavam entre as camadas populares dos pases menos desenvolvidos da Europa Central e Oriental.

    Aps a Primeira Guerra Mundial, tchecos, hngaros, poloneses, lituanos, entre outros, formaram seus Estados-nao. Sem referncias ancestrais na Europa, o sionismo se voltou para a Palestina, com o propsito de instalar um Estado nacional judaico. Palestina era o nome imposto pelos romanos antiga Judia, depois da destruio de Jerusalm no ano 70 DC. L, desde a Antiguidade, fora mantida importante comunidade judaica. A Cabala foi desenvolvida na Alta Galilia, em Safed, desde o sculo XI. No sculo XVIII e no incio do XIX, no contexto do romantismo alemo, se estabeleceu uma corrente migratria de judeus da Alemanha e da ustria para a Palestina, sem conotao poltica explcita. No fim do sculo XIX teve incio a colonizao sionista O primeiro kibutz, aglomerado agrcola industrial em regime socialista, Degnia, do comeo do sculo XX. Tambm a cidade de Tel Aviv est

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  • completando 100 anos. Nessa poca conviviam na antiga Palestina duas comunidades, uma judaica de 80 mil habitantes, outra rabe de 300 mil, ambas sem identidade nacional estatal moderna. Uma se vinculava ao povo diasprico judaico; a outra, im, a nao rabe estendida sobre o Oriente Mdio.

    Durante o sculo VIII deu-se a expanso rabe pelo Oriente Mdio, frica do Norte e Espanha. Essa expanso no se reduzia colonizao; ela compreendia a converso de populaes ao islamismo e cultura rabe inclusive de judeus. provvel que setores das comunidades judaicas na Palestina tenham se convertido ao islamismo durante as invases rabes. Isso daria algum sentido declarao de Arafat de que Jesus era palestino. Todavia, Jesus foi um judeu praticante, supostamente relacionado seita dos essnios. Existem registros histricos quanto a um movimento messinico judaico em meados do sculo XVII, liderado por Shabbetai Zevi, na sia Menor, e articulado com setores judaicos residentes na Palestina. Esse lder acabou se convertendo ao islamismo e assumiu um cargo no palcio do sulto; com ele, converteram-se muitos de seus seguidores (EBAN, 1984:216-218).

    Embora organizados em cls e reinos, e de viverem conflitos internos, os rabes mantiveram muito viva uma natureza comum s religies monotestas: a de que a um deus corresponde um povo. Am, povo/nao para a judeidade; um para os rabes; nao crist para a cristandade. No caso da cristandade, a separao entre a Igreja Romana e os ortodoxos de Constantinopla, depois o protestantismo, seguido da industrializao, da modernidade e da secularizao, foram retirando o sentido nacional de povo cristo. A identidade associada religio continua forte entre judeus e povos rabes e muulmanos. O movimento da Al Qaeda de Bin Laden sustenta ao extremo o retorno do Califado para uma nao rabe restaurada.

    A industrializao e a modernizao europia, acompanhadas pelo desenvolvimento da forma de Estado-nao, de sua laicidade e de uma individuao crescente, distanciaram o mundo europeu do mundo rabe e muulmano. Em 1918, o Imprio Otomano se reduziu de vez Turquia. Nesta se esboou uma reao, com a revolta de coronis conhecidos como os jovens turcos, liderados por Ataturk, que estabeleceram a repblica e a separao do Estado da religio. Um problema atual do pas consiste justamente no crescimento de partido que exerce forte presso pela restaurao da religio oficial do Estado. Quase todo o restante do mundo

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  • muulmano, s vsperas da Segunda Guerra Mundial, estava subjugado pelo colonialismo europeu.

    A diviso territorial poltica imposta pelos interesses do colonialismo europeu recobriu indistintamente divises geogrficas preexistentes associadas a distribuies de tribos e etnias locais. A poltica abomina o vcuo. Assim, a descolonizao se fez com grupos proclamando independncia e ocupando o poder de Estados ajustados s fronteiras coloniais. Logo surgiriam outros grupos lutando pelo mesmo poder, provocando um processo de consolidao de uma nova nao. Na frica negra, em muitas regies essa consolidao dbil, havendo lutas tribais sangrentas. No Oriente Mdio, o Egito e a Sria ensaiaram unir-se numa repblica nica, mas fracassaram. Tambm o Imen acabou dividido em dois Estados. Afinal, a um na forma de um Estado/nao no se realiza apenas com pares de Estados. Por outro lado, o ingresso no capitalismo, em suas formas histricas iniciais, se realiza pela diviso em burguesias nacionais localizadas em cidades centrais. A herana de nao rabe, e de nao muulmana, surgir na formao de um bloco de pases atuando coordenadamente em questes internacionais, numa poca em que o mundo inteiro caminha para a formao de grandes blocos polticos e econmicos regionais.

