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1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
O NEGRO E A CULTURA AFRO-BRASILEIRA: UMA BRICOLAGEM
MULTICULTURAL DO ENSINO DE GEOGRAFIA
DOUTORANDO: EDIMILSON ANTÔNIO MOTA
ORIENTADORA: PROF.ª DRª ANA CANEN
Rio de Janeiro, 2013
2
Edimilson Antônio Mota
O NEGRO E A CULTURA AFRO-BRASILEIRA: UMA BRICOLAGEM
MULTICULTURAL DO ENSINO DE GEOGRAFIA
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Educação, Faculdade de
Educação, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Educação.
Orientadora: Profª Drª Ana Canen
Rio de Janeiro, 2013
3
4
Àqueles que reinventam a cultura como
reconhecimento e emancipação social.
5
AGRADECIMENTOS
À minha esposa Cidinha, meu grande amor, que está ao meu lado desde o início
da minha carreira, que me compreendeu e me motivou a lutar por esse sonho de
chegar ao doutorado.
À minha linda filha, Sofia, o meu maior presente, que, no meu silêncio e reclusão,
levou-me abraços e beijinhos.
À minha orientadora, Profª. Drª Ana Canen, pela competência, rigor, exigência, e,
sobretudo, pela amizade, generosidade, delicadeza, e parceria, por ter acreditado
no meu potencial e me apoiado sempre.
À Profª Drª Libânia Nacif Xavier, pelas observações e contribuições teóricas
indispensáveis para a realização desse estudo, pelo carinho que pude sentir no
Exame Especial e na Qualificação e, por ter, ao mesmo tempo, acreditado na
superação dos meus limites.
À Secretária do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ, Solange
Rosa de Araújo, pela sua dedicação cotidiana com todos nós - uma amiga sempre.
Às professoras da banca examinadora, pelas contribuições importantes para o
aperfeiçoamento do meu trabalho.
6
“O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as
lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que,
pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.
A produção do discurso é ao mesmo tempo controlada,
selecionada, organizada e redistribuída por certo número
de procedimentos que têm por função conjurar seus
poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório”.
FOUCAULT
7
RESUMO
MOTA, Edimilson Antônio. O negro e a cultura afro-brasileira: uma
bricolagem multicultural do ensino de geografia. Rio de Janeiro, 2013. Tese
(Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio
de Janeiro, 2013.
Com a homologação da lei 10.639 em janeiro de 2003, tornou-se obrigatório o
ensino da história da África e da cultura afro-brasileira em toda a educação básica.
Com isso, o campo do currículo foi levado a repensar o seu sentido, em termos de
como têm sido abordadas as disciplinas, e em que perspectiva pedagogicamente
estas temáticas têm sido apresentadas nos livros didáticos. No caso do ensino da
Geografia, o presente estudo teve como objetivo resgatar a importância do negro e
da cultura afro-brasileira, a partir de recortes discursivos extraídos dos livros
didáticos dessa disciplina no sétimo ano, com base nas categorias de lugar,
espaço, paisagem, região e população. O objetivo foi saber a partir de quais
paradigmas são construídas estas abordagens, e em que medida elas coadunam
com o multiculturalismo emancipatório. Para responder a essa questão,
entendemos que o ensino de Geografia está dividido em dois paradigmas
principais: o da geografia tradicional e o da geografia crítica. No primeiro, o
negro seria reconhecido a partir do paradigma do determinismo biológico, visto
como o selvagem, o não civilizado e de raça inferior, o que justificou a sua
escravização e a construção política e moral do reconhecimento negativo e
estereotipado a seu respeito pelo colonialismo. No segundo, baseia-se no
paradigma crítico marxista, em que, a crença está no motor da história gerada pelo
modo de produção capitalista, e na organização, e na transformação do espaço
social; o que levaria à desigualdade social e à luta de classes, em detrimento da
discussão da desigualdade por “raça”. Nesse sentido, os resultados apontaram que,
nos discursos a respeito da importância do negro e do resgate da cultura afro-
brasileira nos livros didáticos, tais conceitos deveriam ser descolonizados e
desconstruídos. Para tal, um fio condutor poderia ser o do reconhecimento “das
diferenças nas diferenças”, na construção da práxis do ensino de Geografia de
forma dialógica e dialética. Nesse sentido, far-se-ia necessário trazer as
contribuições do multiculturalismo emancipatório não com um fim, como uma
categoria fechada e estanque, mas, ao contrário, como um campo contestado,
aberto às práticas educativas dos sujeitos sociais.
Palavras-chave: negro; cultura afro-brasileira; livro didático; multiculturalismo
emancipatório; reconhecimento; ensino de geografia.
8
ABSTRACT
MOTA, Edimilson Antonio. The black and african-Brazilian: culture in
multicultural patchwork geography education. Rio de Janeiro, 2013. Thesis
(Doctorate in Education) - College of Education, University Federal of Rio de
Janeiro, 2013.
With the homologation of the law 10.639 in January of 2003, it has become
obligatory the teaching of the history of Africa and of African-Brazilian culture in
all basic education, which has led the camp of curriculum to rethink its sense of
how the disciplines have been addressed, and in which pedagogical perspective
these subjects have been presented in the contents of textbooks. In the case of the
Geography subject, the present study had the objective to rescue the importance of
black and Afro-Brazilian culture, through clippings taken from the school books
of the sixth grade, based on the categories of place, space, landscape, region and
population to know from what paradigms these approaches are built, and as they
coadunate with the multiculturalism emancipatory. To answer this question, we
understand that the teaching of geography is divided in 2 main paradigms: the
traditional geography and the critical geography. In the former, the black people
would be accepted from the paradigm of the biological determinism, seen as the
wild, the uncivilized and the inferior race which justified their slavery and the
political and moral construction of the negative acknowledgment and stereotype
generated by colonialism. The latter is based on the Marxist critical paradigm, in
which the belief is in the motor of the history generated by the capitalist mode of
production, and in the organization, and in the transformation of the social
space, which would lead to social inequality and class struggle, instead of
inequality by race. In this sense, the results pointed out that the speeches about the
importance of black culture and the ransom of African-Brazilian culture in the
school books, the concepts should be decolonized and deconstructed, which
would require, as a guiding mostly the recognition of the difference in the
difference in the construction of the praxis of teaching geography dialogically and
dialectically and, accordingly, far would be necessary to evoke the
multiculturalism emancipatory not as an end, as a category closed watertight, but
on the contrary as a contested field, open for educational practices of social
subjects.
Kaywords: black; Afro-Brazilian culture; school books; multiculturalism
emancipatory; recognition; geography teach
9
RÉSUMÉ
MOTA, Edimilson Antonio. Le noir et la culture afro-brésilienne : un
bricolage multiculturel de l’enseignement de Géographie. Rio de
Janeiro,2013. Thèse ( Doctorat en Éducation) - Faculdade de Educação,
Universidade Federal do Rio de Janeiro.2013.
À partir de l’homologation de la loi 10639, en janvier 2003, l’enseignement
de l’histoire de l’Afrique et de la culture afro-brésilienne est devenu
obligatoire en toute l’éducation fondamentale ce qui a conduit le camp du
curriculum à repenser son sens de l’approche des disciplines et savoir en
quelle perspective ces thèmatiques sont présentées pédagogiquement par les
contenus dans les livres didactiques. Par rapport à l’enseignement de la
discipline Géographie,cette étude a le but de racheter l’importance du noir
et de la culture afro-brésilienne, à partir des morceaux de discours extraits
des livres didactiques de Géographie de la septième année, fondés sur des
catégories de lieu, espace, paysage, région et population, pour savoir à partir
de quels paradigmes ces approches sont construites et en quelle mesure
elles se conforment au multiculturalisme émancipateur. Pour répondre à
cette question, nous comprenons que l’enseignement de la Géographie est
divisé en deux paradigmes principaux : celui-ci de la Géographie
traditionnelle et celui-là de la Géographie critique. Dans le premier le noir
serait reconnu à partir du paradigme du déterminisme biologique, vu comme
le sauvage, le non civilisé et de race inférieure, ce qui a justifié son
esclavage et la construction politique et morale de la reconnaissance
négative et stéréotipée à son sujet par le colonialisme. Dans le deuxième
on est basé sur le paradigme critique marxiste , où la croyance est dans le
moteur de l’histoire engendrée par le mode de production capitaliste et
dans l’organisation et la transformation de l’espace social, ce qui conduirait
à la lutte de classes, en dommage de l’inégalité par la race. En ce sens les
résultats ont indiqué que dans les discours au sujet de l’importance du noir
et du rachat de la culture afro-brésilienne, en livres didactiques, ses concepts
devraient être décolonisés et déconstruits, ce qui exigerait pour cela, comme
fil conducteur, la reconnaissance de la différence dans la différence, dans la
construction de la praxis de l’enseignement de la Géographie, de forme
dialogique et dialectique. et dans ce sens, il faudrait évoquer le
multiculturalisme émancipateur, non comme une fin, comme une catégorie
fermée et figée, mais au contraire, comme un camp contesté, ouvert aux
pratiques éducatives des sujets sociaux.
Mots-clés : noir; culture afro-brésilienne; livre didactique; multiculturalisme
émancipateur; reconnaissance; enseignement de la géographie.
10
SIGLÁRIO
CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior.
CNE/CP - Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno.
DCN - Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
DEM - Democratas.
DIT - Divisão Internacional do Trabalho.
ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio.
FF- Fundação Ford
FFCL/USP - Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São
Paulo.
FNB - Frente Negra Brasileira.
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
IDEB - Índice de Desenvolvimento da Educação Básica.
IHGB - Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
INL- Instituto Nacional do Livro.
LDB - Lei de Diretrizes e Bases
MEC - Ministério da Educação e Cultura.
MES - Ministério da Educação e Saúde.
MN - Movimento Negro.
MNB - Movimento Negro Brasileiro
MNU - Movimento Negro Unificado.
PCN - Parâmetros Curriculares Nacionais
PNE - Plano Nacional de Educação.
PNLD - Programa Nacional do Livro Didático.
STF - Supremo Tribunal Federal.
TEM- Teatro Experimental Negro.
UERJ - Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
11
IMAGENS
IMAGEM 1. Moinho de açúcar..........................................................................118
IMAGEM 2. Engenho de açúcar em Itamaracá .................................................120
IMAGEM 3. Manifestações Populares .............................................................131
IMAGEM 4. Oferendas à Iemanjá .....................................................................134
IMAGEM 5. Capoeira: luta e dança ..................................................................135
IMAGEM 6. Jovens no Ibirapuera .....................................................................138
MAPAS
MAPA 1. Analfabetismo no Brasil segundo a cor ou raça .................................149
12
SUMÁRIO
CAPÍTULO 1: RECONHECIMENTO E ENSINO DE GEOGRAFIA ........13
1.1 Justificativa ..................................................................................................16
1.2 Objetivos ......................................................................................................18
1.3 Referencial metodológico ............................................................................25
1.4 Estrutura do trabalho ....................................................................................29
CAPÍTULO 2: GEOGRAFIA E MULTICULTURALISMO ........................30
2.1 A Geografia Tradicional: conceitos e tendências.........................................31
2.1.1 O negro e a raça: Delgado de Carvalho e Aroldo de Azevedo ......... 42
2.2 A Geografia Crítica e a transformação social pelo ensino.......................... 48
2.2.1 O livro didático e os paradigmas dominantes ....................................59
2.3 O vir-a-ser diferença e igualdade ................................................................70
2.3.1 Pensando o multiculturalismo no currículo .......................................80
CAPÍTULO 3: O NEGRO, DA CASA-GRANDE À CIDADE GRANDE
...............................................................................................................................90
3.1 A cultura afro-brasileira e Gilberto Freyre ...................................................91
3.2 O negro na sociedade de classes por Florestan Fernandes .........................101
3.3 A cultura e a luta por reconhecimento........................................................ 107
CAPÍTULO 4: OS DISCURSOS DOS LIVROS DIDÁTICOS DE
GEOGRAFIA ...................................................................................................111
4.1 O reconhecimento do escravo: da África à casa-grande................................112
4.2 A cultura afro-brasileira: da cozinha ao hip hop............................................126
4.3 Raça e renda, negros e brancos em espaços desiguais ..................................141
4.4 A Descolonialidade do ensino de Geografia.................................................156
5 CONCLUSÃO ..............................................................................................165
6 REFERÊNCIAS ............................................................................................174
7 APÊNDICE.............................................................................................187-222
13
1. RECONHECIMENTO E ENSINO DE GEOGRAFIA
Todo homem quer uma boa vida, e isto é desejo, porque, como gente,
desejar faz parte da condição humana. O que sabemos é que o desejo a uma boa
vida é a busca exterior do Eu no Outro; é no Outro que somos reconhecidos. Por
isso, há muitos tipos de reconhecimentos. O homem em sociedade luta por
reconhecimento afetivo, político, cultural, social, porque, na verdade, a luta por
reconhecimento é histórica, é dialética e dialógica, e, em cada época, os motivos
pelos quais se luta são diferentes e mutáveis como o desejo daqueles que lutam.
Não foi diferente, por exemplo, com o homem europeu. Desejoso em romper com
a força das águas e os domínios dos mares e oceanos, aprendeu a alcançar terras e
a fazer continentes. Tudo pela conquista. Daí o seu encontro com outros povos e
raças e a luta travada pelo conquistador sobre o conquistado, o que passou a ser o
sentido da colonização. Desde então, no caso do africano, este passou a ser
reconhecido pelo europeu como povos de raça inferior, sem cultura, cujo modo de
vida social seria selvagem e num grau de desenvolvimento bem próximo ao da
natureza, ou seja, quase igual a um animal das selvas e savanas daquele
continente.
No mesmo sentido, o processo de colonização americano, a partir do
século XVI, teve como base o tipo de reconhecimento feito pelo europeu sobre o
continente conquistado, e, ao mesmo tempo, para o seu desenvolvimento
econômico, reconheceu a escravidão de africanos e indígenas legal e moral. As
instituições da época defendiam a sua desconstrução com base na “maldição de
Cam”, já que este não tinha alma, ou então pelo direito natural de que, como
selvagem, já havia nascido desigual e, portanto, não reconhecido como gente.
Como tal, o trabalho compulsório seria o meio da sua redenção e da sua
socialização para então se tornar parte do mundo dos justos: branco, cristão e
europeu. Neste sentido, podemos afirmar que, entre o europeu e o africano,
durante a escravidão, a diferença foi a base da luta por reconhecimento. Isto
porque o europeu, a partir da sua suposta superioridade de raça e de cultura,
subjugou, classificou e hierarquizou o africano e o colocou na escala mais baixa
14
da estratificação social, quando o fez escravo nas colônias conquistadas. Desde
então, a luta entre europeu e africano ganhou o sentido da luta por
reconhecimento, de vida ou morte, entre o senhor e o escravo, já que, para o
senhor existir, o africano seria o escravo. Foi com base na narrativa da escravidão,
especificamente no caso do Brasil, que este presente trabalho buscou
problematizar a luta por reconhecimento do negro e da cultura afro-brasileira no
ensino de Geografia, considerando que, desde a colonização, havia no imaginário
social a vontade e a potência do multiculturalismo com base na diferença, o que
fez com que a escravidão permanecesse por muitos séculos. Se, atualmente, há o
desejo de resgatar o negro e a cultura afro-brasileira numa dimensão positiva do
reconhecimento, é necessário conhecer o passado colonial construído com base no
reconhecimento negativo e de estereótipo que o europeu construiu sobre o
africano. Para isso, entendemos ser necessário problematizar a diferença e a
igualdade como marcadores filosóficos, porque foi com base nisso que se
justificaram séculos de dominação de relação social e de reconhecimento entre
senhor e escravo, como será abordado a seguir.
Abordar a luta por reconhecimento do negro e da cultura afro-brasileira no
ensino de Geografia, requer primeiramente olhar para trás e fazer uma incursão
histórica a respeito da luta entre africanos e europeus a partir do século XVI,
quando todo o processo de reconhecimento entre eles teve o seu início. O ensino
de Geografia, como uma disciplina do currículo escolar, foi uma invenção social
do final do século XIX, mas a escravidão de africanos não. Hoje, enquanto ensino
o currículo do programa do sétimo ano, o conteúdo sobre a formação territorial
brasileira tem como abordagem a presença e a contribuição dos povos africanos
que para aqui foram trazidos na condição de escravos, para a realização de
trabalho compulsório na economia agrária.
O que temos, desde então, é um passado, uma narrativa construída do
ponto de vista do europeu e reproduzida pela história oficial. O que buscamos
agora é revisitar tais narrativas e desconstruir pontos de vistas e estereótipos
principalmente no conteúdo dos livros didáticos de Geografia do sétimo ano. Para
isso, foram elaboradas as seguintes questões que têm como fim desencadear a
discussão geral desse presente estudo, em que se buscou dissertar a luta por
reconhecimento do negro e da cultura afro-brasileira, no ensino de Geografia:
15
1. Considerando o currículo de Geografia um campo contestado, em que
medida os discursos sobre o negro e a cultura afro-brasileira têm sidos
tensionados pelo multiculturalismo emancipatório como reconhecimento social?
2. Com base nos paradigmas da geografia tradicional e da geografia
crítica, em que perspectiva o negro foi reconhecido no que se refere ao conceito
de raça?
3. Qual a importância e a contribuição de Gilberto Freyre em “Casa-grande
e senzala”, e de Florestan Fernandes em “A integração do negro na sociedade de
classes”, no reconhecimento do negro e da cultura afro-brasileira para o ensino de
Geografia do sétimo ano?
4. Em que perspectiva do reconhecimento social os marcadores raça e
renda são apresentados nos discursos dos livros didáticos do sétimo ano,
considerando a importância do resgate do negro e da cultura afro-brasileira, com
vistas para o multiculturalismo emancipatório como uma nova abordagem no
ensino de Geografia?
5. Em que medida a evocação do multiculturalismo emancipatório pode
tensionar a descolonialidade do ensino de Geografia?
Para resgatar a importância do negro e da cultura afro-brasileira no ensino
de Geografia, especificamente no conteúdo do sétimo ano, a ideia é voltar, a partir
do século XVI ao marco inicial da formação do povo brasileiro e problematizar a
luta por reconhecimento do negro antes e após a Abolição, em que a diferença foi
o marcador entre o senhor e o escravo durante o regime escravagista. Antes: a
luta por reconhecimento entre o senhor e o escravo - o primeiro, para existir,
usava de todo o mecanismo de controle moral para construir a falta de consciência
social no segundo, de modo que refletisse sobre ele somente a subserviência do
escravismo. Depois: pós-abolição - diante da lei, o negro tornava-se livre e, agora,
o seu desafio seria fazer a sua integração na sociedade de classes. Como resgatar a
sua cultura, a sua autoestima, o seu reconhecimento social como um cidadão?
Enfim, a luta por reconhecimento na sociedade livre continuou intensa.
No século XX, o país já não era mais o mesmo do século anterior. A
industrialização e a urbanização das capitais, como São Paulo e Rio de Janeiro,
impunham um novo ritmo; ao mesmo tempo, tornava-se desafio diário para o
imigrante disputar um lugar na ordem competitiva da emergente sociedade
capitalista. Para o negro, nada foi fácil, visto que, agora, ele disputava tal lugar
16
com esse branco imigrante que trazia consigo, na sua maioria, um grau de
instrução diferente do dele, que havia saído do campo, sem reparação social e
despreparado. Grande parte passou então a subsistir das atividades do mercado
informal. Diante desse quadro, para além do ranço do tratamento desigual que o
negro trazia da escravidão, agora a desigualdade estaria também na busca da renda
per capita, visto que, quando comparado com o branco, ele se encontrava numa
posição social inferior.
Para refletir sobre o contexto social antes e após a Abolição, com base nos
discursos constituídos nos livros didáticos do sétimo ano, escolhemos fazer uma
bricolagem multicultural, ou seja, uma montagem técnica de cunho qualitativo
que visa à emancipação dos sujeitos sociais, e, para isso, como diz Kincheloe
(2007) “improvisamos”, recortamos, ajuntamos narrativas, crenças e lutas acerca
do negro e da cultura afro-brasileira dos discursos dos livros didáticos de
Geografia do sétimo ano. O desafio é pensar um ensino de Geografia e a sua
relevância conforme os argumentos a seguir.
1.1 Justificativa
Este trabalho é fruto das minhas inquietações e reflexões, quando eu, ainda
no exercício de Professor de Geografia da educação básica, uma década atrás, vi
tornar-se obrigatório o ensino da história da África e da cultura afro-brasileira,
com a homologação da Lei 10.639/03 para todo o currículo e disciplinas. Na
ocasião, passei a observar que, especificamente para o ensino de Geografia, não
havia uma orientação curricular oficial e, muito menos, metodologias que
atendessem as demandas evocadas pela legislação para o professor de Geografia
abordar a questão étnica racial como preconiza a lei. Movido por essa
inquietação, Mota (2010), no mestrado, com base num estudo de caso de uma
escola estadual do Rio de Janeiro, foi investigado o cotidiano de professores da
disciplina de História para saber em que medida estaria sendo implementado, na
prática docente, um ensino que fosse de acordo com as exigências das Diretrizes
Curriculares da Educação das Relações Etnicorraciais do Ensino da História da
África e da Cultura Afro-Brasileira. Os resultados apontaram que são muitos os
17
desafios dos professores, e que ainda faltam-lhes estudos especializados e a
formação continuada com a abordagem voltada para as exigências da lei.
No doutorado, a inquietação persistiu, porém, agora, a ideia era saber
como os discursos de raça e de cultura afro-brasileira são refletidos nos livros
didáticos de Geografia e, ao mesmo tempo, saber como a questão racial está sendo
refletida e investigada no campo da pesquisa em educação no Brasil. Para isso, em
2010 fizemos uma busca no banco de dados da Coordenação de Aperfeiçoamento
Pessoal de Nível Superior – CAPES, dos últimos dez anos, com as seguintes
palavras: multiculturalismo e geografia; racismo e livro didático; lei 10639 e
ensino de geografia; geografia e racismo, e foram selecionados 20 resumos
pertinentes à questão racial no ensino de Geografia. Desse total, apenas um
resumo de Simão (2005) tinha como abordagem o preconceito e o racismo no
ensino de Geografia; nos demais, não se mencionava a questão racial com base
nas questões propostas pela lei 10.639/03 e tampouco os textos interfaciavam com
o multiculturalismo. Vimos, então, que, no ensino das relações etnicorraciais com
vistas para a educação básica, havia uma lacuna a respeito de orientações
metodológicas para o campo das práticas pedagógicas, como também faltavam
estudos que tratassem da cultura afro-brasileira no ensino de Geografia.
Neste sentido, o presente estudo justifica-se ao ter como fim avançar sobre
a questão etnicorracial no campo do currículo de Geografia, a respeito do negro e
da cultura afro-brasileira, com base nos discursos constituídos nos livros didáticos
de Geografia e, ao mesmo tempo, evocar a discussão entre ensino de Geografia e
multiculturalismo emancipatório, buscando, assim, como abordagem, a luta por
reconhecimento de “raça” e de cultura, com base na diferença da diferença dos
sujeitos sociais e com base no conceito de descolonialidade do ensino de
Geografia. Acredita-se que pensar o resgate do negro e da cultura afro-brasileira
não seria negar os paradigmas das ciências sociais, políticas e econômicas
eurocêntricas, contudo, é preciso desconstruir, rever e recontar narrativas até então
construídas com base num discurso afirmativo do Outro com estereótipos e
racismo.
Para tanto, foram propostos os seguintes objetivos:
18
1.2 Objetivos
Geral:
Resgatar a importância do negro e da cultura afro-brasileiro no ensino de
Geografia, com vistas para o multiculturalismo emancipatório na
construção da cidadania plena e da democracia racial.
Específicos:
Fazer o levantamento dos discursos sobre o negro e da cultura afro-
brasileira, nos livros didáticos de Geografia do sétimo ano, a partir das
categorias: lugar, espaço, território, paisagem, região e população;
Selecionar e fazer a leitura de imagens que retratem o negro e a cultura
afro-brasileira, nos livros didáticos de Geografia do sétimo ano, e
interpretar à luz do reconhecimento social com que as narrativas textuais
foram recortadas;
Resgatar o pensamento social brasileiro de Freyre (1933)1 e de Fernandes
(1964)2 com base nos marcadores de raça, cultura e classe, para refletir
sobre o ensino de Geografia com vistas para o multiculturalismo
emancipatório;
Discutir a situação social do negro e da cultura afro-brasileira a partir dos
marcadores de raça e de renda à luz do pensamento social brasileiro,
considerando o multiculturalismo como meio, como uma forma de
reconhecimento social, na reflexão dos paradigmas do ensino de
Geografia;
Propor a descolonialidade do ensino de Geografia no resgate do negro e da
cultura afro-brasileira, no conteúdo do sétimo ano, com base no
multiculturalismo emancipatório.
Por que é importante identificar, selecionar e refletir para então propor o
resgate do negro e da cultura afro-brasileira no ensino de Geografia? Na verdade,
o conteúdo do ensino de Geografia sobre o negro e a cultura afro-brasileira faz
1 Ano de lançamento da obra.
2 Idem.
19
parte do currículo oficial, todavia, o que desde então vem sendo mudado é a sua
abordagem epistêmica e metodológica de como ensinar. A ideia é, com base no
multiculturalismo emancipatório, desconstruir o reducionismo histórico e
econômico das “narrativas mestras” em que o negro é reproduzido como uma
coisa da estrutura social do escravismo. Essa visão não é suficiente para gerar o
autorrespeito, a autoconfiança e a autoestima no aluno hoje; do mesmo jeito, nas
narrativas sobre o Continente Africano os povos são vistos como exóticos,
selvagens, e estigmatizados pela fome, pela pobreza, e pela AIDS divulgada pela
indústria cultural do ocidente sob uma estética perversa. Atualmente, no campo do
currículo de Geografia, essas reproduções têm sido tensionadas no sentido de
construir um reconhecimento positivo do negro e da cultura afro-brasileira sem
distorção e preconceito. Mas, a luta por esse reconhecimento no campo do
currículo não tem ocorrido de forma gratuita e esvaziada de tensão política. Na
verdade, ela é fruto dos primeiros movimentos sociais negros, como a Frente
Negra Brasileira - FNB fundada nos anos 30, que se opunha à opressão que
pesava sobre o negro. Desde então, setores e instituições têm sido tensionados
pela sua integração na sociedade de classes.
