175
Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de Ciência Política SUE ANGÉLICA SERRA IAMAMOTO O nacionalismo boliviano em tempos de plurinacionalidade: Revoltas antineoliberais e constituinte (2000-2009) São Paulo 2011

O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

  • Upload
    lephuc

  • View
    213

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Departamento de Ciência Política

SUE ANGÉLICA SERRA IAMAMOTO

O nacionalismo boliviano em tempos de

plurinacionalidade: Revoltas antineoliberais e constituinte (2000-2009)

São Paulo

2011

Page 2: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

ii

Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Departamento de Ciência Política

SUE ANGÉLICA SERRA IAMAMOTO

O nacionalismo boliviano em tempos de

plurinacionalidade: Revoltas antineoliberais e constituinte (2000-2009)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em Ciência Política. Orientador: Prof. Dr. Bernardo Ricupero

São Paulo

2011

Page 3: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

iii

Agradecimentos

Paralelo ao desenvolvimento deste trabalho, tive que percorrer uma difícil travessia do

jornalismo para a ciência política. Só consegui atravessá-la graças a muitas ajudas que fui

recebendo durante estes últimos dois anos e meio.

Em primeiro lugar, agradeço ao CNPq pelo fundamental apoio financeiro a esta

pesquisa.

Sou imensamente grata a meu orientador, Bernardo Ricupero. Leitor cuidadoso, ele

me guiou nos meandros da nova área, ajudando-me a superar e a desenvolver minhas

“intuições” sobre a vida política boliviana. Se este trabalho é algo mais do que uma narração

jornalística, grande parte do mérito é dele.

Também agradeço a Cicero de Araújo e Luiz Bernardo Pericás, que participaram da

banca de qualificação e deram valiosas contribuições para o desenvolvimento da pesquisa.

Sou grata ao Departamento de Ciência Política e seu corpo docente que me ajudaram

a compreender alguns dos meandros da área, tanto por meio dos seminários semanais quanto

por meio das disciplinas teóricas e metodológicas que cursei. Em especial, gostaria de

reconhecer o importante auxílio dos funcionários da pós-graduação do departamento: Rai e

Vasne.

Na Bolívia, o apoio de Juan Carlos Pinto foi essencial para ter acesso aos documentos

da constituinte. Agradeço imensamente a sua ajuda. Além de Juan Carlos, também sou grata

a todos que generosamente cederam seu tempo para as longas entrevistas e conversas que este

trabalho envolveu: Adolfo Mendoza, Alejandro Almaraz, David Choquetilla, Felix Cárdenas,

Eduardo Córdova, Eugenio Rojas, Gabino Apata, Gamal Serhan, Jorge Lazarte, Luis Tapia,

Macario Tola, Marco Llorenti, Patricia Costas, Pedro Nuny, Ramiro Molina e Raúl Prada.

Muitos colegas de departamento também me ajudaram a passar por esta travessia.

Reconheço que minhas idas e vindas do Brasil à Bolívia não me permitiram aproveitar

melhor sua companhia, mas sei que são amizades que carrego para além deste curto período

de mestrado.

Agradeço a Salvador, Carol, Heloísa e Jay, com os quais compartilho a paixão por

estudar a Bolívia e que me ajudaram com contatos, indicações de texto e, principalmente,

longas conversas. Com eles aprendi que a vida acadêmica pode e deve ser generosa.

Sou muito grata a Andrés, Dado, Patrick e Vinícius, que fizeram a minha estadia nos

Andes mais alegre e companheira.

Page 4: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

iv

Muito do meu interesse na Bolívia se deve a preocupações que surgiram durante a

minha militância política nos últimos nove anos. Agradeço aos companheiros que dividiram

esta militância comigo, tanto no movimento estudantil quanto na organização política.

Agradeço a Abraham, meu companheiro, que me ensinou que o C. D. Tenerife é o

clube de futebol mais importante da Espanha (e outras tonterías equivalentes que alegram

minha vida todos os dias).

Por fim, agradeço aos meus pais e aos meus irmãos, minhas escoras no mundo.

Page 5: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

v

IAMAMOTO, S. A. S. O nacionalismo boliviano em tempos de plurinacionalidade: Revoltas

antineoliberais e constituinte (2000-2009). Dissertação de mestrado. Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.

Resumo

Esta dissertação tem como objetivo analisar o nacionalismo na vida política da Bolívia contemporânea, em especial no interior do bloco histórico (em sentido gramsciano) popular que se forma a partir de 2000 e que passa a ocupar os principais postos do Estado com a eleição de Evo Morales em 2005. Seu recorte temporal cobre as chamadas “guerras” antineoliberais (Guerra da Água em 2000, Guerra do Gás em 2003 etc.) e o processo constituinte, que vai da Assembleia Constituinte (2006-2007) até a aprovação da nova carta constitucional em um referendo nacional (2009). A nova constituição inaugura um “Estado plurinacional”, refletindo uma demanda histórica pelo reconhecimento da pluralidade cultural e institucional do país. A partir de autores que concebem o nacionalismo como expressão de determinado conflito político (Tom Nairn, Ernest Gellner) ou como expressão de experiências históricas populares (Anthony D. Smith), foi possível entender o nacionalismo de maneira ampla. Assim, foi possível estabelecer relações entre o nacionalismo e o indigenismo, analisando este último com algumas categorias pensadas originalmente para o exame do primeiro. Por outro lado, para entender a formação de identidades coletivas nacionais bolivianas, foi necessário recorrer à ideia de “tempos sociais” que se cruzam em épocas de crise do Estado ou em situações revolucionárias, evitando a categorização étnica. Do ponto de vista empírico, analisou-se os documentos sobre “Visão de País” formulados pelas 16 agrupações políticas que participaram da constituinte. A análise do período nos levou a três principais considerações finais. Primeiro, há neste bloco histórico uma tensão, que pode levar à sua fragmentação, entre a demanda por maior estatalidade e a demanda por maior autonomia dos setores populares. Segundo, é possível pensar a vigência de certo nacionalismo no país, mesmo em tempos de plurinacionalidade; mas este nacionalismo precisa ser entendido como expressão de uma síntese cunhada em diversidades, não como uma monoculturalidade, que surge a partir de experiências políticas compartilhadas pela sociedade. Terceiro, as teorias de nacionalismo abordadas são desafiadas com o indigenismo boliviano, que nos traz um exemplo de “olhar para o passado” no qual o elemento irracional não está no apelo ao passado, mas sim no presente.

Palavras-chave: nacionalismo, plurinacionalidade, Bolívia, Assembleia Constituinte, revoltas antineoliberais.

Page 6: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

vi

IAMAMOTO, S. A. S. Bolivian nationalism in time of plurinationality: anti-neoliberal

uprisings and Constituent Assembly (2000-2009). Master dissertation. Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.

Abstract

This dissertation aims to analyze nationalism in Bolivian contemporary political life, in particular within the popular historic bloc (as conceptualized by Gramsci) that emerges from 2000 and, with the election of Evo Morales in 2005, begins to occupy the key positions of the state. Its time frame covers the so-called anti-neoliberal "wars" (Water War in 2000, the Gas War in 2003 etc.) and the constitutional process, which runs from the Constituent Assembly (2006-2007) until the approval of new constitution in a national referendum (2009).

The new constitution inaugurates a "plurinational state", reflecting a historical demand for the recognition of cultural and institutional diversity of the country. From authors who conceive nationalism as an expression of a particular political conflict (Tom Nairn, Ernest Gellner) or as an expression of popular historical experiences (Anthony D. Smith), it was possible to understand nationalism broadly. Thus, it was possible to establish relationships between nationalism and indigenism, analyzing the latter with some categories originally designed to examine the former. On the other hand, to understand the formation of collective national identities, it was necessary to resort to the idea of "social temporalities" that intersect in state crisis or revolutionary situations, avoiding ethnic categorization. From the empirical perspective, we analyzed documents on the "View of the Country" made by the 16 political groups which participated in the Constituent Assembly.

The analysis has led us to three main remarks. First, there is a tension inside this historical block which may lead to its fragmentation: the tension between the demand for greater statality and the demand for greater autonomy of the popular sectors. Second, it is possible to consider valid certain nationalism in Bolivia, even in times of plurinationality; but this nationalism must be understood as an expression of a synthesis of diversity, not as a mono-culturality, that emerges from shared political experiences. Third, the discussed theories of nationalism are challenged with the Bolivian indigenism, which brings us an example of "looking back" in which the irrational element is not in the appeal to the past, but in the present.

Key-words: nationalism, plurinationality, Bolivia, Constituent Assembly, anti-neoliberal uprisings.

Page 7: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

vii

IAMAMOTO, S. A. S. El nacionalismo boliviano en tiempos de la plurinacionalidad:

revueltas anti-neoliberales y constituyente (2000-2009). Trabajo final de maestría. Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.

Resumen

Este trabajo tiene como objetivo analizar el nacionalismo en la vida política de Bolivia contemporánea, en especial en el bloque histórico (en el sentido gramsciano) popular que surge a partir del año 2000 y que termina accediendo a los principales cargos del Estado con la elección de Evo Morales en 2005. Su marco temporal cubre las llamadas “guerras” antineoliberales (Guerra del Agua en el 2000, Guerra del Gas en 2003, etc.) y el proceso constituyente que va de la Asamblea Constituyente (2006-2007) hasta la aprobación de la nueva carta constitucional en un referéndum nacional (2009). La nueva constitución inaugura el “Estado plurinacional”, lo que refleja una demanda histórica por el reconocimiento de la pluralidad cultural e institucional del país. A partir del estudio de autores que conciben el nacionalismo como la expresión de determinado conflicto político (Tom Nairn, Ernest Gellner) o como la expresión de experiencias históricas populares (Anthony D. Smith), fue posible entender el nacionalismo de manera amplia. Todo esto hizo posible establecer relaciones entre el nacionalismo y el indigenismo, analizando este último con algunas categorías pensadas originalmente para el examen del primero. Por otro lado, para entender la formación de identidades colectivas nacionales bolivianas fue necesario recurrir a la idea de “tiempos sociales” que se cruzan en época de crisis del Estado o en situaciones revolucionarias, evitando la categorización étnica. Desde el punto de vista empírico, analiza documentos sobre “Visión de país” formulados por las 16 agrupaciones políticas que participaron en la constituyente. El estudio del periodo nos llevó a tres consideraciones finales principales. Primera, en este bloque histórico se registra una tensión que se podría dividir entre la demanda de mayor estatalidad y la de mayor autonomía de los sectores populares. Segunda, es posible pensar en la vigencia de cierto nacionalismo en el país, incluso en tiempos de plurinacionalidad, pero este nacionalismo debe ser entendido como la expresión de una síntesis acuñada en diversidades, no en una monoculturalidad, que surge de experiencias políticas compartidas en la sociedad. Tercera, las teorías del nacionalismo abordadas son desafiadas por el indigenismo boliviano, que aparece como ejemplo de “mirar al pasado” en el que el elemento irracional no está en el apelo al pasado sino en el presente. Palabras clave: nacionalismo, plurinacionalidad, Bolivia, Asamblea Constituyente, revueltas antineoliberales.

Page 8: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

viii

Lista de siglas

Agrupações e frentes políticas

AAI - Alianza Andrés Ibáñez ADN - Acción Democrática Nacionalista APB - Autonomía para Bolivia AS - Alianza Social ASP - Alianza Social Patriótica Ayra - Movimiento Ayra CN-PI - Concertación Nacional (Patria Insurgente) MAS-IPSP - Movimiento al Socialismo – Instrumento Político por la Soberanía de los Pueblos MBL - Movimiento Bolivia Libre MCSFA - Movimiento Ciudadano San Felipe de Austria MIR - Movimiento de Izquierda Revolucionaria MNR - Movimiento Nacionalista Revolucionario MNR-A3 - Movimiento Nacionalista Revolucionario – A3 (Santa Cruz) MNR-FRI - Movimiento Nacionalista Revolucionario – Frente Revolucionario de Izquierda MOP - Movimiento Originario Popular PCB – Partido Comunista Boliviano Podemos - Poder Democrático y Social UDP - Unión Democrática y Popular UN - Unidad Nacional

Organizações sociais

Cidob - Confederação Indígena do Oriente Boliviano (na fundação) / Confederação de Povos Indígenas da Bolívia (hoje) COB - Central Operária Boliviana Conamaq - Conselho Nacional de Ayllus e Markas do Qullasuyo CSCIB - Confederação Sindical de Comunidades Interculturais da Bolívia (ex-CSCB, Confederação Sindical de Colonos da Bolívia). CSUTCB - Confederação Sindical Única dos Trabalhadores Camponeses da Bolívia FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses Apiaguaiqui Tumba de Santa Cruz

Outros

CNE - Corte Nacional Eleitoral DEA - Drug Enforcement Agency (agência norte-americana de combate às drogas) Inra – Instituto Nacional de Reforma Agrária LD – Lei de Descentralização LPP - Lei de Participação Popular NCPE – Nova Constituição Política do Estado

Page 9: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

ix

SNRA - Serviço Nacional de Reforma Agrária TCO - Terra Comunitária de Origem (após a aprovação do novo marco constitucional em 2009, tornou-se Território Comunitário de Origem)

Page 10: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

Sumário

Introdução ........................................................................................................................... 1 Capítulo 1 – Nacionalismo e conflito................................................................................... 6

A busca pelo desenvolvimento: periferia x centro .............................................................. 8

A luta entre culturas pelo poder ....................................................................................... 15

Origens étnicas e mitos históricos .................................................................................... 23 Capítulo 2 – Tempos sociais .............................................................................................. 31

Memórias revolucionárias e contradições diacrônicas ...................................................... 33

O tempo do operariado mineiro ....................................................................................... 36

O tempo do campesinato .................................................................................................. 41

O tempo indígena ............................................................................................................ 48

O tempo urbano-popular .................................................................................................. 55 Capítulo 3 – Nação versus Estado ..................................................................................... 62

Hegemonia, bloco histórico e crise .................................................................................. 63

A crise como fenômeno unificador .................................................................................. 67

Projetos em disputa .......................................................................................................... 70 Capítulo 4 – A formação do Estado Plurinacional ........................................................... 85

Panorama geral da Assembleia Constituinte ..................................................................... 86

Ressalvas e esclarecimentos sobre a análise ..................................................................... 88

Oposição ......................................................................................................................... 91

Situação ......................................................................................................................... 109

Considerações sobre “visões de país”............................................................................. 136

O fim do processo constituinte ....................................................................................... 139 Conclusões ....................................................................................................................... 144 Referências ....................................................................................................................... 155

Apêndices ......................................................................................................................... 163

Page 11: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

1

Introdução

Foi em uma entrevista com a jovem socióloga boliviana Marxa Chávez que escutei

pela primeira vez a ideia de que, na Bolívia, os “tempos políticos” se cruzam em épocas

revolucionárias1. Mais tarde, encontraria esta ideia nos escritos de René Zavaleta Mercado,

que fala de “tempos sociais” como expressão dos diversos modos de produção da formação

econômico-social boliviana (2009); de Silvia Rivera, que propõe a existência de uma

memória longa e uma curta (2003); de Forrest Hylton e Sinclair Thomson, que chamam estas

temporalidades de “horizontes revolucionários” (2007).

A “época revolucionária” em questão eram as chamadas “guerras” antineoliberais – a

Guerra da Água (2000), a Guerra da Coca (2002), a Guerra do Gás (2003) – que

chacoalharam o país nos primeiros anos deste século. Chamava-me a atenção o fato de que,

apesar da ideia de multiplicidade estar presente na formulação destes “tempos sociais”, era

bastante difusa a interpretação destas revoltas como somente uma expressão da “longa

memória” indígena. Algumas ações dos setores mobilizados, contudo, faziam com que esta

constatação parecesse um pouco incômoda: a reiterada reclamação dos setores mobilizados

contra uma suposta “elite antipátria” boliviana; o rechaço profundo que provocou a tentativa

de se vender o gás natural via um porto do Chile, antagonista histórico da Bolívia pela

questão do litoral pacífico; a constante denúncia do intervencionismo da Embaixada norte-

americana nas políticas locais. Assim, a característica que se mostrava mais interessante nas

revoltas antineoliberais não era a forma como elas reapresentaram o tempo indígena, mas sim

a maneira com que elas rearticularam estas temporalidades.

Talvez a decisão de estudar estes momentos da história boliviana por meio do

nacionalismo tenha sido uma insistência teimosa, exagerada, contra esta visão da

temporalidade indígena que, ao ser superdimensionada, também perdia sutilezas e

contradições fornecidas pela experiência histórica. Mas a proposta que realmente está por trás

da utilização do nacionalismo para pensar a política contemporânea boliviana é a de

investigar linhas de continuidade entre estes movimentos que irromperam no início do século

XXI e os movimentos que alimentaram a tradição revolucionária do país no passado. Entendo

por esta “tradição revolucionária” movimentos que surgiram do interior da sociedade

boliviana (ou da sociedade colonial que a antecedeu) que tiveram como objetivo mudar

completamente a estrutura estatal pela via da contestação direta do Estado vigente (que pode

1 Marxa Chávez León, entrevista realizada em 14 de dezembro de 2007, às vésperas da cerimônia de entrega da Nova Constituição Política do Estado.

Page 12: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

2

ocorrer por rebeliões armadas ou pela formação de estruturas paralelas que não mais

reconhecem a autoridade do Estado). Tal tradição se formou em diversas vertentes, que

perpassam pelas lutas indígenas anticoloniais e contra o regime de exploração da época

republicana, pela Revolução de 1952 e pela Assembleia Popular de 19722.

Em cada momento de luta, combatia-se por um ideal de coletividade, que não foi

sempre um ideal de “nação boliviana”, como no caso das lutas anticoloniais, mas que se

tornou fonte de inspiração para os ideais de nação que iriam surgir em outros momentos

revolucionários. Estas projeções nunca eram completamente abstratas, elas se referiam a

formações sociais concretas, com determinadas instituições, práticas sociais e políticas. De

certa maneira, ao aproximar “nação” às tradições revolucionárias, concordo com Régis

Debray quando este afirma que a experiência histórica demonstra que “o proletariado contra a

nação é como madeira contra aço” (Debray, 1977, p. 33). Ou seja, para existirem, revoluções

políticas populares (socialistas ou não) precisam reivindicar forças profundas, instintivas, que

não se traduzem em ideais muito abstratos, mas sim em experiências materiais concretas e

específicas dos atores políticos envolvidos no processo.

Neste sentido, podem ser identificados encontros entre o indigenismo e o

nacionalismo. Este trabalho sugere que parte da tradição indigenista boliviana pode ser

analisada pelas lentes do nacionalismo. Aqui não me refiro ao nacionalismo revolucionário

boliviano expressado historicamente pelo Movimiento Nacionalista Revolucionario (MNR),

que surgiu na primeira metade do século XX e foi a principal expressão eleitoral das forças

sociais que eclodiram na Revolução Nacional de 19523, mas sim ao nacionalismo como

expressão geral de um sujeito de soberania nativo, que luta frente a um adversário cujos

interesses são percebidos como prejudiciais a ele. O nacionalismo como um motivo enraizado

e profundo para a ação política de coletividades.

2 A memória revolucionária também está intrinsecamente ligada a momentos de guerra internacional, como a Guerra do Pacífico (1879-1883) e a Guerra do Chaco (1933-1936). Tais guerras, por terem sido derrotas e por terem representado vivências dramáticas por parte significativa da população (durante ou depois do conflito), permitiram uma reavaliação da sociedade boliviana e da agenda que se impunha a esta. Contudo, não terei condições de abordar a experiência das guerras neste trabalho. 3 A Revolução Nacional eclodiu em 9 abril de 1952. Tratava-se inicialmente de um golpe de Estado orquestrado pelo MNR em conjunto com parte das Forças Armadas bolivianas em resposta à anulação dos resultados eleitorais de 1951, em que o candidato do MNR Victor Paz Estenssoro havia alcançado a maioria dos votos. Mas a revolução rapidamente ganhou as ruas e centros mineiros, com os setores populares participando ativamente do processo político. Com a retirada da facção das Forças Armadas que apoiava o movimento, a revolução se efetivou com ampla participação dos setores populares, que ocuparam os quarteis. Após a revolução, formou-se um governo com participação operária, mas dirigido politicamente pelo MNR. Dentre as principais medidas políticas decorrentes da Revolução de 1952 estão: nacionalização das minas de estanho, reforma agrária e sufrágio universal. Sobre a Revolução de 1952, ver James Dunkerley (2003) e Everaldo de Oliveira Andrade (2007). No capítulo 2, serão abordados os efeitos deste momento político na formação dos “tempos” operário e camponês bolivianos.

Page 13: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

3

Nesta pesquisa, contudo, um dos principais desafios encontrados foi trabalhar com o

conceito de nacionalismo para que este pudesse iluminar a conjuntura política boliviana. Uma

primeira dificuldade é que os teóricos do nacionalismo que tiveram a região latino-americana

como referência para criar os seus modelos não viam nessa região qualquer rasgo de

nacionalismo “nativista” ou “étnico” e, quando viam, esta característica era minoritária e

indesejável. Benedict Anderson, por exemplo, identifica um nacionalismo em San Martín que

estava baseado na extinção da categoria “indígenas” por meio da cidadania. O nacionalismo

americano seria universalista e promoveria a ideia de uma comunidade nacional que somente

se definiria graças ao capitalismo de imprensa e por oposição à opressão da metrópole

(Anderson, 2008, p. 84-106). Também Eric Hobsbawm ressalta que o nacionalismo da

América Latina é marcado pelas suas características mais “universalistas”: anti-imperialista,

inclinado à esquerda, preocupado com as condições das massas populares (Hobsbawm, 2009,

p. 336). Por outro lado, a região andina é, para Hobsbawm, uma fonte de preocupação, já que

“ressentimento indígena contra os crioulos ou cholos” poderia fracionar o “melting pot latino-

americano” em “comunidades mutuamente hostis com base na raça, na língua ou qualquer

outra coisa”4 (ibidem, p. 342). A redução do indigenismo a um “ressentimento indígena”

histórico não me parecia uma abordagem adequada para analisar o caso boliviano. A solução

encontrada foi abordar teóricos do nacionalismo que elaboravam seus modelos com base em

um panorama de conflito político. O nacionalismo, nestas teorias, aparecia como uma

expressão de determinada polarização social ou política. Assim, faço no primeiro capítulo a

apresentação destas teorias e da forma como elas podem iluminar o caso boliviano.

Do ponto de vista teórico, portanto, foi possível estabelecer relações de continuidade

entre o nacionalismo e o indigenismo ao analisar este último por meio de lentes teóricas

pensadas originalmente para o primeiro. Assim como o nacionalismo, o indigenismo evoca

sentimentos ancestrais de identidade de uma população para propor um projeto político. Em

comparação com o nacionalismo, contudo, é possível que os projetos indigenistas não tenham

um foco no futuro tão marcante e entendam os seus sujeitos sociais de maneira mais restrita.

Contudo, pelo menos em um país como Bolívia em que há uma grande maioria da população

que se autoidentifica como indígena5, há indigenismos que se desenvolvem como projetos

nacionais. Estes são os mais interessantes para este trabalho, porque são os que justamente

4 Hobsbawm vê como evidência deste processo os 45% dos votos que obteve Fujimori em cima de Vargas Llosa no Peru, “alguns dos quais obteve sem dúvida porque ‘o Chinesinho’ obviamente não é branco” (ibidem, p. 342). 5 Segundo o censo de 2001, quase 62% da população se identifica com grupos étnicos indígenas: 31% quéchua, 25% aimará, 6% outros grupos indígenas (mojeño, guarani, chiquetano etc.). (Albó, 2008, p. 13).

Page 14: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

4

permitem conceber de forma mais global a relação entre plurinacionalidade e nacionalismo.

No segundo capítulo, desenvolvo a ideia dos “tempos sociais” que se cruzam em um

determinado momento histórico. Alguns referenciais teóricos são apresentados para entender

melhor como estes tempos são formulados, tanto as contribuições dos autores focados na

análise da Bolívia (Zavaleta, Rivera, Hylton e Thomson) quanto de autores que trabalharam a

possibilidade de se pensar estas categorias no campo da teoria da história (Ernst Bloch e

Fernand Braudel). Em seguida, apresento rapidamente o que poderiam ser consideradas

quatro tempos sociais bolivianos: o “tempo do operariado mineiro”, o “tempo do

campesinato”, o “tempo indígena” e o “tempo urbano-popular”. Como explicarei mais

adiante, estas categorias têm relação mediada com a experiência empírica, mas elas ajudam a

entender de forma mais satisfatória a realidade política boliviana do que as categorias

tradicionais de identificação étnica, social ou política.

O terceiro capítulo é voltado exclusivamente para perscrutar as formas de unificação

destes tempos sociais. São utilizadas, para isso, as categorias gramscianas de hegemonia,

bloco histórico e crise de Estado e a formulação zavaletiana de crise como fenômeno

unificador. Por fim, analiso como os setores mobilizados disputaram ideologicamente a

sociedade em contraposição à elite política que ocupava o governo no momento das revoltas

antineoliberais.

Após a eleição de Evo Morales como presidente, estes setores sociais irão se defrontar

com a efetiva tarefa de materializar um projeto comum já no contexto da Assembleia

Constituinte. O processo constituinte será, portanto, o tema do quarto capítulo. Durante este

período, a maioria social começa a se enxergar como maioria política e passa a decantar as

suas palavras de ordem de forma mais “universalista” e menos setorializada do que no

período anterior, ainda que as linhas gerais das propostas que emergiram no período anterior

sejam mantidas. Aqui se concentra o que pode ser chamado de análise empírica deste

trabalho. Analiso de maneira mais sistemática os documentos sobre “visão de país”

apresentados pelas forças políticas que participaram da constituinte. Identifico neles cinco

pontos centrais: suas formas de reconstruir o passado, seus sujeitos de soberania, seus

projetos de Estado, sua visão de autonomias indígenas e sua perspectiva de política

econômica.

Identifiquei em todos estes momentos históricos uma tensão entre duas forças

centrais: 1) a demanda por maior presença estatal, por progresso e desenvolvimento, que se

traduz no cumprimento por parte do Estado de determinadas tarefas econômicas e de bem-

estar e 2) a demanda por maior poder autônomo popular, que se traduz nas autonomias

Page 15: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

5

indígenas, nos pedidos por maior representação destas populações no Estado e na

reivindicação de determinação local de políticas coletivas. Estas demandas estão, na Bolívia,

historicamente entrelaçadas em uma dinâmica bastante específica: elas compartilham

adversários comuns em determinados momentos (quando os “tempos sociais” bolivianos se

cruzam), mas esta experiência conjunta não é suficiente para eliminar a profunda contradição

existente entre ambas, o que pode levar a um futuro fracionamento.

Uma ressalva antes de seguir com a análise. Apesar de abordar nos últimos dois

capítulos os projetos do que seria a “elite neoliberal” boliviana, ela não é o foco da minha

análise. Suas perspectivas políticas não são um objeto de estudo em si e foram utilizadas

como referência necessária para identificar as estratégias de luta e as concepções políticas

que o novo bloco popular boliviano elabora. Este setor da população boliviana não se

caracterizava a si mesmo como “elite” e muito menos como “neoliberal”, mas ele não ganhou

neste trabalho uma definição clara e precisa. Será chamado como primeiramente “elite

neoliberal”, porque era assim que seus adversários o denominavam, e depois de “oposição ao

governo de Evo Morales”, porque esta era a maneira mais direta de delimitá-lo durante a

constituinte.

Page 16: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

6

Capítulo 1 – Nacionalismo e conflito

Se houve uma palavra que marcou os últimos anos de vida política na Bolívia, essa

palavra foi “conflito”. Era necessário, portanto, incorporar tal dimensão no referencial teórico

utilizado para refletir sobre esta experiência; o nacionalismo não poderia ser tratado como

mera identificação cultural, mas precisava refletir uma forma de identidade recuperada e

recriada para o conflito político. O indigenismo, dentro desta perspectiva, aparece por vezes

como um fenômeno relacionado ao nacionalismo, que se utiliza de memórias comuns

partilhadas e que se arma para um momento de enfrentamento político, reformulando noções

de soberania e de legitimidade.

Para analisar estas formas de identificação coletivas que disputam a lealdade dos

setores populares bolivianos, duas questões são essenciais: 1) contra quem estas

identificações são construídas, qual seria o seu “adversário unificador” e 2) como estas

identificações são construídas e que experiências elas evocam.

Assim, por um lado, utilizo neste trabalho formulações teóricas do nacionalismo que o

apresentam como uma identificação definida perante um adversário comum, que pode tanto

ser externo (nações inimigas, imperialismo, poder econômico estrangeiro, empresas

multinacionais, etc.) quanto um antagonista interno (elites políticas, elites culturais, minorias

étnicas, etc.). Tom Nairn, em The Break-Up of Britain (2003), publicado em 1977, formula

que o nacionalismo é um fenômeno relacionado ao desenvolvimento desigual e combinado

do capitalismo. Ele expressaria uma reação das sociedades periféricas ao domínio das

sociedades centrais, uma força externa a elas. Já Ernest Gellner, em Nations and Nationalism

(1983), identifica que o nacionalismo como força radical e dramática - que pode modificar

consideravelmente o equilíbrio político de um Estado - se desenvolve por motivos internos a

uma sociedade: a existência de elites políticas culturalmente diferenciadas do resto da

população.

Estes modelos informam esquematicamente duas formas diferentes de

desenvolvimento do sentimento nacionalista, mas compartilham a ideia de que ele se constrói

em um momento de luta política e com base em um adversário comum. Evito, portanto,

trabalhar com autores que definem o nacionalismo como forma de identificação cultural mais

“passiva” como Benedict Anderson (2008), por mais instigante que seja sua análise.

Anderson, ainda que ressalte como uma das características centrais do nacionalismo o seu

espírito de “sacrifício”, radica este fenômeno em uma “profunda camaradagem horizontal”,

que explicaria porque tantas pessoas se dispuseram “não tanto a matar, mas sobretudo a

Page 17: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

7

morrer” por estas “criações imaginárias” tão recentes, chamadas de nações (Anderson, 2008,

p. 34).

Como aponta Gopal Balakrishnan, ao enfocar os laços de solidariedade, que levam a

uma “concepção generosa de nação”, Anderson acaba por secundarizar a importância do

conflito. Crítico a esta visão, ele acredita que “a pureza e a fatalidade da imaginação nacional

não brotam espontaneamente da organização social da língua vernácula, mas dos riscos

decorrentes de pertencer a uma ‘comunidade de vida ou morte’” (Balakrishnan, 2000, p.

221). A imagem de um adversário comum unificador é, portanto, essencial para entender o

conteúdo deste nacionalismo, seus projetos políticos, seus sujeitos nacionais.

Por outro lado, para responder à segunda questão colocada acima, sobre como o

nacionalismo é evocado, é necessário recorrer a outros teóricos que trabalharam com

identidade nacional. Anthony D. Smith, em The Ethnic Origins of the Nations (1986),

compreende o nacionalismo por meio de uma perspectiva “simbólica”, na qual o fenômeno

sempre dependeria de núcleos étnicos. Nesta formulação, é importante a noção de “mitos de

históricos”, que podem ser resgatados do passado, mas que precisam ser “convincentes”

(Smith, 1986, p. 212) para que o nacionalismo se diferencie de um puro “étatisme” (ibidem,

p. 214).

Neste capítulo, irei apresentar estas perspectivas teóricas e relacioná-las com tradições

do pensamento político boliviano. Busquei, portanto, alguns autores que tivessem uma

formulação da identidade nacional que permitisse aproximações com cada uma das teorias

em questão. Todos os autores bolivianos que serão apresentados neste capítulo (em ordem

cronológica: o historiador social-evolucionista Alcides Arguedas, o socialista indigenista

Tristán Marof, o nacionalista revolucionário Carlos Montenegro e o indianista radical Fausto

Reinaga) partem da referência a uma essência nacional boliviana para propor seus respectivos

projetos políticos. Eles serão tomados como representativos das formas de identidade

nacional que foram propostas no conjunto da sociedade boliviana durante o último século.

Outros autores bolivianos, como Silvia Rivera e René Zavaleta Mercado, serão incorporados

em um sentido mais analítico, porque apresentam análises da sociedade boliviana que ajudam

a compreender o surgimento de determinadas formas de identificação nacional.

É importante notar que não farei uma análise aprofundada do pensamento político

boliviano, já que ele não é objeto da minha análise. A discussão destas tradições ocorre no

sentido de iluminar posições sobre o nacionalismo e a plurinacionalidade que surgem no

contexto atual. A ideia é, neste primeiro momento, resgatar o pensamento político boliviano

como uma forma de ter acesso a projetos de coletividade que pautaram o último século. Este

Page 18: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

8

é um movimento relevante porque, ainda que se considere que a sociedade boliviana seja

marcada centralmente pelas suas “temporalidades sociais” (como analisarei no próximo

capítulo), estes projetos tentam se focar em sínteses de nacionalidade. Como veremos nos

capítulos 4 e 5, muitos deles marcarão o movimento contemporâneo de busca por identidades

coletivas presente na Assembleia Constituinte.

A busca pelo desenvolvimento: periferia x centro

Para o teórico marxista Tom Nairn, o principal elemento que marca a filosofia

moderna é “o conjunto de questões em torno do desenvolvimento econômico” (Nairn, 2003,

p. 345), que implica na expansão do capitalismo para todo o globo. Mas este

desenvolvimento não ocorreu de forma estável e equilibrada, como previa o pensamento

ocidental iluminista. O capitalismo se espalhou pelo mundo de maneira desigual, causando

formas de exploração intensas e imperialismo. Nairn, incorporando teóricos como Samir

Amin e Arghiri Emmanuel6, que desenvolveram teses sobre o desenvolvimento desigual do

capitalismo, acredita que o nacionalismo só pode ser explicado dentro deste amplo panorama

da história mundial.

Assim, no momento em que o capitalismo se espalha pelo mundo e o “progresso”

ocidental se apresenta como uma dura realidade de dominação, os países periféricos passam a

desenvolver uma reação específica: o nacionalismo. Por um lado, tal reação busca um

“atalho” para o desenvolvimento (luta contra o atraso imposto pelos países centrais) e, por

outro, recorre às suas características mais específicas, suas histórias e mitos locais, buscando

“forças” para enfrentar o desafio da transição para a modernidade:

Esta ambiguidade simplesmente expressa a raison d’être histórica geral do fenômeno, que é o fato de que o nacionalismo é a forma com a qual sociedades tentam buscar certos objetivos (industrialização, prosperidade, igualdade com relação às outras pessoas etc.) por certa forma

de regressão – olhando para dentro, contando mais profundamente com seus recursos internos, ressuscitando heróis passados populares e mitos sobre eles mesmos e assim por diante. Estas fontes românticas e idealistas aderem a qualquer forma de nacionalismo (ibidem, p. 336. Destaques no original).

O nacionalismo seria uma expressão dolorosa de ausência, uma reação desesperada.

Ele não teria surgido nos países centrais, como Inglaterra, França e Estados Unidos, porque

estes países não precisavam originalmente dele, possuíam todos os elementos pelo qual o

6 Tom Nairn cita especificamente as seguintes obras: Unequal Exchange (Emmanuel, 1971) e Le développement

inégale (Amin, 1973) (Nairn, 2003, p. 344).

Page 19: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

9

nacionalismo lutava (ibidem, p. 331-332). Contudo, após o surgimento do nacionalismo, os

países centrais teriam conseguido desenvolver tal sentimento de forma até mais eficiente que

os seus competidores da periferia, pois contariam com instituições mais aptas para fomentar a

sua expansão. Portanto, trata-se de um movimento dialético (Nairn, 2003, p. 332).

Ainda assim, os pioneiros seriam os países da periferia. Eles sentiam a ausência de

determinada realidade material: “as instituições econômicas e sociais da modernidade”,

“estes braços do desenvolvimento” que possuíam os países centrais (ibidem, 331). Trata-se,

sobretudo, de um sentimento sobre o que não se tem, construído perante a imagem do outro,

do adversário.

Contudo, o nacionalismo emerge de forma “explosiva” quando as “instituições

socioeconômicas modernas” já conseguem operar efetivamente em determinada periferia

(que vive “uma experiência dolorosa e o medo do ‘subdesenvolvimento’”) e permitem a

mobilização e o doutrinamento das massas (ibidem, p. 333). Este era o caso dos late

developers, países que se desenvolveram tardiamente: Alemanha, Itália e Japão. Esta retórica

teria sido apropriada por nacionalismos no mundo afora, em especial aqueles que surgem das

lutas de emancipação nacional que ocorreram durante todo o século XX:

O locus classicus era na Alemanha e na Itália, durante a era em que estes eram territórios limítrofes buscando um reordenamento interno para encarar a ameaça do Ocidente. E a retórica e a doutrina do nacionalismo tem sido constantemente reformulada e reabastecida por porta-vozes da periferia desde então, até os tempos de Amilcar Cabral e Che Guevara (ibidem, p. 331).

A consequência lógica deste sentimento construído em meio ao encontro violento

promovido pelo desenvolvimento do capitalismo é a guerra. Segundo Nairn,

“desenvolvimento desigual” é um nome mais “educado” e “acadêmico” para guerra (ibidem,

p. 333). As guerras mundiais do século XX e as matanças nacionalistas e imperialistas são

demonstrações deste movimento violento de expansão capitalista (ibidem, p. 333). A

dimensão do conflito está, portanto, na gênese do nacionalismo.

O outro lado do nacionalismo faz referência a certo caráter “populista”7. O teórico

cria um modelo de nacionalismo no qual “elites intelectuais locais”, recém-despertas,

precisam mobilizar suas sociedades para empreender o “atalho” para o desenvolvimento. Mas

“isso significa a formação consciente de uma comunidade interclasse militante fortemente (se

não miticamente) consciente de sua identidade separada frente às forças externas de

7 O “populismo” aqui tem certa proximidade ao “populismo” russo, que pretende alcançar o socialismo por meio da obschinka..

Page 20: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

10

dominação” (ibidem, p. 327). Tais elites não contavam com nenhuma das instituições

modernas para fazer este chamado, somente com os recursos locais de identidade coletiva:

Tudo o que havia era o povo e as peculiaridades da região: seus ethnos, língua, folclore, cor de pele herdados etc. Nacionalismo trabalha por meio de diferenciações como estas porque ele precisa fazê-lo. Ele não é necessariamente democrático em sua aparência, mas é invariavelmente populista. (...) ele precisa funcionar por meio de formas altamente retóricas, de uma cultura sentimental suficientemente acessível para os estratos mais baixos que agora estão sendo chamados para a batalha. Isto explica porque uma cultura romântica razoavelmente distante do racionalismo iluminista sempre esteve de mãos dadas com a expansão do nacionalismo. A nova intelligentsia da classe média do nacionalismo precisava convidar as massas a fazer parte da história; e o convite precisava estar escrito em uma língua que elas entendessem (ibidem, p. 328. Destaques no original).

O “mobilizar o passado” do nacionalismo é necessariamente uma característica

regressiva para Nairn, uma “irracionalidade”. São forças inconscientes que são evocadas para

enfrentar o doloroso processo de transição para a modernidade. O teórico usa a metáfora de

um homem que precisa passar por um grande desafio e que evoca todas as suas forças

herdadas e inconscientes, esperando que, uma vez que este desafio foi vencido, estas

“energias latentes” cedam novamente a um “padrão aceitável e estável” de existência pessoal.

Mas isso às vezes não ocorre e tais forças irracionais podem prevalecer. Esta é a explicação

para fenômenos como o nazismo (ibidem, p. 337).

Assim, Nairn caracteriza o nacionalismo como uma “cabeça de Jano”, em referência

ao deus romano dos portais, que possuía duas faces, uma olhando para o futuro e outra para o

passado. Outra metáfora, igualmente forte, é o “anjo da história” de Walter Benjamin,

recuperado para explicar o significado do “desenvolvimento”:

Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso (Benjamin, 1994, p. 226).

Essa seria, para Nairn, a essência do nacionalismo, o olhar desesperado para o

passado para enfrentar um desafio imposto por forças externas (Nairn, 2003, p. 336), uma

tempestade incontrolável denominada desenvolvimento capitalista.

O teórico faz um balanço duro do marxismo, criticando os prognósticos socialistas de

1840 de que a luta de classes marcaria os futuros conflitos da humanidade. De fato, para ele,

“ao invés de conflito civil, houve matança imperialista e nacionalista” e as revoluções sociais

Page 21: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

11

que ocorreram foram “sub-produtos destas guerras” entrelaçadas tão intensamente com os

motivos nacionalistas que possuíam um sentido muito diferente do que previa o

“universalismo marxista” (ibidem, p. 333). Para Nairn, o nacionalismo prevaleceu sobre a

consciência de classe porque oferecia às massas “uma cultura que, ainda que deplorável, era

mais ampla, mais acessível e mais relevante (...) que o racionalismo da nossa herança

iluminista”, da qual padeceria o marxismo intelectualista (ibidem, p. 342).

O modelo de Nairn, utilizado como lente para entender o nacionalismo boliviano,

ilumina questões importantes, como a busca pelo desenvolvimento, mas também apresenta

algumas debilidades, como a dificuldade para compreender a sua face indigenista e étnica.

A partir do modelo de Nairn, para interpretar o caso boliviano, recorreremos a um

importante pensador socialista boliviano, Tristán Marof, pseudônimo de Gustavo Navarro.

Sua obra se concentra na primeira metade do século XX e conjuga o socialismo com a

necessidade de se fomentar o desenvolvimento econômico boliviano e o resgate de princípios

de justiça indígenas. Pensando no modelo de Nairn, Marof faria tanto um movimento de olhar

para o futuro com as tarefas modernizantes nacionais e socialistas e um movimento de olhar

para o passado, buscando forças na tradição indígena para sustentar estas tarefas.

Em La Justicia del Inca (1926), Marof articula estes três elementos e propõe o que

será o duplo slogan do nacionalismo boliviano durante todo o século XX: “minas ao Estado,

terras ao povo”. Tal consigna, que sintetiza as demandas por nacionalização dos recursos

naturais e reforma agrária, foi efetivada pela Revolução Nacional de 1952, mas ainda se

apresenta como vigente quase oitenta anos depois, durante as “guerras” antineoliberais (como

veremos nos capítulos 2 e 3).

Portanto, Marof tem importância central por ser o primeiro a afirmar com

contundência a agenda das “tarefas progressivas e modernizantes” do nacionalismo

boliviano.

Ele rejeita a “demagogia” e as saídas políticas “milagrosas”, como uma nova

constituição ou um “manifesto de concertação nacional” (Marof, 1926, p. 27). Para ele, a

solução dos problemas bolivianos passa, sobretudo, pela esfera econômica. O Estado

precisaria se apropriar do excedente econômico do país e impedir a transferência de recursos

para o exterior, o que estaria ocorrendo com o controle privado das minas de estanho:

Em primeiro lugar, é necessário que as exportações pertençam ao Estado, sem permitir que as dilapidem [cidadãos] nacionais ou estrangeiros. Falando em justiça, qual é o proveito que obtêm dos lucros de Patiño seus dez mil trabalhadores? Qual é o proveito que obtém o

Page 22: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

12

Estado? Onde foram parar os 98 milhões da diferença da exportação em 1918? (...) Simplesmente, todas estas diferenças engrossaram o bolso de Patiño e beneficiaram a economia e o bem-estar de outros países, o que é ilógico e injusto (ibidem, p. 31)8.

Assim, a política de nacionalização das minas visaria libertar o país da “tirania” das

“companhias e magnatas” (ibidem, p. 55), que só representariam os interesses estrangeiros

(europeus e “ianques”) no país. Com os recursos da nacionalização, Marof previa um

programa imediato de tarefas estatais: revitalizar a malha ferroviária, reformar a educação

(voltada às necessidades práticas do cidadão, com o fomento do ensino técnico), fomentar o

desenvolvimento agrário e a distribuição populacional do país (ibidem, p. 59).

O socialista, contudo, faz todas estas projeções de desenvolvimento para o país

articulando uma força moral do passado: a herança indígena. Ele reitera três “mandamentos”

do incário: ama sua, ama lulla e ama keclla9, que significam respectivamente “não roube”,

“não minta” e “não seja preguiçoso” (ibidem, p. 7). Com estas três regras sociais “simples”,

os incas teriam conseguido erguer um forte império, com administração centralizada e no

qual a coletividade cuidava para que cada indivíduo tivesse comida e trabalho (ibidem, p. 8).

Portanto, há certo “olhar para o passado” em Marof que sustenta as tarefas

econômicas e estatais da nação no presente, mas este olhar é bastante particular se comparado

com os referenciais empíricos de Nairn para pensar as “forças regressivas” que marcam o

nacionalismo. Para Nairn, estas apontavam para uma irracionalidade – não à toa, ele faz

referência a um inconsciente coletivo que precisa ser despertado. A força “nativista” e

“populista” do nacionalismo seria necessariamente negativa e, se conseguisse prevalecer

frente às forças progressistas, poderia levar a catástrofes como o nazismo.

Mas o indigenismo de Marof, ainda que possa ser considerado “populista” (no sentido

de apelar para características nativas da maioria da população do país), se diferencia desta

irracionalidade representada pelo passado. Ao contrário, ao enxergar um comunismo na

sociedade inca, Marof defende certa racionalidade passada ausente no presente boliviano e

que deve ser resgatada para construir o futuro socialista da Bolívia. Apesar de reconhecer que

o “comunismo na forma incaica” seria um “amargo sonho no presente” – “os tempos

mudaram, a civilização ocidental com seus inventos, suas máquinas, sua avareza e sua

sordidez, ainda que nos recusemos a acreditar, vive também entre nós” (ibidem, p. 13) – e de

8 Simón Patiño foi o principal “barão do estanho” da primeira metade do século XX na Bolívia, pois controlava quase metade da produção nacional de estanho. Sua empresa se desenvolveu até se tornar uma poderosa transnacional do setor, com sede nos Estados Unidos e promotora de quartéis internacionais de controle do preço do estanho (Dunkerley, 2003, p. 31). Ver nota 23 sobre a “Rosca mineira”. 9 Grafias utilizadas por Marof. Encontra-se com maior frequência, porém, as grafias ama sua, ama llulla e ama

qhella.

Page 23: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

13

efetivamente defender uma espécie de “atalho” para a modernidade, Marof nega o

desenvolvimento capitalista:

O espírito batalhador e formidável do novo continente não pode cruzar os braços esperando tranquilamente a evolução material. O espírito e a convivência devem precipitar a era nacionalista sem ter ilusões de que um desenvolvimento do capitalismo seria antes necessário. (...) O desenvolvimento do capitalismo nos novos Estados somente os conduzirá a se entregar de mãos e pés atados aos ianques. (...) Por isso sustento que a revolução americana não deve esperar o florescimento capitalista, mas sim segurar o capital nacional em cada ponto e procurar harmonicamente o desenvolvimento próprio ao mesmo tempo em que a sua potência (ibidem, p. 15).

Aqui se poderia argumentar que a proposta de Marof se distingue do modelo de Nairn

porque ela simplesmente seria socialista e não nacionalista. O argumento tem validez.

Contudo, a agenda específica de desenvolvimento com a qual Marof entendia as tarefas da

“revolução socialista” na Bolívia não se diferenciou, historicamente, do que buscou o

nacionalismo revolucionário que emerge nas décadas de 1940 e 1950. Em 1926, Marof

parece, sobretudo, se rebelar contra a ideia de que o “progresso” se daria automaticamente,

contra a ideia de um desenvolvimento equilibrado e estável do capitalismo. Era necessário

buscar um “atalho” e este possuiria necessariamente tintas nativas. Neste sentido, Marof não

se distancia tanto do nacionalismo teorizado por Nairn.

Curiosamente, o próprio nacionalismo do MNR não se apoiaria muito nestas tintas.

Carlos Montenegro, considerado um dos principais ideólogos do MNR (pelo menos do

período que vai da sua fundação até a Revolução de 1952), identifica como o centro da

nacionalidade não o índio, mas o mestiço urbano. Em Nacionalismo y Coloniaje - publicado

em 1944 e que se tornaria uma importante referência para o nacionalismo revolucionário

boliviano10 - ele afirma que “expulsão do poder” de Pedro Domingo Murillo, liderança

independentista de 1809 em La Paz, teria deixado o governo “livre de mestiços”, extirpando

assim “o último vestígio de influência política da camada social dominada” (Montenegro,

2008, p. 49).

O teórico nacionalista identifica um conflito central, que perpassou a história da

Bolívia desde a sua fundação, entre: 1) uma tendência “nativa autonomista”, que se

identificou com a “massa indo-mestiça” popular e urbana, mas que era representada,

sobretudo, por um grupo civil e militar de “raiz nacional e tradição revolucionária” e 2) uma

tendência “externa de domínio”, que estava ligada aos interesses de casta de uma elite crioula

10 Como veremos no capítulo 4, há inclusive semelhanças entre a forma do documento do MNR para a Assembleia Constituinte de 2006-2007 e Nacionalismo y Coloniaje.

Page 24: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

14

de “origem espanhola e tradição colonial” possuidora das riquezas (ibidem, p. 69-73).

Montenegro faz poucas referências à tradição indígena pré-colonial e sua crítica à colônia não

faz referência à opressão dos índios, mas sim à lógica de um governo que é estabelecido para

beneficiar sociedades externas. Assim, ele acredita que o conflito entre “espírito colonial” e

“espírito nacional emancipador” se estende durante o século XX, mas seu entendimento de

“colonial” é muito diferente de teóricos que enfatizam a manutenção do antagonismo central

entre “colonizadores” e “índios”, como Silvia Rivera (2003), cuja obra será abordada mais

adiante.

Apesar de rejeitar fórmulas políticas “externas” e advogar por uma solução “nativa”

para os problemas bolivianos, o recurso à natividade em Montenegro não se refere a línguas,

culturas populares, credos ou sistemas morais e jurídicos da maioria da população boliviana

(como em Marof). Sua “fórmula nativa” aponta, sobretudo, para o futuro. Escrito oito anos

antes da Revolução de 1952, seu livro conclui que o tormento vivido na Guerra do Chaco

(1932-1935) despertou uma “alma popular contemporânea” inconformada com o presente,

que “anseia imperar no futuro”, “um sentido vitalista que pugna para se autenticar” (ibidem,

p. 241).

Este nacionalismo que não se apresenta com matizes passados, étnicos, não seria

único da Bolívia. Segundo Eric Hobsbawm, o nacionalismo latino-americano no século XX

se identificou prioritariamente com pautas “desenvolvimentistas”, “anti-imperialistas” e de

esquerda (Hobsbawm, 2009, p. 336). Estiveram ausentes, segundo o historiador, elementos

que caracterizam a fase mundial do nacionalismo então vigente (de meados da década de

1990): ânsias separatistas, justificações étnico-linguísticas, historicismos e combate a

inimigos “internos”. Assim, a América Latina teria uma “anomalia”, pois até o momento teria

se mostrado imune ao nacionalismo étnico-cultural do resto do mundo (ibidem, p. 340). A

região, portanto, não possuiria a “força regressiva”, que olha para o passado, do nacionalismo

de Nairn.

Mas a imagem de um nacionalismo puramente “anti-imperialista” e

desenvolvimentista não corresponde inteiramente à experiência boliviana, mesmo

considerando somente o nacionalismo revolucionário de meados do século passado. Seu

“adversário unificador” não era conformado unicamente pelas potências estrangeiras que

dominavam economicamente o país. Mais do que atacar a estes países, Montenegro ataca a

um setor da sociedade boliviana, uma “casta” remanescente da colônia, que tornou os

interesses estrangeiros os seus próprios interesses durante a fase republicana. Tratava-se de

uma “antipátria”, uma oligarquia que se sentia “inteiramente estranha ao país”, “infectando-

Page 25: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

15

se com o alheio ao extremo de anular inclusive os instintos elementares da existência”. Tal

oligarquia teria vivido “da Bolívia, mas não na Bolívia e para a Bolívia”. Seu caráter

“externo” era profundamente ligado à dinâmica interna da sociedade boliviana, surgida da

sociedade colonial da América Espanhola. A sociedade colonial estaria de certa maneira

prenhe de um sujeito que lhe é antagonista, pois seu governo era voltado para o benefício

alheio. O adversário externo é, acima de tudo, interno. A “antipátria” seria um elemento ativo

no interior da sociedade republicana que ainda carrega um “espírito colonial” e o conflito que

o nacionalismo trava seria contra esta oligarquia e não contra exércitos ou empresas

estrangeiras. O passado colonial seria, portanto, uma chave que articularia tanto a rejeição

contemporânea ao domínio econômico estrangeiro quanto a rejeição histórica a uma casta que

abomina culturalmente o restante da população nacional.

Deste modo, o modelo de Nairn é insuficiente para abordar dois aspectos do

nacionalismo boliviano. O primeiro, identificado acima, é o indigenismo, pois Nairn percebe

no apelo ao passado uma “irracionalidade”, sendo que o indigenismo socialista de Marof, por

exemplo, se coloca como proposta de progresso. O segundo é a figura do adversário, que

Nairn identifica nas forças econômicas estrangeiras, que impõem uma realidade de atraso

para os países periféricos. O palco privilegiado do conflito nacionalista é a guerra entre dois

Estados. Contudo, para a Bolívia, ainda que as guerras tenham tido simbolicamente um papel

importante, os autores nacionalistas identificam como o grande adversário da nação um setor

da própria sociedade nacional: a “oligarquia antipátria”. O conflito que este nacionalismo

aponta não é internacional, mas sim interno e se traduz em momentos de guerra civil,

revolução nacionalista, rebeliões contra elites políticas, etc.

Nesse sentido, faz-se necessário abordar outro teórico do nacionalismo, Ernest

Gellner, que se preocupa especialmente com os fenômenos nacionalistas surgidos dentro de

uma sociedade etnicamente fragmentada.

A luta entre culturas pelo poder

Em Nations and Nationalism (1983), escrito seis anos após The Break-Up of Britain,

Ernest Gellner desenvolve uma influente teoria sobre o surgimento das nações e do

nacionalismo. A principal tese defendida na obra é a de que o nacionalismo – sentimento que

antecederia às nações – é uma necessidade das sociedades industriais (principalmente no

período inicial, quando acabaram de superar sua fase agrária), que precisam recobrir com

uma mesma cultura um território politicamente delimitado por um Estado. A nova lógica

Page 26: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

16

industrial exige o desenvolvimento de uma população culturalmente homogênea, com a

mesma formação educacional, pois a sociedade moderna vive uma constante “dança das

cadeiras” (Gellner, 1983, p. 25), com intensa flexibilidade na relação dos indivíduos com o

mundo do trabalho. A escola e outras instituições estatais teriam, portanto, o papel de

fomentar esta homogeneização cultural. A sociedade industrial se caracterizaria por uma

grande desigualdade, mas também por uma intensa mobilidade vertical dos seus membros.

Segundo Gellner, na transição entre as sociedades agrárias e industriais haveria a

definição de qual das antigas culturas seria a base para o desenvolvimento desta nova

sociedade moderna espalhada uniformemente pelo território de um Estado. Assim, o

nacionalismo seria um sentimento que prega a defesa da confluência entre as fronteiras

estatais e as fronteiras culturais e étnicas para uma determinada sociedade. Nos primeiros

países que se conformaram como sociedades industrializadas (como EUA, França, Inglaterra)

esta passagem ocorreu sem muitos percalços, e o sentimento nacionalista foi logo substituído

por um sentimento estável de pertencimento a uma nação, realimentado pelas instituições

estatais. A nação que surge deste processo é, portanto, tanto um grupo que possui uma cultura

em comum quanto um que se unifica pela vontade (definições clássicas de nação citadas por

Gellner), mas que só adota esta forma graças às necessidades da sociedade industrial (ibidem,

p. 53-55).

O teórico acredita que o nacionalismo é uma espécie de patriotismo11, mas que se

torna “dominante somente sob certas condições sociais que na realidade prevalecem no

mundo moderno e em nenhum outro lugar” (ibidem, p. 138). Trata-se de um patriotismo com

distintas características:

As unidades que este tipo de patriotismo, mais especificamente o nacionalismo, favorece com a sua lealdade são culturalmente homogêneas, baseadas em uma competição cultural por tornar-se uma alta cultura escrita; elas são grandes o suficiente para sustentar a esperança de amparar um sistema educacional que possa manter a cultura escrita avançando; elas são parcamente dotadas de subgrupos internos rígidos; suas populações são anônimas, fluidas e móveis, e elas não são mediadas; o indivíduo pertence a elas diretamente, em virtude do seu estilo cultural, e não em virtude da associação de subgrupos aninhados. Homogeneidade, escrita, anonimato são os traços-chave (ibidem, p. 138).

Neste trecho ficam mais claros os elementos centrais da obra de Gellner. O primeiro é

o diagnóstico de que o sentimento nacionalista rechaça as coletividades que não coincidem

11 Patriotismo genericamente entendido como “a lealdade dos homens para com os seus grupos”, que não necessita de distintos fatores econômicos para existir (ibidem, p. 138) e que, por isso, pode se repetir em distintos momentos da história da humanidade.

