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Luiz Roberto Zanotti “O nascimento da tragédia e a musica de Wagner” orientador: Alexandre Gomes Pereira Curitiba, 22 de abril de 2005. 1

O nascimento da tragédia e a música de Wagner ; um ensaio sobre o pensamento de Nietzsche

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Page 1: O nascimento da tragédia e a música de Wagner ; um ensaio sobre o pensamento de Nietzsche

Luiz Roberto Zanotti

“O nascimento da tragédia e a musica de Wagner”

orientador: Alexandre Gomes Pereira

Curitiba, 22 de abril de 2005.

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1. Introdução

O objetivo desta monografia é analisar como a filosofia de Nietzsche está

extremamente entrelaçada com a arte, uma filosofia que não se resume

simplesmente numa reunião de teses que fixam uma dogmática ou um conjunto

de técnicas que estabelece uma metodologia, e sim; uma busca de abordar os

problemas cruciais do homem dentro da modernidade. Uma filosofia que seja a

própria experiência da vida numa perspectiva estética, onde o riso aparece como

a possibilidade de reverter perspectivas fossilizadas de filósofos ridiculamente

sérios e com a pretensão de construir grandes sistemas metafísicos baseados em

forte dogmatismo.Para Nietzsche, o pensamento só pode ser considerado genuíno

quando como numa musica nos convide para a uma dança.

“Moro em minha própria casa,

Nada imitei de ninguém

E ainda ri de todo mestre,

Que não riu de si também”.

“Sobre Minha Porta” (NCP, 171).

A profunda ligação de sua filosofia com a sua arte poética vai ocasionar

uma linguagem totalmente articulada com o seu conteúdo filosófico. É a partir de

manifestações artísticas e conteúdos filosóficos que Nietzsche vai iniciar sua

reflexão em “O nascimento da tragédia”.

“O nascimento da tragédia” está associado tanto à filosofia de Schopenhauer

através do seu conceito de vontade, mas principalmente à musica de Wagner - a

quem ele dedica o prefácio do livro - em seu aspecto de uma possível

redescoberta neste autor da musica trágica.

Estas associações, no entanto, não significam que exista simplesmente uma

assimilação desta ou daquela tese do filósofo ou do compositor citados; pois sua

principal questão, como já relatamos, diz respeito da arte como a forma para o

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aparecimento da realidade, com a sua firme convicção de que a arte e

principalmente a música é a atividade propriamente metafísica da vida.

“Nietzsche é o primeiro pensador que, perante a história universal pela

primeira vez abordada em seu conjunto, coloca a pergunta decisiva e reflete

internamente em toda a sua extensão metafísica”.(HEC, 102).

Nietzsche analisa o conceito filosófico de vontade - que apresenta a música

como a mais adequada forma de manifestação da realidade – presente na filosofia

de Schopenhauer junto ao poder irresistível da musica alemã de Wagner. Ele

acredita no renascimento do espírito trágico presente principalmente na música

dionisíaca da tragédia grega, uma música que em “O nascimento da tragédia”

parece proceder de um mundo de valores primitivos, caótico e brutal. Esta música

teria a propriedade de criar um turbilhão que aproximaria a vida e a morte, e desta

forma confundiria a compreensão humana, impedindo a tentativa de qualquer

explicação a ser dada através da racionalidade instituída pela modernidade.

“O musico dionisíaco, inteiramente isento de toda imagem é ele próprio

dor primordial e eco primordial desta”.(NNT, 45).

O renascimento da musica trágica naquele momento afastaria a sociedade

alemã de um vazio cultural que consistia em valorizar uma forma de

intelectualidade erudita, burocrática em nome de uma racionalidade e neutralidade

científica. Esta música traria novo alento e autenticidade a esta sociedade através

de um projeto wagneriano duma obra de arte total.

Assim, a musica de Wagner, que como mencionamos foi extremamente

influenciada pela filosofia de Schopenhauer, é apresentada como o renascimento

da musica trágica numa tentativa de evitar esta burocratização, esta

racionalização da musica alemã. Nietzsche vai chamar esta modalidade musical

de “musica romântica”.

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Nietzsche observa neste primeiro momento de “O nascimento da tragédia”

que a musica de Wagner tem a mesma postura corajosa da tragédia grega

perante o drama da existência, pois ela busca romper com as ilusões

consoladoras alimentadas pela religião.Desta forma, a dupla de autores, Wagner e

Schopenhauer fazem parte do “sublime” caminho precursor de uma abordagem

estética do movimento do aparecimento da realidade, presente nesta reflexão de

Nietzsche.

É a partir de considerações filosóficas acerca da tragédia na Grécia Antiga, e

desta dupla de autores que Nietzsche vai propor que a manifestação da arte

trágica traz consigo toda uma abordagem da construção da realidade que se dá

através dos impulsos apolíneos e dionisíacos.

Estes dois impulsos vão ser fundamentais na construção da tragédia grega.

O impulso apolíneo vai desempenhar um papel dentro de uma dimensão dos

sonhos e das artes plásticas, enquanto o impulso dionisíaco, assimilado a partir

dos rituais dos povos bárbaros, dentro de uma dimensão de embriaguez, vai

propriciar a perda das barreiras da individuação, com a consequente ameaça da

aniquilação do indivíduo. Este espírito dionisíaco estaria reaparecendo na musica

composta por Wagner, que é assim descrita por Nietzsche em “Richard Wagner

em Bayereuth”:

“Cada um de seus impulsos naturais e intelectuais ambicionava o

desmedido, todos os seus vividos talentos queriam libertar-se

individualmente; quanto maior sua abundancia, tanto maior o tumulto, tanto

maior a hostilidade de seu cruzamento”.(RWB, 13).

Nesta citação aparece claramente a propriedade deste espírito que estava

presente no elemento dionisíaco da tragédia grega, que faz com que a natureza

atinja o supremo júbilo artístico tornando possível a dissolução da individualidade;

fazendo com que o “múltiplo”, o Dionisio despadaçado volte a ser novamente

“Uno”.Assim, a dissolução que o elemento dionisíaco trouxe através da sua

musica em sua comovedora violência, no seu primitivo transbordar, no fenômeno

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no qual os sofrimentos fazem com que o prazer se mostre estaria sendo

reencontrada na musica de Wagner:

“Sua natureza aparece tremendamente simplificada, cindida entre

duas tendências ou esferas. Por baixo, numa corrente impetuosa, se agita

um desejo violento que, por assim dizer, quer vir à tona por todos os

caminhos, cavernas e abismos e que anseia pelo poder” (RWB, 10).

Esta musica violenta, dura, que se apresenta impetuosa como o movimento

da vida se apresenta para Nietzsche como a necessidade do surgimento da arte

trágica para os gregos.Foi a partir do reconhecimento deste sentimento trágico do

impetuoso, do violento, do absurdo da existência presente na dimensão dionisíaca

que os gregos inventaram a arte trágica:

“Uma propensão intelectual para o duro, o horrendo, o mal, o

problemático da existência, devido ao bem estar, a uma transbordante

saúde, a uma plenitude de existência” (NNT, 14).

Esta arte apareceu como a forma de experimentar a vida a partir de uma

perspectiva artística, em que o ser humano transcende a natureza meramente

individual, e ao dissolver-se no todo entra em contato intimo com a existência. A

arte salva-o e, por intermédio da arte, é salva a existência. A arte trágica se

apresenta para Nietszche como a única apta de abrir espaço para uma criação,

pois será através da arte que poderemos alcançar a unidade e, por conseguinte, a

alegria do devir que também é a alegria da destruição.

Esta visão estética da existência proposta por Nietzsche surge em

contraponto de uma perspectiva de uma sociedade estabelecida sobre valores

morais do Cristianismo que determina o “bem” e o “mal” como valores

absolutos.Esta doutrina estabelece uma existência atual vigída pelo sofrimento,

tratando a vida de uma forma pejorativa e não digna de ser vivida e oferecendo

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em contrapartida o consolo metafísico de uma possibilidade de existência futura

cheia de alegria e felicidade.

Desta forma, Nietzsche afirma que a doutrina do Cristianismo é incapaz de

levar a humanidade para um novo período e para uma nova maneira de pensar

porque está fossilizada num dogmatismo que foi incorporado e tem sua origem em

Platão. Esta submersa nesta dualidade metafísica que separa o corpo da alma, a

matéria do espírito, o sensível do inteligível, o mundo atual de sofrimento de um

mundo futuro de alegria. Portanto, para que se possa usufruir uma existência

“dionisíaca” é necessário que se modifique este panorama dado pela tradição e

pelo cristianismo com a implosão deste dualismo. É necessário que se assuma

como novo pano de fundo, não a promessa da vida futura, mas sim, o

reconhecimento do terror e o absurdo da existência. Que se reconheça a vida no

que ela tem de mais alegre e exuberante, mas também de mais terrível e

doloroso.Assim, Nietzsche entrelaça a filosofia com a arte, pois é preciso aceitar a

vida no que ela tem de melhor e mais belo, porém também é preciso aceitar o

horrível e doloroso, fazendo que a atividade filosófica sobre a existência do

homem deve ser a arte, pois:

“a arte é essencialmente dizer sim, abençoar, divinizar a existência...”

(FP14-55).

A existência não pode estar baseada numa “moral” que legisla

absolutamente entre o bem e o mau. É contra esta filosofia “católico- platônica ”

que despreza todas as legitimas aspirações humanas à vida; que Nietzsche vai

pregar um pensamento baseado na arte e no riso, ele vai buscar uma certa

postura “amoral” com o firme propósito de desmistificar esta exigência de um

idealismo dogmático e um excesso de seriedade, ele vai procurar trazer a filosofia

para a “vida aqui e agora” propondo a existência do mundo como um fenômeno

estético, ou em outras palavras, é a arte dionisíaca que está por traz de todo

“acontecer” da realidade:

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“-um “deus”, se assim se deseja, mas decerto só um deus-artista

completamente inconsiderado e amoral, que no construir como no destruir,

no bom como no ruim, quer aperceber-se de seu idêntico prazer e

autocrítica, que criando mundos, se desembaraça da necessidade da

abundancia e superabundância, do sofrimento das contraposições neles

apinhadas”. (NNT, 18).

Como este “deus” em seu movimento de criação e destruição da realidade

apresenta um mundo que constantemente se modifica, a postura dogmática não

pode dar conta de sua existência, restando a possibilidade de apreensão da

realidade através da arte.Assim, dentro de uma perspectiva estética de vida dando

conta desta realidade, vai ser a arte dionisíaca que vai buscar a apreensão do real

no prazer da criação, no construir e destruir, numa postura de não buscar nada

além do que a própria vida traz em seu movimento, numa racionalidade isenta do

idealismo que produz como meta a felicidade numa vida futura.

Esta forma de olhar a “vida” se afasta radicalmente da doutrina cristã que

como uma doutrina moral baseada numa verdade divina, assim como Platão;

desterra toda arte para o reino da mentira pelo fato de sua transitoriedade,

arbitrariedade, fantasticidade e efêmeridade.