    Quando a ONU aprovou, em 1947, a partilha da Palestina entre rabes e judeus, e a internacionalizao de Jerusalm, essa atuao rabe coordenada se manifestou na rejeio unnime da resoluo pelos pases rabes e muulmanos. O Egito ocupou a Faixa de Gaza, e a Jordnia ocupou a Cisjordnia e a parte velha e oriental de Jerusalm. A parte velha continha bairros muulmanos, judaicos, ortodoxos e armnios, e os monumentos mais venerados das religies monotestas, o Muro das Lamentaes, parede remanescente do templo da poca de Jesus, o Santo Sepulcro e a mesquita de Omar. Egpcios e jordanianos permaneceram nestas regies at 1967, quando foram ocupadas por Israel durante a Guerra dos Seis Dias. Ao longo de 20 anos, no foram constitudas instituies nacionais palestinas nas regies controladas por egpcios e jordanianos.

    Vale lembrar que, apesar do empenho pessoal de Oswaldo Aranha, presidente da Assembleia Geral da ONU, em 1947, pela aprovao da partilha, o governo de Dutra levou anos para reconhecer Israel. O chefe de Estado de Israel, Ben Gurion, do Partido Trabalhista, de orientao socialista, foi o primeiro presidente da histria a aparecer sem gravata e em

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  • mangas de camisa. Para defender sua existncia, Israel recebeu armamento tcheco, portanto com anuncia sovitica. Para muitos, Israel se transformaria logo num satlite sovitico.

    Com a Guerra Fria, Israel acabou ficando na esfera americana, enquanto a Unio Sovitica passou a dar apoio causa rabe. As duas maiores comunidades da dispora judaica eram a americana e a sovitica. Ficou patente que, se a americana podia exercer presso sobre a opinio pblica, essa possibilidade no existia do lado sovitico. Imiscuir-se num mundo muito mais populoso e rico em petrleo era muito mais rendoso para os soviticos, que inclusive passaram a dar suporte oficial ao antissemitismo. Por outro lado, o capitalismo alcanou elevados nveis de desenvolvimento em Israel, ao lado de setores cooperativos socialistas. O pas optou pela aliana com os Estados Unidos como sada de sobrevivncia.

    Com a ocupao de toda a antiga Palestina em 1967, particularmente aps 1973, quando a ao militar egpcia levou ao primeiro recuo territorial de Israel, devolvendo o Sinai ao Egito, a resistncia a Israel, nas mos dos prprios palestinos, se intensificou. Eles passaram a desenvolver uma identidade nacional nos moldes do capitalismo e da modernidade. Israel, que inicialmente se viu em conflito com os pases rabes, agora tambm enfrentava as reivindicaes palestinas, alm dos envolvimentos com a Guerra Fria.

    O mundo rabe e islmico formado de Estados independentes aps a Segunda Guerra Mundial passou a ser tomado por diversos movimentos polticos e ideolgicos. De forma resumida e esquemtica se registram certas afinidades destes movimentos com a variedade de correntes presentes no centro e na periferia do mundo ocidental. A corrente associada ao crescimento de burguesias urbanas se aproxima dos modelos democrticas estveis do Ocidente, quer na forma monrquica, caso do Marrocos, quer na forma republicana, caso da Tunsia. Em regies de forte permanncia da forma de cls, na pennsula arbica, mantm-se antigos regimes de reinos e emirados. Da esquerda soprou o movimento marxista, que participou ativamente na luta pela independncia na Arglia, aonde chegou a estar no poder. No Ir, os marxistas chegaram a governar, com Mossadegh, e a participar na derrubada do poder real iraniano. No entanto, condies objetivas, considerada particularmente a fora da religio islmica, impediram qualquer consolidao de regimes socialistas no mundo rabe ou muulmano Os pequenos setores marxistas urbanos que