Page 27: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

17

com a nação, devendo os indivíduos se relacionar diretamente com esta, sem muitas

mediações. Por isso a necessidade de anonimato. O segundo é que uma cultura razoavelmente

desenvolvida seria adotada por toda a população, sendo o Estado provedor desta; daí a

escrita como traço-chave. O terceiro é que, para que estes elementos anteriores existam, os

cidadãos precisariam ser entendidos como uma massa homogênea, que não pode ser

diferenciada pelo Estado por traços culturais ou étnicos.

Mas o nacionalismo radical e dramático, capaz de modificar a ordem política vigente

e os marcos territoriais do Estado em questão (unificações ou separatismos), seria típico de

processos mais conturbados de transição para a industrialização. Nestes casos, o processo de

homogeneização cultural não ocorreria e a sociedade de um determinado Estado continuaria

se diferenciando em subgrupos étnicos e culturais (causando impedimentos para a entropia

social). Citando como exemplos a Itália, a Alemanha e, sobretudo, os países do leste europeu,

Gellner acredita que tal nacionalismo se desenvolve em sociedades em que os detentores de

poder possuem uma cultura diferente do resto da população, tanto em situações em que

somente a elite recebe educação (early industrialism) quanto em situações em que todos a

recebem (late industrialism).

O teórico reconstrói uma história de nacionalismo típica: a dos ruritânios, uma

população camponesa hipotética – com clara referência à Europa do leste – que fazia parte do

“Império da Megalomania”. Somente os ruritânios falavam sua língua, sendo que as elites

dirigentes do império possuíam língua e cultura distintas. Com a industrialização, estes

camponeses passaram a migrar da sua região original para as cidades. No contexto urbano,

sua cultura “nativa” era vista com preconceito, e “logo eles viram a diferença entre lidar com

um ‘co-nacional’, uma pessoa que entendia e simpatizava com a sua cultura, e alguém que

era hostil a ela”. Esta experiência os deixaria conscientes de sua cultura e evidenciaria

dificuldades de ascensão social impostas por outros grupos. Por fim, em uma situação

internacional favorável e motivados por uma renascida cultura ruritana, os ruritânios

conseguiram a independência da Megalomania (ibidem, p. 61).

Este é o aspecto da teoria de Gellner sobre o nacionalismo ao qual eu pretendo me

ater. Trata-se de uma tese secundária de sua obra, mas que tem especial relevância para este

trabalho porque relaciona os nacionalismos mais dramáticos com questões internas às

sociedades que precisam realizar uma transição à modernidade. Em comum com Nairn,

Gellner identifica nas forças do “progresso” as razões para o desenvolvimento do

nacionalismo (ainda que rejeite o “capitalismo” como uma categoria central, substituindo-a

por “industrialização”). O nacionalismo seria uma expressão das dores de parto da transição.

Page 28: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

18

Em contraposição a Nairn, porém, Gellner percebe o nacionalismo como um fenômeno que

reage a um conflito interno à determinada sociedade política, que mistura o conflito cultural

com o social.

Na realidade, Gellner propõe um modelo alternativo ao marxismo sobre a polarização

social em sociedades industriais. O diagnóstico marxista foca na luta de classes e tem como

fator explicativo central a desigualdade econômica e a posse dos meios de produção. O

diagnóstico de Gellner caracteriza a sociedade moderna pela mobilidade social, sendo que as

polarizações (conflito social ou luta de classes) seriam explicadas por outros fatores que não a

desigualdade econômica: acesso ao poder, acesso à educação e identidade de culturas entre

elite política e resto da população. Assim, a situação de polarização social dramática

ocorreria quando uma classe (não detentora do poder) vê suas possibilidades de ascensão

social barradas pelas diferenças culturais:

Na realidade, etnicidade entra na esfera política como ‘nacionalismo’ quando a homogeneidade ou continuidade cultural (não a ausência de classe) é requerida pela base econômica da vida social, e quando as diferenças de classe culturais se tornam nocivas; enquanto não demarcadas etnicamente, diferenças graduais de classe permanecem toleráveis (ibidem, p. 94).

Portanto, Gellner vê o nacionalismo e as reivindicações étnicas como grandes

motivadores de unificação política para a polarização social. As diferenças de classe, diz ele,

seriam graduais. Somente quando um grupo percebe que, por suas diferenças culturais, está

condenado a ocupar sempre uma posição social, é que ele se torna um catalisador político (ou

seja, há situações revolucionárias):

Nações, grupos étnicos, não eram nacionalistas quando os Estados foram formados em sistemas agrários razoavelmente estáveis. Classes, ainda que oprimidas e exploradas, não mudam o sistema político quando elas não conseguem se definir ‘etnicamente’. Somente quando uma nação se torna classe, uma categoria visível e desigualmente distribuída em um sistema móvel, é que ela se torna politicamente consciente e ativista. Somente quando a uma classe lhe ocorre ser (mais ou menos) uma ‘nação’, é que ela se transforma de classe-em-si em classe-para-si, ou nação-para-si. Nem nações nem classes parecem ser catalisadoras políticas: somente classes-nação ou nações-classe o são (ibidem, p. 121).

Neste sentido, a crítica de Gellner ao marxismo se assemelha a de Nairn, ainda que

não seja interna ao debate socialista. Mas Gellner, diferentemente de Nairn, questiona a ideia

de polarização social via luta de classes em si, preconizando um modelo que só prevê este

tipo de situação dramática se definida em termos culturais e étnicos. Já Nairn foca sua crítica

na falha do marxismo em prever que a consciência de classe (imputada às massas de maneira

Page 29: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

19

“iluminista”) pudesse ser suplantada pelo nacionalismo na realidade histórica (porque este

oferecia às massas uma cultura mais “acessível e relevante”). Para ele, isso não

necessariamente significa que conflito de classes careceria de centralidade para exigir uma

mudança na estrutura social moderna, como parece implicar Gellner.

Para investigar a forma como o modelo de nacionalismo radical de Gellner pode se

aplicar à Bolívia, é necessário compreender o papel que nele cumpre a homogeneidade. O

nacionalismo, ao buscar a coincidência das fronteiras étnicas e políticas, também buscaria

uma homogeneidade cultural que é funcional à sociedade industrial. Caso este ideal se

concretize de maneira satisfatória, o terreno para o desenvolvimento do nacionalismo

perderia espaço considerável e a nação se tornaria uma identidade cultural estável. A ausência

desta homogeneidade, contudo, seria vivida de maneira dramática e causaria a polarização

social da classe-nação, o nacionalismo radical que implicaria em mudanças políticas.

Há aqui um paralelo com o drama representado pela ausência de desenvolvimento do

modelo de Nairn. O nacionalismo se desenvolveria especialmente nos países que vivem a

transição para a modernidade de maneira inesperada e desigual. É importante lembrar,

contudo, que Gellner não aborda diretamente as tensões decorrentes do desenvolvimento

desigual do capitalismo, ou da industrialização, para usar seu próprio vocabulário. Mas sua

análise do nacionalismo radical implica nestas tensões, já que aponta para momentos em que

os elementos funcionais à sociedade industrial não existiriam ou atuariam de maneira falha e

haveria impedimentos culturais e étnicos para a mobilidade social (nos seus termos,

impedimentos para a entropia social). Por isso o nacionalismo radical seria típico das fases

iniciais da industrialização e tenderia a se atenuar conforme esta avançasse.

Ainda que Gellner tivesse como referência empírica a periferia europeia, a América

Latina se encaixa nesta transição tortuosa para a modernidade. O ideal de sociedade

industrializada e homogênea estava muito longe do continente e o capitalismo se estabeleceu

reproduzindo escravidão, trabalho servil, profundas clivagens étnicas e modos de produção

não capitalistas.

Não por acaso, a noção de formação econômico-social é especialmente interessante

para entender como esta transição à modernidade ocorre na América Latina. O sociólogo

René Zavaleta Mercado desenvolve esta problemática no caso boliviano. Ele usa a concepção

de formação econômico-social de Emilio Sereni, entendida como “formulação sintético-

totalizante”, cuja “totalidade” remete à unidade das esferas econômica, social, política e

Page 30: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

20

cultural da vida da sociedade. Além disso, tal totalidade aparece por meio do

desenvolvimento histórico, seja ele contínuo ou descontínuo (Zavaleta Mercado, 2008, p. 83).

Zavaleta considerava a Bolívia dotada de uma formação abigarrada (imbricação de

vários elementos heterogêneos), porque épocas econômicas se sobrepõem de maneira “não

muito combinada”. Apesar a dispersão da sociedade abigarrada, o sentimento nacional

subsistiria não como necessidade de homogeneização cultural, mas sim como resultante das

convulsões políticas coletivas que de tempos em tempos tomariam tal sociedade. No capítulo

3, veremos com mais atenção como Zavaleta desenvolve uma interessante perspectiva da

crise política como elemento nacionalizador.

Mas a ausência de uma sociedade nacional homogênea culturalmente não significa

que tal homogeneidade não pudesse figurar como um ideal político poderoso no país.

Efetivamente, o projeto “mestiço” do nacionalismo revolucionário de meados do século XX

pode ser considerado a expressão histórica desta força homogeneizadora modernizante. Tal

nacionalismo incorporou o índio na política nacional sob o nome de “camponês”, organizado

em seu respectivo “sindicato agrário” e não em suas comunidades originárias. Mas a falência

deste projeto implicou uma reação poderosa, que levou ao desenvolvimento de um

indigenismo renascido nas décadas de 1960 e 1970.

A Revolução de 1952 dotou os indígenas camponeses de direitos políticos efetivos ao

acabar com o trabalho servil no campo e tornar o voto universal inclusive para analfabetos.

Além disso, a reforma agrária insere estes indígenas na vida econômica do país. Mas a

promessa homogeneizadora modernizante do nacionalismo não se cumpriu e dois fatores

podem ser levantados para explicar este fenômeno. O primeiro era que estes grupos

continuavam a sofrer preconceito, ainda que este não fosse mais institucionalizado pelo

Estado como era antes. Indígenas continuavam tendo dificuldades no acesso a posições de

destaque e a cidadania era subordinada às formas clientelistas do Estado de 1952, na qual os

indígenas eram cidadãos desde que submetidos à estrutura sindical camponesa, que por sua

vez tinha sua cúpula subordinada ao MNR e aos interesses do governo (Rivera, 1990, p. 105).

O acesso às “benesses” do Estado (titulação das terras da reforma agrária, cupons de

alimentação, etc.) ocorria por meio das estruturas informais do clientelismo político, e não

por meio das estruturas institucionais formais (Rivera, 2003).

O segundo fator é que a identidade indígena destas populações se mantinha latente e

era perceptível que sua identidade camponesa não lhes garantia o direito à reprodução dos

modos de gestão territorial, política e cultural das comunidades indígenas. Aimará e quéchua,

Page 31: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

21

línguas faladas pela grande maioria da população indígena camponesa, não foram

reconhecidas pelo Estado e pelo sistema educacional até a reforma constitucional de 1994.

A antropóloga Silvia Rivera, cuja obra foi marcada pela ascensão do movimento

katarista na década de 1970 e 1980, identifica como principais “opressões” perpetradas pelo

Estado de 1952 a obrigação do parcelamento das terras comunitárias em pequenas

propriedades individuais, o ensino forçado de espanhol e imposição do desaparecimento de

“todos os vestígios de identidade étnica”. Desta forma, o clientelismo seria uma “estrutura

intermediária” que, por um lado, permitiria uma aparência moderna ao sistema político e, por

outro, reproduziria “padrões estruturais herdados do passado colonial”. Para ela, a

“cidadania” teria a mesma lógica da “cristianização” forçada imposta pelos colonizadores,

“para serem reconhecidos como seres racionais merecedores da condição humana, os índios

tinham que negar sua própria identidade e adotar o estilo de vida da minoria dominante”

(Rivera, 1990, p. 116).

Mas Rivera reconhece que os movimentos indígenas não só reivindicaram

historicamente suas “identidades étnicas”, mas também tinham suas próprias demandas de

cidadania liberal. Ela cita as reivindicações por “escola e castelhanização” do movimento

indígena de 1910 a 1930 como formas de “aceder à cidadania e aos direitos que as leis

republicanas reconheciam no papel, mas que as práticas do Estado e da sociedade oligárquica

negavam cotidianamente” (Rivera, 1993, p. 49). Frente a uma legislação que encobre a

violência, os indígenas oscilariam para duas saídas “táticas”: o reconhecimento de que há

uma “lei” específica para os índios ou a efetivação da legislação liberal igualitária (que

implicaria no reconhecimento da “igualdade de direitos para os cidadãos, sem discriminações

étnicas, religiosas ou raciais”) (ibidem, p. 49-50).

Apesar das conquistas modernizantes de 1952 (sufrágio universal, reforma agrária,

etc.), o clientelismo e a ideologia homogeneizadora do nacionalismo revolucionário

mantiveram esta dupla problemática indígena – a ausência do reconhecimento da sua

identidade cultural e a falta de cidadania efetiva. Assim, a perspectiva normativa do

nacionalismo revolucionário mantinha uma distância gritante com a realidade, na qual

camponeses e pobres eram indígenas que destoavam do “padrão nacional” pela sua língua,

pela sua cor de pele, pelas suas roupas e pelos seus costumes. Tratava-se de um nacionalismo

discursivamente inclusivo (a partir da ideia da mestiçagem), mas com uma prática que

reproduzia segregações culturais e étnicas como sociais e políticas. Na experiência concreta,

a cidadania era vivida de forma diferente pelos índios. É difícil precisar em que medida a

percepção de uma cidadania incompleta é causa ou consequência da percepção de identidade

Page 32: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

22

cultural diferenciada que precisa ser afirmada, mas ambas compuseram um contexto que

impôs o fracasso do projeto homogeneizador de 1952.

A resposta a esta situação foi um resgate à tradição indigenista do início do século, o

que no modelo de Gellner equivale à polarização social por meio de uma classe-nação. A

partir da década de 1970, movimentos étnicos vinculados ao campesinato ou à

intelectualidade indígena urbana passaram a se organizar (no próximo capítulo, desenvolverei

melhor o ressurgimento destes movimentos, principalmente do chamado movimento

katarista). Se, por um lado, eles reivindicavam fortemente seu caráter “pré-existente” e

civilizatório, por outro estavam na raiz das suas mobilizações impedimentos

socioeconômicos de mobilidade social e a grande miséria da população rural andina.

O caso boliviano evidencia que o “melting pot latino-americano”, tão apreciado por

Hobsbawm, implicou em formas de segregação étnica e cultural encobertas, pelo menos em

alguns contextos nacionais. A reação a esta segregação é uma espécie de nacionalismo

voltado contra adversários internos, agora não mais vistos como “antipátria” de trejeitos

estrangeiros, mas sim como elite crioula opressora dos índios, os legítimos “donos” do

território boliviano. Trata-se de outra visão do passado colonial, que opõe os interesses

ocidentais “europeizantes” aos interesses indígenas.

Na versão mais radical destes movimentos indigenistas, a verdadeira nação que se

reivindicará será a pátria índia, a reconstituição da vida pré-colombiana. A principal

expressão desta vertente radical é Fausto Reinaga, intelectual indianista que será influente

tanto nos movimentos kataristas da década de 1970 e 1980 quanto nos movimentos radicais

do altiplano paceño do início deste século. Segundo ele, o “problema nacional” do índio

boliviano se resume a:

Meio milhão de cholos oprimem a quatro milhões de índios. Um “punhadinho de brancos mestiços” fez “seu” Estado-Nação para governar uma comunidade histórica autóctone, diferentemente de sua história, raça, território, vida econômica, psicologia e cultura. Em outras palavras, o índio é uma nação oprimida. O cholo, uma nação opressora. (Reinaga, 1970, p. 168. Destaques no original)12.

Reinaga se afasta de um pluralismo cultural presente no katarismo tradicional e afirma

o conflito entre duas “nações” sobrepostas que só pode ser resolvido por meio de uma

“revolução índia” que “libera sua nação e a do opressor antagônico” (ibidem, p. 169). A visão

de Reinaga traz grandes proximidades com a emergência de uma “classe-nação”, como

teorizada por Gellner.

12 O termo cholo é utilizado para fazer referência ao índio ou mestiço aculturado, morador da cidade.

Page 33: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

23

O modelo de Gellner, portanto, nos ajuda a pensar algumas lacunas deixadas por

Nairn, especialmente no que diz respeito à construção de nacionalismos com base em

adversários internos (sejam eles a “antipátria”, a “elite crioula” ou ambas). Contudo, a

incógnita deixada pelo indigenismo dotado de “racionalidade” proposto por Marof

permanece. Nairn, assim como Hobsbawm, acredita que o caráter “étnico” e historicista do

nacionalismo é necessariamente regressivo e irracional, mas esta fórmula parece incômoda

dentro do que foi a realidade das sociedades latino-americanas que emergiram do regime

colonial espanhol. Neste sentido, faz-se necessária a análise de como estas identidades

nacionais surgem e o papel específico da etnicidade e da historicidade dentro destas. Anthony

D. Smith possui uma teoria do nacionalismo que aborda estas questões de maneira diferente

da de Nairn ou Hobsbawm.

Origens étnicas e mitos históricos

Com uma visão mais atenta à variedade dos nacionalismos que se desenvolveram

historicamente, em The Ethnic Origins of the Nations (1986), Anthony D. Smith identifica na

etnicidade uma variável independente para a conformação do sentimento nacional. Smith

define o que entende por etnia: “populações humanas com nome, histórias, culturas e mitos

de ancestralidade compartilhados, associadas a um território específico e a um senso de

solidariedade” (Smith, 1986, p. 32). Nome, história, cultura, mito, território e solidariedade

são os seis elementos que, portanto, compõem a etnia.

Para ele, as teorias que relacionam o nacionalismo somente à modernidade

(industrialização, capitalismo, imprensa etc.) possuem dificuldade em trabalhar com

diferentes processos de construção de nações; elas conseguem responder “por que” e

“quando”, mas não “quais”, “onde” e “sob quais bases” (Smith, 1998, p. 46).

O teórico não discorda da tese de que as nações são fenômenos tipicamente modernos,

mas acredita que somente esta caracterização não é suficiente para entender a dinâmica de

desenvolvimento dos nacionalismos. Ele traça um panorama de três revoluções que

ocorreram na transição para a modernidade no ocidente e que “fizeram a formação das nações

algo tão desejável”: 1) uma revolução na divisão do trabalho (econômica); 2) uma

burocrática, que aumentou as formas de controle administrativo e militar; e 3) uma cultural,

na qual o Estado assume o papel de padronizar uma cultura cívica e patriótica, substituindo a

tradição eclesiástica (Smith, 1986, p. 131-133).

Page 34: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

24

Contudo, como estas revoluções não ocorreram da mesma forma ou de maneira

simultânea no mundo, Smith identifica dois tipos padrão de formação nacional, uma

“territorial” e outra “étnica”.13

O modelo de formação nacional “territorial” tem como base limites geográficos bem

estabelecidos: “o senso de ligação (boundness), de inclusão e de exclusão, é vital para a

definição da comunidade de cidadãos” (ibidem, p. 135). Outro fator muito importante é o

aspecto legal, pois seus cidadãos – a princípio sem exceções de raça ou religião – são guiados

pelo mesmo código legal, com direitos e deveres estabelecidos. Tal formação parte do

Estado, de uma estrutura política administrativa já existente, para formar uma nação (state-to-

nation), sendo a noção de cidadania um aspecto fundamental. A cultura cívica também se

torna um aspecto importante, pois solidariedade entre os cidadãos necessita uma “‘religião

civil’ ordinária, formada por mitos, memórias e símbolos comuns, e comunicada em uma

linguagem padrão por meio de instituições educacionais” (ibidem, p. 136). Portanto, a

educação em massa homogeneizadora é um elemento central para este modelo.

Os equivalentes históricos a tal modelo teórico seriam as formações nacionais como a

França, a Espanha e a Inglaterra, nas quais “Estados étnicos” foram gradualmente

transformados em Estados nacionais, com a incorporação burocrática de populações que não

compunham o Estado étnico anterior. Resultam deste processo algumas minorias étnicas,

incorporadas contra a sua vontade (Catalunha, Escócia, Languedoc etc.). Contudo, neste

processo de expansão da etnia central (que ocorre entre os séculos XIII e XVI), surge um

novo conceito de comunidade: “o de uma população ligada por laços teritoriais politicamente

delimitados, laços de fidelidade a soberanos idênticos e de associação a uma cultura política

comum”. Com o advento das três revoluções (econômica, administrativa e cultural), tais

comunidades políticas étnicas se transformaram em nações territoriais por meio de operações

políticas estatais. “Neste sentido, elas se transformaram em ‘Estados nacionais’, mas nunca

‘Estados-nação’” (ibidem, p. 139). Não se trata, portanto, de uma transformação da etnia

anterior em uma nação. Ainda que parta de um Estado étnico, o novo Estado cria padrões

culturais mais gerais, “cívicos”. Diferentemente de Gellner, Smith diferencia com mais

cuidado os conceitos de cultura e da etnia.

Os estados formados a partir da independência das colônias nos Estados Unidos ou na

América Latina também se encaixam neste modelo de nações territoriais, pois os núcleos

étnicos (colônias inglesas e os impérios português e espanhol) também se complementaram e

13 Os termos são colocados entre aspas porque, como veremos, para o teórico nenhuma formação é completamente territorial ou complemente étnica.

Page 35: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

25

foram marcados por laços políticos e pela residência territorial. A elite crioula latino-

americana possuía identificação étnica com a metrópole e, vista de dentro, era uma “etnia

aristocrática” dentro de um vasto império multiétnico com uma ampla cultura religiosa. Com

a independência e a formação de vários Estados a partir das fronteiras administrativas da

colônia, foram formadas “nações de classe média alta” que usaram o aparato estatal para

estender a comunidade política da nação para as outras classes (ibidem, p. 140). A América

Latina, contudo, não é um foco da análise de Smith.

Em contraposição à formação territorial, o modelo étnico é marcado pela

transformação de laços étnicos anteriores em sentimentos nacionais, feita por meio de

mobilização, territorialização e politização. “No geral, isso produziu uma concepção diferente

de nação, uma que enfatizava elementos como genealogia, populismo, costumes e dialetos, e

nativismo” (ibidem, p. 137). Assim, a nação precede o Estado, e a homogeneização cultural

se dá com base em sentimentos de descendência, mitos de origem, costumes, tradições –

“uma espécie de nativismo missionário, uma crença na qualidade redentora e essência única

da nação étnica” (ibidem, p. 138). Ainda que as nações étnicas contenham instituições e

códigos legais (que conformam a cultura cívica das nações territoriais), estes não são

elementos centrais para criar laços de solidariedade entre seus cidadãos. Em teoria, tal

formação étnica – em oposição à territorial – é mais “demótica e plebéia”14, por isso tem

como característica o “populismo” que Nairn identifica. Muitos dos Estados-nação que se

formaram neste modelo o fizeram por meio da “mobilização popular”. Neste sentido, a base

étnica demográfica é tomada como a base da unidade política em questão.

Os correspondentes históricos a este modelo são, mais uma vez, as formações

nacionais do centro e do leste europeu. Ali, a tripla revolução da modernidade se desenvolveu

muito mais tarde – e de forma desigual - que nos estados europeus ocidentais e as etnias

dominantes, que governavam impérios poliétnicos (austro-húngaro, russo, otomano),

apostavam majoritariamente em sentimentos de lealdade dinásticos (ou seja, não traduziram a

sua expansão em uma “cultura cívica”). No caso alemão, a referência à comunidade política

anterior era bastante vaga e remetia à antiguidade romana, mas neste caso o critério étnico

liguístico foi bastante importante. Já nos casos polonês e húngaro, a referência à comunidade

política era muito mais real. Como vimos, a Polônia havia sido um reino cujo território foi

dividido no final do século XVIII e a Hungria também havia sido um reino antes de ter sido

14 Na prática, Smith aponta que foram os estratos educados – “pequena nobreza, baixo clero, comerciantes e empresários, oficiais menores e professores, escritores e artistas, jornalistas, advogados médicos e assim por diante” – que compuseram o elemento popular pelo menos até o início do século XX na Europa e mais tarde em outros lugares (ibidem, p. 137).

Page 36: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

26

incorporada ao Império dos Habsburgo. Em ambos casos, a pequena nobreza e a

intelectualidade de classe média destas regiões foram essenciais para “convocar as massas à

história” e para transformar a cultura de uma “aristocracia étnica” em “nações politicamente

participantes” por meio de educação massiva (ibidem, p. 142).

Contudo, Smith destaca que a etnicidade possui um papel importante tanto no modelo

territorial quanto no modelo étnico. É como se a nação possuísse um código duplo que faz

referência à etnia e ao Estado. “Nenhum aspirante-à-nação pode sobreviver sem uma terra

natal ou um mito de descendência e origens comuns. Igualmente, nenhuma etnia-aspirante-à-

nação pode alcançar seus objetivos sem efetivar uma divisão do trabalho geral e uma

mobilidade territorial, ou uma igualdade legal de direitos e deveres gerais para cada membro,

ou seja, cidadania” (ibidem, 149). Assim, as primeiras nações territoriais europeias se

desenvolveram a partir de núcleos étnicos fortes, cujos “estados foram capazes de incorporar,

até de aculturar, etnias vizinhas”. Ao passo que as nações étnicas que surgiram

posteriormente foram “desenhadas expressamente para caber nestes núcleos étnicos” (ibidem,

p. 212).

Smith identifica a necessidade de levar a sério as raízes étnicas do nacionalismo

moderno na poderosa influência que o mito e a história exercem na conformação deste

fenômeno. Para o teórico, se não há um modelo de etnicidade anterior ou de etnia pré-

existente, não haverá nacionalismo nem nações, somente um “étatisme imposto desde cima”,

fenômeno muito diferente do nacionalismo (ibidem, p. 214). As nações, portanto, para

poderem existir, necessitam de “mitos e passados” que não podem ser construídos do nada ou

meramente fabricados:

“Mesmos os mitos revolucionários pressupõem um passado, muito do qual deve estar perdido, mas normalmente um núcleo, uma idade dourada de igualdade e simplicidade, é salvo e arrebatado. Estes passados e mitos são inevitalvemente étnicos: eles pertencem a esta ou aquela população ligada culturalmente e historicamente definida” (ibidem, p. 214).

Para Smith, portanto, tais mitos e histórias não devem ser manipulados livremente,

como dá a entender a maioria das visões instrumentalistas e modernistas do nacionalismo.

Ainda assim, o teórico reconhece que, se tal etnicidade – entendida como a referência a mitos

e passados de uma determinada população – não existe, ela precisa ser “reinventada”. Tal

“reinvenção” significa “descobrir um passado adequado e convincente que pode ser

reconstruído e representado a membros e não-membros (outsiders)” (ibidem, p. 212). Há,

portanto, uma diferença na concepção de “reinvenção” (colocada entre aspas pelo próprio

Page 37: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

27

autor) e de estatismo imposto, já que a primeira recorre a algo da história de uma determinada

população.

Ainda que haja paralelos na análise de Smith com a Nairn - ambos identificam como

intrínseco ao nacionalismo esta referência à história da população nativa e aos mitos do

passado - Smith não vê nestas “origens étnicas” uma característica necessariamente negativa.

Ao sentenciar que sem estas, o nacionalismo não se efetiva (é somente um “estatismo”

imposto), o teórico parece reiterar a importância de conceitualizar o nacionalismo como um

fenômeno popular, ligado efetivamente às crenças e tradições da sua população nativa. Desta

forma, ele rejeita a ideia da “manipulação livre” do passado para que se criar um

nacionalismo, o uso da história precisa fazer sentido para a população nativa.

Atentemos ao adjetivo “convincente” usado por Smith. Ele é o que separa o estatismo

puro, que não consegue “reinventar” um passado adequado, crível, de um nacionalismo. Mas

o que permite que este passado seja convincente? Que tipo de núcleos e modelos étnicos um

Estado pode mobilizar para fazer com seus cidadãos criem laços de solidariedade? A

pergunta é particularmente importante no caso da América Latina, já que seus Estados

conformam, segundo a tipologia do autor, nações de tipo territorial, que surgiram a partir de

Estados étnicos. Mas eles se diferenciam dos seus irmãos europeus, porque aqui a relação

com o núcleo étnico inicial é muito mais tensa, marcada pela experiência colonial. Colocado

isso, podemos reformular a pergunta anterior: que mitos e passados podem ser recuperados

que façam com que estes Estados desenvolvam seus nacionalismos territoriais e não

simplesmente “estatismos puros”?

Um caso citado pelo próprio Smith são os Estados Unidos. Aqui, a partir do núcleo

étnico inglês colonial, os norte-americanos foram capazes de estabelecer um nacionalismo

cívico territorial. Para além de temas mais universais como a residência, o território, direitos

civis e códigos legais, essenciais para unificar regiões com grandes diferenças sócio-

econômicas (principalmente norte e sul), destes elementos “étnicos” de união citados, era

necessário se apoiar em um mito fundacional, uma religião comum e em certo messianismo,

como a doutrina do destino manifesto.

Acredito que poderíamos extender este argumento a alguns casos latino-americanos,

em especial àqueles países que tiveram na mestiçagem um elemento central para a criação de

uma identidade nacional. O mito brasileiro da mestiçagem, cuja grande referência foi

Gilberto Freyre, via na mistura entre índio, negro e branco – este último em posição superior

– a singularidade de uma verdadeira “civilização brasileira”. Formulado durante a primeira

Page 38: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

28

metade do século XX15, numa época repleta de grandes obras político-sociais brasileiras, tal

mito demorou a aparecer se comparado ao caso norte-americano, que já estava consolidado

no século XIX. O autor pernambucano resgatava na experiência colonial dos latifúndios

açucareiros uma história íntima repleta de patriarcalismo, hierarquia, violência, sabores e

sexualidade. Ao viajar pelo Brasil profundo, Gilberto Freyre criou a ideia de uma sociedade

“equilibrada em antagonismos”, sendo o principal deles a dicotomia entre senhor e escravo,

fincada na terra, com uma moralidade flexível e um catolicismo dócil (Freyre, 2006). Nela, o

brasileiro pôde se ver de forma convincente, diferente do que ocorreu durante todo o século

XIX.

José Vasconcelos criou, uma década antes, uma imagem similar para o México com a

obra La raza cósmica, de 1925. Sua raça cósmica também era chamada de civilização e tinha

na mestiçagem amalgamadora uma característica central. Vasconcelos enfatiza a diferença

dos saxões para com os latinos, sendo característica dos primeiros o extermínio de outras

raças, e dos segundos a incorporação. Assim, a América Latina teria sido berço de uma

mistura única e a raça ibero-americana dela decorrente teria a missão histórica de fundir

culturas e etnias de todo o mundo, potencializando o “gênio” de diferentes povos em uma

visão “realmente universal”. O mestiço aculturado é a grande figura desta nova raça, e o índio

só é aceito como componente inicial da mistura, não como produto final (Vasconcelos, 1948).

Contudo, é possível supor que a raça cósmica tenha cumprido o papel de um mito de

identidade comum convincente, apontando como referência de ancestralidade a miscigenação

ocorrida a partir da Conquista espanhola, mas também contando com uma espécie de destino

manifesto civilizatório. Obviamente, aqui também são os brancos, no caso os latinos, os que

exercem um papel preponderante.

Se evocamos, contudo, o romancista, historiador e ensaísta boliviano, Alcides

Arguedas, temos uma imagem radicalmente oposta. A mistura de raças aparece em sua obra

Pueblo Enfermo, de 1909, como uma condenação, que reúne as piores características do

branco e do índio. Arguedas justifica com ela as diversas derrotas militares que a Bolívia em

menos de um século de história já havia acumulado, faz o retrato de uma nação impossível

(Arguedas, 2008). Ao repassarmos, inclusive, a história do pensamento político boliviano no

século XX, não encontramos nenhum mito que tenha uma força equivalente ao da democracia

racial ou ao da raça cósmica.

15 Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, foi editada pela primeira vez em 1933.

Page 39: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

29

É fato que Arguedas escreve em uma conjuntura histórica muito diferente da de

Vasconcelos e de Freyre, que publicaram suas obras logo após ou durante momentos-chave e

transformadores das suas respectivas histórias nacionais: a Revolução Mexicana de 1910 e a

década de 1930 no Brasil. No caso boliviano, é possível identificar paralelos entre figura do

mestiço boliviano como cerne da nacionalidade em Carlos Montenegro e as imagens

nacionais construídas por Freyre e Vasconcelos. Contudo, mesmo após a Revolução de 1952,

esta imagem do mestiço não dilui de maneira hegemônica os sentimentos de pertencimentos

étnico, regional ou de classe.

É possível especular como causas disso a curta duração do período nacionalista (1952-

64), rapidamente abortado pelas ditaduras militares, ou a falência na efetivação de políticas

universais de cidadania do regime nacionalista de 1952 (que, apesar dos seus avanços,

manteve um modelo de intenso clientelismo especialmente com as populações indígenas

rurais), que pode estar atrelada a um descompasso da revolução com os momentos mais

típicos da consolidação do Estado moderno em outras partes do continente.

***

Em síntese, apresento neste capítulo algumas perspectivas teóricas sobre o

nacionalismo que me ajudam a investigar as complexas relações entre etnicidade e

nacionalismo e entre história e conflito que emergem na Bolívia contemporânea.

Por um lado, estas teorias me auxiliam na compreensão do nacionalismo como

fenômeno que surge no contexto do conflito, e que, portanto, depende da figura de um

adversário para identificar seu conteúdo específico. Tal adversário aparece na Bolívia

marcado por uma ambiguidade: ele é ao mesmo tempo externo (representa as forças

estrangeiras que querem condenar o país ao atraso) e, para importantes setores da sociedade,

interno (representa as forças nacionais que depreciam as massas populares indígenas,

condenando-as à miséria socioeconômica e política). Uma “elite crioula antipátria” seria a

fórmula que sintetizaria este adversário e que teria suas raízes nas diversas contradições da

antiga sociedade colonial.

Por outro lado, também foi analisado um teórico que – apesar de não trabalhar o

nacionalismo especialmente dentro do terreno do conflito – contribui para entender como ele

é construído. Smith enxerga o caráter étnico do nacionalismo como necessário, mas, ao

definir a etnia de maneira mais cuidadosa que os outros autores analisados (como Nairn e

Gellner) consegue separá-la das palavras negativas às quais está normalmente associada,

Page 40: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

30

como o racismo, a xenofobia e demais formas irracionais de diferenciação entre grupos

humanos. Para Smith, a história e a memória coletiva são pedras de toque da etnicidade (do

nacionalismo, portanto) e tais elementos não são necessariamente racionais ou irracionais. O

teórico enfatiza, assim, a reivindicação de experiências passadas e mitos históricos populares

como uma característica necessária do nacionalismo. Sua ausência representa – em termos

que já não são de Smith – dificuldades no estabelecimento de hegemonias políticas. Este

aspecto, contudo, será mais bem abordado no capítulo 3.

Entretanto, um incômodo que foi levantado em alguns momentos neste capítulo não

foi completamente solucionado na análise das formulações teóricas de Smith. Ainda que a

íntima conexão entre etnicidade e historicidade ajude a entender o resgate ao passado como

forma não necessariamente negativa, tem-se a impressão de que as experiências passadas que

o indigenismo de Marof evoca dizem respeito a uma esfera que ultrapassa a etnicidade e

esfera de uma população nativa específica. O projeto do incario é resgatado para comunicar

ideias universais (e não específicas) de justiça e de racionalidade que se perderam no

presente. Neste sentido, é preciso ir além da identidade étnica para entender o conflito

político em torno do indigenismo, que no contexto atual se dá em torno das reivindicações

que emergem no período das “guerras” antineoliberais, que envolve a reivindicação por

representatividade política indígena, mas também envolve outras demandas igualmente

contundentes. Assim, a relação entre historicidade e conflito na Bolívia contemporânea

parece remeter mais a memórias de momentos-chave da vida política da sua população do

que a identidades de grupo estanques, mutuamente excludentes. O próximo capítulo é

dedicado, portanto, à análise destas memórias revolucionárias, que são aqui também

denominadas de “tempos sociais”.

Page 41: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

31

Capítulo 2 – Tempos sociais

A Bolívia viveu no início deste século um dos períodos mais intensos de mobilização

popular da história da América Latina. Motivada pela privatização dos sistemas de

abastecimento de água em Cochabamba, a Guerra da Água ocorreu entre janeiro e abril de

2000 e foi chamada de primeira revolta antineoliberal do milênio. Ela foi seguida pela Guerra

da Coca, de 2002, que trazia mais uma vez à tona a luta contra a erradicação forçada e

violenta da folha de coca, impulsionada pela política externa norte-americana. Contudo, a

mais conhecida destas “guerras” aconteceu em 2003: a Guerra do Gás. Tratava-se

inicialmente de uma resposta à impopular medida do governo de Gonzalo Sánchez de Lozada

de vender o gás natural boliviano para os EUA por meio de portos chilenos. Mas a

mobilização popular levou à elaboração da agenda de outubro – uma ambiciosa petição de

nacionalização dos recursos naturais e industrialização do país – e à renúncia do presidente.

Em 2005, houve um último momento de grande mobilização, que pediu a efetivação da

nacionalização dos hidrocarbonetos, derrubou o governo de Carlos Mesa e abriu caminho

para as eleições presidenciais que iriam levar o líder cocaleiro Evo Morales à cabeça do

Estado boliviano.

Será feita neste capítulo uma apresentação esquemática do que denomino “tempos

sociais”, projetos acumulados no interior da sociedade boliviana por meio de memórias de

eventos e de experiências compartilhadas. Estes “tempos” se cruzariam de maneira única

neste período intenso de mobilização antineoliberal e foram classificados em quatro: operário

mineiro, indígena, camponês e urbano-popular.

A relação destes “tempos” com a realidade empírica não é direta. Como afirmei no

final do capítulo anterior, eles foram pensados para responder a uma dificuldade em se

compreender teoricamente as reivindicações do indigenismo com base em categorias de

identificação étnica. A relação da etnicidade com a história é uma ponte para entender como

identidades étnicas e nacionais são construídas, mas ainda assim a forma excessivamente

“estanque” destas identidades, que são mutuamente excludentes, nos impede de enxergar

outras dimensões – cujos projetos têm potencial mais universalizante – que estão contidas no

que normalmente se denomina de etnicidade na Bolívia.

Um exemplo que pode deixar este argumento mais claro é a forma – a meu ver,

bastante limitada – em que a figura da “mestiçagem” vem sendo trabalhada por alguns

autores. Carlos Toranzo, ao criticar o excesso de “dualismo” no debate político boliviano –

que contrapõe brancos e índios, pátria e antipátria – advoga pela adoção da categoria

Page 42: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

32

“mestiço” nas pesquisas sobre identidades étnicas16, já que este dualismo não permitiria os

matizes da mistura étnica, a expressão das pessoas de “cor café” (Toranzo, 2008, p. 40-41). A

mestiçagem é entendida de forma ambígua por Toranzo, algumas vezes por meio de

características fenotípicas (“cor café”, “matizes tonais”) e outras vezes como experiências

históricas, como o indígena que vai ao McDonalds, adota o sincretismo religioso ou compra

“euros e dólares” em miniatura nas Alasitas17, reconhecendo a lógica de mercado (ibidem, p.

50). Acredito que o erro de Toranzo é a tentativa de encaixar esta última experiência, de

sincretismo cultural típico dos espaços urbanos, na identificação fenotípica mestiça.

O debate é complexo e certamente envolve questões antropológicas que fogem do

alcance deste trabalho. Aqui, o que se quer reiterar é o equívoco da tradução de experiências

históricas complexas em simples identidades étnicas. Se etnicidade, como vimos em Smith,

está intimamente ligada à historicidade, esta última está longe de se resumir à primeira. Neste

sentido, podemos entender o indigenismo de Marof, pois ele explora uma experiência

histórica específica como exemplo geral para o futuro (o comunismo) e não como reiteração

da especificidade da população indígena.

Assim, para abordar a diversidade de projetos e trajetórias que se encontra na

população boliviana, optou-se neste trabalho pela análise de “tempos sociais”. Não se trata de

nenhuma inovação. Como veremos adiante, diversos intérpretes da Bolívia trabalham com

categorias parecidas - memória longa e memória curta (Silvia Rivera), horizontes

revolucionários (Sinclair Thomson e Forrest Hylton), tempos que representam as formas

econômicas distintas presentes na formação econômico-social boliviana (Zavaleta Mercado)

– e refletem um debate que também se dá na historiografia mundial, com Ernst Bloch,

Fernand Braudel ou Emilio Sereni.

Feita esta introdução, pretendo neste capítulo abordar a construção teórica destas

temporalidades para o caso boliviano e uma forma de aplicação destas para entender o

período de “guerras” antineoliberais de 2000 a 2005. Reitero que a relação destes “tempos”

com o mundo empírico é mediada. É possível, e extremamente provável, que se encontre

16 O artigo foi escrito no contexto dos debates em torno do censo boliviano de 2001, no qual 62% da população se auto identificou como pertencente a um grupo étnico indígena (31% quéchua, 25% aimará e os restantes 6% divididos em outros grupos, como chiquetanos, guaranis e mojeños) (Albó, 2008, p. 13). A impossibilidade de se identificar como “mestiço” no censo foi criticada por autores como Toranzo, que enxergam nesta categoria a forma de identificação étnica majoritária da população boliviana. Três artigos que sistematizam posições diferentes sobre o assunto – de Xavier Albó, de Carlos Toranzo e de Diego Zavaleta Reyles – foram publicados na coletânea Unresolved tensions: Bolivia past and present (2008), editada por John Crabtree e Laurance Whitehead. 17 Realizada em janeiro, a feira Alasitas vende miniaturas que representam todo tipo de desejos para o próximo ano. Os pedidos são direcionados ao deus Ekeko, que representa a abundância.

Page 43: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

33

inúmeros indivíduos que vivenciaram todas estas experiências e se encaixam nas quatro

temporalidades propostas para entender o “setor mobilizado” do período.

O fato que se quer enfatizar aqui é que estas temporalidades respondem a demandas

históricas distintas. Na análise de cada uma delas voltarei, assim, ao debate inicial do

primeiro capítulo sobre como as identidades coletivas são entendidas no contexto da luta

política contra o governo neoliberal e que tipo de tarefas estas temporalidades vislumbram

para o próximo período.

Memórias revolucionárias e contradições diacrônicas

Uma das características mais notáveis das mobilizações de 2000 a 2005 é a forma

como estas sensibilizaram setores da sociedade boliviana bastante distintos, seja por questões

de classe, geográficas (cidade e campo, altiplano andino e terras baixas) ou culturais e

étnicas. Cidades centrais, como Cochabamba, La Paz, Oruro, pararam inteiramente. El Alto, a

irmã pobre de La Paz, teve suas ruas tomadas por barricadas e todo o seu território controlado

pelas juntas vicinais. Os centros mineiros se mobilizaram, enviando trabalhadores em marcha

para os centros urbanos convulsionados. Os camponeses também pararam, promovendo

bloqueios que travavam o comércio do país e isolavam as cidades. Por fim, memórias

coloniais da resistência indígena marcaram fortemente as mobilizações, com o cerco da

cidade de La Paz feito aos moldes do realizado por Tupac Katari mais de duzentos anos

antes.

Hylton e Thomson identificaram nas mobilizações de 2000 a 2005 uma combinação

de elementos da luta indígena – simbolizada pela “memória longa” da rebelião indígena de

Tupac Katari no final do século XVIII – com a luta nacional-popular – simbolizada pela

“memória curta” da Revolução de 1952. Segundo eles, estas memórias revolucionárias

geralmente seguiram caminhos separados e a desconfiança pautava a relação entre suas

lideranças. Contudo, “os momentos de convergência infrequentes entre estas duas lutas

criaram poderosos movimentos radicais e deixaram efeitos duradouros” (Hylton / Thomson,

2005, p. 43). As manifestações do início do século XXI na Bolívia são novos exemplos de

combinação destes elementos em “formas novas”.

Ao comentar a reorganização sindical camponesa em torno do katarismo na década de

1970, Silvia Rivera também faz referência a uma memória longa das lutas anticoloniais e a

uma memória curta das lutas sindicais no contexto da Revolução de 1952 (Rivera Cusicanqui,

2003, p. 179). Para ela, o projeto de incorporação dos índios ao Estado por meio da categoria

Page 44: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

34

de campesinato ocorreu de forma muito limitada, foi somente uma “ruptura parcial com o

passado” (ibidem, p. 180). A contradição central da sociedade boliviana, que se estendeu até

o presente, estaria já colocada no antagonismo colonial entre “invasores e invadidos”,

definidos na sua oposição (Rivera Cusicanqui, 1993, p. 57). Assim, para Rivera, o liberalismo

do século XIX e o populismo de 1952 seriam reedições deste antagonismo. Estes períodos

igualmente cumpriram funções de “exclusão e disciplinamento cultural”, emanadas de uma

“minoria crioula de origem ocidental” que monopoliza “há séculos o poder do Estado e a

capacidade ordenadora sobre o conjunto da sociedade” (ibidem, p. 34-35).

A ideia da manutenção de tais contradições do passado na sociedade atual desemboca

em uma “teoria do colonialismo interno” na Bolívia18. Para Rivera, um conceito-chave para

esta teoria seria o de contradição diacrônica de Ernst Bloch (1974), apresentado para

entender a sociedade alemã durante a ascensão do nazismo. O teórico marxista define como

contradições diacrônicas “tendências e sobrevivências de épocas e superestruturas pré-

capitalistas; por conseguinte, uma não-coetaneidade genuína, que a consciência de uma classe

em decadência considera de fato ou pode considerar como algo moderno” (Bloch, 1974, p.

109-110). Tais classes em decadência seriam os camponeses, setores pequeno-burgueses

(classe média) e parte da classe dominante, que conformavam as bases para o fortalecimento

do nazismo. Bloch argumenta, contudo, que os socialistas, ao não diferenciarem a

“contradição do desenvolvimento desigual” da “mentira fascista”, acabaram por fortalecer o

nazismo. A tarefa, portanto, seria “desprender os elementos viáveis da contradição do

desenvolvimento desigual, apropriando-se destes e controlando-os, a fim de induzir nestes

uma mudança de função no momento em que forem levados a outro contexto; estes

elementos viáveis são os que se opõem ao capitalismo e que não podem prosperar neste”

(ibidem, p. 115).

É curioso notar que a argumentação de Bloch parece apontar para uma direção oposta

à defendida por Rivera. Para ele, as contradições modernas coetâneas (em especial a

contradição entre trabalho e capital) devem “dirigir” as contradições diacrônicas,

estabelecendo como marco a oposição ao capitalismo. O movimento que o indigenismo de

Tristan Marof faz ao recuperar o comunismo incaico para pensar o comunismo futuro estaria

próximo das recomendações de Bloch. O senso de justiça do inca seria um elemento que se

18 Com relação a esta teoria, Rivera também identifica como influências Frantz Fanon e os autores latino-americanos González Casanova, Flores Galindo, Manrique e Andrés Guerrero, que “assignam à situação colonial um valor explicativo aplicável ao período republicano, para além de uma imagem de uma ‘herança’ ou ‘ressábio’ do passado que teria conseguido se filtrar nos sucessivos esforços de reforma ou modernização” (ibidem, p. 30).

Page 45: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

35

oporia ao capitalismo, por exemplo. Para Rivera, contudo, são as contradições diacrônicas

que exercem papel preponderante. Elas não representam o passado, elas são a chave para

entender o presente, mais do que qualquer outra contradição vivida pela sociedade boliviana.

O cruzamento de tempos durante as convulsões políticas também pode ser abordado

por meio de categorias pensadas por Fernand Braudel. Ele identifica três tipos de

temporalidade sob as quais o historiador se debruça: 1) o tempo de curta duração, que se

caracteriza pela sua atenção “ao tempo breve, ao indivíduo e ao acontecimento”, que

conformaria uma história dos acontecimentos; 2) o tempo de média duração, que seria uma

história conjuntural, econômica e social, que “coloca no primeiro plano da sua investigação a

oscilação cíclica e aposta na sua duração”; e 3) o tempo de longa duração, que representaria

uma “história de fôlego ainda mais contido e, neste caso, de amplitude secular”, que seria a

temporalidade mais interessante para Braudel (1976, p. 12). A longa duração de Braudel tem

muita proximidade com a geografia19, mas também as formulações sociológicas relativas ao

conceito de estrutura20 e a cultura21 também aparecem como espaços férteis para pensar o

conceito.

Dentro desta perspectiva, é possível identificar certa proximidade com o conceito

braudeliano na “longa duração” proposta pelas análises de Rivera. De certa maneira, quando

Rivera defende que a contradição central da sociedade boliviana é aquela entre colonizadores

e colonizados, e que ela explica os outros momentos posteriores da história do país, a

socióloga opta por fazer uma história do encontro de duas civilizações que ainda não está

concluída. Tal história se diferencia das demais temporalidades de Braudel porque não se

subordina ao econômico nem aos fatos e acontecimentos; ainda que fatos e personagens,

como Tupac Katari, sejam muito importantes na composição desta memória coletiva de longa

duração.

Colocadas estas considerações sobre temporalidades cruzadas, farei uma breve análise

dos que julguei os principais “tempos sociais” atuantes nas “guerras” antineoliberais: o tempo

sindical mineiro, o tempo camponês, o tempo indígena e o urbano-popular. Para acompanhar

19 “Considere-se o lugar ocupado pela transumância da vida de montanha, a permanência em certos sectores da vida marítima, arraigados em pontos privilegiados das articulações litorais; repare-se na duradoura implantação das cidades, na persistência das rotas e dos tráficos, na surpreendente fixidez do marco geográfico das civilizações” (Braudel, 1976, p. 22) 20 Estrutura entendida como “relações suficientemente fixas entre realidades e massas sociais”, mas que os historiadores devem entender como “uma realidade que o tempo demora imenso a desgastar e a transportar” (Braudel, 1976, p. 21). 21 Como o estudo das permanências de temas, comparações e lugares comuns na literatura, ou de representações pictóricas.

Page 46: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

36

os eventos do ponto de vista cronológico, pode ser útil ao leitor consultar a Tabela 1 (ver

anexo).

O tempo do operariado mineiro

No dia 2 de outubro de 2003, a assembleia da Central Obrera Boliviana (COB) em La

Paz reviveu seus dias de glória: uma multidão demandava a saída do presidente Gonzalo

Sánchez de Lozada. Milhares de mineiros se colocaram em marcha de Huanuni, importante

centro mineiro da atualidade, até a sede do governo. No dia 9, em um enfrentamento em

Ventilla, na periferia de El Alto, morreram os seus primeiros mártires na Guerra do Gás. No

dia 15 de outubro, ao serem emboscados por soldados em Patacamaya, cidade ao sul de La

Paz, mais três foram mortos. A liderança dos mineiros cooperativistas ameaçou: toda a sua

base, 50 mil mineiros, deveria estar preparada para marchar até La Paz. Dois dias depois,

com marchas desembocando massivamente na sede do governo e enfrentamentos convulsivos

no seu interior, Sánchez de Lozada renunciou (Hylton/Thomson: 2005, p. 54-56).

Enfraquecidos se comparados ao seu passado glorioso, os mineiros do século XXI

possuem uma força simbólica profunda. Durante quase todo o século XX, este setor foi o

principal movimento social que polarizou e pautou o Estado. Muitas das formas de atuação e

dos conteúdos de reivindicação presentes nas “guerras” antineoliberais podem ser traçadas

até as formas e os conteúdos da ação do operariado mineiro.

Os mineiros são portadores históricos de um conteúdo que ultrapassa em larga medida

suas reivindicações mais específicas econômicas e sindicais. Tal conteúdo é marcado por

uma agenda popular e anti-imperialista da Revolução de 1952 que reivindica a soberania

econômica e que se sintetiza na demanda pela nacionalização dos recursos naturais. Ainda

que a consigna de Marof, “minas ao Estado, terras ao povo”, tenha sido cunhada já em 1926,

a década de 1940 coloca o debate sobre a mineração em um patamar qualitativamente

diferente, graças à 2ª Guerra Mundial. Neste período, os ganhos da elite mineira com a

exportação do estanho para os Aliados são grandes22. Em contrapartida, os altos rendimentos

com estanho levavam aos donos de minas a explorarem ainda mais os trabalhadores mineiros,

intensificando as jornadas e impondo uma disciplina rigorosa, em uma situação de já

péssimas condições de trabalho. Em 1942, o exército reprimiu com um massacre o protesto

de mineiros em Catavi e isso contribui para a caracterização do governo de Peñaranda como

22 Whitehead cita contratos exclusivos e a preços fixos e relativamente favoráveis da Bolívia com os Estados Unidos (Whitehead, 1991, p. 528).

Page 47: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

37

entreguista com relação às pressões estrangeiras e insensível para as demandas sociais

internas do país (Whitehead, 1991, p. 528).

A demanda por nacionalização das minas é, portanto, fundante da classe operária

boliviana. Ainda que este seja um conteúdo típico que não ultrapassa os limites de uma

revolução burguesa, a sua materialização coube na Bolívia, assim como em diversos outros

países, à classe operária e não à burguesia ou às classes médias. Mais do que qualquer

liderança partidária nacionalista, foi este setor da sociedade boliviana que carregou o

conteúdo popular da Revolução de 1952 pelas décadas seguintes. Oposta à nacionalização

dos recursos naturais, que tem como fundamento de legitimidade a soberania econômica

nacional, se colocaria uma elite econômica “antipátria”, uma “antinacional” burguesia

nacional. Na primeira metade do século XX, este adversário era a chamada Rosca mineira,

representada pelos donos de minas de estanho, que concentravam grande poder político e

econômico23.

Paralelamente, é na conjuntura pós-revolucionária de 1952 a 1964 que o operariado

mineiro experimentou as suas principais formas de atuação política. A COB, que foi fundada

neste momento24, cumpriu um papel central na consolidação da revolução. Na categorização

de Zavaleta, a COB atuou nos primeiros momentos pós-revolução estabelecendo um poder

dual e posteriormente por meio de um cogoverno. Citando Lênin, o sociólogo caracteriza o

poder dual pela existência de dois Estados paralelos, e afirma que este fenômeno só ocorreu

de forma parcial na Bolívia. O poder dual existiu durante os meses imediatamente posteriores

à revolução, período no qual a hegemonia da classe operária era evidente. Efetivamente, eram

os operários que, por meio das suas milícias, controlavam todo aparato repressivo do Estado,

já que o exército havia sido completamente desbaratado. A COB surgiu, portanto, como a

expressão desta hegemonia, como um “órgão estatal, um soviet” (Zavaleta Mercado: 1979, p.

85). Os sindicatos se dotaram de capacidades administrativas, legislativas e jurídicas, “a

assembleia sindical se converteu na suprema lei e na suprema ordem” (Lora apud Zavaleta,

1979, p. 85). O outro Estado era representado pelas forças pequeno-burguesas do MNR, que

ocupavam a cadeira presidencial. Zavaleta chama este período de “fase da hegemonia das

massas” (Zavaleta, 1988, p. 28).

23 A Rosca mineira era conformada por três principais “barões do estanho”: Simón Patiño, Carlos Aramayo e Mauricio Hochschild. Suas empresas concentravam 80% das exportações nacionais. Apesar de não ocuparem diretamente cargos no governo, eles possuíam grande poder político, com muita influência nos assuntos fiscais do Estado. Eles indicavam assessores para gabinetes ministeriais, ocupavam embaixadas e possuíam os principais jornais do país (Dunkerley, 2003, p. 28-30). O auge da Rosca cobriu a primeira metade do século XX, período que foi chamado de “Super Estado mineiro”. 24 A COB foi fundada apenas sete dias depois da irrupção da revolução de 9 de abril de 1952.

Page 48: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

38

Mas esta situação logo se transformou em um cogoverno, no qual “o poder material

da classe foi substituído pela metade dos ministérios, (...) pela participação em um Estado que

já não era o da classe operária” (Zavaleta, 1979, p. 92). Tal processo é explicado por uma

linha adotada pela direção operária25 que apontava a necessidade da “expansão para o

aprofundamento” da revolução, e isso se consolidava em um cogoverno entre o MNR e a

COB, em um regime unitário. Tal é o processo que justifica a incorporação das lideranças

operárias no governo e no MNR, sendo sua principal figura, Juan Lechín, vice-presidente do

segundo mandato de Paz Estenssoro, 1960 a 1964. A esta fase Zavaleta denomina “fase semi-

bonapartista do poder”, que se aproximaria mais do modelo de Estado pensado como ideal

pelo MNR, próximo ao modelo mexicano do Partido Revolucionário Institucional (PRI). É

nela que se inauguram as figuras de mediação, em especial a de Lechín, ou a da “burocracia

lechinista”, e a de Ovando, “agente de reorganização do exército e consequentemente o chefe

titular da burocracia estatal militar” (Zavaleta Mercado, 1988, p. 29). As disputas de poder

passam então ao interior do MNR, partido que um setor bastante considerável do operariado

mineiro incorporou, mas que era liderado pelo setor nacionalista pequeno-burguês.