Esta doutrina está numa clara vingança contra a própria vida, num asco e

fastio por ela, sob a crença de uma outra e melhor vida futura.

“... o mundo como a eternamente cambiante, eternamente nova visão

do ser mais sofredor, mais antiético, mais contraditório, que só na aparência

sabe redimir-se: toda esta metafísica do artista pode-se denominar arbitrária,

ociosa, fantástica - o essencial é que ela já denuncia que um dia, qualquer

que seja o perigo se porá contra a interpretação, e a significação morais da

existência”.(NNT19)

Essa atitude de aceitar a vida em sua plenitude, no que há de bom e

também no que há de pior, é o que Nietzsche chama de “amor fatti” numa clara

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resposta aos sintomas de uma sociedade “romântica” que se encontra num estado

de prostração em todos os setores da vida social, mas, sobretudo na área da arte,

envolvida nas teias do que hoje chamamos de “industria cultural” que perpetua um

ideal de homem adaptado aos padrões de moral de uma sociedade de massa,

num processo de internalização e espiritualização da crueldade.

“Todos os instintos que não se descarregam para fora se voltam para

dentro – é isso que eu denomino interiorização do homem; é somente com

isso que cresce no homem aquilo que mais tarde se denomina sua “alma””.

(NGM, 252?).

Esta “alma” que faz parte da dualidade platônica entre corpo e alma, como

veremos adiante, está inserida dentro de uma racionalidade dada pela

linguagem.Esta dualidade tem que ser implodida com o afastamento da promessa

de uma vida futura, da idéia de que a vida “aqui e agora” é indigna de ser

desejada.Para Nietzsche, a vida tem um forte caráter de “amoralidade”, e esta

moral cristã está sempre impregnada de uma falsa moralidade, de uma negação

da própria vida, de uma necessidade de dissolução da vida, sempre aparecendo

como sendo o começo de um determinado fim.

Assim, num movimento em prol da vida, a tragédia grega aparece como

uma contra-doutrina e uma contra-valoração deste tipo de vida, que Nietzsche

chama de “romântica”. E neste movimento puramente artístico, temos o que

podemos chamar de uma “vontade de vida”, uma vida que deve ser vivida neste

mundo, numa vida que reconhece a dor da existência, que não necessita do

consolo metafísico de outros mundos.Uma vida que não necessita seguir às

regras morais que foram criadas pelos homens mais que atingiram o caráter de

leis divinas e às quais somos impingidos de acatar e de temer.Uma “vontade de

vida” que se afirma e se reconhece na dissolução da sua individualidade e na

perda da sua forma ao encontrar a unidade:

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“A afirmação da vida, também nos seus mais estranhos, mais árduos

problemas, a vontade de viver fruindo o sacrifício dos mais altos tipos

produzidos pela sua inexauribilidade, isso tudo era para mim dionisíaco, era

a ponte de passagem para chegar a psicologia do poeta trágico. Contudo,

não para libertar-se dos temores e da piedade, não para purificar-se de uma

paixão perigosa como um gesto violento (...) mas sim, por ser ele mesmo,

acima do temor e da piedade, a eterna alegria do porvir, aquela alegria que

encerra em si também a alegria da destruição”.(NEH, 78).

Uma vida a ser vivida aqui e agora, e que se afirma em seus árduos

problemas, na afirmação de uma vida na dor do viver que estava claramente

contraposta pelos gregos ao observarem a plenitude da existência dos deuses

gregos sob o radioso clarão do sol. Ai está o nascimento da dor nestes homens

homéricos, que ao se verem impossibilitados de uma existência igual à dos

Deuses, ao invés de ficarem se lamuriando e voltarem-se para a promessa de

uma vida futura pegam os dizeres de Sileno:

“O melhor de tudo é totalmente inalcançável para ti: não teres

nascido, não ser, ser nada. E depois o melhor para ti-morrer logo”.

E o invertem para uma extremada “vontade de viver” mudando o ideal de

um “morrer logo” para um ideal a ser atingido de um “morrer nunca”.Este ideal vai

ser procurado através da musica e da tragédia; é assim que o povo grego, uma

das espécies humanas que mais teve o prazer pelo viver, vai tratar o próprio valor

da sua existência.

2. A tragédia dionisíaca

A tragédia grega é o gênero teatral advindo de encenações derivadas dos

cultos dedicados a Dionísio.Nestes cultos, trienalmente, em pleno inverno, um

grupo de mulheres descalças e com vestes ligeiras ( tiaso) subiam as altas

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montanhas cobertas de neve para executar correrias e danças frenéticas

(oreibasia) ao som de flautas e tamborins. Estas mulheres chamadas de

“bacantes” apanhavam um animal e o dilaceravam (sparagmos), e comiam-no cru,

(omophagia) alcançando assim um estado de êxtase.

Existem ainda referencias à grupos de mulheres embriagadas ou simulando

que se encontravam "possuídas", endemoninhadas, lançando sobre si cinzas e

pó, estas seguidoras de Dionísio refugiavam-se em locais ermos para, em contato

com o ar livre e a natureza selvagem, exorcizar a "possessão". Estes grupos

femininos que perambulavam pelas montanhas e bosques num estado de

permanente frenesi, alimentando-se de ervas, bagas silvestres e leite de cabra

selvagem, porém segundo o senso comum era Dionísio que as alimentava. A

mulher atingida por esta possessão visualizava estranhas figuras, ouvia o som de

flautas e caia num profundo paroxismo, sendo atacada por um furor irresistível de

dançar.

Nietzsche apresenta a dança como sendo a própria vida, pois assim como a

vida, a dança é sempre movimento, sempre mutável.Esta característica da vida

aparece com incrível clareza na seguinte passagem:

“(Zaratustra) Certo dia, estava a caminhar com os seus discípulos

quando se deparou com jovens a bailar num verde prado. Ao perceberem a

sua presença, elas pararam imediatamente de dançar”.(NAF, Canto de

dança).

Neste canto Nietzsche demonstra a sua critica ao dogmatismo, ao mostrar

que os que julgam a realidade como sendo estática, são os que se furtam a

conhecê-la.Buscando apreendê-la, dela se afastam; querendo capturá-la, fazem

com que lhes escape.A realidade não é nem transcendente nem virtuosa, nem

casta nem etérea, ela é apenas mutável.

Por outro lado, essas explosões imprevisíveis, anárquicas e passionais

presentes no culto dionisíaco são identificadas por Nietzsche como as autenticas

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manifestações de uma “vontade de viver” que foram aprisionadas pela moral, pelo

preconceito e pela racionalidade da Modernidade.

“Duas vezes apenas, bateste tuas castanholas com mãos pequenas – e

já o meu pé balançava no frenesi pela dança. -Meus calcanhares se erguiam,

meus dedos do pé escutavam, para compreender - te: pois o dançarino,

afinal, tem ouvido nos dedos dos pés”.(NAF, “O outro canto de dança”).

Nesta passagem é possível ver as evocações à figura de Dionísio, pois é

através do pé que começa o transe dionisíaco.

“Através de Dionísio saltitante, o pé (pous) reencontra o verbo saltar

(pédan) e sua forma -saltar longe de - (ekpèdan), que é um termo técnico do

transe dionisíaco”.(Marcel Detiene in SME, 57).

A tragédia dionisíaca propriamente dita é coordenada por um corifeu,

personagem chave na deflagração da encenação, pois apresenta-se como o

mensageiro de Dionísio tendo como contraponto um coro com a função de

externar por gestos e passos ensaiados os momentos de alegria ou de terror que

permeavam a narrativa, e que segundo Nietzsche vão proporcionar ao povo grego

o consolo metafísico de que a vida apesar de sua mutabilidade vive no coro

satírico, como coro de seres naturais, a perenidade.

“O sátiro, enquanto coreuta dionisíaco, vive numa realidade

reconhecida em termos religiosos e sob a sanção do mito e do culto. Que

com ele comece a tragédia, que de sua boca fale a sabedoria dionisíaca da

tragédia...” (NNT, 55).

Esta modalidade de teatro teve no início uma forte rejeição dos governantes

e dos sacerdotes na aceitação do novo culto, porém com o decorrer dos tempos

Dionísio tornou-se cada vez mais "respeitável". As festas dionisíacas

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transformaram-se num ritual cada vez mais organizado e disciplinado, recebendo

uma cuidadosa atenção das autoridades civis e religiosas.

Assim, Apolo, o deus símbolo da beleza e da inteligência, estendeu

finalmente seus braços para Dionísio dando origem à tragédia grega dentro de

uma dualidade consciente-inconsciente, racionalidade-horror; claridade -

escuridão. Outro elemento que resultou no texto trágico foi a evolução dos

ditirambos - as canções dedicadas a Dionísio - que passaram a ser regularmente

interpretado pelo côro, celebrando o começo da Primavera e a florescência das

videiras, sendo alegres ou tristes conforme a disposição das bacantes.

Os atores, sempre homens, apresentavam-se com Personas, com máscaras,

não revelando sua verdadeira identidade (hypocrites). A idade, o sexo, a

importância social e o estado espiritual de cada personagem vinham, por assim

dizer, "escrita" na máscara. Ela tinha que ter uma expressão (tristeza, alegria,

pavor, etc..) claramente identificada pelo público, sem pairar nenhuma dúvida sob

qual tipo de emoção o personagem se encontrava dominado naquele momento do

ato.

Para Aristóteles, a tragédia seria uma representação imitadora de uma ação

séria, concreta, de certa grandeza, representada, e não narrada, por atores em

linguagem elegante, empregando um estilo diferente para cada uma das partes, e

que, por meio da compaixão e do horror provocaria o desencadeamento liberador

de tais afetos.Assim a tragédia é vista como um meio de se obter a catarse, isto é

a purgação das emoções dos espectadores.

Esta catarse aparecia pelo fato da platéia ao assistir as terríveis dilacerações

do herói trágico, sensibilizava-se com o horror que a vida dele se tornara, sentindo

uma profunda compaixão pelo infausto que o destino reservara ao herói.O público

passava assim por uma espécie de exorcismo coletivo.

A associação da tragédia à purgação, aparece em Nietzsche como a

explicação de como a encenação dramática propiciou aos gregos a expelirem

suas próprias dores e sofrimentos com relação à existência ao assistirem o

desenlace do drama trágico.

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“O encantamento é o pressuposto de toda arte dramática. Nesse

encantamento o entusiasta dionisíaco se vê a si mesmo como um sátiro e

como sátiro por sua vez contempla ao deus, isto é, em sua metamorfose ele

vê fora de si uma nova visão que é a ultimação apolínea de sua condição.

Com essa nova visão o drama está completo”.(NNT, 60).

Esta tragédia tem um fundo profundamente mítico como pode ser verificado

em Xenofonte na parte final da "Anábasis". Neste drama ele aborda a importância

do ritual interpretativo da análise das vísceras de um animal sacrificado para

decidir o destino da tropa que ele comandava, alertando os seus leitores para os

perigos que incorrem aqueles que não observam os augúrios.