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  • apoiaram movimentos populistas, em geral sob liderana militar, como no caso do Egito, com Nasser, ou do Iraque, com Saddam Hussein, acabaram dizimados. Os movimentos populistas se alimentavam do descontentamento popular com o subdesenvolvimento e com a corrupo dos governantes. Os regimes populistas receberam o apoio da Unio Sovitica, mesmo quando se livravam dos comunistas. A Guerra dos Seis Dias resultou do cerco militar de Israel promovido por Nasser com apoio sovitico. No entanto, os regimes populistas tambm provocaram descontentamento entre suas populaes. Somavam-se insatisfaes, com a tendncia pratica autoritria e perpetuao de um grupos no poder, com a tendncia corrupo impune, e com o laicismo praticado por esses regimes. O que fez crescer partidos religiosos e clericais no Isl, que uma vez no poder, como no caso do Ir, dirigido pelos aiatols, imprimem a forma fundamentalista e a de um novo populismo. O mundo islmico dividido por seitas religiosas, em alguns casos coexistentes num mesmo pas, fonte geradora de conflitos, como os que ocorrem atualmente no Iraque. O poder clerical do Ir sustenta movimentos fundamentalistas no Lbano e em Gaza. O movimento fundamentalista islmico forte no Egito, na Arglia e penetra a Turquia.

    O desenvolvimento do fundamentalismo islmico se inicia na poca em que se do o declnio e o desaparecimento da Unio Sovitica. O mundo islmico estava crescendo no quadro mundial em termos demogrficos, econmicos e polticos. Um crescimento expresso no manejo poltico do petrleo, a partir de 1973; na ampliao do nmero de Estados islmicos na sia Central, devido ao fim da Unio Sovitica; no domnio da bomba atmica pelo Paquisto. Assim o desenvolvimento do fundamentalismo islmico se junta ao desenvolvimento da China, da ndia, do Brasil, para dar novas formas ao quadro mundial. O fundamentalismo islmico, dado seu compromisso particular com o passado, procura-se colocar frente da ideia do retorno s antigas glrias do Isl e da expulso da influncia ocidental de todo o espao geogrfico tido como islmico. O setor mais extremista nesse sentido representado pela Al Qaeda, do lder sunita Bin Laden, que prope o restabelecimento do califado.

    Desse modo, a ascenso de partidos religiosos radicais agrava a questo palestino/israelense, uma vez que para eles inadmissvel antiga terra dominada pelo Isl ser cedida a infiis. Alm disso, a aceitao de Israel equivaleria aceitao da penetrao da modernidade ocidental no mundo islmico.

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  • O mundo rabe e islmico se encontra atualmente dividido entre as formas de modernidade globalizante e as de modernidade instrumental fundamentalista. A modernidade instrumental absorve a modernidade tecnolgica ocidental, mas no o conjunto de seus valores sociais. O setor globalizante tende a aceitar uma soluo negociada com Israel, porm, ante a presena da fora fundamentalista, se v obrigado a impor condies difceis para esse pas: particularmente, o retorno de descendentes de refugiados palestinos para o territrio israelense, e no para um futuro Estado palestino, e a devoluo de toda a Velha Jerusalm.

    A questo rabe/israelense expe um profundo e interessante problema tico-poltico cujo julgamento de valor, em geral, tem sido embaralhado pela mistura de lgicas pertinentes s formas sociopolticas atuais, com lgicas que apelam a sistemas antigos. A lgica dos sistemas atuais de Estados/nao mais fcil de ser entendida e resolvida. De um lado, uma comunidade palestina estabelecida sobre um territrio h sculos, que adquiriu identidade nacional a partir dos anos 1970, e que legitimamente reivindica seu Estado. Do outro lado, uma comunidade judaica tambm estabelecida h sculos sobre o mesmo territrio, embora em menor nmero, que cresceu com imigraes macias desde o comeo do sculo XX, particularmente aps a Segunda Guerra Mundial, e que tambm reivindica o seu Estado.

    Os palestinos acusam a imigrao judaica promovida por instituies sionistas, como forma de colonizao imperialista. Os judeus argumentam que ela se realizou de forma legal e relativamente pacfica, num territrio que no dispunha de uma entidade nacional prpria. Argumentam que, quando os alemes j estavam em El Alamein, foi a comunidade judaica que formou batalhes para o 8 exrcito, o de Montgomery, enquanto o mufti de Jerusalm se encontrava em Berlim. Argumentam ainda que, na atualidade, a maior parte da sua comunidade j nativa do pas. Discutir a origem do sionismo intil, como seria intil discutir hoje a legitimidade dos pases resultantes da colonizao das Amricas. Uma vez que as duas comunidades se distribuem majoritariamente segundo regies diferentes, cada lado reconheceria os direitos do outro e negociaria a diviso do territrio em dois Estados.