As duas formas de atuação marcam a ação política do operariado mineiro. Ao mesmo

tempo em que se incorporou aos partidos e frentes de governo (como ao MNR entre 1952 e

1964 e à Unión Democrática y Popular26 no início dos anos 1980), com uma relação de

composição do Estado mais clara e com a mediação de partidos políticos ou de suas

lideranças, como Lechín, o operariado também demonstrou historicamente um ímpeto de

ação direta forte. Tal ímpeto, muitas vezes marcado pela espontaneidade, pode ser visto na

experiência de poder dual de 1952 e na tentativa de estabelecer uma Assembleia Popular

(1970 a 1971) que substituísse o parlamento27.

A COB será durante as três décadas posteriores à revolução a principal voz da

sociedade boliviana. Para Zavaleta Mercado, uma das características principais do Estado

criado pela Revolução de 1952 foram as estruturas de mediação com a sociedade (2008, p.

11). Tais mediações não eram institucionalizadas, mas sim marcadas por vínculos informais,

clientelistas ou pessoais28. Mesmo nos períodos de ditadura militar, em que estas mediações

25 Zavaleta cita diretamente Ernesto Ayala Mercado, do grupo trotskista que entrou no MNR. 26 A UDP governou o país durante o segundo mandato de Siles Zuazo (1982-85). Ela era uma coligação que reunia o Movimento Nacionalista Revolucionário de Esquerda (MNRI), o Movimento da Esquerda Revolucionária (MIR) e o Partido Comunista Boliviano (PCB). 27 A Assembléia Popular ocorreu no governo do general Juan José Torres. Impulsionada pela COB, reuniu 218 delegados, dentre estes 123 mineiros e 23 camponeses, e todos os partidos de esquerda. A experiência terminou com o golpe de Banzer de agosto de 1971 (Garcia Linera et al, 2008, p. 59). 28 Para Zavaleta Mercado, Juan Lechín, liderança da COB, foi um “mediador clássico”, assim como, em certo sentido, foi o militar Alfredo Ovando com relação ao Exército.

Page 49: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

39

são quebradas, a representação da sociedade civil se fez por meio da COB e sua resistência.

Como colocam Garcia Linera et al:

Houve um tempo em que a política tinha como cenários os quartéis e as grandes assembleias operárias. Era o tempo em que as elites se coligavam em torno dos oficiais do exército com mando de tropa e em que a sociedade exercia os seus direitos de cidadania por meio dos sindicatos e organizações em escala nacional (COB). Ditadura militar e cidadania sindical eram os pólos ordenadores do campo político de 1964 até 1982 (Garcia Linera et al, 2008, p. 11).

Contudo, o operariado mineiro recebe um golpe duro durante a década de 1980, no

período do reestabelecimento da democracia institucional no país. O decreto 21060,

promulgado em 1985 pelo presidente recém-eleito, Victor Paz Estenssoro, antiga liderança

nacionalista, previa um corte radical nos gastos do Estado e causou a demissão de 23 mil

mineiros (80% do total). O decreto marcou o início do período neoliberal de reformas

estruturais no país.

A COB organizou uma grande marcha, a Marcha pela Vida, que foi respondida pelo

governo com um estado de sítio. Os mineiros se viram cercados pelo exército e, para evitar o

provável enfrentamento sangrento, retrocederam sem impedir as demissões e sem lutar, fato

raro na sua trajetória política29.

A situação de fragilidade do operariado mineiro era fruto de certo apoio popular que o

Decreto 21060 angariou. Durante a década de 1980, a economia do estanho estava em franco

declínio e representava somente 24% do total das exportações bolivianas - durante a década

de 1930 esse número chegou a 70% (Morales; Espejo, 1994, p. 14). Somado a isso, o governo

de Siles Zuazo, anterior ao de Paz Estenssoro e conformado por uma frente popular,

enfrentou um cenário latino-americano de crise de dívida externa. O resultado foi um total

descontrole econômico, com uma inflação galopante, cuja média anual cresceu de 123%, em

1982, para 8.767% em 1985, e uma economia decrescente, com taxas de crescimento do PIB

negativas em todos os anos do seu governo (Mesa et al, 2003, p. 741-746). Quando o governo

seguinte propôs um pacote de medidas para enfrentar a crise econômica, a resposta da

população em geral foi uma aceitação silenciosa. O decreto teve efeito imediato de controlar

a hiperinflação30 e satisfez os setores urbanos informais e o campesinato, que eram

particularmente afetados com a falta de estabilidade nos preços (Whitehead, 1991, p. 579).

29 Mesmo no seu pior momento histórico, os mineiros protagonizaram uma forma de mobilização que seria repetida em diversas outras manifestações em anos de neoliberalismo: as marchas massivas e reivindicativas até La Paz, que utilizavam o sacrifício como estratégia mobilizadora da opinião pública. 30 Em 1986, a taxa anual de inflação baixou para 66% e em 1987 alcançou 11% (Mesa F. et al, 2003, p. 746).

Page 50: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

40

A derrota da COB imposta pelo Decreto 21060 marca um novo período da história

boliviana. Sob a orientação neoliberal, as conquistas de período anterior foram pouco a pouco

retiradas, principalmente aquelas referentes à reivindicação de soberania econômica. A

“capitalização” das empresas estatais, nome dado pelo governo à política de privatização, era

uma das principais características dos governos do período entre 1985 e 2005.

Este período também foi marcado pela estabilidade institucional e por governos de

coalizão entre os três principais partidos: o MNR, Movimiento de Izquierda Revolucionaria

(MIR) e Acción Democrática Nacionalista (ADN). Nenhum candidato à presidência entre

1985 e 2005 conseguiu a maioria absoluta dos votos e as definições sobre o Executivo

tiveram que ser realizadas no Congresso. Contudo, o período político, chamado de

“democracia pactuada”, carecia das estruturas de mediação entre o Estado e sociedade que

eram típicas do Estado pós-1952. Com a derrota da COB em 1985 e a fragmentação das

organizações populares, sequer ocorre uma polarização equivalente àquela que havia entre

militares e COB durante as ditaduras. Garcia Linera et al identificam neste momento uma

espécie de superdimensionamento da direita:

Desmantelada a base material da esquerda sindical (COB), e em meio à derrota política da esquerda partidária (UDP), o pensamento conservador e de direita, discursivamente apresentado como renovador e progressista, ocupou monopolicamente o cenário das representações legítimas do mundo. (...) Neste caso, o centro político, entendido como a eqüidistância entre posições confrontadas, não era o centro do espaço político, mas sim o centro do pólo político neoliberal, no qual a disputa se dava entre posições mais ortodoxas (gonismo), mais ‘sociais’ (MIR) ou mais institucionalistas (ADN) para implementar o neoliberalismo. Portanto, pode-se falar que, nestes momentos, o campo político se caracterizará por um tipo de unipolaridade multipartidária de direita (Garcia Linera et al, 2008, p. 13).

A situação fragmentada das organizações populares bolivianas, que tinham como

grande referência a COB, refletia também a própria realidade dos mineiros. Com a demissão

em massa, chamada pelo governo de relocalización, ex-mineiros se espalharam por todo o

território boliviano, indo para o campo e para as periferias das grandes cidades, onde

conformaram as massas de trabalhadores informais.

Os mineiros levaram consigo suas formas de mobilização, participação política e o

seu radical conteúdo popular, sendo que as políticas privatistas do neoliberalismo criaram um

cenário ideal para a recuperação da reivindicação por soberania econômica por meio da

renacionalização dos recursos naturais. A elite “antipátria” era agora encarnada pelos

tecnocratas que ocupavam as pastas ministeriais, sensíveis aos informes do FMI e

indiferentes com relação às demandas da população boliviana.

Page 51: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

41

Não é casual que o caráter “antineoliberal” tenha marcado praticamente todas as

grandes mobilizações entre 2000 a 2005. A denúncia das políticas neoliberais contava com

plenas condições para se expandir: os mineiros relocalizados readaptavam sua experiência e

pautas históricas aos mais diversos tipos de movimentos urbanos ou rurais. Gestada em meio

à Guerra do Gás de 2003, a agenda de outubro será a mais completa recriação deste tempo

social do operariado mineiro, pois pedirá a nacionalização dos recursos naturais, a

industrialização do país e a renúncia do presidente Sánchez de Lozada, personificação desta

elite “antipátria” boliviana.

O tempo do campesinato

O tempo camponês é, dos quatro que estamos analisando, aquele que se expressou de

maneira mais organizada, massiva e diversificada nas mobilizações de 2000 a 2005, atingindo

quase a totalidade do território nacional. Ele esteve presente quando o incipiente movimento

sem-terra, atuante nas terras baixas bolivianas, anunciou durante a Guerra do Gás ocupações

de terras (Hylton/Thomson, 2005, p. 54), levantando em meio às lutas a antiga bandeira da

revolução agrária. A perspectiva camponesa também foi visível nos bloqueios cocaleiros, que

em 2000 e 2002 lutavam contra a política de “coca zero”, chamada pelos cocaleiros de

“camponês zero”, dos governos de Bánzer e de Quiroga. Também apareceu na mobilização

dos regantes31 na Guerra da Água, setor camponês do vale cochabambino que possuía acesso

à irrigação e que foi especialmente afetado pela privatização da água. Por fim, as demandas

camponesas eram o centro da pauta de reivindicação da CSUTCB em 2000, aquela que

mobilizou a reconstrução do cerco indígena à cidade de La Paz: a revisão da lei de terras (Lei

Inra, de 1996), o estabelecimento de mercados camponeses e a doação de tratores para a

mecanização do campo.

No início do século XXI, as demandas por reforma agrária e desenvolvimento rural

remontam mais uma vez à Revolução de 1952. Até 1952, as fazendas crioulas, predominantes

unidades de produção agrária, dependiam centralmente da mão-de-obra servil camponesa,

sistema chamado de pongueaje. Apesar de ter sido proibido por um decreto em 1945, o

trabalho servil só foi realmente extinto na Revolução de 1952. E tal eliminação foi possível

somente com a reforma agrária, que redistribuiu entre os colonos – trabalhadores em regime

31 Os regantes são um setor do campesinato cochabambino especialmente ocupado na distribuição da água para as comunidades rurais e para a irrigação. Podem estar ligados aos sindicatos camponeses ou podem ser estruturas comunitárias de controle de água independentes. Organizam-se no nível departamental na Fedecor - Federação Departamental de Regantes de Cochabamba (Garcia Linera et al, 2008, p. 646-647).

Page 52: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

42

de servidão – as terras das suas respectivas fazendas. Os camponeses se inseriram no

processo revolucionário com estas reivindicações e a partir delas - e da sua efetivação, já que

a reforma agrária termina somente na década de 1960 - se constituíram enquanto setor crucial

da política boliviana.

Ao mesmo tempo, a identidade camponesa era mais facilmente aceita pela ideologia

nacionalista vigente do que a identidade indígena. Em uma sociedade extremamente racista e

que via o índio como uma raça inferior, o projeto crioulo de “pátria ‘decente’” das lideranças

nacionalistas da Revolução de 1952 transforma o movimento índio em camponês e permite

“converter as massas rurais em receptoras passivas das novas propostas civilizadoras do

movimientismo” (Rivera Cusicanqui, 2003, p. 109)32.

Mas as influências também vieram do operariado das minas, e os camponeses logo

denominaram as suas recém-reestabelecidas comunidades de sindicatos agrários, que contava

com um corpo de direção executiva, assembleias e mandatos. Contudo, tratava-se de um

órgão de gestão territorial também, com funções administrativas, judiciais e legislativas. Ou

seja, do ponto de vista do seu funcionamento, não se distanciava muito da antiga comunidade

indígena autônoma. Debora Yasher coloca isso da seguinte maneira:

Como parte deste projeto corporativista, os Estados da América Latina incorporam aos índios. Eles procuraram descartar categorias étnicas (que apoiavam tentativas remanescentes de construção nacional) e reconstruir os índios como camponeses nacionais. Os Estados fizeram isso por meio de reformas agrárias que “emanciparam” os índios de formas de controle de trabalho repressivas e/ou exploradoras (portanto, oferecendo-lhes um prospecto de cidadania autônoma), ocasionalmente distribuíram terras e crédito (portanto, ampliando direitos sociais), e os incorporaram através de associações camponesas (organizando-as, desta forma, em linhas corporativistas) (...). O corporativismo, por fim, criou um dualismo dinâmico, com identidades que mudavam de acordo com o cenário: para o Estado, os índios assumiram a identidade de camponeses, no interior da comunidade, os camponeses assumem sua identidade como índios (Yasher, 1999, p. 81-84).

O sindicalismo agrário, então, passou a ser muitas vezes entendido como a face

“corporativa” das comunidades rurais indígenas. Tal face corporativa camponesa iria se

tornar nas ditaduras militares de Barrientos e Bánzer nas décadas de 1960 e 1970, após os

governos pós-revolucionários do MNR, a principal aliada social do Estado. Para garantir a

continuidade da reforma agrária, as organizações camponesas se aliaram às ditaduras no

chamado Pacto Militar-Camponês.

32 “Movimentismo” faz referência ao MNR.

Page 53: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

43

Assim, o “campesinato” é entendido muitas vezes como uma forma de ser indígena

que guarda uma relação clientelista com o Estado. Fausto Reinaga aponta esta mágoa com

relação à denominação de camponês:

Nós, índios, não somos ‘camponeses’ da categoria do Gal. Barrientos Cantinflas e seus parasitas. Não somos ‘camponeses’ que integram a sociedade do cholage branco-mestiço. Não. Isso não somos. (...) Nós somos índios, filhos de Pachakútej, Tupaj Amaru, Tomás Katari, Tupaj Katari, Pablo Atusparia, Zárate Willka. Somos deste trigo e deste pão (Reinaga, 1970, p. 20).

Mas, com o esgotamento do Pacto Militar-Camponês33, o movimento camponês, por

meio da própria CSUTCB, assume em conjunto com o movimento operário as lutas pela

democratização do país e contra as medidas econômicas “estabilizadoras” com alto custo

social. No mesmo ano da sua fundação, em 1979, ocorre o seu “batismo de fogo”, quando

promoveu um bloqueio geral de estradas que deixou as cidades isoladas durante uma semana

em resposta a um duro pacote econômico do governo provisório de Lídia Gueiler (Regalsky,

2007, p. 49). Contudo, diferentemente do que ocorreu no seu passado nacionalista, o

movimento camponês agora não mais escondia o seu caráter étnico, mas sim o levantava

como bandeira, até o ponto em que se confundia com o movimento indígena.

Mas foi o setor cocaleiro, localizado no norte tropical do departamento de

Cochabamba (centro do país), que dinamizou profundamente o campesinato boliviano. A

região, considerada pela Lei 1008 de 1988 como zona de cultivo “excedente” (em

contraposição ao cultivo “tradicional”) da folha de coca e que, portanto, deveria ser

erradicado, sofria com a forte intervenção norte-americana no país. A partir desta lei, a

Bolívia militarizou o trópico de Cochabamba, multiplicando detenções arbitrárias e violações

que iam da tortura ao abuso sexual. Levantando a bandeira da economia camponesa, dos

direitos humanos e da soberania nacional (contra a intervenção norte-americana no país), o

movimento cocaleiro resistia à política de erradicação forçada da coca com a organização de

bloqueios e comitês de autodefesa.

33 O fim do Pacto Militar-Camponês é marcado pelo chamado “Massacre do Vale”, de 1974. Em janeiro deste ano, o governo militar de Banzer aplicou um pacote de políticas econômicas que aumentava consideravelmente o preço artigos de primeira necessidade. Em oposição à medida, setores camponeses dos vales de Cochabamba (curiosamente, regiões mais protagonistas do pacto com os militares) se juntaram às manifestações da capital departamental organizando bloqueios nas estradas. Apesar dos camponeses esperaram uma negociação com o governo, seus bloqueios foram dispersados com uma violenta operação militar, que deixou ao menos 80 mortos, segundo informes de organizações de direitos humanos (Rivera, 2003, p.156-158).

Page 54: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

44

O campesinato boliviano, em especial o setor cocaleiro, é entendido por muitos como

herdeiro do operariado mineiro. Filemón Escóbar, que foi assessor político da COB nos anos

1980 e do movimento cocaleiro nos anos 1990, foi um dos que mais fez esta aproximação:

Ao finalizar o século XX, e ao morrer a mina Siglo XX, onde se escreveram as páginas mais gloriosas do proletariado mineiro da era do Estanho, onde se forjaram os líderes sindicais e políticos; os povos originários dão a volta na história e ingressam ao século XXI com novos projetos de civilização. Como foi possível este salto histórico? Depois do abandono dos mineiros da sua fonte de trabalho, uma maioria deles retornou aos seus ayllus, outros voltaram a suas terras que lhes havia dotado a reforma agrária. O proletariado havia se inserido, preferencialmente, na área rural e, em particular, no trópico de Cochabamba (Escobar, 2008, p. 141).

Contudo, mais importante que o paralelo demográfico34, Escóbar também traça um

paralelo político entre o bloco parlamentar mineiro previsto pela Tese de Pulacayo de 1946 e

o instrumento político surgido em meio aos congressos camponeses que mais tarde se

conformará como o partido Movimento ao Socialismo – Instrumento Político pela Soberania

dos Povos (MAS-IPSP). Ele relata que nos seminários de formação política feitos no Chapare

que antecederam a fundação do partido, um dos principais pontos debatidos era a importância

de votar “em nós mesmos”. Em 1985, logo após o fracasso do governo da UDP, o voto

popular se dividiu: os mineiros votaram majoritariamente no ex-ditador Banzer (ADN), os

camponeses votaram majoritariamente em Paz Estenssoro (MNR), e os setores empobrecidos

urbanos e trabalhadores fabris votaram no MIR. “Podemos afirmar, com uma posição

radicalmente autocrítica, que o neoliberalismo domina o país durante mais de 15 anos com

nosso próprio voto” (Escóbar: 2008, p. 190-191).

A ideia de fazer um instrumento político se consolidou na década de 1990 entre o

setor cocaleiro, que levou a proposta em 1995 para um congresso unificado da CSUTCB, da

Cidob, da Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia – Bartolina Sisa

(FNMCB-BS) e da Confederação Sindical de Colonos da Bolívia (CSCB). Após alguns anos

tentando se legalizar como partido, o instrumento político ganha a sigla “MAS” de uma ex-

34 A centralidade do argumento migratório pós-1985 pode ser questionada pelo fato da crise do preço do estanho praticamente ter coincidido com a crise do preço da coca, que baixou também radicalmente em 1986, tornando o Chapare uma região pouco atrativa para a migração. É possível especular que, se há um setor considerável de ex-mineiros no Chapare, muito provavelmente estas migrações ocorreram em um período anterior a 1985/86. Sobre isso fala Eduardo Córdova: “Há alguns que dizem que os 21 mil mineiros que foram despedidos foram produzir coca. Mas isso não é verdade. Alguns foram. Muitos foram e não ficaram, voltaram às cidades ou a outros lugares. Mas, dos que foram, não ficaram muitos. Em um trabalho que vi dos anos 1990, a proporção de ex-mineiros entre os camponeses cocaleiros era ao redor de 4% a 5%. Em uma federação de cocaleiros que eu estudei, era ao redor de 5%. Em um trabalho que se fez em 2002 em outra zona, era 2,5%”. Entrevista realizada em 06/11/2007.

Page 55: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

45

liderança falangista um pouco antes das eleições municipais de 199935. A partir do seu

reconhecimento legal, MAS-IPSP se tornará em menos de sete anos a força majoritária da

política boliviana, alcançando 53,74% dos votos nas eleições presidenciais de 2005.

Muito da sua ascensão meteórica deve-se ao marco institucional implementado a

partir da Lei de Participação Popular (LPP) e a Lei de Descentralização (LD), promulgadas

pelo primeiro governo Sánchez de Lozada em 1994. Como vimos anteriormente, o período da

“democracia pactuada” era marcado pela ausência de estruturas de mediação entre o Estado e

a sociedade, resultado em grande parte do enfraquecimento da COB. Com o propósito de

reestabelecer estes canais, mas buscando evitar o padrão anterior de mediação por meio das

grandes organizações sindicais nacionais (como a COB e a CSUTCB), o governo propôs uma

radical mudança no ordenamento político espacial do país.

A LD previa a municipalização de todo o território nacional ao incorporar as regiões

rurais nos municípios, além de aumentar consideravelmente a transferência de verbas para

estes. Já a LPP previa a institucionalização dos sindicatos agrários como Organizações

Territoriais de Base (OTBs), e mecanismos de controle social, como as OTBs participando do

planejamento local. Tais leis modificaram radicalmente a relação da população rural

boliviana com o Estado e a política institucional: o número de candidatos camponeses

participando das eleições se tornou muito maior, assim como a participação das comunidades

camponesas na política local.

Possivelmente, o governo de Sánchez de Lozada queria reestabelecer uma base de

apoio aos governos no campo, reeditando algo parecido com o Pacto Militar-Camponês, mas

com bases mais institucionalizadas. Contudo, as estruturas partidárias do MNR, que

possibilitaram o corporativismo das décadas anteriores, já não mais existiam como tal. Foi o

MAS-IPSP quem ocupou a posição de partido representante dos interesses camponeses e

catapultou suas lideranças cocaleiras e camponesas para dentro de prefeituras e câmaras

municipais.

Portanto, criadas no interior da “democracia pactuada”, as leis serviram para destruir

as suas bases, gestando novas formas de política institucional e afetando a representatividade

dos partidos tradicionais, cuja organização era fortemente vinculada à estrutura centralizada

nacional do país. Ao final, as leis acabaram por fortalecer o MAS-IPSP nestas experiências

35 O Movimento ao Socialismo Unzaguista (MAS-U), fundado em 1987, era presidido por David Áñez Pedraza, ex-liderança da Falange Socialista Boliviana, partido de extrema direita. Apesar de terem conseguido substituir o “Unzaguista” por “Instrumento Político pela Soberania dos Povos” (MAS-IPSP), a aceitação da sigla de um partido ligado à direita não foi fácil (Komadina et al, 2007, p. 21-22).

Page 56: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

46

de governos locais, partido que iria canalizar eleitoralmente toda a insatisfação com o período

político até então vigente.

Mas, se o fim do Pacto Militar-Camponês fez com que o campesinato recuperasse a

sua autonomia política ao ponto de criar um partido próprio, o neoliberalismo significou um

desastre do ponto de vista econômico para esta população. Ainda que no início as políticas de

estabilização de Paz Estenssoro tenham sido bem recebidas no campo, dados do Centro de

Estudios del Desarrollo Laboral y Agrario (Cedla) apontam que, entre 1985 e 1998, os

preços de produtos agropecuários andinos caíram 60% e os das terras baixas, 30%. O valor

bruto da produção camponesa também diminuiu: 49% nas terras altas e 45% nas terras baixas

(Garcia Linera et al, 2008, p. 545).

Além disso, a demanda por reforma agrária também cresceu, já que a divisão de terras

entre os camponeses foi realizada somente nas regiões altiplânicas e de vales. A imensa

região do leste boliviano, em especial o departamento de Santa Cruz, foi reservada pelo

modelo nacionalista para o desenvolvimento de uma economia agrária de exportação,

sustentada por créditos rurais e ampla doação de terras e consequente criação de latifúndios.

Entre 1953 e 1992, anos em que o decreto da reforma agrária de 1953 esteve em vigor, 97%

das terras no departamento de Santa Cruz estavam concentradas em grandes propriedades

(acima de 500 hectares) e somente 3% em pequenas e médias (Cejis/FSUTC-AT-SC, 2006, p.

49). Tal situação multiplicava os conflitos agrários no leste do país, nos quais se

contrapunham os latifúndios e a crescente demanda por delimitação de Terras Comunitárias

de Origem (TCOs) de povos indígenas e a redistribuição de terras sem função econômica e

social para comunidades camponesas. A reformulação da Lei Inra36, marco regulatório tanto

das TCOs quanto da função econômico-social da terra, foi uma pauta constante nas

mobilizações entre 2000 e 200537.

Portanto, o período neoliberal afeta o campesinato com o cerceamento dos recursos

que mantêm a atividade camponesa viável: a privatização da água, recurso escasso em boa

36 Lei Inra ou Lei SNRA, Lei 1715 de 1996, fornecia o marco legal para Serviço Nacional de Reforma Agrária e para o Instituto Nacional de Reforma Agrária. A lei estabelecia um limite de dez anos para regularizar a posse da terra na Bolívia. Ela era questionada pelos setores camponeses principalmente por não estabelecer definições rigorosas da função econômico-social da terra (o pagamento de impostos já garantia o cumprimento desta função e impedia a desapropriação, por exemplo). O processo de regularização também era muito questionado, porque grandes proprietários que possuíam condições de pagar trâmites e advogados se adiantavam na posse de territórios em disputa com comunidades camponesas e indígenas, que em teoria deveriam ser assistidas pelo Estado. Havia também muitas denúncias de corrupção de funcionários do Inra, que estariam favorecendo grandes grupos rurais em detrimento de pequenos produtores e comunidades. Ver sobre o assunto: CEJIS / FSUTC-AT-SC (2006). 37 A reformulação da Lei Inra estava na pauta durante os bloqueios setembro de 2000, de julho de 2001, de janeiro de 2003 e da Marcha pela Assembléia Constituinte de maio de 2002.

Page 57: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

47

parte do território boliviano que é tradicionalmente administrado pelas comunidades

camponesas; a ampliação do modelo latifundiário de monocultivo exportador nas terras

férteis do oriente; a falta generalizada de garantia de direitos sociais (educação e saúde) no

campo, que leva à crescente corrente migratória para as cidades; e a falta de créditos e

políticas de incentivo, o que torna a atividade camponesa inviável frente à queda de preço dos

produtos agrícolas.

Mas reduzir o tempo camponês à economia rural seria um equívoco. Como vimos, o

campesinato saiu do Pacto Militar Camponês com um ímpeto político revigorado, tentando

escapar o padrão clientelista que marcou a sua atuação histórica até aquele momento. Após a

fase katarista, mais étnica, os anos 1990 marcaram uma busca pela construção de um

instrumento político antineoliberal, que respondesse aos anseios não só da população rural

afetada pelas políticas dos governos, quanto de outros setores populares bolivianos. Assim, o

MAS-IPSP consegue congregar pautas políticas originadas de um período anterior, que eram

ligadas principalmente ao operariado mineiro, como o pedido de nacionalização dos recursos

naturais e de soberania econômica.

Sua principal liderança, Evo Morales, irá durante as “guerras” de 2000 a 2005

denunciar constantemente o caráter entreguista dos governos. Em meio à Guerra pela Coca

(2002), Morales teve seu mandato de deputado cassado e entrou em greve de fome para

denunciar as torturas e as prisões arbitrárias dos cocaleiros. Nesta ocasião, identificou um

crescimento dos movimentos “que se fortalecem frente à antipátria, frente aos que vendem o

país, cresce a consciência contra os partidos de um modelo político que agoniza”. Sobre os

deputados que votaram sua cassação, disse que competiam para “demonstrar qual era mais

anti-Evo e assim ter boa imagem frente aos EUA... se esquecem de ter uma boa imagem

frente ao povo”38.

No início deste século, o tempo do campesinato boliviano se levanta, não somente

conjugando-se com outros tempos, mas também conjugando as suas diversas pautas internas:

reforma agrária no Oriente, desenvolvimento rural, fim da erradicação forçada da coca, etc.

Sua presença em todo o território nacional – dos colonizadores de Santa Cruz aos

camponeses do altiplano – bloqueando estradas, marchando para as cidades, somado ao poder

de convocatória da sua principal organização, a CSUTCB, dotam este movimento de um

poder imenso. Como notado anteriormente, o tempo camponês se mistura a todo o momento

com o indígena, mas aqui se tentou defini-lo a partir das demandas econômicas que surgem,

38 Narconews, 31/01/2002 <http://www.narconews.com/hungerstrike1es.html>.

Page 58: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

48

majoritariamente, da reforma agrária de 1953, e a partir da sua reorganização política, que

torna o seu partido o grande representante eleitoral das mais diversas reivindicações que

surgiram no período.

O tempo indígena

Em 2000, a cidade de La Paz reviveu um antigo mito. A cidade foi cercada por

indígenas do campo e da cidade, que ameaçavam inundar parte dela, soltando diques com as

águas do degelo das montanhas. Os alimentos vinham por via aérea, todas as estradas que

ligavam a cidade ao resto país estavam completamente bloqueadas (Garcia Linera et al, 2008,

p. 123). O sítio de La Paz foi uma explosiva recriação das lutas anticoloniais de Katari, que

em 1781 cercou a cidade comandando 40 mil indígenas, ameaçou inundá-la com a liberação

dos diques e causou pavor e fome à elite colonial que habitava a cidade.

Mas a expressão da chamada “memória longa”, dos antigos e não resolvidos conflitos

coloniais, das contradições diacrônicas, não se resumiu ao cerco de La Paz. Em abril de 2000,

a Coordenadora da Água pedia que a gestão do recurso respeitasse formas comunitárias e

tradicionais, unindo movimentos urbanos, indígenas e camponeses. Em 2002, centenas de

indígenas das terras baixas e do altiplano boliviano marcharam em direção à La Paz pedindo

uma Assembleia Constituinte que pudesse refundar o país com base em marcos institucionais

mais representativos das suas formas de organização política. Todos estes movimentos

apontavam para a inadequação da estrutura política e estatal com relação à realidade dos

povos indígenas, fazendo com que a antiga dicotomia entre colonizados e colonizadores fosse

mantida até os dias atuais. Trata-se, segundo Hylton e Thompson, de uma “inabilidade da

revolução de 1952 de resolver a contradição central da formação social republicana – a

dominação cultural, política e econômica de uma maioria indígena por uma elite minoritária

mestiça e crioula”. (Hylton/Thomson, 2005, p. 44-45).

Contudo, é necessário matizar a forma de objetivação desta “memória longa”. Ainda

que as formas organizativas indígenas tenham mantido certas características próprias pré-

coloniais durante todo o período republicano, o tempo indígena foi resgatado como memória

revolucionária a partir da década de 1970, com o movimento katarista. Inicialmente

impulsionado por círculos intelectuais migrantes aimarás na cidade de La Paz, o movimento

katarista recupera a tradição indigenista boliviana e resgata especificamente a simbologia em

torno da rebelião indígena empreendida Tupac Katari. A relação deste grupo com marxismo é

complexa, já que durante o período em que a COB foi a principal expressão da esquerda

Page 59: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

49

boliviana, os setores indígenas e camponeses foram tratados como setores subordinados39.

Assim, durante as décadas posteriores a revolução de 1952, o indigenismo e o marxismo que

são encontrados juntos em Marof se separam.

Em 1973, o movimento katarista lança o Manifesto de Tiwanaku, assinado por centros

culturais urbanos e associações acadêmicas camponesas40, que reconhece os ganhos da

Revolução de 1952 para a população indígena camponesa, em especial com a reforma

agrária, mas denuncia o paternalismo do período nacionalista, herança do colonialismo e da

dominação étnica e cultural41.

Mas o katarismo não se reduziu a uma corrente intelectual. Na medida em que o Pacto

Militar-Camponês se esgotava e os massacres aos camponeses indígenas feitos pelas

ditaduras militares se multiplicavam durante a década de 1970, o katarismo ganhava

influência decisiva no sindicalismo camponês. Seu principal feito foi a fundação da CSUTCB

em 1979, que, sob a direção de Genaro Flores, se consolidava como uma entidade autônoma

camponesa massiva, selando o fim definitivo do pacto e marcando de forma mais profunda as

relações entre demandas étnicas e culturais e demandas econômicas do campesinato.

O katarismo era, portanto, uma mistura do tempo camponês com o tempo indígena,

pois, apesar de resgatar fortemente o conteúdo étnico das lutas coloniais, apostava no

sindicato agrário como “espaço potencial para a realização de uma imagem possível de

sociedade, na qual teria que se plasmar uma aspiração de convivência como ‘unidade na

diversidade’” (Rivera, 1993, p. 49). Assim, o katarismo teria na memória de 1952 também

uma forte referência, incorporando nas suas reivindicações tanto demandas por igualdade e

cidadania quanto por sua identidade étnica diferenciada. Rivera questiona a opção do

katarismo em estabelecer o sindicato como modalidade única de organização, o que o faria se

39 Em 1983, a tese política da CSUTCB, expressou claramente esta mágoa com as formulações dogmáticas da esquerda: “(...) Estamos unidos porque compartilhamos as mesmas condições de vida e trabalho. Contudo, há aqueles que nos definem como “pequeno-burgueses” porque somos donos de nossas parcelas de terras, e, portanto, estabelecem diferenças de classe entre nós: dividem-nos entre proprietários e despossuídos, entre camponeses e jornaleiros. Também há aqueles que nos definem como uma classe em processo de desaparecimento, chamada a engrossar as fileiras do proletariado. Não estamos de acordo com estas posições (...). Em consequência, nós, os camponeses, não nos consideramos uma classe marginal nem decadente, que irá desaparecer. Continuamos sendo a maioria da população do país. Nem somos pequeno-burgueses por possuir parcelas de terras, pois a terra é para nós principalmente uma condição de produção e uma herança de nossos antepassados, antes que um meio de produção” (apud Rivera, 2003, p. 197-198). 40 O Manifesto Tiwanaku é assinado por: Centro Camponês Tupac Katari, Centro Mink’a, Associação Nacional de Professores Camponeses, Associação de Estudantes Camponeses da Bolívia e Centro Cultural Puma (Rivera Cusicanqui, 2003, p. 154) 41 O manifesto se inicia com uma frase de Inca Yapanqui: “Um povo que oprime a outro não pode ser livre”. Segue: “Nós camponeses quéchuas e aimarás, assim como os de outras culturas autóctones do país, dizemos o mesmo. Sentimo-nos economicamente explorados e cultural e politicamente oprimidos. Na Bolívia não houve uma integração de culturas, mas sim uma superposição e dominação, sendo que coube a nós o estrato mais baixo e explorado desta pirâmide” (Rivera Cusicanqui, 2003, p. 154).

Page 60: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

50

afastar de outros movimentos indígenas que não possuíssem a mesma trajetória camponesa,

como os indígenas do oriente ou os indígenas do Norte de Potosí. O que tais setores

identificaram como a experiência clientelista camponesa sindical os levou a rejeitar a forma

do sindicato agrário e, portanto, a se afastar da CSUTCB (ibidem, p. 50).

Ao rearticular as demandas pelo reconhecimento da pluralidade étnica do país,

projetando um ordenamento político estatal que priorizasse o respeito pela diversidade, o

katarismo respondia ao projeto homogeneizador do nacionalismo de 1952. Em 1983, a tese

política da CSUTCB reivindicava:

(...) estamos convencidos que não aceitaremos qualquer reducionismo classista que nos converta somente em “camponeses”. Tampouco aceitamos nem aceitaremos qualquer reducionismo etnicista que converta a nossa luta a uma confrontação de “índios” contra “brancos”. Somos herdeiros de grandes civilizações. Também somos herdeiros de uma permanente luta contra qualquer forma de exploração e opressão. Queremos ser livres em uma sociedade sem exploração nem opressão organizada em um Estado plurinacional que desenvolve nossas culturas e autênticas formas de governo próprio (apud por Rivera, 2003, p. 196).

Esta foi uma das primeiras vezes que a reivindicação plurinacional apareceu no

repertório político boliviano e ela explicita uma específica visão de “bom governo” indígena,

para além de uma resposta à falência do projeto homogeneizador. Tal visão remete ao

período colonial da vigência das Leis das Índias, que se estende do século XVII até meados

do século XVIII, quando as reformas bourbônicas começaram a ser aplicadas. Este período é

marcado pela existência de um pacto colonial que permitia a existência de “duas repúblicas”

subordinadas à Coroa espanhola, uma crioula e outra indígena. Assim, era permitido à

população indígena manter suas formas de governo e autonomia política, desde que

fornecessem à Coroa mão-de-obra para as minas de prata. Rivera destaca que esta experiência

teria marcado uma “complexa visão” indígena de seu próprio território, já que este não seria

um “espaço inerte onde se traça uma linha do mapa”, mas sim uma “jurisdição” ou “âmbito

de exercício do próprio governo” (Rivera, 1993, p. 39).42

O katarismo, contudo, se enfraqueceu visivelmente na década de 1980, em conjunto

com os demais movimentos sociais populares que também estavam em crise. Após a

42 Com as reformas bourbônicas do século XVIII, contra as quais se dirigiam as revoltas indígenas de Tupac Amaru e Tupac Katari, e, sobretudo, com a modificação nas leis sobre propriedade agrária durante o período republicano (a partir de meados do século XIX), tais formas de jurisdição indígena foram quase que praticamente extintas. De maneira geral, as comunidades indígenas do altiplano foram reincorporadas às fazendas do período republicano como mão-de-obra servil, situação que duraria até a Reforma Agrária de 1953. Contudo, é importante destacar que as antigas titulações coloniais foram usadas pelas comunidades indígenas durante o período republicano para combater o avanço das fazendas crioulas (Rivera, 1993, p. 40).

Page 61: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

51

liderança katarista inicial na CSUTCB, a entidade passou a ter uma direção mais afastada das

demandas étnicas durante os anos 1990.

Porém, o marco dos 500 da conquista espanhola levou a uma nova rearticulação do

movimento indígena, com a convocatória da Assembleia das Nacionalidades em 1992. Ela é

pensada, segundo Pablo Regalsky, para responder a uma luta de recuperação das

territorialidades indígenas, para pensar sua forma de gestão, entendendo que este fórum era

que iria solucionar o “problema do poder” e a necessidade de representação destas

comunidades (Regalsky, 2007, p. 54). Mas o movimento não tem grandes consequências e a

história do movimento indígena durante o restante da década de 1990 acaba sendo marcada

por estratégias mais institucionalizadas e de pacto com a ordem neoliberal vigente, em

oposição às linhas tomadas pelos setores mais organizados do campesinato, como os

cocaleiros.

Um exemplo deste processo foi o fato de Victor Hugo Cárdenas, ex-liderança

katarista, ter sido vice-presidente no primeiro mandato de Sánchez de Lozada, de 1993 a

1997, marcado pelas privatizações de empresas estatais. Apesar da conivência com o

neoliberalismo, Cárdenas impulsionou uma reforma constitucional que reconhecia

oficialmente a multietnicidade e a pluriculturalidade do país, assim como a personalidade

jurídica das comunidades indígenas e sindicatos agrários camponeses43. Contudo, as

conquistas vindas de cima tinham um sabor amargo graças à sua combinação com o

neoliberalismo.

Os movimentos indígenas começaram a identificar, paulatinamente, que o

reordenamento institucional da década de 1990 subordinava medidas inclusivas a uma ordem

política “superior”, na qual predominavam as instituições liberais republicanas. Por exemplo,

43 As principais modificações foram realizadas no Artigo 1º, que continha a definição do Estado e tipo de governo e no Artigo 171, que antes continha o reconhecimento das organizações camponesas e passou a ser um artigo amplo sobre direitos de comunidades indígenas e camponesas. Originalmente (1967), as redações eram: “Art. 1. Forma de Estado e de Governo. Bolívia, livre, independente, soberana, constituída em República unitária, adota para seu governo a forma democrática representativa” e “ Art. 171. Organizações camponesas. O Estado reconhece e garante a existência das organizações sindicais camponesas”. Em 1994, a redação passou a ser: “Art. 1. Tipo de Estado e Forma de Governo. Bolívia, livre, independente, soberana, multiétnica e pluricultural, adota para seu governo a forma democrática representativa, fundada na união e na solidariedade de todos os bolivianos” e “Art. 171. Reconhecimento dos direitos dos povos indígenas. I. São reconhecidos, respeitados e protegidos no marco da lei os direitos sociais, econômicos e culturais dos povos indígenas que habitam o território nacional, especialmente os relativos a suas terras comunitárias de origem, garantindo o uso e o aproveitamento sustentável dos recursos naturais, a sua identidade, valores, línguas, costumes e instituições. II. O Estado reconhece a pessoa jurídica das comunidades indígenas e camponesas e das associações e sindicatos camponeses. III. As autoridades naturais das comunidades indígenas e camponesas poderão exercer funções de administração e aplicação de normas próprias como solução alternativa de conflitos, em conformidade com seus costumes e procedimentos, sempre que não seja contrárias a esta Constituição e às leis. A lei compatibilizará estas funções com as atribuições dos Poderes do Estado”.

Page 62: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

52

o sistema de justiça indígena, reconhecido pela reforma constitucional (Art. 171), tinha um

alcance limitado, pois a interpretação jurídica corrente era de que ele só deveria ser aplicado

em ocorrências sem gravidade e dentro do território indígena entendido de forma estreita,

sem respeitar formas de territorialidades mais amplas44. O reconhecimento das Terras

Comunitárias de Origem, outra conquista da década de 1990, também emperrava em trâmites

burocráticos.

O modelo econômico de intensa exploração de recursos naturais via empresas

privadas multinacionais também afetava os povos indígenas, já que boa parte das áreas de

exploração estava em seus territórios e criavam dinâmicas ambientais e sociais que os

prejudicavam. Assim, a efetivação dos territórios indígenas e a reconstituição das suas formas

de exercício de poder específicas eram extremamente limitadas e os movimentos indígenas

voltaram a se reorganizar no final da década de 1990 com base nestas pautas, questionando o

anterior acordo com o neoliberalismo.

Um dos principais setores a se reorganizar foi o altiplano paceño, que guardava ainda

uma viva memória dos tempos de articulação intensa entre pautas étnicas e camponesas

surgidas nos anos 1970 com o katarismo. Esta região, em especial a província de Omasuyus

(norte de La Paz), terá como grande liderança do período entre 2000 a 2005 Felipe Quispe,

que ocupou a secretaria geral da CSUTCB entre 1998 e 2002. Tal movimento, contudo,

resgata do katarismo uma matriz mais indigenista, que demandava a reconstituição do

Qullasuyo45 com ações políticas radicais, que muitas vezes não reconheciam o Estado

boliviano.

Foi nesta província que surgiu o “Quartel Indígena de Q’alachaka” durante os

bloqueios de setembro de 2000 e julho de 200146. Segundo Garcia Linera, o quartel era

conformado por comunidades indígenas em “estado de militarização” (Garcia Linera et al,

2008, p. 126). Durante as “guerras” neoliberais, o quartel cumpriu basicamente a função de

organizar os bloqueios na região, mas em setembro de 2003 se enfrentou diretamente com o

exército. Eugenio Rojas, liderança da região, definiu o conflito de Warisata, que causou os

44 Como no caso dos povos nômades, dos indígenas que vivem em outras localidades, mas que se reconhecem como parte de uma determinada comunidade, ou de atentados ocorridos contra indígenas fora da sua comunidade. Para mais detalhes sobre o debate em torno da justiça comunitária, ver Red Participación y Justicia (2006). 45 Qullasuyu é uma das quatro jurisdições que faziam parte do antigo território inca, o Tawantinsuyu, e que cobria uma boa parte do que é hoje o território boliviano. 46 Uma ponte de pedra, q’alachaka em aimará, era o principal ponto de bloqueio da região e ficava antes da entrada da cidade de Achacachi. Ali, em uma montanha que antecede à ponte, os bloqueadores se reuniam, delineavam táticas e se preparavam para o enfrentamento. O espaço de planejamento, de organização e de ação aos poucos foi sendo denominado Quartel Indígena de Q’alachaka.

Page 63: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

53

cinco primeiros mortos da Guerra do Gás, como um enfrentamento entre o “Exército

Indígena de Omasuyus” e o “exército liberal de Sánchez de Lozada” (Rojas, 2006, p. 63).

Simbolicamente, o quartel de Q’alachaka foi considerado um genuíno herdeiro dos exércitos

liderados por Katari no final do século XVIII e por Zárate Willka no final do século XIX.

Alguns autores irão identificar neste movimento, e em todo o setor camponês

indígena de Omasuyus, um nacionalismo indígena aimará. O bloqueio isolado que o setor

promoveu em 2001 seria o primeiro a levantar “demandas predominantemente nacional-

indígenas, como a soberania territorial, o autogoverno indígena, a substituição dos repertórios

simbólicos do Estado, que são considerados coloniais, pelos repertórios indígenas” (Garcia

Linera et al, 2008, p. 126). Tal discurso indianista radical já existia nas formulações de

Fausto Reinaga, mas é a primeira vez que ele se torna massivo.

Assim como Reinaga, as lideranças deste movimento constantemente irão fazer

referência ao conflito entre duas Bolívias, entre duas nações, como caracteriza Eugenio

Rojas: “uma Bolívia do poder econômico e do poder político e outra Bolívia que não tem o

que comer”47. Outro exemplo é a declaração que Quispe fez durante as negociações que

sucederam o bloqueio de 2001, após ser agredido por policiais. “Fui humilhado, sou o

Mallku, presidente do Qullasuyo, que veio falar com o presidente dos q’aras48, o presidente

da Bolívia”49. Mas a caracterização de Rojas também deixa transparecer que esta divisão é

igualmente socioeconômica, criando uma ideia de duas nações sobrepostas e, portanto, não

simplesmente separáveis territorialmente.

Outro setor que se reorganizou no final da década de 1990 foram os indígenas do

altiplano sul, dos departamentos de Oruro e Potosí. Eles fundaram em 1997 o Conselho

Nacional de Ayllus e Markas do Qullasuyo (Conamaq), que, diferentemente do setor paceño,

desvinculava a identidade indígena da camponesa. Outra diferença eram as formas de ação

coletiva adotadas: o Conamaq tinha como estratégia o diálogo com o Estado e realizava suas

reivindicações por meio de marchas e ações simbólicas, partindo da defesa dos direitos locais

dos ayllus; enquanto a CSUTCB de Quispe utilizava meios radicais de interpelação do Estado

e “apontavam para a tomada do poder estatal” (Garcia Linera et al, 2008, p. 337).

Efetivamente, a grande ação do Conamaq durante as “guerras” antineoliberais foi a

participação na Marcha pela Assembléia Constituinte em maio e junho de 2002, iniciada por

indígenas das terras baixas, mas incorporada pelo conselho. A Assembléia Constituinte era

47 Eugenio Rojas, entrevistas concedidas em 13/04/2008 e 20/04/2008. 48 Mallku significa condor em aimará e denomina uma importante liderança indígena. Felipe Quispe era conhecido como El Mallku. Q’ara significa estrangeiro, branco, em aimará. 49 El Deber, 28/07/2001.

Page 64: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

54

vista como uma forma de “estabelecer um novo poder originário sustentado nas

nacionalidades reconstituídas” do antigo território do Qullasuyo (Romero, 2005, p. 216).

Portanto ela tinha função estratégica no interior do projeto político deste setor, e apontava

para as antigas formas de “bom governo” indígena recuperadas pelo conceito de

“plurinacionalidade” katarista.

A marcha também reivindicava um decreto que regulamentava do direito de consulta,

previsto pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho50. Tal ponto era de

especial interesse para os ayllus do sul andino, pois muitos eram historicamente afetados pela

extração de minérios.

Por fim, os indígenas das terras baixas são o terceiro elemento a compor o que aqui

foi genericamente chamado de “tempo indígena”. Sua contribuição nas “guerras” do início do

século XXI se restringiu à organização da marcha pela constituinte em 2002. A pauta relativa

à constituinte, contudo, será incorporada nas demais reivindicações e tomará importância

central na agenda que será construída para resolver as contradições impostas pelo período.

A inserção destes indígenas no panorama político boliviano também é recente, data de

1990, quando foi organizada a primeira marcha do oriente em direção a La Paz, que pedia

reconhecimento territorial e cultural, além de denunciar os abusos de madeireiros,

latifundiários, etc., que invadiam os seus territórios, os ameaçavam e os recrutavam como

mão-de-obra escrava. As reformas constitucionais de meados desta década responderam em

parte as demandas deste setor, que era o principal interessado no estabelecimento das terras

comunitárias de origem, já que no ocidente os territórios indígenas estavam mais

consolidados.

Se comparado com o Conamaq, a demanda por assembleia constituinte para o setor

indígena do oriente era mais tática do que estratégica (Romero, 2005). Segundo Marisol

Solano, presidente de uma das principais organizações indígenas do oriente no momento da

marcha, a constituinte era relacionado com as constantes frustrações com o cumprimento da

legislação que outorgava direitos aos indígenas:

50 O direito de consulta é um dos pontos mais polêmicos da Convenção 169 da OIT, sobre povos indígenas e tribais, adotada em 27/06/1989. Seu Artigo 6º dispõe: “1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão: a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente; (...)”. De maneira geral, a convenção informa um novo ciclo de direitos indígenas e norteia reformas constitucionais que desenvolvem os conceitos de “nações multiétnicas” e “Estado pluricultural”. Tal ciclo abarcou os seguintes países: Colômbia (1991), México (1992), Paraguai (1992), Peru (1993), Bolívia (1994), Argentina (1994), Equador (1996 e 1998) e Venezuela (1999) (Yrigoyen Fajardo, 2009, p. 26).

Page 65: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

55

“Para nós, o nome [da marcha] era fundamental, porque já havíamos participado em uma lei [Lei Inra] que não foi cumprida pela sobreposição de outras leis, decretos supremos e resoluções sem a nossa consulta, por isso pedimos para refundar o país através da Assembléia Constituinte. Então, dissemos que a nova Bolívia reflita um país multiétnico e pluricultural.”51

Por outro lado, também o pedido de regulamentação do direito de consulta tinha

importância fundamental para os indígenas do Oriente, pois eles eram imensamente afetados

pela extração de derivados de petróleo ocorrida em toda a extensão das terras baixas

bolivianas. Do ponto de vista prático, o direito de consulta representa um nó entre os

interesses do Estado (entendido como povo boliviano de maneira geral ou oligarquia crioula)

e os interesses dos povos indígenas. Os conflitos relacionados a ele continuam até hoje, com

quase um ano de vigência da Nova Constituição Política do Estado.

A mobilização de três setores indígenas – o altiplano paceño, o altiplano sul e as

terras baixas – com formas de atuação e interesses claramente distintos durante as “guerras”

do início do século XXI na Bolívia indica a complexidade da chamada “memória longa”. Não

necessariamente tal memória resgata os momentos intensos de enfrentamento colonial, nos

quais se reivindicava uma autonomia indígena radical, como a revolta de Tupac Katari no

final do século XVIII. Tal memória também pode resgatar pactos com o Estado, como pacto

colonial das “duas repúblicas” que reconhecia certa autonomia indígena em troca da mão de

obra que serviria às minas de prata. De qualquer maneira, tal memória foi reconstruída como

uma resposta ao projeto homogeneizador nacionalista a partir de 1970 com o movimento

katarista. Após um relativo enfraquecimento nos anos 1980 e 1990, ela voltou com muita

força simbólica e organizativa nestes três setores analisados. As formas de expressão da

contradição diacrônica colonial são variadas e têm projetos distintos, mas todas respondam de

certa maneira ao conflito entre territorialidades indígenas e um aparato estatal externo.

O tempo urbano-popular

Cochabamba e La Paz foram os dois principais cenários das “guerras” antineoliberais.

Na primeira, ocorreu a Guerra da Água, mobilização massiva que inaugura esta nova fase dos

setores populares bolivianos e que infligiu as primeiras derrotas significativas à ordem

neoliberal. Na segunda cidade, ocorreu a principal batalha, a Guerra do Gás, que impôs um

retrocesso definitivo aos governos neoliberais, obrigando Sánchez de Lozada a renunciar.

51 Marisol Solano citada por Romero Bonifaz (2005, p. 252). A Lei Inra, aprovada em 1996, estabelecia o direito destes povos a Terras Comunitárias de Origem (TCO), mas os trâmites para titular estas terras sempre emperravam.

Page 66: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

56

Ainda que tenham tomado parte nestas mobilizações camponeses, mineiros e indígenas, elas

não teriam tido sucesso se não fosse a particular adesão massiva de setores urbano-populares,

organizados por entidades territoriais nas periferias destas grandes cidades. Trata-se de um

movimento que, ao ser formado por migrantes, em uma conjuntura histórica única, em um

território limítrofe entre campo e cidade, é herdeiro do todos os tempos bolivianos.

De certa forma, esta temporalidade engloba o que Toranzo (2009) defende por

“mestiço” quando dá exemplos de experiências de sincretismos culturais típicos do território

urbano (o indígena que compra dólares na Alasitas). Mas, a categoria “mestiço” também

implica categorizações fenotípicas e está ligada a uma experiência histórica de “concertação

cultural” (alguns diriam “aculturação”) e não de conflito. Estes setores urbanos não se

levantaram contra o governo neoliberal como “mestiços”. Alguns se diziam “classe média”,

outros “trabalhadores”, “indígenas” ou “vizinhos”. É certo que tampouco se identificavam

como “urbano-populares”. A denominação desta temporalidade é relativamente precária, mas

se explica dada a relativa novidade deste movimento e às suas múltiplas identidades.

Mas tais setores efetivamente podem ser considerados como correspondendo a um

novo ator na sociedade boliviana, que surgiu a partir de crescimento das grandes cidades

durante segunda metade do século XX. Se a Bolívia de 1950 era um país majoritariamente

rural, 66,1% da população vivia no campo, em 2001 esta proporção se inverteu, com 62,42%

da população vivendo na zona urbana. O ponto de inflexão foi justamente a década de 1980,

período de intensas modificações estruturais no país (Mesa et al, 2003, p. 850).

A migração em direção às grandes cidades não vinha somente do campo, mas também

das minas. No período entre 1976 e 2001, o número de habitantes da Bolívia passou de 4,6

milhões para 8,3 milhões. Em contrapartida, La Paz (junto com a sua cidade irmã El Alto)

passou no mesmo período de 635 mil a 1,4 milhão de habitantes; Cochabamba, de 204 mil a

752 mil; e Santa Cruz de la Sierra, exemplo mais impressionante, de 254 mil a 1,1 milhão

(ibidem, p. 847-848). Este aumento populacional se concentrou majoritariamente nas

periferias destas cidades, criando bairros ou cidades populares: El Alto, zona sul de

Cochabamba, e Plan 3000 em Santa Cruz.

Segundo Regalsky, a política neoliberal traz a “descapitalização do Estado gerada

pelas políticas de desnacionalização das minas, do petróleo e das empresas nacionalizadas em

geral, que abasteciam o orçamento nacional e empregavam a mão-de-obra na Bolívia pós-

1952” (Regalsky, 2007, p. 73). Garcia Linera, seguindo um raciocínio parecido, afirma: “há

15 anos a Bolívia está atravessando um processo crescente de desassalariamento social, na

medida em que o Estado, que era o principal empregador do país e irradiador de processos de

Page 67: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

57

industrialização e emprego estável, abandonou esta função modernizante”. Assim, a

informalidade aumentou ainda mais, crescendo de 58% a 68% neste período, e se notou uma

grande tendência de precarização dos postos de trabalho (instabilidade, contratos temporários,

subcontratação) e ao desemprego (Linera et al, 2008, p. 545). As zonas periféricas dos

grandes centros urbanos são expressões desta mão-de-obra sobrante, mergulhada na

informalidade e cuja existência foi estimulada pelas reformas estruturais.

As periferias das grandes cidades são também territórios limítrofes entre campo e

cidade. São as portas de entrada e saída, suas periferias são constituídas por propriedades

semi-rurais, com pequenas plantações de subsistência e criação de animais, em seus centros

se concentram mercados camponeses. Ali, camponeses vendem seus produtos e educam seus

filhos, estabelecendo uma dupla moradia.

Nestes locais, apareceu nas duas últimas décadas um tipo de movimento urbano

popular singular, fortemente ancorado na economia informal, na pequena indústria artesanal,

no setor de transportes e serviços e no comércio de produtos agrícolas. Contudo, tal

movimento possui relação intensa com as comunidades indígenas e camponesas, seja por sua

origem migratória, seja porque ainda mantêm atividades econômicas fora da cidade.

A relação com o campo pode ser percebida também pela sua forma de organização,

que é mais fortemente marcada pela lógica territorial, de coordenação por zonas de

vizinhança ou por áreas de comércio (mercados), do que pela lógica sindical. Assim, as juntas

vicinais, para além de organizar os moradores e as suas reivindicações, também são

instrumentos de gestão territorial. Isso torna este movimento capaz de um grande poder de

convocatória e mobilização de massas. Mesmo setores do operariado urbano mais

tradicionais, como os trabalhadores da indústria do vestuário, por exemplo, se rearticulam

para criar mecanismos de ação coletiva em conjunto com as novas organizações.

Consequência indireta das mudanças econômicas implementadas no país a partir da

década de 1980, este setor irá se levantar de forma contundente contra o próprio

neoliberalismo. Diferentemente do operariado mineiro e do campesinato, que têm na

nacionalização das minas e na reforma agrária momentos fundacionais, o setor popular

informal das periferias guarda com relação ao Estado somente um sentimento de despojo. Se

recupera as bandeiras de outros “tempos”, o faz de maneira radical, sem qualquer

reivindicação de um passado glorioso, mas sim com o objetivo de impor uma derrota a um

adversário do presente.