Porém, apesar dessas pulsões do irracional foi inegável o impacto do

pensamento racionalista sobre a sociedade grega em geral, fazendo com que o

domínio dos mitos fossem superados pelo domínio da razão a partir da influência

de Sócrates, o maior dialeta ateniense, e seu jovem discípulo Platão.

Como veremos adiante, esta desagregação que ocorreu com a tragédia

grega, que Nietzsche considera a melhor expressão da vitalidade da existência,

deveu-se ao espírito excessivamente inquisidor, ou seja, a racionalidade de

Sócrates. O filósofo ao querer saber a origem dos comportamentos morais, ao

exigir, para todas as sensações, uma explicação lógica, inibiu a espontanêidade

necessária à representação dramática. O socratismo teria sufocado a livre

manifestação dos instintos básicos, numa clara tendência anti - dionísiaca, que

Nietzsche chama de socratismo estético cuja lei seria algo como:

“Tudo deve ser inteligível para ser belo”, como sentença paralela à

sentença socrática; “só o sabedor é virtuoso”.(NNT, 81).

Assim, com o passar do tempo verificou-se uma significativa diminuição da

atividade do côro. Entendendo-se que ele representava simbolicamente a

coletividade arcaica - vestígio da vida antiga marcada pelo coletivismo tribal - o

côro ficou cada vez mais desfocado e deslocado na vida urbana. Hegel, o filósofo

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que dedicou notáveis observações em seus estudos sobre a tragédia, viu a

crescente polarização entre o protagonista e o côro uma afirmação hipostasiada

da relação social: o conflito entre o herói aristocrático e a comunidade plebéia.

Esse enfrentamento, na antiga tragédia, favorecia e destacava

dramaticamente o herói na medida em que ele era a exclusiva vítima de um

destino ingrato e cruel, atraindo para si as atenções do auditório, com o côro num

papel relevante interferindo na ação. A partir da dialética socrática o cõro acaba

por desaparecer, se reduzindo a nada, limitando-se a simples evoluções

coreográficas para marcar os intervalos correspondentes aos entreatos nas peças.

É importante, observar, no entanto, que a tragédia que tinha dado espaço a

uma nova modalidade de teatro, a saber, a comédia, já se encontra totalmente

desaparecida quando do advento do Cristianismo, mas mesmo assim, os autores

cristãos definem a tragédia como um gênero pertencente exclusivamente ao

mundo pagão.

Podesse então, utilizar o cristianismo, com sua doutrina de uma alma

pecadora que atinge sua redenção por uma graça de Deus, como o contraponto à

tragédia, pois nela, não há salvação nem perdão para o herói trágico. Assim, a

tragédia, só foi possível na cultura pré-cristã que desconhecia os princípios do

arrependimento e da absolvição, ou o gesto inesperado e miraculoso da graça

divina, que é combatida com extrema firmeza por Nietzsche.

3. A tragédia grega

Na seção anterior verificou-se como apareceu o elemento dionisíaco na

tragédia, no entanto, para podermos melhor entender este espírito dionisíaco e a

vida numa perspectiva estética, temos que nos reportar à dualidade presente no

seu relacionamento com o deus Apolo.

Em seu livro “Vontade de poder”, Nietszche descreve os elemento dionisíaco

e apolíneo como:

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“O poder natural dionisíaco é aquele que impele para a unidade, para

aquilo que está além da personalidade, do cotidiano, da sociedade, da

realidade; que vai através do abismo da transitoriedade, num apaixonado e

doloroso transbordamento na escuridão, no estado mais completo e

arrebatado, numa afirmação do êxtase do caráter total da vida e como ela

permanece a mesma através de todas mudanças, e nesta grande divisão

panteísta entre alegria e tristeza, santifica e chama de bom, mesmo as mais

terrível e questionáveis qualidades da vida, nesta eterna força da criação,

nesta frutificação, nesta recorrência, neste sentimento da unidade

necessária para a criação e destruição”.

“O poder natural “apolíneo” significa o ímpeto para a perfeita auto-

suficiência, para o típico individuo, para tudo que simplifica, distingue, torna

mais forte, clarifica, tira a ambigüidade, enfim uma liberdade guiada por uma

lei”.

“Para o total desenvolvimento da arte é necessário juntar o

antagonismo entre estes dois poderes artísticos naturais assim como para o

pleno desenvolvimento do homem deve ser feito através dos sexos”.(NWP,

539).

Assim, através da interpretação do “Nascimento da tragédia”, temos a vida

como um fenômeno artístico, que determina não apenas o modo de ser da

atividade artística, mas também o próprio instante da criação da realidade.Os

poderes naturais de Apolo e Dionísio podem ser considerados como o próprio

princípio desta atividade criadora, aparecendo a tragédia como uma ontologia para

o movimento de aparição da realidade.A tragédia grega pode ser considerada

como o resultado desta “amarração”, ou seja, da complementação que Dionísio

faz com Apolo, onde a dimensão dionisíaca dissolve constantemente a forma

apolínea que é responsável pela forma individual e pela multiplicidade.

Este impulso dionisíaco transcende todas as formas, faz com que a forma

individual desapareça dentro da unidade, e pelo fato de dissolver a forma, o poder

dionisíaco é ameaçador. Ele faz com que o principio apolíneo da individuação

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desapareça com a conseqüência ameaçadora de o individuo se perder dentro da

natureza, numa total desintegração que o faz voltar às origens, para o nada, para

o vazio, para a falta de fundo, para o transbordamento na escuridão.

A importância descrita no “amarramento” destes dois poderes antagônicos

está que sem a dimensão apolínea, haveria o risco do elemento dionisíaco

dissolver todo o modo de vida grego, pois se Dionísio predomina com o seu efeito

avassalador, a vida perde toda a sua forma, se perde a si mesma.

Esta passagem da formas apolíneas para as formas dionisíacas e vice

versa é o que consideramos o movimento da realidade, ou ainda, é este o culto a

Dionísio que após a dissolução do ser traz de volta às formas apolíneas.

As artes plásticas, produzida pelo homem artístico, têm o modo de ser

apolíneo. O artista, assim como Apolo, está sempre produzindo forma, está de

uma certa maneira pegado às formas, mas sem, no entanto, em momento algum

parar para se perguntar se ela equivale a alguma coisa, ou seja, não está na

busca da substância, da essência que se encontraria por detrás da aparência. Ele

vive imerso nesta aparência, no seu movimento de aparecimento, sem se

preocupar se existe algo além.Podemos dizer que de uma certa perspectiva, ele é

até ingênuo, o elemento apolíneo pode ser representado como a musica da lira,

que possui uma forma bem definida e que têm as suas notas musicais facilmente

distinguíveis.

O culto a Dionísio traz toda a dissolução, a destruição da multiplicidade e da

forma, o elemento dionisíaco é para Nietszche, uma das características do homem

filosófico que sabe que a essência não é uma coisa atrás das aparências, e que

por traz da aparência está o “nada”, ou seja, só existe a forma e não tem nada por

traz da máscara da aparência.A vida é vista numa perspectiva de dança, de

movimento, sem metas e nem formas, tal qual a musica dionisíaca que no seu

aspecto apresenta - se sem uma forma definida, como no exemplo do som

continuo da flauta.O elemento dionisíaco acaba com o véu de Maia, o véu da

ilusão, do sonho proporcionado por Apolo, fazendo com o homem possa saborear,

mesmo que por um simples momento, a unidade que está presente na natureza.

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“(...) algo jamais experimentado empenha-se em exteriorizar-se, a

destruição do véu de Maia, o ser uno enquanto gênio da espécie, sim, da

natureza”.(NNT, 35).

Assim, a arte trágica se apresenta como concretização da criação artística,

e por conseqüência da natureza, trazendo Apolo e Dionísio como sendo impulsos

artísticos. Eles são impulsos, ou segundo outros autores pulsões, porque são

anteriores à apreensão das possíveis orientações da ação, estão no fundamento,

apontam para o modo constitutivo da ação, para o principio de realização do

fenômeno e nestas dimensões de forma ligada à multiplicidade e “não forma”

relacionada à unidade podem ser caracterizados como separados em um mundo

do sonho e outro da embriaguez.

Portanto, além da arte, eles também dizem respeito á natureza (no sentido

grego de “fisís”), princípio da força do nascimento, ao princípio do aparecimento

dos entes em geral na eterna dinâmica de produção e criação, ao desvelamento

dos modos de ser do real em seu constante movimento, ou como apresenta

Gilvan Fogel:

“Natureza num sentido daquilo que se revela, que aparece, que se

evidencia e que assim, faz se luz e impõe-se, ou seja, embeleza-se ou faz-se

beleza”.

“Portanto, beleza é puro aparecer, o puro irromper dessa força de

erupção, de eclosão, a saber, o um, o logos, o sentido, a vida, natureza, em

repetição ou revigoramento poético da experiência grega da fisís (natal,

natalidade, pura emergência, fazer-se visível, aparecer e mostrar-se)”. (GF,

15).

4. O elemento apolíneo como o deus das artes plásticas, do sonho e do

princípio da individuação.

17

Page 18: O nascimento da tragédia e a música de Wagner ; um ensaio sobre o pensamento de Nietzsche

Apolo não só é o deus das artes plásticas, mas também o deus onírico, pois

existe uma forte e imensa relação entre a arte e a bela aparência do mundo do

sonho, pois não apóiam-se nas formas que nos oferece a realidade.A produção

desta “bela aparência”, a partir desta não materialidade é a forma de aparecimento

da realidade, fazendo com que todo ser humano seja um artista consumado.

Apolo é, portanto, o criador da “bela aparência”, que além de ser uma

precondição para toda produção da arte plástica é o que dá forma ao mundo

efetivo, tornando o mundo mais simples e mais claro.

“Enquanto o sonhador joga com a efetividade tangível, o artista realiza

seu jogo com o sonho. Se este jogo transcorre dentro dos limites

estipulados pela medida, os quais devem ser previamente conhecidos e

aceitos, pode expressar sabedoria da suma inteligibilidade da aparência”.

(AO 44)

Neste movimento de tornar o mundo mais simples e mais claro, permitindo

ao artista lidar com as formas que aparecem na natureza, Apolo é o deus de todas

as forças configuradoras, entendendo-se por isto, a determinação das possíveis

formas em seus movimentos de aparecimento na realidade, ou seja, o poder

natural e artístico apolíneo dá a concretude a este mesmo movimento e vigência à

estas formas de aparição na realidade.

O elemento apolíneo sustenta ontologicamente as múltiplas possibilidades

de configuração do real na dinâmica de auto-realização da natureza, pois estas

configurações estão no modo de aparecimento do real aparecer, é nesta

configuração que está a sua essência, nada por detrás ou além dela, se

encontramos algo, então esta configuração já é outra, não é mais a mesma.

Esta configuração é sempre um modo de ser possível, isto é, uma

perspectiva, pois uma configuração não é realmente nada em si, é simplesmente a

forma de aparecer e mostrar-se ora como isso, ora como aquilo, ora como aquilo

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Page 19: O nascimento da tragédia e a música de Wagner ; um ensaio sobre o pensamento de Nietzsche

outro.Portanto a essência não pode nunca ser vista como uma propriedade, um

atributo real e sim como um ultrapassamento de uma determinada configuração

na sua objetividade para se realizar num modo de ser possível, numa determinada

perspectiva.