Hoje, a lei 10.639/03 representa uma resposta às reivindicações sociais
historicamente iniciadas nas primeiras décadas do século XX, construídas pelos
movimentos sociais negros na luta por reconhecimento social. Contudo, é verdade
que, para alcançar o entendimento de criar uma lei específica para o campo da
educação, primeiro, na Conferência de Durban (2001), oficialmente o Brasil se
assumiu um país racista. Na ocasião, a delegação brasileira contou com muitos
brasileiros engajados em lutas sociais e abertos aos debates que propusessem
novos caminhos que levassem à reversão do quadro de desigualdade racial vivido,
até então por negros e brancos. Para mitigar a divisão entre negros e brancos,
desde então, o governo passou a criar políticas afirmativas e programas
educacionais estratégicos proativos no combate a estereótipos e a preconceitos
raciais e culturais contra o negro.
O desafio do momento tem exigido um ensino que seja combativo ao
racismo e que, ao mesmo tempo, proponha o reconhecimento social do negro e da
cultura afro-brasileira no currículo de Geografia. Acreditamos existir um longo
20
caminho a percorrer e, ao mesmo tempo, de se construírem teorias e propostas
pedagógicas voltadas para o reconhecimento social do negro e da cultura afro-
brasileira. Estamos certos ser isto importante para a educação básica e para a
afirmação da pluralidade cultural como aponta o referencial teórico.
Propor o resgate do negro e da cultura afro-brasileira no ensino de
Geografia representa um desafio para este pesquisador tendo em vista que esse é
um estudo orientado na pesquisa qualitativa em educação. Com base em Bardin
(1977, p. 34), primeiramente fizemos a análise de conteúdo das narrativas oficiais
dos livros didáticos de Geografia do sétimo ano, o que exigiu selecionar os
discursos de acordo com as categorias básicas do ensino de Geografia: lugar,
espaço, território, paisagem, região e população. Após, no segundo momento, o
nosso desafio aumentou já que escolhemos a técnica da bricolagem como
pesquisa qualitativa, o que demandou assumir o ponto de vista de um pesquisador
bricoleur com base em Dezin e Linconl (2006) e Kincheloe (2007). Para alcançar
esse fim, buscamos fazer sobreposições, montagens, oposição, comparação e
sínteses de diferentes paradigmas a respeito do que é hoje reconhecido como
cultura afro-brasileira; isso porque, no passado, na visão eurocêntrica, a
cosmologia africana não era considerada cultura, e, para o campo das Ciências
Naturais, os africanos seriam da raça inferior. Então, neste sentido, para recontar
sobre a luta do negro no resgate da sua cultura, seria insuficiente toda essa
montagem apenas por uma perspectiva da ciência.
Segundo Khun (2011, p. 29), o ato de fazer “ciência normal” “significa a
pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizações científicas passadas”
sendo assim, entendemos que, para resgatar a importância do negro e da cultura
afro-brasileira no ensino de Geografia com o rigor da narrativa, no mínimo
seríamos obrigados a retonar ao século XVI, quando se iniciou a sua participação
na formação do povo brasileiro, e ver em que perspectivas científicas e filosóficas
ele era reconhecido. Primeiramente é preciso dizer que, no século XVI, escola
pública sob o controle do Estado, estava ainda longe de existir e muito menos a
disciplina de Geografia. Entretanto, hoje, ao abordarmos esta questão no campo
da disciplina, não podemos nos esquecer de que o que fizemos foi uma
montagem, uma bricolagem sobre o passado, no sentido de organizar as narrativas
21
à luz dos paradigmas com os quais acreditamos responder as questões do nosso
tempo. Ainda nessa mesma direção, Khun (2011) afirma que o ato de fazer ciência
não é algo isolado, ou seja, não se cria nada sem uma finalidade social, ao
contrário, toda ciência estaria integrada a uma “unidade histórica e
pedagogicamente anterior, onde são apresentados” os seus fins (Idem, 2011, p.
71). A partir disso, para resgatar a importância do negro e da cultura afro-
brasileira, o presente trabalho foi construído considerando o paradigma da
geografia tradicional que tinha como base as ciências naturais e, como tal, a sua
crença no determinismo biológico, em que o meio preponderava sobre o homem,
ou seja, a natureza seria determinante sobre o meio social. Estaria o homem
vivendo o processo da história natural e, de acordo com o grau de evolução,
seriam os povos selecionados por raça, que, numa escala de âmbito geral, estariam
sujeitos à classificação social hierárquica. Na verdade, até as primeiras décadas do
século XX, foi esta mentalidade de base naturalista biológico que dominou a
“ciência normal”, com um consenso. Esta visão geográfica a respeito do meio e da
raça, para La Blache (1921), ainda é preponderante, como ele próprio afirma:
As origens das principais diversidades de raças escapam-nos;
perdem-se num passado bem longínquo. Mas, e apesar da
reserva que a imperfeição das observações nos impõe, muitos
fatos advertem-nos de que a matéria humana conserva a sua
plasticidade e que, incessantemente modelada pelas influências
do meio, é capaz de prestar-se a combinações e formas novas.
[...] Os povos adaptam-se, ou, para melhor dizer, domam-se aos
seus habitats sucessivos. Sobre essas misturas que formam traço
de união entre raças distantes e diversas, a influência do meio
reserva a última palavra. (LA BLACHE, 1921, p. 372).
Nota-se, à época, como conceito, que o meio preponderava sobre o social.
Apesar disso, o autor avançou na compreensão sobre a potencialidade humana ao
fazer a densa descrição dos lugares habitados e modelados pelo homem, o que ele
conceituou como modo de vida. Em síntese, para ele, estaria o homem vivendo o
modo de vida de acordo com a sua raça e o seu grau de apropriação e de
transformação da natureza em materialidade (cultura),3 que variava numa escala
de desenvolvimento que ia do homem civilizado ao homem selvagem.
Nesse mesmo sentido, Brunhes (1956) recorreu à mesma escala de
estratificação para explicar o potencial de ocupação “destrutiva” do homem
3 Acréscimo meu.
22
europeu, considerado o civilizado. Segundo o autor, esse possuía maior domínio
sobre as técnicas, mas por outro lado, seria infinitamente maior a sua capacidade
de degradação das florestas, quando comparado ao homem selvagem. O mesmo
afirma:
Certos povos selvagens praticam a devastação incendiando
floresta e cultivando o terreno assim conquistado, até que o solo
fique esgotado. Nessas regiões, porém, há superabundância de
terra e esse processo não traz como consequência a penúria dos
meios de subsistência; acarreta, apenas, o nomadismo. A
queimada da grande floresta e, sobretudo, da grande floresta
úmida é, realmente, o único meio de instalação para as
existências que vivem mais ou menos desses tipos de cultura
(BRUNHES, 1956, p. 292).
Por possuir um baixo grau de desenvolvimento da cultura do manejo
agrícola, seria selvagem o homem cuja capacidade de destruição seria menos
impactante do que a capacidade do homem europeu?
A geografia tradicional é um ponto de vista construído com base na
ciência moderna, eurocêntrica, cujo princípio se assenta na invenção do homem
universal civilizado do século XVIII, de modo que, tudo que não fosse europeu,
seria o contrário disso. Durante muito tempo esse foi o paradigma dominante no
ensino de Geografia: a descrição do Outro visto a partir das “narrativas mestras”
eurocêntricas, que reproduziam o Continente Africano com um lugar de povos
escravizados e de raça inferior, sem cultura, selvagem e exótico.
Essa foi a ideia reproduzida nos conteúdos e currículos do ensino de
Geografia. Todavia, no Brasil, na década de 80 do século XX, o paradigma da
geografia tradicional foi abalado com a emergência da geografia crítica, que
tinha como base e inspiração as ideias da Geografia Radical de cunho marxista.
Um grupo de autores brasileiros começou a pensar o ensino de Geografia com o
poder de explicação do espaço geográfico a partir das diferenças sociais
produzidas pela desigualdade oriunda do sistema econômico capitalista. Seria a
desigualdade, consequência do modo de produção, o que levaria à divisão social
do tipo interclassistas, pobre e rico, à má distribuição de renda e etc. Como pontua
Vesentini (1991, p. 13):
O confronto geografia tradicional versus geografia crítica,
assim, foi aos poucos cedendo lugar a uma diferenciação interna
à geografia renovada ou crítica que mostra ter múltiplas vias.
[...] Enquanto, por um lado, ainda existe o professor
tradicionalista que ensina nomes de rios ou montanhas, por
outro lado há o fundamentalista, que substitui esse conteúdo
pela transmissão dos conceitos de modo de produção ou
23
“formação sócio-espacial”. Ao mesmo tempo, surgem aqueles
que buscam não somente substituir um conteúdo por outro, mas
principalmente uma relação pedagógica por outra (tornando o
aluno sujeito do conhecimento e construtor de conceitos, ao
invés de recebê-los prontos; oferecendo material para a crítica
do capitalismo e também do “socialismo real” e do marxismo-
leninismo; procurando ajudar na formação de cidadãos ativos e
não de militantes fanáticos e intransigentes.
Como o autor defende, o paradigma da geografia crítica estaria voltado
para explicar o espaço geográfico a partir da desigualdade produzida pelo sistema
capitalista, e, ao mesmo tempo, desenvolvendo uma relação de ensino e
aprendizagem em que o aluno seria colocado na condição de sujeito, para que o
mesmo alcançasse a sua cidadania. Desde então, o que tem sido observado é que o
currículo de Geografia apresenta um misto de tendências e de paradigmas, tanto
da geografia tradicional quanto da geografia crítica. Entretanto, hoje, o desafio
que está sendo posto pelas políticas educacionais de ação afirmativa, como a lei
10.639/03 que obriga o resgate da cultura afro-brasileira, é a exigência de um
ensino de Geografia, a respeito dessa temática, com novas abordagens e diferente
das perspectivas tradicionais presentes nos currículos e programas em vigor.
Nesse trabalho, procuramos avançar a respeito da importância do negro e
do resgate da cultura afro-brasileira, com base na reflexão dos paradigmas crítico
e pós-crítico no campo do currículo do ensino da disciplina Geografia e, nesse
sentido, buscou-se, ao mesmo tempo, o diálogo com o multiculturalismo
emancipatório por entender que, epistemologicamente, esse conceito tem refletido
sobre o marcador de raça para além do entendimento das teorias raciais do século
XIX, que se baseava no paradigma biológico determinista do meio geográfico
cuja base ontológica está na invenção do homem do Iluminismo: universal,
civilizado, de raça superior, e que hierarquizava e classificava o Outro – o não
europeu, como selvagem, sem cultura e de raça inferior.
Com base em Santos (2010), o multiculturalismo emancipatório tensiona o
conceito de “raça” na perspectiva dos estudos culturais. Para Hall (2008), seria
esse um significado que opera sob-rasura, visto que, biologicamente, ele caiu,
contudo, mesmo assim, continua sendo lido sob outras perspectivas. Nesse
sentido, o multiculturalismo emancipatório abre o debate para o reconhecimento
do negro e da cultura afro-brasileira, com base no jogo das diferenças histórico-
sociais sobre o qual foi construída a formação do povo brasileiro e em que o
24
africano foi marcado pela diferença de “raça”. Isso fez dele o inferior, o escravo,
aquele que esteve a serviço da estrutura branca, cristã e europeia (GONÇALVES
& SILVA, 2006).
Ao mesmo tempo, pensar o multiculturalismo emancipatório significa
evocar o reconhecimento na diferença da diferença do Outro e nesse caso, é
necessário retomar, no mínimo, as “narrativas mestras” do século XVI, quando
então foi pensado o projeto eurocêntrico colonial, no qual em nome das certezas e
a afirmação do homem europeu, o Outro – o africano era reconhecido de forma
negativa, como aquele que não tinha alma, sem direito de ter direito à igualdade.
Ao contrário, sua diferença era um marcador da sua desigualdade. Com base
nisso, hoje, para reconhecer, evocamos teoricamente as contribuições de Hegel
(2011), Honneth (2007), Fraser (2007); Taylor (1994) e outros que pensaram a
dialética entre os sujeitos sociais na luta por reconhecimento, na perspectiva da
Filosofia do Direito e das políticas sociais.
Na educação, o reconhecimento do negro e da cultura afro-brasileira é uma
luta que se realiza no campo do currículo e, para Silva (1995), o currículo é um
campo contestado e de disputas, o que significa que culturas são incluídas e outras
são excluídas, ou, às vezes, culturas são reconhecidas de forma positiva e outras
são reconhecidas com estereótipos e preconceitos. Nesse caso, muitos têm sido os
autores do campo do currículo que têm apresentado tendências do
multiculturalismo e que abordam, portanto, conceitos e temas voltados para o
reconhecimento do Outro. Para Canen (2002, p. 37), estaria o multiculturalismo,
no campo da educação, voltado para a “centralidade da cultura e da desconstrução
dos discursos educacionais”, no sentido de resgatar ou até mesmo de construir
outros discursos alternativos de reconhecimento do Outro. Para a autora, o
multiculturalismo teria várias formas de discursos: 1. o multiculturalismo
folclórico, que valoriza os mitos e festas populares que, geralmente, fazem parte
do currículo oficial, como o “Dia do índio”, ou o “Dia 13 de maio”, em que se
comemora a Abolição; 2. o multiculturalismo crítico, que compreende a
desigualdade social como consequência do modo de produção do sistema
capitalista, o que levaria a luta de classes; ou 3. o multiculturalismo pós-colonial,
uma tendência que evoca e desafia o binarismo, ou seja, em outras palavras,
“negro x branco, feminino x masculino e outros, que acabam por reproduzir, de
25
forma invertida, o binarismo eu x outro, normalidade x diferença, bons x maus”
(CANEN, 2006, p. 39).
Na verdade, acreditamos que todo o referencial teórico aqui citado, a
escolha de cada autor, foi feita pela relevância e a contribuição de cada um,
porém, no corpo deste trabalho, ao propor o resgate do negro e da cultura afro-
brasileira para o ensino de Geografia, procuramos não nos prender a tipos e a
categorias, ou seja, cercar o campo da análise na tentativa de manter a reflexão
dentro do referencial, mas, ao contrário disso, o que se pretendeu é que o
referencial fosse um meio para as possíveis reflexões. O que se deseja é construir
a narrativa do resgate do negro e da cultura afro-brasileira no ensino de Geografia
na perspectiva em que o multiculturalismo emancipatório sirva de suporte, ou
seja, de meio para que se faça a bricolagem de diversos tipos de teorias e de
paradigmas diferentes que levem à compreensão do que se quer, hoje, na práxis
do currículo do ensino de Geografia e que esse seja um meio e não um fim no
sentido de construir cidadania do aluno e de provocar a emancipação humana.
Para que isso ocorra e seja possível, nos referenciamos em procedimentos
metodológicos, que serão vistos no próximo item.
1.5 Referencial metodológico
Para resgatar a importância do negro e da cultura afro-brasileira no ensino de
Geografia, foi necessário reunir, a partir da perspectiva do multiculturalismo
emancipatório, pedaços de narrativas produzidas sobre diversos recortes com
base em paradigmas, que envolveram diferentes áreas e campos de investigação,
para explicar os tipos de reconhecimentos, que foram feitos sobre o negro, desde
o século XVI até o século XXI. E, para isso, utilizou-se a pesquisa qualitativa
em educação por envolver um conjunto de práticas interpretativas para explicar
os conceitos de ensino de Geografia, currículo, livro didático, cultura, raça,
renda, relacionados a tudo que se refere ao reconhecimento do negro. No
primeiro momento o procedimento foi selecionar os 10 volumes do sétimo ano
das coleções de livros didáticos de Geografia aprovados pelo PNLD/MEC para
os anos seguintes: 2011 a 2013. O conteúdo do sétimo ano, que aborda a
26
geografia do Brasil, são os volumes: 1. ADAS, Melhem. Construção do espaço
geográfico brasileiro - 7º ano. São Paulo: Editora Moderna, 2006; 2. SENE, E
de & MOREIRA, J. C. Geografia Moreira e Sene: Geografia: ontem e hoje –
7º ano. São Paulo, Scipione, 2009; 3. VESSENTINI, J. W & VLACH, V.
Geografia Crítica: O espaço brasileiro – 7º. São Paulo: Ática, 2009; 4.
BOLIGIAN, L. [et al.]. Geografia espaço e vivência: a organização do espaço
brasileiro, 7º. São Paulo: Atual, 2009; 5. BIGOTTO, J. F. [et al.]. Geografia
sociedade e cotidiano: espaço brasileiro, 7º ano. São Paulo: Escala
Educacional, 2009; 6. CARVALHO, M. B & PEREIRA, D. A. C. Geografia do
mundo: Brasil, 7º ano. São Paulo: FTD, 2009; 7º. SAMPAIO, F. dos S. [et al.].
Para viver juntos: geografia, 7º ano. São Paulo: Edições SM, 2009; 8.
MAGALHÃES, C. [et al]. Perspectiva. São Paulo: Editora do Brasil, 2009; 9.
DANELLI, S, C de S. Projeto Araribá: Geografia. São Paulo: Editora
Moderna, 2007; 10. PIRES, V & PIRES, B. B. Projeto Radix Geografia, 7º
ano. São Paulo: Scipione, 2009. Todos os discursos com referência ao negro e à
cultura afro-brasileira foram recortados dos mesmos e distribuídos nas
categorias4 de lugar, espaço, paisagem, região, território e população, com o
objetivo de verificar em que medida esses conceitos eram refletidos pelo
paradigma da geografia tradicional e pelo paradigma da geografia crítica e, ao
mesmo tempo, interfaciá-los com a discussão do campo do currículo na
perspectiva do multiculturalismo emancipatório.
Reunido esse material, foi considerado esse o corpus da pesquisa. E, para
fazer os recortes das narrativas sobre o resgate do negro e da cultura afro-
brasileira foi utilizada a técnica de análise documental com base em André e
Lüdke (1986, p. 40), que consideram o livro didático documento oficial. Para
alcançar os devidos fins, que problematizassem os tipos de reconhecimentos do
negro e da cultura afro-brasileira do século XVI aos paradigmas multiculturais
foi necessário dialogar com outras áreas como a Sociologia, a Antropologia, a
Filosofia e com a Teoria do Currículo, portanto essa abordagem exige conhecer
as concepções de raça construídas no campo das Ciências Sociais e Políticas a
respeito do Outro. Sobretudo, por ser essa uma reflexão no domínio do campo
da Educação, na área do ensino de Geografia, o que requereu um exercício maior
4 Conforme mostra do apêndice nas páginas 187-222.
27
e o máximo de rigor possível. Na verdade, isso exigiu a tarefa de improvisar,
recortar, colar, e de confeccionar uma colcha multicultural, com diversos
pedaços de teorias e paradigmas sobre o negro e a cultura afro-brasileira do
século XVI à lei 10639/03 no ensino de Geografia. Consciente dessa escolha, à
medida que houve um esforço de mostrar como é a relação do pesquisador com
o mundo a pesquisa passou a ser conduzida pela técnica da bricolagem. Como
diz Kincheloe (2007, p. 17), a “bricolagem é um processo cognitivo de alto
nível, que envolve construção e reconstrução, diagnóstico contextual,
negociação e readaptação”, e, com base nesse sentido, a partir de cada pedaço e
recorte narrativo retirado dos livros didáticos de Geografia, costurou-se cultura e
raça, como conceitos centrais na compreensão da narrativa montada sobre o
negro e a cultura afro-brasileira desde o século XVI. E, para refletir acerca de
cada recorte discursivo, categorias e conceitos foram bricolados, dos quais o
primeiro foi o reconhecimento social, que serviu de fio condutor na abordagem
da luta entre senhor e escravo, cuja batalha era de vida e morte, iniciada no seu
apresamento em África até a sua re-construção-escrava na casa-grande no
cotidiano do engenho de açúcar.
A segunda parte da bricolagem foi feita dos diferentes pedaços de recortes
textuais sobre o negro e a cultura afro-brasileira em diferentes abordagens como a
culinária, a música, a dança e a religião afro-brasileira, com base nos paradigmas
do ensino de Geografia, e dos fundamentos da Teoria Social do Currículo. O
reconhecimento social foi a categoria central e usada para “colar” e fixar as
narrativas multiculturais.
Na terceira parte da bricolagem, o estudo abordou o conceito renda e raça
que servem para hierarquizar, gerar preconceitos e a desigualdade entre negros e
brancos. Foram recortadas e coladas ainda, imagens relacionadas ao contexto
porque, como diz Manguel (2001, p. 24): “as narrativas existem no tempo, e as
imagens, no espaço” e, nesse caso, elas tiveram a capacidade de auxiliar na
reflexão e de provocar na consciência do intérprete e do espectador, tipos de
sentimentos sobre o reconhecimento do negro antes da Abolição, como mostra o
capítulo 4.
Foram escolhidas seis imagens e um mapa, para compor a narrativa geral
do capítulo. Na seção 4.1, a imagem 01, óleo sobre tela, “Moinho de açúcar”,
28
Rugendas (1835), In: (ADAS 2006, p. 37); a imagem 02, óleo sobre tela,
“Engenho de açúcar em Itamaracá”, Post (1647), In: (Idem, 2006, p. 38).
Na seção 4.2, foram interpretadas as imagens fotográficas: 03.
“Manifestações Populares” In: (SAMPAIO, 2009, p. 40); 04. “Oferendas à
Iemanjá”, (Idem, 2009, p. 15); 05. “Capoeira: luta e dança”, In: (PIRES e PIRES,
2009, p. 68); e 06. “Jovens no Ibirapuera” In: (BIGOTO, 2009, p. 9).
Na seção 4.3, foi exposto o mapa 01, “Analfabetismo no Brasil segundo a
cor ou raça”, In: (DANELLI, 2007, p. 45). Para cada narrativa textual dos livros
didáticos de Geografia recortada, seu fundo foi colorido na cor cinza, para ajudar
a compor a nuance da colcha bricoleur multicultural negro-afro-brasileira. É
comum aos autores de livros didáticos utilizarem fontes imagéticas de domínio
público. Com isso, muitas imagens dos 10 livros analisados se repetem.
Na última seção 4.4, se recomenda que, para desconstruir as “narrativas
mestras” coloniais, seria necessário descolonizar ideias e certezas, a partir dos
paradigmas pós-coloniais do reconhecimento da diferença na diferença.
Entendemos que, na pesquisa qualitativa, o seu campo de domínio não se prende
a um conjunto de técnicas, quando esse não é capaz de refletir a natureza de um
fenômeno social, como o da educação. É nesse sentido, que a bricolagem
permite, e com rigor, fazer os recortes, as colagens e as montagens dos
diferentes discursos de tempos e espaços para um determinado fim do presente
trabalho (DENZIN & LINCOLN, 2006), contar a história:
A interpretação na bricolagem não pode acontecer sem a
compreensão de uma ontologia relacional e de uma
hermenêutica simbólica. Por mais que essas noções possam soar
radicais, é interessantes observar que tais conceitos não são
novos, já tendo sido expressos por poetas, griots e contadores de
história em diversas civilizações (KINCHELOE, 2007, p. 111).
Espera-se que, de acordo com a estrutura planejada nesse estudo, os
objetivos propostos tenham sido cumpridos com clareza e coerência, e que
alcancem o leitor, a partir das generalizações feitas pelo pesquisador, visto que,
como pesquisa qualitativa, esse seria seu fim, (ESTEBAN, 2010, p. 139),
conforme descrito na estrutura do trabalho.
29
1.6 Estrutura do trabalho
A tese se encontra organizada na seguinte estrutura: o capítulo 1 trata o
reconhecimento no ensino de Geografia, com a abordagem para o resgate do
negro e da cultura afro-brasileira, com base nos discursos dos livros didáticos,
na seguinte ordem: a apresentação do problema, a justificativa, os objetivos, o
referencial teórico, o referencial metodológico, e a estrutura do trabalho. No
capítulo 2, trata da Geografia e do multiculturalismo com vistas para os
conceitos e tendência da geografia tradicional, com abordagem racial sobre o
negro pela visão de La Blache (1921) e de Brunhes (1956) e, também, pelos
autores brasileiros, Carvalho (1935; 1949; 1963; 1967) e Azevedo (1943;
1958; 1959; 1968; 1976). Num segundo momento discute os paradigmas da
geografia tradicional e da geografia crítica e as implicações hoje do
reconhecimento social na diferença e na igualdade racial. Na terceira
subseção, visa sobre o resgate do negro e da cultura afro-brasileira pensada a
partir do multiculturalismo no currículo. No capítulo 3, discorre sobre a
contribuição de Freyre (1998) com a obra “Casa-grande e senzala” e de
Fernandes (1978; 2008) com a obra “A integração do negro na sociedade de
classes”, em que o primeiro resgata o negro e a cultura afro-brasileira pela
cultura e o segundo retrata a tensão social vivida pelo negro na sociedade de
classes. No capítulo 4, expõe a interpretação dos dados dos discursos dos
livros didáticos Geografia, com o recorte desde o século XVI, quando o
africano foi trazido da África para ser escravizado e foi reconhecido como
coisa, até a Abolição, quando esse quadro foi mudado. Na segunda seção,
discute a música, a capoeira, a culinária e a língua como resgate e
reconhecimento da cultura afro-brasileira nos livros didáticos de Geografia do
sétimo ano, que refletiu o reconhecimento social do negro do passado até o
presente com a cultura hip hop. Na terceira seção, compara raça, renda e cor,
entre negros e brancos, como marcadores de desigualdades sociais. Para
finalizar, a última seção evoca a descolonialidade do ensino de Geografia para
que possa efetivamente levar à emancipação humana do sujeito social.
30
2. GEGOGRAFIA E MULTICULTURALISMO
Para a geografia clássica tradicional sistematizada a partir do século
XVII, como método, o mais importante seria descrever as coisas do espaço do que
refletir as contradições sociais sobre elas (CLAVAL, 2001). Entretanto, no século
XX, com as transformações sociais trazidas pela industrialização e pela
urbanização, o paradigma da geografia tradicional com base na descrição das
coisas e dos lugares entrou em crise. Como uma ciência social, o seu desafio
passou a ser não somente descrever, mas explicar o espaço e as suas contradições.
Para Corrêa (2003), o espaço é um dos conceitos-chave da Geografia pelo qual o
homem, através da cultura e do trabalho, dinamiza e significa os lugares na
paisagem. Para Moreira (2010, p. 61), a Geografia tem a função de “desvendar
máscaras sociais”; por isso, seria então sua função revelar os porquês de, ainda
hoje, negros e brancos no Brasil socialmente viverem em espaços tão desiguais.