A luta pelo controle público e popular dos recursos naturais foi a característica mais

relevante da participação destes movimentos nas grandes mobilizações do período. Na Guerra

Page 68: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

58

da Água, a luta se traduzia na defesa dos manejos tradicionais dos recursos, que não os

tratavam como mercadorias, mas sim bens de necessidade vital e que, portanto, não poderiam

ser controlados por empresas privadas estrangeiras. Os setores populares se organizaram em

torno de consignas em defesa da vida e em repúdio a um governo abusivo, inerte às

reivindicações populares por justiça52. Tal defesa do manejo tradicional e comunitário dos

recursos naturais parece fazer coro a formas de organizações sociais indígenas, mas que é

reincorporada na área urbana com um discurso mais universalizante, como a forma de

administração de recursos democrática e coerente com as necessidades vitais locais, da

comunidade.

A Guerra do Gás, contudo, traz uma dinâmica diferente de reivindicação do controle

público dos recursos. O gás, recurso natural com significado menos vital do que a água,

representava um futuro de desenvolvimento e industrialização que era negado pelas políticas

dos governos neoliberais. Assim, a luta pela nacionalização e pela industrialização do gás se

conectava a uma reivindicação de modernização e melhoria das condições de vida da

população. Ainda que as mobilizações de outubro de 2003 tenham sido mais violentas e

radicais que as de abril de 2000, a agenda de outubro dotava implicitamente o Estado com um

papel central e reivindicava uma soberania econômica nacional mais do que local. Assim,

resgatava, nessa referência, o tempo do operariado mineiro, que se caracterizava por este tipo

de pedido de soberania.

É certo que nestas “guerras” o setor urbano-popular não foi o único ator importante.

Nossa análise parte da ideia de que elas se conformaram mais como momentos de

cruzamento de tempos sociais distintos, o que as tornou particularmente radicais. Contudo,

este setor tem dupla conformação: por um lado, possui uma acumulação própria no interior

das grandes cidades, com formas de trabalho e ocupação específicas; por outro, é marcado

por uma heterogeneidade imensa, graças à sua origem migrante, fazendo com que ele seja em

si um espaço para o cruzamento destes tempos. Assim, ele é o ator que massifica as

mobilizações no interior das grandes cidades.

Do ponto de vista organizativo, este setor aposta em formas novas de coordenar sua

política, que o diferenciam tanto de indígenas, quanto camponeses ou operários mineiros. As

52 A privatização da Semapa (empresa de abastecimento de água de Cochabamba) feita pelo governo de Bánzer no final de 1999 era particularmente desajustada à realidade do departamento, que tinha a grande maioria da sua gestão de água no campo realizada pelas comunidades camponesas e, mesmo nas cidades, 11% das casas com água potável eram abastecidas por sistemas comunitários e de bairro e não pela empresa (Garcia Linera et al, 2008, p. 626). Tais sistemas do campo e da cidade haviam sido construídos com aportes comunitários. Além disso, poucos meses após a privatização, as contas de água chegaram a subir 200%, ainda que o aumento formal tenha sido 35% (Vargas / Kruse, 2000, p. 11).

Page 69: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

59

juntas vicinais, como já comentamos, guardam relação com a organização por territorialidade

vigente no campo, mas em um contexto urbano no qual a ocupação laboral dos seus membros

é diversificada. A organização da mobilização durante as guerras priorizou, portanto, formas

de articulação territoriais e flexíveis na sua convocatória: a população em conjunto estava

convidada a participar das mobilizações que tomavam as ruas e faziam barricadas. As

mobilizações privilegiavam o controle territorial das zonas urbanas, como o centro de

Cochabamba ou El Alto, e havia um ímpeto forte para o enfrentamento com as forças

repressivas do Estado.

As assembleias locais e os cabildos (assembleias multitudinárias que reúnem todos os

setores mobilizados, como os realizados durante a Guerra da Água) eram os espaços

privilegiados de tomada de decisão. Ao comentar os acontecimentos em Cochabamba,

Gutiérrez et al enfatizam uma forma de democracia que seria inovadora e amplamente

participativa, baseada no conceito de multitud53:

Diferentemente da democracia sindical de anos atrás, que é a experiência mais próxima do exercício de democracia direta, não só é o dirigente máximo quem, com o respaldo dos trabalhadores, fala em nome de todos para tomar decisões sobre as quais, com a passagem dos dias, renderá contas em assembleias por centro de trabalho. Hoje, a multitud reunida delibera diretamente; propõe, rechaça, modifica e aprova. Os dirigentes só transmitem. Uma vez mais, o poder de decisão é reapropriado pelas estruturas sociais que, em seu ato de radical insurgência política, derrogam o hábito delegativo do poder estatal para fazer eles mesmos (Gutiérrez et al, 2007, p. 180).

A argumentação de Gutiérrez et al, contudo, esbarra em dois elementos importantes.

O primeiro é que a democracia sindical tem em sua bagagem histórica também momentos em

que as assembleias, e não as direções, são entendidas como o sujeito privilegiado da decisão

política. Os meses logo após a revolução de 1952 foram um exemplo disso. O segundo é que

Gutiérrez guarda uma visão um tanto simplista da relação entre direção e multitud, como se

as vontades coletivas surgissem e fossem respaldadas sem a mediação de figuras

reconhecidas (com a confiança política destes setores) que as sintetizassem e representassem.

É possível pensar, portanto, que, ao invés de se caracterizarem por formas

absolutamente novas de pensar a democracia e a representação, o novo setor urbano-popular

53 Influenciados por Michael Hardt e Toni Negri, Gutiérrez et al definem multitud como um conceito equivalente a “multidão”, mas que, diferentemente da muchedumbre, que também em português equivale a “multidão”, é uma “forma de interunificação prática, deliberativa e discursiva de variadas estruturas de organização local, de bairro, laboral ou amistosa em torno a objetivos comuns que afetam a todos e por meio de formas de aglutinamento flexíveis multicêntricas e semi-institucionalizadas”. Já a muchedumbre, seria “uma fusão de indivíduos a margem de qualquer filiação sanguínea, parental, laboral, com baixo nível de permanência que não seja a indignação individual amontoada” (Gutiérrez, 2007, p. 168).

Page 70: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

60

reedita memórias coletivas de enfrentamento e autodeterminação já presentes em outras

experiências históricas bolivianas. Como espécie de conjugação de tempos em si, ele carrega

consigo ímpetos comunitaristas, que fazem referência a uma soberania local, imediatamente

ligada às necessidades vitais, e ímpetos “nacionalistas”, que fazem referência a uma

soberania nacional, ligada às necessidades de modernização e melhoria das condições de

vida, com garantia de direitos sociais (educação, saúde, moradia) e desenvolvimento das suas

fontes de sobrevivência econômica (pequena indústria, comércio, infraestrutura, etc.).

***

Este capítulo é dedicado à apresentação de quatro “tempos sociais” que poderiam ser

identificados no período das “guerras” antineoliberais da Bolívia. O uso de tais

temporalidades responde a uma limitação percebida ao se conceber identidades coletivas na

Bolívia. O nacionalismo, como vimos no primeiro capítulo, depende necessariamente de

formas de identificação coletivas para existir, mas mesmo a forma aparentemente mais

“étnica” destas (o indigenismo) não se encaixa muito bem na categoria de etnicidade. Assim,

estas identidades coletivas – que levam a demandas diferentes com relação ao Estado e ao

resto da população boliviana – são mais bem compreendidas no registro das temporalidades

que acabo de apresentar.

Para cada uma destas temporalidades apresentadas, a experiência do período

neoliberal teve significados distintos. Para operários, significou a morte do pouco

“capitalismo de Estado” que havia na Bolívia, o fim simbólico da sua grande expressão

organizativa durante o século XX, a COB. Para camponeses, significou a deterioração do

preço dos seus produtos e o avanço de políticas que afetavam a economia agrária; mas,

politicamente, também significou a subordinação ao imperialismo norte-americano com

relação às políticas antidrogas. Para indígenas, deixou os seus territórios ainda mais

vulneráveis a forças externas agressivas (madeireiras, petroleiras, privatização da água,

latifundiários); mas também representou um aparato estatal externo invasivo, incapaz de

compreender e incorporar territorialidade indígena. Foi a população urbana pobre, indígena e

vinculada ao setor informal a que cresceu com a crise que afetou todas temporalidades, e que

passou a viver em cidades que não contavam com serviços públicos capazes de atender às

suas demandas mínimas vitais (educação, saúde, moradia, emprego).

Tais temporalidades demandavam tarefas políticas distintas, que podem ser resumidas

em duas posturas centrais, com tendências opostas em relação ao Estado. A primeira exige

Page 71: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

61

que o Estado cumpra determinadas tarefas para o desenvolvimento: nacionalização dos

recursos naturais, reforma agrária, saúde, educação, trabalho, crédito rural, etc. A segunda

exige que o Estado dote os cidadãos de mais autonomia política, sejam eles indígenas,

moradores de bairros periféricos ou ambos. As demandas por mais representatividade

indígena nas instituições estatais, por controle local dos recursos (água ou gás) e por

Assembleia Constituinte se encaixariam nesta última perspectiva.

Page 72: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

62

Capítulo 3 – Nação versus Estado

As temporalidades bolivianas brevemente apresentadas no último capítulo podem dar

a impressão de que o que se convencionou chamar de “sociedade boliviana” seria um

conjunto de acumulações sociais paralelas, que têm alguma relação umas com as outras e que

eventualmente se cruzam em determinados momentos históricos. Assim, este conjunto de

“tempos” sociais dificilmente poderia ser chamado de uma sociedade nacional, articulada no

território boliviano como um todo.

Ocorre que nas mobilizações, apesar de haver a expressão de todas estas

temporalidades distintas, há uma ideia unificadora de sociedade nacional, assim como há a

ideia de um adversário da nação. Neste capítulo, pretendo desenvolver a forma como estes

projetos sociais distintos formam uma certa coletividade integrada, que se manifestou com

suficiente unidade para derrubar os dois governos e impor uma agenda popular renovada para

a sociedade boliviana. Os setores sociais bolivianos se unificaram em um projeto difuso, mas

tinham um adversário bem delineado a ser enfrentado. Na busca por criar um projeto

hegemônico e coordenar um novo bloco histórico das forças de esquerda do país, eles

souberam se utilizar da contradição existente entre bloco de poder e interesses do povo,

mencionada por Stuart Hall em uma análise de um fenômeno bastante diferente (1979), o

thatcherismo, como abordaremos mais a frente.

Aqui, abordo tal contradição como um enfrentamento entre Estado neoliberal (“bloco

do poder”) e nação (“interesses do povo”). Antes de analisar os distintos projetos que entram

na arena de disputa durante o período analisado, creio ser necessário apresentar duas

perspectivas teóricas que iluminam a minha análise. A primeira são as considerações de

Antonio Gramsci sobre hegemonia, pois interpreto as irrupções de movimentos durante o

período como uma crise da “hegemonia”54 neoliberal, acompanhada pela ascensão de um

novo bloco histórico.

A segunda perspectiva é um desdobramento da primeira, pois se trata da formulação

de Zavaleta Mercado sobre a crise como um fenômeno nacionalizador. Para o sociólogo, a

crise política (a irrupção de diversas temporalidades sociais, contradições diacrônicas) é um

fenômeno que faz com que tais temporalidades se cruzem no presente (sincronicamente) e

compartilhem de experiências comuns. Tal fenômeno cria a possibilidade de construção de

54 Pode-se questionar a caracterização do tênue poder ideológico da ordem neoliberal boliviana como hegemonia. Deixo entre aspas o termo mais para caracterizar o momento da crise de hegemonia vivida no período, no sentido de crise das bases ideológicas para a legitimação do Estado boliviano e do seu sistema político.

Page 73: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

63

projetos unificados e, neste sentido, a formulação de Zavaleta, amplamente inspirada por

Gramsci, lhe é complementar, pois diz respeito às formas em que um bloco histórico pode ser

construído, às condições para sua formação especialmente dadas as características específicas

da Bolívia.

Após apresentar tais perspectivas teóricas, irei resumir brevemente os dois projetos

em disputa. Não pretendo me estender muito aqui, já que no capítulo anterior já explicitei o

conteúdo das diferentes “temporalidades sociais” bolivianas que emergem no período. As

experiências históricas relacionadas ao que desenvolvo aqui estão lá. Portanto, ao analisar o

conflito entre estes dois projetos que ao final se colocam – naquele momento, emanando ou

do Estado ou da sociedade – me centrarei nos elementos internos unificadores e na forma em

que um se define com relação ao seu opositor.

Hegemonia, bloco histórico e crise

O uso das categorias gramscianas de hegemonia, bloco histórico e crise são relevantes

neste trabalho para analisar as formas históricas de disputa de poder presentes na sociedade

boliviana, que necessariamente implicam na maneira em que projetos coletivos – como

diferentes expressões de nacionalismo, por exemplo – conseguem alcançar certo predomínio

político.

Pelo menos desde o nacionalismo revolucionário de Carlos Montenegro, que afirma

que a oligarquia “oprime” o Estado (Montenegro, 2008, p. 196), o Estado boliviano vem

sendo identificado como fraco, carente de recursos econômicos, de instituições públicas

sólidas e de legitimidade perante a sociedade. Zavaleta Mercado considerava “aparente” ou

“fantasmal” esta qualidade do Estado:

Sua mais grave distorção é sem dúvida a espacial. O espaço é um dado central do passado, mas também contém o que um país aspira ser; em si mesmo, contém o princípio da esperança. Agora bem, pelo sentido da sua concepção de território, o qual não aspirava integrar nacionalmente, mas sim organizá-lo em torno dos requerimentos da mineração (cânon perecível como seu fetiche) e desde logo em negação franca com os supostos espaciais da memória da sociedade, era sem dúvida um Estado incapaz de seu próprio objeto. Por outro lado, no que concerne à sua concepção do âmbito humano de validez que era na sua origem oligárquica, isso significa excludente, baseada na lógica da separação entre cidadãos e pongos [servos indígenas] ou interditos, era, portanto, um Estado que se destinava a si mesmo a uma existência aparente ou fantasmal (Zavaleta, 2008, p. 155).

Ao afirmar que o Estado era “incapaz de seu próprio objeto”, Zavaleta pinta uma

imagem de um Estado boliviano tão profundamente subordinado aos interesses corporativos

Page 74: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

64

da sua oligarquia que chegava ao ponto de quase anular racionalmente a sua existência. Se

olharmos esta situação de forma invertida, da oligarquia para o Estado – em termos

marxistas, da classe dominante para o aparato de dominação – veremos, portanto, a

dificuldade desta classe de governar com base em requisitos mínimos de universalidade

exigidos ideologicamente pelo Estado nacional. Ou seja, em termos gramscianos, esta é uma

classe sem capacidade hegemônica.

Um dos significados de hegemonia, para Gramsci, é aquele em que uma classe

percebe que seus interesses, se entendidos de forma não imediata, extrapolam o meramente

corporativo e, desta forma, grupos subordinados podem percebê-los como sendo próprios.

Assim, as questões – agora já no âmbito político, e não corporativo – são colocadas em um

“plano ‘universal’”. Este movimento não significa que o Estado deixa de ser um “organismo

próprio de um grupo”, mas o seu desenvolvimento é apresentado como uma “força motriz de

uma expansão universal”, como um “desenvolvimento de todas as energias ‘nacionais’”

(Gramsci, 1968, p. 50). A “universalidade” citada por Gramsci não se refere a um projeto

genuinamente universal (no sentido de que os interesses do grupo dominante se anulariam

frente aos interesses gerais, universais), mas sim a um projeto que se traveste de

universalidade, ganha linguagem universal, avança em subjetividade e, por isso, implica em

ceder parcialmente aos interesses dos outros grupos.

É desta capacidade, de se trasvestir de universalidade para criar um poder político que

não só se sustenta pela coerção, que carecem historicamente as classes dominantes

bolivianas. Isso não significa que elas não tenham tentado formular, ao menos

discursivamente, visões de coletividade que superavam uma mera visão econômico-

corporativa. Mas não basta formular uma ideia particular travestida de universalidade, é

necessário também que esta ideia seja “digerível” pelos grupos subordinados para que a

hegemonia exista.

Neste sentido, entra o debate em torno do que seria um nacionalismo boliviano, as

ideias em torno do ser coletivo nacional. A diferenciação já notada anteriormente por Smith

com relação ao “estatismo imposto de cima” e o “nacionalismo” (que apresenta uma

reconstrução de um passado mítico, de um sujeito coletivo étnico - Smith, 1986, p. 214) é

importante também, porque diz respeito à capacidade de se criar representações unificadoras

do sujeito nacional, que servem para respaldar e dotar de legitimidade o Estado. O projeto

social-darwinista do início do século XX – representado pela obra de Alcides Arguedas na

Bolívia – não era restrito à lógica econômico-corporativa da classe dominante e se mostrava

uma tendência intelectual bastante difundida e em voga no resto do mundo. Aplicado à

Page 75: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

65

Bolívia, contudo, ele chegava a conclusões catastróficas que não podiam ser “metabolizadas

como próprias” (Zavaleta, 2008, p. 149) por uma sociedade civil composta por uma maioria

indígena esmagadora. Esta postura impossibilitava qualquer sentimento de solidariedade, ou

de simpatia intersubjetiva, que inviabilizava tanto uma hegemonia (entendida como soma de

coerção e consentimento) mais longa e efetiva do grupo dominante quanto a criação de

qualquer tipo de projeto nacional (ibidem, p.149-157).

Na obra do próprio Gramsci, a análise do Risorgimento traz um panorama geral sobre

o que o autor concebe como caminhos para se estabelecer uma direção intelectual e moral,

formar um bloco histórico e, a partir daí, criar uma hegemonia. Gramsci analisa a falência do

Partido da Ação (PA), grupo mais progressista dentre aqueles que lutavam pela unificação

italiana, em alcançar cada um destes objetivos. Uma das tarefas primordiais deste grupo seria

a de conquistar para a sua luta política o campesinato, que era “quase todo povo de então”

(Gramsci, 2002 – v.5, p. 39). Assim, do ponto de vista econômico, o PA teria que promover a

reforma agrária, uma “exigência fortemente sentida” (ibidem, p. 39), e do ponto de vista

cultural, teria que superar a “tradição retórica da literatura italiana”, que só atingia um extrato

limitado da população e era “maculada pelo cosmopolitismo vaticano”. O PA não se

preocupou com nenhum destes pontos, não conseguindo se consolidar como um bloco

histórico, capaz de promover uma reforma intelectual e moral ao livrar o campesinato da sua

lógica tradicional econômico-corporativa. Tal tarefa teria sido realizada, por exemplo, pelos

jacobinos na Revolução Francesa.

É importante aqui definir brevemente o que Gramsci entende por bloco histórico. Ele

tem a função histórica específica de unir as esferas da estrutura e da superestrutura, da

natureza e do espírito (Gramsci, 1968, p. 12). Ao criticar o “economismo”, que acreditaria

que os fenômenos estruturais iriam automaticamente se refletir na superestrutura, Gramsci

atenta que tais fenômenos podem aparecer tardiamente ou mesmo não aparecer nas

manifestações ideológicas, em razão da resistência dos elementos ideológicos tradicionais.

Assim, seria necessária a formação de um bloco histórico consciente, que entenda a

contradição entre as posições ideológicas da massa e a sua situação econômica e se disponha

a superá-la. Neste sentido, ele seria o elemento ativo que unifica ambas as esferas. Por outro

lado, a concepção de bloco histórico implica em uma unificação de elementos progressistas

contra o poder tradicional. Tal unificação é feita com base em um projeto comum, um

compromisso, entre estas forças, já que não faria sentido a unificação destas forças com base

na coerção (ibidem, p. 40). Elas formariam assim um necessário “bloco histórico econômico-

político novo, homogêneo, sem contradições internas” (ibidem, p. 40). Assim, o PA teria

Page 76: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

66

falhado em entender tanto a realidade econômica específica do campesinato italiano, que

exigia uma reforma agrária, quanto a urgência em se superar, na esfera da cultura, os vícios

tradicionais do cosmopolitismo italiano. Nunca esteve tão longe, portanto, de se conformar

como um bloco histórico consciente.

Contudo, se é verdade a premissa defendida por Walter L. Adamson de que a

hegemonia sempre cresce de um bloco histórico (1980, p. 177) e se a hegemonia é uma

categoria que pode ser pensada tanto para a supremacia de forças conservadoras quanto para

a de forças progressistas, é possível também pensar a existência de blocos históricos que não

tenham a função emancipadora apontada acima. Tais blocos históricos, contudo, se ateriam

minimamente às questões apontadas por Gramsci na conceitualização da hegemonia: para

atrair outros grupos sociais, seria necessário prescindir dos seus interesses econômico-

corporativos imediatos e criar “um equilíbrio de compromisso” com os grupos subordinados

(Gramsci, 1968, p. 33).

Retomando a análise do caso boliviano, a ausência de uma ordem hegemônica

burguesa vem logicamente acompanhada da dificuldade das classes dominantes em criar

blocos históricos estáveis. Esta situação, somada ao que Zavaleta Mercado chama de “insólita

capacidade” da classe dominante de se ratificar como tal em diversas fases da história

boliviana, leva a uma constante de crises orgânicas, chamadas por Gramsci também de

“crises de hegemonia” ou “crises do Estado em seu conjunto” (Gramsci, 1968, p. 54-55). Ou

seja, a relativa fraqueza da classe dominante boliviana não determinou, até o presente, uma

derrota definitiva desta, mas sim um caminho institucional estatal cheio de percalços e crises

dramáticas.

Não é casual que a tradição política boliviana não mencione o Estado boliviano, mas

sim o “Estado republicano”, o “Superestado mineiro”, o “Estado de 1952”, o “Estado

neoliberal”, o “Estado plurinacional”. O “Estado” nunca apareceu para esta tradição como um

ente desprovido das características do grupo que o dominava, como uma estrutura burocrática

impessoal, separado da sociedade civil. Assim, cada mudança significativa de bloco de poder

implicou em uma crise política, em uma explosão das contradições diacrônicas da formação

econômico-social boliviana, implicou em um novo momento constitutivo. O Estado de 1952

é inaugurado pela Revolução Nacional, o neoliberalismo é inaugurado pelo Decreto 21060

que marca dramaticamente os setores populares bolivianos – marca também, como defende

Garcia Linera (2000) a mudança da condição operária no país –, o “Estado plurinacional” é

precedido pela onda de revoltas antineoliberais que acabamos de analisar. Tal sequência

dramática de “Estados bolivianos” marca historicamente, em outras palavras, a incapacidade

Page 77: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

67

tanto das classes dominantes quanto das classes populares (como em 1952), de se fazerem

hegemônicas.

A crise como fenômeno unificador

Frente às contínuas “crises de Estado” vividas pela sociedade boliviana graças à

ausência de capacidade hegemônica das suas classes, é possível especular se esta situação não

seria decorrente da fragmentação desta sociedade. Se, por um lado, a luta política boliviana

está marcada pela contestação dramática da autoridade, seus atores políticos são, por outro

lado, sujeitos coletivos muito diversos, que refletem diferentes problemáticas constitutivas

(como a indígena, a operária, a camponesa, etc.). Na análise das temporalidades sociais no

capítulo anterior, é perceptível a ausência de um sujeito coletivo nacional bem delineado.

Estaria a sociedade boliviana condenada à incapacidade de construir projetos

nacionais, blocos históricos e ideias “universalizáveis” de potencial hegemônico? A

experiência histórica parece nos mostrar que não. Os setores sociais que promoveram a

Revolução de 1952 podem ser considerados um bloco histórico no sentido gramsciano,

mesmo sabendo que a revolução foi incapaz de estabelecer uma ordem hegemônica durável.

Eles manejaram ideias universalizantes (nacionalização das minas, reforma agrária), reuniram

os principais setores populares em suas fileiras (operários, camponeses, classe média

empobrecida) e se mostraram como uma “nova direção moral e intelectual” da sociedade,

ainda que durante um período de tempo curto. Mesmo termos como “campesinato” e

“mestiçagem”, defendidos e promovidos por esta revolução e que foram mais tarde

rechaçados pelo movimento indígena, atingiram certo grau de hegemonia na sociedade

boliviana em seu momento.

Apesar de toda a fragmentação, projetos coletivos bolivianos foram tecidos durante

todo o século XX e se estenderam nas manifestações antineoliberais do século XXI também.

Durante estas “guerras”, foram criadas plataformas comuns de ação entre sujeitos variados,

eles se organizaram diversas vezes em frentes de luta e formularam a chamada “agenda de

outubro”, que reunia suas principais reivindicações.

Como é possível entender teoricamente a construção desta plataforma, a partir de

temporalidades tão distintas? Como é possível, frente a tal panorama, que projetos nacionais

sejam forjados? Creio que a formulação de Zavaleta Mercado sobre a crise como fenômeno

catalisador de unificação política pode ajudar a responder a esta pergunta.

Page 78: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

68

O sociólogo boliviano investe na ideia de formação econômico-social para explicar a

característica abigarrada desta sociedade. As “densidades temporais” fariam referência a

formas econômicas distintas, que se sobreporiam de maneira “não muito combinada”, e a

regiões geográficas diferentes, criando uma ideia de país centrífugo e sem pontos de

unificação. Até aqui, Zavaleta não se diferencia muito dos autores apresentados

anteriormente, sua percepção de “temporalidades distintas” é parecida com a das contradições

diacrônicas de Ernst Bloch recuperadas por Silvia Rivera, que apresentamos no capítulo

anterior.

Contudo, o sociólogo enfatiza que os momentos de crise seriam “nacionalizadores”,

nos quais “um único tempo comum” tem capacidade de alterar estas formas (Zavaleta

Mercado, 2009, p. 214-216). A crise, que seria intrinsecamente política, teria um caráter

unificador porque marca uma vivência comum entre todas estas temporalidades. Ele utiliza o

princípio de intersubjetividade de Jürgen Habermas para explicar o fenômeno:

Os tempos diversos se alteram com a (...) irrupção [da crise]. Tu pertences a um modo de produção e eu a outro, mas nem tu nem eu somos os mesmos depois da batalha de Nanawa; Nanawa55 é o que há de comum entre tu e eu. Tal é o princípio da intersubjetividade (Zavaleta Mercado, 2009, p. 216).

A visão de Zavaleta sobre a função nacionalizadora da crise se diferencia da

perspectiva de Rivera, porque esta identifica no espaço nacional mais um instrumento de

opressão utilizado no embate entre invasores e invadidos. Rivera não apresenta perspectivas

de unificação, já que esta estaria necessariamente identificada com um Estado nacional

homogeneizador mestiço e crioulo. O embate entre colonizadores e colonizados, enquanto

ainda vigente, impediria a conformação de qualquer tipo de totalidade nacional.

É importante, contudo, matizar a ideia de “função nacionalizadora” de Zavaleta

Mercado. A nação emerge como arena política necessária, no sentido em que explica as

acumulações históricas de uma sociedade que se não fossem por estes momentos de crise não

poderia ser caracterizada como tal. Zavaleta denomina esta unificação como uma “unidade

patética do diverso” (ibidem, p. 216). As crises políticas são momentos fundacionais, e as

estruturas populares de rebelião que emergem a partir destas não se referenciam em formas

de pertencimento ao Estado. Aqui é importante retomar o conceito de Zavaleta sobre a

democracia como autodeterminação das massas. “Massa” aqui é entendida de maneira

particular:

55 Nanawa foi uma das mais importantes batalhas da Guerra do Chaco (1932-1935).

Page 79: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

69

A denominação de massa se dirige de fato à qualidade de massa (à maneira do que Marx dizia da ‘força de massa’ como força produtiva) e não a uma mera agregação. Portanto, por massa se terá uma espécie de polarização. A massa é a sociedade civil em ação, ou seja, um estado patético, sentimental e épico da unificação. Mas, que parte da sociedade? Um marxista dirá imediatamente que tem suas razões para escolher a autodeterminação do proletariado no seio da autodeterminação da massa. Isso vale, contudo, para certas sociedades, já proletárias, e para certos proletariados. O que interessa é que inclusive um número não muito grande de homens, com sentido da concentração e algum grau temeridade tática, pode expressar tendências que estão escondidas no “sono” da sua sociedade. (...) Este é o verdadeiro pathos da história, e sem dúvida não é algo que esteja vinculado de maneira exclusiva ao capitalismo. A autodeterminação da massa, para dizer-lo de maneira mais enfática, é o único fator que pode selar a definição do momento de fluidez da superestrutura (Zavaleta, 2009, p. 138-139. Destaques nossos).

O ato da autodeterminação das massas não pode ser, contudo, um “ato legal”. É

necessariamente um “ato revolucionário”, localizado na esfera da tática. Mesmo que “seu

pronunciamento” esteja “composto por atos conscientes”, a autodeterminação sempre contará

com um grau importante de “espontaneidade e criatividade de massa” (ibidem, p. 139).

Portanto, tal unificação referenciada no espaço nacional não possui como função a

legitimação do Estado.

É possível perceber as proximidades e as diferenças entre o conceito zavaletiano de

“autodeterminação das massas” com o conceito gramsciano de “bloco histórico”. Ambos

emergem da sociedade civil, ambos têm papel estratégico na luta superestrutural, ambos

contam com um grupo de “intelectuais” que ativamente promovem a consciência de classe.

Contudo, a formulação de Zavaleta, ao enfatizar a importância que a espontaneidade e a

criatividade têm neste momento, reflete preocupações diferentes das de Gramsci. É possível

pensar que isso se deve em parte à realidade das rebeliões populares bolivianas, espontâneas,

criativas, mas que não faziam parte de uma ação dirigida e coordenada por um partido

político revolucionário.

Mas Zavaleta reconhece que o momento de autodeterminação das massas não é em si

um momento progressivo, já que a sociedade civil participa dele “com tudo o que é”,

inclusive com suas “tradições não-democráticas”, com seus “prejuízos” irracionais. A forma

de exploração deste momento, que Zavaleta também chama de momento constitutivo, está na

esfera da luta política (ibidem, p. 142-143).

A partir das formulações de Zavaleta, é possível pensar a crise de hegemonia ocorrida

entre 2000 e 2005 como um momento constitutivo nacional, de autodeterminação das massas.

São estes momentos que permitem a emergência de novos “blocos históricos”, ainda que

Page 80: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

70

dotados de mais espontaneidade que a conceitualização gramsciana. As diversas expressões

da sociedade boliviana se cruzam em uma unidade patética, épica e sentimental. Não se trata

somente da criação de plataformas unificadas com reivindicações específicas dos grupos, mas

sim de uma vivência conjunta de experiências e traumas ocorridos durante as manifestações.

A não venda do gás por portos chilenos, a saída soberana ao Oceano Pacífico, a

nacionalização das minas, a defesa dos hidrocarbonetos, a reforma agrária, a autonomia

jurisdicional indígena: todas estas não eram somente questões econômicas, de interesse

específico de cada um dos setores sociais envolvidos. Eram pautas e temas que tinham

significado dramático, faziam referência a histórias vividas e compartilhadas em conjunto

durante momentos de crises políticas e orgânicas anteriores.

O neoliberalismo, em especial, aparece como um adversário comum a todos estes

setores não somente porque os prejudica igualmente no âmbito econômico, mas também

porque de certa maneira reencarna adversários antigos.

Até o momento, contudo, ignoramos como se articulou a outra parte da sociedade

boliviana, aquela que durante a crise se expressou por meio do Estado. O setor que era

identificado como neoliberal também desenvolveu um projeto próprio de nação, com o qual

se muniu para disputar sua legitimidade política perante a sociedade em convulsão. Vejamos

a seguir, mais detalhadamente, como os dois projetos se enfrentaram.

Projetos em disputa

Em um artigo publicado em 1979, Stuart Hall analisa as especificidades da recente

ascensão do “thatcherismo”, ideologia neoliberal inglesa que recém havia conquistado uma

hegemonia política no país. Hall argumenta que o fenômeno da “guinada à direita” estava

sendo tratado com simplificações: para muitos setores da esquerda, ele seria somente uma

expressão atenuada do fascismo ou um mero reflexo da crise econômica. Para Hall, tais

reduções não ajudavam a caracterizá-lo nas suas especificidades, dotando a esquerda também

de poucos elementos para combatê-lo (Hall, 1979, p. 14).

O teórico identifica nas contradições do próprio trabalhismo inglês fatores centrais

que permitiram a ascensão da hegemonia neoliberal. A socialdemocracia exercia a direção do

chamado “Estado de Bem-Estar Social” e, ao assumir o poder, mudou radicalmente a forma

de entender a sua relação de representação com a classe trabalhadora. Tal representação, que

era de baixo para cima, classe-para-partido, passou a ser de cima para baixo, governo-para-

Page 81: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

71

povo. A retórica dos “interesses nacionais” seria um símbolo desta mudança (ibidem, p. 16-

17).

Como oposição, o thatcherismo conseguiu investir nesta contradição entre bloco de

poder e interesses populares. Potencializou a insatisfação sentida pela população com um

aparato estatal que era cada vez menos visto como um promotor de bem-estar, e cada vez

mais visto como uma grande imposição burocrática, aliada do capital monopolista (ibidem, p.

18). Seu “populismo” era baseado nestas experiências reais, mas também foi capaz de criar

um “demônio-popular” que popularizou os princípios da filosofia monetarista: o “rapinador”

do Estado de Bem-Estar (welfare “scavenger”) (ibidem, p. 17).

Um dos autores que desenvolve a ideia da contradição entre o bloco do poder e o

“povo” é Ernesto Laclau, em uma análise sobre a ascensão do fascismo. Neste momento

histórico, as forças socialistas teriam falhado em identificar a crise do bloco de poder e teriam

também falhado em entender e compor a forma de “ruptura” desta contradição: o

jacobinismo, uma “interpelação popular-democrática” na qual o povo “já não se apresenta

(...) com demandas isoladas, nem como alternativa organizada dentro do sistema, mas como

uma alternativa política ao próprio sistema”. Tal contradição teria sido aproveitada pelo

fascismo (Laclau, 1978, p. 121).

De certa maneira, o recente processo político boliviano se apresenta como um

fenômeno parecido, mas com os sinais trocados. Ali, foi a direita que abriu os caminhos que

possibilitaram o surgimento de um novo bloco histórico popular, explicitando contradições e

permitindo a recuperação de antigos traumas bolivianos.

É verdade que investir na contradição entre bloco do poder e povo é tarefa de

qualquer oposição política, e é tarefa de qualquer governo não deixar que esta contradição

chegue às suas últimas consequências. Laclau cita como a principal forma de impedir que

esta contradição se amplie o chamado transformismo, cuja expressão mais corriqueira seria o

clientelismo, fenômeno no qual “os elementos popular-democráticos” estariam presentes,

mas suas demandas apareceriam apenas de forma “individualizada” (ibidem, p. 121). É

importante, portanto, analisar brevemente quais foram as estratégias de manutenção do então

bloco de poder boliviano durante o período das revoltas anti-neoliberais. Tal bloco atuou

principalmente por meio das estruturas estatais, recorrendo a poucas, mas significativas,

vozes da sociedade civil (como o Comitê Cívico Pró-Santa Cruz, mais adiante falaremos

sobre ele). Para os representantes do Estado, o adversário que estavam enfrentando era uma

espécie de mistura entre “narco-cocaleiros” e “sindicalistas violentos”, representantes de um

setor minoritário da população. No contexto da Guerra do Gás, Gonzalo Sánchez de Lozada

Page 82: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

72

denunciava que os grupos mobilizados tinham como objetivo estabelecer uma “ditadura

narco-sindicalista”, que ameaçavam a estabilidade democrática e a “unidade nacional”56. Essa

perspectiva é uma expressão máxima da postura de todos os governos que enfrentaram as

mobilizações do período, de Hugo Bánzer a Carlos Mesa.

A ideia do sindicalismo violento que causa a divisão do país é um elemento central

desta fórmula. A “divisão” do país é tratada de maneira difusa pelos porta-vozes

governamentais: não se sabe se fazem referência a uma divisão étnica - querendo combater

com isso uma linha mais indigenista, que deixaria o governo isolado como uma elite étnica e

culturalmente distinta da população – ou se fazem referência a uma divisão de classe –

opondo-se a uma linha mais sindical urbana e camponesa, que isolaria o governo como uma

elite econômica. O mais provável é que a “divisão” pensada por estes governos era uma

espécie de guarda-chuva no qual caberiam as expressões que deslegitimavam a elite política,

que não a viam como representativa.

Contudo, ao condenar o “sindicalismo”, a elite neoliberal parecia esquecer que uma

grande maioria da sociedade boliviana se organiza por meio de estruturas de organização

política que podem ter caráter territorial ou mais puramente sindical. Tal “sindicalismo” tem

um potencial de convocatória que atinge a maior parte da população rural e parte

considerável da urbana - aquela organizada em zonas periféricas como El Alto, em sindicatos

fortes tradicionais como o de professores, mineiros, trabalhadores da indústria têxtil,

transportistas, ou em setores sociais particularmente engajados, como estudantes

universitários e secundaristas.

De maneira geral, o projeto defendido por esta elite reivindicava um ideal de nação

moderna que contivesse como padrão uma relação do cidadão com o Estado, que não fosse

ameaçada por subgrupos que questionassem a ideia homogeneidade subentendida. Mas este

ideal era impossível de ser realizado na Bolívia, principalmente porque a contraparte da

homogeneização cultural, a garantia de inclusão na comunidade nacional a partir do

compartilhamento de direitos em situação de igualdade, existia de forma muito parcial. Os

direitos que o Estado oferecia, mesmo após 1952, eram todos mediados por estruturas

corporativas e clientelistas, muito distantes de um ideal inclusivo universalista. O Estado

boliviano não deixou de ser “aparente” em nenhum momento e esta característica se tornou

mais acentuada nos anos neoliberais, nos quais o pouco de “capitalismo de estado” que

56 El País, 17 de outubro de 2003.

Page 83: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

73

existia (como as empresas estatais, que empregavam parte considerável dos trabalhadores

bolivianos) foi liquidado.

No questionamento a este sindicalismo ficava implícita também uma noção específica

de democracia, cuja essência seria o “respeito ao veredicto das urnas para a eleição dos

governantes”, como define Sánchez de Lozada em sua carta de renúncia. A ação política

legítima da sociedade dentro desta ordem democrática, portanto, seria quase que restrita ao

voto. Portanto, não caberia à população pedir modificações na política econômica (decisões

técnicas de governo) e muito menos a renúncia do presidente57. Nesta lógica, tais

reivindicações só poderiam representar tentativas de “golpe de Estado” por parte de

lideranças violentas e antidemocráticas58.

Mas tal bloco do poder não esteve sempre completamente isolado na sociedade civil.

Como vimos, por meio da “democracia pactuada”, este bloco conseguiu governar o país

durante duas décadas. Efetivamente, paralelamente às medidas impopulares neoliberais,

houve políticas que garantiam certa presença popular no governo, ainda que de forma

subordinada. O governo neoliberal que mais atuou no sentido de diluir a contradição bloco do

poder / povo foi o de Sánchez de Lozada em seu primeiro mandato (1993-1997). Tendo como

vice-presidente o katarista Victor Hugo Cárdenas, Sánchez de Lozada empreendeu a reforma

constitucional de 1994, que, como vimos, reconheceu o caráter multiétnico boliviano e

algumas instituições indígenas de autogoverno. Além disso, a Lei Inra de 1996 reconheceu as

Terras Comunitárias de Origem (TCOs), e sua reforma educacional promoveu a educação

bilíngue no país. Do ponto de vista institucional, a LPP e a LD promoveram uma

descentralização do Estado com maior financiamento e autonomia dos municípios,

fortalecendo expressões políticas locais e camponesas. Inclusive a impopular medida de

privatização das empresas estatais, promovida por este mandato e chamada de

“capitalização”, foi acompanhada por uma bonificação anual a maiores de 65 anos de U$

250, financiada pelas verbas arrecadadas pela própria privatização. O Bono Sol (Bono

Solidariedad) foi uma das medidas mais populares de Sánchez de Losada, pois até o

57 Outro trecho da carta de renúncia de Sánchez de Lozada: “Apresento a minha renúncia para a consideração do honorável Congresso Nacional com a íntima convicção de que ela não tem mais sentido, porque não se pode retirar um presidente eleito democraticamente por mecanismos de pressão e violência que estão à margem da lei e este é um precedente funesto para a democracia boliviana e continental”. 58 “Não se preocupam com o gás, nem por onde vai sair. Usam-no. Grande parte do país, especialmente a parte mais beneficiada pelos hidrocarbonetos, não quer saber esta gente, que quer chegar ao poder forçando um golpe de Estado”, disse Sánchez de Lozada em uma entrevista publicada no mesmo dia da sua renúncia. El País, 17/10/2003.

Page 84: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

74

momento a Bolívia não contava com nenhum tipo de aposentadoria a idosos que não tinham

trabalhado no mercado formal, camponeses, donas de casa etc.

Já nas eleições de 2002, Sánchez de Lozada alcançou uma mísera maioria de 22,5%

(frente aos 20,9% de Evo Morales, MAS-IPSP, e os 20,8% de Manfred Reyes Villa, Nueva

Fuerza Republicana). Seu lema foi o combate à crise econômica e a promessa de criação de

novos empregos, propagando um discurso de medo contra os outros candidatos novatos e

afirmando que as coisas “sim podem ficar piores”. “Não é o momento de mudanças radicais,

nem de experimentos irresponsáveis” dizia uma das suas propagandas eleitorais59. Eleito com

tão pouco apoio e com base em propaganda negativa direcionada aos outros candidatos, seu

governo não contou com nenhuma trégua por parte dos setores sociais, que desde a Guerra da

Água vinham se mobilizando de forma cada vez mais contundente.

Durante os conflitos de 2000 a 2005, o único movimento de viés popular que parecia

apoiar o bloco do poder eram os movimentos cívicos autonomistas, em particular o do

departamento de Santa Cruz. O principal porta-voz deste movimento era o Comitê Cívico

Pró-Santa Cruz, fortemente ancorado no setor empresarial, tanto da agropecuária quanto da

indústria. No dia 1º outubro de 2003, enquanto as manifestações populares contra o governo

de Sánchez de Lozada se intensificavam, questionando o projeto de exportação do gás via

portos chilenos, o Comitê Cívico Pró-Santa Cruz lançou um “manifesto” pedindo a

refundação do país a partir das autonomias regionais.

Para além deste ponto central, o documento propunha uma vida nacional baseada em

“consensos”, uma economia mista (“não dogmática, na qual coexista a empresa pública,

privada, social e mista”) e respeito à “segurança jurídica”. Reiterando seu orgulho por ser

uma “nação mestiça”, o manifesto se colocava contra a corrupção, o “neocolonialismo”, a

“delinquência” e o “narcotráfico e a coca”60. Como veremos a seguir, aqui já estava delineada

59 O documentário Crise é o nosso negócio (2005), de Rachel Boynton, ilustra muito bem a campanha eleitoral de Sánchez de Lozada, que foi assessorada por uma equipe de marqueteiros americanos. O documentário tem como “problemática de fundo” as falhas na “importação” da lógica da democracia americana. Ele foi lançado em 2007 em DVD no Brasil, na Coleção Vídeo Filmes. 60 O documento era composto por 14 pontos: “1. Acreditamos no sistema democrático em que se buscam os consensos necessários para guiar a vida da República; 2. Acreditamos nas autonomias regionais para forjar nossos próprios destinos, que é a base fundamental de um Estado moderno; 3. Acreditamos na economia não dogmática, na qual coexista a empresa pública, privada, social e mista; 4. Acreditamos nos valores da liberdade, igualdade e fraternidade como base da felicidade que é a função de todo Estado; 5. Acreditamos no respeito aos direitos humanos, na vigência plena de um Estado de direito e da segurança jurídica, como única forma de convivência civilizada; 6. Declaramos a saúde e a educação como os pilares primordiais nos quais se funda o progresso da República; 7. Respeitamos os recursos naturais, o meio ambiente e o seu uso sustentável; 8. Acreditamos na sociedade baseada no trabalho. Estamos convencidos de que a produção agropecuária e florestal tem que ser a base de nosso sistema produtivo; 9. Acreditamos em uma relação digna, baseada na justiça e no respeito a nossa soberania. Não ao neocolonialismo; 10. Acreditamos na ética e na moral como valores supremos da sociedade; 11. Acreditamos a luta contra a corrupção deve ser uma política de Estado; 12.

Page 85: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

75

uma plataforma geral da oposição de Evo Morales, durante o governo que se iniciaria em

2005.

Apesar de demonstrar que na disputa entre manifestantes e governo estava do lado de

Sánchez de Lozada – rechaço à coca (como sinônimo de cocaína), insistência na construção

de um “consenso” nacional pacífico (resposta às manifestações de rua que pipocavam no

país) – o Comitê Cívico também já apontava algumas diferenças com o núcleo central do

poder. As principais delas são as autonomias departamentais, que foram rechaçadas

publicamente por Sánchez de Lozada alguns dias depois61, e um apelo regionalista que aponta

a uma nação “mestiça” (em contraposição às reivindicações indígenas de plurinacionalidade

que já começavam a aparecer). A estratégia do Comitê Cívico de Santa Cruz era se

solidarizar com os outros departamentos orientais (Beni, Pando e Tarija), “em defesa da

exportação do gás e dos royalties dos hidrocarbonetos”62. Soma-se a esta agenda econômica

regional uma agenda cultural regional, que defende o “homem” do Oriente boliviano. Uma

ideia mítica do camba63 mestiço, moderno, aberto e pacífico se contrapunha a uma ideia de

um colla64 fechado, revoltado, anacrônico. Rubén Costas afirmava uma missão quase

civilizatória do oriente boliviano: “Creio que chegou o momento de orientalizar o país e isso

eu digo com muita humildade. Os bolivianos esperam que Santa Cruz cumpra este papel” 65.

A manifestação pública do setor empresarial cívico cruceño seria mais um indício da

fragilidade e do isolamento do governo. Esta posição fica razoavelmente clara em 2003, em

meio a crise de outubro, quando Costas diz que as ações do Comitê Cívico responderiam a

“uma falta de autoridade, de coerência e um excesso de manuseio político para resolver os

problemas do país”66. A demarcação territorial da meia-lua também expressava uma

preocupação econômica clara, a continuação do modelo de exportação do gás (questionado

pelas manifestações populares), que já não podia mais ser defendido com efetividade pelo

governo central.

Durante o governo de Carlos Mesa, o Comitê Cívico conseguiu emplacar a

reivindicação de eleição direta para os prefectos (chefes do executivo departamental que eram

indicados pelo presidente) e de referendo popular sobre as autonomias regionais. A partir daí,

Acreditamos na luta contra o narcotráfico e a coca; 13. Acreditamos na necessidade de enfrentar com firmeza a delinquência; 14. Somos orgulhosos de uma nação mestiça, de nossos valores, franqueza, lealdade e hospitalidade.”. El Deber, 2 de outubro de 2003. 61 “Goni a los cívicos: nada de autonomía, eso destruye”, El Deber, 10 de outubro de 2003. 62 “Comité presenta una agenda nacional y llama al referéndum”. El Deber, 23 de junho de 2004. 63 Nome utilizado para denominar o indígena do Oriente, que trabalhava como peão nas fazendas coloniais. 64 Nome utilizado para denominar o indígena do Ocidente, normalmente de ascendência aimará ou quechua. 65 “Las instituciones cruceñas proponen refundar el país”, El Deber, 2 de outubro de 2003. 66 “Las instituciones cruceñas proponen refundar el país”, El Deber, 2 de outubro de 2003.

Page 86: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

76

criou uma nova estratégia de mobilização popular, os chamados cabildos departamentais.

Convocados pelo comitê, o primeiro grande cabildo reuniu 50 mil pessoas em junho de

200467 e o segundo reuniu 350 mil em janeiro de 200568. Funcionavam como grandes

comícios públicos e contavam com a participação de grupos musicais, personalidades locais,

etc. Seu impacto visual era considerável, com a grande massa de participantes levando as

cores do departamento: branco e verde. Nas eleições de 2005, que elegeram Evo Morales

presidente, os prefectos foram eleitos diretamente e Rubén Costas ganhou as eleições em

Santa Cruz. Em julho de 2006, foi realizado o referendo das autonomias departamentais.

Quatro dias antes, o cabildo do Comitê Cívico reuniu meio milhão de pessoas em Santa Cruz.

A autonomia departamental ganhou com 72% em Santa Cruz, 76% em Beni, 63% em Tarija e

56% em Pando. Nos demais departamentos do país, a autonomia perdeu, deixando a votação

nacional com 44% a favor e 56% contra a autonomia departamental69.

Em síntese, entre 2000 a 2005, o bloco de poder boliviano não conseguiu repetir

fórmulas de incorporação de setores sociais descontentes. Sua interpretação dos problemas

bolivianos, calcada em uma crítica ao “sindicalismo violento” e no combate aos

“narcotraficantes” carecia de respaldo na população em geral. Por outro lado, o movimento

cívico conseguiu angariar em parte da Bolívia apoio popular com base em um “orgulho

camba” de matizes racistas e uma antiga rivalidade entre oriente e ocidente. Nestas regiões, o

discurso de denúncia contra o “sindicalismo violento” e contra a “cocaína e a coca” se

amalgamava em um discurso regionalista, que opunha uma coletividade “moderna e mestiça”

a uma coletividade “retrógrada e indígena”.

No geral, contudo, a emergência desta força regional só existiu graças ao

enfraquecimento contínuo do núcleo de poder central, cuja atuação foi se tornando cada vez

mais isolada com relação às reivindicações que emanavam da sociedade, cada vez mais

abstrata nas suas defesas da “unidade nacional”. O ápice da sua crise ocorreu em outubro de

2003, quando a face coercitiva do Estado foi percebida de forma imediata pela maior parte da

população. Aqui não se trata somente de apontar os números, os 60 mortos das jornadas de

outubro70, mas sim de afirmar que havia um entendimento generalizado da maioria da

67 El Deber, 23 de junho de 2004. 68 El Deber, 29 de junho de 2006. 69 El Deber, 29 de junho a 3 de julho de 2006. 70 O Estado brasileiro pode ser muito mais violento sem causar grandes alvoroços na população, desde que reafirme que a sua política de extermínio é voltada para “bandidos” (basta lembrar o massacre de 400 jovens ocorrido em maio de 2006 na cidade de São Paulo).

Page 87: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

77

população de que o Estado estava massacrando as pessoas nas ruas, tornando inegociável a

exigência de mudança no bloco do poder.

Se pensarmos na insistência de Smith em diferenciar os “estatismos” impostos de

cima e os nacionalismos por meio de ideias de coletividades que fazem referência a

experiências históricas e mitologias comuns, o movimento cívico regionalista pareceu ter

algum sucesso. O movimento reconstruiu uma identidade camba, retomou heróis como

Andrés Ibáñez, que reivindicava o federalismo e um socialismo utópico desde a perspectiva

da Santa Cruz pobre e despovoada da virada do século XIX para o XX. Se não fossem por

estes elementos, o movimento não teria alcançado o seu apelo popular, mesmo se

considerarmos que um razoável número de pessoas que participavam dos cabildos eram

coagidos por seus empregadores71.

Já o núcleo central do poder sediado em La Paz demonstrou menos capacidade de

direção. Alegando que a decisão em exportar o gás natural para os Estados Unidos via portos

chilenos era “técnica”, o governo insistiu nesta opção até momentos antes dos eventos mais

dramáticos de outubro. Sobre este caso, é interessante resgatar o depoimento sobre os

acontecimentos de 2003 de Jeremy Rosner, assessor americano de Sánchez de Lozada para

assuntos de opinião pública:

Havia um profundo sentimento de que o patrimônio do país estava sendo dilapidado de novo. Além dos 500 anos de história, desde a época da prata e dos conquistadores espanhóis, havia o papel de Goni [Gonzalo Sánchez de Lozada], o fato de eles encararem as privatizações do primeiro mandato como parte daquilo, tal como a guerra de 1879 contra o Chile, quando eles perderam o seu litoral. Eu sabia destas coisas, não ignorava a história. Mas, ao ouvir isso das pessoas, aprende-se sobre a dinâmica da paixão por trás do fato. Não são os fatos que aprendemos, é a textura das paixões políticas, a textura da tristeza que existe em relação ao que lhes foi roubado72.

Foi essa “textura das paixões políticas” que era incompreensível para o governo de

Sánchez de Lozada. Não por ignorar o fato de que estas coisas importavam para o povo

boliviano, mas porque havia uma crença absoluta de que não cabia ao povo questionar as

políticas do governo em momentos não eleitorais. Sánchez de Lozada afirmou inúmeras

vezes que promover referendos era uma irresponsabilidade política, “não se pode pedir ao

71 Chama atenção uma pequena enquete feita pelo jornal El Deber (jornal com posição editorial favorável à reivindicação autonomista) no primeiro grande cabildo convocado pelo comitê, em 22 de junho de 2004. Um quarto das 44 pessoas entrevistadas não sabia o que significava “autonomia” e não sabiam o motivo da sua presença ali, alegando que “lhes disseram no trabalho que participassem”. El Deber, 23 de junho de 2004. É curioso notar que os três primeiros grandes cabildos do comitê cívico foram realizados em dias de semana (22/06/2004, 28/01/2005 e 28/06/2006). 72 Jeremy Rosner, em entrevista feita no documentário Crise é o nosso negócio (1h14’30’’ a 1h15’28’’), de Rachel Boynton.

Page 88: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

78

povo que decida sobre uma coisa tão complexa, tecnológica, econômica”73. Sob estes

princípios, o bloco de poder preferiu ver o seu governo ruir a negociar certos pontos.

***

Mas, se a estratégia geral do bloco de poder em diminuir as suas contradições com os

interesses populares falhou, quais foram as medidas e ações exitosas da oposição a este bloco

de poder que ajudaram a aguçar tais contradições? A tese de Zavaleta Mercado da crise como

nacionalizadora é importante, pois aponta para a possibilidade de se criar blocos históricos

com base em uma unidade patética, épica e sentimental, que possuem, contudo, uma

formação social muito mais diversa do que seria dedutível das análises gramascianas.

Durante as manifestações, houve algumas iniciativas de unificação de pautas e lutas,

com maior ou menor grau de adesão. O Estado Maior do Povo (mobilizações de janeiro de

2003), a Coordenadora da Água (janeiro a abril de 2000) e a Coordenadora do Gás (outubro

de 2003) foram iniciativas deste tipo que, ainda que representassem mais fortemente um ou

outro setor, contavam com a adesão formal e simbólica de diversos movimentos. O MAS-

IPSP, apesar de ter sido no período a canalização da mobilização em termos eleitorais, não se

conformava como um partido ou uma esfera política de síntese destes diferentes movimentos.

A pauta genérica de nacionalização e industrialização dos recursos naturais, reforma agrária e

assembleia constituinte foi muito mais uma plataforma gerada nos momentos de luta do que

um programa de antemão já estabelecido por uma organização política.

Do ponto de vista da definição do que seria o ente coletivo prioritário de soberania

política, as posições dos diferentes setores envolvidos variavam muito. O tempo indígena de

longa duração do Conamaq e dos indígenas do Oriente parece querer re-estabelecer “nações

originárias”, unidades políticas indígenas com elevado grau de soberania, mas que não se

descolariam de um Estado multi ou plurinacional que coordenaria em nível mais elevado

estas identidades nacionais específicas. O projeto, contudo, tem raízes também no katarismo,

que reivindicava já nos anos 1970 “a necessidade de adotar uma forma estatal que

expressasse organicamente o caráter plurinacional e multiétnico de uma sociedade como a

boliviana” (Rivera, 1993, p. 28). Neste projeto há uma disjunção entre o Estado e a nação, ou

seja, as fronteiras étnicas e culturais nacionais não coincidem com as do Estado.

Diferentemente da nação analisada no contexto da modernidade (objeto de estudo de Nairn,

73 Declaração feita a um jornalista durante a campanha de 2002. Em Crise é o nosso negócio (33’33’’).

Page 89: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

79

Gellner e, inclusive, Smith), que necessita de uma referência estatal moderna para se

concretizar, a nação indígena é entendida neste caso como organização cultural, territorial e

política sub-estatal e, portanto, deslocada desta referência. Trata-se de um mecanismo de

oposição às tendências homogeneizadoras do Estado-nação moderno, que acabou por adotar a

denominação de nação porque possuía ímpeto político (apesar deste não ser propriamente

estatal74) e não somente cultural e porque, efetivamente, no momento da Conquista os

diferentes grupos indígenas foram chamados de nações. Como afirmam Xavier Albó e Franz

Barrios (2007), tal identificação só impede um sentido de pertencimento a um Estado-nação

se este for entendido de maneira exclusiva e homogênea.

O tempo indígena, contudo, apresenta outros matizes no entendimento da nação. A

tradição indigenista, por exemplo, considera que há uma superposição de duas nações, uma

nação branca, crioula e opressora, que se convencionou chamar de Bolívia, e a nação

indígena e oprimida. Tem-se a ideia de duas nações sobrepostas e que ocupam locais sociais

distintos. Não se questiona aqui particularmente a homogeneização cultural de um Estado

nacional, mas sim a imposição de um domínio externo a uma maioria indígena. Neste

sentido, a luta teria como objetivo a conformação de um Estado-nação indígena75. Esta

perspectiva era especificamente visível nas mobilizações do altiplano paceño e se articulava

com estratégias de confrontação do Estado radicais, que reivindicavam a reconstituição de

uma pátria índia mítica.