Esta perspectiva determina o modo de ser da realidade que está associada

ao mundo do sonho e de um modo totalmente averso ao senso comum, onde o

sonho é uma produção imaginária e a realidade é assumida como algo totalmente

objetivo, algo vigente em si e por si.Esta perspectiva está também ligada ao fato

de que a imagem é sempre a imagem de alguma coisa em seu aparecimento, que

só será comunicada através da linguagem.

Esta linguagem está presente nas diversas formas de descrição do

fenômeno em sua aparição que depende de uma perspectiva, Gilvan Fogel nos

fornece o exemplo das diversas perspectivas pelos quais pode ser comunicado o

fenômeno de aparecimento de uma laranja, na perspectiva de um agricultor que

está preocupado com o aspecto econômico do seu plantio, esta laranja com

certeza não é a mesma que a perspectiva de um consumidor interessado em seu

sabor e aspecto, ou o de uma criança brincando com a laranja como se fosse uma

bola. Ou seja, qualquer das descrições não consegue se confundir simplesmente

com o próprio fenômeno “laranja”, ou ainda:

“A partir de uma constatação tardia de uma imagem, pressupomos

estes entes como causas exteriores e não nos damos conta que este objeto

exterior já é resultado de um processo metafórico de constituição. Em outras

palavras, a percepção não abarca tudo que o fenômeno pode ser, mas

somente um de seus possíveis modos de mostração num claro

encurtamento de suas possibilidades de ser, e uma vez que o fenômeno não

possui o mesmo plano que a linguagem que é dada como, por exemplo, um

impulso sonoro, o único meio de fazer a transposição de um plano de

realidade para a outra é a metáfora”.(GF, 20).

19

Page 20: O nascimento da tragédia e a música de Wagner ; um ensaio sobre o pensamento de Nietzsche

Desta forma, podemos dizer que a realidade não esta sempre dada a priori

e já decidida em seu teor ontológico próprio, mas sim nesta transposição

metafórica que tem claramente um caráter ilusório.

A dimensão onírica do elemento apolíneo está na própria determinação dos

acontecimentos artísticos em sua produção de configurações possíveis da

realidade, pelo fato de, assim como as metáforas, apresentar uma apreensão de

caráter sensível desta produção.Pois a arte se constrói a partir de uma perspectiva

da atividade criadora, no movimento de trazer algo do não-ser absoluto até a

vigência de seu ser.Não é uma mera transformação de um ente simplesmente

dado e sim a produção poética, fazer uma poesia, produzir alguma coisa, colocar

algo no aparecimento, transpassa toda e qualquer dimensão da realidade em

geral, numa certa dinâmica de construção de formas.

O artista não trabalha com a realidade exterior subsistente em si mesma,

mas em uma pura dinâmica de construção, em um movimento poético junto à

produção da bela aparência do mundo dos sonhos, ao que chamamos de arte da

configuração, sendo que a bela aparência que está presente no mundo dos

sonhos não tem procedência a algo externo a este mesmo movimento.

“A bela aparência do mundo do sonho, em cuja produção cada ser

humano é um artista consumado, constitui a precondição de toda arte

plástica, mas também, como veremos uma importante metade da poesia”.

(NNT, 28).

O elemento apolíneo é entendido a partir deste mundo de sonho, uma vez

que como vimos existe uma forte relação entre o mundo dos sonhos e a criação,

assim o principio de configuração da realidade está numa ininterrupta produção

poética destas configurações presentes no sonho.O elemento constitutivo da

produção apolínea nesta configuração da totalidade é a bela aparência nas suas

múltiplas possibilidades de configuração da realidade e o movimento criativo da

produção como o fundamento ontológico de toda configuração.

20

Page 21: O nascimento da tragédia e a música de Wagner ; um ensaio sobre o pensamento de Nietzsche

Esta bela aparência presente nas formas apolíneas diz respeito à

configuração de uma realidade que não nasce de uma total disposição para o

processo de construção de formas ou para o seu desvelamento, ou como nos

ensina Heráclito ao dizer que a natureza tem a incrível capacidade de esconder-

se, ou em outras palavras, que a natureza dispõe-se afetuosamente para o

velamento.

Desta forma, é através do mundo onírico que a arte interpreta a vida,

com base nos sonhos, exercita-se para a vida, para a realidade da existência.

“Essa alegre necessidade da experiência onírica, foi do mesmo modo

expresso pelos gregos em Apolo: Apolo na qualidade de deus dos poderes

configuradores é ao mesmo tempo o deus divinatório”.(NNT, 29).

Este deus divinatório se apresenta como um princípio sobre o destino dos

homens, que prevê o movimento da realidade no futuro a partir do tempo

presente, neste movimento que dá forma à realidade, Apolo tem a capacidade de

não apenas perceber o devir, mas pelo fato de ser o resplandecente, conforme a

raiz do seu nome, é também o resplandecente, a divindade da luz, domina

também a bela aparência do mundo da fantasia, verdade mais elevada em

contraponto à realidade diurna e deficientemente compreendida.O seu brilho

transpassa plenamente a dinâmica da instauração da forma e faz com que ela

surja em sua máxima evidencia e distinção.

“Nem a vista é o sol, nem o é o olho, onde a vista se forma. Muito bem!

E o poder que o olho possui não lhe vem do sol, como uma emanação deste.

Não é também verdade que o sol, que não é a vista, mas seu principio, é

percebido por ela?” (Platão, Republica, Livro VI).

Para Platão, Apolo, como o Deus do Sol, aparece como a condição de

possibilidade do pleno acontecimento da visão, sendo que esta só pode desdobrar

a sua potencialidade pela presença do brilho do sol iluminando as coisas vistas.A

visão mostra-se como uma possibilidade sustentada pela luminosidade

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Page 22: O nascimento da tragédia e a música de Wagner ; um ensaio sobre o pensamento de Nietzsche

desveladora do sol.Desta forma, assim como o sol não constitui a visão, ele

apenas suporta ontologicamente o seu pleno desenvolvimento, o elemento

apolíneo da tragédia grega suporta ontologicamente o aparecimento das formas

na realidade.

“Mas tampouco deve faltar à imagem de Apolo aquela linha delicada

que a imagem onírica não pode ultrapassar, a fim de não atuar de um modo

patológico, pois do contrario a aparência nos enganaria de um modo

grosseiro. Isto é, aquela limitada mensuração, aquela liberdade em face das

emoções mais selvagens, aquela sapiente tranqüilidade do deus

plasmador”.(NNT, 29).

Nietszche apresenta, no entanto, o risco de se assumir esta imagem onírica

como sendo a própria realidade, pois ao nos confundirmos, podemos ser

enganados pela aparência numa realidade grosseira, e daí apresentar um quadro

patológico de indiferenciação entre a realidade e o sonho, pois a realidade deve

ser desvelada por um olhar “solar”, uma vez que esta imagem é paradigmática

para a compreensão da realidade justamente por estar ligada ao caráter artístico

da configuração.

A aparência apolínea desvela a natureza criativa no seu processo de

constituição, e com o desaparecimento da linha delicada que torna possível a

apreensão da imagem onírica como imagem onírica, perde-se a capacidade de

perceber a própria aparência, a identidade própria ao processo de sua

constituição, e daí a realidade fica tosca, autônoma e independente de toda e

qualquer transposição criadora.E assim poderia valer em relação a Apolo, aquilo

que Schopenhauer observou a respeito do homem colhido no véu de Maia, ou

seja, no véu da ilusão, ou ainda, no engano, na primeira parte de “O mundo como

vontade e representação”.

“Tal como, em meio ao mar enfurecido que, ilimitado em todos os

quadrantes, ergue e afunda vagalhões bramantes, um barqueiro está

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Page 23: O nascimento da tragédia e a música de Wagner ; um ensaio sobre o pensamento de Nietzsche

sentado em seu bote, confiando na frágil embarcação; da mesma maneira,

em meio a um mundo de tormentos, o homem comum permanece sentado,

apoiado e confiante no princípio de individuação”. (NNT, 30).

Enfim, podemos dizer que Apolo, como deus dos sonhos, das artes e da

individuação, é o responsável por todas as forças de configuração, delimitando o

ente como tal, num processo que não se dá a partir do próprio ente, mas sim a

partir de um processo criativo de produção que se desenvolve através das

potencialidades poéticas e se explicita na evidencia e distinção que o ente

encontra na bela aparência.

5. o elemento dionisíaco, o deus da embriaguez, do pavor e do êxtase em

meio à dissolução deste principio da individuação.

O poder artístico dionisíaco é a outra dimensão constitutiva da natureza, a

que se perfaz em sintonia com o seu movimento de expansão.Enquanto o

elemento apolíneo traz o movimento de configuração, um outro aspecto de caráter

complementar precisa ser compreendido. A natureza através do movimento

apolíneo expande-se e revela-se na singularidade de uma configuração especifica,

mas ela ao mesmo tempo se retrai e se oculta no devir.Num movimento

incessante de criação e dissolução de formas.Ou seja, a natureza não só explicita

a dinâmica da configuração do ente na realidade, mas também o principio de

determinação desta dinâmica, sempre numa disposição para o velamento, o que

pode ser verificado na seqüência da passagem de Schopenhauer anteriormente

citada:

“Na mesma passagem, Schopenhauer nos descreveu o imenso terror

que apodera o ser humano quando, de repente, é transviado pelas formas

cognitivas da aparência fenomenal, na medida em que o principio da razão,

em algumas de suas configurações parece sofrer uma exceção”.(NNT, 30).

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Page 24: O nascimento da tragédia e a música de Wagner ; um ensaio sobre o pensamento de Nietzsche

A este terror juntamente com a ruptura do principio de individuação, segue-

se um estado de alegria e euforia, que revela o elemento dionisíaco em sua

perfeita analogia com a embriaguez, em que o principio da individuação perde sua

eficácia e as barreiras entre as dimensões humana e natural são rompidas.Os

indivíduos humanos se misturam em meio à natureza, num estado de completa

indiferenciação.

Este pavor monstruoso esta na perda de si mesmo e na supressão radical

de toda logicidade racional trazida pelo processo de configuração apolíneo que

propiciou uma certa nitidez ontológica, aonde neste processo de individuação, o

ente se reconhece como idêntico a si mesmo e diferente dos outros entes.O

elemento dionisíaco ao dissolver todas as configurações acarreta no indivíduo

este pavor monstruoso da perda de si mesmo e da supressão de sua

racionalidade.

Portanto, Dionísio está muito mais direcionado a destruir de tempos em

tempos a individuação, mas não num sentido de uma nadificação, porque este

desespero e pavor vão se transformar em embriaguez, sendo importante notar

que enquanto no sonho, o êxtase atua sobre todas possibilidades, com domínio

das obras ali geradas.No estado dionisíaco, ao contrário do apolíneo, o poder de

transfiguração acontece a partir da integração máxima entre homem e natureza,

num processo em que se perde toda a capacidade de configuração do real, à

medida que o principio da individuação foi dissolvido.