Para refletir sobre isso e desvelar tais máscaras, na primeira seção desse
capítulo, através do paradigma da geografia clássica tradicional, buscou-se saber
como que os geógrafos europeus interpretavam o homem africano no seu modo de
vida. Sabe-se a Geografia se baseava no método descritivo, cuja finalidade seria
explicar as propriedades das unidades terrestres e também explicar a combinação
dos fenômenos naturais porque, à época, como diz La Blache (1982, p. 47) “a
Geografia é uma ciência dos lugares e não dos homens”. O paradigma dominante
era de uma geografia com base naturalista e, neste sentido, se ocupava com a
descrição do espaço em detrimento da reflexão social, com aquilo que seria
subjetivo ao homem (CLAVAL, 2009).
Dessa foram, o presente capítulo trata dos conceitos e tendências da
geografia tradicional, em que o homem africano é visto pelos geógrafos europeus
como alguém de raça inferior e não civilizado. No segundo momento do capítulo,
a geografia crítica busca explicar as contradições e os conflitos sociais, em
seguida prosseguindo com a reflexão no âmbito do ensino de Geografia com
vistas para o livro didático e a crise dos paradigmas. Num terceiro momento, o
texto aborda a dialética entre a diferença e a igualdade. E, para finalizar, reflete
sobre o multiculturalismo na educação com base na Teoria do Currículo.
31
2.1 A Geografia Tradicional: conceitos e tendências
Até há bem pouco tempo, os livros didáticos de geografia distribuídos pelo
MEC às redes escolares eram orientados por currículos e programas cujas
propostas pedagógicas valorizavam a reprodução de conteúdos, em que o professor
era o reprodutor e o aluno o receptor. Ao segundo cabia o papel de decorar
conceitos e temas propostos pelo primeiro, muitas vezes de pouco significado para
a sua vida. A função da escola seria a de preparar o aluno para a aprendizagem do
conteúdo. Neste sentido, era papel do especialista fazer o controle do programa,
que exigia do professor o planejamento do conteúdo, o seu plano de curso, com
objetivos gerais e específicos do ensino, que deveriam ser distribuídos de acordo
com a carga horária do ano letivo (DOTTORI, 1963, p. 185).
Na regência, esperava-se do professor o domínio do conteúdo e a didática
para orientar diferentes tipos de aprendizagens. No conteúdo ensinado, o método
recorrente para fazer a transmissão era o mnemônico. A orientação era para
memorizar nomes de rios, países, capitais, e responder a questionários, colorir
mapas - tudo com o fim de induzir o aluno à repetição do conteúdo ensinado, ou
seja, promover uma educação bancária5.
Durante muito tempo, esse modelo de educação inspirava certezas e abria
caminhos à sociedade. Atualmente, essa tendência de ensino, que tinha como
meio a repetição e a memorização do conteúdo está em crise. Os objetivos
vinham esvaziados de críticas o que tornava a aprendizagem, muitas vezes, com
um fim em si mesma, distante da realidade do aluno, fazendo com que ele
desenvolvesse uma visão estreita de mundo. Entretanto, acerca dessa concepção,
Carvalho (1949, p.231) preconizava ao contrário. No século passado, no Brasil,
autores de livros didáticos concebiam um discurso, em que se dizia fazer uma
Geografia Moderna. Postulava a ideia de ser o homem, o elemento importante da
paisagem, o primeiro, o agente causador e transformador da paisagem cultural,
que dito com outras palavras, no que tange ao ensino da Geografia, significava ir
de encontro aos princípios da educação bancária. O que o autor queria dizer é que
ele propunha, em seus livros didáticos, um ensino de Geografia significativo e
aplicado à vida do aluno. Todavia, analisando seus discursos em outras edições de
5 Um conceito de Paulo Freire, do livro Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1970.
32
seus livros, notamos que ele dialogava com o paradigma determinista (Homem e
Natureza) pelo qual categorizava a população numa concepção naturalista. Esse
posicionamento teórico foi mantido até final dos anos 60 (CARVALHO &
CASTRO, 1967, p. 28).
Enquanto isso, outras tendências e abordagens emergiram no campo do
currículo no ensino da disciplina de Geografia. Graças à quebra do paradigma da
geografia tradicional pela geografia crítica, novas perspectivas pedagógicas
surgiram revelando outras visões sobre o ensino e a aprendizagem. Agora o
momento era outro, e os desafios educacionais também eram outros, diferentes
dos anteriores. Entretanto, analisando-se as contribuições dos paradigmas
tradicional e crítico, notou-se um vazio deixado no currículo de geografia tocante
às políticas de identidade racial que refletissem acerca da população negra, pois
esses paradigmas não foram capazes de traduzir de forma propositiva essa
questão. Dessa forma, só depois de mais de um século da Abolição da escravatura,
que custou caro à sociedade e que deixou o racismo por herança, o Estado
reconheceu ser o Brasil um país racista, e passou a criar políticas nesse sentido.
Desde então, no século XXI, para reverter esse quadro, no âmbito da educação foi
criada a Lei 10.639/03, que teve como finalidade resgatar a cultura afro-brasileira
e abrir possibilidades para repensar as diferenças étnicas e raciais, no sentido de
promover a igualdade social.
De acordo com isso, o presente capítulo visa refletir acerca de temas e
paradigmas da geografia tradicional e da geografia crítica, e estabelecer um
possível diálogo com as tendências da geografia pós-crítica, que se caracteriza ao
querer novas perspectivas que ultrapassam o discurso crítico propositivo
transformador, ao oferecer uma visão menos monológica da ciência geográfica e
mais bricoleur na construção das narrativas (KINCHELOE & BERRY, 2007;
DENZIN & LINCOLN, 2006).
A fim de acurar o presente discurso desse trabalho, é importante esclarecer
dois aspectos: o primeiro, o público alvo para o qual direcionamos os fins desta
tese, o professor que atua na educação básica, e também a todos aqueles que têm o
interesse de compreender e de refletir sobre a educação das relações etnicorraciais
no âmbito escolar; e, o segundo: refletir, a partir da bricolagem, outras
epistemologias que apresentem aberturas para o diálogo com as políticas
33
educacionais, com vistas para o reconhecimento da diferença na diferença para
pensar uma geografia de tendência pós-crítica.
Historicamente, desde o início da ocupação portuguesa, a geografia, como
ciência estava presente nos empreendimentos náuticos das Grandes Navegações
no mar e na terra. Reconhecer territórios, controlar fronteiras e organizar espaços
eram os instrumentos desta ciência, os meios utilitários usados pelo então
colonizador para dominar lugares. Nos relatos deixados pelos viajantes e cronistas
da época é apaixonante a forma com que eles descreviam a beleza dos quadros
naturais e, sobretudo, das paisagens brasileiras. Vista de outro ponto, outras vezes
era possível constatar raças e cores através das pinturas e de desenhos de artistas
europeus que tanto traduziram o cotidiano patriarcal e escravocrata, ora na
Colônia, ora no Império. Como se sabe, a história do descobrimento é um arranjo
feito de narrativas sobre a ocupação europeia, que passou a ser contada pelo
vencedor. E, nisto, a Geografia serviu para instrumentalizar o conquistador que
soube estabelecer os seus domínios territoriais na organização do espaço.
Mas, foi no século XIX, com a inauguração do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro – IHGB, criado em 1838, um marco da investigação
cientifica do país, que o estudo da Geografia se sistematizou como uma ciência
(MARY, 2010). Para Schwarcz (1993, p. 99), à época, o IHGB inaugurou a era
dos “homens de ciência” aqueles que vão “colligir, methodizar e guardar”
documentos. A esses cabia o papel de escrever a história e de produzir os mitos
fundacionais do Brasil tocante a sua diversidade e a sua grandeza natural. Para
isto, a história servia para fabricar heróis e geografia para descrever os aspectos
territoriais e naturais dessa fábrica de nação.
Todavia, a pesquisa científica, de fato, só se consumou no limiar do século
XX, a partir dos anos 30, com a fundação do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística - IBGE, voltado para pesquisa quantitativa e que, até hoje, é um órgão
de referência federal. Haja vista que, durante muito tempo, este instituto
contribuiu sobremaneira para com o ensino de geografia. Por mais de três
décadas, publicou a Revista “Tipos e aspectos do Brasil”, uma síntese das
potencialidades naturais e culturais do país, feita com as ilustrações em bico de
pena por Percy Lau6 (BRASIL/IBGE/CNG, 1966); e também proporcionou o
6 (1903-1972) desenhista contratado pelo IBGE. Seu trabalho, segundo Lustosa (2000, p. 3) vai
além disso. Ele “insere-se num seleto grupo de artistas gráficos que muito contribuíram para o
34
“curso de férias para professores”, no ano de 63, na cidade do Rio de Janeiro e,
um ano depois do treinamento, foram publicadas as súmulas das aulas e
disponibilizadas pelo IBGE (BRASIL,1964).
Em São Paulo, nesta mesma década de criação do IBGE, foi fundada a
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo
(FFCL/USP) e, doze anos depois, em 1946, criou-se o Departamento de
Geografia, muito importante para o desenvolvimento da ciência geográfica e para
a formação de bacharéis e para a formação de professores licenciados para o
ensino da disciplina de Geografia (PONTUSCHKA, 2007). À época da fundação
do Departamento de Geografia, parte dos professores que assumiu as cadeiras no
curso veio da França, como Pierre Deffontaines, Pierre Monbeig, entre outros.
Certamente, esta ligação entre o Brasil e a França contribuiu para que o
pensamento geográfico brasileiro fosse influenciado pelas tendências da “Escola
Francesa,” de Paul Vidal de La Blache (1845-1918), o seu maior expoente.
Enquanto isto, na França, o ensino de geografia já havia se consolidado
sob a égide da geografia tradicional cujos paradigmas refletiam muito do
discurso nacionalista daquele país, que difundia o projeto imperialista e
civilizatório com o domínio colonial na América, África, Ásia e na Oceania. Por
isso, era urgente ao francês conhecer as suas potencialidades naturais e culturais,
para então “civilizar” o Outro7 e fazer o controle do seu território. Neste sentido,
a geografia, antes de mais nada, serviu para afirmar a civilização francesa, pela
qual o Outro foi interpretado como o não civilizado, o não francês, o não branco.
Tocante ao campo do ensino, as tendências pedagógicas tinham como fim
difundir a ideia de que era papel da disciplina de Geografia descrever o espaço
como algo real, ou seja, como ele parecia ser. Sendo assim, devia a disciplina
levar a criança a desenvolver habilidades e competências de como aprender a
descrever a região e a gostar do seu lugar como um francês. Não era importante
raciocinar e desenvolver um senso crítico no aluno sobre o espaço descrito e
inventariado na aprendizagem. O importante para o ensino era se ocupar em fazer
uma geografia que despertasse o patriotismo e o espírito de pertença à sua nação
(BRABANT, 1994).
desenvolvimento da técnica do desenho e da gravura no nosso país”. Sua produção tornou-se uma
síntese do Brasil, um banco de imagens dos quadros naturais e culturais. 7 Grifo meu. O outro tem o sentido de inferior; pelo discurso epistemológico colonial ele é
diminuído.
35
De fato, a geografia escolar teve suas tendências pedagógicas baseadas nos
paradigmas da geografia tradicional e, como diz La Blache (1921), esta era uma
ciência dos lugares. Na sua concepção, o papel do geógrafo era o de se ocupar
com a descrição da paisagem e de como ela parecia ser com os seus recursos
naturais, como o clima, o relevo, a vegetação, os mares e os oceanos e, a partir
desses diferentes quadros, explicar como que o homem se adaptou ao meio. Para
tanto, o autor desenvolveu uma metodologia de análise de grau de civilização,
chamada de modo de vida8. Esta metodologia permitia, a partir da observação,
avaliar o grau que variava do de selvagem ao de civilizado. O modo de vida na
escala de aferição, incluía o critério de hábitos, costumes e valores do primitivo ao
mais complexo dos valores dos civilizados. O conjunto de técnica e o seu domínio
é o que definia o grau de evolução da raça ou de um povo. Quanto maior domínio
das técnicas, menor dependência o homem tinha do meio.
Para compreender uma corrente ou um pensamento, é fundamental
conhecer a epistemologia que lhe dá o suporte teórico. Daí, nesta seção,
buscarmos compreender os fundamentos da geografia tradicional e a sua
contribuição para o ensino de Geografia no que tange à questão racial do negro.
Por isso, perguntamos: qual seria o objeto de estudo da geografia tradicional?
Qual seria o sentido de homem, natureza, meio, raça e paisagem, de acordo com
esse paradigma? Responder a estas questões certamente esclarece os paradigmas
de uma época, desde que haja o esforço à alteridade, à prática de se colocar no
lugar do Outro, para que não façamos uma análise maniqueísta sobre as suas
tendências.
A geografia tradicional, nascida com a Ciência Moderna, teve origem no
campo da Física e da Matemática, e foi através dessas áreas, dessa base
epistemológica, que ela se firmou como ciência natural e física. Com isso, o seu
método se desenvolveu com base no determinismo biológico e geográfico, em que
o meio natural era determinante sobre o meio social, mas, segundo Claval (2001),
só no século XX, com a emergência do paradigma da Geografia Humana, esse
entrou em crise. Com base no paradigma biológico, a classificação da população
era determinada por raça pelo meio natural geográfico, como o clima e o relevo,
sendo que esses fatores seriam determinantes para a evolução do homem. Este,
8 Grifo meu. Modo de vida é a capacidade de criar técnicas para se adaptar ao meio natural e até
transformá-lo.
36
embora fosse o objeto de preocupação da geografia tradicional, era o produto do
meio natural, estava suscetível à natureza. Para o pensamento geográfico físico,
numa escala natural, o homem estava sujeito às forças determinantes do meio
assim como os demais animais; contudo, o que o diferenciava estaria na sua
habilidade e no seu esforço intelectual que o colocavam num ranking de evolução
que ia do marco um, do homem primitivo (o selvagem), ao mais alto grau (o
civilizado). A diferença, portanto, entre o selvagem e o civilizado estaria no
domínio da artificialidade que o segundo tinha sobre a natureza, enquanto, no
primeiro, a natureza era determinante sobre ele. Isso foi possível graças ao
desenvolvimento de estudos etnográficos que permitiam descrever os diferentes
graus de evolução da população e a sua distribuição segundo os critérios naturais
e raciais sobre os diferentes estágios dos habitantes do globo (RATZEL 1990, p.
72). A este autor deve-se a introdução dos princípios da Geografia Humana, visto
que ele foi pioneiro ao propor a Antropogeografia, um subcampo da Geografia
Física e Natural. Como tal, suas reflexões avançaram no que tange às questões do
homem. Ainda que sob uma ótica determinista de “forte e fraco”, potencializava
pelo menos a dimensão política e psicossocial do homem no espaço, quando
então, este passa a ser objeto de disputa vital da luta pelo território.
Foi o determinismo geográfico e biológico a base do paradigma
hegemônico entre os geógrafos do século XIX, e foi também o que embasou o
pensamento da geografia tradicional. Para a Geografia daquele século, não se
pensava o espaço do homem, mas o espaço dominado pela natureza; e isto, à
época, era a base do discurso e do pensamento naturalista que, como tal, partia da
premissa de que o homem era o produto do meio, portanto, estaria ele suscetível
ao determinismo do clima, relevo, vegetação e outros elementos; e, ao mesmo
tempo, essas variáveis eram dominantes e influenciavam o comportamento do
homem. De acordo com esse paradigma, não era objeto da Geografia ocupar-se
com paixões, sentimentos, subjetividade humana, temas para outra Ciência, como
a Sociologia. A Geografia devia se ocupar em descrever as coisas do espaço
natural; a dimensão política e social não era o seu objeto (MARTINS, 1921).
Nesta concepção, a paisagem era um conjunto de unidades que compunha
o quadro natural geomorfológico. Quanto a distribuição da população sobre a
Terra, explicava-se a partir do meio natural geográfico. Mesmo com suas
técnicas, o homem vivia sob o imperativo do determinismo geográfico, e era
37
passível de ser observado em diferentes estágios da evolução, o que podia variar
de acordo com a raça e o seu modo de vida. Quanto menor fosse o seu domínio
sobre as técnicas, maior seria a probabilidade do seu atraso na escala da evolução
humana.
Ao explicar a atuação do homem sobre o meio, La Blache (1921) criou
uma categoria de análise chamada de modo de vida, uma categoria intelectual que
tinha a função de avaliar em larga escala o quadro natural e o quadro humano da
Terra, e as relações das coisas que havia sobre ela. Nesta avaliação, o autor fazia
um inventário geográfico e estabelecia a relação do meio com o homem. Para ele,
as variáveis naturais ainda determinavam povos e raças, contudo, de acordo com o
grau do modo de vida, o homem podia variar de selvagem a civilizado; segundo a
sua capacidade humana de transformar e de modificar o meio, de acordo com o
domínio das técnicas de que ele dispunha. Entre muitos procedimentos de campo,
La Blache (1921) avaliou o modo de vida dos povos andinos e dos índios do
Amazonas e atribuiu a um conjunto de variáveis naturais e biológicas grau de
evolução desses povos, a ponto de acreditar que o clima determinava o seu estado
natural, e que isso atingia o físico e afetava também o seu comportamento, como
ele próprio coloca:
A igual suavidade das temperaturas e a facilidade do clima
não são, provavelmente, a causa única desse fato. Como a
pressão atmosférica diminui sensivelmente nessas elevadas
altitudes, a combinação do oxigênio do ar com os glóbulos
do sangue opera-se mais lentamente nos pulmões: a apatia,
a repugnância por todo o prolongamento de esforço
muscular ou outro qualquer seriam, segundo observações
dignas de fé, a consequência deste afrouxamento do
mecanismo essencial que, pelo sangue, age sobre a vida
nervosa (LA BLACHE, 1921, p. 163).
Ao ser avaliado o modo de vida dos povos americanos, concluiu o autor
que os mesmos ainda viviam num grau baixo da evolução humana e estariam
longe de conquistar o progresso e tornarem-se uma gente civilizada, isto porque
os fatores naturais ainda seriam determinantes sobre o modo de vida de cada um.
Homem e meio são conceitos importantes apresentados em “Princípios de
Geografia Humana” (1921). Para ele, o homem encontrava-se numa escala de
evolução em diferentes graus conforme o modo de vida e o quadro que
diferenciava a distribuição da população sobre a Terra por raça, que ia de superior
a inferior tinha na sua organização, muito dos aspectos naturais (o meio) e isto
38
determinava tipos e comportamentos diferentes. Na explicação dos fatores
naturais sobre o homem americano, para ele, a raça é importante e é o que explica
o seu comportamento e a sua moral:
Provenientes de raças, por certo, muito diversas, eles parecem,
entretanto, haver contraído, sob a influência do ambiente, um
caráter comum que se enraizou: a antipatia pelo esforço. [...] eu
recordo-me de ter ficado surpreendido, no México, com a falta
de movimento e da alegria, até dos próprios garotos, naqueles
grupos que se formavam para as refeições à volta dos cais das
estações. Não seria isto apenas um simples efeito de
hereditariedade fisiológica? (Idem, 1921, p. 163).
O que se observa é que, ao se tratar do homem e do meio, ainda que La
Blache (1921) tenha avançado sobre as relações do desenvolvimento e da
apropriação das técnicas – no modo de vida, para ele, ainda não ficava claro se o
que diferenciava o comportamento dos povos mais “atrasados” era o meio
geográfico ou se isso se devia a fatores internos (subjetivos) de cada povo, ele
deixa em aberto a possibilidade de acompanhar com maior frequência o
comportamento de tais fenômenos. Na verdade, ainda que o homem se mostrasse
ativo à natureza, e evoluído e civilizado, mesmo assim, por outro lado, estaria
sujeito também aos fatores do meio geográfico, de acordo com o seu grau de
evolução. Para ele, o homem que não estava no mesmo nível de evolução do
homem francês, mas, o contrário, o oposto disso, como era o caso do homem
americano, o determinismo biológico e geográfico explicava o seu tipo de
comportamento.
Em “Princípios de Geografia Humana” (1921), o autor considerou tudo
aquilo que fazia parte do processo civilizatório para descrever a distribuição
humana no globo, as desigualdades e as anomalias, os instrumentos, os modos de
alimentação, a habitação, meios de transportes, estradas, caminhos de ferro, tipos
de navegação – marítima ou lacustre, ou seja, tudo que ele alcançou e viu no seu
tempo. Sem dúvida, seu trabalho representou um legado para a Geografia Humana
mundial. Contudo, não se pode perder de vista que os seus estudos sobre o homem
e o meio foram produzidos numa época em que o paradigma dominante era o da
Geografia Física com base naturalista e no determinismo biológico. Portanto,
todas as referências do homem “possibilista” e civilizado, notado em seu discurso,
se voltavam para o homem branco e europeu, porque, para La Blache (1921), os
39
outros povos não eram civilizados, estavam em diferentes fases de sua evolução e,
nessa escala, a evolução prosseguia em seus extremos: de selvagem a civilizado.
Quem também corroborou para com o pensamento da Geografia Humana
foi Brunhes (1869-1930), contemporâneo de La Blache (1845-1918): “foi ele
quem impôs a denominação “Geografia Humana” em lugar da de
Antropogeografia”, diz Deffontaines (1956, p. 9). Segundo esse autor, assumir
uma ciência inteiramente humana, era uma postura ousada, visto que, naquele
tempo, o hegemônico era o paradigma naturalista.
A Geografia Humana tratava de tipos de atividade humana, que não
tinham força de explicação na Geografia Física. A partir dela, o homem saía do
imperativo da natureza e ganhava força de explicação sobre si mesmo e sobre a
sua capacidade de transformação, sobre o espaço, como aborda o autor:
Os homens reflorestam; desse modo, moderam a obra destrutiva
das enxurradas e modificam os climas. Plantam o pinheiro
marítimo, para fixar as areias, e a zostera, para fixar a lama
submarina. Em meio aos seres viventes, podem regular e
orientar numerosas seleções artificiais; cultivam plantas e
domesticam animais. O conjunto de todos esses fatos de que
participa a atividade humana é um grupo verdadeiramente
especial de fenômenos superficiais: ao estudo dessa categoria de
fenômenos geográficos, damos o nome de Geografia Humana
(BRUNHES, 1956, p. 27).
Todo o tipo de atividade produzida pelo homem passava a ser explicada
como um fenômeno humano, artificial, ou seja, criado por ele e não mais
atribuído ao natural. Transformações espaciais a partir da força econômica,
tecnologia desenvolvida pelas grandes civilizações, o homem tornava-se agora
capaz de alterar a paisagem numa velocidade nunca vista antes, e isto o autor
conceituou e passou a chamar de força destrutiva. A Geografia Humana, obra
deixado por Brunhes (1869-1930), é um legado para os estudiosos e, neste
trabalho, a sua contribuição sobre as atividades humanas é relevante. O seu
esforço levou a uma geografia cujo poder de explicação saiu da esfera da natureza
para a esfera econômica, política, e social.
A partir dessa perspectiva, as mudanças ocorridas no espaço não eram
mais obra apenas da natureza, um agente modelador e transformador. Agora, o
poder de transformar, e de destruir e reconstruir vinha das técnicas e da
inteligência humana capazes de produzir espaço exclusivamente artificial, como
era o caso das cidades que acompanhavam o fenômeno urbanização. Artificial,
40
para Brunhes (1956), era tudo aquilo que o homem fazia e que a natureza era
incapaz de fazer.
O foco sai da natureza e volta-se para o homem. O poder de explicação
que ele busca não está no Físico, no natural, mas, no humano, no artificial, ou
seja, naquilo que o homem faz no e com o espaço, de homem para homem e com
os homens.
Neste trabalho, notamos que o autor se preocupava em fundamentar a
Geografia Humana metodologicamente. Procurava dialogar com os geógrafos, os
seus contemporâneos, para sistematizar e classificar o campo que ele entendia ser
da Geografia Humana, tomou o cuidado de organizar os fatos da Geografia
Humana, o que ele chamou de Geografia das necessidades vitais básicas, comer,
dormir, vestir-se, e classificou mais duas categorias, a Geografia Política e a
Geografia da História. Então, nesse sentido inaugurou uma geografia do homem e
não da natureza. Seguindo essa perspectiva, organizou a Geografia Humana por
fatos essenciais, ou seja, explicava a ocupação improdutiva do solo com base nos
fatores humanos; tratava de descrever formas e tipos de ocupação humana
distribuídas na paisagem, como casas, aldeias, ruas, estradas, cidades,
fortificações e etc.
Um segundo grupo de fatos por ele classificado, diz respeito à descrição da
conquista do homem sobre o mundo vegetal, animal e cultural. Neste grupo,
numa escala global sobre os elementos naturais, o autor estabeleceu um paralelo
da força destrutiva entre os povos civilizados e os povos selvagens. Ele dizia que
a devastação do quadro natural feito pelos povos civilizados era quase
irrecuperável, enquanto a destruição feita pelos povos selvagens era passível de
recuperação. Mas essa comparação não era a mais importante, no sentido da força
destrutiva. O poder maior da ocupação destrutiva ficava com as exportações de
recursos naturais conquistados dos selvagens pelos civilizados. Sobre isto, o autor
vai além da função de descrever os fluxos e o seu impacto destrutivo. Nota-se que,
ao referir-se às modalidades de ocupação, ao falar dos povos “primitivos”
africanos explorados pelos civilizados, é passível de observação um senso de
justiça em seus argumentos sobre a forma com que eram tratados os “selvagens”:
Uma das formas mais repugnantes da devastação entre os
homens é o tráfico de negros. Em seus inícios, a colonização
europeia desenvolveu a escravatura, transplantando infelizes
negros de um continente para outro. A colonização muito
41
frequentemente prejudicou os selvagens, seja pela destruição de
seus recursos alimentares, seja pela introdução de verdadeiros
venenos, como a aguardente. A degenerescência dos povos não-
civilizados quando postos em contato com a nossa civilização é
um fato universalmente constatado (BRUNHES, 1956, p. 299).
Nota-se que a ocupação colonial europeia foi um processo histórico
destrutivo tanto dos recursos naturais e da sua economia de subsistência, quanto
da qualidade e do equilíbrio social dos povos que sofreram a descentração do seu
espaço ao serem transplantados e escravizados para as colônias europeias. O
significado do conceito de destrutivo para o autor seria ocorrência, alterações
permanentes nas propriedades física, química e psíquica de quem está sob a força
destrutiva. Neste sentido, o não civilizado, em contato com o civilizado, passava
por um processo de degenerescência palavra derivada do latim, que no francês
significava “perder suas qualidades próprias ou ancestrais”, ou seja, a ocupação
europeia, o projeto colonial, a partir do século XVI, fez com que os povos
conquistados sofressem um processo destrutivo do seu modo de organização e de
sua visão de espaço de mundo.