Por fim, movimentos urbano-populares, camponeses e operários possuíam uma

identificação nacional boliviana marcada pelas lutas anti-imperialistas por soberania nacional

do período da Revolução de 1952. Contudo, estes setores passaram a se afastar da postura

nacionalista homogeneizadora das décadas anteriores, que obrigava ao índio adotar a

identidade camponesa, e se focaram prioritariamente em um nacionalismo definido frente aos

interesses externos às tarefas modernizadoras do Estado boliviano: garantia de direitos sociais

(saúde, educação, previdência), industrialização, controle estatal da economia, etc. As

demandas variadas retomam a problemática de Marof que abordamos no início deste

trabalho: os dois elementos centrais que precisam ser fortalecidos no país são o Estado e os

74 Como argumenta Luis Tapia (2007, p. 52). 75 Fausto Reinaga é um expoente desta perspectiva: “O cholaje de 145 anos não criou nem unidade territorial, nem unidade econômica, nem unidade linguística, nem unidade religiosa, nem unidade psicológica, nem unidade histórica, nem unidade cultural. Bolívia é uma ‘nação abstrata’. Seu Estado é um simples ‘comitê que administra os interesses do imperialismo das feras loiras do Ocidente’. O índio como unidade racial, unidade histórica, unidade religiosa, unidade linguística, unidade econômica é o Ser Nacional. Seu passado e seu presente são fatores de coesão. Seu porvir lhe coloca somente um problema: o da sua liberação” (Reinaga, 1970, p. 168-169).

Page 90: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

80

índios, por isso a consigna “minas ao Estado e terras ao povo” ainda era vigente quase oitenta

anos após a publicação da sua obra.

Isso nos leva, contudo a uma problemática relativa ao sujeito deste bloco histórico que

se levanta contra o Estado de então. É possível pensar em um setor dirigente, em uma linha

mais próxima às s preocupações de Gramsci ao refletir sobre o bloco histórico? Efetivamente,

houve várias direções, dependendo do momento político. Mesmo a ocupação do governo pelo

MAS-IPSP não nos permite chegar à conclusão de que este seria o partido dirigente do bloco

histórico, primeiro porque o MAS-IPSP não se constitui como um partido revolucionário nos

moldes pensados por Gramsci e segundo porque, no momento em que ocupa o governo, já

estaria preocupado com as tarefas estatais (de uma perspectiva interior ao Estado) e

enfrentando as contradições inerentes destas. Mas houve unificação, e com unificação não se

quer dizer somente uma agenda comum (mero elencar de pautas), mas sim um processo de

criação de estratégias de luta compartilhadas, identificação de uma coletividade popular em

estado rebelião (a massa de Zavaleta Mercado). Mas se não há um sujeito dirigente definido,

como é possível pensar nesta unificação?

Obviamente, há muita tensão entre as duas grandes pautas surgidas no período, uma

mais ligada a um autonomismo indígena e outra mais ligada a um fortalecimento do Estado

para realização de tarefas do desenvolvimento. Mas, se destas pautas não é possível

identificar um sujeito comum (apenas uma coletividade rebelde, unificada de forma “patética,

sentimental e épica”), é possível pelo menos identificar um adversário comum, o que é visto

como a “elite crioula antipátria”. Tal adversário, ao ser caracterizado como o sujeito da

opressão dos índios (disso dependiam seus interesses internos de “casta”) e do Estado

(vendendo-o aos interesses externos e paralisando-o das suas tarefas nacionais, com exceção

da tarefa coercitiva), era suficiente para unificar todas as temporalidades. De certa maneira, a

imagem bem definida e contundente de um adversário “compensava” uma coletividade

dispersa e era suficiente para fazer irromper violentamente as contradições entre “bloco de

poder” e “interesses populares”.

É curioso notar que todas as coletividades nacionais propostas pelo bloco histórico

popular podem ser articuladas em torno da ideia de classe-nação, abordada por Gellner. Ou

seja, elas seriam resultado de uma composição estatal não inclusiva, que imporia a um grupo

definido étnica e culturalmente uma condição socioeconômica desvantajosa. Mesmo no caso

das coletividades mais “estatistas” (que apontam para tarefas estatais de desenvolvimento e

antiimperialistas), é possível identificar uma percepção do bloco do poder como um grupo

com interesses tão divergentes que não poderia ser incluído na comunidade nacional

Page 91: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

81

reivindicada pelos setores mobilizados. No modelo de Gellner, a resposta natural a esta

situação é o separatismo que norteou os nacionalismos do leste europeu na fragmentação dos

territórios imperiais. Mas, no caso boliviano, nenhuma das possíveis respostas apresentadas

nas mobilizações – que variaram em torno da mudança de governo, refundação do Estado via

assembléia constituinte e revolução índia – cogitou o separatismo como solução.

De maneira geral, as contradições entre estas visões são múltiplas e estão longe de

serem resolvidas. O interessante aqui é notar que nestas três formas de identificação coletiva

nacional está ausente a elite política então dominante, por isso a sua caracterização enquanto

classe-nação, catalisador político em uma situação de intensa polarização social causada

pelos impedimentos culturais e sociais sofridos por este ator e impostos pela elite política que

domina o Estado. A classe-nação, quando se forma, é radical exatamente porque exclui esta

elite política estatal (no caso boliviano, a elite neoliberal) e impõe soluções que alteram

profundamente o panorama político: separatismos, revoluções ou, no mínimo, reformas

“refundacionais” (como a que foi adotada neste caso).

A intensa percepção popular da subordinação internacional desta elite “antipátria” é

visível tanto nas pautas gerais que se desenvolveram (nacionalização dos recursos, não à

ALCA, etc.) quanto em episódios específicos, que se foram entendidos como típicos desta

elite. Um acontecimento emblemático foi a campanha contra Evo Morales da Embaixada

Norte-Americana durante as eleições de 2002. Ela ameaçou pôr fim em projetos de auxílio

entre os dois países caso Morales, dirigente que estaria claramente ligado ao narcotráfico,

saísse vitorioso no pleito76. A intromissão da embaixada durante as eleições foi entendida

como claro favorecimento aos candidatos mais “próximos” da política norte-americana.

Outro episódio muito marcante foi o impuestazo de fevereiro de 2003, no qual as ações do

governo eram claramente pautadas pelo FMI. Mesmo após a convulsão social que deixou

mais de 30 mortos, o governo não se permitiu agir com autonomia e enviou seu ministro da

pasta econômica para negociar mudanças com o fundo. Neste sentido, esta elite política era

vista como mero fantoche, e as mobilizações se dirigiam contra ela, mas mais fortemente

contra os interesses externos que ela encarnava. Assim, não foi difícil excluir esta elite de um

76 Manuel Rocha, então embaixador norte-americano, declarou em uma coletiva de imprensa: “Quero recordar ao eleitorado boliviano que, se elege aos que querem que a Bolívia volte a ser um exportador de cocaína, este resultado colocará em perigo o futuro da ajuda dos Estados Unidos a Bolívia”. Segundo ele, “uma Bolívia dirigida por gente que se beneficiou do narcotráfico não pode esperar que os mercados dos Estados Unidos se mantenham abertos para exportações tradicionais como têxteis e o gás natural”. Los Tiempos, 27/06/2002. Evo Morales já havia declarado anteriormente que queria fazer os seus debates presidenciais com o embaixador dos EUA, e não com os outros candidatos, já que seria ele quem efetivamente governaria o país. El Deber, 14/06/2002.

Page 92: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

82

imaginário comum de sujeito nacional, já que ela era claramente um agente local que não

teria qualquer função de contribuir para a coletividade.

Contudo, este agente local controlava o Estado e, portanto, o seu aparato coercitivo. O

discurso que vinha das mobilizações também denunciava de maneira radical a intensa

violência com a qual estas elites enfrentaram os setores mobilizados. “Eu não vou olhar nos

olhos de vocês, porque seus olhos estão manchados do sangue indígena (...). Isso me dói

como Mallku Maior. Eu não sou um pongo [servo] político. Isso me dói porque vocês,

inquilinos, se apropriaram da nossa terra” disse Felipe Quispe durante os bloqueios de

caminhos em setembro e outubro de 2000 (apud Garcia Linera et al, 2008, p. 123). Como foi

notado anteriormente, não eram os números das mortes em si que foram definitivos para que

a população se colocasse contra quem estava no poder, tais mortes podem parecer

“justificáveis” se o Estado consegue convencer a população de que elas foram “necessárias”

para a manutenção da ordem. Mas o aparato coercitivo do Estado passou a ser entendido cada

vez mais como um aparato contra a população e não favorável à ordem e, portanto, à

população (consenso que sustenta a coerção estatal).

O movimento cívico autonomista foi entendido pelos setores mobilizados como

continuidade da elite crioula “antipátria”, pois seria promovido pela oligarquia lojiera77, uma

expressão deste poder patrimonial boliviano, que se reestruturava ao verificar que o bloco de

poder tradicional perdia terreno. A questão dos recursos naturais era particularmente

importante, porque se sabia que um dos grandes motivos unificadores da meia-lua era um

controle departamental dos hidrocarbonetos. No altiplano e nos vales, os setores populares

rejeitavam esta apropriação local dos recursos, argumentando inclusive que foram eles (e não

os oligarcas cruceños) que lutaram na Guerra do Chaco em defesa destes recursos e deste

território78.

Mas se o discurso funcionava no Ocidente boliviano, e amalgamava a imagem do o

movimento cívico cruceño à do bloco de poder neoliberal, as coisas pareciam ligeiramente

diferentes nos departamentos da meia lua. De fato, o bloco de poder representado pelos

governos de Hugo Bánzer, Tuto Quiroga, Sánchez de Lozada e Carlos Mesa79 não contava

com apoio popular massivo e de rua que tinha o movimento cívico. Sánchez de Lozada não

queria se “misturar” com o povo, era visto como um tecnocrata estrangeiro e oligarca. Já

77 Referência às lojas maçônicas das quais as principais figuras públicas do movimento cívico fariam parte. 78 O documento apresentado pelo Movimento Originário Popular na Assembleia Constituinte sintetiza esta perspectiva: “(...) guerra do chaco, na qual participaram nossos avós e não os que se apropriaram agora dos hidrocarbonetos (...)” (MOP, 2007, p. 7). 79 Caracterização passível de discussão. Preciso investigar melhor governo de Mesa.

Page 93: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

83

Rubén Costas era o grande animador de cabildos populares, autor da palavra de ordem

Autonomía, carajo!, que pipocavam em todas as grandes manifestações pró-autonômicas.

Não se pode dizer que os apoiadores do MAS-IPSP e dos setores que compunham as

mobilizações nacionais estavam absolutamente isolados nas regiões da meia lua (dependendo

das votações, mobilizavam de 30% a 40% dos votos), mas era um setor que para se expressar

tinha que se enfrentar fisicamente com o movimento autonomista. Suas marchas e

manifestações públicas não raramente se dispersavam devido ao enfrentamento com os

setores “cívicos”.

Assim, a caracterização das elites bolivianas como “senhorial-oligárquicas” não é

exatamente precisa para os movimentos cívicos do oriente boliviano, já que ela não pressupõe

apoio popular. Tais movimentos teriam mais proximidade com a tradição militar autoritária

boliviana que foi em muitos momentos bastante popular, mesmo na segunda metade do

século XX (basta lembrar do pacto-militar camponês). Esta inadequação de caracterização

pode explicar também o fracasso em fragilizar o apoio popular a estes movimentos cívicos

por parte dos outros setores sociais mobilizados.

Com exceção da dificuldade em se contrapor ao movimento cívico autonomista no

Oriente, o bloco histórico composto pelos setores sociais em luta de 2000 a 2005 foi muito

exitoso em resgatar experiências históricas de forte significado dramático, que fizessem

emergir paixões políticas. Um exemplo é a própria questão do litoral; a abertura desta antiga

ferida realinhou os governos neoliberais com as elites políticas oligárquicas do passado, que

foram entendidas como as responsáveis históricas pelas perdas territoriais pela sua ganância

em se enriquecer em detrimento dos interesses nacionais. Outro exemplo é a Guerra do

Chaco que, se não serviu para ampliar o movimento no Oriente, serviu para unificar os

setores sociais do Ocidente em oposição ao movimento cívico.

De certa maneira, o nacionalismo que emergia desta identificação coletiva atacava o

Estado, porque este era identificado intrinsecamente com a elite inimiga. A experiência

colonial que importava uma estrutura de repressão estatal externa às comunidades indígenas

da região nunca foi completamente superada. Um exemplo disso ocorre quando Quispe

convoca Bánzer para falar “de presidente para presidente”, o presidente dos q’aras e o

presidente do Qullasuyo. Exageros à parte, Quispe faz referência aqui a uma estrutura estatal

que não foi totalmente reconhecida, seja porque os braços do Estado (sistemas de justiça, de

educação, de saúde) não chegaram a uma razoável parcela da população boliviana, seja

porque o preconceito étnico e racial era fortemente percebido nas zonas onde o Estado era

Page 94: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

84

mais “forte”, como nas cidades. Trata-se, como foi colocado anteriormente, de um Estado em

permanente crise, que não é identificado de forma separada do grupo que ocupa.

Resumidamente, os setores sociais que conformaram um bloco histórico no período

de 2000 a 2005 conseguiram se unificar frente ao bloco de poder graças à identificação deste

como um adversário comum a todos os movimentos em luta. De forma geral, conseguiu-se

traçar uma linha de continuidade entre a antiga “elite senhorial oligárquica” e a nova “elite

tecnocrata neoliberal”. Ambas teriam demonstrado historicamente seu repúdio aos interesses

nacionais e à maioria indígena da população boliviana. Mesmo a dificuldade em lidar com o

movimento cívico é apenas parcial, dado que este movimento não tem capacidade em

disputar a política nacionalmente, dado que sua força está localizada no seu regionalismo e na

forma como pode se diferenciar do resto do país. Fora dos departamentos da meia-lua, a

consigna de “orientalizar a Bolívia” não possui qualquer apelo.

O próximo período, contudo, será marcado pela redefinição das bases de legitimidade

deste Estado, que pela primeira vez tem no governo uma articulação majoritariamente

popular e indígena. A contradição entre bloco de poder e povo muda radicalmente, já que

agora os pólos desta disputa estão ocupados por atores diferentes. A pluralidade de projetos e

pautas que foi vislumbrada neste momento de ação direta e mobilização intensa terá

oportunidade de ser decantada em projetos mais unificados ou em antagonismos mais claros,

pois os atores políticos estarão obrigados a explicitar seus projetos para a refundação do

Estado boliviano em uma linguagem universal.

Page 95: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

85

Capítulo 4 – A formação do Estado Plurinacional

No capítulo anterior, acompanhei o processo de formação de um bloco histórico

popular diferenciado, que não se unificou graças a uma direção coerente, mas sim graças à

existência de um contra projeto comum, que encarnava antipatias de todas as

“temporalidades” analisadas. Também foram identificadas algumas especificidades do Estado

boliviano, que, graças a pouca capacidade hegemônica das suas classes, estaria sempre

vulnerável a crises de legitimidade profundas, crises de hegemonia. O momento vivido no

início deste século foi mais uma destas crises.

A eleição de Evo Morales em 2005, contudo, muda o panorama desta disputa.

Diferentemente de outros períodos de crise, como a que estourou na Revolução 1952, a saída

encontrada neste caso não rompeu a ordem institucional, mas desembocou em uma troca de

governo eleitoral (ainda que o adiantamento das eleições tenha sido resultado de muita

pressão popular) e em uma Assembleia Constituinte. Algumas tarefas colocadas pela agenda

de outubro foram parcialmente realizadas pelo governo de Evo Morales sem necessidade de

qualquer novo dispositivo constitucional. O decreto de nacionalização dos hidrocarbonetos

foi anunciado em maio de 2006; a Lei de Recondução Comunitária, que especificava com

mais rigor o que se considerava a função econômica e social da terra (uma das maiores

críticas feitas à Lei Inra), foi aprovada no final de 2006; a Drug Enforcement Agency (DEA,

agência norte-americana de combate às drogas) foi expulsa do Chapare em novembro 2008.

De forma análoga a 1952, a questão dos recursos naturais e a questão agrária se constituíram

em pontos centrais da agenda de governo. Contudo, por não ter sucedido uma quebra

institucional, o governo do MAS-IPSP teve que lidar com problemas não enfrentados em

1952 ao aplicar sua agenda, como um Congresso desfavorável.

Mas a grande novidade da resposta contemporânea à crise do Estado boliviano foi a

Assembleia Constituinte. Os pontos da agenda de outubro equivalentes às reivindicações

camponesas, operárias e urbano-populares foram de certa maneira respondidos por políticas

governamentais que independiam da constituinte. Esta, portanto, tinha como tarefa central

atender às demandas indígenas de representação e poder político, que exigiam um redesenho

profundo das instituições bolivianas. Sua tarefa secundária era constitucionalizar e

aprofundar as políticas já parcialmente efetivadas pelo governo, que respondiam a uma

demanda mais ligada às tarefas estatais e anti-imperialistas.

Neste capítulo, pretendo analisar a forma como: 1) o antigo bloco do poder, agora

cumprindo o papel de oposição, apresenta seus argumentos na tentativa de disputar o terreno

Page 96: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

86

ideológico com a nova maioria política e 2) o novo bloco histórico popular tenta resolver as

suas contradições internas e propor uma nova estrutura de Estado, mais adequada aos seus

projetos políticos. Uma das diferenças qualitativas com relação ao período anterior é que

agora este bloco popular terá que encontrar fórmulas consensuais entre seus componentes que

se aproximem mais a um exercício de hegemonia. A constituinte exige uma linguagem

universalista, com pretensões necessariamente hegemônicas, e se afasta da forma

reivindicativa e corporativa que marcava os períodos de mobilização social antineoliberal.

Outra das diferenças qualitativas é a mudança das posições com relação ao poder.

Novas críticas (típicas de uma oposição política) surgirão por parte do bloco da direita e

novas soluções (típicas de uma situação política) serão propostas por parte do bloco da

esquerda.

O núcleo da análise da constituinte será feito com base nos documentos apresentados

por 16 forças políticas que participaram da Assembleia Constituinte, ocorrida entre 2006 e

2007. Estes documentos foram apresentados em fevereiro e março de 2007 e inauguravam o

trabalho da Comissão Visão de País, primeira e mais importante das 21 comissões em que se

dividiu a constituinte. Pela importância do tema tratado, a apresentação foi feita em plenária,

envolveu a totalidade dos constituintes e foi objeto de cobertura midiática.

Mas a análise não será feita somente a partir do conteúdo destes documentos. Para

aprofundar alguns pontos apresentados por estes, recorri a entrevistas realizadas com atores

do processo constituinte e a artigos publicados por estes em jornais ou periódicos

acadêmicos. Isso ocorreu quando os documentos eram muito superficiais ou esquemáticos em

pontos julgados centrais para a análise do processo constituinte, como entendimentos sobre

nação, plurinacionalidade, autonomias indígenas, etc.

Neste capítulo, faço uma pequena introdução sobre a conjuntura da constituinte e

abordo os documentos e as posições apresentadas tanto pelas agrupações partidárias da

oposição, bloco da direita crítico ao “processo de mudança” encabeçado pelo governo de Evo

Morales, quanto pelas agrupações da situação, bloco da esquerda favorável a este processo,

que foi impulsionado pela agenda dos setores sociais montada no período anterior.

Panorama geral da Assembleia Constituinte

A constituinte boliviana iniciada em meados de 2006 se originou da Lei Especial

3364 de Convocatória da Assembléia Constituinte, aprovada pelo Congresso em 6 de março

de 2006. A lei de convocatória, formulada em acordo com o Senado desfavorável, estabelecia

Page 97: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

87

que o novo texto constitucional deveria ser aprovado por 2/3 dos constituintes presentes e por

um referendo. Ao estabelecer uma maioria qualificada tão rígida, a lei exigia que a situação

negociasse amplamente com a oposição para aprovar o seu projeto de nova constituição.

Junto com a lei de convocatória da constituinte, o congresso emitiu também uma lei

de convocatória para um Referendo Nacional para as Autonomias Departamentais, demanda

dos movimentos cívicos do leste boliviano que cresceu, como vimos, no final do governo de

Sánchez de Lozada e durante o de Carlos Mesa. O referendo seria vinculante com relação à

Assembleia Constituinte, que teria a obrigação de constitucionalizar a escolha dos

departamentos que optassem por autonomia. Assim, os bolivianos foram às urnas em julho de

2006 para definir a questão da autonomia departamental (o “sim” perdeu nacionalmente, mas

ganhou nos departamentos da meia-lua) e para eleger deputados constituintes.

Os resultados da eleição dos constituintes foram parecidos com a proporção já

estabelecida nas eleições de 2005. Dos 255 constituintes, o MAS-IPSP possuía 137, e o

Poder Democrático y Social (Podemos), principal partido da nova oposição daquele

momento, possuía 60. O quadro abaixo expõe a divisão dos constituintes por forças políticas.

Constituintes por forças políticas

Força política Sigla No. de Constituintes

Porcentagem dos assentos

Alianza Andrés Ibáñez AAI 1 0,4% Alianza Social AS 6 2,4% Alianza Social Patriótica ASP 2 0,8% Autonomía para Bolivia APB 3 1,2% Concertación Nacional (Patria Insurgente)

CN-PI 5 2%

Movimiento al Socialismo MAS-IPSP 137 53,7% Movimiento Ayra Ayra 2 0,8% Movimiento Bolivia Libre MBL 8 3,1% Movimiento Ciudadano San Felipe de Austria

MCSFA 1 0,4%

Movimiento de Izquierda Revolucionaria Nueva Mayoría

MIR-NM 1 0,4%

Movimiento Nacionalista Revolucionario MNR 8 3,1% Movimiento Nacionalista Revolucionario – A3 (Santa Cruz)

MNR-A3 2 0,8%

Movimiento Nacionalista Revolucionario – Frente Revolucionario de Izquierda

MNR-FRI 8 3,1%

Movimiento Originario Popular MOP 3 1,2%

Page 98: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

88

Poder Democrático y Social Podemos 60 23,5% Unidad Nacional UN 8 3,1% Total 255 100% Fonte: Albó, 2008.

De forma geral, podemos classificar oito destas agrupações como favoráveis ao

processo de “mudança”: Alianza Social (AS), Alianza Social Patriótica (ASP), Movimiento

Ayra (Ayra), Concertación Nacional – Patria Insurgente (CN-PI)80, MAS-IPSP, Movimiento

Bolivia Libre (MBL), Movimiento Ciudadano San Felipe de Austria (MCSFA) e Movimiento

Originario Popular (MOP). Muitas destas siglas não representavam movimentos orgânicos e

sim meras formações políticas permitidas pela lei eleitoral que foram usadas para ampliar a

representação do próprio MAS-IPSP na constituinte. Estes grupos conformavam 64% das

cadeiras, com 164 constituintes.

Outros oito agrupações se alinhavavam mais claramente com a oposição: Alianza

Andrés Ibáñez (AAI), Autonomías para Bolivia (APB), MNR, Movimiento Nacionalista

Revolucionário - A3 (MNR-A3), Movimiento Nacionalista Revolucionario - Frente

Revolucionario de Izquierda (MNR-FRI), Movimiento de Izquierda Revolucionaria - Nueva

Mayoría (MIR-NM), Podemos e Unidad Nacional (UN). A oposição possuía 36% dos

assentos, com 91 constituintes.

Ressalvas e esclarecimentos sobre a análise

Algumas ressalvas são importantes com relação aos documentos em si. Primeiro,

havia muita diversidade de tamanho, registros linguísticos, formatos etc. Por vezes, erros de

pontuação e ou de gramática dificultaram o entendimento do texto. Alguns documentos não

estavam completos e outros eram apresentações de slides; alguns eram simples respostas a

propostas já colocadas, outros apresentavam considerações bastante específicas. Neste

sentido, somente descartei três documentos da análise: o documento do MIR-NM e o

documento consensual da UN, pois estavam muito incompletos (a falta de páginas

prejudicava o entendimento das propostas), e o documento do Ayra de Fridolino Duran Paxi,

que era uma apresentação de slides muito esquemática, da qual era difícil deduzir

formulações mais completas sobre sua “visão de país”.

80 O grupo político marxista indigenista Patria Insurgente usou a sigla da Concertación Nacional para eleger constituintes para a assembleia.

Page 99: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

89

Um número considerável destes documentos era formado por contribuições

individuais de constituintes. Quando os constituintes possuíam posições muito diferentes e

que caracterizavam visões de país razoavelmente distintas, julguei suas contribuições como

uma unidade de análise, não o conjunto do documento do grupo político. Isso ocorreu no caso

da UN (cujo documento principal estava incompleto e os demais documentos, contribuições

individuais, foram denominadas UN-Pol Achá e UN-Lazarte81) da ASP (separada em ASP-

Vargas e ASP-Tapia) e do Ayra (separada em Ayra-Conamaq e Ayra-Duran, sendo que este

último documento foi descartado pelos motivos apontados acima).

Por analisar cada documento ou posição apresentada como uma unidade de análise, a

dimensão da representatividade de cada um deles não é problematizada. Um documento

como o do MAS-IPSP, que corresponde a 137 dos constituintes (53,7%), tem obviamente

maior importância que um documento como o de Pol Achá (UN), que representa somente um

constituinte (0,4%). Contudo, o que se quer verificar aqui é justamente a pluralidade de

posições colocadas, sendo que documentos de agrupações pequenas podem representar

dimensões não muito explícitas dos documentos das agrupações maiores. Por não estarem

depurados por acordos e consensos internos, eles abordam temáticas e posições mais

polêmicas, que estariam sub-representadas na constituinte se tais agrupações não pudessem se

expressar em pé de igualdade com as maiores.

Documentos analisados por posição política e representatividade na constituinte

Sigla Posição política No. de Constituintes

Porcentagem dos assentos

AAI oposição 1 0,4% APB oposição 3 1,2% MNR oposição 8 3,1% MNR-A3 oposição 2 0,8% MNR-FRI oposição 8 3,1% Podemos oposição 60 23,5% UN-Lazarte oposição 1 0,4% UN-Pol Achá oposição 1 0,4% AS situação 6 2,4% ASP-Vargas situação 1 0,4%

81Lazarte e Pol-Achá não compunham organicamente a UN, mas sim foram convidados pelo presidente do partido, Samuel Doria Medina, para participar da agrupação durante a constituinte. A apresentação separada de documentos de visão de país fez parte, provavelmente, de um acordo político que estabelecia a autonomia que estes constituintes teriam na assembleia. Em março de 2007, Lazarte se afastou da UN e passou a assumir uma proposta mais próxima ao Podemos.

Page 100: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

90

ASP-Tapia situação 1 0,4% MBL situação 8 3,1% MCSFA situação 1 0,4% CN-PI situação 5 2% MAS-IPSP situação 137 53,7% Ayra-Conamaq situação 1 0,4% MOP situação 3 1,2% Total 247 96,5%

Cinco pontos nortearam a análise das posições políticas das agrupações:

1. Reconstrução do passado. Inspirada pelas sugestões de Smith e de Gramsci acerca

da importância da reconstrução de mitos históricos na disputa de hegemonia e na construção

da imagem da nação, esta categoria aborda de maneira mais sistemática a forma em que tais

agrupações apelam às experiências dramáticas do passado, atualizando o sentimento da

permanência das contradições diacrônicas na sociedade boliviana. Quais são os fatos

históricos relevantes para explicar a situação política atual boliviana? Quais desafios o

passado impôs que ainda precisam ser superados? Neste sentido, tentei identificar quatro

momentos da história boliviana que marcam estas interpretações: colônia, república,

Revolução de 1952 e período neoliberal recente.

2. Sujeito de soberania. A abordagem do sujeito da soberania nos leva às concepções

que estas agrupações têm sobre a coletividade nacional e, indiretamente, às suas concepções

de nação boliviana. As decisões políticas devem estar localizadas em que esfera? Quem são

os sujeitos destas decisões? A ideia de nação está mais apegada ao Estado ou ao povo? Neste

sentido, a ideia do “adversário unificador” ajuda a identificar quais são os sujeitos que são

excluídos desta coletividade, os opostos conceituais (internos ou externos) contra os quais tal

coletividade é definida.

3. Projeto de novo Estado. Aqui se pretende analisar as fórmulas conceituais com as

quais se quer batizar o novo Estado boliviano. Cada adjetivo que acompanha este Estado

(“plurinacional”, “social”, “unitário”, “autonômico” ou “comunitário”) traz uma imensa carga

normativa por parte dos autores que os propunha. Trata-se aqui de um exercício de

reinvenção conceitual, que tenta dar respostas às tensões internas inerentes aos blocos que

disputam o processo. Aqui se analisam também as tarefas que são colocadas ao Estado, o

significado do seu fortalecimento ou enfraquecimento.

Page 101: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

91

4. Autonomia indígena. Como foi apontado, a pauta da constituinte surgiu de uma

demanda especificamente indígena relativa à sua representatividade no arranjo institucional

boliviano. Esta demanda não se resumia ao debate sobre a quantidade de cadeiras que

deputados indígenas teriam no Legislativo. A “questão do poder” indígena implicava

necessariamente uma reivindicação de autonomia cultural, social e política frente ao Estado

boliviano, ainda que esta autonomia fosse passível de negociação. Com este ponto, pretendo

abordar as linhas de demarcação que são apresentadas pelos atores constitucionais entre

Estado e autonomia indígena. Tais linhas foram objeto de disputa na constituinte e continuam

polêmicas atualmente.

5. Política econômica. Se o debate acerca das autonomias mede a disputa sobre as

linhas de demarcação entre Estado e autonomias indígenas, o debate sobre a política

econômica também representa uma tensão entre Estado e sociedade civil, mas as tarefas que

são dadas ao Estado em cada caso são qualitativamente diferentes. A proposta de política

econômica pode fortalecer tanto um empresariado nacional e estrangeiro (proposta da

direita), como pode fortalecer as esferas populares e comunitárias de poder ou o próprio

Estado (propostas presentes na esquerda). De qualquer maneira, trata-se de medir as linhas de

demarcação entre o Estado e estes setores.

Tais pontos já estavam presentes, ainda que de maneira não sistemática, na análise do

capítulo anterior sobre a disputa de projetos entre bloco de poder neoliberal e setores

populares mobilizados. Mas as formas de unificação ali eram relacionadas a um momento de

luta completamente distinto, em que a grande meta era atacar o governo neoliberal. Ou seja, a

identificação de um adversário comum bastava para dotar de coerência o bloco histórico que

se formava. Aqui, a meta é construir um Estado que resolva (ou pelo menos rearranje de

maneira minimamente estável) as contradições entre a nova maioria, o que é um objetivo

muito mais difícil. Neste sentido, faz-se necessário perscrutar estes documentos e a forma em

que se negociou fórmulas consensuais que apontavam para soluções às tarefas que o novo

bloco histórico havia se colocado.

Oposição

A oposição, conformada pelas agrupações que se colocaram críticas ao “processo de

mudança” do governo de Evo Morales, se encontrava em uma situação particularmente difícil

durante a constituinte. Como oposição política, sua tarefa consistia em atacar o novo bloco de

poder e criar identificações políticas entre ela e os interesses populares. Ou seja, precisava

Page 102: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

92

tornar as suas pautas políticas pautas que pudessem ser interpretadas como sendo da

totalidade da população em oposição ao governo. Considerando o passado recente desta

oposição, que estava identificada com o bloco de poder anterior e com o período neoliberal,

alvo de muito rechaço popular, tal tarefa era extremamente difícil. Sua situação numérica

também era desfavorável, já que contava com apenas 36% dos constituintes, apenas alguns

constituintes a mais do que o terço necessário para travar a constituinte (que deliberava por

2/3).

No geral, as posições políticas emanadas deste bloco opositor durante a constituinte

apresentam certo consenso entre si. Elas enfatizam a importância de se combater o

centralismo do Estado boliviano, de se desenvolver autonomias departamentais e de alcançar

uma constituição que seja um acordo político amplo, no qual estejam representados todos os

setores da sociedade boliviana. As diferenças aparecem na forma em que estes partidos

reconstroem (ou não) os momentos históricos do país ou nos registros em que apresentam as

suas ideias. O documento de Jorge Lazarte, por exemplo, é um texto com um tom muito mais

acadêmico que os demais82.

A análise dos documentos da oposição nos é interessante porque eles ajudam a

analisar duas questões: 1) a capacidade de luta hegemônica destes setores em um momento

em que já não são o “bloco de poder” e podem atuar com menor compromisso com a

estabilidade política; isso os deixa livre para apoiar demandas que demonstrem insatisfação

com a atuação do Estado; e 2) as linhas de continuidade que pode haver entre algumas destas

agrupações e as agrupações da situação.

1. Reconstrução do passado

No geral, os documentos da oposição foram marcados por uma significativa ausência

de referências ao passado. As únicas exceções foram a AAI, com uma visão histórica

particular da região de Santa Cruz, e o MNR, cuja sistematização dos momentos históricos do

país se assemelhou à dos partidos da situação, mas que deu interpretações bastante diferentes

a esses momentos.

Podemos, APB, UN-Pol Achá e MNR-FRI adotam estratégias propositivas que

evitam fazer qualquer tipo de referência direta ao passado. A apresentação da APB deixa

claro este posicionamento mais “pragmático”, enfatizando que a função dos assembleístas era

82 Jorge Lazarte tem uma trajetória profissional acadêmica. É cientista político, professor da Universidade Católica da Bolívia.

Page 103: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

93

propor “soluções”, e que deveriam ter uma abordagem “para além dos diferentes períodos

históricos que, de uma ou outra maneira, transformaram positivamente ou negativamente

Nosso País”. Além disso, falar da “memória histórica” seria uma “perda de tempo”, já que os

expositores anteriores já haviam abordado o tema (APB, 2007, p. 1).

Dos que mencionam eventos e ou políticas do passado, são feitas duas menções

positivas (MNR e MNR-A3) e negativas (UN-Lazarte e AAI) ao período neoliberal. Duas

menções positivas ao período nacionalista ou à revolução de 1952 (MNR e AAI) e uma

menção positiva (MNR) e outra menção negativa (AAI) à Independência. MNR é o único

partido a incluir na sua apresentação uma análise do período colonial.

Com relação ao período neoliberal, MNR e MNR-A3 são os grupos que mais perto

chegam de avaliações positivas. O primeiro comenta sobre o importante papel de

estabilização que teria cumprido o Decreto 21060 de 1985, que abriu o país para os mercados

externos, facilitou o investimento estrangeiro e arrumou as contas públicas, e a política de

“capitalização” de meados da década de 1990 que seriam muito próximas à política de

nacionalização de Evo Morales, já que igualmente previam uma espécie de parceria público-

privada:

O processo de capitalização consistiu na associação do Estado com investidores privados estrangeiros, na qual o Estado contribui com suas empresas e o investidor com o capital, criando assim uma empresa na qual o investido tinha 50% das ações, o controle da sua administração e a obrigação de investir o total da capitalização no desenvolvimento da própria empresa. (...) Os fundamentos do decreto nacionalizador [de maio de 2006, promulgado por Evo Morales] descansam na continuidade do processo de capitalização, mudando unicamente a forma dos contratos, mas que, ao final, continua sendo uma empresa com participação transnacional, o que evidentemente é bom para todos de todos os pontos de vista porque, como já havíamos mencionado anteriormente, este processo de capitalização fez com que a Bolívia pudesse obter maiores ingressos, produtos dos impostos destas empresas, assim como da sua exploração (MNR, 2007, p. 39).

Autor direto das duas políticas consideradas marcos do neoliberalismo do país (o

Decreto 21060 de 1985 e a “capitalização” das empresas estatais da década de 1990), é

compreensível que o MNR defenda seu legado histórico, inclusive insistindo nas

proximidades que a sua política tem com o novo governo. MNR-A3, por sua vez, tem posição

parecida ao defender as políticas históricas do MNR, principalmente as do período recente,

tratando de diferenciá-las da caracterização de “entreguistas”:

(...) é minha responsabilidade aqui reivindicar as conquistas do MNR, como partido histórico, a participação popular, a aliança de classes, a aliança das regiões, o SUMI [Seguro Universal

Page 104: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

94

Materno Infantil], o Bono Sol, a reforma agrária, a reforma educativa, a capitalização, não a venda de recursos, como querem convencer as pessoas (MNR-A3, 2007, p. 40).

Avaliações críticas com relação ao período político anterior são feitas pelos

documentos de Jorge Lazarte (UN) e da AAI. O primeiro critica o modelo econômico

“privatista” adotado a partir 1985, que “não assegurou o crescimento e, pelo contrário,

debilitou o aparato produtivo nacional sem produzir eficiência empresarial” (UN-Lazarte,

2007, p. 4). A AAI, que contava somente com um constituinte, o ex-senador de Santa Cruz,

Hormando Vaca Diez, criticou somente o segundo período de reformas estruturais no país:

“[O neoliberalismo começa] no primeiro período de Sánchez de Lozada, período 93-97, aí sim a política de Reagan, de dona Thatcher, assumida religiosamente pelos organismos internacionais e beatamente pelos tecnocratas bolivianos, produz a desarticulação e o desmantelamento do Estado, esse Estado que estamos tratando agora de reconstruir, porque depois das conseqüências vistas, nos demos conta de que é mentira que o mercado por si só resolve os problemas da economia, do emprego e da distribuição” (AAI, 2007, p. 9-10).

O primeiro período identificado com o neoliberalismo, do decreto 21060 de 1985, é

poupado das críticas da AAI, porque Paz Estenssoro teria somente arquitetado uma política

de choque para conter a superinflação (ibidem, p. 9). O documento de Vaca Diez é

interessante porque, além de ser um dos poucos a reconstruir eventos do passado, o faz a

partir de uma perspectiva do que seria uma luta histórica do departamento de Santa Cruz

contra o centralismo e pelo reconhecimento nacional.

Sua abordagem da vida republicana da Bolívia reconstrói como principal problema do

país a tendência política centralista herdada da economia de enclave colonial, que teriam

como consequências as perdas territoriais:

Nascemos como país com 2.800.000 km2, hoje nos vemos reduzidos a 1.098.000 km2 e as pessoas se perguntam, por quê? E são várias as respostas, mas há uma que é central: porque a Bolívia na etapa republicana continuou o modelo colonial de exploração do enclave mineiro e buscando um porto no Pacífico para transportar o mineral. Vivemos com a cara voltada para o Pacífico e de costas para a Bolívia profunda. Porque o mundo da oligarquia mineira, do enclave mineiro da economia, era o mundo da mina e de uma pequena área de impacto e o que importava era como chegar ao porto com os minerais e o saldo da Bolívia excluída, como excluídos foram nossos indígenas e camponeses (AAI, 2007, p. 1).

Assim, a região de Santa Cruz, assim como povos indígenas e camponeses, iria ficar

afastada das decisões políticas durante esta primeira etapa da República. Sua situação

melhoraria no período nacionalista após a Guerra do Chaco, com o Plano Bohan da década de

1940, que impulsionou medidas governamentais de desenvolvimento do agronegócio na

Page 105: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

95

região83. Com esta nova perspectiva econômica, teria sido estabelecida uma “marcha ao

oriente”, na qual se construiu estradas ligando o ocidente com o oriente do país e se fomentou

a agroindústria em Santa Cruz (ibidem, p. 9). O documento traça um forte paralelismo entre o

que seria a exclusão regional de Santa Cruz e o que seria a exclusão indígena:

O constante (...) de Santa Cruz foi brigar para ser incluída na Bolívia e no seu dinamismo, o constante foi brigar para que fôssemos tomados em conta, para que não nos esquecessem, para que não nos excluíssem, como excluídos se sentem, legitimamente, os povos originários (ibidem, p. 21). É interessante pensar nesta perspectiva histórica regionalista. Nela, os cruceños são

identificados como povos oprimidos (assim como os indígenas), mas que sua reivindicação

não implica de maneira nenhuma na separação do país (assim como os indígenas). A AAI

retrata os traumas mais profundos da sociedade boliviana, como a perda territorial, e os

relaciona diretamente com a injustiça histórica sofrida pelos departamentos orientais. Apesar

de não ter um apelo diretamente nacional, é a visão trazida pela oposição que mais dialoga

com a história boliviana, pois consegue atualizar opressões sofridas no passado com

demandas imediatas da constituinte (autonomia departamental), operação não realizada pelo

MNR, por exemplo. Não à toa, o regionalismo foi o único movimento com adesão popular

que a oposição boliviana consegue fomentar, como identificamos no capítulo anterior.

Como legítimo herdeiro das decisões tomadas pelas elites políticas em boa parte dos

últimos cinquenta anos da vida política boliviana, o MNR apresenta uma perspectiva

completamente diferente de reconstrução da história. Como notei anteriormente, ele é o único

grupo da oposição que faz uma análise do período colonial, resgatando suas formulações

teóricas da década de 1940 e 1950 e reafirmando de maneira contundente a tese de que a

colônia é uma experiência central para impulsionar o desenvolvimento capitalista dos países

europeus e marca a dependência da América Espanhola:

A chegada dos espanhóis na América não somente constituiu o primeiro processo de ‘globalização’ da história, mas marca o início da inter-relação entre as sociedades que habitavam o continente e a sociedade europeia em expansão, de cujo interagir se estabeleceram vínculos de ordem econômica, social, cultural e política, cujas consequências em grande medida subsistem na atualidade. Esta relação possibilitou o desenvolvimento do capitalismo na Europa e foi a origem da dependência e do subdesenvolvimento da América Latina (MNR, 2007, p. 65).

83 O plano foi feito por uma missão norte-americana presidida por Marvin Bohan. Ele recomendava a diversificação econômica do país, muito dependente do estanho, com base no desenvolvimento da agroindústria intensiva nas zonas orientais. Com base no plano, o governo boliviano criou em 1942 a Corporación Boliviana

de Fomento para a agroindústria, fundou um banco agrícola e iniciou, em 1943, a construção de uma estrada que ligava Santa Cruz a Cochabamba (Mesa et al, 2003, p. 603).

Page 106: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

96

Tal dependência era consequência da política de exploração de recursos naturais, em

sua maioria os metais preciosos. O denominado “saqueio colonial” era acompanhado por um

regime político que privilegiava espanhóis nascidos na península ibérica, que gerou:

(...) contradições entre colonizadores espanhóis e o resto da população, que enfrentavam em muitos casos conflitos sangrentos com setores distintos, como foram, por exemplo, as sublevações indígenas do final do Século XVIII, ou as lutas de espanhóis com crioulos, cujo exemplo mais notável foram os enfrentamentos entre ‘vicuñas e vascongados’ ocorridos em Potosi, assim como os enfrentamentos entre artesãos e camadas médias contra o poder colonial (ibidem, p. 3. Destaques nossos). 84

O MNR relata a experiência histórica de maneira a identificar um bloco social,

formado por indígenas, mestiços, camadas médias, artesãos e elite crioula, que era oprimido

pelo poder colonial da Coroa. Ainda que reconheça em uma passagem o “extermínio das

massas indígenas em trabalhos forçados nas minas” (MNR, 2007, p.2), a grande contradição

colonial assinalada não era entre índios e brancos, mas sim entre espanhóis peninsulares

(exploradores) e todo o restante da sociedade colonial (explorada).

Desta forma, o MNR avalia a Independência como um verdadeiro processo de

emancipação. Seus heróis, “Bolívar e San Martín”, “cruzavam cordilheiras encabeçando

exércitos de crioulos, mestiços e mulatos imbuídos do espírito independentista, de

democracia, de justiça e de igualdade” (ibidem, p. 5). O documento da agrupação lembra em

muitos momentos a obra de Carlos Montenegro, que também tinha uma visão muito

favorável aos “heróis da independência”. Todos os capítulos de Nacionalismo y Coloniaje se

iniciam com uma citação de Bolívar, sendo que o último, que prevê a “ressurreição do

sentimento bolivianista”, traz a frase “que meu nome não vá perecer junto com esta pátria”

(Montenegro, 2008, p. 239). Pois é justamente esta a primeira frase do documento do MNR

sobre sua visão de país85.

Mas as elites governantes que sucederam Bolívar e Sucre no poder86 não seriam

dotadas de espírito modernizante, e explorariam os recursos naturais bolivianos (prata e

estanho) sem deixar para o país as suas riquezas, “os interesses da oligarquia mineira estavam

84 A Guerra entre vicuñas e vascongados ocorreu entre 1622 e 1625 em Potosi. Foi um conflito entre o grupo de bascos (vascongados), que tinham determinados privilégios econômicos e políticos na ordem colonial da cidade e de crioulos e espanhóis de outras regiões (vicuñas). 85 O documento segue com epígrafes que já não são de Bolívar, mas sim de figuras do nacionalismo revolucionário (Carlos Montenegro, Victor Paz Estenssoro), e termina com uma epígrafe de Guillermo Richter, deputado do MNR na constituinte: “O MNR é um partido que analisa e estuda dialeticamente a realidade nacional e atua em função dela para transformá-la” (MNR, 2007, p. 11). 86 Bolívar foi presidente da Bolívia em 1825, de agosto a dezembro. Seu curto governo foi sucedido pelo do marechal Antonio José de Sucre, também herói da independência de origem venezuelana, que governou o país até 1828.

Page 107: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

97

acima da pátria” (MNR, 2007, p. 5). Elas careceriam de projeto nacional unificador, o que

teria feito com que o país voltasse à sua época de “feitoria” colonial. Neste ponto, o MNR

reforça a tese regionalista de que os governos republicanos voltaram suas costas ao interior

do país (ibidem, p. 6).

Já a revolução de 1952 representaria para o MNR a concretização de um projeto

nacionalista nascido durante a Guerra do Chaco (1932-1935), consequência de contradições

exacerbadas por um “sistema de privilégios seculares” (ibidem, p. 8). Ela teria como

consequência a unificação territorial nacional, do ocidente com o oriente, a diversificação da

economia do país, a incorporação das massas indígenas na vida política, com o voto universal

e a reforma agrária (que os livrou do regime de servidão). Mais do que isso, a revolução de

1952 e o cogoverno estabelecido entre MNR e COB seriam a concretização do programa de

aliança de classes proposto pelo MNR, que via como contradição central da sociedade

boliviana a existente entre nação e imperialismo (“forças que bloqueavam o seu

desenvolvimento por meio de relações de dependência”), e não entre burguesia e

proletariado, como propunham os partidos marxistas (ibidem, p. 6-9).

Após terminar de analisar o período nacionalista e as ditaduras militares, o MNR

explica que as políticas de 1985 de estabilização econômica teriam sido táticas para

restabelecer a “funcionalidade da institucionalidade do regime democrático” (ibidem, p. 10).

Assim, o partido se caracterizaria pela adoção de um “método dialético”, que permitiria

entender a relação entre a tática e a estratégia para buscar uma espécie de liberação do povo

boliviano. Medidas mais claras realizadas pelo MNR que visaram a liberação seriam: as leis

de participação popular e de descentralização, a reforma educativa e a reforma constitucional

(que declara a Bolívia pluriétnica e multicultural), o Bono Sol, a Lei Inra (que institucionaliza

as terras comunitárias indígenas), etc.

Neste sentido, o MNR deixa claro e reivindica, na sua exposição, os seus laços

históricos com o passado do país. Sua análise da colônia, da independência e da Revolução

de 1952 reverbera teses desenvolvimentistas que serão mais tarde reapresentadas nos

documentos do bloco oficialista, como a luta contra o imperialismo e contra uma elite

econômica e política sem projeto nacional, ou como a necessidade de se industrializar o país

e diversificar a economia. Contudo, discorda radicalmente da aplicação destas teses

nacionalistas para a análise do período neoliberal e não enxerga como “imperialistas” as

forças externas que atuaram no país nestas décadas, mas sim como parcerias justas que

ajudavam o desenvolvimento do país (como se pôde observar na sua caracterização do

processo de “capitalização”).

Page 108: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

98

De maneira geral, dois pontos chamam a atenção com relação à forma como a

oposição lida com os eventos do passado. A primeira é a falta de apelo popular da ideologia

neoliberal, mesmo se analisados os discursos dos próprios partidos que promoveram políticas

neoliberais. O MNR não defende os elementos mais difusos do que seria uma popularização

da “filosofia monetarista”, como o culto ao indivíduo self-made, o rechaço aos funcionários

públicos que “mamam nas tetas do Estado”, a uma estrutura estatal ossificada e burocratizada

que precisa ser modernizada, etc. (Hall, 1979).

Ou seja, diferentemente da Inglaterra de Thatcher, houve inexistência de uma

“hegemonia” neoliberal. Este fenômeno se expressa na forma como o MNR analisa o

passado: sua visão reflete uma tradição anti-imperialista e desenvolvimentista, muito distante

da visão conservadora inglesa. Mesmo com relação ao balanço do período neoliberal a ênfase

do MNR recai no nas políticas sociais que efetivaram (Bono Sol, Lei Inra, etc.) e não na

“desburocratização” do aparato estatal (ainda que este elemento esteja presente). A relativa

fraqueza da ideologia neoliberal na Bolívia pode estar ligada a elementos que já apontamos,

como a fraqueza das elites políticas e econômicas do país, mas também pode estar

especificamente ligada à inexistência de um Estado que garanta políticas sociais, que tenha

amplas competências, o que torna o discurso do Estado sufocante, cobrador de impostos

excessivos, bastante deslocado.

Um segundo ponto, mais importante, diz respeito à quase completa ausência de

referências sistemáticas ao passado. Estas agrupações eram conscientes que seus opositores

“colocavam a culpa” das grandes mazelas históricas do país em suas costas e acabaram por

construir mais uma estratégia de desqualificação do discurso oponente do que de

reconstrução dos fatos do passado de modo que estes lhes parecessem mais favoráveis (com a

importante exceção da AAI).

Mesmo o MNR recorre ao passado mais como forma de resgatar sua importância

histórica e justificar as suas opções políticas recentes, do que como forma de procurar

respostas para o presente. Sua proposta de visão de país guarda pouco do MNR histórico

nacionalista e anti-imperialista e muito do novo MNR “dialético”. O partido rechaça qualquer

ideia de dívida histórica:

Com preocupação vejo que muitos querem passar a conta a todos os bolivianos de 500 ou 181 anos. Quem vos fala não deve absolutamente nada ao passado, (...) então é injusto dizer: vocês já tiveram sua oportunidade, fora, agora é nossa vez. Não senhor. Isso é exclusão, isso é dominação, isso é privilégio e isso é censurável e detestável na democracia (MNR, 2007, p. 20).

Page 109: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

99

Neste sentido, a análise de desigualdades que se arrastam no tempo teria pouco a

oferecer. A oposição interpreta as reivindicações históricas do bloco popular com uma

espécie de “cantilena” ideológica, que não ofereceria “razões argumentadas”, mas somente

“afirmações repetidas sobre o ‘neocolonialismo’, o ‘neoliberalismo’, as ‘discriminações’, os

500 anos de exploração” (Lazarte, 2009, p. 80).

Gamal Serhan, constituinte do Podemos, acredita que esta referência ao passado por

parte do bloco da situação tem a ver com o que ele considera uma característica “caudilhista”

do governo de Evo Morales. “Um dos grandes problemas que temos com os caudilhismos é

que pensam que eles são os divisores de água da história. Tudo o que ocorreu antes deles não

serve, estava mal feito, e tudo o que ocorreu depois deles é uma grande maravilha”87.

Sem entrar no mérito sobre se a oposição deveria ou não ser responsabilizada

historicamente pelas mazelas sofridas pelos povos indígenas e pelos setores populares nas

últimas décadas (ou séculos), fato é que este setor não teve condições de criar pontes de

diálogo com o setor que o culpava. Ao negar a validade de um balanço do passado de forma

categórica, ele não consegue estabelecer um patamar comum de negociação que lhes traria,

possivelmente, mais vantagens no processo constituinte88.

2. Sujeito da soberania

Feitas estas considerações sobre a forma como as agrupações oposicionistas

interpretam a história do país, passemos a uma análise focada no seu entendimento acerca do

que seriam os sujeitos de soberania no país.

No geral, tal sujeito é em um primeiro momento identificado com um “povo

boliviano” que inclui a todos os setores da sociedade; ele seria diverso, mas prezaria acima de

tudo a sua unidade. O MNR apresenta uma tese que defenderia a “aliança de classes” no país,

ainda que a enfatize na interpretação de certos momentos históricos, como no contexto da

revolução de 1952 (MNR, 2007, p. 6). Porém, na análise da situação política atual, explicita o

87 Gamal Serhan, entrevista realizada em 3 de setembro de 2010. 88 Acredito que o programa do primeiro governo de Sánchez de Lozada (1993-1997) seria uma forma de reconhecer certa coerência e legitimidade nas reivindicações dos setores populares e incorporar isso em políticas de Estado, ainda que secundárias. Mesmo reconhecendo que a pobreza na Bolívia tem cara índia, Gamal Serhan julga este fato quase como uma fatalidade conjuntural, que de maneira nenhuma mereceria uma ação estatal que também tivesse ênfase étnica: “Os setores mais pobres deste país têm fundamentalmente ou traços indígenas, ou traços de índios ou traços de mulher. Então, é como um coquetel Molotov. Primeiro somos iguais, olhamos a nossa pele e somos iguais. Além disso, estamos igualmente estrepados, precisamos colocar a culpa em alguém. A quem vamos culpar? (…) Temos que colocar a culpa nos diferentes, nos brancos”. Entrevista realizada em 3 de setembro de 2010.

Page 110: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

100

que seria uma atualização desta tese: “queremos um país em que todos aceitem que são

bolivianos, que nossa riqueza (...) é a nossa diversidade, que dependemos uns dos outros para

viver em uma simbiose que beneficie a todos (...)” (ibidem, p. 30). Há aqui uma diferença

entre “aliança de classe” e “simbiose” entre as classes. A primeira foi formulada em um

contexto anti-imperialista, no qual a aliança de classes aparecia como uma forma de se criar

um sujeito coletivo soberano ativo (contraposto ao sujeito histórico marxista, o proletariado)

que seria capaz de efetivar as tarefas de desenvolvimento nacional. Já a segunda aponta para

uma coletividade passiva, na qual a soberania reside, mas que é acima de tudo delegada aos

atores políticos. A ênfase, aqui, está na necessidade de que os bolivianos se entendam como

iguais acima das suas divisões étnicas e sociais. Isto é, este é um discurso que está voltado

para impedir a ação “facciosa” interna, não para fomentar qualquer ação voltada para o

desenvolvimento nacional, entendido em oposição ao imperialismo.

De forma análoga, a APB lista a necessidade de que “as classes sociais estejam em

conformidade” na sociedade boliviana (APB, 2007, p. 9). Mas, provavelmente porque o

termo “classes” remeta muito fortemente à tradição marxista, a grande maioria dos grupos

políticos da oposição se refere a este fenômeno enfatizando a necessidade de um “pacto

social” (UN-Pol Achá, Podemos, APB), de uma “Bolívia unida e íntegra” (MNR-FRI) ou de

um “nós” como relação de pertencimento a uma comunidade política (UN-Lazarte). Estas

perspectivas enfatizam a necessidade de se criar condições para uma convivência pacífica

entre bolivianos, de se concertar interesses e de se reafirmar uma comunidade nacional que

compartilhe uma visão de futuro (UN-Lazarte, 2007, p. 11).

Neste sentido, a concepção de constituição que os setores oposicionistas possuem é a

de uma Constituição de consenso, na qual a identidade indígena e a identidade de

“oprimidos” não podem ser majoritárias, porque seriam necessariamente excludentes. Ao

identificar a linha ideológica do setor majoritário da constituinte como “étnico-indigenista” e

“andino-centrista”, ou seja, como uma agressão contra os que não se incluem como parte das

“nações originárias”, a oposição sugere que um consenso com base na formulação

plurinacional era nitidamente inviável (Lazarte, 2009, p. 82-85). Um processo constituinte

“consensual” na questão simbólica, portanto, passaria necessariamente por afirmar uma

“identidade nacional neutra”89, não indígena, ponto que não era negociável para a situação

89 Esta visão fica bastante clara com a afirmação de Jorge Lazarte: “Os excessos etnicistas da Nova Constituição Política de Estado, que segundo seus partidários ‘inclui’ os que sempre foram ‘exluídos’, termina excluindo ‘constitucionalmente’ a aproximadamente 40% da população que segundo o censo de 2001 não se reconhece em nenhuma das ‘nações originárias’. Neste sentido, pelo menos, a Constituição Política de Estado anterior era mais democrática, integradora e não discriminante” (Lazarte, 2009, p. 22).

Page 111: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

101

(lembremos que a constituinte foi uma pauta surgida justamente para afirmar esta identidade,

as outras tarefas do período anterior foram contempladas de certa maneira já pela troca de

governo).