    Contudo, apelando lgica do passado, o argumento palestino pela totalidade do territrio, sustentado por um clamor rabe geral, que relembra a forma antiga de nao rabe. Desde o sculo VIII, o territrio disputado era parte do grande espao histrico e geogrfico rabe. Do

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  • outro lado, os judeus religiosos ortodoxos revidam, lembrando sua presena no territrio desde os tempos bblicos e a doao divina a seu povo. Os rabes chamam os judeus de racistas, por quererem um Estado judaico. Na verdade, a judeidade multirracial. Sua originalidade consiste na manuteno da forma antiga de identificao de religio e nao Quem adere religio judaica se torna automaticamente membro do povo judaico. Assim, os judeus respondem que uma Palestina seria mais um Estado/nao rabe, obedecendo em certa medida ao islamismo.

    Amplos setores da esquerda mundial passaram a apoiar o radicalismo islmico, na velha estratgia de sustentar qualquer movimento contrrio ao centro capitalista e globalizao. Nos confrontos empreendidos por setores islmicos com o mundo ocidental, aqueles contam tambm com a indiferena ou o apoio originado do pragmatismo interessado em negcios ou em criar dificuldades a concorrentes. No entanto necessrio cuidado com pragmatismos. Na obra citada no incio deste trabalho, l-se que a conscincia pode, s vezes, parecer mais avanada do que as relaes empricas contemporneas, de tal forma que nas lutas de um perodo posterior possa-se apoiar nos tericos anteriores como autoridades (MARX e ENGELS, 1996:113). Encontra-se nas religies monotestas e na filosofia grega princpios crticos ao individualismo extremo, presente atualmente no capitalismo. No entanto, no se confunde individualismo com desenvolvimento do indivduo, impedido em regimes teocrticos. Superar a diviso do trabalho, Ser e Essncia. Isto no possvel sem a coletividade e impossvel sem o completo livre desenvolvimento do indivduo que ele implica (MARX e ENGELS, 1996:116-117).

    . Diversidade, transmodernidade. A descolonizao foi seguida de extravasamentos polticos e culturais a partir da periferia. Um movimento convergente com a expanso generalizada das atividades culturais pelo mundo e conjugado maior mobilidade das populaes. Massas de migrantes dos pases perifricos passaram a se mover para o centro, massas de turistas dos pases do centro passaram a visitar a periferia. O processo passou a expor a riqueza da diversidade da vida social no mundo, alm de provocar conflitos, como os derivados da competio dos migrantes, oferecendo mo de obra mais barata. Ou, relacionados ao preconceito ativado pelos encontros.. Na esteira destes movimentos foram introduzidos novas idias e posicionamentos polticos. O crtico literrio Edward Sad (2007) insistiu na hermenutica do sentido prprio de cada cultura e trouxe o conceito da cultura do viajante, que trata de mudanas comportamentais do indivduo resultantes de sua passagem por diferentes regies em que

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  • passa a viver. A defesa da convivncia de populaes com profundas diversidades culturais e a manifestao do princpio da diversidade so traos da ps-modernidade. Atenuam o ideal homogeneizador da modernidade, retirando a idia de um padro cultural nico para o mundo. O princpio da diversidade se inspira na evoluo da biosfera, no desenvolvimento da vida no planeta. Esta se realizou com a proliferao de espcies, por meio de mutaes, de hibridismos e de ajustes a ambientes ecolgicos. Na natureza no se apresentam fronteiras impostas deliberadamente para separar as relaes e a convivncia entre os diversos. Foi o intercmbio, a mobilidade, que fez a vida se desenvolver. As andorinhas no cessam de voar de um ecossistema a outro. Do mesmo modo, a histria da diversidade cultural do homem uma histria de encontros e mixagens de raas e culturas e de ajustes a ambientes territoriais.

    No entanto, o princpio da diversidade passou a ser utilizado por certos setores polticos como justificativa de formas de auto-enclausuramento de naes o que no fundo trava o movimento da diversidade, inclusive o da diversificao interna a cada nao. Por exemplo, quando se chicoteiam mulheres no Sudo por vestirem calas ou se executam homens no Ir por serem homossexuais. Certos setores marxistas caram em contradio, aqueles que se posicionaram contra a ps-modernidade, devido valorizao que esta d a uma diversidade oposta a uma homogeneidade modernista radical. Depois, oferecem apoio utilizao da diversidade como justificativa para o fechamento de naes por regimes tradicionalistas, contra a modernidade, desde que se coloquem em choque com a globalizao e o centro capitalista. No importa se tratar de uma marcha a r e contrria ao internacionalismo. Na verdade a questo que se apresenta a de como compor homogeneidade e diversidade necessrias.