Numa breve retomada dessa seção, vimos que geografia tradicional como
Ciência Moderna nasceu da Física, e, por isso, a chamada Geografia Física, cujo
método teve como base as ciências naturais e as ciências biológicas. Como uma
ciência, ela se preocupa com a explicação dos fenômenos da Terra e da natureza,
como o clima e o relevo; esses seriam agentes determinantes do espaço geográfico
e o homem estaria sob o seu domínio. Todavia, o homem soube buscar outra
perspectiva, o oposto disto. Como um sujeito ativo, passou a associar a relação
existente entre homem – natureza – espaço, que ganhou força de explicação social
sobre a explicação dos fenômenos da Terra. Do ponto de vista social, e com a
Revolução Industrial e o avanço das tecnologias, as paisagens foram modificadas
e a natureza sofreu profundas alterações com o processo de artificialização.
Graças à inteligência do homem, e suas ações, ele buscou explicar as mudanças do
espaço geográfico e, ao mesmo tempo, foi se desvencilhando do determinismo
geográfico e biológico, como pode ser visto nos pioneiros da Geografia Humana
que refletiram sobre outras perspectivas menos deterministas:
“Antropogeografia”, Ratzel (1990); “Princípios de Geografia Humana”, La
Blache (1921); e “Geografia Humana”, Brunhes (1956).
42
O importante foi que a geografia tradicional, dentro do seu tempo e
espaço, mesmo que tenha assumido o papel de inventariar a natureza e as
atividades humanas sobre a Terra e apesar do seu discurso parecer muitas vezes
esvaziado de uma crítica social, permitiu que o mundo fosse visto da perspectiva
europeia, e, como tal, descreveu, classificou e hierarquizou as coisas no espaço de
acordo com o conceito raça e de civilização. Essa ideia, ainda hoje, pode ser
sentida pelo status que ocupava a Geografia Física. Durante muitos séculos, essa
Geografia foi hegemônica, e seus fundamentos conduziram raça e meio no debate
geográfico, e o homem era o produto desse, e, numa escala global de evolução, ele
estaria distribuído pela terra, de acordo com sua história natural, em selvagens e
civilizados e seria o modo de vida e a força destrutiva jeitos diferentes de explicar
esse espaço. No ensino de Geografia, por muito tempo, homem e natureza foram
paradigmas determinantes. No Brasil não foi diferente. Embora sejamos o
resultado das diferenças, para esse paradigma, no que tange ao africano, éramos
uma mistura de raças inferiores. Nos livros didáticos de Geografia, durante
décadas do século XX foi essa a ideia que persistiu, como será vista na subseção
seguinte.
2.1.1 O negro e a raça: Delgado de Carvalho e Aroldo de Azevedo
O livro didático no Brasil tem história. O seu uso e consumo vem desde a
Colônia, no século XVII, diz Schäffer (2001, p. 134). Contudo, a sua difusão
nacional ocorreu a partir das bruscas e profundas mudanças feitas pelo Estado
Novo, em 1934, com a criação do Ministério da Educação e Saúde (MES) que
tinha como fim atender as demandas sociais que o país exigia, a de elevar a
qualidade da educação e da saúde. Mas foi na mesma década, que três anos mais
tarde, foi criado o Instituto Nacional do Livro (INL) e, desde então, políticas e
programas passaram a existir, o que contribuiu na otimização do livro didático.
No ensino de Geografia, temos dois autores pioneiros na produção de
livros didáticos: Delgado de Carvalho (1884-1980) e Aroldo de Azevedo (1910-
1974). Seus trabalhos são imensuráveis para o ensino de Geografia e, ainda hoje,
são referências no país. Muito dos conteúdos e conceitos criados por eles estão
presentes no currículo e em programas do ensino de Geografia. Podemos afirmar
43
que esses autores, no campo do ensino, escreveram o pensamento geográfico
brasileiro. Eles produziram sínteses do quadro natural e social do país que vai do
Brasil Colônia ao Brasil atual. Mas, ao nos voltar sobre os seus livros didáticos
editados entre os anos 30 e 70, o nosso interesse tem como fim reproduzir os seus
discursos sobre raça e negro, e analisar em que medida eles foram influenciados
pelos paradigmas da geografia tradicional.
Definimos aqui homem e natureza como categorias analíticas da geografia
tradicional. Sabe-se que o segundo determinava geograficamente o primeiro.
Sabe-se também que o homem estava sujeito aos imperativos do meio, ou seja, do
clima, do relevo, da vegetação e das águas. Para tal investigação dos discursos nos
livros didáticos, fomos até a uma edição didática de Delgado de Carvalho da
década de 40, em que ele reduz a quatro classes principais as influências da
natureza sobre o homem, sendo a primeira de ordem climática, visto que, para ele,
o clima de fato era determinante sobre o homem, de modo que a influência seria
tão profunda, que implicava mudanças no seu desenvolvimento físico, nas suas
características biológicas e no seu desenvolvimento moral, como ele afirma:
Os efeitos físicos diretos do meio que se exercem sobre a
vegetação, os animais e o homem. Nesta categoria entram o
clima, que age diretamente sobre o homem como estimulante e
como deprimente, que determina a sua cor e a sua estatura e por
meio do ambiente determina os seus meios de vida. A altitude,
acarretando modificação do clima, também é fator importante.
A pigmentação, por exemplo, depende do clima e da vegetação:
os botocudos que vivem nas matas do alto São Francisco são
mais claros do que os Caiapós que vivem nos campos abertos
(CARVALHO, 1949, p. 232).
A segunda defesa do autor consistia em dizer que o determinismo
geográfico influenciava a tal grau que as religiões, as leis e as línguas são de
ordem natural, e estavam sujeitas também aos imperativos da natureza. Para ele:
Os efeitos psíquicos têm no meio o seu principal fator. As
religiões, os códigos de moral, e as línguas têm estreitas
relações com o ambiente geográfico. A língua dos Herreros e
dos Samoyedas é extraordinariamente rica em descrição de
cores de animais (Idem, 1949, p. 232).
Seria o princípio de causa e efeito produzido pelo meio. Toda criação
humana por ele citada estaria submissa às causas naturais, toda e qualquer
diferença humana tinha influência do meio geográfico. Nesta mesma perspectiva,
os fatores econômicos estariam determinados pelo meio geográfico:
44
Os efeitos econômico-sociais determinam o tamanho e a
importância dos grupos humanos, a organização da propriedade
e as relações de família. A fertilidade e a superfície de um
distrito determinam o número máximo de habitantes que pode
assumir. Os efeitos puramente topográficos são os que mais
facilmente saltam aos olhos do observador. A montanha
inacessível e o deserto constituem obstáculos às relações entre
os grupos; e os vales, os rios, as planícies, como também os
oceanos, são meios de comunicações (Ibidem, 1949, p. 232).
Nota-se que esta seria uma concepção baseada nas raízes da teoria
malthusiana, em que o meio natural é determinante da produção, e o tipo de solo,
e do tamanho da propriedade e principalmente do controle da natalidade, de forma
que a produção agrícola devia ser maior do que o número de habitante, por que,
do contrário, haveria escassez e fome.
Nesta concepção naturalista argumentada pelo autor, ele concluiu ser mais
fácil observar as forças naturais como elementos determinantes sobre o homem,
pois essas estariam presentes na forma e na distribuição natural do relevo.
Observa-se, no argumento apresentado, que o autor tinha como base os
paradigmas da geografia tradicional e tinha como defesa a tese de que os efeitos
físicos, psíquicos, econômico-sociais e o topográfico são determinantes sobre o
ambiente geográfico quando se tem a ocupação humana das grandes regiões.
Todavia, 14 anos depois, numa publicação específica sobre o Continente
Africano, o mesmo autor traz uma abordagem, em que ele foge do determinismo
geográfico. Embora para ele os fatores naturais fossem importantes no modo de
vida daqueles povos, visto que influenciavam diretamente na economia, não
seriam determinantes. Segundo ele:
Os gêneros de vida muito dependem dos meios geográficos em
que se desenvolvem e distribuem; na África, talvez mais do que
em qualquer outra parte do mundo, a vida econômica se acha na
dependência estreita das zonas de vegetação e fauna. Embora de
grande importância, as condições de clima e topografia são de
menor influência direta nos sistemas econômicos
(CARVALHO, 1963, p. 26).
Naquele mesmo ano, o autor lançou “Geografia humana, política e
econômica”, em que, definitivamente, deixou para trás o uso do conceito natural
de raça. Sob a defesa de que com a mistura dos povos havia deixado de existir
raça pura, ele passou a se apoiar no conceito culturalista para explicar raça, como
ele mesmo diz:
45
Os antropólogos substituíram o termo raça pelo de etnia.
Atualmente é mais prudente ainda, para uma classificação
geral, reunir a população da Terra em povos, não se levando
em conta os caracteres físicos como forma predominante.
Define-se então povo como um conjunto de indivíduos que
falam geralmente a mesma língua, possuem costumes
semelhantes, transmitidos de pai para filho, e uma história
comum (CARVALHO & CASTRO, 1967, p. 28).
Sobre o autor, concluímos que, no início, a respeito do africano e da raça,
o seu pensamento tinha como base o paradigma naturalista da geografia
tradicional, ou seja, ia ao encontro dos princípios do determinismo geográfico.
Entretanto, mudou, mais tarde, o seu posicionamento para o paradigma
culturalista baseado na defesa de etnia e povo.
O segundo autor de livros didáticos de Geografia analisado foi Aroldo de
Azevedo (1910-1974). Buscou-se saber a respeito do seu pensamento, de como
que ele reconhecia o africano no que tange ao conceito de raça e se esse era
classificado pelo paradigma natural ou pelo paradigma de cultura e como isso
aparecia no seu discurso. Dos seus livros didáticos, foram analisadas duas
publicações da década de 40 e, numa delas, o autor refletia sobre a desimportância
da cultura do povo africano. Sobre a reflexão, ele conclui o seguinte: “nada temos
a dizer sobre o assunto, porque a população africana, constituída como se viu, não
pode oferecer nenhuma manifestação cultural digna de nota” (AZEVEDO, 1943,
p. 428). Isto levava a crer que este autor falava a partir do paradigma naturalista e
que, para ele, só teria cultura o povo que fosse civilizado, para ele, tudo indica, os
africanos seriam, de fato, povos inexpressivos por não serem civilizados. Isto ele
deixava claro ao apresentar os fundamentos tradicionais das razões por que o
negro para aqui foi trazido:
As necessidades da agricultura (cana, café) e da extração de
minerais exigiram, porém, braços mais habituados aos climas
quentes de nosso continente: foram trazidos, então, da África,
alguns milhões de negros, que passaram a trabalhar como
escravos no Brasil e nas Guianas, principalmente
(AZEVEDO, 1943, p.120).
Para ele, a razão pela qual justificou-se traficar negros do continente
africano para o Brasil estaria no fator natural, ou seja, no determinismo
geográfico, na capacidade que o negro teria de se adaptar ao clima tropical, visto
que o lugar de onde ele veio era semelhante ao daqui. Ou seja, segundo as teorias
deterministas, o que importava era a capacidade de adaptação ao clima e a
46
sujeição à moral do civilizado. Dentro desta ótica da evolução natural, o autor
explicava o que era ser civilizado:
Entre os povos civilizados é que as atividades culturais
alcançaram suas mais altas e admiráveis manifestações. Na
grande maioria dos aspectos, procura-se atingir à perfeição. [...]
Cultuam-se as tradições, animam-se as festas populares e vela-
se pela existência do “folk-lore”. [...] Nos gabinetes de estudo e
nos laboratórios, os homens de ciência entregaram-se às
pesquisas e fazem descobertas importantíssimas. As associações
esportivas, etc., procuram aprimorar os conhecimentos e
aperfeiçoar a raça (Idem, 1958, p. 26).
Para o autor, civilização, raça e ciência eram três coisas que caminhavam
juntas. Um povo se definia segundo a hierarquia natural de raça que podia variar
de selvagem até o seu mais alto grau de aperfeiçoamento, o de civilizado. E a
ciência ocuparia importante papel com a sua contribuição ao aperfeiçoamento da
raça, ou seja, de subsidiar as políticas eugenistas de acordo com os interesses da
ordem social. Nesse sentido, no presente recorte do seu texto, o que chama a
atenção é o ano da edição da publicação do livro didático de Geografia, 1958 - o
que leva a concluir que o pensamento racialista e eugenista ainda era dominante
nos discursos do currículo de Geografia nas escolas do Brasil.
Num outro momento, 1969, o autor lançou uma obra didática para o ensino
médio, em que, na explicação da 6ª edição, ele dizia não ter grandes pretensões
com aquele trabalho, mas que esperava que o mesmo fosse apenas útil para os
estudantes. De fato, foi um trabalho que representou uma quebra de paradigma no
que diz respeito à concepção epistemológica de homem e meio. Neste trabalho,
Azevedo (1976) apresentou uma geografia do Brasil, baseada em uma perspectiva
calcada num paradigma economicista crítico e, juntamente a isso, propôs uma
discussão culturalista a respeito da população brasileira. Neste trabalho, ao
abordar e explicar sobre população, utilizou a geo-história para explicar como foi
formado o território brasileiro desde o século XVI até o século XX. O inédito
deste trabalho foi o conceito de mestiçagem trazido de Freyre (1933). O autor
dizia ser o Brasil um país multirracial mestiço graças ao encontro das três raças,
europeia, africana e indígena que faziam essa diferença na formação do povo
brasileiro, como ele explica:
A exemplo do que acontece em outros países de formação
recente, a população brasileira ainda não se cristalizou sob o
ponto de vista antropológico. Possuímos um verdadeiro
amálgama de tipos étnicos, que se diversificam pela coloração
47
da pele e por outros caracteres físicos: europoides, negroides e
mongoloides aqui se acham representados e, de longa data,
vêm-se caldeando através de uma complexa mestiçagem. Nosso
cadinho ou melting-pot étnico encontra-se em plena ebulição
(Ibidem, 1976, p. 114).
Portanto, sobre o seu pensamento e sobre as suas publicações feitas
anteriormente, parece, agora, que o autor buscava mostrar uma outra visão acerca
do conceito de raça e também acerca da importância do negro para a civilização
brasileira. Na geografia tradicional, o paradigma dominante era homem e
natureza e o primeiro estaria sujeitado ao segundo, de acordo com o determinismo
geográfico. Sendo assim, na escala das raças, o negro estaria entre as raças
inferiores e seria um empecilho para o progresso e para o desenvolvimento da
civilização brasileira. Neste sentido, o negro só servia para o trabalho. No mais,
seria um obstáculo social. Esta foi a ideia defendida nos argumentos anteriores
desse autor. Todavia, vimos que ele mudou de ponto de vista a respeito do
determinismo geográfico ao utilizar da perspectiva da antropologia culturalista, ao
se apoiar na ideia da mestiçagem, que tinha sua base em Freyre (1933).
Tanto Carvalho (1935; 1949; 1963; 1967) quanto Azevedo (1943; 1958;
1959; 1976) durante muito tempo acreditaram e defenderam o determinismo
geográfico e biológico, em que na relação homem e natureza, a raça seria um fator
determinante na forma da organização do espaço. Nesse sentido, ambos
acreditavam que a raça africana seria inferior à europeia, e, portanto, um fator
negativo na formação do povo brasileiro. Na verdade, até então, os dois tiveram
seus discursos orientados pelo determinismo geográfico; entretanto, a partir da
década de 60, mudaram de paradigma abandonaram o método determinista
naturalista para o uso do método culturalista inspirado em Freyre (1933) para
explicar a formação do povo brasileiro.
Diferente do cenário apresentado pela geografia tradicional e o seu
ensino, cujo poder de explicação estaria no meio - evolucionista, racialista e
civilizador -, no final dos anos 70, o ensino de geografia abriu-se efetivamente
para um novo panorama político, pedagógico e epistemológico e que, certamente,
abalava a tradição e a forma de interpretar o espaço e de como ensinar sobre a
desigualdade entre negros e brancos - tema dos programas e currículo dos livros
didáticos de Geografia da educação básica.
48
Começava a nascer e a se firmar um novo paradigma - o paradigma da
geografia crítica. Este, como tal, não se limitava apenas a descrever as coisas do
espaço, mas buscava explicar as contradições econômicas e sociais das coisas do
espaço. Acreditava que a desigualdade social era resultado do modo de produção
capitalista e que, por meio das suas técnicas e da apropriação da força de trabalho,
que gerava a mais valia, tudo podia confluir para produzir a desigualdade entre as
classes sociais. O espaço estava determinado pela produção econômica e sob o
controle do dono do modo de produção, de maneira que tudo isso podia explicar o
porquê dos espaços desiguais. Nesse sentido, seguindo esse paradigma, a próxima
seção tem como objetivo evidenciar os argumentos do ensino da geografia crítica,
através das reflexões dos autores que se dedicaram a explicar a desigualdade
social do espaço e, ao mesmo tempo, propor a sua transformação.
2.2 A Geografia Crítica e a transformação social pelo ensino
Para onde vai o ensino de Geografia? Esse é o título do livro organizado
por Oliveira, já na sua 5ª edição (1994), sendo que na primeira, foi em 1989 já
havia reunido um conjunto de temas que abordavam a crise da Geografia, da
escola e da sociedade. Os autores propunham um discurso engajado e, ao mesmo
tempo, comprometido com o ensino. Invocavam outras epistemologias,
propunham novas metodologias a partir de outros enfoques para o ensino da
Geografia. A ideia era de que dentro da escola o conteúdo não fosse abordado de
forma estanque, isolado da sociedade, mas que as questões econômicas, políticas e
sociais refletissem no ensino-aprendizagem do aluno e, que ele desenvolvesse um
olhar crítico, propositivo e que, concomitantemente, fosse construtivo, que levasse
à transformação social.
Todavia, com o ensino de Geografia em perspectiva, o desafio era fazer
com que os novos discursos alcançassem o professor na sala de aula, que muitas
vezes fazia uma jornada tripla de trabalho em escolas distantes o que tornava
quase impossível participar da formação continuada oferecida pelas secretarias de
educação. E mais, havia um segundo agravante - geralmente a licenciatura era de
curta duração.
49
Nos anos 80 e 90, a habilitação do professor de Geografia em todo o
território nacional, na sua maioria, estava com as faculdades privadas, isoladas e
sem pesquisa, e o curso de licenciatura era de curta duração. À época, a oferta
dessa modalidade foi com base na “Reforma do Ensino” da Lei 5692/71, visto que
o número de matrículas para o primeiro e segundo graus crescera em todo o país,
o que fez aumentar a demanda por professores habilitados para o ensino da
Geografia. A lei passou a permitir a licenciatura de curta duração, todavia, ainda
que precária, a ideia era formar um professor polivalente e que atendesse as
demandas do núcleo de Estudos Sociais.
Como política de educação, a licenciatura de curta duração em Estudos
Sociais atendia a urgência que o governo tinha para resolver a carência de
professor habilitado, todavia, por outro lado, para a Geografia, como ciência e
como área do ensino, esta política contribuiu para a perda de status da disciplina,
com também incentivou a formação de profissionais “genéricos” na geografia do
primeiro e segundo graus.
Além disso, os Estudos Sociais, que praticamente ignoravam as
áreas de conhecimentos específicos em favor de saberes
puramente escolares, contribuíram para um afastamento entre as
universidades e as escolas de primeiro e segundo graus. Isso
prejudicou o diálogo entre pesquisa acadêmica e o saber
escolar, bem como atrasou as necessárias introduções de
reformulações do conhecimento histórico e das ciências
pedagógicas no âmbito escolar (BRASIL, 1997, p. 23).
Contudo, nas décadas seguintes, o quadro da educação nacional foi
marcado com o fim da ditadura militar pressionada pela redemocratização, o que
abriu novos caminhos, sobretudo para o campo das políticas educacionais.
Mudanças profundas aconteceram como a nova LDB 9394/96, a criação do
Fundef - a universalização e a garantia do ensino fundamental, a criação dos
Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs, ou seja, numa sumária conclusão, foi
um conjunto de políticas que conseguiu avançar na medida em que foram sendo
implementadas. Foi por exemplo, o caso da licenciatura de curta duração. Com a
LDB 9394/96, tornou-se obrigatória para o exercício da licenciatura a formação
Plena e não Curta, como era até então. Assim passou a exigir a lei:
Art. 62. A formação de docentes para atuar na educação básica
far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de
graduação plena, em universidades e institutos superiores de
educação [...] (BRASIL, 1996).
50
Para tanto, estabeleceu prazos e diretrizes para que o ensino superior
fizesse as mudanças e as devidas alterações acerca da entrada do egresso na
licenciatura. Como meta, o Plano Nacional de Educação – PNE colocou como
exigência que: “no prazo de dez anos, todos os professores com apenas a titulação
de ensino médio possuíssem a formação específica de nível superior, obtida em
curso de licenciatura plena nas áreas de conhecimento em que atuam” (BRASIL,
2001). Certamente, a exigência da Licenciatura Plena trouxe de volta o prestígio
da Geografia como uma das áreas da educação.
Dando prosseguimento à abordagem do paradigma da geografia crítica, o
sentido de sua emergência se deu com a crise da geografia tradicional, cujo
modelo refletia o esgotamento na crença de um ensino baseado em métodos
mnemônicos que valorizavam a repetição e a descrição dos conceitos, cujo fim era
a memorização em detrimento do uso do conteúdo da disciplina aplicado pelo
aluno na sua vida social:
Uma disciplina maçante, mas antes de tudo simplória, pois,
como qualquer um sabe, “em geografia nada há para entender,
mas é preciso ter memória...” De qualquer forma, após alguns
anos, os alunos não querem mais ouvir falar dessas aulas que
enumeram, para cada região ou para cada país, relevo – clima –
vegetação – população – agricultura – cidades (LACOSTE,
1988, p. 21).
Diante desse quadro, a geografia crítica se propunha ir além. Para ela
implicava introduzir mudanças a partir de novas epistemologias e novas formas de
ensinar. Ou seja, cabia naquele momento, repensar o sentido do ensino de
Geografia. Não valia mais o hábito da reprodução, cujo conteúdo fosse esvaziado
de metodologias críticas. Todavia, para que essa mudança ocorresse, seria
necessário apontar as contradições sociais e econômicas tão necessárias e
responsáveis pela dinâmica do espaço. Nesse sentido, enquanto a geografia
tradicional se ocupava em descrever o espaço com os seus quadros naturais, a
geografia crítica se preocupava em dizer e em explicar o porquê da desigualdade
social do espaço geográfico. Por lados opostos, enquanto abordagem, a primeira
descrevia o espaço e a segunda explicava as suas contradições.
Epistemologicamente, a “Nova Geografia” teve como inspiração os
postulados do paradigma marxista e, como tal, considerava a dinâmica social do
espaço geográfico e não contrário como era posto pelo paradigma tradicional do
51
homem e o meio, em que o segundo determinava as coisas do espaço sobre o
primeiro. Para o paradigma crítico, a escola devia ser comprometida com a
transformação do sujeito social. À época, o então debate colocado pela geografia
crítica tinha como escopo o materialismo histórico-dialético diferente do da
geografia tradicional dominante, descritiva, acrítica e positivista (OLIVEIRA,
1994, p.27).
A geografia crítica priorizou a aprendizagem do conteúdo e as suas
implicações pedagógicas para o professor e para a escola. A sua preocupação
estava em repensar a escola a partir da realidade social do aluno. Nesse
paradigma, o aluno não era visto como alguém apenas para aprender a reproduzir
conteúdos - ao contrário, o aluno tinha como fim aprender a refletir e a
transformar a sua realidade. Diz Foucher (1989, p. 15) que o foco devia agora se
voltar não para o espaço em si, na sua descrição como coisa, mas voltar-se para o
aluno, para a sua cultura, ou seja, para a forma com que ele se relacionava com o
espaço. O mais importante seria o homem e a sua construção social do espaço. Os
temas emergentes, como sociedade, escola e o ensino, foram exaustivamente
debatidos à luz da crise que a Geografia atravessava, assim como foi debatida a
metodologia do ensino da Geografia acerca dos temas pertinentes à organização
do espaço econômico, político e social.
A ordem bipolar, a rivalidade política e militar entre russos e americanos, a
chamada “guerra fria”, foi um dos conteúdos recorrentes abordados por Vesentini
e Vlach (1994) nos livros didáticos do ensino fundamental e médio. A ordem
bipolar teve origem no pós-guerra, em que as forças antagônicas derivavam de
dois sistemas sociais e econômicos: o capitalismo e o socialismo e ambos
mantinham acordos comerciais e militares estratégicos como forma de controle
dos espaços mundiais. A lógica era cada bloco manter o equilíbrio da política
externa; todavia, no interior de cada um, o descontentamento só fazia aumentar a
tensão: de um lado, a crise no Leste Europeu, em que se exigia a abertura política
e, do outro, o aumento da desigualdade entre ricos e pobres nos países do Norte.
Tudo isso, no final dos anos 80, empurrou o mundo para o aumento de incertezas
enquanto via crescer os conflitos étnicos, as lutas separatistas. Com a queda do
Muro de Berlim e com o desmoronamento da União Soviética, pôs-se o fim à
crença das metanarrativas e nas grandes ideologias do século XX.
52
Nesta perspectiva, o conteúdo do livro didático era explicado com base na
geopolítica mundial, baseado na história política e econômica produzida pelo
homem sobre o espaço. A desigualdade social não seria o resultado de uma
natureza dominadora, como era visto na perspectiva determinista do homem e o
meio. Longe disso, na perspectiva crítica, a desigualdade seria resultado daquilo
que o homem é capaz de fazer a partir dos determinantes políticos e econômicos,
que, no caso desses tópicos aqui descritos, buscava explicar os sistemas
econômicos - o capitalismo e o socialismo. Neste sentido, a natureza seria uma
construção social, fruto das relações do homem para com ela. Portanto, a
desigualdade social per si seria o resultado das forças econômicas, políticas e
culturais pelas quais o homem se apropria do espaço geográfico.
A metodologia do ensino da geografia crítica vai se ocupar em analisar e
em compreender a dinâmica do espaço a partir do determinismo econômico e da
sua relação com a natureza socializada pelo homem, o agente modelador e
transformador do meio. Com base nesta ideia, o saber do aluno ganhava relevo,
visto que ele é também um agente transformador do espaço. Portanto, na escola,
cabia ao professor despertar o senso crítico e orientar o aluno para reconhecer o
meio e as suas contradições sobre aquilo que é construído, como desigualdade
social, fome, racismo e outras contradições do espaço.