A ideia da nação era, portanto, uma ideia de coletividade que ressaltava a união dos

bolivianos frente a uma postura sectária dos setores populares (exemplificada pela ideia da

plurinacionalidade). Essa é a ideia que está por trás do nome “Bolívia: uma nação” dado ao

documento do Podemos. Como argumentou Serhan:

(…) Você precisa manter um vínculo que faça com que todos se reconheçam iguais. Regionalmente, há uma forte carga na Bolívia, eu sou cochala [de Cochabamba], você é camba, você é tarijeño [de Tarija]. Por isso, na nossa perspectiva, sociologicamente, societalmente, o tema da nação é fundamental. E o plurinacional só consegue reconhecer o diverso, ressalta o que nos separa, não ressalta o que une. Para que se organiza um Estado? Para ressaltar o que une, não para ressaltar o que separa. Esta era a tarefa importante para a gente, era nossa oportunidade de concluir a construção da nação boliviana, de reafirmar a nação boliviana.90 De forma geral, a ideia de nação da oposição estava intimamente relacionada com a

ideia do Estado, já que este seria o legítimo sujeito executor da soberania. O Podemos

estabelece como uma das principais características da soberania política a “capacidade

suprema de ação e decisão sem nenhum tipo de submissão”. Segundo a sigla, ainda que a

soberania radique no povo, ela é “delegada aos seus representantes nos distintos poderes do

Estado” (Podemos, 2007, p. 8). MNR-A3 possui uma visão parecida e é mais explícito ao

especificar que o exercício da soberania está delegado aos três poderes do Estado

(Legislativo, Executivo e Judicial) e que “nenhuma pessoa que se possa atribuir a soberania

do povo comete o delito de sedição” (MNR-A3, 2007, p. 9).

Esta perspectiva é respaldada por considerações feitas por Jorge Lazarte (UN). O

constituinte define o problema da sociedade boliviana como um excessivo apego à ideia de

legitimidade e um insuficiente apego à ideia de legalidade. Neste sentido, a ideia da

representação política, essencial para aqueles que ligam o exercício da soberania política

exclusivamente ao Estado, seria pouco desenvolvida no país:

“Na Bolívia, não existe a ideia moderna de representação, mas sim a ideia de mandato. O mandato significa simplesmente ter um mandatário ao qual se diz o que deve fazer, e que não pode tomar decisões se não depois de ter consultado as suas ‘bases’. O eleito é somente uma correia de transmissão de decisões pré-existentes sobre as quais não tem nenhum poder de produzir compromissos nem de decidir. Nestas condições, é difícil que o sistema representativo possa funcionar. É um problema que vem do passado e que une muito fortemente com a autorepresentação e a fazer funcionar a política sem mediações. Cada

90 Gamal Serhan, entrevista realizada em 3 de setembro de 2010.

Page 112: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

102

grupo social acredita ser o povo e ali onde está o ‘representado’ está também o ‘representante’, como diria Rousseau. Como se sabe, o povo só existe quando vota, fora disso só existe no imaginário social e é facilmente manipulável segundo os interesses em jogo” (UN-Lazarte, 2007, p. 3).

As ideias apresentadas por Lazarte trazem um arcabouço teórico mais consistente para

interpretar as posições por vezes dispersas e ambíguas apresentadas pelas agrupações da

oposição. Tendo em vista o cenário das revoltas antineoliberais que antecederam a

constituinte, aqui o que se quer rechaçar é a “força das massas” de uma sociedade civil

considerada “pouco democrática”, que exige o cumprimento da lei por meios não legais, que

é “pouco tolerante, mas muito participacionista” e que é guiada pelo “‘privatismo’ dos seus

interesses”, “propensa a invadir o campo político” (ibidem, p. 5).

Também a reivindicação de um Estado capaz, frente a uma sociedade civil pouco

disposta a respeitar a legalidade que este impõe, tem como consequência lógica a aposta por

uma elite política renovada. Pois, se o Estado é aquele que deve executar a soberania, sua

agência precisa se plasmar em determinados atores políticos, aqueles que ocupam cargos no

Estado, os verdadeiros sujeitos executores da soberania. Mas a crise do Estado ocorrida entre

2000 e 2005 deixou tais atores completamente isolados e deslegitimados. Assim, a

constituição e o novo pacto social seriam oportunidades para pensar formas de reabilitação

dos operadores do Estado. Lazarte é categórico ao afirmar que muitos dos problemas

bolivianos não foram decorrentes da estrutura institucional do Estado, mas sim da forma de

atuação dos que estavam no Estado: “não foi a democracia que falhou na Bolívia, mas sim os

que governaram em seu nome e se aproveitaram dela” (ibidem, p. 7). Serhan também parece

concordar com essa tese, ao dizer que “a mudança que se necessitava na Bolívia não era das

instituições, mas sim da atitude das pessoas”91.

Se a “nação” ou a “pátria” foram termos utilizados pelos setores populares para lutar

contra o bloco de poder no período anterior, aqui eles são utilizados para reivindicar uma

unificação frente à dispersão e ao conflito colocado intrinsecamente no projeto da situação

(ao opor setores oprimidos e opressores). Sendo a nação um termo de mediação entre a

sociedade e o Estado, é possível pensar que os setores da oposição identificavam na força

normativa do termo o fortalecimento da autoridade do Estado, da ordem, da legalidade. Ou

seja, na disjuntiva entre Estado e nação, a categoria ativa de sujeito de soberania pende para o

91 Gamal Serhan, entrevista realizada em 3 de setembro de 2010.

Page 113: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

103

Estado (e para as elites políticas que o gestionam); pois uma “nação ativa” sem a ideia do

Estado seria uma sociedade nacional ativa92, ideia que estes setores combatem.

3. Projeto de novo Estado

Como não poderia deixar de ser, o projeto de novo Estado dos grupos da oposição é

um Estado que, por ser considerado o executor supremo da soberania, precisa ser fortalecido,

assim como os laços nacionais e a identidade boliviana. Por outro lado, suas análises também

apontam críticas ao Estado boliviano não somente por ele ser desacreditado (e por isso tão

frágil perante a “força das massas”), mas também porque seria “centralista” e seu sistema de

representação política estaria baseado somente em partidos, não permitindo uma expressão

política mais ampliada da sociedade. Duas medidas, portanto, são levantadas como resposta

ao diagnóstico do “centralismo autoritário”: a revisão da democracia representativa e a

implantação das autonomias departamentais.

Ao identificar o monopólio da representação pelos partidos, a primeira reivindicação

exige a incorporação de agrupações cívicas (comitês cívicos, câmaras de comércio e

indústria, associações sindicais, etc.) como mediadoras habilitadas no sistema democrático. A

APB é uma das organizações que mais fortemente respalda esta proposta, chegando a

denominar o atual sistema político como uma “ditadura de partidos” (APB, 2007, p. 3). Com

um argumento de tons corporativos, o grupo defende que as organizações e instituições

sociais - como “o Comitê Cívico de Santa Cruz, a Confederação de Empresários Privados, a

CSUTCB, a COB, os povos originários e suas organizações naturais” - teriam maior

representatividade que os partidos políticos. O fato destes grupos não terem “voz nem voto”

na democracia representativa boliviana seria a causa da crise desta (ibidem, p. 4). O MNR

também identifica uma limitação na representação via partidos, concordando com a tese de

que os comitês cívicos têm maior capacidade de convocatória que estes e que não reconhecer

isso seria uma demonstração de “miopia e cegueira” e, neste caso, não se poderia falar de

“democracia verdadeira” (MNR, 2007, p. 19).

A reivindicação de criação de um Estado com autonomias departamentais é, contudo,

mais abrangente e é abraçada por todos os partidos da oposição, com maior ou menor ênfase.

Mesmo Lazarte, que critica a formulação de “unidade na diversidade” pelo seu

“diferencialismo” e por não produzir necessariamente unidade (UN-Lazarte, 2007, p. 10),

92 Esta situação estaria próxima ao ideal do MNR na época da Revolução Nacionalista de 1952.

Page 114: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

104

admite que a reivindicação autonômica seria “democrática” (ibidem, p. 12). Assim, as

autonomias departamentais seriam defendidas tanto em um nível histórico-cultural, que

aponta as desigualdades sofridas pela região (como o faz a AAI de Vaca Diez), quanto em

um nível normativo, que enfatiza que as autonomias apontariam para uma descentralização

no poder e caminhariam para um aperfeiçoamento da democracia (como o faz o MNR-A3,

2007, p. 4).

O curioso é que há uma aparente contradição entre a identificação de um Estado

centralista e autoritário, que no governo do MAS-IPSP ainda se combinaria com um

“populismo conservador e antidemocrático” e um “estatismo econômico” (MNR-A3, 2007, p.

2), e a caracterização de uma autoridade estatal enfraquecida, que exige reforçar os laços de

identidade nacional. O primeiro fenômeno teria força centrípeta, o segundo, centrífuga.

Uma forma de interpretar esta contradição é pela demarcação das diferenças entre a

autoridade estatal (que seria a esfera da legalidade identificada por Lazarte) e a presença

estatal nas diversas esferas da vida social (nas políticas públicas, na economia etc.). Na

categoria “fortalecer o Estado”, entrariam tanto fortalecer sua autoridade quanto fortalecer a

sua presença, mas estas ações responderiam a problemáticas diferentes, ainda que

relacionadas. Desta forma, é possível enxergar coerência na proposta de fortalecer a

autoridade estatal, que estaria fragilizada frente a uma sociedade com pouco apego à

legalidade, e de criticar certo “estatismo” do MAS-IPSP, que estaria identificado com uma

ação estatal autoritária em esferas que deveriam ser deixados mais sob a responsabilidade da

sociedade (como a economia).

Outra forma de interpretar esta aparente contradição é pela contextualização da

trajetória histórica dos grupos que a propõem. Como operadores majoritários do Estado no

período anterior, eles sofreram com o questionamento da sua autoridade durante as

mobilizações antineoliberais. Assim, identificam a necessidade de fortalecer os operadores do

Estado, os executores da soberania. Mas os atuais operadores majoritários do Estado já não

são mais eles, ainda que eles ocupem algumas esferas do Estado (Executivos departamentais

e municipais, assentos no Legislativo e cargos no Judiciário). Paralelamente, estes atores

também estão fortemente ligados a algumas organizações da sociedade civil, como os

comitês cívicos, as câmaras de comércio e indústria, as federações de empresários, etc.

Assim, estes partidos se vêm na atualidade reféns de uma estrutura estatal que eles mesmos

alimentaram e que pouco privilegiava estas outras esferas do Estado ou da sociedade civil que

agora ocupam. A estratégia política encontrada foi fortalecer estas outras esferas, mas o

diagnóstico da fraqueza do Estado que haviam feito no passado se mantém. Portanto, a

Page 115: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

105

aparente contradição também seria um reflexo da relação conflituosa entre a interpretação

que estes grupos políticos fazem do seu passado recente (em que revoltas populares

impossibilitaram a estabilidade de seus governos) e seu interesse político imediato, que

reflete os caminhos encontrados para a manutenção e ampliação do seu poder político.

Por último, seu projeto de Estado é marcadamente “unitário”, porque se contrapõe a

um divisionismo identificado nas propostas de plurinacionalidade, que exacerbaria a

identidade indígena e causaria a fragmentação do país. Tal aspecto será trabalhado no

próximo item.

Assim, tais partidos construíram esta perspectiva de um Estado unitário, com

autonomias e descentralizado a partir da projeção de um tipo de situação política que queriam

evitar. Seus projetos combatiam: a supremacia do indigenismo (MNR); o populismo

conservador antidemocrático e anárquico (MNR-A3); o socialismo retrógrado e estatista

(APB, MNR-A3); o centralismo (MNR-A3, MNR, APB, Podemos); e uma sociedade carente

de confiança e identidade nacional (UN-Lazarte, Podemos), na qual o que é chamado de

corporativismo domine (Podemos, AAI e UN-Lazarte).

4. Autonomias indígenas

O debate sobre o caráter plurinacional da Bolívia também perpassa a maioria das

contribuições dos grupos da oposição. Somente dois grupos (MNR e MNR-FRI) definem o

Estado boliviano como “multinacional”, graças à existência das nações originárias. Os

demais partidos utilizam o termo “nação” ou “nacionalidade” se referindo somente à nação

boliviana. A denominação “Bolívia: uma nação” da apresentação do Podemos faz uma crítica

indireta às concepções de plurinacionalidade. A UN (tanto o documento de Lazarte quanto o

de Pol Achá) demonstra explícita preocupação com os termos “territórios” e “nações”

indígenas, pois pressuporiam soberania e direito à secessão. A maioria dos partidos

(Podemos, UN, MNR-A3) caracteriza o Estado boliviano como dotado de pluralidade étnica

e cultural, mantendo a mesma caracterização adotada a partir da reforma constitucional de

1994.

Aqui, mais uma vez, o combate a um estatismo autoritário (que exige descentralização

política) se choca com a denúncia de forças políticas parciais, corporativas, definidas pela

etnia ou pela classe, que impedem uma identidade nacional forte e a construção de um projeto

coletivo. Neste sentido, há uma crítica do projeto do bloco oficialista em dois patamares. Para

Lazarte, a “nova estrutura de poder de base étnica” (Lazarte, 2009, p. 89) teria, por um lado,

Page 116: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

106

uma justificação simbólica e constitucional baseada nas “nações originárias” e, por outro,

buscaria na prática a “consolidação de uma nova elite de poder” (ibidem, p. 91), a instalação

de uma “nova hegemonia” (entendida de maneira negativa, como dominação).

Lazarte identifica uma diferença profunda entre o reconhecimento de uma sociedade

multicultural, que ele defende, e o estabelecimento de um Estado plurinacional, que

representaria esta estratégia de conquista e controle de poder por via étnica. Ele acredita que

mesmo teóricos que propuseram a existência de “Estados plurinacionais”, como Will

Kymlicka, se referiam muito mais a uma estrutura societal plural de um determinado país

(como Espanha ou Inglaterra) do que à sua estrutura estatal propriamente dita (entendendo o

Estado como um conjunto de instituições). E, ainda quando estes Estados estruturam esta

pluralidade em suas instituições, acabam por optar por uma estrutura estatal “federal” e com

“base cidadã” e não “étnica” (Lazarte, 2009, p. 93). Assim, para Lazarte, a proposta

plurinacional boliviana ultrapassaria a garantia de direitos indígenas e apontaria a

diferenciação étnica como base de funcionamento do Estado mesmo. O “salto da sociedade

multicultural ao Estado plurinacional” causaria um amálgama entre sociedade e Estado, que

seria próprio dos processos totalitários, pois o social estatizado seria um “recurso permanente

de poder” (ibidem, p. 90).

Neste sentido, não há muitas polêmicas nas propostas de visão de país do MNR,

MNR-FRI, AAI e Podemos com relação à incorporação de direitos indígenas já consolidados

internacionalmente (livre-determinação, auto-gestão, territorialidade, etc). AAI e Podemos

enfatizam, contudo, que recursos naturais do subsolo ou não-renováveis são de inteira

responsabilidade do Estado, mesmo que sejam encontrados em territórios indígenas

(Podemos, 2007, p. 73 e AAI, 2007, p. 18). Podemos, MNR e MNR-FR incluem a

possibilidade de autonomias indígenas no âmbito municipal, e AAI a estende a todos os

âmbitos, desde que seja estabelecida por meio de um referendo.

A APB não cita em nenhum momento a necessidade de se garantir ou ampliar os

direitos indígenas. Mas é o MNR-A3 o mais radical nas suas considerações sobre direitos

indígenas: mesmo a posse comunitária de terras, inaugurada oficialmente a partir da

implantação das TCOs em 1996 (com a Lei Inra), deveria ser abolida (MNR-A3, 2007, p.

14).

De maneira geral, contudo, há o reconhecimento de direitos indígenas como direitos

de minorias, desde que estes não “se imponham” ao resto da população. Assim, garantir que

indígenas tenham seu sistema de autoridade e de justiça, como a anterior constituição previa,

é completamente diferente de ter uma forma de eleição diferenciada de representantes de

Page 117: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

107

povos indígenas para o Legislativo (com a criação das circunscrições especiais indígenas),

como a constituição aprovada em 2009 estabelece, por exemplo. Direitos indígenas

entendidos como “minorias” eram aceitos desde que não alterassem significativamente a

ordem do que seria uma maioria “mestiça”. Para a oposição, era impossível entender a

identidade plurinacional como uma identidade “guarda-chuva” do conjunto da população, por

isso ela seria necessariamente excludente e contrária ao princípio de cidadania.

Esta visão faz parte de uma perspectiva mais ampla de progresso e modernidade que

está em tensão com a ideia de autonomias indígenas. Para Serhan, por exemplo, as

autonomias indígenas só responderiam à problemática dos povos indígenas do Ocidente

boliviano, e que a tendência natural do processo é que estas reivindicações, de caráter mais

simbólico, acabem desaparecendo e que estes povos optem por uma forma de gestão

territorial mais “moderna”, como a autonomia municipal:

Você acredita que um povo, deixa ver... aqui muito perto temos os yuquis, com 212 pessoas. Você acredita que eles estão interessados em se autogovernar, quando não têm o que comer? (...) Em dez ou quinze anos, (...) a autonomia indígena vai desaparecer e terminará sendo subsumida pela autonomia municipal. Eu acredito que, a longo prazo, os próprios povos indígenas se darão conta de que a autonomia municipal é muito mais efetiva que a autonomia indígena. A autonomia indígena é mais um símbolo que hoje necessitavam indicar (...).93

Portanto, há uma visão majoritária na oposição de que os direitos indígenas, ainda que

precisem ser garantidos, são direitos em vias de extinção. Não faz sentido ordenar um Estado

com base ampla nestes direitos, porque o processo “natural” seria que estas identidades

antigas sejam substituídas por formas mais “modernas” de relação com o Estado e com as

suas instituições (cidadania, territorialidades, não identidades culturais ou étnicas). Assim, a

reafirmação destas identidades da forma como ela é feita teria muito mais relação com uma

luta pelo poder vazia de conteúdo substantivo (“mentirosa”, “símbolo”) do que uma

proposição legítima de reordenamento estatal. Pensando na metáfora das linhas de

demarcação entre o Estado e as autonomias indígenas, é como se a esfera da autonomia

indígena devesse ser garantida (já que internacionalmente respaldada), mas minimizada e

enfraquecida por representar um anacronismo, só recuperado pela sua força simbólica.

5. Política econômica

93 Gamal Serhan, entrevista realizada em 3 de setembro de 2010.

Page 118: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

108

A maioria das agrupações da oposição propõe uma política econômica “mista”, que

seria de mercado, de Estado e social. Segundo esta proposta, o Estado teria responsabilidade

em três áreas: na propriedade e controle de recursos naturais estratégicos, na promoção de

políticas públicas sociais (saúde, educação, previdência etc.), e na regulação da área

econômica, o que garantiria condições adequadas para o investimento e para a “dinamização

da economia” (MNR, 2007, p. 14). A intervenção estatal da economia deve ocorrer quando

“o mercado não é suficiente para solucionar seus desequilíbrios”, assim o Estado deve

aparecer “como ente regulador e de fomento, através de apoios técnicos e financeiros”

(Podemos, 2007, p. 19). Ou seja, a intervenção teria majoritariamente um caráter positivo

para as empresas privadas. Outra forma de intervenção seria um sistema tributário mais

rigoroso que no período neoliberal anterior, mas que “não abuse se apropriando

irresponsavelmente do excedente econômico gerado pela empresa nacional ou estrangeira”

(AAI, 2007, p. 10).

De forma geral, estes grupos dizem rechaçar uma economia completamente de

mercado, porque este não resolveria os problemas de desigualdade social no país (AAI, p. 10;

MNR-FRI, p. 9). Mas eles também rejeitam, de maneira mais detalhada e enfática, o

chamado “estatismo”, que seria caracterizado por uma situação na qual o Estado estaria

“metido em todas as áreas de produção” (AAI, 2007, p. 10), pela necessidade de submeter

“grande parte das atividades econômicas” a “propriedade e controle do Estado” (MNR, 2007,

p. 13). O grande receio apontado pelos setores da oposição frente ao modelo estatista é a

garantia da segurança jurídica das empresas privadas. A necessidade de se garantir a

segurança jurídica para investimentos estrangeiros e nacionais para se gerar crescimento

econômico é mencionada enfaticamente pelo MNR - que acredita que o tema mereça

“hierarquia de preceito constitucional” (MNR, 2007, p. 14) - pelo MNR-A3, pelo Podemos e

pela APB.

Do ponto de vista dos recursos naturais, as diversas agrupações da oposição parecem

concordar que, apesar do Estado deter a propriedade dos recursos naturais bolivianos não

renováveis, sua exploração deve ser feita preferencialmente por meio de acordos e parcerias

público-privadas (MNR, MNR-FRI, AAI, Podemos). Este modelo faria o Estado boliviano se

beneficiar de tecnologias estrangeiras no manejo dos seus recursos, o que geraria um lucro

maior que seria revertido à sociedade boliviana por meio de impostos. Neste sentido, não se

critica a gestão de hidrocarbonetos do governo de Evo Morales em si, pois seria uma parceria

entre o Estado boliviano, que tem os recursos naturais, e o capital estrangeiro, que tem o

Page 119: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

109

capital para investir e a tecnologia para explorar94. O que se criticaria no governo de Evo

Morales seria a forma abrupta com a qual se nacionalizou os recursos, prejudicando a

“segurança jurídica” do empresariado nacional e estrangeiro no país. De qualquer maneira, a

retórica da parceria público-privada se afasta da retórica dos próprios setores próximos ao

governo, que defendem uma política econômica mais desenvolvimentista, no sentido de

apontar para a não dependência dos capitais estrangeiros para extrair os recursos naturais.

De maneira geral, a fórmula apresentada pela oposição é a de um Estado que, no

âmbito da política econômica, é pouco ativo. Apesar de reconhecer as tarefas de bem-estar

que este Estado deve cumprir, não há nenhuma indicação de como aumentar

consideravelmente os recursos do Estado para fazê-lo. Tampouco a reivindicação por tarefas

de bem-estar devem ser tão “radicais” a ponto de ameaçar a segurança jurídica das empresas

ou criando um sistema tributário tão “rigoroso” que se aproprie “irresponsavelmente do

excedente econômico gerado” pelas empresas estrangeiras. Apesar de retoricamente apoiarem

a industrialização do país, também há poucos indicativos de como esta deve ser feita,

principalmente no que diz respeito à industrialização dos recursos naturais, já que a parceria

com empresas estrangeiras parece um modelo já bastante satisfatório que não precisaria ser

modificado.

Situação

As agrupações que aqui genericamente chamo de “situação” também representam um

campo ideológico mais de esquerda que os de oposição, sendo sua postura geral apoiar o

“processo de mudança” iniciado a partir do governo de Evo Morales.

Para facilitar a análise, separei três principais projetos políticos que se expressam no

interior destes documentos: “indigenismo”, “nacionalismo” e “marxismo”95. De maneira

geral, estes projetos mantêm linhas de continuidade com as “temporalidades” sociais

abordadas no Capítulo 2 e que conformaram o bloco histórico popular apresentado no

94 Como consta no documento do MNR: “Os fundamentos do decreto nacionalizador [de maio de 2006, promulgado por Evo Morales] descansam na continuidade do processo de capitalização, mudando unicamente a forma dos contratos, mas que, ao final, continua sendo uma empresa com participação transnacional, o que evidentemente é bom para todos de todos os pontos de vista porque, como já havíamos mencionado anteriormente, este processo de capitalização fez com que a Bolívia pudesse obter maiores ingressos, produtos dos impostos destas empresas, assim como da sua exploração” (MNR, 2007, p. 39). 95 Mantenho estes três termos entre aspas neste capítulo porque não se trata de um indigenismo, de um nacionalismo ou de um marxismo “puros”, mas sim se trata de projetos com linhas mais “indigenistas”, “nacionalistas” ou “marxistas” apresentados no contexto da constituinte boliviana. Portanto, todas as vezes que estes projetos são colocados com artigos definidos, eles são citados em aspas, para deixar claro de que se trata de um fenômeno específico.

Page 120: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

110

Capítulo 3. Contudo, como foi esclarecido anteriormente, o momento constituinte exigiu dos

atores políticos bolivianos a adoção de linguagens universalistas, que tivessem pretensões de

hegemonia. Estes documentos, portanto, não apresentam uma linguagem de reivindicação

corporativa, mas tentam abordar os grandes problemas do país com projetos mais

universalistas. Assim, os três projetos gerais que identifiquei – “indigenismo”,

“nacionalismo” e “marxismo” - são expressões mais “universalistas” das temporalidades

anteriores. Contudo, como também foi observado anteriormente, a própria assembleia

constituinte era uma resposta a uma demanda especificamente indígena de reconhecimento.

Portanto, a maioria das agrupações da situação assume uma identificação muito forte com o

“indigenismo”.

O primeiro projeto seria o de um indigenismo mais puro, uma postura política que

parte das nações originárias, que são identificadas como o sujeito de soberania. Este projeto

tem relação com a temporalidade indígena, mas não apresenta explicitamente o que

anteriormente (no capítulo 2 e 3) identificamos como o setor indígena do altiplano paceño,

que possuía uma visão radical de contraposição de nação indígena e nação boliviana. Isso

ocorre porque este setor se apresentou nas mobilizações de 2000 a 2005 com uma

interpelação radical do Estado boliviano, que visava uma transformação radical das suas

bases por meio do questionamento da sua institucionalidade, inclusive com a criação de um

“exército” indígena. Assim, a resolução institucional via Assembleia Constituinte da questão

do “poder indígena” deixa esta expressão radical do indigenismo um tanto isolada. Logo,

veremos que os que mais defendem uma perspectiva “indigenista” na constituinte são os

setores do Altiplano sul e das terras baixas, que foram justamente os setores que compuseram

a marcha de 2002 pela Assembleia Constituinte. O indigenismo da constituinte, portanto, irá

apresentar uma ideia de uma autonomia indígena radical, que vê no Estado boliviano um ente

com o qual se pode “pactar” uma convivência mútua entre esta autonomia e o restante da

sociedade boliviana. Trata-se de uma tentativa de reeditar a ideia do “bom governo” inspirado

no pacto colonial, no qual se exige o respeito às formas de governo e territorialidades

próprias dos povos indígenas. Assim, a postura deste projeto com relação ao Estado boliviano

é tática e pragmática, este aparece como uma exterioridade com a qual é necessário

estabelecer pactos para uma convivência harmoniosa. Contudo, não se reconhece uma

coletividade boliviana (seja pelo “povo” ou pelo “Estado”) como uma esfera de identidade

acima da identidade indígena. De maneira geral, pode-se ver o documento do Ayra-Conamaq

como uma expressão quase integral deste projeto, mas o documento do MAS-IPSP, em

determinados momentos, também apresenta muitos elementos dele (provavelmente porque a

Page 121: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

111

sigla incorpora em suas fileiras muitos deputados indígenas), assim como o documento da

CN-Pátria Insurgente e MOP.

O segundo projeto identificado é o de um nacionalismo boliviano mais tradicional e

ele tem ampla relação com as temporalidades camponesa, operária e urbano-popular

apresentadas anteriormente. De forma geral, este nacionalismo defende tarefas de

desenvolvimento nacional como a industrialização do país, a nacionalização dos recursos

naturais, a garantia de direitos de saúde, educação, previdência etc. Aqui, identifica-se muito

fortemente a ideia de um sujeito nacional boliviano que demanda do seu Estado uma maior

proximidade, que sirva aos interesses populares. Este projeto também é fortemente anti-

imperialista e seu principal adversário unificador é a ideia da “antipátria”, que materializa os

interesses que surgem do exterior ou do interior da nação que prejudicam a totalidade do

povo boliviano. Pode-se dizer, portanto, que este projeto representa certa continuidade com o

nacionalismo de 1952, anteriormente representado pelo MNR. Contudo, este projeto também

é aquele que mais fortemente apresenta as preocupações com a estabilidade do governo.

Portanto, acaba também abordando aspectos relativos ao fortalecimento da autoridade estatal,

e não somente da ação estatal (via tarefas de desenvolvimento), que não estavam presentes

nas “guerras” antineoliberais. Este projeto nacionalista pode ser amplamente identificado no

documento do MAS-IPSP, mas também nos documentos do MOP, ASP-Tapia, ASP-Vargas e

MBL. Estes dois últimos grupos representam características nacionalistas mais “puras”,

apesar de terem sensibilidades com relação aos povos indígenas. Deste grupo, o MBL possui

uma preocupação especificamente institucional, seu grande problema é efetivamente a

reunificação entre o Estado e a sociedade boliviana.

O terceiro projeto apresenta um acento mais marxista e ele tem relação com as

temporalidades operária, urbano-popular e indígena em suas vertentes mais radicais. Tal

perspectiva vê o Estado boliviano como tático e questiona duramente a perspectiva do MAS-

IPSP de conformar um governo “de todos”, já que a constituição de um Estado com estas

características impediria avançar para a superação do capitalismo. O grande adversário deste

grupo seria a classe dominante, que pode se expressar de maneira étnica ou como

“antipátria”, mas se expressa principalmente de maneira econômica. Com relação a esta, não

é possível estabelecer acordos. Neste sentido, o grande sujeito de soberania para este projeto

seria um sujeito nacional parcial, o proletariado urbano e rural. Em uma perspectiva mais

ortodoxa, este projeto questiona duramente a situação por não defender o fim da propriedade

privada e a expulsão das transnacionais do país; mas em uma perspectiva que incorpora certo

indigenismo, este marxismo defende a maximização de um projeto de poder popular por meio

Page 122: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

112

do fortalecimento das coletividades autogovernadas camponesas, indígenas ou mesmo

urbanas. Representam este projeto marxista a CN-Pátria Insurgente (com enfoque também

indigenista), e MCSFA e AS (mais ortodoxos).

É muito importante ressaltar que esta separação de projetos foi feita com a intenção de

facilitar a análise e a identificação de tendências no interior deste bloco que, à primeira vista,

parece contar com propostas muito parecidas. A grande maioria das agrupações expressa

mais de um destes projetos, o que demonstra de certa maneira o quanto estas perspectivas

estão entrelaçadas. De maneira geral, há uma preponderância dos dois primeiros projetos, de

certo nacionalismo indigenista, que faz com que a grande maioria convirja para a proposição

de um Estado Plurinacional como forma de “descolonizar o país”, mas que deve efetivar

diversas tarefas de bem-estar e desenvolvimento. Assim, o projeto “marxista” mais puro é

minoritário e ganha pouco respaldo nos documentos gerais da situação durante a Assembleia

Constituinte.

Isso ocorreu provavelmente porque o principal processo de síntese das diversas forças

políticas que compunham a situação não ocorreu no interior da constituinte mesma, mas de

forma paralela e sem incluir de maneira orgânica movimentos urbano-populares ou sindicais

operários. Desde 2004, as principais organizações indígenas e camponesas do país (Conamaq,

Cidob, CSUTCB, FNMCB-BS, CSCB) começaram a se preparar para o processo constituinte

e conformaram o chamado Pacto de Unidade. Elas passaram a se reunir com frequência a

partir da convocatória da constituinte em março de 200696 e sua proposta de texto

constitucional de maio de 2007 efetivamente anunciou os principais artigos que definiam o

Estado boliviano na futura constituição. Aproximadamente metade dos constituintes do

MAS-IPSP eram ativos ou estavam comprometidos com as organizações que compunham o

Pacto de Unidade97.

96 O processo é relatado com detalhes por Adolfo Mendoza, atual senador pelo MAS-IPSP que foi assessor do Pacto de Unidade durante a constituinte. Ele explica que o Pacto de Unidade nasce formalmente a partir de um encontro social ocorrido em Santa Cruz em 2004, que formula um documento chamado “Por um Pacto de Unidade”. Apesar de este encontro ter contado com a participação de “bairros populares, organizações não-governamentais, um conjunto de atores urbano e rurais”, as organizações que cumpriram com o mandato do pacto foram CSUTCB, Cidob, FNMCB-BS, CSCB e Conamaq. “O mandato expresso era construir propostas para a Assembleia Constituinte. Todas estas propostas foram formalmente sistematizadas entre março e junho de 2006 (...). A metodologia aplicada foi a de fazer uma matriz na qual em uma coluna estavam as coincidências e em outra coluna estavam os elementos problemáticos. Então, tudo o que era coincidente entrava diretamente na proposta e se discutia o que era problemático. Houve várias reuniões em Vinto, em Cochabamba e em Santa Cruz antes do início dos trabalhos da Assembleia Constituinte, entre março e julho de 2006. E aí é quando sai o documento final de propostas do Pacto de Unidade para a Assembleia Constituinte”. Entrevista realizada em 4 de setembro de 2010. 97 Segundo Juan Carlos Pinto, em entrevista realizada em 29 de abril de 2011.

Page 123: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

113

Para Adolfo Mendoza, que foi assessor do Pacto de Unidade durante o processo

constituinte e que é atualmente senador pelo MAS-IPSP, o pacto se conformou como um

“movimento social por uma assembleia constituinte” e foi a verdadeira força dirigente da

constituinte. Segundo ele, muitas das discussões que foram realizadas nas comissões da

constituinte não surgiram dos constituintes e das forças políticas que estes representavam,

mas de demandas que estavam sendo discutidas organicamente no interior Pacto de Unidade.

Um dos exemplos que Mendoza apresenta sobre este processo foi a ideia de conformação das

21 comissões da constituinte, que teria sido formulada pelo pacto como uma “maneira de

conseguir os dois terços, mas ao mesmo tempo era uma maneira de contemplar

absolutamente todas as propostas do Pacto de Unidade de maneira específica”. Esta proposta

teria sido assumida posteriormente pelo MAS-IPSP e depois pela constituinte como um todo.

Assim, a definição da existência de uma comissão denominada “visão de país” foi algo teria

surgido do interior do Pacto de Unidade98.

Raul Prada, constituinte do MAS-IPSP que foi membro da comissão Visão de País,

confirma a ideia de que a atuação da bancada da situação na comissão sempre foi guiada pelo

documento do Pacto de Unidade, mas que havia certa expectativa em se aprofundar os

debates durante a constituinte. Contudo, o clima de tensão no interior da comissão não

permitiu um debate aprofundado com base nas novas contribuições trazidas pelos

constituintes e “a decisão que se toma – já não podíamos escrever um documento que

expressasse o que estávamos colocando – [foi que] o melhor que podíamos fazer era defender

os 11 primeiros artigos do documento do Pacto de Unidade. E fizemos isso, os onze

primeiros artigos que estão na constituição vêm do documento do pacto”99.

De certa maneira, o documento do Pacto de Unidade representou um consenso geral

das forças da situação, que não estava presente em nenhum dos documentos de nenhuma

destas agrupações políticas. Juan Carlos Pinto, que foi durante o período final da constituinte

o diretor da Representación Presidencial para la Asamblea Constituyente (Repac)100, acredita

que o Pacto de Unidade acabou representando o “eixo estratégico” que os assembleístas

próximos ao governo acabavam seguindo não tanto por terem total conhecimento dele, mas

98 Adolfo Mendoza, entrevista realizada em 4 de setembro de 2010. 99 Raul Prada, entrevista realizada em 25 de agosto de 2010. 100 A Repac foi instituída pela presidência no primeiro mês do governo de Evo Morales. Segundo Pinto, ela foi inicialmente pensada como uma organismo de “Estado”, que tinha como missão preparar as discussões para a Assembleia Constituinte por meio de fóruns, oficinas e seminários organizados nos nove departamentos bolivianos. Durante a assembleia, contudo, e com as dificuldades em se identificar um organismo “neutro de Estado” dentro da forte polarização que vivia o país, a Repac acabou sendo identificada como um organismo mais de “governo”. Ao final, acabou fornecendo apoio técnico para a Assembleia Constituinte, produzindo os jornais e informes que os constituintes levavam para as suas regiões. Entrevista em 21 de agosto de 2010.

Page 124: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

114

porque era um “referencial forte” em uma situação de ausência de outros projetos mais

“universalistas” e de muito apego aos mandatos locais:

O Pacto de Unidade era um eixo. Mas, para além do eixo, havia um mandato local, que era mais importante que o pacto. (...) O pacto foi um esforço importante, de alguns níveis de direção que tinham maior consciência desta visão em longo prazo. (...) Não era um documento assumido e pelo qual se lutou. Mas, (...) era um referencial forte, mais do que coincidências ideológicas. Ainda que todos, digamos, no fundo coincidiam. Mas mais concreta era a demanda da ‘minha comunidade, minha zona, minha circunscrição, aí vou lutar por isso’. Então, encontrar uma ideia de país demorou muitos meses.101

Assim, ele identifica o primeiro momento da constituinte como um momento caótico

de discussões em várias esferas, uma “etapa de reconhecimento” da maioria enquanto tal, os

constituintes traziam um mandato de base muito forte e representavam uma imensa

pluralidade. O elemento unificador destes constituintes era o governo de Evo, “sem elaborar

muita teoria, (...) os que estão a favor e os que estão contra Evo”102.

Os documentos apresentados pelas agrupações políticas favoráveis ao “processo de

mudança” durante a constituinte têm uma relação dinâmica com a formulação do Pacto de

Unidade. Por serem de fevereiro e março de 2007, eles antecedem o documento final de

proposta constitucional do pacto, finalizado somente em maio, e, portanto, não apresentam

algumas das sínteses políticas que se havia conseguido naquele momento. Assim,

internamente ao que seria o setor camponês e indígena, tais documentos apresentam posições

mais “puras” e menos decantadas dentro do processo de construção do consenso do Pacto.

Por outro lado, têm a vantagem de trazer uma perspectiva muito relevante que está ausente do

pacto: a perspectiva urbana, que se traduz tanto no projeto nacionalista quanto no projeto

marxista elencados anteriormente. Esta pequena apresentação do papel político do Pacto de

Unidade nos serve, contudo, para entender o movimento geral de formação de acordos entre

setores com projetos tão distintos dentro da Assembleia Constituinte.

1. Reconstrução do passado

Como foi argumentado anteriormente, a reconstrução e a reapresentação de eventos

passados são centrais na disputa por hegemonia e no estabelecimento de uma certa imagem

da nação em uma determinada sociedade. Neste sentido, a primeira grande diferença que se

101 Juan Carlos Pinto, entrevista realizada em 21 de agosto de 2010. 102 Juan Carlos Pinto, entrevista realizada em 21 de agosto de 2010.

Page 125: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

115

percebe em relação aos partidos da oposição é a relação que os grupos da esquerda

estabelecem com a história. Dos oito grupos, nenhum deixa de fazer algum tipo de balanço

histórico, e sua avaliação geral é majoritariamente negativa tanto da colônia, quanto da

Independência, da Revolução de 1952 e do período neoliberal. Isso significa que estes grupos

adotam a tese de que há uma continuidade histórica entre todos estes períodos, refletindo uma

perspectiva “descolonizadora”. Como vimos, esta interpretação da Bolívia, que tem como

grande expoente Rivera Cusicanqui (1993), identifica a centralidade da contradição colonial

entre explorador branco e explorado índio na sociedade boliviana de hoje.

Como não poderia deixar de ser, portanto, a colônia com seu aspecto social e político

– o do genocídio dos índios – é o tema mais abordado, somente o MBL não se refere

especificamente a este período e a este fenômeno. O regime imposto aos índios pelos

espanhóis foi categorizado como: “império do terror” (MAS-IPSP), “genocídio” (CN, ASP-

Vargas), “a noite escura” (Ayra-Conamaq), “começo da nossa desgraça” (MOP) e

“extermínio (...) da população indígena” (AS, 2007, p. 39). Humberto Tapia, da ASP, saúda a

participação na assembleia constituinte de “irmãos indígenas que por séculos foram

humilhados e massacrados em sua própria casa” (ASP-Tapia, 2007, p.1) e MCSFA reconhece

a importância de se identificar estes últimos 500 anos de opressão (MCSFA, 2007, p. 12).

A referência às lutas anticoloniais de Tupac Katari e Tupac Amaru também foram

frequentes, sendo feitas por MAS-IPSP, CN, Ayra (Conamaq), MOP e ASP (Tapia). São

estes os setores que possuem um perfil mais indígena, ou seja, que se identificaram como

representantes de comunidades e povos indígenas, ainda que também se digam representantes

de outros setores (camponeses, classes médias, trabalhadores, etc.).

Uma maioria dos partidos da situação fez um retrato do aspecto econômico da

colônia, o “saqueio de recursos naturais” (MAS-IPSP, 2007, p. 3; CN, 2007, p. 3; MOP,

2007, p. 4; AS, 2007, p. 39). Trata-se de uma concepção ampla de colonialismo, que mistura

aspectos econômicos com sociais, que identifica o saqueio com a exploração violenta do

trabalho dos povos indígenas. Ela só está ausente dos documentos do Ayra-Conamaq, do

MBL e do MCSFA. Diferentemente do MNR, que faz uma análise do período colonial muito

mais focada nos seus aspectos econômicos – ela seria “a origem da dependência e do

subdesenvolvimento da América Latina” (MNR, 2007, p. 2) – os partidos da situação

percebem o regime econômico colonial intrinsecamente ligado com o sofrimento histórico

dos povos indígenas.

O período republicano, iniciado a partir da Independência, é visto como um período

político de continuidade. Contudo, algumas agrupações afirmam que a Independência em si

Page 126: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

116

não teria sido de toda crioula e que os índios e as classes populares teriam participado dela,

sendo despojados de poder político no regime republicano que se instalou (Ayra-Conamaq,

MOP, ASP-Tapia, AS). Ou seja, a Guerra da Independência faz parte da narrativa de

sofrimentos impostos pelos espanhóis. Mas a república teria sido, sem lugar a dúvida, um

período de opressão, uma “troca de amos” (MOP, 2007, p. 5). Coerente com a sua

perspectiva mais institucional, o MBL começa a sua reconstrução histórica ao abordar a

República, período em que o Estado boliviano é fundado separado da sociedade (MBL, 2007,

p. 3).

Uma maioria dos grupos ligados aos povos originárias (MAS-IPSP, MOP, Ayra-

Conamaq e CN) incluem em seus documentos críticas diretas a Simón Bolívar, que no seu

curto período como presidente do país decretou uma série de decretos que aboliam a

propriedade comunitária e as autoridades indígenas. Tal abordagem do patrono da nação é

diametralmente oposta ao do MNR, que inicia suas considerações sobre a história do país

com uma epígrafe de Bolívar - “Que meu nome não pereça junto com esta pátria” (MNR,

2007, p. 2) – e que o retrata como um herói “imbuído de espírito independentista, de

democracia, de justiça e de igualdade” (MNR, 2007, p. 5).

Ainda que um pouco mais mediada, a avaliação da Revolução de 1952 também é

negativa. O único grupo que tem uma postura favorável à revolução é o MOP, que cita as

suas conquistas – reforma agrária, reforma educativa, nacionalização das minas e voto

universal – como conquistas do povo organizado e mobilizado (MOP, 2007, p. 7). Os demais

grupos que se manifestam sobre o evento denunciam ou o caráter limitado das

transformações que impôs, ou o seu caráter uniformizante e monocultural que prejudicou os

povos indígenas.

Do ponto de vista econômico, o MAS-IPSP reclama da incapacidade da revolução de

industrializar o país, ainda que tenha nacionalizado as minas e tenha adotado um modelo de

capitalismo de Estado: o país continuou seu papel de exportador de produtos primários no

mercado mundial (MAS-IPSP, 2007, p. 5). Assim, foi possível a rearticulação de uma nova

oligarquia criada a partir do Estado (ibidem, p. 30). Numa linha mais marxista, o MCSFA

questiona o capitalismo de Estado inaugurado a partir de 1952, reafirmando que este modelo

não deveria ser retomado na assembleia constituinte, e nem seria do interesse dos setores

populares, já que o “capitalismo de Estado”, justamente por ainda ser capitalismo, teria

gerado mais “exploração” (MCSFA, 2007, p. 15-16).

Mesmo as medidas “democratizantes” como a reforma agrária e o sufrágio universal

mereceram críticas do campo da esquerda. MAS-IPSP, CN e AS criticaram a reforma agrária

Page 127: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

117

porque, ao mesmo tempo em que oferecia terras aos índios, condicionava-o ao rompimento

dos vínculos comunitários e impunha uma identidade camponesa alheia à realidade

originária. CN denuncia nesta imposição identitária um “claro objetivo homogeneizador

classista” da Revolução de 1952 (CN, 2007, p. 46). Já o sufrágio universal é denunciado

como fraude, já que corresponderia a um tipo de democracia demagógica, com o aparato

estatal sendo controlado por uma burguesia oligárquica (AS, 2007, p. 16). OMAS-IPSP

reconhece o avanço democrático do voto universal, mas este não teria resolvido “a

participação efetiva dos sujeitos sociais coletivos: povos indígenas, classes sociais, regiões

nas definições estatais (...)” (MAS-IPSP, 2007, p. 30).

Já com relação ao neoliberalismo, as críticas levantadas coincidiam na análise de que

o fenômeno representava uma reedição de situações passadas. Para David Vargas (ASP), o

neoliberalismo boliviano se trata, na realidade, de um neocolonialismo, com a exportação das

riquezas naturais sem que elas sejam industrializadas no país (ASP-Vargas, 2007, p.2). O

MAS-IPSP liga o contexto neoliberal a uma neo-oligarquia – criada às sombras das ditaduras

militares – que se subordina ao capital transnacional e cujas escolhas levaram a uma

reafirmação do modelo primário exportador, no qual a participação estatal na renda dos

recursos naturais era mínima (MAS-IPSP, 2007, p. 7-9, p. 31).

Em resumo, o campo da esquerda presente na constituinte formula uma narrativa

bastante coerente do passado boliviano, que aponta para uma agenda que “refunde”

completamente o Estado e que possa resolver as contradições antigas da sociedade boliviana.

O período colonial é apontado como a grande fonte das contradições do país, sendo os demais

períodos meras reedições deste. Neste sentido, elementos que em outros contextos nacionais

latino-americanos poderiam ser julgados progressistas – como o projeto liberal bolivariano ou

a revolução nacionalista do século XX – são condenados pelo seu caráter “neo-colonizante”.

O neoliberalismo seria somente a “cereja do bolo” desta narrativa de contínua opressão

colonial, ao fenômeno não é abordado na sua especificidade. A reconstrução histórica feita

por estes documentos é um dos elementos mais consensuais do campo favorável ao governo,

ela demonstra, portanto, uma razoável coesão nos repertórios de interpretação dos problemas

bolivianos apresentados por estes setores.

2. Sujeito da soberania

De maneira ampla, o sujeito coletivo da soberania identificado pelos grupos que

apoiam o governo é formado pelos setores sociais que protagonizaram as manifestações

Page 128: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

118

antineoliberais entre 2000 e 2005, pois são estes os que impulsionaram o “processo de

mudança”. Contudo, é na análise dos sujeitos de soberania propostos por estas agrupações

que fica mais claro a distinção proposta anteriormente entre posições mais “indigenistas”,

“nacionalistas” e “marxistas”. Cada um destes projetos irá “ler” estas mobilizações de

maneira diferente, atribuindo soberania a diferentes sujeitos coletivos.

Para o primeiro projeto, que tem como objetivo político a reconstituição territorial dos

povos indígenas “ancestrais”, o sujeito principal da soberania seriam as nações originárias.

Apesar de reconhecer a importância da luta conjunta dos “movimentos sociais e povos

indígenas originários para defender a terra e os recursos naturais” (Ayra-Conamaq, 2007, p.

7), o documento do Conamaq se coloca de forma contundente como porta-voz dos povos

indígenas:

Nós, os filhos e filhas dos territórios milenares do Qullasuyu e dos territórios das grandes nações guarani, chiquitana, moxos, que ancestralmente ocupamos o território hoje chamado Bolívia, proclamamos a vigência e o exercício pleno de nossos direitos como nações originárias e povos indígenas (...) (Ayra-Conamaq, p. 11).

Conamaq prevê formas integrar os interesses das nações originárias com os que não

as compõem, como a aplicação do princípio da interculturalidade103, mas não define um

sujeito nacional coletivo e muito menos de fala em seu nome. Sua relação com a totalidade

do povo ou com o Estado boliviano é de acordo político, como se fosse uma entidade

paralela. Conamaq percebia a Assembleia Constituinte como “novo pacto social” que

necessariamente teria que garantir a “restituição do governo originário” e seus direitos, assim

como a “reconstituição territorial do Qllasuyu”, já que o Estado boliviano vigente nunca teria

levado em conta as nações indígenas para definir a sua configuração (ibidem, p. 12). A ideia

do “pacto” tem convergência com o que entende Pedro Nuny, que acompanhou o processo

constituinte como representante da Cidob104:

A constituição estabelece que é um Estado plurinacional boliviano. Nós, os mojeños, somos parte deste Estado, estamos comprometidos, pactuamos ser parte deste Estado. (...) Nós originários legítimos desta terra aceitamos esta modalidade porque temos que pôr um nome a esta nova nação para nós, que se perfila em uma convivência harmônica e única dentro do território nacional.105

103 Interculturalidade é definida como “Promovendo, respeitando e assumindo a identidade, os valores e os princípios dos ‘outros’. Conscientizando de que vivemos em um território comum e que, apesar de nossas diferenças, devemos buscar a equidade e complementaridade de ações com o objetivo de melhorar nossa qualidade de vida (construir unidade na diversidade)” (Ayra-Conamaq, 2007, p. 10). 104 Atualmente é deputado na Assembleia Plurinacional por uma circunscrição indígena especial em Beni. É representante do povo indígena mojeño, que se concentra nos departamentos de Santa Cruz e Beni. 105 Pedro Nuny, entrevista realizada em 18 de agosto de 2010.

Page 129: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

119

Neste sentido, Nuny defende que a ideia de que os povos indígenas são “pré-

existentes” ao Estado boliviano, são os “legítimos donos do país”106. Mas, como podemos

ver, sua visão é absolutamente pragmática e não enxerga qualquer alternativa fora deste todo

mais geral boliviano. Ainda assim, a ideia de nação boliviana é exterior a estes setores, que

identificam “Bolívia” nos casos mais extremos como um nome opressor, que significa a

imposição de uma territorialidade alheia que precisa ser superada107, e, nos casos menos

extremos, como uma identidade paralela, que é exterior à indígena, mas que ainda assim

subsiste nas suas memórias e vivências. Como coloca Nuny:

Os povos indígenas também lutaram pela República nos distintos eventos bélicos de defesa de nosso território boliviano. Provavelmente sejam os que mais vidas sacrificaram (...) Por isso é que nos sentimos bolivianos também, este é o nosso outro nome, outro termo em que nós nos reconhecemos.108

Portanto, trata-se de identidades que são paralelas. A “nação boliviana” aparece como

uma figura reconhecida, da qual eventualmente se pode fazer parte, mas não exatamente

como indígena (os indígenas são pré-existentes a ela), mas como indivíduos que participaram

dos mesmos eventos históricos.

A expressão do que seria um projeto mais nacionalista não aparece de forma “pura”,

mas misturada com a fórmula indígena. Na realidade, ao invés de considerar somente os

povos e nações originários como sujeitos de soberania, identifica-se um elemento extra,

popular e nacional, que faz com que esta coletividade possa ser ampliada para algo

equivalente ao “povo boliviano”. Esta ampliação traz, portanto, uma mudança qualitativa.

O MAS-IPSP é o principal grupo que faz este movimento. Seu documento é intitulado

“Visão de país a partir das nações indígenas e originárias, dos movimentos sociais

organizados e da sociedade civil” (MAS-IPSP, 2007, p. 1). O novo Estado que surgirá da

assembleia constituinte precisaria, segundo esta agrupação, contar com o protagonismo de

106 Pedro Nuny, entrevista realizada em 18 de agosto de 2010. 107 Este debate fez parte da Comissão Visão de País, na qual chegou a ser proposto por parte da CN-PI um redesenho territorial completo da Bolívia, como relata Raul Prada: “Nós dizíamos que se tem que existir um Estado Plurinacional, tem que existir um novo ordenamento territorial. Que significa isso? Significa romper com a herança da geografia política colonial, que havia pensado um ordenamento territorial precisamente para controlar os ayllus, para romper as markas e os suyos (...). A herança republicana de conformar departamentos e províncias forma parte desta herança colonial. Então, se não rompemos a administração do espaço, não criamos outro ordenamento territorial, não podemos falar de Estado Plurinacional e tampouco de autonomias (...). E isso obviamente era apoiado por Conamaq, (...), porque tinha uma luta muito clara, que era a reconstituição dos suyus, ou seja, a reterritorialização das comunidades. [A proposta] não era apoiada pelos companheiros do MAS, porque era um tema muito delicado, envolvia os seus departamentos, as suas províncias, seus cantões (...)”. Entrevista realizada em 25 de agosto de 2010. 108 Pedro Nuny, entrevista realizada em 18 de agosto de 2010.

Page 130: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

120

“38 povos, nações e nacionalidades de terras altas e baixas (...), junto aos homens e mulheres

mestiços e brancos patriotas” (ibidem, p. 2). Assim, o MAS-IPSP constrói um sujeito coletivo

que pode ser entendido como o povo boliviano como um todo, um sujeito nacional, mas

restringe a categoria de “brancos e mestiços” aos patriotas, o que deixa implícito que aqueles

considerados “não-patriotas” não deveriam ser protagonistas no país.

O MOP se apresenta de maneira muito parecida e se define como “um projeto político

das nações originárias, dos setores populares do campo e das cidades, cumprindo o mandato

do povo e em representação destes na Assembléia Constituinte” (MOP, 2007, p. 2). Seu

documento traz um uma “relação de fatos como provas da nossa acusação contra os autores

dos delitos sofridos por nossos povos”, por “mais de cinco séculos de dominação e opressão”

(ibidem, p. 2). Neste sentido, o MOP também representa certa coletividade nacional, mas

uma que exclui terminantemente os autores da opressão perpetrada durante estes cinco

séculos contra os povos indígenas.

O documento de Tapia, da ASP, faz igualmente referência a um sujeito coletivo

boliviano que se coloca contra uma “antipátria”. Após dedicar a sua contribuição aos

lutadores das guerras antineoliberais (ponchos rojos, sem-terra, cocaleiros etc.), ao presidente

Evo Morales, ao vice-presidente “irmão anti-imperialista, combatente revolucionário” Álvaro

Garcia Linera, aos heróis do passado, ele declara que:

“(...) Agora é o momento de (...) sermos protagonistas das mudanças revolucionárias que vão ser implementadas na nova Constituição Política do Estado, na qual todos nós, livres em nossos atos como Assembleístas Soberanos, somos e seremos responsáveis pelo futuro da Pátria, que esta não caia em uma mão maçônica, antipátria e divisionista, porque todos queremos uma pátria unida. (...) o conjunto de povos e nações marcham para a construção de uma nova sociedade que represente nossas mais profundas aspirações, que satisfaça nossas necessidades que nos dignifique e encha as gerações atuais e futuras de valores e princípios de justiça, equidade, igualdade e liberdade. Refundar Bolívia significa delinear a nova sociedade, a mesma que deverá ser construída por todos. Esta é a primeira vez que o povo definirá em que tipo de sociedade quer viver” (ASP-Tapia, 2007, p. 1. Destaques nossos).

Para Tapia, os sujeitos históricos são construídos com base nos povos e nações

oprimidas e eles compõem a verdadeira pátria, a totalidade do povo, que no momento

histórico da assembleia constituinte se enfrenta com uma “antipátria”, que só quer dividir o

país.

Com uma linha mais institucional, o MBL identifica uma dicotomia central na

situação política da assembleia constituinte: aqueles que querem modificar o Estado e aqueles

que querem conservá-lo. Do lado dos que querem modificar o Estado está o povo, que

assumiu o Poder Executivo nas eleições de 2005 e agora assume a maioria no Poder

Page 131: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

121

Constituinte (MBL, 2007, p. 8). Tal feito seria absolutamente importante, porque em toda a

vida institucional boliviana, 181 anos, o Estado foi distante da sociedade. Assim, o “processo

de mudança” traz o Estado para perto da sociedade pela primeira vez na história.

O documento da ASP de Vargas difere dos demais por propor uma espécie de postura

humanista, no qual os seres humanos deveriam ser vistos como iguais: “ensinaram-nos a ver

as diferenças, ele é branco, ele é negro, ele é rico, e ele, pobre, e nos esquecemos que em

essência somos todos iguais”. O regionalismo, a corrupção, a injustiça e a discriminação

seriam consequências da acentuação destas diferenças; sendo os “partidos neocoloniais que

governaram o país desde a sua fundação” os perpetuadores de tais males (ASP-Vargas, 2007,

p. 4). Portanto, Vargas se coloca dentro desta esfera política que ataca um adversário

“neocolonial” comum, mas que enfatiza a totalidade do povo boliviano sem se utilizar de

categorias que o dividiriam como as diferenças econômicas, étnicas ou regionais.