“Sob a magia do dionisíaco torna-se a selar não apenas o laço de

pessoa a pessoa, mas também a natureza alheada, inamistosa ou subjugada

volta a celebrar a festa de reconciliação com seu filho perdido, o homem”.

(NNT, 31).

O poder dionisíaco da embriaguez produz uma reviravolta no mundo dos

fenômenos, numa completa fusão entre homem e natureza, num mergulho à

origem, numa volta para a unidade, para aquilo que está além da personalidade,

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Page 25: O nascimento da tragédia e a música de Wagner ; um ensaio sobre o pensamento de Nietzsche

do cotidiano, da sociedade, nesta vontade de vida, nesta eterna força necessária

para a criação e destruição.

“Agora, graças ao evangelho da harmonia universal, cada qual se

sente não só unificado, conciliado, fundido com o seu próximo, mas um só,

como se o véu de Maia tivesse sido rasgado e, reduzido a tiras, esvoaçasse

diante do misterioso Uno-primordial”.(NNT, 31).

O individuo agora pode alçar-se numa onipotência intuitiva na qual os

véus da aparência foram rasgados, a ilusão foi rasgada, num movimento de

unificação das partes de Dionísio espalhadas pelo mundo. Na sensação da

embriaguez da falta de forma e da suspensão da vida por um momento através da

dissolução da tensão entre a multiplicidade e a unidade.

Desta forma, enquanto o elemento apolíneo com a produção da bela

aparência a partir de uma medida e de proporções plenas traz o principio da

individuação da realidade, o elemento dionisíaco é um movimento que destrói de

tempos e tempos estas configurações, fazendo com que a tendência apolínea não

se cristalize em rigidez e frieza.

A associação do elemento dionisíaco com a pulsão dissolutora da

natureza se determinam como a sustentação da essência dinâmica do processo

de configuração desta mesma natureza, com o elemento dionisíaco revitalizando o

impulso da criação de formas presente no elemento apolíneo.

Os poderes artísticos apolíneo e dionisíacos marcam o movimento

estético da realidade, com o elemento dionisíaco como o paradigma semântico da

dissolução como uma força aniquiladora da individuação, mas também a

recondução à todas possibilidades de uma nova determinação, num movimento de

configuração e dissolução da realidade previsto no fragmento de Anaximandro:

“De onde tudo vem, para lá também deve retornar”.

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Page 26: O nascimento da tragédia e a música de Wagner ; um ensaio sobre o pensamento de Nietzsche

6- O espírito da musica como princípio da vontade

Nietzsche vai conceituar a musica como o principio do aparecimento da

realidade dada pela vontade:

“O artista plástico, e simultaneamente o épico, seu parente está

mergulhado na pura contemplação das imagens. O musico dionisíaco,

inteiramente isento de toda imagem, é ele próprio dor primordial e eco

primordial desta.” (NNT,45)

Desta forma, Nietzsche apresenta o musico dionisíaco, que diferentemente

do artista apolíneo que vive no meio das imagens, contemplando-as com amor,

penetra com a sua musica até o cerne do ser.

Schopenhauer, apesar das diferenças no tratamento desta vontade em

relação a Nietzsche, coloca com propriedade o fato de que sendo a tragédia o

cume da arte poética, onde a música teve através do côro o seu explendor, com o

fim desta obra, com o advento da dialética resta somente uma arte bela, isto é, a

musica.Adverte, no entanto, para a necessidade de tratar a música como algo

particular, pois enquanto as outras artes objetivam a vontade meditativamente,

através das idéias, a música pelo contrário, ignora as idéias e poderia continuar

num mundo que onde as mesmas não existissem.

“A musica é a objetivação imediata da vontade, como as próprias

idéias, ao seu nível. A musica não é a imagem das idéias, mas sim imagem

da própria vontade”.(IVS, 41).

Esta prevalência da música sobre todas as artes aparece também em

Schiller quando este afirma que no seu processo de poetar o que aparece não é

um objeto claro e sim uma certa disposição musical:

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Page 27: O nascimento da tragédia e a música de Wagner ; um ensaio sobre o pensamento de Nietzsche

“(...)como condição preparatória do ato de poetar, não uma série de

imagens, com ordenada causalidade dos pensamentos, mas antes um

estado de ânimo musical.”(NNT,44)

Assim, é o espírito da musica que se encontra na dimensão dionisíaca é

que vai possibilitar que a tragédia grega seja deduzida, pois vai ser ela a

responsável por tornar possível uma euforia junto à aniquilação do princípio de

individuação dado pela dimensão apolínea da plenitude da aparência, pelo poder

dionisíaco.

(...) somente a partir do espírito da musica é possível compreender

uma euforia junto à aniquilação do individuo. Pois só nos exemplos

individuais de tal aniquilamento é que fica claro para nós o eterno fenômeno

da arte dionisíaca, a qual leva à expressão da vontade em sua onipotência,

por assim dizer, por traz do princípio da individuação, a vida eterna para

além de toda aparência e apesar de todo aniquilamento. (NNT, 101).

O que Nietzsche nos mostra é que a musica não é simplesmente a

ocorrência de um fenômeno sonoro, mas sim a própria expressão da vontade, e

não como um fenômeno agindo por causalidade das ações, e sim numa

articulação inversa à própria realidade, como principio do movimento entre o

configurar e o dissolver desta realidade.

O espírito da musica traz consigo a expressão da vontade, que aponta

para o princípio ontológico da realização da realidade, no seu movimento de

individuação e dissolução do indivíduo no mundo, ou seja, a musica não é uma

transposição metafórica qualquer do fenômeno em linguagem perceptiva, ela é

muito mais a imagem do animo das transposições.

“No instante em que esta transposição metafórica em linguagem

perceptiva se dá, o que temos não é apenas uma configuração possível da

totalidade. Ao contrário, esta transposição também traz consigo o

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Page 28: O nascimento da tragédia e a música de Wagner ; um ensaio sobre o pensamento de Nietzsche

estabelecimento de uma certa disposição de toda a sensibilidade, de uma

certa afecção de todo ânimo”.(MC, 42).

O que significa que uma ação é sempre apresentada a partir de uma pré-

disposição, seja ela de tristeza, alegria, etc; que marca tanto o caráter originário

da ação, mas também a identidade própria a cada transposição metafórica.Esta

pré-disposição é responsável pelo espaço ontológico para o surgimento da ação,

ou seja, as disposições desempenham um papel decisivo na concretização do

nosso ser, o movimento de concreção da vontade.

Então, para cada instante em que a realidade se apresenta, ela descobre a

si mesmo enquanto vontade.A vontade é metafísica, e se encontra para além do

processo de individuação, sendo que o plano metafísico esta numa absoluta não

fenomenalidade.

No entanto, isto não significa uma total separação entre os dois mundos,

como numa mera dicotomia entre ser e aparência, ou mundo das idéias e das

coisas, e sim numa articulação entre os dois a partir da “amarração” do poder

apolíneo da individuação com a vontade trazida pela musica dionisíaca que

resultam no modo do aparecimento da realidade.

“Em conseqüência de tudo isto, podemos considerar o mundo

fenomenal, ou a natureza, e a musica, como duas expressões diversas da

mesma coisa, a qual é por isso a única mediadora da analogia de ambas,

cujo conhecimento é exigido a fim de se compreender tal analogia(...)Todas

as possíveis aspirações, excitações e exteriorizações da vontade, todos

aqueles processos no interior do ser humano, que a razão atira no amplo

conceito negativo do sentimento(...), mas sempre na universalidade da mera

forma, sem a matéria, sempre unicamente segundo o em si, e não segundo o

fenômeno, tal como a alma mais intima deste, em corpo”.(NNT, 98).

A musica aparece como uma expressão da vida, que se coloca como

princípio, uma vez, que como linguagem universal está para a universalidade dos

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Page 29: O nascimento da tragédia e a música de Wagner ; um ensaio sobre o pensamento de Nietzsche

conceitos, assim como os conceitos estão para as coisas individuais.Esta

universalidade está ligada a uma clara determinação da disposição, que mostra a

forma como se relaciona esta vontade com os sentimentos que marcam as

múltiplas distorções da interioridade humana, sendo construída no interior de cada

alma, descrevendo as múltiplas possibilidades de configuração da realidade a

partir de uma pré-determinação da vontade.

Desta forma a partir de uma configuração de totalidade temos uma

conformação da percepção a partir de uma disposição do animo.A vontade se

concentra na vigência das afecções que sintetizam a cada vez o modo de ser

destes acontecimentos.

Assim, diferentemente das artes plásticas que tem uma ligação originaria

com o fenômeno, e, portanto, não podem explicitar o que acontece alem destas

configurações, a musica pode desempenhar este papel, uma vez que não se

mostra como um fenômeno, e sim como imagem de essência metafísica dos

fenômenos, ou seja, como a imagem da vontade.

“Pois a musica, como dissemos, difere de todas as outras artes pelo

fato de não ser reflexo do fenômeno ou, mais corretamente, da adequada

objetividade da vontade, porem reflexo imediato da própria vontade e,

portanto, representa o metafísico para tudo que é físico no mundo, a coisa

em si mesma para todo fenômeno”.(NNT, 99).

A musica diferencia-se de outras artes, porque não traz em si nenhuma

produção de configuração da totalidade, e sim junção de sons que concretizam

disposições de animo.Ela não representa uma conformação possível de mundo

fenomênico e sim o caráter fundamental de toda conformação.Ela não expressa

essas figuras, mas as disposições de vir -a -ser destas figuras.Porque sintetiza em

si as constituições anímicas de mundo e estas estão alem de qualquer

configuração possível da realidade.O devir musical toma conta da totalidade

apesar de não se apresentar em parte alguma desta.A musica não repousa sobre

o movimento da expansão e de conformação de vontade, mas sobre a disposição

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Page 30: O nascimento da tragédia e a música de Wagner ; um ensaio sobre o pensamento de Nietzsche

de animo, que descreve a vida da vontade, ela se expressa segundo

universalidade da pura forma, segundo o “em si”.A materialidade se dissipa,

permanecendo a determinação ontológica da vontade.O espírito da musica é o

espírito do real.

A musica pode então ser considerada como a representação de um

princípio (coisa em si), um conceito universal de vontade que aponta para o

movimento de realização da natureza na expansão das suas diversas

configurações e retração na dissolução destas formas.A musica descreve a

textura ontológica mais fundamental, ela dá concretude a vida da vontade e traz a

tona o que está em si mesma, tendo um papel determinante na apreensão do que

a vontade propriamente é.

Somente nela é possível compreender a euforia junto à aniquilação do

individuo, porque somente ela traz a expressão da vontade em sua onipotência

como que por detrás do principio da individuação, a vida eterna para além de todo

fenômeno e apesar de toda aniquilação.Ela coloca em contato com o principio

metafísico de constituição do real, com a vontade como o mobilizador do

acontecimento originário da natureza.