Com base neste paradigma, Resende (1989), num trabalho inédito feito
com os seus alunos de 5ª a 8ª série do curso noturno, de classes populares, coletou
um total de 160 relatos, dos quais, foram selecionados 24 para interpretação do
que eles pensavam a respeito do seu espaço social. Disse a autora que se propôs a
conhecer o ponto de vista de cada aluno, o olhar com que cada um via o mundo
como aluno-trabalhador e, para isso, ela considerou como ponto de partida a
realidade de trabalhador e o lugar de onde cada um falava. Dos depoimentos
coletados, ela buscou traduzir o olhar “real”. Sobre o aluno, para ela:
Ele constrói permanentemente um saber sobre o espaço, que,
longe de fragmentá-lo e atomizá-lo como atitude intelectiva,
responde sempre ao seu caráter social, objetivo, de um todo
integrado, presidido por um determinado modo de produção,
em decorrência do qual o espaço é organizado desta e não
daquela maneira (RESENDE, 1989, p. 115).
O espaço geográfico seria visto do seu lugar, considerando a sua classe, a
sua consciência social, o seu trabalho, e outros fatores. Segundo a autora, ouvir o
53
aluno contar sobre o seu espaço vivido permitia a ele falar de sua luta, de seus
desafios sociais como aluno-trabalhador.
Numa outra interpretação recente do espaço como construção social,
Damiani (2011) incorporou o cotidiano como categoria de análise, e afirmou ser
necessário considerar a experiência pessoal de cada sujeito sobre o cotidiano. Para
ela, a ênfase agora estaria nas ações sociais dos indivíduos ao interpretar o espaço.
Ela aponta:
O social não pode permanecer, em termos de análise, submerso
ao econômico e ao político. Não há uma condição intrínseca
entre essas esferas do real humano; imbricadas, relacionadas,
ainda sobram fissuras, interstícios a examinar (DAMIANI,
2010, p. 162).
Portanto, por maior que seja a influência dos fatores econômicos e
políticos sobre o social, eles não são suficientes para congelar o cotidiano porque
tudo muda o tempo todo. As relações sociais estão sujeitas ao fugidio, ao
contingente, ao ponto de o cotidiano chegar a ser “insuportável”, diz a autora. Ele
é capaz de influenciar e de levar a mudanças no campo da cultura, das técnicas e
na organização política do Estado. Com base nesta categoria de cotidiano, ouso
dizer que uma das causas da crise da geografia tradicional nos anos 80 foi
manutenção a visão fixa, presa à explicação descritiva, calcada no determinismo
econômico e natural do espaço-mundo e, sobretudo, esvaziada de métodos críticos
para o ensino de Geografia. Tornou-se insustentável explicar a dinâmica social do
espaço sem considerar o cotidiano como uma categoria de análise crítica.
Contra isso, a geografia crítica e seus paradigmas apontavam o Estado
Moderno, fruto do projeto burguês e do capitalismo, como causa da desigualdade
social na sociedade contemporânea. Seria a burguesia a mantenedora da ordem
social e a escola a detentora do discurso dominante, a reprodutora do status quo.
No Ancien Regime, o reconhecimento social (o privilégio), segundo à tradição,
estava no ‘sangue azul’ herdado no nascimento. Era status. Nascer nobre, para
sempre nobre. Ao contrário disto, o projeto burguês sucedeu a tradição, o
privilégio do “bem nascido” foi substituído pelo conhecimento e pelo mérito
escolar do diploma (VESENTINI, 1994). Nesse sentido, a escola passou a
representar o meio de reprodução e da garantia do status quo. Até então, a
educação, o conhecimento era um privilégio da nobreza e, agora, na sociedade de
classes, passava a ser função do Estado oferecer a escola como um direito social.
54
A obtenção do diploma era um título, com ele estava agregado o capital
simbólico: o mérito e o privilégio.
O título profissional ou escolar é uma espécie de regra jurídica
de percepção social, um ser-percebido que é garantido como um
direito. É um capital simbólico institucionalizado, legal (e não
apenas legítimo). Cada vez mais indissociável do título escolar,
visto que o sistema escolar tende cada vez mais a representar a
última e única garantia de todos os títulos profissionais, ele tem
em si mesmo um valor e, se bem que se trate de um nome
comum, funciona à maneira de um grande nome (nome de
grande família ou nome próprio), conferindo todas as espécies
de ganhos simbólicos (e dos bens que não é possível adquirir
diretamente com a moeda). (BOURDIEU, 2011, p. 148-149).
De fato, no Estado moderno, a escola é vista como a extensão dos
interesses da burguesia, a cultura dominante tem como fim reproduzir os seus
interesses. Além disso, na intenção do projeto, a escola é um fim em si mesma e
deve atender a dois caminhos: um, em que os homens “aptos” através dela são
preparados para o poder, são preparados para comandar; o outro, o que atende à
formação de baixo status social, àqueles que vão ocupar a função de menor
prestígio social, ou seja, os homens que serão comandados por aqueles que
ocupam o poder. Nesta divisão dualista, o diploma seria um indicador sine qua
non, o capital cultural da sociedade meritocrática, o mecanismo propulsor do
poder e de ascensão social, como bem diz esse autor.
Nessa perspectiva reprodutivista, a função de instituições sob o controle do
Estado, como no caso da escola - a elite intelectual, seria reproduzir o discurso
eleito. O melhor, o selecionado, seria aquele que vai ao encontro dos interesses
dos grupos hegemônicos. O controle e a reprodução devem também se estender
sobre outras instituições, como o serviço militar obrigatório, o culto e o amor à
pátria, o uso da língua oficial nacional, a publicação de livro didático impresso na
língua oficial, como também a invenção dos discursos de valorização das
potencialidades dos quadros naturais, da fauna e flora, em forma de conteúdos dos
livros didáticos de Geografia na educação básica, assim como a fabricação dos
heróis nacionais com seus feitos; tudo isso devia ser engessado no currículo.
Baseado nestes valores discursivos, o currículo o conteúdo selecionado e
abordado pelo programa de ensino tinha como fim divulgar uma cultura do
Estado-nação com vistas para a homogeneização das diferenças na consolidação
do Estado nacional, como explica Vlach (1994, p. 42):
55
Na medida em que estava em jogo a imposição da
nacionalidade, seria necessário suprimir as diferenças internas,
isto é, sociais, sem o que não se forjaria a unidade nacional. É
preciso ocultar a divisão social para que se crie uma comunhão
(artificial) entre aqueles que nasceram no mesmo lugar, falam a
mesma língua, têm a mesma tradição.
No caso do Brasil, essa construção artificial teve suas raízes nas
instituições guardiãs da cultura nacional do século XIX. Os museus, institutos, e
as faculdades de Direito e de Medicina nas cidades de São Paulo, Rio, Recife e
Bahia tiveram um importante papel. Sobre os museus, “a palavra de ordem era
salvar o que mais se pudesse, uma vez que imperava a ideia de que essas culturas
se extinguiriam, estando os “vestígios” mais bem preservados nos museus
metropolitanos” (SCHWARCZ, 1993p. 69). Os museus brasileiros, neste século,
tiveram suas pesquisas guiadas, como foi o caso do Museu Nacional, 1876-1926,
com vistas para áreas como a Botânica, a Zoologia, a Geologia, a Antropologia e
à Arqueologia. À época, sob a égide do paradigma naturalista, as pesquisas
refletiam os interesses dessas instituições através dos seus “homens de ciências”,
que, influenciados pela corrente darwinista se sentiam com o compromisso de
pensar a recém-criada Nação, na qual europeus, africanos e indígenas
protagonizavam o “espetáculo das raças” feito pela miscigenação que, como
debate Schwarcz (1993), custou caro à sociedade, sobretudo com a Abolição e o
advento da República, quando muitos desses homens, com base nos paradigmas
científicos raciais, acreditavam estar o país fadado ao fracasso em decorrência da
degeneração social devida à mistura das raças:
Nas diversas instituições a discussão racial assumiu, naquele
momento, um papel central, surgindo teses alternativas embora
contemporâneas. “Da frenologia dos museus etnográficos à
leitura fiel dos germânicos na Escola de Recife, passando pela
análise liberal da escola de Direito paulista ou pela
interpretação “católico-evolucionista” dos institutos, para
chegar ao modelo” eugênicos” das faculdades de medicina, é
possível rever os diferentes trajetos que uma mesma teoria
percorre (SCHWARCZ, 1993, p. 19).
As pesquisas desenvolvidas nestas instituições nortearam as diversas
abordagens desenvolvidas sobre raça e a questão nacional. Todavia, a escolha pelo
tema estaria condicionado ao interesse pessoal de cada pesquisador, porém
ressaltamos que, sobre esse período, não seria demérito algum utilizar o campo
das ciências naturais para pensar as questões sociais do país, visto que estava em
56
voga no século XIX, o paradigma racial. A ciência guiava-se pelos parâmetros
naturalistas e a publicação de trabalhos como o de Darwin e o de Lamarck e de
livros e artigos que passaram a circular dentro das instituições fizeram com que a
pesquisa com base nas teorias raciais fora da Europa crescesse. De acordo com o
gosto pelos temas, essas publicações chegavam ao Brasil através dos
pesquisadores, que ocupavam importantes posições dentro dos Museus, Institutos
e Faculdades de Direito e de Medicina e, por muito tempo, isso foi uma tradição o
e duraria de 1870 a 1930, segundo Schwarcz (1993).
De volta à geografia crítica, de fato, ela resgatou temas da política e do
Estado moderno que tratavam da nação brasileira no seu sentido social e
econômico, como abordados pelos textos: 1. O “Estado Nacional e Capital
Monopolista”, Santos (1994, p. 47-80); 2. O “Ensino de Geografia e a Luta de
Classe”, Vesentini (1992, 24-31); 3. “A Geografia e a Crise Brasileira”, Andrade
(1989 p. 25-34); e as publicações francesas dos expoentes do pensamento crítico,
como: 4. “Crise da Geografia, Crise da Escola”, Brabant (1989, p. 15-23);
5.“Liquidar a Geografia... Liquidar a ideia de Nacional”, Lacoste (1989, p.31-82)
e 6. “Os manuais franceses controlados pelo governo brasileiro”, (1989, 181- 200)
e outros. O paradigma da geografia crítica voltou-se para a reflexão sobre o papel
do Estado a respeito da sua formação como a instituição maior de controle
jurídico, político, econômico e cultural e, nesse sentido, os autores focaram seus
olhares e reflexões para a organização do território nacional que teve com base o
pensamento liberal, com uma elite hegemônica nos setores econômicos, jurídicos
e da cultura. Do outro lado, as minorias sociais, como o caso do negro e da cultura
afro-brasileira, ficaram alijados da construção do Estado-nação. Mesmo assim, a
geografia crítica não se ocupou em refletir sobre a organização do espaço visto
desse processo - sua crítica procurou explicar os espaços desiguais pelo
determinismo econômico, fruto do modo de produção capitalista e sua capacidade
de produzir espaços desiguais, o que tornava inevitável a luta de classes.
Sobre o destaque das temáticas desenvolvidas pela geografia crítica a
respeito da situação social do negro, pouco se abordou acerca do racismo como
um fator de desigualdade. O que de fato prevaleceu como fator de exclusão foi a
distribuição de renda, que, segundo os autores, continuou com a minoria dos mais
ricos.
57
O paradigma da geografia crítica seguiu a premissa de que o modo de
produção seria o principal gerador de desigualdade entre ricos e pobres, entre
explorados e exploradores, ou seja, a lógica da ação social seria que o primeiro
teria acesso a bens e a serviços como produtor, enquanto o segundo receberia o
salário agregado à força do seu trabalho pela produção, o que nem sempre
permitiu uma vida com dignidade, ou, quando permitia, era de baixo status social.
O econômico seria um determinante na explicação da dinâmica do espaço
geográfico, um conceito recorrente usado nos livros didáticos para explicar a
distribuição de renda e o seu impacto social, como aponta Vesentini (2009, p. 50):
Um outro indicador importante da situação econômica de uma
população é a distribuição social da renda. Esse é um indicador
que mostra como está distribuída a renda nacional pela
população, se a renda está muito pouco concentrada. [...] O
Brasil é um país que se destaca negativamente nesse assunto,
pois possui uma renda nacional extremamente concentrada nas
mãos de uma pequena minoria. Nesse quesito, a situação
brasileira é uma das mais concentradas e injustas de todo o
mundo.
No que tange ao desenvolvimento social do país, o paradigma crítico
contribuiu para reforçar a ideia de que a concentração de renda era um hiato entre
ricos e pobres, um marcador de preconceito social. Todavia, sabe-se que tanto o
pensamento liberal, quanto o pensamento de esquerda se retroalimentavam,
durante o século XX, do mito da “democracia racial” e se ancoravam na máxima
de que o preconceito no Brasil seria social, e que, embora houvesse racismo, seria
isto algo pontual, o que tornava dispensável políticas de reparação que
transformassem a estrutura sociocultural do país.
Pelo paradigma da geografia crítica, a ênfase do livro didático de
Geografia estava no econômico e no social, em detrimento da discussão
sociorracial da população negra que vivia um reconhecimento de discriminação e
de desigualdade cultural. Sobre o negro e a cultura afro-brasileira, a orientação
pedagógica do ensino era voltada para a sua importância celebrada na música, na
dança, na culinária, e outras, que os justificava como os elementos de integração
da cultura nacional. Por outro lado e ao mesmo tempo, escamoteavam-se os
estereótipos da cor, da identidade e da autoestima do negro na formação do Estado
nacional. Conclusão: o paradigma crítico tocou no racismo, entretanto, a
desigualdade social foi a sua questão principal e a questão “raça” não foi
contestada com a mesma força.
58
Diferentemente desse pensamento e metodologias, os movimentos sociais
negros, desde os anos 70, vêm articulando estratégias de combate ao racismo. Tais
posicionamentos, postos por eles desde os anos 30, quando da fundação da Frente
Negra Brasileira – FNB, fizeram-nos sair de denunciantes do racismo para
proponentes de projetos de leis acerca de reconhecimento jurídico e político, que
hoje tem chegado por meio de políticas e programas como agenda do Estado
brasileiro. Todavia, estamos convencidos de que só é possível combater o racismo
à medida que a sociedade assumir a sua existência e o reconheça como um
indicador de desigualdade entre negros e brancos, do contrário ficamos presos aos
discursos cristalizados do mito da “democracia racial”, de que o “problema” do
Brasil seria apenas social e não de “raça”. A persistência desta memória de que o
problema é somente social é real, e é uma realidade inegável entre nós. Entretanto,
a questão atual que se põe é como desafiar ou como romper com esse imaginário
que, de certo modo, está institucionalizado nos discursos acadêmicos, na cultura e
no comportamento social. Daí a obrigatoriedade da Lei 10.639/03, que, ao invocar
a História da África e a cultura afro-brasileira no currículo escolar da educação
básica, abriu para outras perspectivas diferentes da do ensino tradicional atual. É
sabido que temas como a “cultura afro-brasileira”, o “negro” e o “racismo” fazem
parte do currículo escolar desde sempre, todavia, o que mudou com a
obrigatoriedade da lei é a perspectiva com base tradicional eurocêntrica com que
eram abordados, para a tendência pós-moderna, tensionada pelos estudos
culturais, pós-coloniais, através do multiculturalismo emancipatório, uma
abordagem discursiva voltada para raça, gênero, religião, identidade, e etc.
O que muda com a lei 10.639/03 não seriam apenas as metodologias de
ensino. Mudam também as fundamentações ontológicas e epistemológicas na
construção e na proposição de novos conhecimentos, já que, certamente, a visão
tradicional e a crítica não seriam suficientes, não dariam conta de responder às
demandas dos espaços fragmentados. A partir dessas certezas, é que este trabalho
busca construir a sua lógica com base no paradigma pós-crítico dentro do campo
do ensino de Geografia, aberto para a discussão de “raça” que opera sob “rasura”
(HALL, 2009) como um marcador de desigualdade e de estereótipo de cultura
entre negros e brancos, porque é isso que invocamos para o currículo e para o
livro didático.
59
2.2.1 O livro didático e os paradigmas dominantes
Todo paradigma é um esquema organizado e usado pelo pesquisador para
interpretar e explicar o que ele vê. O pesquisador é guiado por um conjunto de
crenças que ele acredita ter força de explicação sobre as coisas do mundo que ele
interpreta (DENZIN & LINCOLN, 2006, p. 34). A crise da Geografia foi a crise
de paradigmas, a perda da crença no paradigma naturalista positivista, para a
interpretação do espaço geográfico baseado no paradigma crítico de cunho
marxista, que tinha como premissa maior a crença da emancipação humana. Para
o marxismo, o importante é a ação humana, é a práxis, porque “a natureza tomada
abstratamente, em si, separada do homem, é nada para o homem,” diz Quaini
(1979, p. 45).
A crise da geografia tradicional, para Andrade (1989), traduzia o
momento vivido: era tempo de incerteza, e o que se questionava era a função
social do ensino da Geografia assim como os seus métodos, ou seja, enquanto
ciência a Geografia podia ser mais útil para a sociedade. Acreditava-se também
ser possível com a crise, abrir novos caminhos para um novo fazer. Ele afirma:
Os momentos de crise pelas sociedades, como a brasileira nos
dias de hoje, oferecem a oportunidade para uma reflexão sobre
os valores e as atitudes a serem tomadas diantes dos desafios
que surgem (ANDRADE, 1989, p. 7).
Na verdade, a crise da Geografia refletia não só no seu campo enquanto
ciência, como também a crise era na sociedade brasileira e mundial.
Economicamente, foi tão profunda que os anos 80 foram considerados a década
“perdida” visto que a estagnação econômica não permitiu o crescimento e o
desenvolvimento do país. Entretanto, se na esfera econômica o país estagnou, não
podemos dizer que o mesmo aconteceu na esfera do ensino de Geografia, pelo
contrário, essa foi a década da “virada” do ensino tradicional para o ensino crítico.
A articulação entre o ensino superior e a educação básica foi decisivo a evocação
de novas propostas que emergiram nas secretarias com programas e currículos
voltados para novas abordagens pedagógicas da Geografia. Ao mesmo tempo, não
faltaram os debates e congressos, muitos promovidos pela Associação dos
Geógrafos Brasileiros – AGB, que entendeu ser importante discutir o ensino como
uma área de prioridade da Geografia, e que, para isso, certamente seria primordial
a produção de novos conhecimentos e que os mesmos pudessem chegar até à
60
educação básica. Nesse sentido, entre as muitas contribuições para essa nova
tendência que emergia na área, Vesentini e Vlach (2009) propuseram, para o
ensino fundamental e médio, dois livros didáticos que, como proposta pedagógica,
não esvaziava o conteúdo da Geografia Física do currículo, ao contrário,
integrava-o com a Geografia Humana. Nesta ocasião, essas publicações tiveram
grande aceitação e sua escolha pelos professores permaneceu durante as décadas
seguintes.
Nascia então a “Nova Geografia” - a geografia crítica, que tinha como
crença a luta contra as injustiças sociais e sustentava a premissa de que é possível
a transformação da sociedade através da consciência social, o que levaria à
emancipação humana. Sobre isso, Vesentini (1992, p. 8) colocava as “lutas
sociais, em que se incluem as demandas e formas de organização das mulheres,
minorias étnicas, homossexuais, jovens, educadores críticos, movimentos
ecológicos, etc”, e passava a evocar um ensino de Geografia de domínio histórico-
social, menos estanque e mais próximo da realidade do professor da educação
básica.
Vesentini (1999) pensou princípios metodológicos para o ensino de
Geografia através do livro didático. Acreditava que uma nova proposta de ensino
romperia com a lógica da dominação da geografia tradicional. Nesse sentido, ele
propunha, em síntese, uma geografia crítica e autônoma “com a elaboração de
textos apropriados à realidade social e existencial do aluno como o uso de estudos
participativos do meio, e com debates frequentes sobre temas cruciais”, no
cotidiano da sala de aula. (Idem, 1999, p. 41).
Nesta perspectiva, a reflexão da geografia crítica não se limitava ao
domínio do pensamento, mas se estendia até o cotidiano do professor. Para o
autor, uma geografia comprometida com a justiça social deveria levar em
consideração a situação de trabalho desse profissional que, à época, já revelava a
desvalorização do magistério, às condições precárias de trabalho, a falta de
estrutura da escola, o trabalho sem material pedagógico e segurança. Acreditava
que o livro didático tinha duplos aspectos a serem discutidos: o primeiro seria o
seu valor social, ou seja, um instrumento a serviço da educação e da formação do
aluno e, o segundo, o seu valor de troca, o domínio dos grupos hegemônicos do
mercado editorial. Na verdade, o discurso da geografia crítica para com o livro
didático era engajado e havia um compromisso com a transformação social e,
61
nesse sentido, a crítica contra o sistema capitalista e contra o monopólio legítimo
do Estado fazia-se notório pelo posicionamento ideológico dos autores desse
período, à beira da militância política de esquerda. O paradigma (ou ideologias)
em alta na época era se assumir como de direita ou de esquerda, ou seja, pensar
socialmente seria pensar a partir das forças dominantes do capitalismo liberal, ou
a partir do pensamento crítico propositivo transformador.
Mas, ao mesmo tempo, os anos 80 assistiram ao “fim da história” ao ver
alianças econômicas e grandes ideologias se esvanecer (FUKUYAMA,1992).
Para Anderson (1992, p. 82), este autor “estava bem equipado para isso”, ou seja,
ele foi capaz de traduzir o momento histórico que o mundo vivia a morte das
metanarrativas. Isso foi assistido e celebrado com o fim do socialismo real,
enquanto ao mesmo tempo, do outro lado, zonas híbridas avançavam na incerteza
da fragmentação do espaço e na crise da identidade social que se estendia para
além das fronteiras fixas dos territórios políticos. Como diz Harvey (2003, p. 19):
Estamos agora no processo de despertar do pesadelo da
modernidade, com sua razão manipuladora e seu fetiche da
totalidade, para o pluralismo retornado do pós-moderno, essa
gama heterogênea de estilos de vida e jogos de linguagem que
renunciou ao impulso nostálgico de totalizar e legitimar a si
mesmo.
Na verdade, essa sensação de incerteza pelo fim na crença da
transformação social pelas metanarrativas ocidental, desse idealismo sobre o
passado tem suas raízes históricas assentadas no sujeito do Iluminismo, do homem
- masculino, de “um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das
capacidades de razão, de consciência e de ação” (HALL ,2006, p.10). Ao
contrário disso, o sujeito pós-moderno tem o potencial de fragmentar e de
desconstruir, ou até mesmo de reduzir o espaço/tempo e que hoje, com o aumento
da informação, e numa velocidade sem precedente, é possível observar que o
desafio agora passou a ser “o efeito de quebrar (desconstruir) o poder do autor de
impor significados ou de oferecer narrativa contínua” (HARVEY, 2003, p. 55), ou
seja, no espaço fragmentado, não seria mais uma narrativa “mestra” que daria
conta de responder e de explicar todas as contradições sociais da condição Pós-
Moderna.
A significação mais ampla da condição pós-moderna reside na
consciência de que os “limites” epistemológicos daquelas ideias
etnocêntricas são também as fronteiras anunciativas de uma
gama de outras vozes e histórias dissonantes, até dissidentes –
62
mulheres, colonizados, grupos minoritários, os portadores de
sexualidades policiadas (BHABHA, 1998, p. 23-24).
Numa escala geográfica de mundo, a fragmentação do espaço permite que
vejamos o surgimento de diferentes fronteiras com diferentes grupos sociais de
“raças” e de culturas diversas com muitas narrativas acerca dos grupos até então
excluídos ou reconhecidos de forma negativa pelas narrativas mestras dominantes.
Portanto, no que tange ao propósito deste trabalho que trata da inclusão/exclusão/
do negro e da cultura afro-brasileira, a nossa intenção é tensionar a visão
tradicional interpretativa da narrativa “mestra” do negro (escravo), abordado nos
livros didáticos como aquele que foi importante para a organização do espaço e do
território nacional, pela sua presteza e pela capacidade “natural” de adaptação ao
clima, uma peça importante e estratégica da economia agrária, aquele que
contribuiu para com a cultura brasileira com o seu jeito pitoresco, alegre,
travestido pelo folclore e estereótipos, para agora desconstruir toda essa visão, ou
pelo menos começar a fazer o seu resgate sob outros pontos de vista que não
sejam de uma “narrativa mestra”.
Mas, o que fazer? Negar a escravidão na formação da civilização
brasileira? Não; ao contrário, firmar sua história. Entretanto, a forma de regatar
não deve ser monológica, apenas uma visão interpretativa, uma “narrativa
mestra”. É preciso resgatar de dimensões diferentes. A escravidão, como
narrativa, deve ser recontada a partir de diversos pedaços e partes reunidas e
sobreposições de quadros e contextos sociais diferentes. A ideia é fazer uma
bricolagem como aquele que atua “a partir do conceito de que a teoria não é uma
explicação do mundo – ela é mais uma explicação de nossa relação com o
mundo”, conforme Kincheloe (2007, p.16), ou seja, resgatar é narrar, dizer de
outro jeito. O que buscamos aqui é uma outra narrativa sobre o negro sobre a
cultura afro-brasileira que diz respeito à formação social do país, especificamente
com vistas para a educação e para o ensino de Geografia.
Para essa abordagem, acreditamos que os postulados da teoria crítica
visam à transformação social, como analisam Denzin e Lincoln (2006, p. 35),
contudo, talvez não sejam suficientes para avançar no ensino de Geografia acerca
do conceito de “raça”, o que, para nós, com base em Hall (2008), é um conceito
contestado. Por isso, ao levantarmos que o que estaria em jogo no resgate do
63
negro e da cultura afro-brasileira seria a política de identidade, o que requer o
reconhecimento da diferença do Outro, evocamos dentro do campo do currículo, a
teoria pós-crítica que resgata narrativas com base nos estudos pós-coloniais,
porque o que precisamos é “ver de fora”, sair de dentro das “narrativas mestras”,
desconstruir a estabilidade, a linearidade histórico-social colonial. Não queremos
aqui resgatar o negro e a cultura afro-brasileira na sua essência, ao contrário,
queremos fazer o resgate através do movimento da descentração da diferença na
diferença, o que requer descentrar a própria construção biologizada de raça como
fator determinante, como no caso da cor da pele que continua sendo um marcador
da diferença entre o negro e o branco. Entretanto, a cor da pele não é determinante
na construção da identidade de “ser negro”, porque “ser negro” é uma construção
biopsicossocial que não é fixa, é instável e é suscetível à mudança de acordo com
o desejo de quem está num estado identitário como mais ou menos “negro”.