    No Brasil, a valorizao da diversidade se manifestou em mudanas no posicionamento da sociedade e dos governantes frente s culturas indgenas remanescentes. Na poca getulista, a ideologia oficial reclamava a aculturao dirigida dos ndios. A perversidade era encoberta fazendo-se estudantes secundaristas cantar estrofes nativistas de Villa-Lobos, como O canto do paj, nas comemoraes da Semana da Ptria. Na atualidade, o consenso deixar cada tribo decidir o quanto de aculturao ao padro dominante deseja assimilar um respeito que, contudo, no pode admitir qualquer retorno antropofagia fsica.

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  • Antropofagia fsica, porque na Semana Moderna de So Paulo, de 1922, o Manifesto antropofgico, com Mrio de Andrade. a antropofagia assume um sentido figurado de assimilao cultural. O atual processo indigenista boliviano tambm ilustrativo de antropofagia cultural, ao lanar slogans socialistas, de ideologias polticas de origem ocidental, em meio a cerimnias em que se ascendem fogueiras da tradio indgena (ROCHA, 2008).

    A nova geografia do sistema-mundo que se vem formando desde o fim da guerra, sob impulsos econmicos, polticos e culturais, tem tirado o sentido da antiga nomeao de um centro e de uma periferia e dando margem a termos novos e velhos, como Norte e Sul, Ocidente e Oriente. Uma nova escola de pensamento cultural surgiu com o movimento de desenvolvimento nas regies perifricas ao antigo centro capitalista, a escola da chamada cultura ps-colonial. A ocupao do cenrio mundial pela multitude de culturas originadas de todas as partes do planeta provocou a proposio do termo transmodernidade, inclusive como substituto para ps-modernidade (DUSSEL, 2002).

    No plano nacional, o processo se manifesta na forma de nichos de cultura popular se elevando para ocupar lugar no espao geral da cultura brasileira. o caso de movimentos como o do Ns do Morro, aluso s favelas, ou do Afro reggae, tambm na cidade do Rio de Janeiro.

    Alguns membros dessa escola chegam ao radicalismo poltico de considerar movimentos culturais sem vnculo com a cultura ocidental. Deixam de lado o fenmeno universal do intercmbio e de formas de permanncia do passado. Ignoram a influncia marxista em setores indgenas na Amrica do Sul, Mrio de Andrade e a antropofagia.

    A Guerra Fria. Finda a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos emergiram como a nica grande potncia que escapou de destruies em seu territrio e com perdas relativamente pequenas de vidas. Passou a dispor de amplos espaos econmicos para a converso da economia em tempos de paz, aparecendo como grande potncia econmico-financeira e militar. J a Unio Sovitica perdeu milhes de vidas e sofreu gigantescas destruies. Enfrentando enorme escassez, voltou-se, na reconstruo, para as indstrias de base para manter sua condio de potncia hegemnica. A estratgia americana para manter e ampliar espaos de influncia fundou-se em seu poderio econmico-financeiro e militar, vendendo seu modelo consumista; a da Unio Sovitica, no proselitismo do socialismo e no suporte a movimentos contra os pases hegemnicos capitalistas. No plano

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  • mundial, passou a atuar como grande potncia militar. Alguns confrontos armados chegaram a ocorrer, envolvendo aliados das duas superpotncias, como a guerra entre as Coreias, a do Norte e a do Sul (1953-56). No entanto, os dois protagonistas, apesar de alguns incidentes militares, nunca se enfrentaram belicamente.

    Em 1948, os Estados lanaram o Plano Marshall, uma oferta de financiamento de mais de 11 bilhes de dlares (da poca) para a reconstruo da Europa e do Japo. A URSS recusou participar e impediu sua aceitao pelos Estados satlites. O Plano deu suporte a um novo surto capitalista na Alemanha Ocidental, a ocupada pelas foras anglo-franco-americanas, e aprofundou o desnvel econmico com a Alemanha Oriental. Os soviticos intensificaram o levante de barreiras entre as duas Alemanhas, e a Guerra Fria foi de