Assim, o que propicia a mudança de um pavor inicial pela dissolução das

barreiras e limites habituais da existência da individuação, para uma euforia e

embriaguez junto à aniquilação é a essência musical do elemento dionisíaco que

possibilita o acesso à própria natureza metafísica da vontade, à eternidade do

principio vital para alem da necessidade incontornável da constante supressão das

individuações.

Portanto, o elemento dionisíaco provoca uma transformação radical interior

da realidade como um todo, quebrando as barreiras, gerando num primeiro

momento o terror pela queda do principio da individuação, mas ao despedaçar o

véu da ilusão, abre espaço para o despontar do fundamento da vontade, e nesta

aniquilação despontar a reconciliação com a realidade como um todo.

A musica dionisíaca também nos mostra o prazer da existência, não a partir

do mundo fenomênico, do simples desvelamento da bela aparência, que é

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Page 31: O nascimento da tragédia e a música de Wagner ; um ensaio sobre o pensamento de Nietzsche

executado pelo elemento apolíneo, mas sim através da experiência da dissolução,

do fato que tudo precisa estar preparado para o ocaso doloroso.

Pois, a musica dionisíaca faz com que nosso olhar se dê conta da dor

constitutiva das existências finitas, ao mesmo tempo em que, nos coloca diante da

própria essência originaria.

.Desta forma a arte dionisíaca dispõe-nos em consonância com a dinâmica

de realização da realidade.Este momento negativo da perda de si mesmo

encontra uma ligação com o principio da determinação da existência, ou seja, nos

misturamos ao seu elemento mais constitutivo e nos embriagamos com a

eternidade de sua vigência alem de toda individuação.

Sob o pano de fundo do devir da vontade, todo sofrimento se mostra

necessário e em meio a total dissipação de nossas identidades habituais, a

vontade se abre para nós a partir de seu ímpeto em direção a existência.Apesar

do pavor da aniquilação, a reconciliação com o principio acaba por provocar um

intenso deslumbramento e viabiliza a participação na dinâmica originaria da

criação.

7. O elemento socrático

Como já vimos na apresentação da tragédia dionisíaca a racionalidade

proposta por Sócrates aparece como o ocaso da tragédia grega.Esta modalidade

teatral apresentava seres humanos que eram estilizados em heróis, deuses e

semideuses da tragédia mais antiga, sendo que, como já vimos, a platéia via

nestes personagens um passado ideal da Grécia e uma correspondente existência

definida dentro de um cenário mitológico. A partir do drama concebido por

Eurípides apareceu para a platéia um novo personagem, o ser humano calcado na

realidade da vida cotidiana.

Nesta nova concepção, o vestido de gala se tornou mais transparente, a

máscara que era a imitação, a ilusão e a ficção se transformou numa

semimáscara, trazendo dentro dela a racionalidade de uma crítica à mentira.Como

uma fantasia da realidade poderia educar e formar o espírito?Agindo desta forma,

31

Page 32: O nascimento da tragédia e a música de Wagner ; um ensaio sobre o pensamento de Nietzsche

toda a catarse, no sentido de suprimir os limites, da comunhão com o sagrado

existente na tragédia original se perdeu dentro de uma lógica racional.

“Sem o mito, porém toda cultura perde sua força natural sadia e

criadora: só um horizonte cercado de mitos encerra em unidade todo um

momento cultural.”(NNT, 135)

O poder dionisíaco que fornecia aos helenicos a crença na sua própria

imortalidade, a crença num passado ideal, e também num futuro ideal tinha sido

banido do palco.

“Dionísio já havia sido afugentado do palco trágico através de um

poder demoníaco que falava pela boca de Eurípides. (...) um demônio de

recentíssimo nascimento, chamado Sócrates. (NNT, 79)”.

Assim, Eurípides é o primeiro dramaturgo que segue una estética consciente.

Ele intencionalmente busca uma realidade mais compreensível colocando os seus

heróis num cotidiano onde eles são realmente tal como falam, de forma totalmente

diferente dos personagens de Ésquilo e Sofócles que são muito mais profundos e

inteiros, pois vão alem de suas palavras, pois propriamente só balbuciam acerca

de si. Em Eurípides, os personagens são dissecados e não há nada oculto neles,

que vai ser uma característica peculiar aos artistas modernos.Assim, ao se afastar

da tragédia e se aproximar de um racionalismo socrático, ele:

(...) precisa de novos meios de excitação, os quais já não podem

encontrar-se dentro dos dois únicos impulsos artísticos, o apolíneo e o

dionisíaco.Tais excitantes são frios pensamentos paradoxais – em vez das

introvisões apolíneas – e afetos ardentes – em lugar dos êxtases dionisíacos

– e, na verdade, são pensamentos e afetos imitados em termos altamente

realistas e de modo algum imersos no éter da arte.(NNT, 81).

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O socratismo despreza o instinto e, com ele a arte. Nega a sabedoria onde

ela está mais próxima.Assim, em Sócrates se materializou a característica da

claridade apolínea, sem nada de estranho, e dentro de uma nova racionalidade

em que a realidade vai aparecendo como um raio de luz puro, transparente, uma

racionalidade tida como precursora e anunciadora a ciência.

Assim, a partir deste ponto de vista evidenciado em Sócrates, tido por muitos

como o pai da lógica, a arte vai se dissociar da ciencia, representante do caráter

de máxima nitidez, com a sua conseqüente aniquilação.Perde-se o drama musical

que havia concentrado em si os raios de toda a arte antiga dando espaço a uma

dialética que se introduziu furtivamente no drama musical e produziu em seu belo

corpo um efeito devastador.

Desta forma, o ocaso da tragédia grega teve seu ponto de partida no diálogo,

pois como é sabido, o diálogo não estava originariamente na tragédia; o diálogo só

se desenvolveu a partir do momento em que teve dois atores, o que ocorreu

relativamente mais tarde.Antes havia algo análogo, o discurso alternado entre o

herói e o corifeo: mas aqui, dada a subordinação de um ao outro, a disputa

dialética resultava impossível.

“A dialética otimista, com o chicote de seus silogismos, expulsa a

musica da tragédia: quer dizer, destrói a essência da tragédia, essência que

cabe interpretar unicamente como manifestação e configuração de estados

dionisíacos, como simbolização visível da musica, como o mundo onírico de

uma embriaguez dionisíaca. (NNT, 90)”.

Esta dialética otimista fez com que partes da tragédia onde a compaixão

dominava fosse substituída por uma luminosa alegria, pois não era lícito que o

herói do drama sucumbisse. Esta postura fez com que se criassem discursos

maiores para os atores principais, com a embriaguez dionisíaca dando espaço

para o aparecimento de personagens falando com sagacidade, claridade e

transparência, num drama que deixou de ser trágico para virar lógico.Este

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Page 34: O nascimento da tragédia e a música de Wagner ; um ensaio sobre o pensamento de Nietzsche

otimismo da cultura socrática que imaginava não ter barreiras vai produzir no

futuro a doença romântica (racionalismo científico):

“(...) O homem, insatisfeito, percebendo-se nu e só, estremece ante a

terrível corrente gelada da existência e, angustiado, corre, de um extremo ao

outro, buscando aquilo que não pode encontrar”.(NNT, 149).

Neste novo drama domina um dualismo de estilo, tendo por um lado, o poder

da música, e por outro, o da dialética, que vai se destacando até que é decisiva na

estrutura do drama intero, ou seja, até a aniquilação total de um dos rivais, a

música.

Assim, a tragédia nascida da profunda fonte da compaixão e pessimista por

essência, sendo a existência nela algo muito horrível é substituída pela comédia

dentro de uma estética socrática onde:

“A virtude é o saber: se peca unicamente por Ignorância. Assim o

virtuoso é feliz”.

Fica claro que se a virtude é o saber, então o herói virtuoso tem que ser um

sujeito dialético. Assim, a tragédia pereceu a causa de uma dialética e de uma

ética otimista, ou seja, o socratismo infiltrado na tragédia impediu que a música se

fundisse com o diálogo.Desta forma, a música, cada vez mais restringida, dentro

de fronteiras cada vez mais estreitas, não se sentia em sua casa, e se

desenvolveu de maneira mais livre e audaz fora de lá, como arte absoluta. É

ridículo pedir à musa da musica trágica, tão misteriosa e tão séria, que cante nas

pausas intermediarias entre os diálogos e assim ela sai totalmente do âmbito do

teatro.

“Ante o tribunal desta estética racionalista foram levados, agora, cada

um dos componentes, antes de tudo o mito, os personagens principais, a

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Page 35: O nascimento da tragédia e a música de Wagner ; um ensaio sobre o pensamento de Nietzsche

estrutura dramática, a musica coral, e por fim, e com máxima decisão, a

linguagem”.(Nietzsche in RNG, 68).

8. A doença romântica

Com a saída da musica da cena trágica, esta “estética socrática” que

advoga um privilégio da parte racional da alma como sendo a fonte do

conhecimento verdadeiro, como sendo o intelecto o “local” aonde se concebe as

idéias, a parte mais sublime do ser humano; vai transferir para a linguagem todo o

acontecimento dramático.

Esta unidade da consciência privilegiada pela lógica socrática é, no

entanto, para Nietzsche, nada mais que uma função inconscientemente induzida

pela função gramatical do sujeito e esta mudança vai acarretar, como veremos

adiante, o que podemos chamar da doença romântica onde:

“ o homem inventor de signos é ao mesmo tempo o homem cada vez

mais agudamente consciente de si mesmo; somente como animal social o

homem aprendeu a tomar consciência de si mesmo - ele o faz ainda, ele o faz

cada vez mais. Meu pensamento é, como se vê: que a consciência não faz

parte propriamente da existência individual do homem, mas antes daquilo

que nele é natureza de comunidade e de rebanho;...”(NGC in OP, 201).

Este romantismo está para Nietzsche, baseado na linguagem, na

consciência e na sociedade, detentora da moral, tendo todos eles uma origem

comum. Assim, a consciência se desenvolve sob a pressão da racionalidade

proposta por uma comunidade social, sendo que a unidade da consciência, que

podemos chamar indistintamente de alma, intelecto ou espírito, não constitui o

núcleo da subjetividade, daí, tomar consciência de si é perder-se em si mesmo.

Dentro desta perspectiva, Nietzsche verifica a necessidade de postular uma

racionalidade inconsciente, em sintonia com o corpo e com os impulsos. A

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Page 36: O nascimento da tragédia e a música de Wagner ; um ensaio sobre o pensamento de Nietzsche

consciência não pode mais ser pensada como atributo essencial da substancia

“eu”.

“...a natureza da consciência animal acarreta que o mundo, de que

podemos tomar consciência, é apenas um mundo de superfície e de signos,

um mundo generalizado, vulgarizado”(NGC in OP, 201)

Assim a sobrevalorização da consciência não garante a objetividade plena

do conhecimento e o acesso à estrutura ontológica da realidade, mas uma

redução à perspectiva do comunicável, assim como vimos anteriormente acerca

das diversas possibilidades de comunicarmos através de metáforas o fenômeno

denominado “laranja”.Todo conhecimento consciente é perspectivo, feito a partir

da linguagem, semiótico.