Negro é um conceito contestado. A forma como cada um se vê ou como vê o
Outro varia de acordo com a construção identitária de Eu “negro”. Numa visão
pós-crítica, com base na identidade vista na pós-modernidade, o conceito de
negro é um vir-a-ser, uma construção e desconstrução permanente. Pensar essa
dialética por uma dupla consciência, como sugeriu Du Bois9, é uma estratégia,
conforme coloca Billings (2006, p. 262):
A noção da dupla consciência, de Du Bois, aplica-se não apenas
aos afro-americanos, mas a qualquer povo que seja construído
fora do paradigma dominante. É importante ler toda essa
discussão da consciência múltipla com uma descrição de
fenômenos complexos. Não se trata de uma tentativa de impor
os conceitos essencializados da condição “negra” “latina”,
“ásio-americana” ou “nativo-americana” a indivíduos ou grupos
específicos.
Longe disso, mas que nesse sentido deem conta de explicar as novas
fronteiras culturais, com escalas geográficas com as diferentes vozes emergentes,
e que esses sujeitos tenham o poder para tensionar as “narrativas mestras” de
“raça” no sentido de desconstruir as certezas e o consenso, porque o que se espera
é o início da descolonização das narrativas coloniais reproduzidas até então como
um bloco hegemônico de narrativas ocidentais.
Para abordar a organização do espaço, é recorrente nos livros didáticos de
Geografia a utilização do fenômeno globalização para explicar as causas da
9 (1868-1963).
64
redução espaço/tempo. No entanto, sabe-se que, visto pelo determinismo
econômico, este seria apenas mais um momento em que o espaço se reconfigura
pelo uso das técnicas. “As técnicas seriam oferecidas como um sistema e
realizadas combinadamente através do trabalho e das formas de escolha dos
momentos e dos lugares de seu uso” (SANTOS, 2000, p. 23). Para este autor,
pelas técnicas e por elas é possível contar a história do mundo, sobretudo do
mundo ocidental, que, do século XVI ao século XX, intensificou o uso das
técnicas e aumentou a desigualdade social como um produto desse crescimento. A
ciência moderna teve um grande papel no avanço das técnicas e na sua utilização
para explicar o homem e a natureza, como a população e a sua distribuição no
Planeta Terra seguidas dos fatores naturais como – clima e o meio, assim como o
a distribuição por raça, o que contribuiu para a Divisão Internacional do Trabalho
– DIT, entre os povos colonizados, o homem selvagem, primitivo e os povos
colonizadores, o homem civilizado.
Nesse sentido, o mundo globalizado seria resultado da história das técnicas
produzidas em diferentes espaços, mas, ao mesmo tempo, dentro de um projeto
maior de espaço-mundo, do projeto colonial a partir do século XVI, que foi
impulsionado pelas técnicas da navegação e com o apoio moral e ético da Igreja-
Estado-Sociedade, e pano de fundo da divisão racial e social que caminharam
juntas com esse desenvolvimento dentro de uma ordem social até o século XX.
Hoje, para retomar a questão raça, um tema caro para o espaço-mundo,
evidentemente, no mínimo, é preciso voltar ao projeto colonial. Os desafios
históricos que se põem, como a luta por reconhecimento e o combate ao racismo,
são muitos, já o que todas as evidências levam ao convencimento de que tudo isso
é resultado de uma construção hierárquica em que “raça” foi um discurso
construído técnica e politicamente, de posse e uso do colonizador para
discriminar, classificar, hierarquizar. É fato, raça tem a ver com o modo de
produção, com a força produtiva de quem gere o trabalho e para quem executa a
função. No apogeu do projeto colonial, até o século XIX, esta divisão era clara,
legítima e legal. De um lado, raças inferiores (escravos africanos) e, do outro,
raças superiores (europeus colonizadores).
Hoje, o que nos interessa é discutir, é recontar a configuração do espaço a
partir do discurso das relações etnicorraciais, especificamente sobre o negro e sua
representação social. Se a geografia crítica propunha a transformação social,
65
agora a tendência do ensino é discutir sobre a diferença como política de inclusão
das categorias de identidade, raça, gênero, religião e outras, numa educação que
tem como referência os Direitos Humanos, como crença na emancipação do
homem. Não basta denunciar o racismo e as injustiças sociais. É importante que
se proponham formas de combatê-los; do mesmo modo é preciso compreender o
processo, a sua gênese e o seu discurso. No que tange ao conhecimento prescrito,
através do livro didático, no currículo, não cabe mais dizer como ensinar tais
conteúdos, mas é preciso perguntar por que este conteúdo está presente e não o
outro? Ou, por que este conteúdo é abordado com estereótipos e o outro não?
A escola é um território regulado pelos mecanismos externos, órgãos
gestores do Estado como o Ministério da Educação e Cultura – MEC, o Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais - INEP, e Secretarias de educação.
São eles que fazem a gestão de programas educacionais, como o PNLD, o de
avaliação em larga escala, como Prova Brasil e Saeb10
, IDEB11
, cujo fim seria
também fazer o controle do currículo, assim como acompanhar o desempenho
quantitativo e qualitativo do ensino. O currículo escolar não é algo estanque e
fixo, ao contrário, ele é um espaço de contestação e de mudanças permanentes.
Toda e qualquer mudança na escola reflete diretamente no currículo, concebendo-
se o currículo como toda e qualquer ação dos sujeitos - dos atores sociais que
estão direta ou indiretamente vinculados à escola. No caso do livro didático, ele é
um suporte da cultura selecionada e esta é organizada segundo os critérios de
classe, raça, religião, gênero, e de acordo com os fins de quem ou do grupo que os
produz (APPLE, 2008). Nesse sentido, não podemos tomar o livro didático como
um suporte pedagógico portador de um conjunto de conteúdos esvaziado de
crítica, ou simplificar o seu papel como se fosse apenas um produto de mercado e
ignorar a sua dimensão dentro da estrutura social das relações de domínio dos
discursos na escola. Seria esvaziar o seu poder político e social naquilo que ele
representa na relação ensino e aprendizagem. Consideramos o livro didático um
espaço socialmente construído, feito de diferentes visões e de discursos do poder,
10
A Prova Brasil e o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) são avaliações
para diagnóstico, em larga escala, ambas desenvolvidas pelo INEP. 11
Índice de Desenvolvimento da Educação Básica. Hoje é o indicador nacional que mede a
qualidade e desempenho de cada unidade escolar, municipal, estadual e federal. O objetivo é que a
média nacional atinja, até 2021, o equivalente à média dos países que possuem um alto nível de
educação.
66
no qual são subentendidas intenções e ideologias de acordo com os grupos que
fazem o seu controle.
No caso dos livros didáticos de Geografia, como ficaria o seu controle e o
seu conteúdo de África e da cultura afro-brasileira? A partir de 2003, foi criada
uma lei de nº 10.639, que alterou o Artigo 26 da LDB 9394/96 e acrescentou o
Artigo 26, e tornou o seu ensino obrigatório. Na verdade, esse conteúdo sempre
fez parte da matriz nacional e, nos anos 90, os Parâmetros Curriculares Nacionais
– PCNs (BRASIL, 1997) novamente reorientaram sobre o mesmo e sugeriram a
sua aplicação como tema transversal e, para tanto, apareceu na abordagem da
Pluralidade Cultural.
Contudo, surgiram perguntas: 1. Não seria uma redundância: se esse
conteúdo faz parte do currículo, para que uma lei que o torna obrigatório? 2. Em
que medida as Diretrizes Curriculares da Educação das Relações Etnicorraciais e
da Cultura Afro-Brasileira implicam no ensino de Geografia?
Sumariamente, respondendo à questão 1, seria para resgatar a cultura afro-
brasileira e combater o racismo e propor a construção de uma educação das
relações etnicorraciais; e, respondendo à questão 2, o ensino de Geografia, até
então, se pautou pela tendência histórica, econômica e folclorista para abordar a
cultura afro-brasileira. Entretanto, com os fundamentos pedagógicos preconizados
na lei 10.639/03, o que desde então passou a ser requerida foi uma proposta
pedagógica na qual o negro seja reconhecido positivamente nas suas diferenças
culturais, na organização e transformação do espaço, considerando seus saberes,
sua estética física e natural e a sua história.
Para isso, o PNLD, no edital licitatório de 2008, postulou as exigências da
lei para que as próximas coleções de livros didáticos de Geografia atendessem os
então critérios propostos.
As coleções devem contribuir efetivamente para a construção da
cidadania. Nessa perspectiva, as obras didáticas devem
representar a sociedade na qual se inserem, procurando:
promover positivamente a imagem de afrodescendentes e
descendentes das etnias indígenas brasileiras, considerando sua
participação em diferentes trabalhos, profissões e espaços de
poder; promover positivamente a cultura afro-brasileira e dos
povos indígenas brasileiros, dando visibilidade aos seus valores,
tradições, organizações e saberes sócio-científicos,
considerando seus direitos e sua participação em diferentes
processos históricos que marcaram a construção do Brasil,
valorizando as diferenças culturais em nossa sociedade
67
multicultural; abordar a temática das relações etnicorraciais, do
preconceito, da discriminação racial e da violência correlata,
visando à construção de uma sociedade antirracista, solidária,
justa e igualitária (BRASIL, MEC/PNLD, 2008, p. 35-36).
O presente edital teve como base as Diretrizes Curriculares da Educação
das Relações Etnicorraciais da História da África e da Cultura Afro-Brasileira, e,
dentre os pontos destacados, o mesmo chamou a atenção para que as coleções de
livros didáticos do Ensino Fundamental do PNLD voltassem a atenção e o
cuidado para com a abordagem de um ensino de Geografia para as diferenças
culturais. Como tal, deveriam então os autores considerar que a sociedade
brasileira é multietnicorracial, ou seja, somos o resultado das diferentes misturas
de “raças” e culturas e é isto que nos faz igual enquanto nação, e diferentes na
diferença enquanto culturas. A nossa formação é híbrida o que nos permitiu
construir uma história a partir das diferenças, visto que somos frutos do encontro
de diversos continentes culturais.
Com base nesses pressupostos, o edital procurava cumprir a lei, e evocava
a atenção do mercado editorial para com o cuidado de trazer, para as coleções de
livros didáticos de Geografia, abordagens acerca da cultura afro-brasileira que
contemplassem as exigências postas pelos dispositivos legais de acordo com as
Diretrizes Curriculares da Educação das Relações Etnicorraciais da História da
África e da Cultura Afro-Brasileira. Embora a Lei 10.639/03 imponha a
obrigatoriedade do ensino, em especial para as disciplinas de História, Literatura e
Arte, exigindo da escola um currículo preconizado na questão etnicorracial
demandando uma educação antirracista, no mesmo artigo afirmam também que
serão ministradas as temáticas África e cultura afro-brasileira no âmbito de todo o
currículo escolar. Isso significa que, como uma disciplina importante na formação
do aluno, tornou-se um compromisso também da Geografia, que tem como
conteúdo o Continente Africano e a cultura afro-brasileira nos programas do
Ensino Fundamental. Com essas diretrizes curriculares, espera-se a desconstrução
de currículos e programas com base em conceitos e paradigmas cristalizados sobre
discursos estereotipados, porque o que não se quer mais é uma educação na qual o
afrodescendente se vê reconhecido de maneira distorcida. Como diz Taylor (1994,
p. 45): “o não reconhecimento ou o reconhecimento incorreto podem afetar
negativamente, podem ser uma forma de agressão, reduzindo a pessoa a uma
maneira de ser falsa, distorcida, que a restringe”; é sabido que o reconhecimento
68
falso pode causar prejuízos, dor, sofrimento, discriminação e violência simbólica
e danos morais ao Outro.
O contato entre africanos e europeus, ao longo da colonização, foi
marcado pela sobreposição de culturas em que ambos os lados se beneficiaram
desse processo; entretanto, o colonizador foi o mais favorecido, visto que a
prosperidade de suas colônias e a economia de exportação desenvolvidas nas
Américas só foram possíveis graças à importação da mão de obra, um negócio que
manteve aquecido o mercado internacional de tráfico de seres humanos durante
séculos. Ao mesmo tempo, o hiato que se pôs entre os dois lados está para além
do reducionismo histórico e econômico no qual um foi vítima e o outro o algoz. É
necessário dizer que na relação econômico-cultural entre eles, graças aos
interesses de ambos os lados, é possível ver como os africanos estruturaram suas
sociedades, seguindo uma hierarquia dividida em estratos sociais com diferentes
tipos de reconhecimento para com os seus. No caso dos prisioneiros de guerra,
nem sempre estes eram vistos pelos próprios pares como um dos seus, ao
contrário, entre eles havia uma hierarquização social, um signo, pelo qual, na
condição de presa, o seu provável destino era o escambo - a escravidão
transatlântica. Isto era possível em função do sistema hierárquico estabelecido
pelo tráfico comercial, por exemplo, como no caso de Cabinda, região de Angola,
em que o papel e a função social desenvolvidos pelas autoridades eram
politicamente controlados com as seguintes funções: o rei (o mangoyo); o
responsável pelo comércio (o manfuca); e o governador do litoral (o mambuco).
Sobre o manfuca, é importante saber que seu poder era estratégico para fazer a
manutenção da ordem escravagista. Nesse sentido, no que tange ao comércio
internacional de gente, a respeito do papel do manfuca dizem os autores:
Ele se faz sentir, sobretudo, em relação aos traficantes. Se pelo
manfuca efetivava-se o contato direto com os mercadores
individualmente, a política estabelecida em termos da soberania
do reino é discutida entre o mambuco e as autoridades dos
países interessados (SERRANO & WALDMAN, 2010, p. 177).
A estrutura social e econômica constituída era seguida de um controle
estatal, de modo que a ordem escravagista contava com o comércio de gente, em
que, cada um ocupava um papel e tinha uma função social e moral. Com essa
mentalidade, foi possível manter tal estrutura durante séculos. Todavia, hoje, não
cabe mais fazer interpretações a respeito da escravidão pelo viés maniqueísta no
69
qual vitimiza-se qualquer uma das partes a respeito do tráfico internacional entre
África e América. De fato, o tráfico foi possível enquanto houve interesses
econômicos, políticos e culturais daqueles que mantinham o controle naquela
estrutura secular. Contudo, isso não justifica a permanência da escravidão e
tampouco a forma com que o projeto colonial se estabeleceu e institucionalizou o
reconhecimento negativo do africano escravizado, classificado e hierarquizado
sob uma projeção filosófica e social do indivíduo, “selvagem”, a “raça inferior”, o
“escravo”, o “negro”, o “preto”, o “mulato”, estigmas e discursos cristalizados
pelos cânones eurocentristas e reproduzidos como “narrativas mestras” da
Modernidade, e que, ainda hoje, ocupam os currículos escolares nas explicações
de que os europeus dominaram e escravizaram povos em África e na América. De
fato, os europeus dominaram povos e lugares e, com isso, a sua cultura tornou-se
universal no que tange às narrativas do mundo ocidental, mas, na visão do
multiculturalismo emancipatório, é tempo de desconstruir “narrativas mestras”.
Enfim, com a homologação da Lei 10.639/03, que preconizou a educação
das relações etnicorraciais, entendemos ser relevante para o ensino de Geografia
problematizar essa abordagem a partir da perspectiva da emancipação humana.
Para isso, consideramos a seguinte pergunta: por que o reconhecimento, a
igualdade e a diferença são conceitos prementes para entender a questão
etnicorracial no currículo?
Para a próxima seção, o argumento, que será abordado, tem como pano de
fundo o multiculturalismo emancipatório com base “no reconhecimento da
diferença e do direito à diferença e da coexistência ou construção de uma vida em
comum além de diferenças de vários tipos”, conforme Santos (2010, p 33) propõe,
mas, para que haja o alargamento desses conceitos, assim como sobre a
aplicabilidade de cada um no campo do currículo de Geografia, é necessário que
vejamos a igualdade como um tipo de reconhecimento (político e jurídico), porque,
sem ela, não seria possível o reconhecimento da diferença, visto que a igualdade é o
primeiro tipo de reconhecimento sobre o qual os fundamentos liberais do Estado
Moderno foram construídos, quando a sociedade era baseada na honra e no
privilégio dos então considerados “bem nascidos”, no Ancien Regime fundamentado
na diferença, um tipo de reconhecimento que tinha como base a moral cristã e esta
foi o que legitimou o projeto colonial e o empreendimento empresarial da escravidão
de africanos nas colônias portuguesas. Porque desse contexto, como pode ser visto
70
na história da igreja, sabe-se que, a matança de negro foi autorizada pela sua
Santidade. À época, havia todo um incentivo para o ressurgimento da escravidão,
que data desde o século XV, quando, em 1454, o Papa Nicolau V assinou a bula
Romanus Pontifex, que dava “exclusividade aos portugueses nos negócios da África,
inclusive para apresar negros e mandá-los para o reino” (CHIAVENATO, 1980, p.
46). Para os negros, por não serem cristãos portugueses e não serem da mesma raça,
era previsto pela força da Coroa com a rubrica da Igreja o reconhecimento desigual.
Conforme os conceitos morais da época, era consenso que os africanos não tinham
“alma”, ou seja, não tinham direito de expressar a sua diferença, portanto a
escravidão de seus corpos seria uma forma de “resgatá-los” e “purificá-los” da
heresia trazendo-os para o reino de Deus enquanto prestando na Terra a sua
subserviência aos homens “bons”, o que, no discurso da igreja, tornariam-nos iguais,
não em direitos e em bens materiais aqui na terra, mas cabia-lhes todo o tipo de
reconhecimento negativo uma “passagem” para entrar no reino do céu.
Historicamente, o segundo momento importante ocorreu com a abolição
do regime escravagista quando a igualdade se tornou um imperativo da lei, e isso
passou a significar o fim da desigualdade entre o senhor e o escravo todos
passaram a ser reconhecidos como iguais. Todavia, consequentemente, junto com
esse novo estado de igualdade civil, veio a República e, com ela, vieram os
desafios do Estado democrático de promover mecanismo de reconhecimento por
meio das instituições democráticas daqueles que até então eram os desiguais.
Nesse sentido, os desiguais receberam que tipo de reparação e de garantia social?
Em que medida a importância sociocultural foi resgatada? Hoje, ao retomar essas
questões, nota-se que é importante evocar o reconhecimento, a igualdade e a
diferença para o debate, e refletir e ao mesmo tempo propor ações multiculturais
de ação afirmativa para o currículo de Geografia, que venham contribuir para o
resgate do negro e da cultura afro-brasileira.
2.3 O vir-a-ser, diferença e igualdade
A escravidão na América nasceu do projeto “civilizatório” colonial
europeu e, para que esse empreendimento em nível mundial desse certo, o
colonizador contou com um conjunto de fatores econômicos, políticos e
filosóficos a seu favor, o que permitiu implantar o regime escravagista nas
71
colônias americanas, assim como foi possível também fazer a sua perpetuação por
mais de quatro séculos, pois, no caso da colônia brasileira, após a Abolição, é
inegável a continuidade da mentalidade de relação de superioridade de cor e de
estratificação social do senhor sobre o escravo reconfigurada no âmbito e no
domínio legal da lei, pelas quais as relações etnicorraciais entre negros e brancos
foram garantidas com igualdade de direito. No campo das relações e do status
social, a população negra continuou a existir numa posição inferior ao branco, no
que diz respeito à educação e à distribuição de renda. Daí, não é difícil se projetar
o futuro de uma população à qual faltou reconhecimento social na transição da
escravidão para a vida livre. No imaginário social, tornou-se um campo fértil para
conotações raciais de todos os tipos, que, desde então, fizeram surgir arquétipos e
estereótipos tocantes à cultura afro-brasileira, aos quais não escaparam os
espectros da raça e do racismo, que, até hoje, têm funcionado como marcadores
sociais e servido como código cultural e que, através da linguagem, são
reproduzidos na família e na escola, o que continua garantindo um ciclo de
reprodução de estereótipos com relação ao negro.
Do ponto de vista econômico, a escravidão foi um negócio, uma empresa
na qual se vendia gente, o que era legal e moralmente avalizado com a rubrica da
Igreja que, em consonância com os regimes monárquicos europeus, que criaram
instituições, leis e discursos, e um padrão de educação universal pelo qual
hierarquizaram, classificaram e reconheceram de forma estereotipada a África, de
modo que se propagou, através da cultura universal europeia, a ideia de um
continente selvagem e exótico, cuja imagem projetada de seus povos para o
mundo era de um homem “primitivo” reconhecido pelo seu estágio de
desenvolvimento natural, mais evoluído que os animais das savanas e o mais
atrasado e inferior da escala civilizatória europeia. Foi desse contato do europeu
com o africano que teorias, linguagens e discursos foram criadas e que, ao longo
dos séculos, cristalizaram-se, a tal ponto que “fizeram do negro o meio do
caminho no desenvolvimento do macaco até o homem”, Fanon (2008, p. 33). De
fato, ele foi objeto de densa descrição da etnografia da Antropologia positivista e
do determinismo biológico. Através disso, uma visão racial de África, para o
mundo, foi legitimada: de um continente atrasado, a-histórico e longe do
desenvolvimento econômico e social, europeu. Todavia, para o imperialismo
europeu, no século XIX, “civilizar os nãos civilizados”, seria a máxima da sua
72
geopolítica, que se consumou com a Conferência de Berlim; daí a supremacia
racial branca etnocêntrica, um capítulo de racismo e ódio cujo desfecho terminou
com o holocausto, de uma Europa que se escreveu no século seguinte, e, hoje, ela
luta para não lembrar.
Nas ex-colônias, todos os lugares que estiveram sob o domínio dos países
europeus, como foi o caso do Brasil, a escravidão de africanos foi comum e o
trabalho compulsório foi o tipo adotado na gestão do sistema econômico do modo
de produção, entretanto, como um fenômeno social, a sua história deve ser vista
em três dimensões: a política, a econômica e a moral. Analiticamente, a
escravidão implica a sua capacidade, não apenas do ponto de vista econômico,
mas do seu poder político e moral, de ajuntar fragmentos, reunir pedaços de
discursos sobre a mentalidade hegemônica da Igreja, do Estado e da família
patriarcal que compõem um universo amostral das principais esferas sociais que
compunham a estrutura colonial de uma Era.
Nesta seção, não é a nossa intenção esgotar a discussão acerca do sentido
do projeto colonial pensado pelos portugueses a respeito do que mais tarde veio a
se tornar Brasil. No que tange ao reconhecimento etnicorracial do negro e da
cultura afro-brasileira, a ideia é abordar a diferença e a igualdade entre negros e
brancos no antes e no pós abolição. Vale ressaltar que, no capítulo 4 desse estudo,
as narrativas foram bricoladas com base na diferença e na igualdade dos seguintes
tipos de reconhecimentos: a mentalidade da instituição escravidão, em que a
diferença era o marcador da luta entre o senhor e o escravo; o após a abolição
quando a liberdade se tornou um direito universal com as instituições
democráticas, inclusive com a escola, que passou a preconizar a prática e o
discurso da igualdade, mas, mesmo assim, o negro e a sua cultura continuaram
sendo reconhecidos como inferiores pelos marcadores socioculturais brancos.
Hoje com as políticas de reparação de ação afirmativa, busca-se no Estado de
Direito, o uso da diferença e da igualdade como dispositivos legais na luta por
reconhecimento sociocultural na igualdade e, ao mesmo tempo, na diferença
quando a igualdade discrimina.
No regime escravagista, na relação de reconhecimento entre brancos
europeus colonizadores e negros africanos colonizados, a diferença era um
marcador político e filosófico de estratificação social, em que o primeiro não
reconhecia o segundo como igual; à época, a diferença era o parâmetro para
73
hierarquizar, desqualificar, racializar e dominar os povos africanos. Com essa
hierarquia, a cultura era ditada pelos cânones europeus superiores e, enquanto
isso, do outro lado, ficava a cultura africana reconhecida como inferior. Portanto,
foi desenvolvido e aperfeiçoado todo um processo de dominação que ia da força
da violência física à força do discurso pela violência simbólica. A história é
testemunha de que o projeto colonialista tinha como base o desrespeito social, e
usava toda forma possível na punição do corpo negro e criava os meios e os
discursos como forma de controle, o que levava, ao negro, ao rebaixamento da
condição de animal; diferenciava para então subjugar, dominar e escravizar,
porque essa era a lógica do Estado-Igreja-mercado. O tratamento dispensado aos
africanos fazia parte do seu reconhecimento como coisa, um produto de mercado
– o mais vil da condição humana.
Do seu aprisionamento em África a travessia do Atlântico até á casa-
grande como destino final, havia uma moral, uma ética legítima de que o negro
deveria ser obrigatoriamente reconhecido como alguém que não era gente, ou seja,
um ser inferior; a ideia era desconstruir o africano da condição de Outro, “uma
vez que falar é existir absolutamente para o outro” (FANON, 2008, p. 33). O que
resistia e se opunha ao imperativo da escravidão representava uma ameaça à
ordem dos alinhados – Estado-Igreja- mercado, uma estrutura baseada no
privilégio e na honra, herdada e reproduzida do Ancien Regime.
Não é difícil concluir que no colonialismo o poder político estava sob o
domínio europeu e com o homem branco americano que herdou o pensamento da
ética protestante e se apropriou do “espírito do capitalismo”. Antes mesmo da
Revolução Francesa, ele já havia feito a Revolução Liberal Americana, base da
cultura mundial euro-americacentrista. No que tange a estrutura colonial, nas
Américas, o seu monopólio, o controle esteve primeiro com a Igreja e o Estado.
Na “modernidade tardia,” segundo Hall (2006), esse controle foi transferido para
o mercado e para as instituições da indústria cultural que passaram a reproduzir a
visão do centro numa escala universal em detrimento da periferia. Como dizem
Moreira e Silva (2002, p. 27): a cultura no seu sentido de aquisição tradicional é
“unitária, homogênea e universalmente aceita e praticada e, por isso, digna de ser
transmitida às futuras gerações”, e isso se refere à cultura “superior”, à
hegemônica, à selecionada, àquela que como tal deve ser inculcada nos sujeitos
sociais pelas instituições reprodutoras. Hoje, com a emergência do sujeito pós-
74
moderno, o que se tem visto é o descentramento das instituições hegemônicas e,
ao mesmo tempo, com a informação instantânea, a redução do tempo/espaço da
“sociedade do espetáculo”. Com isto, caminhamos para a inversão da
metanarrativa para a micro-história, do lugar da criação para a desconstrução e da
antítese, segundo (HARVEY, 2003).