O adversário comum identificado como “antipátria” é o que define de forma geral este

projeto mais nacionalista na constituinte. Ele remete imediatamente a um ideal de pátria

boliviana ausente nas perspectivas mais indigenistas. Esta ideia de “nação inconclusa” remete

aos ideais nacionalistas de 1952, que pretendia superar os ressábios coloniais a partir da

reafirmação da nação “real”. Macário Tola, que foi constituinte de La Paz pelo MAS-IPSP,

identifica esta expectativa no projeto constitucional:

Até agora não houve nação boliviana. Inclusive o Estado de 1952 não era um verdadeiro Estado, porque o Estado incorpora a sociedade, mas o Estado que nasceu em 52 exclui a sociedade. (...) Quando dizemos que em 1826 nasceu a república na Bolívia, essa república não inclui a ninguém, somente às elites que concentram o poder, o poder político, econômico e social. Quem era de uma determinada linhagem tinha direito a mandar matar, escravizar. Posteriormente, (…) nasce o Estado de 52, o Estado benfeitor, rompendo as estruturas coloniais. Esse era o objetivo, mas não ocorre assim.109

Para Tola, o termo “nação boliviana” seria caracterizado pelo fato de não excluir a

ninguém, em contraposição ao “povo”, que para ele faria referência a somente um setor

social. Portanto, a nação não exclui, mas exige que se “acabe com a colônia”. Assim, a partir

da nova constituição política, o Estado incorporaria a sociedade pela primeira vez em toda a

história republicana, pois representaria todos os setores desta.

Já para perspectiva mais “marxista” apresentada na constituinte, o sujeito da soberania

é popular e tem definição econômica. Ele é, portanto, mais “estreito” do que o sujeito

nacional apontado pelo projeto nacionalista. O “povo boliviano” não é definido somente pelo

109 Macario Tola, entrevista realizada em 23 de agosto de 2010.

Page 132: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

122

seu “patriotismo”, mas também pela posição ocupada na esfera da produção. Assim, os

opressores do povo boliviano também são as elites econômicas, e não somente aquelas

“antipatrióticas”.

Em uma linha que mistura o indigenismo com o marxismo, a CN-PI incorpora

elementos socialistas na sua análise ao se definir como agrupação que também luta contra o

capitalismo, para além do imperialismo e do colonialismo. Seu sujeito coletivo inclui a classe

trabalhadora e sua unificação tem potencial libertador:

“Nós estamos conscientes de que o sujeito da nossa história é diverso. Em primeiro lugar, são os povos e as nações originárias, donos ancestrais destes territórios. Depois, são os trabalhadores, a classe trabalhadora. Mas também são os setores médios e progressistas. Cada um destes sujeitos coletivos tem sua própria ideologia e convergem em um só projeto de liberação, porque todos foram vítimas da exploração, da dominação e da discriminação colonialista, capitalista e imperialista. Somente haverá um processo genuíno de liberação e descolonização quando estas forças convirjam em uma só energia. (...) Agora temos a certeza de que este povo diverso, ou melhor dito, esta fusão de povos e nações oprimidas são uma só, indivisível e indestrutível” (CN-PI, 2007, p. 3. Destaques nossos).

Também com inclinação marxista, o MCSFA defende que “o Estado tem que ser

conduzido pelos pobres, pelos camponeses, pelos indígenas, pelos originários, pela classe

popular” (MCSFA, 2007, p. 8). O grupo acredita que as ações do Estado devem seguir os

interesses de uma maioria, contrapondo-os aos da classe dominante.

De forma equivalente à CN-PI e MCSFA, a AS indica em muitos momentos um

sujeito histórico genericamente composto pelas classes populares oprimidas e exploradas:

trabalhadores do campo e da cidade, operários e indígenas (AS, 2007, p. 2). O objetivo

histórico da ação destes atores seria a liberação do sistema capitalista (ibidem, p. 1) e eles

combateriam diretamente na Bolívia os interesses dos “oligarcas e burgueses” (como a

propriedade privada), e da “direita neoliberal vende-pátria” (ibidem, p. 1-3).

As agrupações políticas da situação se posicionam de maneira ambígua quando

relacionam os seus sujeitos de soberania com o Estado. O mesmo fenômeno verificado com

os partidos da direita, cuja análise dos problemas do Estado boliviano era duplamente

marcada pelas experiências do passado e do presente, ocorre também com os da esquerda.

Por um lado, o sujeito coletivo identificado é o sujeito que se posicionou contra o

Estado no passado, durante as mobilizações antineoliberais. Ele seria formado por um povo

boliviano idealizado, que teria toda a legitimidade de questionar o Estado, identificado com o

colonialismo e com o “republicanismo” (entendido como continuação do colonialismo). Tal

antiestatismo se torna mais enfático nas posturas mais indigenistas ou socialistas. Conamaq,

Page 133: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

123

ao priorizar acima de tudo a reconstituição das nações originárias, vê no Estado boliviano

uma exterioridade, um ente com o qual se negocia sua soberania. As posições socialistas mais

radicais, como a MCSFA e AS, rejeitam completamente a ideia de um Estado que comporte

todos os setores da sociedade boliviana e que, portanto, seja governado por um pacto social

de consenso110.

Neste sentido, a administração do Estado precisaria estar toda nas mãos das forças

populares, que o dirigiriam a uma transição socialista. Mas estas forças populares seriam as

detentoras supremas da soberania, e isso fica claro quando o MCSFA propõe, por exemplo,

que o direito à insurreição seja constitucionalizado, “quando [o povo] observa que seus

governos não estão administrando o Estado em função dos trabalhadores e dos pobres”

(MCSFA, 2007, p. 10). Desta forma, as memórias das mobilizações recentes contra os

governos neoliberais determinam certo ideal de soberania popular.

Por outro lado, a perspectiva mais “nacionalista” se inclina mais para a ideia de uma

constituição de consenso. Ainda que o documento do MAS-IPSP não explicite isso

claramente, o MCSFA cita indiretamente seu apelo por consenso (ibidem, p. 17) e AAI diz

concordar com esta visão: “(...) tenho que coincidir com Roman Loayza [constituinte do

MAS-IPSP, que apresentou parte do documento sobre visão de país] de que não devemos

brigar entre bolivianos e que a nova Constituição Política do Estado deve expressar todos os

bolivianos” (AAI, 2007, p. 12). Os apelos do MAS-IPSP podem ser entendidos se levarmos

em conta de que este era o partido que representava o governo e que carregava a

responsabilidade pela conclusão da Assembleia Constituinte. Eram apelos, portanto, voltados

para a conjuntura imediata e que já não viam a governabilidade como algo irrelevante para

viabilizar o seu projeto.

Neste caso, o ideal de soberania popular foi deslocado para dentro da esfera do

Estado, que passa a ser entendido pelo MAS-IPSP como um grande representante de todas as

110 MCSFA: “(...) ontem estávamos escutando de algum companheiro que ‘esta Assembleia tem que ser uma Assembleia de confraternidade, de concertação. Nesta Assembleia, todos têm que estar’. (...) Eu gostaria de perguntar aos empresários que estão na Assembleia Constituinte a respeito de seus ingressos. Em quantas vezes superam os ingressos do trabalhador, o salário básico? (...) quinhentas vezes, mil vezes? (...) Como um líder social vai pedir a aliança entre os exploradores e os explorados? Isso é absurdo!” (MCSFA, 2007, p. 17). AS: “Dentro do campo da esquerda, alguns políticos vêm seguindo a direita neoliberal vende-pátria, fazendo com que os trabalhadores e o povo oprimido acreditem que dentro do âmbito do capitalismo vigente (...) serão transformadas as bases estruturais do nosso país. Os mais radicalóides dessa esquerda propõem a Refundação do Estado sob a consigna da reforma total da constituição para um novo pacto social-constitucional, implementando (...) conceitos como o estado plurinacional, revolução democrático-cultural, democracia inclusiva para todos, capitalismo andino-amazônico (...), definitivamente são concepções retrógradas, conservadoras, elitistas, reformistas, de uma pseudo esquerda que no final co-legislará e co-governará com a direita” (AS, 2007, p. 2).

Page 134: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

124

forças sociais111. Assim, a agrupação política, já representando o bloco do poder, começa a

reivindicar um fortalecimento da autoridade estatal em si, da ideia de que o Estado condensa

todos os interesses sociais e que seria, portanto, um sujeito de soberania. O MAS-IPSP passa

a recuperar um discurso que antes era próprio dos grupos de direita, causando conflitos

dentro do campo político que o apoia, mas que não compõe diretamente o governo.

3. Projeto de novo Estado

A maioria das agrupações que conformam a situação é favorável à proposta de criação

de “Estado plurinacional” (AS, ASP-Tapia, CN-PI, MAS-IPSP, MBL, MCSFA, MOP112).

Como nos pode adiantar a análise das reconstruções históricas feita por estas agrupações, a

ideia da “plurinacionalidade” é formulada como uma resposta ao diagnóstico de que se vive

em um Estado colonial e monocultural, daí a necessidade de se romper com relações de

dominação baseadas na etnia (colonialismo) e de se institucionalizar a diversidade cultural do

país. Contudo, para além deste diagnóstico geral, a expressão “Estado plurinacional” ganha

diferentes conteúdos e adjetivos complementares (“comunitário”, “unitário”, “social”)

dependendo do projeto político da agrupação que a define.

Na perspectiva mais indigenista, a plurinacionalidade está ligada à reconstituição das

nações indígenas bolivianas. Esta visão está implícita no documento do Conamaq, que propõe

a formação de um “novo Estado Plurinacional de Qullasuyu Bolívia” (Ayra-Conamaq, 2007,

p. 12). Trata-se da restituição dos territórios das nações originárias, seu direito à livre-

determinação, jurisdição, gestão territorial, política etc. Esta dimensão estaria muito ligada à

ideia de autonomia indígena.

Por outro lado, Gabino Apata, dirigente do Conamaq, defende que, para que haja

plurinacionalidade de verdade, a perspectiva dos povos indígenas deve ter participação

efetiva na estrutura institucional do Estado boliviano: “a visão, os povos indígenas originários

111 Em uma entrevista publicada em 2007, Álvaro Garcia Linera, já vice-presidente da Bolívia defende que o governo do MAS-IPSP seria “o primeiro governo que, em séculos, se preocupa com a construção de um Estado no sentido weberiano e hegeliano do termo, como representação da vontade e dos interesses gerais da sociedade” (Garcia Linera apud Svampa; Stefanoni, 2007, p. 154). Em sua leitura, partidos e vanguardas não substituem o potencial universalista da sociedade, mas o Estado apresenta uma “marca [huella] objetivada” desta universalidade (ibidem, p. 164). 112 MBL e CN-PI comentam sobre a característica “multinacional” da Bolívia (CN-PI, 2007, p.73; MBL, 2007, p. 14). A AS menciona diversas vezes a existência das nacionalidades indígenas e a necessidade de incorporá-las no sistema institucional, mas atenta que a fórmula “Estado plurinacional” pode ser uma forma de “dissimular” um “co-governo” com a direita por não apontar por uma transição socialista clara (AS, 2007, p. 2). O documento da ASP de Vargas é o único que se coloca contra a ideia de plurinacionalidade, por dotar as nacionalidades indígenas do direito de “se separar” (ASP-Vargas, 2007, p. 5).

Page 135: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

125

têm que impactar, é isso que eles esperam”113. Um exemplo do que seria esta “visão” seriam

os direitos do meio ambiente, da “mãe-terra”. Também dirigente do Conamaq, Rafael Quispe,

durante um seminário em agosto de 2010, reclamou que o governo não estaria

implementando o “Estado Plurinacional” porque não estaria respeitando os direitos da “mãe

terra” (toda a política econômica da Bolívia continuava se baseando na indústria de

extrativista) e dos povos indígenas (em especial com relação ao direito de consulta previsto

pela Convenção 169 da OIT).

Assim, a plurinacionalidade estaria fortemente relacionada ao aspecto comunitário e

participativo do Estado, que conteria certas tensões, já que desloca o sujeito da soberania da

estrutura formal do Estado para as estruturas comunitárias e sociais de poder. Ou seja, o

governo da “mudança” precisa agir sempre consultando e pactuando com os setores sociais

que lutaram pela “mudança”.

Esta visão de plurinacionalidade como uma descentralização específica, que favorece

esferas comunitárias, pode ser vista no documento da CN-PI, que defende a construção de

“micro poderes”, “formas de poder local que podem ser denominadas também de governos

locais, autogovernos originários, governos comunais, poder popular, estruturas de autoridades

originárias, etc.” (ibidem, 2007, p. 66). Isso permitiria uma liberação que seria ao mesmo

tempo “classista e nacional” (ibidem, p. 5), sendo que “nacional” faria referência às nações

originárias. Esta proposta estaria ligada a uma reestruturação territorial radical, proposta pela

CN-PI na Comissão Visão de País, que extinguiria os departamentos e restituiria os territórios

indígenas originais114.

A AS também têm uma perspectiva parecida comunitarista e de reconstrução das

instituições indígenas originárias (seu documento se intitula “Por uma pátria comunitária e

socialista”), mas seu enfoque é mais marxista. A agrupação propõe a criação de um “Estado

Social em transição ao Socialismo, com os operários, os camponeses e setores populares; só

esta aliança de vanguarda e força física belicosa permitirá construir um texto constitucional

progressista, avançado e revolucionário” (AS, 2007, p. 3). Assim, a ideia de

plurinacionalidade aparece no seu documento, mas não tem a mesma centralidade no seu

projeto como no projeto mais indigenista.

Também a visão de “Estado plurinacional” que emana do projeto mais nacionalista é

rica em significados e não se associa somente à questão indígena. A formulação plurinacional

deste projeto condensa a necessidade de se pensar uma totalidade estatal que possa responder

113 Gabino Apata, entrevista realizada em 23 de agosto de 2010. 114 Ver depoimento de Raul Prada sobre esta proposta na Nota 110.

Page 136: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

126

aos “abismos estruturais que foram o obstáculo da integração” (MAS-IPSP, 2007, p. 34).

Assim, “a sutura destes abismos estruturais que estão separando a sociedade boliviana passa,

portanto, pela articulação das duas dimensões do conflito: a dimensão multicultural ou

multinacional da realidade, e a dimensão multi-institucional ou multicivilizatória do regime

político” (Garcia Linera apud ibidem, p. 34). Isso explicaria o caráter do Estado, que deve ser

plurinacional e descentralizado, porém unitário. Portanto, para este grupo, a

plurinacionalidade teria também um apelo unificador.

A caracterização de Adolfo Mendoza sobre a plurinacionalidade nos ajuda a entender

a ampliação que se faz do conceito neste eixo menos “indigenista”. Para o ex-assessor do

Pacto de Unidade, a “plurinacionalidade” representa principalmente a ideia de que o

“nacional é plural”, como contraposição a uma ideia homogênea da nação. Assim, “o

nacional plural” não se esgotaria “no indígena”, esta seria uma compreensão “reduzida”. A

pluralidade incluiria outras formas de identificação política, para além da comunidade

indígena, como a identidade regional ou departamental. Neste sentido, tanto as autonomias

indígenas quanto as municipais, regionais e departamentais comporiam a organização

territorial desta pluralidade. Para Mendoza, a nova normatividade “plurinacional” trouxe para

a Bolívia um “novo pluralismo político”, que já não é representado pela estrutura partidária

anterior, mas sim pelas tensões (sociais, regionais e étnicas) entre os próprios setores que

apoiam o governo e “no interior do próprio MAS-IPSP”.115

Esta concepção de plurinacionalidade está relacionada à proposta de criação de um de

quarto poder no Estado boliviano: o Poder Social. Segundo a maioria das agrupações que o

propuseram, este poder seria composto por representantes dos movimentos sociais e povos e

nações indígenas (eleitos por voto direto ou por usos e costumes) e que fiscalizariam as ações

dos demais poderes, de maneira independente (MAS-IPSP, 2007, p. 36; MOP, 2007, p. 15;

ASP, 2007, p. 4; MBL, 2007, p. 26). O poder social representa uma demanda radical pela

incorporação dos setores mobilizados durante as “guerras neoliberais” na estrutura do Estado,

sem com isso subordinar estes movimentos à lógica estatal. Na realidade, esta visão traz uma

desconfiança com relação ao Estado e pretende subordiná-lo à lógica dos movimentos

sociais, em especial à iniciativa já consolidada do Pacto de Unidade. É diferente, contudo, das

perspectivas mais indigenistas porque tenta expressar uma soberania que emana de um “povo

boliviano”, portanto expressa uma totalidade nacional, e não uma soberania que emana das

nações originárias, como propõem as visões indigenistas mais radicais.

115 Adolfo Mendoza, entrevista no dia 4 de setembro de 2010.

Page 137: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

127

O projeto mais “nacionalista” do MAS-IPSP também enfatiza a necessidade de se ter

um “Estado social”, dimensão normativa do Estado não priorizada pelos setores mais

“indigenistas” ou comunitaristas, mas que compõe algumas propostas mais socialistas, como

a da AS. O adjetivo “social” é adicionado pelo MAS-IPSP à formulação do Pacto de

Unidade, que previa um “Estado unitário plurinacional comunitário”116, e traz uma

preocupação específica relacionada às tarefas estatais de promoção de bem-estar e de

“repartição equitativa de todos os recursos existentes e dos benefícios” (MAS-IPSP, 2007, p.

34). Isso pode ser explicado por uma feição mais “urbana” do MAS-IPSP em comparação

com o Pacto de Unidade, que traria a necessidade de abordar direitos sociais (previdência

social, trabalho, segurança pública, etc.) que ganham maior relevância nas cidades que no

campo. Mas também podemos vislumbrar a proposta de inclusão do “social” na

caracterização do Estado como uma ênfase nas tarefas sociais do Estado, que deveria desta

forma (via serviços) se aproximar mais da população. Neste sentido, tal agenda também

estaria muito presente nos setores camponeses e indígenas, que elencam uma série de tarefas

estatais no sentido de desenvolver a economia camponesa, apoiar a sua produtividade,

garantir a soberania alimentar do país, assim como garantir direitos relativos à educação,

saúde, previdência social, trabalho etc. no próprio documento do Pacto de Unidade de 2007.

Portanto, esta perspectiva que enfatiza as tarefas de desenvolvimento do novo Estado

não pretende dissolver seu poder pelas estruturas políticas da sociedade civil, como a

perspectiva do “plurinacional” como “reconstituição das nações originárias” ou como poder

social, mas sim prevê um Estado mais unificado (ainda que na sua pluralidade) e mais

atuante. O Estado se aproximaria da sociedade não tanto pela via política da participação e da

co-determinação de políticas públicas, mas sim pela via social dos serviços de bem-estar.

Outro aspecto enfatizado na caracterização do Estado pela maioria das agrupações

que apoiam o governo é a necessidade de se ter um “Estado Unitário” e “descentralizado”. De

maneira geral, esta afirmação surge para contrapor o projeto “divisionista” das elites

116 Na proposta apresentada em agosto de 2006, no início da constituinte, o Pacto de Unidade definia o Estado boliviano como “unitário plurinacional, pluriétnico, pluricultural, intercultural y plurilíngue, descentralizado em autonomias territoriais originárias e camponesas, em autonomias interculturais urbanas e em autonomias regionais” e definia a Bolívia como um país “independente, soberano, livre, participativo, social, comunitário e democrático” (Pacto de Unidad, 2006, p. 5). Já na proposta apresentada em maio de 2007, a definição do Estado era de “Estado Unitário Plurinacional Comunitário, livre, independente, soberano, democrático e social, que reconhece o pluralismo jurídico, político, cultural e lingüístico; descentralizado e com autonomias territoriais” (Pacto de Unidad, 2007, p. 1). A proposta do MAS-IPSP se diferencia por dotar o “social” da mesma importância de características centrais, como a plurinacionalidade. Isso pode ser visto na redação final da constituição (aprovada em referendo em 2009), que no seu Artigo 1º diz: “Bolívia se constitui em um Estado Unitário Social de Direito Plurinacional Comunitário, livre, independente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado e com autonomias. Bolívia se funda na pluralidade e no pluralismo político, econômico, jurídico, cultural e linguístico, dentro do processo integrador do país”.

Page 138: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

128

regionais bolivianas, que com seus projetos de autonomia estariam buscando a fragmentação

do país mais uma vez. Tal fenômeno já teria ocorrido no passado com as perdas territoriais. O

centralismo, na interpretação destes grupos, seria, portanto, uma característica ligada

exatamente a esta carência de visão total e nacional do território. Ele não se oporia ao

regionalismo, mas seria complementar a este:

“Dentro dos aspectos negativos do centralismo político, podemos apontar: crescimento e desenvolvimento desigual das regiões; postergação das aspirações regionais da maior parte do componente nacional; fator de dispersão e causa da perda e desmembramento territorial, por não ter tido a capacidade de assentar soberania nos confins do território nacional; planejamento centralizado e interpretação equivocada da realidade nacional; uso inadequado e irracional de recursos econômicos e financeiros, favorecendo somente alguns setores da população; exploração irracional dos recursos naturais renováveis e não renováveis; desenvolvimento desigual, o que trouxe como efeito o regionalismo departamental” (MAS-IPSP, 2007, p. 36).

O centralismo, portanto, é mais identificado com a imagem de um Estado

incompetente, incapaz de planejar suas ações e defender o seu território, do que com um

Estado centralizado e forte. Ele é mais identificado como causa de demarcações regionais

profundas do que como causa de diluição das regiões. Portanto, o problema que a esquerda

identifica no centralismo é ligeiramente diferente daquele identificado pela direita, que se

focava principalmente na injustiça histórica cometida contra os departamentos orientais, em

especial Santa Cruz. A identificação desta injustiça histórica seria, para o MAS-IPSP um

apelo vindo de uma elite carente de projeto nacional responsável tanto pelo centralismo como

pelo regionalismo117. Idealmente, a imagem que o MAS-IPSP traz para combater o

centralismo seria um Estado que valorizasse todas as regiões com igual peso, que as

desenvolvesse economicamente de forma equitativa, sem privilegiar a capital, mas tampouco

sem privilegiar outras regiões. O caráter diverso do seu projeto estatal se daria no âmbito dos

povos indígenas, não no das regiões.

Contudo, poucas são as agrupações da esquerda que se colocam contra a linha

doMAS-IPSP de respeitar o referendo autonômico feito no ano anterior, 2006, no qual a

opção pela autonomia departamental ganhou nos departamentos da meia lua (Pando, Beni,

Santa Cruz e Tarija). Somente a CN-PI e o Conamaq manifestaram críticas ao referendo e a

forma como ele foi realizado. Mas, ainda que a autonomia departamental seja

117 O documento do MAS-IPSP deixa claro que o projeto representado pelo regionalismo de Santa Cruz é protagonizado por elites que assumem “a defesa dos interesses transnacionais, especialmente das empresas petroleiras e exacerbam os sentimentos regionalistas, fundamentalmente contra o ‘Estado andino-cêntrico’ e atitudes racistas, sobretudo contra os indígenas migrantes das terras altas” (MAS-IPSP, 2007, p. 26).

Page 139: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

129

majoritariamente reconhecida, nenhum dos partidos de esquerda define o seu projeto de

Estado como “autonômico”, como o fazem os da direita.

4. Autonomias indígenas

Assim como a ideia de um “Estado plurinacional” é uma fórmula consensual, mas

com múltiplos significados entre as agrupações de esquerda, a defesa das “autonomias

indígenas” é muito presente em todos estes documentos, mas também contém definições

distintas.

Antes de trabalhar especificamente o conteúdo que estas agrupações dão às

autonomias indígenas, farei uma pequena apresentação sobre como o conceito é pensado em

conjunto com a plurinacionalidade e em contraposição ao status “multicultural” que a Bolívia

possuía até aquele momento. Para isso, sairei brevemente do debate da Assembleia

Constituinte e recorrerei a formulações teóricas sobre o tema recolhidas em entrevistas com

intelectuais ou em artigos que circularam no mundo acadêmico boliviano antes da

constituinte.

A formulação teórica que diferencia o multiculturalismo do plurinacionalismo tem

muita similaridade com aquela que defende a recomposição das nações indígenas. Para

muitos dos formuladores intelectuais da esquerda boliviana contemporânea, o

multiculturalismo deveria ser superado porque ele manejava uma lógica que se restringia ao

reconhecimento dos povos indígenas como “minorias”. Ou seja, o multiculturalismo seria

uma espécie de “racismo amável”, porque “toleraria” a diferença, mas não questionaria a sua

“identidade dominante”. Mas a ideia de plurinacionalidade romperia com isso, porque ela não

“incluiria” os indígenas no “velho Estado”, mas sim visaria “construir um novo Estado”118.

Assim, o “pluralismo emancipador” assumiria uma transformação institucional, daria “poder”

às nações indígenas, as incorporaria tanto na “tomada de decisões” quanto na “gestão”119.

Algumas perspectivas viam no plurinacionalismo um multiculturalismo aplicado às

suas últimas consequências (Garcia Linera, 2003; Tapia, 2007). Assim, a ordem

constitucional pós-1994 seria criticada pela sua carência de multiculturalismo e não pelas

deficiências inerentes à perspectiva multicultural. De qualquer forma, as críticas feitas ao

status quo político boliviano tinham conteúdo parecido, principalmente com relação à forma

restrita na qual a pluralidade era entendida:

118 Essa é a posição defendida por Adolfo Mendoza em entrevista realizada em 4 de setembro de 2010. 119 Raul Prada, em entrevista em 25 de agosto de 2010.

Page 140: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

130

Houve algumas pessoas vinculadas à aplicação da participação popular que trabalharam o tema da multiculturalidade do país; contudo, este reconhecimento (...) foi reduzido ao âmbito municipalista, o que comprime a dimensão das identidades culturais e, o pior, mutila os direitos dessas identidades ao âmbito restrito das competências municipalistas, quando o que a existência destas identidades culturais põe em jogo é a redistribuição da totalidade do poder político (Garcia Linera, 2003, p. 172).

A ideia de “nação indígena” seguiria este mesmo impulso, porque ela diria respeito a

um questionamento do status quo constitucional de 1994, que definia os indígenas somente

como “povos”. Ramiro Molina, antropólogo que foi Ministro de Assuntos Camponeses nesta

época (1993-1996), acredita que se passou a adotar o termo “nações indígenas” a partir de

2000 como uma posição política explícita de se questionar um “Estado monista”, homogêneo

culturalmente. Seria uma posição muito mais política, reivindicada no contexto de uma luta

simbólico-ideológica que se estava vislumbrando, do que uma definição mais propriamente

acadêmica120.

No contexto da constituinte, é possível perceber linhas de continuidade nas definições

sobre nação, plurinacionalidade e autonomias indígenas. Dentro da perspectiva mais

indigenista, a ideia de autonomias indígenas é ligada a uma concepção de nação indígena que

se bastaria do ponto de vista civilizatório (ou seja, não necessitaria dos conhecimentos

“ocidentais” para o seu próprio desenvolvimento). O documento do Conamaq reforça esta

visão, reiterando que as nações originárias seriam herdeiras de “conhecimento, ciência e

tecnologia ancestral” (Ayra-Conamaq, 2007, p. 3). Mas estas nações indígenas não são

equivalentes a um Estado nacional. As 16 nações do Qullasuyu propostas pelo Conamaq

(ibidem, p.2) teriam mais proximidade com o conceito de “suyu”, que seria uma unidade

territorial menor em um Estado:

Nação é como um departamento, tem seu governo, tem seus usos e costumes, o respeito à natureza, toda a cosmovisão, como fazer, como exercer suas autoridades correspondentes. Isso é a nação.121

Nas terras baixas, contudo, se identificou a noção de povos e nações indígenas com as

línguas faladas122, mas que igualmente exigiria respeito a formas de governo, cosmovisões,

usos e costumes, etc. Dentro desta perspectiva, as autonomias indígenas seriam o

120 Ramiro Molina, entrevista realizada em 18 de agosto de 2010. 121 Gabino Apata, entrevista realizada em 23 de agosto de 2010. 122 Por isso a ideia generalizada de que a Bolívia teria 36 nações originárias. A Nova Constituição Política do Estado nomeia 36 línguas indígenas originárias, sendo o quechua e o aimará parte delas. Contudo, setores indígenas das terras altas, como o Conamaq, contestam a versão de que os que falam quechua ou aimará constituiriam comunidades nacionais. O conselho identifica 16 nacionalidades nas terras altas.

Page 141: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

131

ordenamento institucional permitido a estas nações dentro do Estado boliviano. Apesar de

serem consensuais dentro das agrupações da esquerda, há diferença na forma como as suas

capacidades são definidas.

O projeto mais “indigenista” tende a apresentar as autonomias indígenas, portanto,

como uma forma de reconstrução do passado indígena, exigindo que o Estado boliviano lhes

permita este projeto, lhes reconheça a sua anterioridade, seus “direitos ancestrais”. Para

Gabino Apata, quando se pensa nas autonomias indígenas, é necessário resgatar como eram

as sociedades indígenas no passado (“sua natureza, sua identidade, seu idioma, sua

política”)123. Assim, autonomias indígenas parecem um primeiro passo para a sua

reconstrução territorial em longo prazo, como destaca Pedro Nuny:

Quem acreditava que o território dos guaranis era desde Santa Cruz atual até o Paraguai? Tudo isso é o seu território, mas agora há departamentos que dividem isso, está Santa Cruz, está Chuquisaca e está Tarija. Assim, cada um dos povos indígenas estamos nesta busca, de consolidar a pátria grande, sobretudo os povos que habitam estes países que realmente sejam os autênticos donos. Mas respeitamos as regras do jogo político, a democracia, que de alguma maneira também estamos envolvidos. Mas eu creio que esta é uma luta que vai demorar muito tempo. Mas o que conseguimos até agora, as TCOs [Terras Comunitárias de Origem] que hoje a constituição reconhece como território, é justamente esta busca de consolidação de estes direitos proprietários coletivos dos povos indígenas.124 Esta proposta de autonomia reafirma capacidades amplas das populações indígenas

frente ao Estado. O maior ponto de tensão é justamente com relação ao direito de consulta

dos povos indígenas, que é reivindicado quando o Estado pretende fazer atividades no

território indígena (estradas, obras de infraestrutura, extração de recursos naturais não

renováveis, gás, petróleo, etc.). A proposta mais radical de autonomia indígena previa que

estes povos indígenas teriam poder de definição sobre estes recursos naturais, podendo

inclusive vetar atividades do Estado no seu território. A formulação do Conamaq sobre isso

seria a de que a concepção de “território” indígena incluiria os direitos sobre os “recursos do

subsolo”, em contraposição à concepção de “terra”, que restringiria estes direitos aos

“recursos do solo” (Ayra-Conamaq, 2007, p. 11). Portanto, ao compreender a necessidade de

se elevar o status das “terras indígenas” (marco constitucional anterior) para “territórios

indígenas”, a constituinte deveria reconhecer o direito das nações originárias a estes recursos.

Este debate esteve no interior dos debates do Pacto de Unidade, quando se discutiu se

o pacto defenderia o “direito de veto” das comunidades indígenas ou somente o direito de

123 Gabino Apata, entrevista em 23 de agosto de 2010. 124 Pedro Nuny, entrevista em 18 de agosto de 2010.

Page 142: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

132

“consulta”, como prevê a Convenção 169 da OIT125. O pacto acabou por adotar em maio de

2007 uma formulação que previa uma espécie de “veto” mais atenuado:

A gestão, administração e tomada de decisões sobre s recursos naturais não renováveis por parte do Estado Unitário Plurinacional que se encontrem nos territórios e nas terras das nações e povos indígenas originários camponeses, afrodescendentes e das comunidades interculturais ou em áreas suscetíveis de impacto em seu habitat e suas áreas de influência, somente poderão ser feitas com o consentimento prévio vinculante dos povos. (Pacto de Unidad, 2007, p. 21). De forma muito parecida com esta formulação, o MAS-IPSP prevê um direito de

consulta ampliado para um procedimento de consenso do Estado com “nações e povos

originários e camponeses antes de estabelecer qualquer contrato de serviços para as operações

de hidrocarbonetos, mineiras e de bioprospecção” (MAS-IPSP, 2007, p. 47).

Tal posicionamento do MAS-IPSP é surpreendente por vir de um partido que estava

naquele momento à frente do Estado e que, portanto, teria também como preocupação a sua

garantia de governabilidade, principalmente em relação à política de recursos naturais não

renováveis. Sua posição pode ser explicada, contudo, pela grande presença de constituintes

ligados ao Pacto de Unidade na sua bancada.

A posição, contudo, estava longe de ser consensual no interior do MAS-IPSP. Alguns

setores, principalmente urbanos, não viam esta possibilidade de autonomia indígena tão

ampliada sem preocupações. Como afirma Macário Tola:

Por exemplo, [os setores rurais propunham que] os recursos naturais, se estão em uma nacionalidade aimará, em um povo determinado, este povo teria o direito à exploração e ao benefício dos recursos naturais. Por exemplo, o gás está no Chaco, e o Chaco como “dono” queria se encarregar da exploração, da comercialização e do desfrute. Somente o Chaco, não chegava nenhuma gota ao Estado boliviano e ao resto do povo boliviano. É um tema muito complicado. (...) Tínhamos que propor um tema que não criava briga, e isso era que os bolivianos seríamos os proprietários dos recursos naturais e que o Estado é o que faz a cadeia produtiva, mas com participação do setor [indígena], com benefícios ao setor.126

Neste caso, Tola daria muito mais ênfase no papel do Estado em definir as políticas

relativas aos recursos naturais, sendo que os povos indígenas teriam sua “participação” e

“benefícios” garantidos, mas não seu direito ao veto ou a um “consentimento prévio

125 A sistematização de encontros do Pacto de Unidade ocorridos em Vinto em maio de 2006 indica como “pergunta para o debate” o seguinte: “Frente às empresas de exploração de recursos naturais não renováveis, deve-se exercer o direito de consulta dos povos indígenas (Convênio 169 da OIT) e/ou o direito a veto (direito a que o povo indígena, em última instância, rechace a empresa por afetar a vida da comunidade?” (Pacto de Unidad, 2006, p. 16). 126 Macario Tola, entrevista realizada em 23 de agosto de 2010.

Page 143: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

133

vinculante”. Esta seria, portanto, uma posição “nacionalista” menos indigenista e radical do

que as posições da maioria dos setores indígenas.

Com relação aos demais documentos apresentados pelas agrupações de esquerda,

nenhum entra muito na polêmica com relação às delimitações dos poderes da autonomia

indígena frente ao Estado. O MOP defende genericamente a constitucionalização dos direitos

presentes na Convenção 169 da OIT (MOP, 2007, p. 20) e a CN-PI, ao defender o

fortalecimento de “micro-poderes” comunais, enfatiza que estes abrangem não somente a

esfera cultural e política, mas também a esfera econômica e de administração de recursos

(CN, 2007, p. 71). Os outros documentos reconhecem de forma mais genérica a importância

de se reafirmar a existência das nações originárias e a importância de garantir seus direitos.

A única exceção, dentro destas agrupações, é o documento de Vargas, da ASP, que

questiona o conceito de plurinacionalidade e, portanto, de nações e autonomias indígenas,

pois isso lhes daria o direito de se separar do território boliviano (ASP-Vargas, 2007, p. 5).

Assim, de maneira geral, é possível identificar duas concepções de autonomia

indígena, uma mais radical “indigenista”, que se afirma perante o Estado boliviano e exige

que este “pactue” com ela para que algumas tarefas estatais sejam realizadas, e outra mais

“nacionalista”, que garante prevê o direito de consulta (internacionalmente respaldado), mas

não prevê uma “palavra final” indígena em seus territórios. Uma visão que seria de um

nacionalismo mais radical, como a apresentada por ASP-Vargas, e que acredita que as

autonomias indígenas são “separatistas” é amplamente minoritária na esquerda (ainda que

majoritária na direita).

5. Política econômica

Desde o ponto de vista de um projeto mais indigenista, a política econômica proposta

para a Bolívia prevê o “respeito à Mãe Natureza, meio ambiente, reciprocidade,

redistribuição, complementaridade, rotação e dualidade”, em conformidade com o modelo de

desenvolvimento dos povos originários (Ayra-Conamaq, 2007, p. 7). Neste sentido, o

exercício da territorialidade originária implicaria no desenvolvimento destas concepções

próprias de economia e a não subordinação às prioridades econômicas colocadas por entes

externos a estas territorialidades.

Raul Prada, que além de constituinte, foi Vice-Ministro de Planificação Estratégica do

Estado durante 2010, esclarece o que seria esta política “econômica comunitária”, na qual o

Estado teria um papel de “promotor” e “articulador”:

Page 144: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

134

A ideia é apresentar o Estado como articulador e orientador da economia social e comunitária e das empresas públicas para que crie as condições de um processo produtivo, para que mude (...) o modelo primário exportador por um modelo produtivo. Estamos pensando o modelo produtivo não como um paradigma industrial, (...) mas como um paradigma produtivo no sentido mais amplo da palavra. Producente de outras relações sociais, de outros sujeitos sociais, e que se encaminhe fortemente à soberania alimentar. E pensar também em uma revolução tecnológica, mas que também articule a tecnologia tradicional. Estas complexidades têm que ser percorridas na transição, mas elas apontam a outras complexidades que estão no modelo econômico, que é o modelo ecológico. Todas estas tensões que percorrem estas contradições precisam ser resolvidas no processo. É um caminhar claro, a partir de uma transição clara que se encaminha às organizações comunitárias, (...) ao “viver bem”, no qual se respeite os direitos da mãe terra. Sabemos que é um processo.127

Ainda que dentro do marco do governo do MAS-IPSP, Raul Prada defende neste

momento uma proposta econômica muito parecida com o que faz o projeto mais indigenista,

que pretende adaptar a política econômica às suas pautas de reconstituição política e cultural,

afastando-se do que seria uma posição mais nacionalista de desenvolvimento industrial.

Em uma linha intermediária entre o indigenismo da Conamaq e o marxismo mais

ortodoxo, a CN-PI defende um regime econômico no qual os recursos naturais sejam de

“propriedade social”, mas manejados sob a lógica da cosmovisão andina de unidade entre

“aka pacha [o mundo ao nosso redor], manka pacha [o mundo do subsolo, dos alimentos] e

alaj pacha [o mundo de cima, do sol e das estrelas]”128. Além disso, a “propriedade social”

dos meios de produção deve ser promovida e todas as formas de propriedade estarão

condicionadas ao interesse comum (CN-PI, 2007, p. 73).

Do lado mais marxista, MCSFA se posiciona radicalmente contrário à garantia

constitucional de propriedade privada dos meios de produção (MSCFA, 2007, p. 18-19) e AS

também critica o Estado atual por garantir a propriedade privada (p. 504-505).

O MAS-IPSP, como era de se esperar pela sua composição heterogênea, se apresenta

de forma dúbia ao definir a sua política econômica no seu documento de visão de país. Por

um lado, defende uma pauta mais indigenista ao afirmar que a política econômica do novo

Estado deve se guiar pelos princípios de “justiça social, democratização, proteção do meio

ambiente, produtividade, solidariedade, reciprocidade, equidade, intercâmbio justo, respeito

aos direitos e garantia dos cidadãos e dos povos, nacionalidades e comunidades indígenas e

camponesas” (MAS, 2007, p. 50-51). 127 Esta declaração foi dada quando perguntado sobre as atividades que se estavam desenvolvendo no Vice-Ministério. Raul Prada, entrevista realizada em 25 de agosto de 2010. 128 A definição para os termos aka pacha, manka pacha e alaj pacha foram consultadas em “Centro Cultural Autóctono Sartañani Wasuru Qhanampi - VI Seminário Interno”. Disponível em: <http://pirwa.blogspot.com/2010/03/centro-cutlural-autoctono-sartanani.html> (acesso em 12 de março de 2011).

Page 145: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

135

Contudo, logo em seguida afirma que o modelo econômico do país tem como dever

propiciar a “a defesa da independência nacional e do desenvolvimento integral e sustentável

do país mediante a proteção dos recursos naturais e humanos, o controle público do

excedente econômico, a industrialização, a geração de fontes de trabalho (...)” (ibidem, p.

51). Aqui, há aparentemente duas agendas, uma mais ligada às demandas mais indigenistas e

outra mais ligada às demandas mais desenvolvimentistas e nacionalistas, nas quais se

demonstra mais claramente a postura do MAS-IPSP como partido de governo.

Esta última agenda, contudo, pode ser diferenciada em duas tendências. A primeira

seria a política de “recuperação do excedente econômico”. Ela responde a um diagnóstico de

que o Estado boliviano antes possuía uma posição submissa às empresas transnacionais, e as

deixava levar grande parte dos lucros relativos à extração dos recursos naturais não-

renováveis, sem deixar nada aos bolivianos. Sob a consigna de que se quer “sócios, não

patrões”129, o MAS-IPSP desenvolve uma ideia de economia que seria não subordinada, mas

que atuaria em parceria com o capital estrangeiro. Neste sentido, não seria uma política

favorável à completa “nacionalização” dos recursos naturais em um sentido estreito, já que

reconhece importância no capital estrangeiro e formas que a Bolívia pode se beneficiar deste

internamente. É desta postura econômica que alguns partidos da oposição (MNR, AAI) dizem

se aproximar.

Por outro lado, o MAS-IPSP também defende a “industrialização” do país, o que nos

remete diretamente às reivindicações da Agenda de Outubro, que exigia a “nacionalização e

industrialização dos recursos naturais”. Nessa perspectiva também aparece uma postura

nacionalista mais radical, que exige uma substituição do capital estrangeiro no país por

capital nacional, que exige que o Estado tome as rédeas das tarefas de desenvolvimento no

país.

De certa maneira, a queda de braço que houve dentro do governo sobre a

nacionalização dos hidrocarbonetos entre 2006 e 2007 resume a disputa entre estes dois

projetos. Pressionado pela segunda agenda, o governo do MAS-IPSP promulga o decreto de

nacionalização dos hidrocarbonetos em maio de 2006, que exige que 82% da renda petroleira

seja do Estado boliviano, e que os restantes 18% fossem pagos às transnacionais como

“pagamento de serviços”130. Tal divisão seria apenas temporária e o decreto visava um

129 Tal consigna data pelo menos das eleições presidenciais de Evo Morales em 2005, e foi repetida em visitas de Morales (já como chefe de Estado) ao Brasil e à Espanha, países cujas transnacionais (Petrobrás, Repsol) atuam na extração do gás boliviano. 130 O Decreto de Nacionalização afirma o seguinte: “Durante o período de transição, para os campos cuja produção certificada média de gás natural do ano de 2005 tenha sido superior aos 100 milhões de pés cúbicos

Page 146: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

136

controle total do Estado da política de hidrocarbonetos. Contudo, já em 2007, sob forte

pressão das transnacionais e de seus respectivos governos (como a Petrobrás e o governo

brasileiro), negocia-se uma divisão de 50% e 50%, retornando à proposta do MAS-IPSP de se

ter “sócios”, que, portanto, devem operar com certa vantagem também.

De maneira geral, do ponto de vista econômico, as posições defendidas pelas

agrupações que compõem a situação estão presentes dentro do próprio MAS-IPSP, com

exceção da posição mais radical marxista de retirada do direito à propriedade privada da

constituição. Por um lado, há uma proposta mais “indigenista” que defende que o Estado

promova a economia comunitária indígena, incorporando tarefas de bem-estar específicas

(como a garantia da soberania alimentar). Por outro lado, há uma proposta mais

“nacionalista” que enxerga maior agência do Estado, que deve controlar a economia nacional

e garantir políticas de bem-estar (vistas de maneira mais específica, como trabalho, saúde,

educação, previdência, etc.). Tal proposta tem versões mais radicais (nacionalização completa

e industrialização) e menos radicais (associação com capital internacional).

Considerações sobre “visões de país”

Neste capítulo, analisei os documentos apresentados sobre “Visão de País” na

constituinte boliviana e complementei esta análise com posições apresentadas por alguns

atores políticos que participaram do processo. Estas posições foram analisadas com o intuito

de entender como estas forças políticas concebiam sujeitos coletivos de soberania e que

instrumentos elas apresentavam para disputar estas ideias na sociedade. Para isso, se analisou

outras esferas para além destes sujeitos (o passado, o Estado, a autonomia indígena e a

economia), buscando compreender a reconstrução, o alcance e as implicações destes projetos

de nação de maneira mais global.

A análise da reconstrução histórica traz elementos importantes para entender como

direita e esquerda se colocam no debate. Esta análise foi inspirada por Smith, que destaca a

importância da reconstrução de mitos históricos, e por Gramsci, que aplica este arsenal

ideológico à disputa de hegemonia. No caso da constituinte, tal necessidade se atualiza no

sentido de que os partidos precisam apresentar propostas que se relacionam com as

experiências históricas coletivas. diários, o valor da produção se distribuirá da seguinte forma: 82% para o Estado (18% de royalties e participações, 32% de Imposto Direto de Hidrocarbonetos e 32% através de uma participação adicional para a YPFB), e 18% para as companhias (que cobre os custos de operação, amortização de investimentos e utilidades)” (Art. 4).

Page 147: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

137

Neste sentido, o grupo da oposição se enfrentou com os mesmos problemas do

passado recente, quando ocupava o Executivo nacional. Mais uma vez, demonstrou

incapacidade de apresentar momentos do passado que dialogassem com as suas proposições

atuais, o que reflete as suas dificuldades em construir hegemonia. Mesmo o MNR, partido

que trouxe uma interpretação da história do país, o fez sem atualizar as suas teses principais

do passado. Seu legado histórico anti-imperialista foi completamente tomado pelos partidos

da esquerda. A única exceção significativa foi a AAI, partido minoritário que conseguiu com

a sua reconstrução do passado dar voz ao único movimento popular dirigido pela oposição: o

regionalismo de Santa Cruz. Assim, a direita se viu durante a constituinte incapaz de

estabelecer patamares comuns de negociação com a esquerda, incapaz de reconhecer como

“legítimas” algumas das reivindicações mais simples da esquerda (como a identificação do

caráter étnico da estratificação social boliviana).

Por outro lado, a esquerda foi exitosa na reconstrução dos seus mitos passados para

dar consistência histórica aos seus sujeitos de soberania. A exemplo da mobilização de

outubro de 2003, na qual a questão do litoral foi recuperada e sugeriu uma aproximação dos

governos neoliberais com as elites políticas oligárquicas do passado, agora estes grupos

reconstruíram a experiência colonial para justificar uma refundação do Estado boliviano com

base em uma dívida histórica com os povos indígenas. Apesar das suas diferenças internas, a

situação consegue formular uma narrativa que torna suas reivindicações relativamente

coerentes, tanto com relação aos povos indígenas, quanto com relação ao fortalecimento do

Estado.

Com relação ao sujeito nacional, a tese da direita trabalha com elementos mais

convincentes do que trabalhou no período neoliberal, quando Sánchez de Lozada

argumentava, em um momento desesperado, que a essência da democracia se limitava ao

“respeito ao veredicto das urnas para a eleição de governantes”. Durante a constituinte, este

bloco apresenta uma idealização do que seria o povo boliviano unido, “em simbiose”, com

um pacto social que prevê a união não conflituosa entre as classes, etnias e regiões.

A mudança da relação das agrupações de direita com o governo (passaram de situação

para oposição) indica também algumas modificações de posição. Por um lado, passou-se a

questionar mais o chamado centralismo político, demandando as autonomias departamentais.

Por outro, há uma aceitação mais generalizada de estruturas de representação, subgrupos, que

vão para além da relação direta do cidadão com o Estado, chegando a apresentar em alguns

momentos tons corporativistas. Lembremos que este setor, no governo, questionava o caráter

“político” das organizações da sociedade civil boliviana, como os sindicatos. Na constituinte,

Page 148: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

138

a estrutura política de tais subgrupos já é aceita e reivindicada, ainda que se enfatize como

grandes exemplos destes os comitês cívicos e não os sindicatos.

A noção de sujeito de soberania conforma um elemento de tensão central dentro da

esquerda. O projeto mais indigenista reivindica uma soberania “ancestral” de povos e nações

indígenas, definidas em oposição a um Estado monocultural e ocidental, que historicamente

exigiu sua diluição. Neste caso, a noção de “nacionalidade” boliviana pode no máximo ser

compreendida como um fenômeno paralelo. O projeto mais nacionalista reivindica uma

espécie de “povo boliviano”, definido em oposição à “antipátria”, aceitando uma espécie de

sujeito nacional “patriota” que pode ser estendido à totalidade da população, sem um

necessário recorte étnico ou de classe. A expressão mais radical desta perspectiva seria a

conformação de um quarto poder social, conformado por representantes de nações indígenas

e de organizações sociais, que tivessem o poder de fiscalizar o Estado, no sentido de garantir

que o povo não perca o seu caráter soberano (MAS-IPSP, 2007, p. 36). Já o projeto mais

marxista defende que o recorte de classe seria imprescindível.

De qualquer maneira, é curioso que tenha sido a direita a que tenha defendido a

manutenção do conceito de “nação boliviana” na Constituição, sendo que os setores mais

“nacionalistas” estavam no bloco da esquerda. O silêncio da esquerda sobre a “nação

boliviana” e a sua utilização de conceitos como “patriotas” e “antipátria” indicam a tentativa

de se construir uma identidade boliviana não-homogeneizante, que se vê culturalmente

diversa, mas também deixa uma importante ferramenta simbólica nas mãos da oposição. Esta

questão ainda está em aberto, mas até o momento a direita boliviana não conseguiu fazer uso

de todas as potencialidades deste conceito.

Do ponto de vista das recomendações feitas para a reformulação do Estado, um dos

aspectos mais interessantes encontrados é o de que a direita e a esquerda parecem coincidir

no diagnóstico de que o Estado precisa ser fortalecido e carece de identidade nacional

unificadora, mas é necessário respeitar a diversidade do país, reiterando a palavra de ordem

“unidade na diversidade”. Para a esquerda, contudo, a unidade parece fazer referência a uma

estatalidade relativa à presença do Estado na vida social (maior atuação na economia, por

exemplo), e a unidade da direita parece mais próxima à ideia de um Estado dotado de

autoridade, que a sociedade respeite. Contudo, é possível que esta ideia de autoridade estatal

esteja mudando na medida em que o MAS-IPSP se consolida como “bloco do poder” em

oposição aos “interesses populares”. Já a diversidade boliviana para a esquerda tem relação

prioritária com os povos indígenas, e para a direita, com as regiões do país.

Page 149: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

139

Os múltiplos significados que ganha o termo “Estado plurinacional” dentro da

esquerda é algo que merece nossa reflexão. Ainda que ele tenha sido inspirado por outras

experiências internacionais de Estados com nações sub-estatais (Canadá, Espanha, Suíça,

etc.), ele ganha um significado completamente novo no contexto boliviano. As múltiplas

interpretações sobre ele indicam uma nova disputa sobre os principais princípios normativos

que devem reger o novo Estado boliviano. A plurinacionalidade se restringe à questão

indígena? Ela inclui os conflitos regionais? Ela unifica ou divide o país? Ela inclui as tarefas

sociais do Estado? A direita conseguirá disputar o conceito a favor seu próprio projeto mais

“liberal”, como conseguiu fazer com o multiculturalismo durante a década de 1990? As

respostas para esta questão provavelmente marcarão a luta política nos próximos anos na

Bolívia.

Com relação às autonomias indígenas, as posturas da esquerda e da direita não

poderiam ser mais antagônicas. Se, para a primeira, as autonomias indígenas apontam para o

futuro – relações renovadas com relação ao meio ambiente, à sociabilidade, às ideias de poder

político, à economia etc. – para a direita, elas representam uma força “anacrônica” da Bolívia,

que tende a ser superada. Assim, no equilíbrio entre autonomias e Estado, a direita garante às

autonomias o que foi reconhecido no âmbito internacional com relação aos direitos indígenas

e uma parte considerável da esquerda pretende ampliar significativamente este marco.

Contudo, as posturas no interior da própria esquerda variam em intensidade e os marcos

adotados para as autonomias indígenas na nova constituição acabaram sendo os

internacionais.

A política econômica proposta pela oposição revela uma concepção de que a parceria

entre o capital transnacional e o Estado é a melhor forma de se explorar os setores

estratégicos do país. Tal parceria, contudo, reduz o papel do Estado ao de regulador e

cobrador de impostos deste capital. Mas tal perspectiva não difere muito do demonstrado na

prática pela política de “nacionalização” do governo de Evo Morales, que consistiu em cobrar

impostos de forma mais rigorosa. De maneira equivalente ao que ocorreu com as autonomias

indígenas, dentre todos os projetos econômicos apresentados pela esquerda, o que prevalece

(ainda que as iniciativas governamentais mais preocupadas com a economia comunitária e

com a industrialização existam) é aquele que menos se diferencia do projeto da direita.

O fim do processo constituinte

Page 150: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

140

Durante a apresentação dos documentos sobre visão de país, em fevereiro e março de

2007, uma pauta secundária tomou a constituinte de assalto: constituintes e associações

cívicas de Sucre – local onde a assembleia ocorria – começaram a se organizar para

reivindicar que a cidade fosse considerada a “capital plena” do país131. Em novembro deste

mesmo ano, os conflitos se intensificaram a ponto de inviabilizar o processo de votação dos

informes das comissões, que foram trabalhados durante o ano. Assim, um primeiro texto

constitucional foi aprovado en grande em uma sessão realizada no Liceo Militar, com a

proteção do Exército, no dia 24 de novembro de 2007. Uma nova sessão foi convocada em

Oruro em 8 de dezembro para aprovar o documento en detalle. Com exceção da UN132,

nenhuma agrupação da oposição participou da sessão, alegando problemas na sua

convocação. Mas a plenária ocorreu ainda assim e o documento foi aprovado por mais de 2/3

dos 164 constituintes presentes (dos 255 iniciais).

O texto constitucional aprovado em Oruro tinha forte influência do documento do

Pacto de Unidade na definição do Estado boliviano e da sua estrutura, e previa algumas

medidas consideradas mais radicais como a limitação da propriedade agrária a 5 ou 10 mil

hectares (o marco anterior era o limite de 50 mil hectares), já que a definição não era

consensual dentro da situação e o impasse podia ser levado à referendo.

A constituição em si também teria que passar por um referendo nacional, que

dependia da convocatória do Congresso. Desfavorável, o Congresso somente aprovou o

referendo quando o governo aceitou renegociar uma série de artigos da constituição com a

oposição em outubro de 2008. Nestas negociações, das quais participaram representantes do

Congresso e ex-constituintes (tanto do MAS-IPSP quanto do Podemos), foram modificados

mais de 100 artigos. Na parte institucional, a oposição conseguiu que se fortalecesse a

autonomia departamental frente às autonomias indígenas, municipais e regionais, favorecidas

pelo projeto anterior. Também o artigo que delimitava a propriedade agrária foi atenuado,

somente futuras propriedades agrárias seriam afetadas pelo dispositivo. Na parte simbólica,

recuperou-se o conceito de “nação boliviana” e “república” em alguns artigos. A maior

concessão do governo foi a eliminação do dispositivo constitucional que permitia uma

reeleição presidencial, permitindo a Evo Morales se apresentar às eleições somente uma vez

131 A questão da capital boliviana remete a conflitos regionais históricos, que estouraram a Guerra Federal no final do século XIX. No momento da constituinte, Sucre era considerada capital boliviana, mas era sede somente do Poder Judicial. La Paz era sede do Executivo e do Legislativo. 132 Neste momento, Jorge Lazarte já não mais acompanhava as orientações da sua agrupação, não tendo também participado da votação final da constituição.

Page 151: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

141

após a aprovação da constitucional (a constituição aprovada em Oruro permitia uma

reeleição, o que viabilizava um possível governo de Morales até 2019).

Segundo Gamal Serhan, que participou das negociações, a opção que a oposição fez

naquele momento foi a de “ceder em tudo o que era simbólico, mas resgatar tudo o que era

institucional”. Para ele, a constituição aprovada em Oruro estava levando o país

definitivamente à “guerra civil”133, já a constituição de 2008 conseguiu restabelecer

“parcialmente” o pacto político no país134.

Muitos setores que apoiaram o “processo de mudança”, contudo, viram na negociação

uma forma de reabilitar a direita. Juan Carlos Pinto acredita que a oposição do Congresso

poliu “a perspectiva liberal” do documento: apesar de não conseguir retirar o seu “peso

comunitário”, “conseguiu empatar muitas coisas”. Assim, a atual constituição acabou sendo

um documento cheio de “contradições, de encontros, no qual o liberal, que deveria ser

inicialmente ‘varrido’, terminou sobrevivendo e marcando as pautas”. Para ele, a luta da

direita agora é disputar o projeto ideológico por dentro, porque internamente ao bloco do

poder estariam convivendo estas “unidades liberais e comunitárias”, e estas perspectivas

“mais liberais” podem se impor e “desarmar tudo o que tem sido o processo de

transformação” que viveu o país.135

Finalmente, a constituição pactuada com o Congresso foi à referendo nacional em 25

de janeiro de 2009, conquistando o apoio de 61% do eleitorado boliviano. Este apoio

correspondeu, de maneira geral, à base social do governo, sendo que os principais partidos da

oposição, mesmo tendo participado da negociação no Congresso, fizeram campanha contrária

ao documento.

É importante sinalar os principais elementos que apresenta a Nova Constituição

Política de Estado (NCPE) da Bolívia relacionados aos pontos estudados nos documentos de

visão de país.