“Por ultimo, a consciência que cresce é um perigo; e quem vive entre

os mais conscientes dos europeus sabe até mesmo que ela é uma doença”.

(NGC in OP, 202).

É interessante notarmos esta tentativa sempre presente em Nietzsche de

evitar a contradição, buscando sempre se utilizar da arte, da dança e do riso, pois

a perspectiva pelo qual ele expõe é também num horizonte lógico-gramatical dado

através da comunicação, e assim como a linguagem substituiu a música,

Nietzsche avaliza a necessidade da musica dionisíaca e de Dionísio para se livrar

desta doença romântica criada por este consciente escravo da linguagem.

Para Nietzsche será somente depois de nos desembaraçarmos dos

preconceitos da alma, deste “EU” dado como sujeito ou do “EU” sinônimo de

consciência que a Psicologia poderá nos esclarecer a respeito da nossa própria

subjetividade.E o caminho proposto por Nietzsche passa pela arte, e

privilegiadamente a música, que se sobrepõe a consciência privilegiada pela

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Page 37: O nascimento da tragédia e a música de Wagner ; um ensaio sobre o pensamento de Nietzsche

filosofia e psicologia tradicionais com suas raízes no Platonismo e seu dualismo

que separa o eu e o corpo.

Assim, é necessário eliminar esta metafísica que nega e desvaloriza o

sensível e o corpo, através da musica e da dança.A alma tem que ser entendida

como a pluralidade do sujeito, como uma estrutura social de impulsos e afetos, os

vários modos do ser, eliminando-se o conceito da unidade do sujeito dada por

uma consciência “gramatical”. A partir daí esta claro que o “cogito, ergo sum”

como unidade essencial de todo ser existente é nada mais que uma interpretação

fundada na estrutura da sentença gramatical, ou seja, tudo se passa como se a

unidade verbal correspondesse a uma unidade ontológica real.

“A razão na linguagem: que enganadora personagem feminina

(verfuhren - seduzir)! Temo que não nos desembaraçaremos de Deus,

porque ainda cremos na gramática...”(GNP, 60).

A forma de romper esta consciência “gramatical”, trazida pelo impulso

dialético para o saber e a ciência dentro de uma consideração teórica de mundo,

seria o redespertar da consideração trágica; esta luta do espírito da música como

princípio da vontade, sendo a vontade não apenas sentimento e pensamento,

mas, sobretudo um afeto que tem como uma das raízes etimológicas “affectus”

que significa mover, ser movido.

Nietzsche se pergunta então se esta consideração dionisíaca de mundo,

nascida nesta luta não voltará a elevar-se um dia como arte, para fora da sua

profundeza mística.

“Aqui nos ocupa a questão de saber se a potência por cuja ação

contráría a tragédia se rompe, contará em todos os tempos com força

suficiente para o redespertar artístico da tragédia e da consideração trágica

do mundo”.(NNT, 104).

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Page 38: O nascimento da tragédia e a música de Wagner ; um ensaio sobre o pensamento de Nietzsche

9. A musica de Wagner e o romantismo

Este redespertar da consideração trágica do mundo aparece novamente

no prefácio “Tentativa de Autocrítica”, de uma nova edição de “O nascimento da

tragédia”. Nietzsche volta a relatar a respeito da necessidade dos gregos pela

musica e pela arte, constando de maneira definitiva, o seu grande valor na

interrogação sobre a existência, ao oferecer uma nova perspectiva da existência a

partir da estética presente na arte e na musica, ou seja, através da intuição que

possa ser dada pelos sentidos, particularmente pela visão e audição,

transpassada pelo entendimento lógico trazido pela arte da dupla de deuses Apolo

e Dionísio.

“Teremos ganho muito a favor da ciência estética se chegarmos não

apenas à intelecção lógica mas à certeza imediata da introvisão de que o

continuo desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do

dionisíaco, da mesma maneira como a procriação depende da dualidade dos

sexos, em que a luta é incessante e onde intervem periódicas

reconciliações”.(NNT, 27).

A complementaridade destes dois poderes naturais da arte deve-se a

tragédia grega.O poder apolíneo na arte do figurador plástico, aquele que esta

sempre produzindo alguma configuração, apegado a uma forma, em

contraposição ao poder dionisíaco com a sua musica, com a sua verdade

ameaçadora porque não tem forma, fazendo com que nesta volta ao Uno-

primordial o individuo se perca na natureza, voltando às origens, pro nada, pro

vazio, pra falta de fundo, num movimento em direção da verdade que não aparece

nos pedaços fragmentados de um Dionísio esquartejado que foi espalhado pelo

mundo gerando esta multiplicidade.

Esta unidade dionisíaca em contraponto às configurações apolíneas em

suas formas diferenciadas, como pôde ser percebido, gera uma “eterna tensão”,

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Page 39: O nascimento da tragédia e a música de Wagner ; um ensaio sobre o pensamento de Nietzsche

esta “eterna tensão” é que está na gênese da dor da vida, pois nela se encontra a

luta estética entre os dois poderes antagônicos, numa tensão entre a configuração

e a sua dissolução, com o risco de dissolução todo o modo de vida, pois se o

elemento dionisíaco predominar com o seu efeito avassalador a vida se perde a si

mesma.

Assim, a contraposição, pela qual a arte grega lançou a primeira ligação, se

transformou através da “vontade helênica” e da dinâmica da constituição da

realidade, num eterno emparelhamento com a constituição da “vontade de vida”

dentro da tragédia grega.

A “vontade de vida” presente numa consideração trágica de mundo aparece

num período de “convalescença”, quando reanalisa a musica de Wagner em

contraposição à musica dionisíaca, se Wagner realmente levou as ultimas

conseqüências a música trágica ou simplesmente deu uma nova roupagem a uma

música eminentemente “romântica”.

É de suma importância analisarmos o termo “convalescença” que aparece

várias vezes na obra de Nietzsche, este termo não tem apenas a relação com um

caos antes do crescimento, mas também com a própria dor da vida e com a

coragem dionisíaca para levar em marcha uma nova filosofia até as ultimas

conseqüências:

“Espero, entretanto, que um médico filósofo(...) tenha por fim a

coragem de levar a minha suspeita até as ultimas conseqüências e de

arriscar a dizer: - até o momento, em toda filosofia, a questão não foi a

verdade”, mas algo diferente, digamos a saúde, o futuro, o crescimento, a

força, a vida...(NGC, 14).

Assim, a idéia de convalescença aparece como um sinônimo para dor e,

portanto, de “vontade de vida”, de uma vida vivida “aqui e agora” dentro de uma

concepção trágica. Esta “sinonímia” é interpretada por Heidegger em “Assim falou

Nietzsche”, apresentando o aforismo “O convalescente” (Der Genesende)

afirmando que o termo «Genesen» tem o sentido de uma palavra grega que

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significa “regressar ao lar”; o que sugere a nostalgia que é a dor provocada pela

falta do lar (Heimschmeerz), e também o sofrimento em razão da distância e da

ausência do lar ou da pátria (Heimweh).Assim, para ele, o “convalescente” é

aquele que junta suas forças para o retorno ao lar, isto é, para voltar a sua

determinação.

O “convalescente” está no caminho de si mesmo, de tal modo que pode

dizer de si quem ele é. No discurso analisado por Heidegger, o convalescente diz:

“Eu, Zaratustra, o defensor da vida, o intercessor da dor, o assertor do

círculo - chamo-te a ti, ó meu abismal pensamento” (NAF, 222).

Zaratustra fala dentro do seu mais profundo pensamento, a favor de uma

vida, mas não afasta dela a dor, ficando explicito para Heidegger que a vida e o

sofrimento são de mesma natureza, e podem ser considerados como condição

básica da existência, como pode ainda ser verificado no fragmento.

(...) a gratidão transborda de um homem curado, pois a

convalescença era realmente o mais inesperado.(...)um espírito que

pacientemente resistiu a uma demorada e terrível pressão-(...)- e que

subitamente é assaltado pela esperança de saúde e pela embriaguez da cura.

(NGC, 13).

Portanto, o conceito “convalescente” sugere que o objetivo da vida, é

transformar a doença em saúde, e que a única forma, é assumindo numa

perspectiva trágica que a dor e o sofrimento são ingredientes desta vida, e para

ele, é somente a experiência da grande dor que nos propicia as percepções mais

profundas da condição humana.

Estes conceitos de convalescença e cura tem um destacado tratamento em

“O romantismo” representando a passagem de um estado de doença para um

estado de saúde, e neste sentido, a assunção da arte como um meio de cura e de

auxilio a serviço da vida, ou ainda, como vimos a vida aparecendo como dor na

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doença, no sofrimento, nos sofredores.Segundo, o próprio Nietszche, estes

sofrimentos podem ser identificados em duas categorias:

-os que sofrem de abundancia de vida, que querem uma arte

dionisíaca e, do mesmo modo, uma visão e compreensão trágicas da vida.

-os que sofrem de empobrecimento da vida, que procuram por

repouso, quietude, mar liso, redenção de si mesmo pela arte e pelo

conhecimento, ou então a embriaguez, o espasmo, o delírio.(NGC, 217).

Esta compreensão trágica presente no primeiro “tipo” de sofrimento, e, por

conseguinte, neste tipo de vida está relacionado com a filosofia dionisíaca, com a

sua busca pela verdade que está atrás da forma (mascara), que só vai encontrar a

absoluta falta de forma quando da queda desta mascara, esta compreensão

trágica está no puro e honesto impulso do filosofo que ao procurar a verdade atrás

da mascara, põe em risco a vida.E como já vimos, ao dissolver esta realidade,

esta mascara, o que acontece é a aparição do pavor na destruição de toda forma,

elevando a vida a seu estado de dor.O trágico do sofrimento dionisíaco está que

neste retorno do culto a Dionísio para as formas normais, existe sempre o risco de

não haver esta volta.

Para o filosofo dionisíaco a essência não é mais a coisa atrás das

aparências, mas o nada, ele esta no risco da morte, só tem forma não tem mais

nada por traz. Nietzsche acredita em mascaras, a mascara de Dionísio significa o

“Escrever com sangue”, escrever com dor, porque sem dor é menos vida, pois ao

evitar a dor, se evitar a vida plena porque a vida real dói.E a vida tem que ser

vivida de uma maneira plena seja na dor ou na alegria dentro do conceito do

“amor fatti”.

O sofrimento como o empobrecimento da vida é encontrado no homem

moderno, no filosofo romântico, no sofrimento romântico gerado pela incapacidade

de desembaraçar-se de vivencias de desprazer e dor.O homem moderno é fraco

porque é puramente artifício, porque em sua alma não vibra mais a força trágica

autentica.Ele é aquele aleijão por excesso, que Zaratustra tanto ironiza, uma vez

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Page 42: O nascimento da tragédia e a música de Wagner ; um ensaio sobre o pensamento de Nietzsche

que com o descomunal desenvolvimento da consciência e do conhecimento,

atrofiou outros órgãos vitais.