No passado eurocentrista, o Ocidente foi uma invenção da sua própria
cultura, da sua própria maneira de se afirmar e de afirmar o Outro: o positivo e o
negativo estereotipado. A escravidão na Modernidade seria uma das formas
justificadas para a afirmação do sujeito moderno, encontrada por ele para explorar
e ao mesmo tempo para existir a partir do Outro. Nos últimos quinhentos anos, o
projeto que justificou a colonização e a escravidão brasileira nasceu de uma visão
ocidental branca, cristã, de natureza jurídica com base na diferença do
reconhecimento da honra do vencedor, enquanto o vencido, o colonizado e
escravizado seria apenas o objeto, a peça do enredo da economia e do
desenvolvimento das nações europeias. De fato, o mundo no século XV e XVI,
principalmente nas monarquias ocidentais, estava alinhado político, econômico e
culturalmente à ordem teocêntrica, em que o controle exclusivamente ficava com
a agenda da fé, pela qual se escrevia e falava o latim – a única versão que se podia
fazer da verdade. Os fiéis cristãos eram guiados pela vontade e no tempo de Deus.
Nada se fazia politicamente sem consultar as autoridades eclesiásticas, porque, o
contrário disso, seria heresia e, certamente, os tribunais do Santo Ofício seriam o
fim para quem tentasse subverter os desígnios dos céus. Nesses séculos, o mundo
hegemônico ainda era cristão e o regime político e econômico, embora já tivesse
começado o início do fim, ainda era feudal. A relação de trabalho era servil, de
senhorio e servo, de honra e lealdade e fidelidade, uma sociedade estamental. Para
a Igreja, a aliada dos Estados nacionais, só havia duas identidades: a de cristão e a
de herege, ou se confessava a sua fé, ou a negava. O poder, a economia e a cultura
giravam segundo a vontade da política de Deus.
Nessa ordem teocêntrica, fica mais fácil de compreender que, o poder
político estava com a nobreza e com a Igreja e que ambas controlavam a
economia e a cultura. Contudo, sabe-se que a força do mercado e a sua expansão
fizeram com que se intensificasse o fluxo do comércio mundial, sobretudo para
com as colônias, e para Portugal, que já tinha a prática da cultura escravagista
desde o contato com os sarracenos, foi fácil a implantação do mercado com a
75
África, um grande projeto comercial que por muito tempo se manteve ativo.
Todavia, dentro desta ordem mundial de metrópoles e colônias, para que obtivesse
tanto sucesso um país de extensão e de população tão pequena, Portugal contava
com a estrutura do Ancien Regime baseado no predomínio da nobreza e da Igreja,
que, associadas ao comércio e às rotas marítimas, fizeram da fé um negócio onde
o escravo era o produto competitivo fora da África. Todavia, para que a
hegemonia lusitana se mantivesse inalterada, e que secularização desse domínio se
reproduzisse, muitos mitos a respeito do africano foram criados. Como tantos, um
foi a “maldição de Cam12
” que tinha como função desqualificar e estratificar o
negro no pensamento da época. Como uma instituição pensante e mantenedora da
moral da sociedade tradicional, qual seria a intenção da Igreja ao fazer a
reprodução desse mito?
O seu interesse primeiro era a manutenção da escravidão economicamente,
pois dessa forma, conseguia unir a fé com o desenvolvimento ultramarino, porque,
a Igreja, Deus estava nos negócios, nos empreendimentos materiais. Portanto, era-
lhe conveniente o filho amaldiçoado por Noé, do qual os descendentes, os povos
africanos, seriam uma sub-raça, selvagem e não civilizada. Isso se tornou um
axioma do pensamento do cristianismo, superado apenas no fim do século XIX,
pelo menos no Brasil, do ponto de vista da Arte, quando, em 1895, o artista
plástico Modesto Brocos, da Escola de Belas Artes apresentou uma obra óleo
sobre tela intitulada “A redenção de cam”, hoje no Museu de Belas Artes do Rio
de Janeiro. Para a época, a ideia era contribuir com o imaginário do
branqueamento com a miscigenação da população brasileira. Ao contrário de
então, quando a vontade de Deus seria a “maldição de Cam”, os descendentes
camitas (africanos) estariam sujeitos à condenação; para o pensamento
eclesiástico não haveria salvação para os africanos, a não ser se fossem redimidos
através do trabalho compulsório. Nesse sentido, a escravidão foi o caminho ideal
que levava aos céus. Escravizar seria um ato benéfico e fazer escravos foi a
tecnologia social e de ponta a serviço de Deus e ao alcance das instituições do
ramo do escravismo, que, por elas, mercados foram alavancados e a economia
mundial se expandiu para os novos continentes sob o “pacto colonial”.
12
Mito baseado no Antigo Testamento. Noé, após se embriagar, é encontrado nu por seus filhos,
Cam, Sem e Jafé. O primeiro riu da situação presenciada. O pai repudiou o filho e o amaldiçoou
mandando para terras distantes supostamente africanas.
76
Já em 1750, o Padre M. R. Rocha recomendava bom tratamento
aos escravos, pugnando pelo dever de alimentá-los, vesti-los,
curá-los em suas enfermidades, educá-los sobretudo moral e
religiosamente, permitir-lhes a família, a propriedade, e afinal a
alforria ou liberdade (MALHEIRO, 1976, p. 81).
A Igreja recomendava que ao escravo se desse todo tipo de apoio, do físico
ao moral, entretanto, essa assistência funcionava como um reconhecimento de que
o mundo branco europeu, para existir como tal, dependia de que o africano
permanecesse na condição de escravo. Nesse sentido, a dependência era mútua. O
europeu estava preso também à condição de estratificação criada pelo regime
escravagista, razão pela qual havia todo o tipo de controle e coerção sobre o corpo
do africano escravizado. O controle no sistema patriarcal no Brasil, no caso da
casa-grande, estava na totalidade da estrutura: a senzala era vigiada por alguém da
confiança do senhor e, em todos os arredores, como na eira, no engenho e etc, o
controle era feita pelo capataz – o homem de confiança do senhor, muitas vezes
um descendente de africano. O certo era que em todos os lugares havia o controle
e a disciplina. Tudo que fosse ao contrário disso poderia representar uma ameaça
à ordem e, para que isso não ocorresse, o sistema era severo e usava de todo o tipo
de punição para conter os subversivos, com pelourinho, correntes, chibatas, e
outros instrumentos mais. A ameaça à ordem estava no tipo de reconhecimento
entre o senhor e o escravo. Para a filosofia política, todo homem sujeitado à
escravidão, consciente da sua dignidade humana, por certo vai odiar ou então não
reconhece o Outro como senhor ou o seu dono, e, se isso ocorria era porque a sua
dignidade já estava dominada pelo senhor.
O conceito de reconhecimento vai aparecer, a partir de Kant (1724-1804),
e depois, mais desenvolvido por Hegel (1771-1831). Segundo Fukuyama (1992),
a luta por reconhecimento é a luta por autoestima, é um desejo remoto da
humanidade. Desde a Grécia clássica o homem já inspirava o reconhecimento.
Este é um conceito que se encontra em “A República de Platão,” com o nome de
thymos. Seria “uma virtude política inata, necessária à sobrevivência de qualquer
comunidade de política por ser a base que permite a um particular desligar-se da
vida egoísta do desejo e voltar-se para o bem comum”, ou não13
.
O conceito exposto tem a intenção de fazer refletir a respeito do papel e do
lugar que o escravo afro-brasileiro ocupava na sociedade patriarcal escravagista.
13
Acréscimo meu.
77
Ao manter o controle moral sobre ele, havia duas dimensões com que o senhor se
ocupava a seu respeito: o corpo e o psicossocial.
De fato, para que a escravidão fosse sustentada, havia uma biopolítica
identitária direcionada com base num conjunto de instrumentos legais, através dos
quais construía-se socialmente o escravo. Romper com isso, era uma tentativa de
quebrar a barreira política, econômica e filosófica que dava legitimidade a esse
tipo de reconhecimento social, coisa que era difícil, visto que o reconhecimento
econômico do escravo estava na sua reificação:
O escravo era apenas um instrumento de trabalho, uma
máquina; não passível de qualquer educação intelectual e moral,
sendo que mesmo da religiosa pouco se cuidava. Todos os
direitos lhes eram negados. Todos os sentimentos, ainda os de
família. Eram reduzidos à condição de coisa, como os
irracionais, aos quais eram equiparados, salvas certas exceções
(MALHEIRO, 1976, p. 31).
Havia todo um cuidado moral de desconstrução do humano que havia no
africano, no sentido de garantir a sua condição de escravo, de uma coisa, para que
ele não se visse como gente e exigisse reconhecimento. A lógica desenvolvida era
de que todas as esferas sociais refletissem a sua reificação, e que ele se visse
desprovido de todo tipo de direito como a educação e do direito de ter direito a ter
família. Uma vez reduzido à condição de coisa, ele não era gente, portanto, não
era civil e, certamente, não tinha direito à proteção social. Sabe-se que o direito é
um princípio de natureza humana, é uma construção social. Neste sentido, todo
ser humano é um indivíduo com um fim em si mesmo, portanto tem direito de ser
livre como tal. No caso do escravo, na estratificação social, ele ocupava a última
camada e isso o colocava numa posição desfavorável e desprovido de qualquer
tipo de direito. A ele cabia apenas subsistir para o trabalho compulsório. Seu
corpo, como função social, representava para o senhor um número, um valor
monetário importante na sociedade monocultora.
É possível ainda encontrar nos livros didáticos de Geografia, como mostra
análise dos dados do capítulo 4 desse trabalho, a escravidão e a luta do escravo
pela abolição, porém explicadas a partir do determinismo econômico. O negro
aparece como uma coisa. A sua luta por reconhecimento e a sua emancipação
destacaram o quilombo que ganhou notoriedade pela resistência, como o lugar
para o qual ele fugia para se afastar da força do opressor. Todavia, se fizermos o
processo contrário, de trazer a emergência de um novo conceito conforme a
78
sugestão de Hall (2009, p. 104), é possível fazer o deslocamento dos papéis, e
inverter e potencializar a consciência-de-si que havia no sujeito-escravo, e
enxergar que a opressão que pesava contra ele, a revolta, a fuga, e todos os tipos
de resistir assentia a consciência-para-si.
Potencializando o sujeito-escravo, ele seria o indivíduo que buscava para
si a consciência-de-si e, nesse sentido, se se opusesse ao senhor teria a
consciência-de-si e para-si, o que para Hegel (2011) significava a busca do desejo
e a autorealização. Para o autor, a relação entre o senhor e o escravo seria uma
luta de vida e morte que se põe entre os dois. Para que o senhor pudesse existir
como tal, ele estabelecia uma consciência-de-si e uma consciência-do-Outro
contudo, em contraposição, o escravo buscava uma consciência-de-si, e é contra
essa consciência-de-si que o senhor se opunha “ao mesmo tempo como mediação,
ou como um ser-para-si que só é para si mediante um Outro, se relaciona” (Idem,
2011, p. 147).
Segundo o autor:
O senhor se relaciona mediatamente com o escravo por meio do
ser independente, pois justamente ali o escravo está retido; essa
é sua cadeia, da qual não podia abstrair-se na luta, e por isso se
mostrou dependente, por ter sua independência na coisidade. O
senhor, porém, é a potência que está por cima desse ser; ora,
esse ser é a potência que está sobre o Outro; logo, o senhor tem
esse Outro por baixo de si: é este o silogismo [da dominação]
(HEGEL, 2011, p. 148).
É assim que ocorria na casa-grande a relação de dominação entre o senhor
e o escravo. Aos que eram adquiridos no mercado, a desconstrução de si era um
processo que se iniciava desde o seu aprisionamento em África, que, como
cativos, à medida que eram exportados como mercadorias para as colônias,
deixavam de existir para os seus pares, mas, ainda assim, a consciência-de-si era
recoberta quando ele se via subjulgado junto com os ratos à putrefação nos porões
dos tumbeiros. A consciência-de-si fazia aumentar a saudade, a vontade de
retornar para a sua terra e para o seu povo, coisa que já não era possível, e isso
transformava-se em banzo, doença cuja causa primeira estava na perda de suas
raízes das quais foi arrancado.
Aos sujeitos-escravos nascidos na casa-grande, a desconstrução do seu Eu,
da sua pessoa como gente, passava por um processo educativo: desde pequena, a
criança negra recebia um tipo de reconhecimento distorcido, em que ele não devia
79
se ver como gente, mas como alguém que era uma coisa, um objeto, um
brinquedo. Muitas vezes, o sinhozinho, quando ainda criança, recebia de presente
um menino negro para ser o seu “saco de pancadas”, o “mané gostoso” ,
(FREYRE,1998) e, com ele, iniciava sua vida sexual, e praticava todo tipo de
destrato, o que, para aquele tipo de sociedade, era comum, uma vez que estava
estabelecido na moral e na ética cristã que o escravo não era sujeito e sim objeto
do seu dono.
Todavia, ninguém nascia escravo. Ser escravo era uma condição imposta
pelas normas e pela moral da sociedade escravagista que assim reconhecia o
africano nesta condição. Na sociedade colonialista e imperialista, só existiu o
senhor enquanto existiu o escravo e, para que o segundo pudesse existir, o direito
que diferenciava o escravo do senhor era o da diferença, direito em que na lei
dizia ser o primeiro inferior com relação ao segundo. Com a Abolição, a
igualdade tornou-se um direito universal entre negros e brancos. Segundo a lei,
todos, independente da cor, raça, classe social, seriam iguais. começava então a
luta do negro pelo direito da igualdade, uma vez que a garantia da igualdade
formal, no âmbito jurídico, não garantia a igualdade de acesso a todos os tipos de
direitos civis, políticos e sociais iguais aos dos brancos. Na verdade, os brancos
chegaram primeiro e construíram uma sociedade com as seguintes bases: estrutura
social em que a religião era o catolicismo, a economia dirigida por brancos-
senhores, e as leis feitas por eles e para eles, o estamento colonial. O desafio agora
estava em como reconhecer, em como dar direito a quem até então, segundo a lei
não era reconhecido como gente e não tinha direitos. Com a Abolição, a diferença
na lei foi zerada, entretanto, no reconhecimento social, não.
O saldo dessa relação foi uma dívida social alta, um ranço deixado pela
estrutura escravocrata, que, ainda hoje, reflete em todos os segmentos da
sociedade. Após a Abolição, o combate à falta de reconhecimento aos libertos não
aconteceu, não houve o ressarcimento material que lhes dessem condições de
competitividade, e para esta parte da população, que foi tão lucrativa para as
forças hegemônicas do Império, seria justo que, no Estado Republicano, ela fosse
integrada socialmente. Porém, não houve esse resgate. Para que houvesse de fato
o resgate do negro como sujeito de direito, à época, seria necessária a sua
reparação moral, de modo a proporcionar o aumento da sua autoestima, o que a
ele foi negado, seguido de preconceito cultural e racial.
80
Na verdade, o negro entrou para a sociedade de direito sem o
reconhecimento de si como sujeito de direito. A luta pelo direito a bens e a
serviços viria com a sua ascensão social, o que lhe daria acesso à renda para
alcançar o mesmo status social do homem branco, mas isso não foi possível de
imediato. Não houve políticas efetivas nesse sentido por parte do Estado, que
engessava a ideia de que o racismo não era um marcador social, fazia o discurso
de que todos eram iguais, e que ao negro seria suficiente buscar o seu espaço
como indivíduo, visto que o discurso da igualdade seria suficiente para fazer a
igualdade social. Além do não reconhecimento a bens e status, houve também por
parte da sociedade o não reconhecimento da cultura afro-brasileira. Tudo que
vinha da parte do negro, a dança, a música e a religião, foi durante muito tempo
marginalizado pela cultura dominante. Parte da cultura afro-brasileira só se tornou
parte da cultura oficial a partir dos anos 30, quando o folclore, como um elemento
de integração nacional, passou a ser estudado e aceito como parte do conteúdo dos
programas e currículos da educação formal (MOTA, 2008).
O negro tem lutado por reconhecimento social, e muito até aqui ele já
alcançou, contudo, hoje, ainda enfrenta a luta para combater o racismo e para que
se faça o reconhecimento da cultura afro-brasileira de forma positiva no currículo
escolar.
É preciso contra a falta de reconhecimento evocar o multiculturalismo
emancipatório como instrumento de luta política, como aquilo que tem como fim
desconstruir o poder, ou seja, tudo aquilo que ainda oprime e inferioriza o negro,
para que haja uma sociedade mais igualitária, mas sem que se perca o
reconhecimento do direito da diferença de direito. Nesse sentido, convidamos a
pensar o multiculturalismo na educação.
2.3.1 Pensando o multiculturalismo no currículo
Atualmente a palavra currículo tem aparecido com muita frequência na
mídia quando o tema é educação e ensino, e principalmente em época de IDEB14
e
ENEM,15
em que se vê aumentada a atenção da sociedade para as políticas
14
Índice de Desenvolvimento da Educação Básica. 15
Exame Nacional do Ensino Médio.
81
educacionais universais. Quanto à ideia que na área de educação tem sobre o
conceito de currículo, talvez esteja relacionada com a memória das aulas de
Didática, ou do Estágio Supervisionado nos cursos de licenciatura, quando a
orientação era de como se preparava uma aula, e considerava o ensino e a
aprendizagem como fim em si mesmos e, para isso, era fundamental: objetivos,
metodologia, e avaliação, elaborados com o máximo de organização e de
planejamento, de modo que a eficiência fosse o objetivo geral; ou seja, fazer uma
boa aula era sinônimo de domínio do conteúdo e também de demonstração de que
se tinha domínio da didática. Essa era uma tendência baseada nas teorias
tradicionais do currículo em que, historicamente, desde as primeiras instituições
de ensino, sempre houve um sentido para a organização e o planejamento do
conhecimento distribuído por idade, série, grau, de maneira que a aprendizagem
pudesse fluir de acordo com o desenvolvimento psicossocial do aluno.
O currículo como campo teórico tem uma história e, como tal, suas teorias
estão identificadas com a história de desenvolvimento social, econômico e
cultural de países do Ocidente, como os Estados Unidos. Segundo Silva (2011),
sumariamente, o currículo aparece como um campo especializado nos Estados
Unidos com a publicação do The curriculum de Bobbitt (1918), num momento
importante e estratégico para a economia daquele país em que o governo buscava
alcançar novos rumos para a sociedade americana e a educação seria o meio pelo
qual alcançariam tais fins. Neste sentido, a publicação do livro “The curriculum16
”
ia ao encontro do modelo de desenvolvimento daquela economia, visto que a
visão do autor era de que o currículo de uma escola fosse organizado conforme o
modelo de administração de uma fábrica, ou seja, o ensino devia ser em série,
cada bem compreendida, com os seus objetivos e fins definidos, de modo que, na
última etapa, o aluno estivesse pronto, preparado para entrar no mercado de
trabalho dominando as habilidades e competências exigidas, semelhante à
produção fordista em que a linha de montagem é em série e cada parte do
automóvel estandardizarda e, término do processo, o produto está finalizado e
pronto para ir para o mercado.
16
Silva (2011, p. 22).
82
Ainda nesta mesma perspectiva sumária e histórica, quem coadunava com
paradigmas de Bobbitt (1918) seria Tyler (1949), que publicou “Princípios
básicos de currículo e ensino17
”. A obra confirmava que, para o desenvolvimento
pleno do currículo, a sua organização devia considerar os objetivos da
aprendizagem como um fim em si mesmo; que as experiências estivessem de
acordo com os objetivos finais, como algo que fizesse sentido para a vida do
aluno; e que fizesse o controle do ensino para alcançar os fins propostos (SILVA,
2011, p. 25). Para esse autor, as tendências tradicionais baseadas no ensino-
aprendizagem foram dominantes até os anos 60, quando novas teorias no campo
da educação emergiram sob outras perspectivas, que refletiam sobre o currículo
como um campo sociológico. Tais teorias ficaram conhecidas como teorias
críticas do currículo, por contradizer o sistema de ensino, isto tanto nos Estados
Unidos quanto na Inglaterra, por criticar o sistema econômico e as desigualdades
sociais da época.
Como um novo paradigma do campo do Currículo, a Teoria Crítica
colocava, no centro da discussão, a crítica ao sistema capitalista, à classe social, e
tinha como base pensadores da Sociologia que refletiam sobre a educação, como
Althusser (1983), Bourdieu e Passeron (1975), Bowles e Gintis (1981)18
. Para
eles, a escola seria um aparelho reprodutor das ideologias hegemônicas do Estado.
A reprodução da ideologia se daria por meio do currículo escolar, já que, desde a
infância, seria função da escola inculcar no aluno o conteúdo selecionado de
acordo com os interesses das classes sociais dominantes. A Teoria Crítica oferecia
resistência contra isso ao propor um currículo que buscasse a emancipação e a
libertação dos oprimidos contra os opressores. Neste sentido, o currículo devia ser
visto também pela perspectiva do poder, ou seja, o importante não seria apenas
fazer o seu controle, mas, antes de tudo, perguntar a quem interessava tais
conteúdos selecionados, e esses a que tipo de classe social. A Teoria Crítica do
currículo tinha como um dos seus pressupostos a resistência a qualquer tipo de
opressão aos oprimidos e, nessa perspectiva, vão aparecer outros marcadores no
campo, como classe, raça, feminismo, e etc. O currículo oculto aparece na escala
do cotidiano: são as diferentes vozes emergentes, é o fazer dos sujeitos sociais,
17
Idem (2011, p. 22). 18
Ibidem, (2011, p. 36).
83
são as vozes excluídas do currículo oficial que buscam prestígio e visibilidade na
cultura escolar. Tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra, os movimentos
sociais, a luta pelos direitos civis, o movimento feminista e outros são tendências
catalisadas pela Teoria Crítica do Currículo como elementos da cultura popular
que passaram a objeto de reflexão da Sociologia do Currículo. A partir desta
perspectiva, a valorização do conteúdo a ser ensinado, não seria somente o do
currículo oficial, o proposto pelo governo, mas também a cultura trazida pelo
aluno, ou seja, a sua trajetória, as suas experiências de vida passavam a constituir
o chamado currículo oculto.
O aluno deixava de ser reconhecido apenas como um sujeito que recebia a
informação do currículo oficial mediado pelo professor e assumia um papel ativo
na relação de aprendizagem. Ao mesmo tempo, Silva (2011) aponta que outras
abordagens vão emergir no campo do Currículo, como diferença e identidade,
gênero, feminismo, narrativa etnicorracial, teoria queer e multiculturalismo. Para
esse autor, essas novas categorias passaram a imprimir um outro sentido na
compreensão das teorias do campo do currículo. Essas novas tendências ele
classificou como campo Teoria Pós-Crítica.
Com base na última categoria citada, o multiculturalismo, no presente
estudo a intenção é refletir e explicar o seu sentido, tendo em vista que o objetivo
é apresentar as possibilidades de como essa categoria tem operado na educação,
especialmente no campo do currículo, e tem permitido pensar e resgatar a
importância do Outro, como no caso do negro e da cultura afro-brasileira nos
livros didáticos de Geografia do sétimo ano.
Historicamente, o multiculturalismo no Brasil não tem a mesma tradição
como nos Estados Unidos, com os seus efetivos programas de políticas de ação
afirmativa criados a partir dos anos 60. Aqui o racismo sempre foi a “pedra” no
meio do caminho entre negros e brancos de uma sociedade extremamente
conservadora, herança do mito da “democracia racial”, o que fez com que o
modelo americano do black capitalism não fosse encampado pelo Movimento
Negro na sua bandeira de luta, de acordo com Magnoli (2009, p. 99); por outro
lado, o Brasil, encoberto pela imagem de uma “relação cordial19
”, só fez
19
Um conceito de “Raízes do Brasil”, Holanda (1995).
84
contribuir para o adiamento do combate ao racismo como uma questão social e o
adiamento da responsabilidade do Estado em pensar uma sociedade por uma
educação antirracista. Para esse autor, só mais tarde é que muito das ações das
políticas de ação afirmativa americana vão chegar ao Brasil através de parcerias
com a Fundação Ford – FF, tradicional em apoiar as causas sociais voltadas para
as minorias e principalmente para os negros, nos Estados Unidos. É a FF que
passa a fomentar pesquisa e programas, como coloca o autor:
[...] replicaram nas universidades brasileiras os modelos de
estudos étnicos e de “relações raciais” aplicados nos EUA e
consolidaram uma rede de organizações racialistas que
começaram a reproduzir os discursos e demandas das similares
afro-americanas. Por essa via, a polaridade branco/preto, que se
coagulou nos EUA com a regra da gota de sangue única, foi
exportada para os ativistas no Brasil, um país atravessado por
desigualdades sociais muito diferentes e cuja tradição identitária
articulou-se em torno da ideia de mestiçagem (MAGNOLI,
2009, p. 98).
De fato, o discurso americanizado tocante às políticas multiculturais foi
encampado pelos movimentos sociais e ONGs recentemente, mas, por outro lado,
é não deixar de ser um exagero, por parte do autor, dizer que a incorporação de
ideias importadas tenha suscitado a regra da “gota de sangue”, quando, na
verdade, mesmo sendo uma nação mestiça, no Brasil não foi eliminada a divisão e
o preconceito por cor. Aqui a cor da pele é o marcador a causa do racismo.
Quanto mais escuro for o tom da pele, maiores são as barreiras sociais e culturais.
Ao mesmo tempo, o fato dos movimentos sociais se inspirarem no modelo de
programas de ação afirmativa americanos, não seria demérito, ao contrário, isto é
o que Santos (2006) conceitua de hermenêutica diatópica, uma forma, uma
atitude política de canalizar as semelhanças do Outro para reparar e afirmar a sua
diferença. Como ele explica:
A hermenêutica diatópica baseia-se na ideia de que os topoi de
uma dada cultura, por mais fortes que sejam, são tão
incompletos quanto a própria cultura a que pertencem. Tal
incompletude não é visível do interior dessa cultura, uma vez
que a aspiração à totalidade induz a que se tome a parte pelo
todo. O objectivo da hermenêutica diatópica não é, porém,
atingir a completude – um objectivo inatingível – mas, pelo
contrário, ampliar ao máximo a consciência de incompletude
mútua através de um diálogo que se desenrola, por assim dizer,
com um pé numa cultura e outro, noutra. Nisso reside o seu
caráter diatópico (SANTOS, 2006).