Do ponto de vista da perspectiva histórica, a NCPE inclui um preâmbulo simbólico

que reitera a superação de um “Estado colonial, republicano e neoliberal” com a inauguração

do novo Estado de forma coletiva. Este Estado é definido no primeiro artigo da NCPE:

Artigo 1. Bolívia se constitui em um Estado Unitário Social de Direito Plurinacional Comunitário, livre, independente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado e com

133 Serhan faz referência ao Massacre de ando e o assalto às instituições em Santa Cruz que ocorreram em outubro de 2008. Ver mais detalhes. 134 Gamal Serhan, entrevista realizada em 3 de setembro de 2010. 135 Juan Carlos Pinto, entrevista realizada em 28 de agosto de 2010.

Page 152: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

142

autonomias. Bolívia se funda na pluralidade e no pluralismo político, econômico, jurídico, cultural y linguístico, dentro do processo integrador do país.

A sequência de adjetivos que acompanha o Estado boliviano diz respeito às diversas

negociações, levadas a cabo tanto dentro dos setores da situação (comunitário, plurinacional,

social, etc.) quanto entre estes e a oposição (com autonomias, de direito etc.). De forma

equivalente, a definição dos sujeitos de soberania também transparece esta negociação. São

os dois artigos seguintes que se focam nesta questão:

Artigo 2. Dada a existência pré-colonial das nações e povos indígena originário camponeses e seu domínio ancestral sobre seus territórios, se garante sua livre determinação no marco da unidade do Estado, que consiste em seu direito à autonomia, ao autogoverno, a sua cultura, ao reconhecimento de suas instituições e à consolidação de suas entidades territoriais, conforme a esta Constituição e a lei. Artigo 3. A nação boliviana está conformada pela totalidade das bolivianas e dos bolivianos, as nações e povos indígena originário camponeses, e as comunidades interculturais e afrobolivianas que em conjunto constituem o povo boliviano. O terceiro artigo foi objeto de negociação no Congresso e continha inicialmente a

categoria “povo boliviano” onde se lê hoje “nação boliviana”. O arranjo foi uma formulação

que tem uma dupla definição, tornando o entendimento de nação e povo equivalentes. Assim,

garante-se no campo simbólico um direito à autodeterminação das nações e povos originários

desde que no marco da unidade e estabelece-se uma noção de nação boliviana marcada pela

pluralidade.

Do ponto de vista das autonomias indígenas e das polêmicas com relação ao direito de

consulta, a NCPE estabelece um marco que se limita ao direito de consulta da Convenção 169

da OIT e não menciona o direito ao veto ou a procedimentos de consenso com povos

indígenas.

[As nações e povos indígenas originários campesinos têm direito] a serem consultados mediante procedimentos apropriados e, em particular, a través de suas instituições, cada vez que se prevejam medidas legislativas ou administrativas que lhes possam afetar. Neste marco, se respeitará e se garantirá o direito à consulta prévia obrigatória, realizada pelo Estado, de boa fé e concertada, a respeito da exploração dos recursos naturais não renováveis no território que habitam (Art. 30, II, 15).

A política econômica do Estado foi definida como plural, já que prevê as formas de

organização econômicas “comunitária, estatal, privada e social cooperativa”, e estaria

orientada a “melhorar a qualidade de vida e o viver bem de todas as bolivianas e bolivianos”

(Art. 306). Com relação à polêmica em torno da política de hidrocarbonetos dentro do bloco

da situação, a constituição prevê a possibilidade de se assinar contratos com empresas

Page 153: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

143

“públicas, mistas ou privadas, bolivianas ou internacionais” que “realizem determinadas

atividades na cadeia produtiva em troca de uma retribuição ou pagamento de seus serviços”,

desde que estes contratos sejam aprovados pela Assembleia Legislativa Plurinacional (novo

nome do Poder Legislativo) e que não representem “perdas” para o Estado boliviano (Art.

362).

De forma geral, ainda que o processo constituinte boliviano tenha recebido muitas críticas

da oposição porque não teria buscado procedimentos de consenso e não teria respeitado algumas

normas procedimentais, a NCPE se mostra como um documento bastante consensual do ponto de

vista institucional. Ficaram de fora as formulações mais radicais de reforma do Estado, como

garantir uma autonomia indígena com maior independência hierárquica das outras autonomias,

uma reforma agrária que atingisse propriedades rurais imediatamente, ou a criar de um quarto

“poder social” conformado por conselhos de organizações cidadãs ou indígenas que controlasse

os demais poderes (como estava presente na proposta inicial do MAS-IPSP, 2007, p. 36). Por

outro lado, a principal reivindicação da oposição, a de se garantir as autonomias departamentais

bolivianas, foi contemplada e, inclusive, aprimorada nas negociações que houve no Congresso em

2008. Do ponto de vista simbólico, contudo, o documento respalda a mobilização dos setores

populares bolivianos nos últimos dez anos, podendo ser no futuro um poderoso instrumento

para futuras ações coletivas de contestação de políticas estatais.

Page 154: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

144

Conclusões

[A social democracia] preferiu atribuir à classe operária o papel de salvar

gerações futuras. Com isso, ela a privou das suas melhores forças. A classe

operária desaprendeu nessa escola tanto o ódio como o espírito de sacrifício.

Porque um e outro se alimentam da imagem de antepassados escravizados, e

não dos descendentes liberados. Walter Benjamin (Na tese XII “Sobre o Conceito de História”) Eu não vou olhar nos olhos de vocês, porque seus olhos estão manchados do

sangue indígena (...). Isso me dói como Mallku Maior. Eu não sou um pongo

político. Isso me dói porque vocês, inquilinos, se apropriaram da nossa terra. Felipe Quispe

Investiguei neste trabalho a formação de um “bloco popular” durante os períodos das

revoltas antineoliberais e a assembleia constituinte. Este bloco, que sob certos critérios pode

ser chamado de “bloco histórico” (ver debate Capítulo 3), cresceu e se unificou durante as

mobilizações de 2000 a 2005 e, na constituinte, estabeleceu formalmente novos marcos

normativos para o Estado boliviano, em especial a sua qualidade plurinacional. Minha

ferramenta teórica, como expliquei na introdução, foi o nacionalismo. Ele não foi entendido

de maneira estreita, ou como experiência histórica específica boliviana, mas sim como uma

forma de compreender a dinâmica complexa entre história, conflito político e demanda por

mudança institucional radical.

A partir desta análise, creio ser possível desenvolver três conclusões gerais. A

primeira trata da especial articulação das demandas por estatalidade e autonomia dos setores

populares na Bolívia; a segunda aborda as formas como o nacionalismo pode ser entendido

em “tempos de plurinacionalidade” no país; a terceira, mais teórica, diz respeito a questões

ainda abertas no campo da história, como a noção de progresso.

Um argumento central perpassou o desenrolar de todo este trabalho: o de que na

Bolívia há uma especial relação entre as demandas por estatalidade e autonomia dos setores

populares. Estes setores populares (que se encaixariam na concepção de “nacional-popular”

boliviano de Zavaleta Mercado) se unificam quando estas duas dimensões convergem as suas

lutas e isso ocorre somente em alguns momentos-chave da história do país. Mas este encontro

não elimina a relação tensa e conflituosa entre estatalidade e autonomia, o que faz com que a

desintegração trágica deste bloco unificado seja sempre uma ameaça iminente.

Page 155: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

145

Seguindo o modelo de Nairn, a demanda por estatalidade pode ter suas raízes traçadas

no desenvolvimento desigual do capitalismo. Na medida em que o capitalismo se espalha

pelo mundo, ele gera mais sentimentos de “ausência de desenvolvimento” do que progresso

efetivo. O nacionalismo, que surgiria nas periferias do mundo como resposta a estes

sentimentos, teria como um dos seus principais objetivos a promoção de um “atalho” para o

desenvolvimento, rompendo com os países centrais, mas mantendo as suas instituições, que

são entendidas como centrais para a consolidação do Estado moderno (escola, poderes do

Estado, forças armadas, etc.). Assim, este nacionalismo se definiria de maneira contraditória

com relação a esta imagem do estrangeiro. Por ser anti-imperialista, contrário ao domínio

econômico externo, combate inclusive o poder simbólico que as nações centrais exercem em

seu país (os estrangeirismos, a importação de fórmulas ideológicas sem relação com a

realidade nacional, etc.). Mas sua negação do estrangeiro e exaltação da natividade tem

limites claros, pois esta dimensão precisa se apropriar das invenções estrangeiras para fugir

do atraso.

No caso boliviano, a demanda pelo progresso pode ser identificada em diversos

momentos da história recente. A principal reivindicação ligada a esta dimensão é a

nacionalização dos recursos naturais. A crença é de que se trata de uma medida com potencial

redentor: a partir dela, todas as outras tarefas de desenvolvimento (industrialização, políticas

de bem-estar, políticas de financiamento agrário, obras de infraestrutura) poderiam ser

efetivadas. A marcha para o progresso estaria ligada ao controle estatal da economia, já que o

Estado aparece como o único executor possível deste programa. O sujeito coletivo de

soberania que são identificados nesta dimensão é um povo boliviano patriótico, definido em

oposição àqueles que atuam na sociedade boliviana para favorecer interesses estrangeiros

(como permitir a atuação de forças militares norte-americanas em solo boliviano para

combater camponeses cocaleiros ou promover a venda das empresas estatais às

multinacionais).

Na constituinte, a demanda por progresso pode ser identificada na vertente mais

“nacionalista” presente nas agrupações da situação. Ela demandava Estado boliviano uma

postura anti-imperialista, intervencionista na economia (nacionalização e industrialização dos

recursos naturais, políticas de desenvolvimento agrário com relação às comunidades

camponesas, etc.) e garantidora de direitos sociais.

Por outro lado, movimentos populares bolivianos também se mobilizaram

historicamente em nome de uma autonomia frente ao Estado. Esta visão implica em uma

caracterização deste Estado como um ente externo e não representativo de seus interesses. O

Page 156: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

146

nacionalismo que surge desta dimensão é, seguindo a formulação de Gellner, o único capaz

de mudar a ordem política, o único capaz de criar polarização social na contemporaneidade.

Esta polarização ocorre, segundo Gellner, quando as identidades de classe socioeconômicas

se cruzam com identidades culturais e determinado grupo étnico (ou cultural, já que Gellner

não diferencia muito estas duas esferas) é impedido de ascender socialmente ou de ascender

ao poder graças às suas características culturais, conformando assim uma “classe-nação”.

Assim, o ideal da sociedade industrializada moderna – que precisa de mobilidade social e

homogeneidade cultural – não seria efetivado e se questiona a legitimidade da estrutura

estatal vigente. A saída gellneriana a esta situação é a conformação de uma nação separada

deste grupo étnico em questão (a Ruritânia).

Mas o debate boliviano frente à falta de representatividade do Estado nacional não

levou ao caminho da separação (pelo menos, não de forma majoritária). Primeiro porque

quando se reivindica a falta de representatividade do Estado não se fala em nome de grupos

minoritários. Portanto, a separação territorial parece uma saída sem sentido. Segundo porque

os setores sociais que conformariam a chamada “classe-nação” não estão restritos a um único

território. Eles ocupam quase que a totalidade da área rural do altiplano boliviano e todas as

periferias das grandes cidades, inclusive as do Oriente. Aqui, a mistura entre “nação” e

“classe” possui muito mais deste segundo elemento do que o modelo de Gellner prevê e

saídas de reajuste territorial não seriam suficientes, já que as territorialidades estão

sobrepostas. A imagem que se resgata é a duas nações sobrepostas, “uma Bolívia do poder

econômico e do poder político e outra Bolívia que não tem o que comer”, como disse

Eugenio Rojas, liderança de Omasuyus.

As soluções encontradas frente a esta falta de representatividade do Estado foram

pedidos de que este cedesse o seu poder. As decisões políticas deveriam, portanto, ser

tomadas do ponto de vista local, seguindo as necessidades da comunidade em questão. A

soma destas necessidades é o que se chamaria de interesse nacional. Esta perspectiva é o que

está por trás das formulações mais radicais de autonomia indígena, que pressupõem controle

local de recursos naturais não renováveis, mas também está por trás das reivindicações

urbanas de controle democrático e comunitário da água, por exemplo. Os sujeitos de

soberania que estas propostas enxergam também são uma espécie de povo boliviano, mas este

é construído com base na esfera comunitária e em oposição ao poder político imposto de

maneira externa aos seus interesses específicos (como a estrada que é construída em meio ao

território indígena, como a extração de recursos naturais que acaba com o equilíbrio

ambiental necessário para a manutenção de determinada forma de vida comunal ou como a

Page 157: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

147

modificação na gestão da água cuja primeira consequência é o aumento das tarifas). Do ponto

de vista institucional, o Estado deveria se subordinar a estas lógicas, que se consertariam em

seu interior por meio de representação direta destas esferas locais. No fundo, esta é uma

lógica que prevê a concentração do poder da soberania não no Estado, mas sim nestas esferas

locais comunais. Esta perspectiva, portanto, não é somente dos movimentos indígenas e pode

ser identificada em movimentos urbanos e de matriz socialista que reivindicam conselhos

populares como forma de enfraquecer o poder estatal, que representaria sempre os interesses

da classe dominante.

As duas dimensões – a da estatalidade para o desenvolvimento e a da autonomia para

a libertação – se encontram em alguns momentos-chave da história boliviana. Tais momentos

são marcados pela identificação de um adversário unificador que sintetiza dois elementos: o

atraso frente ao desenvolvimento mundial (porque depende do atraso de toda a população

para poder perseguir seus interesses particulares, porque está mais ligado aos interesses da

Embaixada Norte-Americana do que aos interesses nacionais) e a injustiça do poder que é

imposto de maneira alheia (porque não respeita as tradições comunitárias, porque desintegra

formas de vida, porque não lhe importa o tipo de sofrimento que as suas “canetadas” vão

causar). A figura deste adversário só aparece em sua plenitude quando ocupa o Estado,

quando ele é ao mesmo tempo elite social e política. A elite “antipátria” só se expressa

efetivamente quando controla o aparato estatal e pode submetê-lo aos interesses estrangeiros.

Isso teria ocorrido plenamente durante as mobilizações antineoliberais, nas quais, ao se

combater o governo, se combatia simultaneamente a multinacional estrangeira que lucra em

detrimento do interesse boliviano e a lógica de gestão empresarial de recursos vitais, que

atacava suas formas tradicionais de manejo e causava escassez e miséria.

Quando este adversário não ocupa mais o Estado, sua figura é quase que

fantasmagórica. Ele anima tendências internas do bloco de poder opositor, barganha cargos,

busca encontrar brechas para se recompor. O regionalismo foi um terreno fértil para a sua

multiplicação, ainda que contraditório com a sua anterior ocupação do Estado. Mas este

adversário sabe que o seu oponente tem tensões internas de difícil resolução e confia na

explosão destas tensões. Afinal, não foi o que ocorreu em 1964, quando o golpe de um militar

aclamado pelo campesinato boliviano acabou com o governo nacionalista iniciado em 1952?

E muitas tensões existem no interior do atual bloco de poder representado pelo

governo de Evo Morales, em especial esta que é nosso objeto de análise: a que ocorre entre

estatalidade e autonomia. Nesta dinâmica, tem muita influência outro elemento de

reivindicação da estatalidade: a demanda por fortalecimento da autoridade do Estado. Ela está

Page 158: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

148

ligada parcialmente às reivindicações de progresso e modernidade, mas não necessariamente

as acompanha. Como vimos, esta reivindicação é desenvolvida somente depois que o MAS-

IPSP assume o governo e já é visível na constituinte (com os apelos por “consenso” e

estabilidade da constituinte). É de se esperar que quando demandas por autonomia se

enfrentam com o Estado, este Estado defenderá na sociedade a visão de que se trataria de

uma disputa entre setores particularistas e interesses gerais do povo boliviano, estes últimos

representados pelo Estado. A coincidência necessária dos interesses do povo com a ação do

Estado é algo que está no centro desta reivindicação por autoridade estatal.

Um exemplo recente da disputa entre autonomia e estatalidade foi a marcha dos

indígenas das terras baixas de meados de 2010, que reivindicava, dentre outras demandas,

uma maior representação indígena na Assembleia Plurinacional (congresso). As

reivindicações ocorriam no contexto da aprovação da lei que regulamentava as autonomias no

país e marcavam o dissenso destes movimentos com a proposta governamental de restringir

as autonomias indígenas dentro das fronteiras departamentais e de promoção de referendos (e

não o reconhecimento de usos e costumes tradicionais) para decidir sobre a adoção de

autonomias indígenas plenas.

Os sinais preocupantes vieram, contudo, quando o governo passou a acusar os

manifestantes de serem financiados por ONGs internacionais (coisa que em si não é grande

novidade na Bolívia) e que, portanto, não responderiam aos interesses do restante da

população boliviana, mas sim somente aos seus interesses setoriais. Em um fórum no qual

participou Evo Morales, o movimento cocaleiro – um dos principais pilares de sustentação do

governo – anunciou o seu repúdio à marcha porque esta responderia a e estaria financiada por

“organismos estrangeiros e empresariais”136.

Ao comentar o episódio, Alejandro Almaraz, que foi Vice-Ministro de Terras em

2007, lembra que o “fantasma” do processo de 1952 ronda perigosamente o atual processo

político. Se, no passado, o governo do MNR convocou setores alinhados (camponeses dos

vales de Cochabamba) para se enfrentar com os setores dissidentes (operariado mineiro), o

governo de Evo Morales convoca cocaleiros (alinhados) para contrapor os indígenas do

oriente (dissidentes)137. Ambos apontariam no movimento dissidente a lógica particularista e

estrangeira. Para Almaraz, uma das causas da emergência destes fantasmas passados seria o

estancamento do processo de mudança depois da constituinte.

136 “Evo Morales y cocaleiros bolivianos repudian marcha indígena”, 4 de julho de 2010, Prensa Latina (disponível em: http://www.radiolaprimerisima.com/noticias/alba/79882). 137 Alejandro Almaraz, entrevista realizada em 3 de setembro de 2010.

Page 159: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

149

Mas estes fantasmas do passado não são suficientes para determinar o futuro e ao

“processo de mudança” não seguirá necessariamente uma recomposição dramática da direita

boliviana. Essa era a esperança que jazia implícita nas declarações de Almaraz. Ainda assim,

o desafio colocado ao novo “bloco histórico” boliviano é grande e o seu êxito a longo prazo

depende da maneira como suas frações internas irão se expressar e se será possível construir

um projeto futuro que se unifique para além da identificação de um adversário comum, um

projeto hegemônico que esteja a serviço dos atores que promoveram o processo de mudança.

A identificação de que há uma tensão entre as demandas por estatalidade e autonomia

dentro dos setores populares bolivianos responde de forma insuficiente à temática geral deste

trabalho: o estudo do nacionalismo em tempos de plurinacionalidade na Bolívia. Isso porque,

ainda que haja um paralelo forte entre a demanda comunitarista e a demanda pela reafirmação

das identidades indígenas específicas, o nacionalismo identificou em diversos momentos da

história recente boliviana o Estado como grande adversário. Ainda que a ideia da nação seja

aquela que liga uma população habitante de um território específico ao Estado que governa

este território, ela só o faz por meio da legitimidade. Ou seja, mesmo que se possa defender

que todo nacionalismo tenha certo estatismo, poucos defenderão que o primeiro se limita ao

segundo.

Posto isso, acredito que se pode identificar uma segunda dicotomia no recente

processo político boliviano, aquela entre identidade nacional boliviana e identidades

específicas das nações indígenas. Refletir sobre a complexa articulação entre estas

identidades é, portanto, o que nos permite chegar a algumas conclusões preliminares sobre o

nacionalismo em tempos de plurinacionalidade.

A questão que se levanta com relação a isso é se existe ou não uma tensão necessária

entre o nacionalismo e os “tempos de plurinacionalidade”. Ou seja, o nacionalismo seria uma

expressão anacrônica ou ainda teria vigência frente a este momento histórico atual boliviano?

Creio que a minha resposta a esta questão está implícita em todo este trabalho: sim, se

considerado de forma não “monocultural”, ele ainda teria vigência. Esta vigência se traduziu

com o reiterado “patriotismo” presente nos debates do período.

Sem considerar este “patriotismo” boliviano como uma força progressista, a nação

boliviana é concebida como um ente externo com o qual se pactua. Algumas das formulações

sobre plurinacionalidade, principalmente aquelas que a enxergam como reconstituição das

nações originárias, incorporam esta visão. Trata-se de um reconhecimento pragmático de que

se vive em um determinado país e que a agenda da separação não está colocada. Ainda assim,

Page 160: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

150

afirma-se que o sujeito da soberania são estas nações, não este país ou esta “nação fictícia”.

No máximo, estas perspectivas concebem duas identidades paralelas (“boliviano” como

segundo nome do indígena), mas que não se cruzam.

Mas, ao se entender o “patriotismo” como uma força progressista vigente, destaca-se

a importância de um movimento que afirma determinada soberania nacional boliviana frente

ao estrangeiro. Evitou-se fazer referência à “nação boliviana” porque esta era considerada

uma categoria opressora e monocultural, mas, com a defesa da “pátria”, os setores

mobilizados combateram o imperialismo, as empresas transnacionais, um Estado que seria

pouco atuante para defender direitos dos seus cidadãos e muito atuante para garantir os

interesses estrangeiros. Ou seja, estes setores perseguiram uma agenda nacionalista.

Portanto, se o nacionalismo é vigente na Bolívia, ele não pode ser concebido como

instrumento de “homogeneização cultural”, como Gellner formula. Ele estaria muito mais

relacionado a uma identidade coletiva política. Dentro da já consagrada diferenciação entre

nacionalismos étnicos e territoriais, é possível pensar que o nacionalismo boliviano em

tempos de plurinacionalidade tenha que ser necessariamente territorial, sendo que o aspecto

étnico seria incorporado no âmbito das nações indígenas. Seguindo o argumento de Smith

(1986), contudo, se poderia argumentar que ainda que haja processos mais étnicos ou mais

territoriais, o nacionalismo sem etnicidade seria um mero estatismo. O argumento de Smith é

importante, porque remete à necessidade de se diferenciar processos de criação de

identidades impulsionados de cima para baixo e processos em que a identidade, mesmo que

fomentada, tenha relação com a experiência concreta das populações em questão.

Frente a isso, o caso boliviano nos coloca outra questão teórica: é possível pensar um

nacionalismo que se diferencie estatismo (não seja um processo de cima para baixo,

artificial), mas que ao mesmo tempo não dependa da etnicidade? Pois, ainda que Smith

teorize a etnicidade de forma ampla, ela ainda nos remete a uma identidade cultural de grupo

que é excludente de outras identidades. Ou seja, ela ainda está no âmbito da

monoculturalidade.

Acredito que, mais uma vez, alguns conceitos de Zavaleta Mercado podem nos ajudar

a encontrar respostas. Zavaleta relaciona o “projeto nacional” a uma noção de

homogeneidade distinta, que se diferencia da homogeneidade cultural. Para ele, a

homogeneidade necessária ao nacional se define como uma “simpatia intersubjetiva” entre os

membros de uma sociedade, que não estaria presente no “projeto racial-culturalista” típico

das elites bolivianas (Zavaleta, 2008, p. 157).

Page 161: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

151

Assim, o “nacional” estaria ligado às experiências que são comuns entre todos os

membros desta sociedade, entre todas as identidades plurais que aparentemente não se

cruzam. Zavaleta identifica esta vivência como o princípio da intersubjetividade de

Habermas, “Nanawa é o que há de comum entre tu e eu” (Zavaleta, 2009, p. 216). Estas

experiências comuns são chamadas de momentos constitutivos ou momentos de

autodeterminação das massas. São eventos políticos (guerras, revoltas, revoluções, grandes

mobilizações populares) que implicaram na modificação da estrutura da sociedade boliviana

como um todo.

Esta forma de ver o nacionalismo não implica em um estatismo, mas também não

implica na homogeneização cultural da população, muito menos em uma homogeneização

com base em uma cultura alheia à maioria desta. Assim, do ponto de vista das teorias do

nacionalismo, a experiência boliviana exige um entendimento do nacionalismo que perceba

as experiências históricas menos como experiências culturais e étnicas e mais como

experiências políticas, que marcam um sentido de comunidade nacional, ainda que diversa.

Esta seria uma forma de enxergar a “unidade na diversidade” não como “soma” de

diversidades, mas sim como síntese. Trata-se de pensar o “plurinacional” como uma

expressão coletiva de um novo nacional que emana a partir das revoltas antineoliberais.

Aqui não se está defendendo que esta forma de entender o nacionalismo é a mais

correta para se analisar a sociedade boliviana atual. As visões que contrapõem nacionalismo e

plurinacionalidade em um esquema de permanente tensão têm muito valor explicativo,

principalmente frente aos conflitos entre estatalidade e comunitarismo identificadas

anteriormente e que estão pipocando no atual governo de Evo Morales. Mas estas

perspectivas têm dificuldades em conceber os setores que se mobilizaram no período de 2000

a 2009 como fazendo parte de um movimento unificado. É como se os tempos sociais

lutassem entre si e não se cruzassem em momentos constitutivos, como sugere a análise de

Zavaleta.

Pensar o nacionalismo na Bolívia como um fenômeno que emana de momentos

comuns de crise política nos permite conceber que os setores sociais mobilizados, os

“oprimidos” da história, possam disputar o conteúdo da nacionalidade boliviana. Dentro desta

visão, está implicada a possibilidade deste novo bloco histórico popular alcançar uma

hegemonia política que opere seguindo os interesses dos setores que se mobilizaram nesta

última década, e não de seus adversários.

Page 162: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

152

Há uma outra problemática que marcou as primeiras reflexões deste trabalho. Trata-se

da maneira como alguns teóricos do nacionalismo trabalham com a face “historicista” e

“nativa” do nacionalismo, vendo nela uma fórmula necessariamente retrógrada. Eric

Hobsbawm, apesar de saudar o nacionalismo latino-americano pela sua falta de etnicidade,

preocupava-se seriamente com a região andina, que poderia ter seu melting pot ameaçado

pelo fracionamento em “comunidades mutuamente hostis sobre a base da raça, da língua ou

de qualquer outra coisa” (ibidem, p. 342). Mas esta não era uma preocupação somente de

Hobsbawm, Nairn, com todo o seu cuidado em caracterizar o desenvolvimento desigual e

combinado do capitalismo, também via na face populista do nacionalismo um sinônimo de

regressão perigosa, força inconsciente que deveria ser manejada com cuidado.

Mas a análise do indigenismo de Tristan Marof nos expôs a inadequação destas

considerações para determinados casos históricos. E se o passado é pensado para abrir portas

do futuro quando o presente representa a irracionalidade? Marof mesmo não trabalha esta

questão de forma muito aprofundada em La Justicia del Inca. Suas considerações sobre o

“comunismo andino” parecem ver neste somente uma fórmula para sustentar moralmente as

tarefas de soberania nacional que deveriam ser efetivadas pelo Estado boliviano naquele

momento, tarefas majoritariamente ligadas à necessidade de progresso. Contudo, mesmo sem

problematizar a noção de progresso, Marof recorria ao indigenismo para pensar e motivar um

futuro socialista, de solidariedade, sem desigualdade econômica, com bem-estar.

Este resgate do passado voltou a ser central para a sociedade boliviana a partir dos

anos 1970, e o novo indigenismo katarista apela a ideais de “bom governo” inspirados na

ordem política colonial, como as “duas repúblicas”. Esta seria a solução para um problema da

Bolívia contemporânea: a falta de representatividade das suas instituições estatais. Assim,

mesmo se pensarmos no que se concebe por um “indigenismo” contemporâneo, a referência

ao passado não pode ser somente entendida como uma forma de se criar “comunidades

mutuamente hostis”, em um processo que carece de racionalidade. A noção de etnicidade ou

de grupos étnicos que subjaz na crítica que Hobsbawm e Nairn fazem ao lado negativo do

nacionalismo é claramente insuficiente para entender este apelo ao passado.

Mesmo considerando que a ideia dos “tempos sociais” responde de certa maneira a

este problema, acredito que são necessárias algumas outras considerações teóricas sobre o

assunto. Nairn cita a figura do anjo da história de Benjamin para explicar a sua noção de

progresso e de desenvolvimento desigual e combinado. Eles seriam a tempestade que arrasta

o anjo da história e deixa escombros pelo caminho em que passa. Mas Benjamin, em outros

trechos das suas teses “sobre o conceito de história”, reivindica este olhar emocionado para

Page 163: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

153

passado como uma tarefa necessária, não uma fatalidade que precede a ação política

dramática, como parece entender Nairn. O historiador, comprometido com a emancipação e

com a luta de classes, precisa “escovar a história a contrapelo” (Benjamin, 1994, p. 225),

precisa contar a história “do ponto de vista dos vencidos, dos excluídos, dos párias” (Löwy,

2005, p. 79).

A memória dos vencidos, contudo, só tem sentido se atua como força para inspirar a

luta no presente, como sugere a tese XII usada como epígrafe destas considerações finais.

Neste sentido, tanto Nairn quanto Benjamin percebem neste apelo ao passado um “acumular

de forças” e ambos se inspiraram na experiência fascista para formulá-lo. Contudo, Nairn vê

somente o fascismo potencial deste olhar para o passado, enquanto Benjamin também

percebe nele a única arma para se combater o fascismo. Em seus escritos autobiográficos,

Benjamin comenta uma conversa tida com Brecht acerca dos crimes do regime nazista – a

passagem é esclarecedora neste sentido: “Enquanto ele falava assim, senti agir sobre mim

uma força suficiente para enfrentar a do fascismo, quero dizer uma força que tem raízes tão

profundas na história quanto a força fascista” (apud Löwy, 2005, p. 111). Portanto, o apelo à

história seria necessário para se enfrentar a barbárie do presente. E este apelo é sentimental, é

carregado de ódio e de espírito de sacrifício porque estas seriam as armas possíveis para se

romper com a ordem da classe dominante.

Ainda na tese XII, Benjamin cita Auguste Blanqui, cuja figura, que “abalara” o século

XIX, teria sido varrida pela socialdemocracia preocupada somente com as “gerações futuras”

(Benjamin, 1995, p. 228-229). Benjamin admirava a figura de Blanqui porque este não se

dedicava às gerações futuras, ou à busca pelo progresso, mas sim respondia às injustiças do

presente:

A atividade de conspirador profissional como foi Blanqui não supõe de maneira alguma a fé no progresso. Ela supõe, fundamentalmente, apenas a resolução de eliminar a injustiça presente. Essa resolução de, no último momento, arrancar a humanidade da catástrofe que a ameaça permanentemente, foi fundamental para Blanqui (...) (apud Löwy, 2005, p. 114-115).

Retornando ao caso boliviano, a passagem sobre Blanqui inspira um novo olhar sobre

a dinâmica que apontamos no primeiro ponto destas conclusões. A tensão entre as demandas

por estatalidade e autonomia dos setores populares pode ser vista como uma tensão entre

reivindicar descendentes futuros e, portanto, uma ideia de progresso, e buscar forças nos

antepassados escravizados e, portanto, em uma ideia de justiça.

Page 164: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

154

Ainda que teóricos importantes como Tom Nairn e Benedict Anderson tenham se

inspirado em Benjamin para formular suas teorias da nação e do nacionalismo, não consegui

encontrar neles um modelo teórico que dê conta deste olhar emocionado e necessário para

passado. A formulação de Smith sobre a necessidade de se ter “mitos passados” para a

existência do nacionalismo inspira a nossa análise, mas a noção de etnicidade é por vezes

muito restritiva e implica em identidades mutuamente excludentes que não necessariamente

emanam deste olhar. Assim como o socialismo que buscava respostas à crise do progresso

vivida durante o drama nazista, o indigenismo boliviano se volta para as irracionalidades e as

injustiças do presente. Um mundo à beira de crises ambientais seríssimas (escassez de água,

aquecimento global, desastres nucleares, etc.) dá materialidade às suas preocupações e as

teorias do nacionalismo, se esta ainda for uma categoria atual para a humanidade, precisam

responder a uma renovada crise do progresso.

Page 165: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

155

Referências

ACTON, L.. “Nacionalidade”. In: BALAKRISHNAN, G. Um mapa da questão nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000. P. 23-43. ALBÓ, X. “El perfil de los constituyentes”. In: Tinkazos. Ano 11, no. 23-24. La Paz: PIEB, 2008. P. 49-63. ____________. “The Long Memory of Ethnicity in Bolivia and Some Temporary Oscillations”. In: CRABTREE, J.; WHITEHEAD, L. Unresolved tensions: Bolivia past and

present. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2008. P. 13-34. ALBÓ, X.; BARRIOS, F. Por una Bolivia plurinacional y intercultural con autonomías. Cuaderno de Futuro No. 22. La Paz: IDH/PNUD, 2007. ANDERSON, B. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 ANDERSON, P. “The Antinomies of Antonio Gramsci”. In: New Left Review, I/100 (novembro/dezembro 1976). P. 5-78. ANDRADE, E. O. A Revolução Boliviana. São Paulo: Editora Unesp, 2007. ARNADE, C. La dramática insurgencia de Bolivia. La Paz: Librería Editorial GUM, 2008. BALAKRISHNAN, G. “A imaginação nacional” In: BALAKRISHNAN, G. Um mapa da

questão nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000. P. 209-225. BAUER, O. “A nação”. In: BALAKRISHNAN, Gopal. Um mapa da questão nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000. P. 45-83. BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. BLOCH, E. “Efectos políticos del desarrollo desigual”. In: LENK, K. El concepto de

ideología. Comentario crítico y selección sistemática de textos. Buenos Aires: Amorrortu, 1974. CEJIS / FSUTC-AT-SC. Situación y desafíos del movimiento campesino cruceño. Santa Cruz, 2006. CORTE NACIONAL ELECTORAL. Resultados elecciones generales y de prefectos 2005. Disponível em: <http://www.cne.org.bo/centro_doc/separatas/sep_egp2005_resultados.pdf>. Consultado em 22/06/2011.

Page 166: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

156

CRESPO, C. F. “Continuidad y ruptura: la ‘Guerra del Agua’ y los nuevos movimientos sociales en Bolivia”. In: La “Guerra del Agua” en Cochabamba (vários autores). Osal, 2000. P. 21-28. CRABTREE, J.; WHITEHEAD, L. Unresolved tensions: Bolivia past and present.

Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2008. DEBRAY, R. “Marxism and the National Question”. In: New Left Review, I/105 (setembro/outubro 1977). P. 25-41. DUNKERLEY, J. Rebelión en las venas, la lucha política en Bolivia 1952-1982. La Paz: Plural, 2003. ESCÓBAR, F. De la revolución al Pachakuti. El aprendizaje recíproco entre blancos e

indianos. La Paz: “Garza Azul” Impresores y Editores, 2008. GARCIA LINERA, A. “Autonomías indígenas y Estado multicultural. Una lectura de la descentralización regional a partir de las identidades culturales”. In: La descentralización que

se viene. La Paz: FES-ILDIS, 2003. P. 169-201. GARCIA LINERA, A. (coord.); CHÁVEZ LEON, M.; COSTAS MONJE, P. Los

movimientos sociales en Bolivia. La Paz: Plural, 2008. GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. V. 2 – Os intelectuais. O princípio educativo.

Jornalismo. Edição e tradução: Carlos Nelson Coutinho; coedição: Luiz Sérgio Henrique e Marco Aurélio Nogueira. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. ____________. Maquiavel, a política e o Estado moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. GUTIÉRREZ, R.; GARCIA LINERA, A.; TAPIA, L. “La forma multitud de la política de las necesidades vitales”. In: GARCIA LINERA, A.; GUTIÉRREZ, R.; PRADA, R.; TAPIA, L. El retorno de la Bolivia plebeya. La Paz: Muela del Diablo, 2007. HALL, S. “The great moving right show”. In: Marxism Today. January 1979. P. 14-20. HOBSBAWM, E. “Nacionalismo y nacionalidad en América Latina”. In: SANDOVAL, P. (coord.). Repensando la subalternidad: Miradas críticas desde/sobre América Latina. Lima: IEP/Sephis, 2009. P. 327-343. HYLTON, F.; THOMSON, S. “The Chequered Rainbow”. In: New Left Review, 35 (setembro/outubro de 2005). P. 40-64.

Page 167: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

157

____________. Revolutionary Horizons. Past and Present in Bolivian Politics. Londres: Verso, 2007. KLEIN, H. S. Historia de Bolivia. La Paz: Libreria Editorial “G.U.M.”, 2008. KOMADINA, J.; GEFFROY, C. El poder del movimiento político. Estrategia, tramas

organizativas e identidad del MAS en Cochabamba. La Paz: CESU; DICYT-UMSS; Fundación Pieb, 2007. LACLAU, E. Política e ideologia na teoria marxista: capitalismo, fascismo e populismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. LAZARTE, J. “Plurinacionalismo y multiculturalismo en la Asamblea Constituyente de Bolivia”. In: Revista Internacional de Filosofía Política, ano 2009, no. 33. P. 71-107. LYNCH, J. Las revoluciones hispanoamericanas, 1808-1826. Barcelona: Editorial Ariel, 2004. MAROF, T. La Justicia del Inca. Bruxelas: La Edición Latino Americana, 1926. MESA FIGUEIROA, J.; GISBERT, T.; MESA GISBERT, C.. Historia de Bolivia. La Paz: Editorial Gisbert, 2003. MONTENEGRO, C. Nacionalismo y Coloniaje. La Paz: Librería Editorial “G.U.M”, 2008. MORALES, J. A.; ESPEJO, J. “La minería y los hidrocarburos en Bolivia”. Documento de Trabajo 08/1994. Instituto de Investigaciones Socioeconómicas (IISEC). Disponível em: <http://www.iisec.ucb.edu.bo/papers/1991-2000/iisec-dt-1994-08.pdf>. Acesso: 22/06/2011. NAIRN, T. The break-up of Britain: crisis and neo-nationalism. Common Ground, 2003. PACTO DE UNIDAD (Asamblea Nacional de Organizaciones Indígenas, Originarias, Campesinas y de Colonizadores de Bolivia). Propuesta para la Nueva Constitución Política

del Estado: Por un Estado Plurinacional y la autodeterminación de los pueblos y naciones

indígenas, originarias y campesinas. Sucre, 6 agosto de 2006. Disponível como anexo em: <http://www.redunitas.org/PACTO_UNIDAD.pdf >. Acesso: 22/06/2011. ____________. Propuesta consensuada del Pacto de Unidad. Constitución Política del

Estado. Por un Estado Plurinacional Comunitario, Libre, Independiente, Soberano,

Democrático y Social. Sucre, 23 de maio de 2007. Disponível como anexo em: <http://www.redunitas.org/PACTO_UNIDAD.pdf >. Acesso: 22/06/2011. RED PARTICIPACIÓN Y JUSTICIA. Sistema de Justicia de los Pueblos Indígenas y

Originarios y Asamblea Constituyente. La Paz: Red Participación y Justicia, 2006.

Page 168: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

158

Disponível em: <http://www.participacionyjusticia.org/publicaciones/JCfinal.pdf>. Acesso: 22/06/2011. REINAGA, F. Manifiesto del Partido Indio de Bolivia. La Paz: Ediciones PIB, 1970. REGALSKY, P. Etnicidad y clase: El Estado boliviano y las estrategias andinas de manejo

de su espacio. La Paz: CEIDIS / CESU-UMSS / CENDA e Plural, 2003. ____________. “Bolívia na Encruzilhada”. In: Outubro – Revista do Instituto de Estudos Socialistas. No. 15, 1º semestre de 2007. São Paulo: Alameda, 2007. RICUPERO, B. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2000. RIVERA CUSICANQUI, S. “Liberal democracy and Ayllu Democracy in Bolivia: The Case of Northern Potosí”. In: Journal of Development Studies. Volume 26, issue 4, 1990. P. 97-121. ____________. “La raiz: colonizadores y colonizados”. In: ALBÓ, X.; BARRIOS, R. Violencias Encubiertas en Bolivia (vol. 1 – Cultura y Política). La Paz: Cipca / Aruwiyiri, 1993 ____________. Oprimidos pero no vencidos. Luchas del campesinado queshwa y aymara

1900-1980. La Paz: Aruwiyri, 2003. ROJAS, E. “El Ejército Indígena Aymara entre 2000 y 2003”. In: GUTIÉRREZ, R.; ESCÁRZGA, F. (coordenadoras). Movimiento indígena en América Latina: resistencia y

proyecto alternativo, Volumen II. Casa Juan Pablos / Centro Cultural / S. A. de C.V./ Centro de Estúdios Andinos y Mesoamericanos / Benemérita Universidad Antónoma de Puebla. 2006. P. 60-67. ROMERO BONÍFAZ, C. El proceso constituyente boliviano: el hito de la cuarta marcha de

tierras bajas. Santa Cruz de la Sierra: CEJIS, 2005. SMITH, A. D. The Ethnic Origins of Nations. Oxford: Blackwell Publishers, 1986. ____________. Nationalism and modernism. Routledge, 1998. STALIN, J. “The nation”. In: Hutchinson, John; Smith, Anthony D. Nationalism. Oxford: Oxford University Press, 1994. P. 18-21. STUART MILL, J. Representative Government. Kitchener: Bartoche Books, 2001. Disponível em: <http://socserv.mcmaster.ca/econ/ugcm/3ll3/mill/repgovt.pdf>. Acesso em: 09/08/2010.

Page 169: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

159

SVAMPA, M.; STEFANONI, P. “‘Evo simboliza el quiebre de un imaginario retringido de la subalternidad de los indígenas’. Entrevista con Álvaro García Linera, vicepresidente de Bolivia”. In: MONASTERIOS, K.; STEFANONI, P.; DO ALTO, H (editores). Reinventando

la nación en Bolivia. Movimientos sociales, Estado y poscolonialidad. La Paz: Plural Editores; Clacso, 2007. TAPIA, L. “Una reflexión sobre la idea de Estado plurinacional”. In: OSAL, ano VIII, nº 22, septiembre. Buenos Aires: Clacso, 2007. TORANZO ROCA, C. “Let the mestizos stand-up and be counted”. In: CRABTREE, J.; WHITEHEAD, L. Unresolved tensions: Bolivia past and present. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2008. P. 35-50. VARGAS, H.; KRUSE, T. “Las victorias de abril: una historia que aún no concluye”. In: La

“Guerra del Agua” en Cochabamba (vários autores). Osal, 2000. P. 7-14. WHITEHEAD, L. “Bolivia since 1930”. In: BETHELL, L. (org.). The Cambridge History of

Latin America. Volume 8. Latin America since 1930: Spanish South America. Cambridge University Press, 1991. YASHER, D. J. “Democracy, Indigenous Movements, and the Postliberal Challenge in Latin

America”. In: World Politics, v. 52, no. 1, outubro de 1999. P. 76-104. YRIGOYEN FAJARDO, R. Z. “Aos 20 anos do Convênio 169 da OIT: Balanço e desafios da implementação dos direitos dos Povos Indígenas na América Latina”. In: VERDUM, R. Povos Indígenas: Constituições e Reformas Políticas na América Latina. Brasília: Instituto de Estudos Socioeconômicos, 2009. P. 9-62. ZAVALETA MERCADO, R. El poder dual. México DF: Siglo XXI Editores, 1979. ____________. Clases y conocimiento social. Cochabamba: Editorial “Los Amigos del Libro”, 1988. ____________. Lo nacional-popular en Bolivia. La Paz: Plural Editores, 2008. ____________. “Las masas en noviembre”. In: ZAVALETA MERCADO, R; TAPIA, L. (compilador). La autodeterminación de las masas. Bogotá: Siglo del Hombre Editoresy Clacso, 2009.

Documentos sobre “Visão de País” das agrupações políticas da constituinte

Page 170: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

160

AAI (Alianza Andrés Ibáñez). “Visión de país”. Março de 2007. APB (Autonomía para Bolivia). “La visión de un país autonómico. Agrupación ciudadana ‘Autonomía para Bolivia’”. Março de 2007. AS (Alianza Social). “Por una patria comunitaria y socialista. Hacia una reforma constitucional revolucionaria exordio necesario para los oprimidos”. Março de 2007. ASP-Tapia (Alianza Social Patriótica, documento apresentado por Humberto Tapia). “Visión de País. Propuesta de cambio revolucionario en democracia” Março de 2007. ASP-Vargas (Alianza Social Patriótica, documento apresentado por David Vargas). “Exposición: Visión de País”. Março de 2007. Ayra-Conamaq (Movimiento Ayra, documento apresentado por Evaristo Pairo, representando a proposta do Conamaq). “Propuesta ‘Visión de País’”. Março de 2007. CN-PI (Concertación Nacional - Patria Insurgente). “Visión de país. Patria Insurgente Sol para Bolivia”. Março de 2007. MAS-IPSP (Movimiento al Socialismo – Instrumento Político por la Soberanía de los Pueblos). “Visión de país desde las naciones indígenas y originarias y la sociedad civil”. Março de 2007. MBL (Movimiento Bolivia Libre). “Visión de país. Propuesta a la Asamblea Constituyente”. Março de 2007. MCSFA (Movimiento Ciudadano San Felipe de Austria). “Discurso “Visión de País”. Visión de país”. Documento apresentado à Assembleia Constituinte. Março de 2007. MNR-A3 (Movimiento Nacionalista Revolucionario – A3, Santa Cruz). “Visión de país”. Março de 2007. MNR-FRI. (Movimiento Nacionalista Revolucionario – Frente Revolucionario de Izquierda) “Principios y políticas para la Nueva Constitución Política del Estado”. Março de 2007. MOP (Movimiento Originario Popular). “Visión de país”. Março de 2007. Podemos (Poder Democrático y Social). “Bolivia – una nación”. Março de 2007. UN-Lazarte (Unidad Nacional, documento apresentado por Jorge Lazarte). “Del país que tenemos al país que queremos: moderno y democrático. Cambiar nosotros mismos para cambiar el país”. Março de 2007.

Page 171: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

161

UN-Pol Achá (Unidad Nacional, documento apresentado por Ricardo Pol Achá). “Propuestas – Unidad Nacional”. Março de 2007. Jornais diários consultados

El Deber (Santa Cruz de La Sierra, Bolívia): <www.eldeber.bo> El País (Madri, Espanha): <www.elpais.com> La Razón (La Paz, Bolivia): <www.la-razon.com> Los Tiempos (Cochabamba, Bolívia) – <www.lostiempos.com> Documentos oficiais

Constituição Política da República de Bolívia (promulgada em 1967). Disponível em: <http://pdba.georgetown.edu/Constitutions/Bolivia/bolivia1967.html>. Acesso em 03/12/2010. Constituição Política da República de Bolívia (de 1967, reformada em 1994 e em 2002). Disponível em: < http://pdba.georgetown.edu/Constitutions/Bolivia/consboliv2002.html >. Acesso em: 03/12/2010. Constituição Política do Estado (aprovada em dezembro de 2007). Constituição Política do Estado de Bolívia (promulgada em 2009). Disponível em: <http://www.presidencia.gob.bo/download/constitucion.pdf>. Acesso em: 15/12/2010. Convenção 169 da OIT, sobre povos indígenas e tribais. Disponível em: <http://www.institutoamp.com.br/oit169.htm>. Acesso em: 15/12/2010. Entrevistas citadas

Adolfo Mendoza. Foi assessor do Pacto de Unidade na Assembleia Constituinte. Hoje é senador pelo MAS-IPSP. Entrevista realizada em 04/09/2010. Alejandro Almaraz. Foi Vice-Ministro de Terras do governo de Evo Morales até fevereiro de 2010. Entrevista realizada em 03/09/2010. Eduardo Córdova. Sociólogo da Universidad Mayor de San Simón. Entrevista realizada em 06/11/2007.

Page 172: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

162

Eugenio Rojas. Liderança camponesa dos bloqueios de 2000 a 2003 em Omasuyos. Foi prefeito de Achacachi e atualmente é senador pelo MAS-IPSP. Entrevistas concedidas em 13/04/2008 e 20/04/2008. Gabino Apata. É Arquiri Apu Mallku (secretário executivo) do Conamaq, de J'acha Karanga (comunidade aymara perto da fronteira com o Chile). Entrevista realizada em 23/08/2010. Gamal Serhan. Foi deputado constituinte pelo Podemos, se elegeu por Cochabamba. Entrevista realizada em 03/09/2010. Juan Carlos Pinto. Foi durante o período final da constituinte diretor da Representación

Presidencial para la Asamblea Constituyente (Repac). Atualmente coordena o projeto de publicação de um enciclopédia sobre a constituinte dentro da Vice-Presidencia. Entrevista realizada em 21/08/2010. Luis Tapia. Fez parte do grupo Comuna, é professor na Universidad Mayor de San Andrés. Entrevista realizada em 01/09/2010. Macario Tola. Foi deputado constituinte pelo MAS-IPSP. Ex-mineiro, se elegeu por El Alto. Entrevista realizada em 23/08/2010. Pedro Nuny. É representante do povo mojeño de Beni. Foi vice-presidente da Cidob e é, atualmente, um dos sete deputados na Assembleia Legislativa Plurinacional que foram eleitos por circunscrições especiais indígenas. Entrevista realizada em 18/08/2010. Ramiro Molina. Antropólogo, foi Ministro de Assuntos Indígenas da gestão de Gonzalo Sánchez de Losada (93-96). Atual diretor do Museu Nacional de Etnografia. Entrevista realizada em 18/08/2010. Raul Prada. Demógrafo, fez parte do grupo de intelectuais Comuna (do qual também participaram Álvaro Garcia Linera, Oscar Vega, Luis Tapia e Raquel Gutiérrez). Foi eleito pelo MAS-IPSP para ser deputado na Assembleia Constituinte. Em 2010, foi Vice-Ministro de Planificação Estratégica do Estado. Entrevista realizada em 25/08/2010.

Page 173: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

163

Apêndices

Grandes mobilizações entre 2000 a 2005

Evento Local e estratégias de luta

Reivindicações Atores Discurso do governo

Ações do governo Mortos e feridos Resultado

Guerra da Água – janeiro a março de 2000 Governo Bánzer

- Cochabamba (epicentro), Achacachi e Patacamaya; - Tomada simbólica da cidade de Cochabamba; criação da Coordenadora da Água.

- Reformulação Lei de Águas; - “Fora” Aguas del Tunari.

- Principal: Coordenadora da Água (trabalhadores fabris, cocaleiros, regantes, camponeses, vecinos, moradores da cidade em geral) -Secundários: Camponeses de Omasuyus, de Patacamaya e outras regiões.

- Conspiração do narcotráfico; - Desordem social prejudicial à democracia e à economia;

- Prisão das lideranças (22 no total); - Estado de sítio. (Ocasionaram críticas da Igreja e base aliada)

- 6 mortos (1 jovem em Cochabamba, 3 soldados em Achacachi, 1 jovem em Achacachi, 1 camponês em Patacamaya); - 40 feridos.

Aceitação da pauta completa do movimento.

Bloqueios –setembro a outubro de 2000 Governo Bánzer

- Manifestações ocorreram em nível nacional, bloqueio geral de estradas. - Pontos mais organizados: Norte do Departamento de Cochabamba (Chapare), norte do departamento de Santa Cruz, Omasuyus, e cidade de La Paz

- Salarial (professores); - 70 pontos da CSUTCB (revogação da Lei Inra e do decreto 21060, tratores, etc.); - Não construção de quartéis no Chapare e um cato de coca; - Saída de Bánzer (só alguns setores da Coordenadora da Água).

Camponeses de Omasuyus, cocaleiros do Chapare, camponeses do norte de Santa Cruz, professores e estudantes.

- Conspiração do narcotráfico; - Respeito à Constituição Política do Estado; - Desordem social prejudicial à democracia e à economia.

- Exército enfrenta bloqueios.

- 10 mortos; - 156 feridos.

Aceitação parcial da pauta do movimento.

Quartel de Q’alachaka – julho de 2001 Governo Bánzer /Quiroga

Bloqueios nas províncias de La Paz: Omasuyus, Los Andes, Manco Cápac, Camacho e Franz Tamayo

- Pautas da Csutcb (70 pontos); - Auto-governo indígena, substituição de símbolos estatais, mudança de bandeira, hino e heróis nacionais (2000).

- Camponeses de Omasuyus (isolados em 2000); - Apoio simbólico de cocaleiros e Coordenadora da Água.

(não encontrei informações)

- Governo envia efetivo de 5 mil homens para se enfrentar com bloqueio (gera maior mobilização – 25 mil indígenas)

2 mortos (não encontrei informações)

Guerra da Coca - janeiro e fevereiro

- Bloqueios no Trópico de

- Suspensão do Decreto 26415.

- Cocaleiros; - Apoio estudantes

- Sanguinários, mataram soldados

- Exército enfrenta manifestações e

11 mortos (3 soldados, 1 policial

Aceitação total da pauta.

Page 174: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

164

de 2002 Governo Quiroga

Cochabamba (Chapare) – principal. Tomada de prédios públicos em Sacaba; - Greve de fome de Evo Morales.

de Cochabamba e setores camponeses do altiplano.

e policial. marchas; - Prisão de 70 dirigentes; - Parlamento cassou o mandato de deputado de Evo Morales.

e 7 caponeses).

Marcha pela Constituinte – maio a agosto de 2002 Governo Quiroga

- Marcha de Santa Cruz de La Sierra a La Paz, passando por Cochabamba; - Mobilização da comunidade internacional para sensibilização pela pauta.

- Assembléia Constituinte com participação não mediada por partidos políticos; - Contra pacote agrário; - Reformulação da Inra; - Decreto que regulamenta consulta (169 OIT).

- Bloco oriente (indígenas e camponeses das terras baixas); - Conamaq.

- Marcha tem interesse “político”.

- Ameaça militar, mas sem qualquer enfretamento; - Negociações paralelas.

Aceitação parcial da pauta

Bloqueios - janeiro 2003 Governo Sánchez de Lozada

- Bloqueios no Trópico de Cochabamba; - Secundário: bloqueios em Chuquisaca. - Conformação do Estado Maior do Povo Boliviano (reúne Csutcb, cocaleiros e Coordenadora da Água).

- Fim da erradicação forçada da coca; - Não entrada na ALCA; - Problemas de dotação de terras (Lei Inra); - Projeto alternativo de exportação do gás aos EUA (não via Chile) - Saída de Gonzalo Sánchez de Lozada e vice (se não resolvem reivindicações são antipatrias e traidores da nação).

- Cocaleiros; - Apoio: COB, Csutcb, Coordenadora da Água.

- “Não negociar sob pressão (causou grande atraso na negociação); - Estado Maior do Povo como projeto para deslocar sistema democrático e instaurar um sistema “maniqueísta”.

- Violência no enfrentamento dos bloqueios; - Negociações paralelas com diferentes setores.

7 camponeses, 1 mineiro, 1 soldado

Diálogo interrompido pelas mobilizações de fevereiro.

Fevereiro negro – 2003 Governo Sánchez de Lozada

- Enfrentamentos entre polícia/população e exército em La Paz; - Paralisação da polícia em outras regiões. - Greves e atos de

- Fim do impuestazo; - Fora Gonzalo Sánchez de Lozada, mudança de seu gabinete; - Pautas específicas (40% de aumento salarial para a

- Polícia nacional, que fez uma paralisação e se enfrentou com o Exército; - COB e Estado Maior do Povo chamam bloqueios e greves.

- Impuestazo é necessário para que país não naufrague na crise econômica, necessita sacrifício de todos.

-Exército se enfrenta com polícia; - Franco-atiradores (até hoje não há consenso sobre responsabilidade da existência de franco-atiradores);

- 33 mortos; - 173 feridos.

- Aceitação total da pauta imediata (fim do impuestazo); - Governo reformula gabinete para responder aos pedidos de renúncia do presidente.

Page 175: O nacionalismo boliviano em tempos de … · FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores

165

rua em Santa Cruz, La Paz e Cochabamba; - Bloqueios da estrada entre Cochabamba e Santa Cruz.

polícia, mais verbas para educação, saúde etc., reivindicações de janeiro).

- Frente à matança, governo cede rápido.

Guerra do Gás – outubro 2003 Governo Sánchez de Lozada

- Paralisação e atos nas cidades; - Bloqueios de estradas (permanente no departamento de La Paz e freqüente em Cochabamba e Santa Cruz); - Marchas mineiras e camponesas até a sede do governo; - Construção de barricadas para impedir a entrada do exército em El Alto.

- Não à venda de gás por portos chilenos; - Nacionalização e industrialização dos hidrocarbonetos (fim do decreto que privatiza recursos naturais); - Fora Sánchez de Lozada

Juntas de vizinhos de El Alto, CSUTCB, COB, mineiros de Huanuni, cocaleiros, camponeses e colonizadores de Santa Cruz.

- “Pequena Bolívia” violenta e que quer dividir o país x maioria trabalhadora que apóia o governo; - Objetivo é golpe de Estado narco-sindical; - Atentado à democracia e à ordem constitucional; - Intervenção do exército para manter a segurança da população e evitar depredações.

Envia exército para se enfrentar com setores mobilizados de El Alto e com mineiros em marcha.

60 mortos civis.

Aceitação total da pauta (renúncia de Sánchez de Lozada).

Fonte: elaboração própria a partir de dados de Garcia Linera et al (2008), Crespo (2000), El País (9 a 12/04 e 14/09 a 07/10 de 2000), El Deber (14 a 24/09 de 2000), Agencia de Prensa Alteña (04/10/2006).