“Uma consciência clarividente demais, asseguro-vos senhores, é uma

doença, uma doença muito real.”(NGM, 254)

Assim, como vimos anteriormente o hiper desenvolvimento da consciência

é uma doença, esta consciência vai se apresentar através de estabelecimento de

metas, na vida que busca ver o crescimento voltando o olhar para a distância até o

ponto de chegada, na vida sempre ligada às formas do mundo, na acumulação de

formas fixas, diferentemente da vida dionisíaca que está sempre numa continua

geração de movimento, a vida romântica busca a transcendência, busca um “além

do mundo”, uma vida que quer chegar a um ponto que é a sua meta para não

precisar se mover mais, a vida chegando finalmente ao estágio do ultimo homem

que guarda uma surpreendente relação com o homem “romântico”.

Em contrapartida a este movimento romântico do “além do mundo”, nesta

vida na busca daquilo que quando alcança já não é mais a meta e tem que ser

novamente e sucessivamente objetivada e modificada, se encontra o elemento

dionisíaco que se encontra no movimento da vida, onde o homem é dado como

possibilidade, e não como a sujeito ou substancia a busca de um objeto ou

objetivo transcendental, mas sempre “já acontecendo”.

O sofrimento “romântico” ao procurar o repouso busca na verdade ter o

controle sobre a vida, mas como já vimos na tragédia grega, não somos donos da

vida, e esta busca de uma cura que elimine a dor é impossível porque a vida dói

por não esta nas nossas mãos.Na perspectiva dionisíaca de que a vida é vazia de

sentidos, vale mais a pena zombar, levar a vida na sabedoria, numa maneira leve

de se lidar com a dor da vida, uma vez que a cura que esta perspectiva procura,

não traz intrinsecamente a idéia de dor, não projeta a cura desta dor, não

“coisifica” a dor, porque esta plena de movimento e fluidez na busca do “além do

homem”.

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Page 43: O nascimento da tragédia e a música de Wagner ; um ensaio sobre o pensamento de Nietzsche

A filosofia romântica está ligada como vimos à consecução de metas,

portanto, tem alguma coisa de idealismo, lida com a escolha das mascaras para

configurar a realidade, busca a técnica presente num outro tipo, que vai surgir

posteriormente na tragédia grega e vai ser a razão de sua ruína; o tipo socrático.

Esta filosofia lida com uma realidade onde o movimento da realidade vai

aparecer sempre reduzido a formas universais que sejam passiveis de um

“domínio”, (que como repetidamente observamos é de impossível consecução,

uma vez que a vida é “movimento” e não coisa), e de serem tratadas através de

uma perspectiva técnica.Nesta substancialidade “romântica”, o homem como

unidade simples da consciência perde seu caráter de dado natural e de unidade

autárquica da razão ou volição, não podendo mais ser considerado senhor em sua

própria casa.

“O que é o romantismo? Toda arte, toda filosofia, pode ser

considerada como meio de cura e de auxilio a serviço da vida que cresce,

que combate: pressupõe sempre sofrimento e sofredores. (NGC, 204).

Esta “vida que cresce” se relaciona intimamente com a busca de objetivos

para realizar o “dom” da vida, “dom” que está mais que nunca presente na

Modernidade, que para Nietzsche é caracterizada por uma atomização social, uma

sociedade composta por um rebanho de homens e mulheres preocupados apenas

com a “meta” da felicidade, compreendida como satisfação dos desejos materiais

e que não podem conceber nada mais elevado ou mais nobre além de si próprios

numa pressuposição de que existe uma necessidade prenhe de “sofrimento e

sofredores”.Esta filosofia pessimista que Nietszche relata, ao iniciar a sua

autocrítica com relação à posição dionisíaca de Wagner.

“Será o pessimismo necessariamente o signo do declínio, da ruína

como ele é segundo todas aparências entre, homens e europeus modernos”.

(NNT, 14).

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Page 44: O nascimento da tragédia e a música de Wagner ; um ensaio sobre o pensamento de Nietzsche

Nesta passagem aparece claramente o problema da decadência do

homem europeu que a partir da Modernidade, com a queda do cristianismo, busca

seus valores através de uma filosofia romântica, procurando se desvencilhar do

sofrimento, da crueldade, da dor e do horror da existência que caracterizam a

história universal.Este tipo de horror, que como vimos, foi banido pelo homem

dionisíaco, permanece no centro desta historia, com uma própria vida regrada pela

moral cristã, numa existência humana particular movida por metas, que

claramente precisam ser derrubadas:

“Derrubar ídolos - e ao dizer ídolos suponho toda classe de ideais-

toca mais de perto os meus anelos íntimos. Dizer-se que a realidade foi a tal

ponto privada de seu valor, do seu significado, da sua sinceridade, quando

se inventou um mundo IDEAL. O “verdadeiro mundo” e o “mundo aparente”

teriam no idioma alemão, a seguinte significação: o mundo inventado e a

realidade(...)”(NEH, 32).

Nietszche constata assim, em sua convalescença, que a sua esperança,

quando escreveu “O nascimento da tragédia”, num novo momento dionisíaco

dentro de uma sociedade alemã a partir da musica de Wagner, e esta musica

poderia servir como uma forte motivação de ir a busca da vida e que se poderia

conseguir a superação dos valores morais, acabou por se diluir num romantismo

melodramático e pessimista.

“De fato, entrementes aprendi a pensar de uma forma bastante

desesperançada e desapiedada acerca desse “ser alemão”, assim como a

atual música alemã, a qual é romantismo de ponta a ponta e a menos grega

de todas formas possíveis de arte(...)(NNT, 21).

Assim, este pensamento desesperançoso leva Nietszche a abandonar o

romantismo de Wagner como um caminho dionisíaco, pois ele próprio diz que na

época em que escreveu “O nascimento da tragédia” acreditava que o “ser alemão”

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Page 45: O nascimento da tragédia e a música de Wagner ; um ensaio sobre o pensamento de Nietzsche

poderia, a partir da musica de Wagner, descobrir-se e reencontrar-se a si mesmo,

mas acabou por verificar que era somente uma musica romântica, e não uma

musica dionisíaca, deixando a pergunta:

“Como deveria ser composta uma musica que não tivesse uma

origem romântica, como a musica alemã - porém dionisíaca?” (NNT, 21).

Nietszche vai inclusive mais alem ao dizer, que assim como no

cristianismo, os românticos fazem mal para as novas gerações, pois trazem um

consolo metafísico num retorno e prosternação ante o velho Deus, sugerindo que

não seria melhor conseguir primeiramente, assim como na tragédia grega, a arte

do consolo na vida neste mundo ao invés de buscá-la em outro mundo.

“Quem, abrigando outra religião no peito, se acercar desses

olímpicos e procurar neles elevação moral, sim, santidade, incorpórea

espiritualização, misericordiosos olhares de amor, quem assim o fizer, terá

logo de lhes dar as costas, desalentado e decepcionado. Aqui, nada há que

lembre ascese, espiritualidade e dever, aqui só nos fala uma opulenta e

triunfante existência, onde tudo que se faz presente é divinizado, não

importando que seja bom ou que seja mau”.(NNT, 36).

Esta elevação moral encontra-se numa perspectiva, com estes valores

supremos pelos quais o homem deve viver como sendo “comandos dados por

Deus” na esperança que esta realidade de sofrimento e a dor neste mundo

verdadeiro, possa vir a ser substituída por uma “nova vida” num mundo

futuro.Porém à medida que estes valores vão sendo dissolvidos, e assim a partir

do “envelhecimento” de “Deus” parece que o universo perdeu o seu valor, o seu

sentido.E nesta luta aberta contra esta falta de fundo, Nietszche sempre se coloca

como um discípulo da filosofia de Dionísio, em mais uma tomada de posição

claramente contra o romantismo e a sua “envelhecida” cristandade:

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“(...)-qualquer meta constitui, ao menos, algum significado. O que

todas essas noções tem em comum é que alguma coisa deve ser cumprida

através do processo – e agora se compreende que o devir não visa nada e

não cumpre nada”.(NWP, 12).

Finalmente, Nietszche tem a esperança que pelo fato desta incessante

filosofia romântica do pessimismo trazer simplesmente o consolo metafísico, um

dia, o homem aprenda novamente a rir, a ver a vida neste seu movimento que não

permite “esperar” nada além do que aquilo que a própria vida traz em seu

movimento, e ai aprendido o riso e fazer a musica dionisíaca, o homem mande ao

diabo toda esta “consoladoria metafísica”, e ao se tornar um novo e fantástico

homem, um ser além do homem diga assim como este traquina Zaratustra:

“Levantai os vossos corações, ó meus irmãos, alto, mais alto! E não

esqueceis tampouco as pernas! Levantai também as vossas pernas, vós,

bons bailarinos, e melhor ainda: erguei-vos também sobre a cabeça!”.

“Esta coroa do ridente, esta coroa grinalda - de-rosas: eu mesmo coloquei

esta coroa sobre a minha cabeça, eu mesmo declarei santo meu riso. Não

encontrei nenhum outro, bastante forte para isto, hoje”.

“Zaratustra, o dançarino; Zaratustra, o leve, que acena com as asas, pronto

a voar, acenando a todos os pássaros, preparado e pronto, um bem

aventurado leviano”:

“Zaratustra, o verodicente; Zaratustra, o verorridente; não um impaciente,

não um incondicional, mas um que ama os saltos e os saltos laterais; eu

mesmo coloquei esta coroa sobre a minha cabeça”.

“Esta coroa do ridente, esta coroa grinalda-de-rosas: a vós, meus irmãos,

eu vos atiro esta coroa! O riso eu declarei santo: vós, homens superiores,

aprendei a rir!” (NAF, 296).

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Nietzsche tem a esperança do ressurgimento através do elemento

dionisíaco perdido na Natureza do espírito trágico, levantai os corações aparece

como uma manifestação pela vida, enquanto, como já vimos as pernas e

principalmente os pés, e por onde começa o transe dionisíaco, numa perspectiva

de dança que assim como a vida é movimento.A dança aparece como a própria

vida no que tem de mutável, a vida não é nem virtuosa, nem casta, nem etérea, é

movimento.Esta esperança de ressurgimento é claramente reforçada na imagem

de coroa do ridente, não só em sua simbologia de retorno do mesmo, mas

também pelo fato de trazer de volta o riso significando a volta da poesia, da

pintura, e principalmente da musica desqualificados do território filosófico pela

“estética socrática” que pregava a seriedade em contraponto à ilusão trágica.

“E - onde há riso e alegria o pensamento não leva a nada - eis o

preconceito destas bestas sérias contra toda “gaia ciência”. Pois bem,

mostremos que se trata de preconceito”.(NGC, af327).

Desta forma, como finaliza Mendonça em “Nietzsche e o riso: por uma gaia

ciência”:

Com sua gaia ciência, Nietzsche nos convida a criar um outro modelo de

pensamento que nos faça rir - rir da vida, de nós mesmos e, é claro, dos doutores

da finalidade da existência”. (Mendonça in LPN, 21).

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