85
No Brasil e em lugar nenhum o multiculturalismo é consenso, é, na
verdade, um conceito contestado. Isto é fato. Assim como há os seus defensores
que têm se posicionado em defesa da reparação e a favor do reconhecimento
social das minorias, há os seus opositores que insistem em dizer sê-lo inadequado
para a sociedade brasileira, como foi o caso expresso à época pela mídia nacional
sobre a seguinte posição: “qual o projeto de país que se quer? Uma sociedade com
valores para todos ou “multiculturalista”, com tensões raciais, avessa à
miscigenação, uma de suas marcas atávicas” (O GLOBO, 2009) 20
, ou o
extremismo anunciado das “Divisões Perigosas”, livro organizado por Fry e
Maggie (2007), no qual os autores denotam um certo alarmismo ao dizer sobre a
possível divisão racial entre negros e brancos se os projetos de lei, do Estatuto da
Igualdade Racial e o das “cotas raciais” de acesso ao ensino superior fossem
aprovados. Contudo, apesar da manifestação por parte do setor conservador contra
o multiculturalismo, hoje a sociedade vive um outro momento em que, pode-se
dizer, os multiculturalistas venceram a resistência com a aprovação do Estatuto e
com as cotas raciais, que nem por isso dividiu racialmente a sociedade, ao
contrário disso, as políticas de ação afirmativa têm contribuído para integrar
socialmente o negro que estava dividido entre dentro e fora da universidade.
Na educação, o multiculturalismo tem história. Como tal, ele é um
fenômeno iniciado pelos movimentos sociais contra a cultura hegemônica euro-
americacentrista que “tem sua origem nos países dominantes do Norte”, segundo
Silva (1995, p. 85). Para ele, esse é um movimento legítimo de reivindicação dos
grupos sociais em que o mesmo “não pode ser separado das relações de poder”
pelo fato de abrigar culturas, raças, etnias e interesses sociais diferentes. Nesse
sentido, o multiculturalismo poderia ser visto a partir de diferentes tendências.
Para Banks (2006), toda educação tem um fim em si mesma. No caso da
educação multiculturalista, seu fim seria resgatar e combater injustiças do passado
que, no presente, têm causado desrespeito social. A educação multicultural teria
como fim valorizar as “raças” alijadas da cultura nacional, de modo que a cultura
excluída do currículo fosse incluída de forma positiva e sem estereótipos.
Contudo, segundo o autor, para que isso ocorresse, seria fundamental fazer a
20
Este texto é uma nota de prefácio da contracapa do livro “Uma gota de sangue: história do
pensamento racial”, 1ª Edição (MAGNOLI, 2009).
86
reforma do currículo escolar, que, como tal, seria voltado para uma educação em
que a diferença do outro fosse resgatada e valorizada. Nesse sentido, a reforma
devia atender à inserção de novos conhecimentos a respeito da história do negro e
qualificar o professor para executar este tipo de educação, visto que a primeira
formação do professor ainda é frágil e incipiente o processo político e pedagógico.
Para tanto, o autor propõe alguns apontamentos para o que seria uma
educação multicultural na sua concepção: i) a tentativa de fazer uma integração de
conteúdos no sentido de estabelecer propostas interdisciplinares, como, por
exemplo, a área das Ciências Humanas com a área de Códigos e Linguagens, com
disciplinas da Arte e Literatura. Para ele, essas áreas apresentariam menor
resistência para desenvolver atividades numa perspectiva interdisciplinar. ii) a
construção do conhecimento: o professor, na sala de aula, deveria auxiliar o aluno
a compreender como são construídos os processos de conhecimento e a função
social do mesmo. Seria uma das atribuições do professor explicar para o aluno que
o conhecimento é um discurso organizado, e como tal é sistematizado e que todo
conhecimento é circular: ele veicula através de livros, jornais, televisão, ou em
outros espaços, como centro de estudos e de pesquisas, e estaria imbuído de poder
de uma visão pessoal de raça, etnia de quem ou do grupo social que o produz.
Neste sentido, o professor auxiliaria o aluno para que o mesmo desenvolvesse
habilidades para se tornar um leitor crítico dos conteúdos escolares, para que ele
aprendesse a decodificar e a interpretar os discursos, as narrativas dos conteúdos
do programa do currículo. O conhecimento é o objeto do currículo e, esse, muitas
vezes, é constituído sob a ótica e o interesse de quem o produziu. iii) a redução do
preconceito. “A redução de preconceitos descreve as lições e atividades que
professores usam para ajudar os alunos a desenvolver atitudes positivas para com
diferentes grupos raciais, étnicos e culturais” (Ibidem, 2006, p. 28). Atividades
desse nível seriam orientadas a partir do livro didático e de outros materiais que
descrevessem de forma positiva a história do negro e, sob essa orientação, o aluno
aprenderia a analisar e a fazer reflexões críticas a respeito dos conteúdos
racializados que estão contidos nos livros didáticos.
Para Candau (2008), o multiculturalismo é um conceito que opera a partir
de diversos tipos de abordagens. Dentre as abordagens, a autora opta pela que
denominou de interculturalismo. Segundo ela, essa dimensão romperia com a
87
visão essencialista em que um grupo ou uma cultura seriam valorizados em
detrimento de outras, porque, se isso acorrer, pode contribuir para a formação de
guetos culturais. E, ao contrário disso:
A perspectiva intercultural que defendo quer promover uma
educação para o reconhecimento do “outro”, para o diálogo
entre os diferentes grupos sociais e culturais. Uma educação
para a negociação cultural, que enfrenta os conflitos provocados
pela assimetria de poder entre os diferentes grupos
socioculturais nas nossas sociedades e é capaz de favorecer a
construção de um projeto comum, pelo qual as diferenças sejam
dialeticamente incluídas (CANDAU, 2008, p. 23).
Para a autora, esta perspectiva ao trabalhar a cultura promoveria uma
educação para o reconhecimento do Outro. Isso significaria a valorização das
diferentes culturas no espaço escolar. O interculturalismo, como uma prática
pedagógica, serviria para a inclusão social, para a valorização da diferença e para
minorar a desigualdade e a injustiça social.
Para Canen (2001), o multiculturalismo seria um conceito que pode
aparecer em diferentes perspectivas e sob diversas categorias de análise. O
multiculturalismo crítico, por exemplo, seria uma dessas categorias cujo objetivo
seria desafiar preconceitos e estereótipos, e abrir precedente para a discussão a
respeito da cidadania daqueles que, até então, se encontravam em estado de
invisibilidade, como o caso do negro que, muitas vezes, ainda é vítima de
preconceito racial. No multiculturalismo crítico, os conteúdos e os programas são
interrogados no sentido de saber em que medida as narrativas raciais refletem de
forma positiva ou negativa as raízes históricas e culturais de um grupo étnico e,
nesta perspectiva, propor mecanismo de combate a preconceito e a discriminação
a favor de uma educação para a igualdade etnicorracial.
Uma outra perspectiva defendida pela autora seria o multiculturalismo
conservador, de tendência e de valorização folclórica, intrinsecamente
relacionado à cultura oficial prescrita nos currículos e nos programas e conteúdos.
Geralmente é comum, nessa tendência, o cumprimento do calendário festivo da
escola, planejado com atividades pedagógicas com o fim de resgatar as datas
cívicas importantes. Tais atividades estariam voltadas para a comemoração da
diversidade da cultural nacional, como o “Dia do Índio”, ou o “13 maio” o que
celebraria a diversidade de identidades culturais e reafirmaria o seu valor; por
88
outro lado, não questionaria o caráter da sua “construção e nem os discursos que
as congelam em estereótipos e preconceitos” (CANEN, 2006, p. 39).
Portanto, que cada autor, do seu ponto de vista, deu um sentido ao
multiculturalismo para a educação. A nossa ideia foi elencar um conjunto de
temas que denotasse reconhecimento, diferença, diálogo, ou seja, uma gama de
possibilidades para pensar o campo do currículo a partir da diversidade cultural,
pensar o espaço no sentido de que ele seja visto como um sujeito que tenha direito
de ter o direito de se expressar sobre de si mesmo, através das linguagens ao seu
alcance, da sua visão de mundo, no campo da Arte, da Literatura, da História e da
Geografia. Estamos convictos de que o multiculturalismo vem no sentido de
pensar como viver a diferença da diferença na igualdade, ou seja, como
reconhecer as diferenças culturais entre negros e brancos e outras etnias, as
diferenças de sexo, religião, sem se esquecer de que juridicamente, perante a lei,
todos são iguais. Porém, na igualdade, o diferente é discriminado. Por isso,
direitos desiguais para os desiguais.
Com relação à igualdade social do negro, vimos que, durante o regime
escravagista, ele foi reconhecido como um desigual, razão pela qual justificou-se
o regime escravagista. Com a Abolição, o negro foi reparado juridicamente como
um igual, entretanto, mesmo na igualdade, ele continuou a ser discriminado, visto
que ele não foi reparado socialmente e as suas diferenças culturais não foram
totalmente reconhecidas.
Como será visto no capítulo 4 desse estudo, nas narrativas sobre o negro e
a cultura afro-brasileira, os autores destacaram: a escravidão, a origem histórica,
as lutas sociais, a Abolição, a raça, a renda, e o resgate da culinária, da música, da
dança, da língua e etc, no discurso da cultura nacional. Esses são os referenciais
étnicos e raciais que nos fazem iguais e diferentes, que nos afirmam enquanto
brasileiros diante dos não brasileiros.
Nesse sentido, apresentamos teoricamente dois pensadores brasileiros que
analisam enfoques diferentes sobre o negro no Brasil. Cada um, na sua grandeza,
dedicou-se a resgatar o legado da cultura afro-brasileira, a luta do negro pelo seu
reconhecimento na diferença e na igualdade na formação e na integração da
civilização dos trópicos. Freyre (1998) e Fernandes (1978; 2008) refletiram de
89
forma profunda e de maneira importante para o pensamento social, contribuindo
para afirmar a identidade nacional sobre o que é ser brasileiro. Todavia, no atual
momento em que se exige repensar, com a lei 10.639/03, o ensino de Geografia
no que tange à questão etnicorracial, resgatar a visão de cada um é indispensável,
visto que, até hoje, o discurso freyriano é reproduzido como pano de fundo das
reflexões sobre a cultura afro-brasileira nos livros didáticos de Geografia,
principalmente no que se refere à dança, à música, à culinária e à religião, sob o
otimismo e a valorização dos elementos culturais dos signos africanos resgatados
por ele; e no que tange à renda, à raça e ao racismo, marcadores sociais da
integração do negro na sociedade de classe, a visão fernandiana se torna o
contraponto da realidade social do negro na sociedade brasileira nos anos 50.
Êxodo rural, habitação, educação, luta por reconhecimento moral, trabalho, renda,
tudo isso inquietou Fernandes (1978; 2008) e levou a desafiar o imaginário
nacional do “paraíso” racial que diziam ser o Brasil ao revelar a situação
desestruturadora em que se encontrava o negro na cidade grande. Dois quadros,
duas visões diferentes do Brasil: a casa-grande e a cidade grande, como mostra o
próximo capítulo.
90
3. O NEGRO, DA CASA-GRANDE À CIDADE GRANDE
Por que “Casa-Grande e Senzala” e a “A Integração do Negro na
Sociedade de Classes” são duas obras referências para fazer o resgate da cultura
afro-brasileira, no ensino de Geografia? Em “Casa-Grande e Senzala”, Freyre
(1933) 21
faz uma síntese sociocultural sobre a formação social brasileira,
utilizando a cultura para olhar o passado, sobre o qual avistou uma nação cujo
futuro certo era multirracial e miscigenado. À época, isso contradizia as
tendências pessimistas baseadas no determinismo geográfico do meio natural e no
determinismo biológico baseado no conceito de raça, o que era dominante no
pensamento social brasileiro. Nesse sentido, Freyre (1933) apresentava uma
interpretação com base na cultura pela qual ele defendia a importância do
encontro e da construção sociocultural das três raças, o que fazia com que a
mestiçagem passasse a ser vista como uma tendência positiva na construção da
identidade nacional. Três décadas depois dessa obra, Fernandes (1964) 22
publicou
“A Integração do Negro na Sociedade de Classes”, trabalho fruto de uma densa
pesquisa de campo, a partir da qual ele passou a refletir sobre a emergência do
negro na ordem competitiva da cidade de São Paulo, onde o maior desafio seria a
sua integração social e o acesso à distribuição de renda. A luta travada pelo negro
que seria para conquistar o direito de ser reconhecido igual ao branco. Ele havia
alcançado um novo patamar de entendimento da sua realidade social, dizia
Lucrécio (1978), “e, assim, o negro moderno, da era nova, era de força e de
inteligência, não quer mais ficar na cozinha da nação. Hoje, ele tem um caminho a
seguir e, seguindo-o, vai ficar na sala de visitas” (Apud FERNANDES, 1978,
p.110). Na verdade, o seu desejo agora era a sua ascensão social, o que traduzia a
busca pela igualdade de status e da mobilidade na sociedade de classes na urbe
paulistana, porque, embora fosse livre, o negro continuava à margem da
sociedade, alijado de políticas e de programas sociais que efetivamente o
integrassem.
21
Ano de lançamento. 22
Ano de lançamento.
91
Casa-grande e Senzala representa a síntese daquilo que o Brasil devia ser,
um país multirracial e orgulhoso da sua pertença multicultural, como dizem
Larreta e Giucci (2007, p 423), da “integração dos contrários”. Negros e brancos
seguiam o mesmo caminho, porém de lados opostos. Sobre um outro momento,
pós “casa-grande”, a cidade de São Paulo, ícone da modernidade brasileira, ainda
era o lugar em que a desigualdade e o racismo constituíram um hiato na
“integração do negro na sociedade de classes”.
3.1 A cultura afro-brasileira e Gilberto Freyre
Do ponto de vista deste pesquisador, refletir a respeito da cultura afro-
brasileira em Casa-grande e Senzala é uma grande responsabilidade, tendo em
vista a grandeza e a capacidade de Freyre (1933) que, com essa publicação,
cravou um marco na interpretação social do Brasil pela profundidade histórico-
cultural com que ele conseguiu erguer o passado fadado ao fracasso pelo
determinismo biológico, e trouxe como discurso da cultura a importância da
nação tropical e a colocou entre as civilizações do ocidente. Em síntese, Casa-
grande e Senzala nos impressiona pela sua capacidade de retratar o Brasil sob a
dimensão da cultura, da família e da economia e, ao mesmo tempo, de cruzar o
viver e a tensão de cada “sujeito-etnicorracial” uma vez que, pela dinâmica da
cultura, europeu, africano e o índio foram capazes de construir um
reconhecimento sobre si mesmo e sobre o Outro. Acreditamos que, sob essas
dimensões, o autor faz um resgate, a partir do século XVI, dos sujeitos-
etnicorraciais: ressalta a importância da cultura trazida pelo colonizador e, nesse
mesmo sentido, resgata também o seu entendimento com relação àquilo que ele
precisava para então desenvolver e avançar no processo de ocupação, entendendo
ser a família a célula social mais importante na manutenção do processo que então
seria implantado. Daí a importância do lugar que a casa-grande vai ocupar no
enclave açucareiro, como diz o autor: “vivo e absorvente órgão da formação social
brasileira, a família colonial reuniu, sobre a base econômica da riqueza agrícola e
do trabalho escravo, uma variedade de funções sociais e econômicas” (FREYRE,
1998, p. 22).
92
Passamos a usar a aqui o termo sujeito-etnicorracial, um conceito
proposto por nós, por entender que Casa-grande e Senzala vê a colonização
portuguesa pela janela da cultura, e a cultura aqui é vista como o meio pelo qual
todo e qualquer sujeito traz consigo um potencial psicossocial. O índio e o
africano, é sabido, foram subjugados pela escravidão, entretanto, isso não lhes
retirou o Eu, o potencial de sujeito e, como tal, cada um, a partir da sua “raça” e
da sua etnia, fez a sua história. Ainda que numa posição inferior da estratificação
social, mesmo assim passou a ocupar um lugar dentro do projeto civilizacional, o
que Casa-grande e Senzala não se furtou de retratar: a saga do indígena, assim
como de traduzir o realismo do mais baixo da degradação humana pelo qual o
africano foi socialmente reconhecido como um animal, pois a escravidão era uma
condição criada e implantada pelo regime escravagista. Todavia, contra isso, é
preciso dizer: ninguém nasce escravo. A escravidão é uma condição socialmente
construída, justificada, em que um, para ser o senhor, a existência do Outro tinha
de ser a de escravo.
Embora o Outro estivesse na condição de objeto, ou seja, de coisa, porque
assim o escravo era construído, ele era sujeito. A luta com o senhor era um
combate de vida ou morte, porque o que estava em questão era a liberdade de um
em detrimento da do Outro. A prova de que o escravo era também um sujeito-
etnicorracial estava na sua resistência contra o senhor. Este, para continuar como
tal, usava de todos os tipos de violência física e simbólica, para com o escravo.
Por outro lado, o escravo evidenciava o seu desejo da construção-de-si, como diz
Hegel (2011), o que continuava a existir ao fugir do jugo do senhor e ao buscar
uma sociedade em que ele fosse visto como um igual – e o quilombo seria um
desses lugares.
Todavia, para o escravo que ficou na casa-grande, a senzala foi o seu
lugar. Freyre (1933), olhando para o passado da “janela” da cultura, fez da casa-
grande e da senzala um lugar, “tipo” uma instalação de arte23
, um espaço da
23
Acredita-se que esse olhar inédito trazido por Freyre (1933), da forma com que ele apresentou o
ambiente cotidiano da casa-grande e da senzala, o realismo com que descreveu o africano, tenha
sido influenciado, quando esteve na Alemanha, antes de conceber a obra, em Munique por um
Museu Etnológico, em que havia uma exposição com pigmeus reais. Daí, ele disse que estaria
comprometido a interpretar o Brasil como o “mais real que o real”, (Apud LARRETA, GIUCCI,
2007, p.414), ou seja, o autor trouxe para a sua obra aquilo que o expressionismo alemão dizia
mostrar - o realismo natural.
93
manifestação sociocultural em que todos os personagens foram elencados naquele
sistema, porém, sem perder de vista as vozes dos sujeitos-enticorraciais que
davam vida àquele espaço social. Feito de engenho, senzala e casa grande, e de
onde ele buscou resgatar, a partir do século XVI, a depravação, a promiscuidade
do senhor para com o escravo, mas, ao mesmo tempo, o escravo é aquele que
ocupa um lugar e, isso faz com que as fronteiras das zonas culturais se
sobrepusessem. Essa sobreposição de fronteiras vai ser chamada pelo autor de
elasticidade do português colonizador para com os índios e africanos. Segundo
Freyre (1998), isso pode ser visto desde os primeiros cruzamentos raciais, em que
o critério biológico não era o mais importante no processo de ocupação e para o
desenvolvimento da economia. Para o colonizador afirmar vinha primeiro a
identidade de cristão do que pureza de raça. O perigo não estava no estrangeiro,
nem no indivíduo de origem primitiva, ou em um homem de raça degenerada. O
que ele não podia ser é herege. Como ele explica:
O Brasil formou-se, despreocupados os seus colonizadores da
unidade ou pureza de raça. Durante quase todo o século XVI a
colônia esteve encarada a estrangeiros, só importando às
autoridades coloniais que fossem de fé ou religião Católica
(FREYRE, 1998, p. 29).
Fé e negócio andavam juntos. O colonizador tinha como aliado as coisas
do céu e o domínio da terra. O clima, por exemplo, seria favorável para o
desenvolvimento da cultura do açúcar e, com isso, superava o determinismo
geográfico, as condições naturais, clima o oposto ao do colonizador que havia
emigrado de uma área de zona climática temperada para o lado tropical, ou seja,
“a importância do clima vai sendo reduzida à proporção que dele se desassociam
elementos de algum modo sensíveis ao domínio ou à influência modificadora do
homem” (Idem, 1998, p. 16). Nesse sentido, a cultura, como potencial
transformador do meio, foi determinante na adaptação e na invenção da
civilização, ainda que escravocrata, híbrida. Os marcadores biológicos foram
diluídos e flexibilizados pela miscigenada. Casa-grande e Senzala, potencializa os
povos africanos como sujeitos-etnicorraciais pela diferença de cultura que eles
traziam, pelas suas diferentes visões de mundo, como os tipos de manejos da terra,
as línguas, dialetos, culinária, música, dança, religião, o que possibilitou a
sobreposição com outras culturas, com elementos e signos trazidos pelos europeus
94
e indígenas, a coexistência das diferenças, levou à formação da civilização
brasileira.
Casa-grande e Senzala apresenta um quadro natural da paisagem do
Brasil, em que o determinismo geográfico foi superado à medida que o
colonizador português foi se adaptando, e foi ressignificando a sua cultura a partir
da cultura do Outro, graças à sua mobilidade e à sua plasticidade que lhe
permitiram, como diz o autor, fazer o hibridismo social. Nesse sentido,
perguntamos: como os domínios naturais, como o clima e a raça, foram vencidos
já que eles representavam obstáculos para se estabelecer numa região
dominantemente tropical e para construir a civilização? Nesse processo de
formação, qual foi a importância da culinária e como foi possível recriar um
regime alimentar diferente, tipicamente brasileiro, na civilização dos trópicos?
No que tange ao clima e à raça, Casa-grande e Senzala tem a capacidade
de dialogar profundamente com os paradigmas deterministas e dominantes da
época e de estabelecer contrapontos com o campo da Antropologia positivista do
século XIX, como também confrontar as tendências do determinismo biológico,
preconizado pelas correntes da Antropogeografia, essas muito expressivas no
pensamento social brasileiro do século XIX e em alta até a década de 30 do século
seguinte. A Antropogeografia foi a base para o ensaio, “Populações meridionais
do Brasil” de (VIANA, 1920).
Com base na Antropologia Cultural, Freyre (1998) é assertivo ao dizer da
capacidade cultural do colonizador português de se hibridizar com o africano,
sobretudo com a cultura maometana, o que lhe possibilitou o cruzamento, no qual
a miscibilidade teve o maior peso, graças a sua flexibilidade para cruzar sexual e
culturalmente com outros povos. Em Casa-grande e Senzala, a obra afirma a
predisposição do português para a “colonização híbrida e escravocrata nos
trópicos” (Idem, 1998, p, 5), fundamentada segundo Freyre (1998), no passado
étnico do português, um povo indefinido pela fato de sua cultura ser uma mistura
com a cultura africana antes mesmo da colonização nas Américas. Como ele diz:
A influência africana fervendo sob a europeia e dando um acre
requeime à vida sexual, à alimentação, à religião; o sangue
mouro ou negro correndo por uma grande população brancarana
quando não predominando em regiões ainda hoje de gente
95
escura; o ar da África, um ar quente, oleoso, amolecendo nas
instituições e nas formas de cultura as durezas germânicas;
corrompendo a rigidez moral e doutrinária da Igreja medieval;
tirando os ossos ao Cristianismo, ao feudalismo, à arquitetura
gótica, à disciplina canônica, ao direito visigótico, ao latim, ao
próprio caráter do povo. A Europa reinando mas sem governar;
governando entes a África (FREYRE, 1998, p. 5).
Casa-grande e senzala, numa visão macroespacial, mostra que o encontro
do português com os africanos possibilitou a ruptura com os marcadores rígidos
biológicos ao se tornar intenso o cruzamento racial do colonizador com o
colonizado. Daí na gradação multicor de classificação a figura do mulato, do
pardo, do moreno. Na religião não foi diferente. Embora a matriz africana tenha
sido perseguida e proibida pelo poder oficial, ela sincretizou e se oficializou no
imaginário nacional com elementos e visões de ambos os lados. Hoje, o ritmo o
canto, o vestuário e a dança do povo negro são reproduzidos no carnaval, no
samba e na música popular brasileira, graças ao que foi reproduzido pelas
religiões africanas. O catolicismo, como a primeira religião oficial, recebeu a
influência das religiões de matriz africana à medida que cada lado influenciava o
outro. Por isso, o autor diz que, do encontro entre as partes, foi flexibilizada a
rigidez, à proporção que as trocas aconteciam.
Casa-grande e Senzala mostra uma civilização não pela suposta igualdade
de raça, mas pela diferença de cultura. A obra não se prendeu ao determinismo
biológico da raça e muito menos ao determinismo geográfico que se punha contra
o colonizado. Contra a força do clima e do meio, o português já trazia a
experiência da aclimatação, fruto da experiência, do contato com regiões da
África. Na culinária, cada lado trouxe o seu conhecimento, o seu tempero e as
suas ideias. Um encontro de “juntos e misturados” foi determinante na formação
da cozinha, um espaço híbrido, hoje um ícone da identidade nacional. Por ela, é
possível conhecer em que medida foi importante a cultura do africano com relação
à formação do povo brasileiro.
Para Freyre (1998), o sistema de monocultura, cuja organização era
escravocrata, foi o fator mais importante que impediu o desenvolvimento de um
regime alimentar mais variado e sadio, tendo em vista que havia terra e em
abundância para isso. Mas a forma com que foi conduzido o sistema político e
econômico durante os primeiros séculos, a escassez de produtos alimentícios
96
frescos, como ovos, leite, carne acontecia porque a policultura, ou os pequenos
produtores rurais, eram desimportantes. Aqui predominou o regime patriarcal,
monocultor e escravocrata. A cozinha brasileira é fruto do encontro das
diferenças, da invenção do novo, da possibilidade de se fazer uma gastronomia
das propriedades naturais nascidas da terra, que passaram a ser ressignificadas
pela cultura trazida do africano que “dominou” a mesa da casa-grande, e fez o que
hoje é a cozinha nacional. Tem-se uma dieta balanceada com o hábito do consumo
de folhas e de legumes graças a misturas dos condimentos, dos temperos, que
foram reinventados na cozinha nacional com uma identidade genuinamente
brasileira.
No regime alimentar brasileiro, a contribuição africana afirmou-
se principalmente pela introdução do azeite-de-dendê e da
pimenta-malagueta, tão característicos da cozinha baiana; pela
introdução do quiabo; pelo maior uso da banana; pela grande
variedade na maneira de preparar a galinha e o peixe. Várias
comidas portuguesas ou indígenas foram no Brasil modificadas
pela condimentação ou pela técnica culinária do negro, alguns
dos pratos mais caracteristicamente brasileiros são de técnicas
africana: a forofa, o quibebe, o vatapá (FREYRE, 1998, p. 453).
Seríamos aquilo que comemos? Casa-grande e Senzala resgata a
importância da cozinha como um ícone da cultura nacional, como aquilo que nos
define como brasileiros. A cozinha, do ponto de vista da cultura, cria uma
identidade entre nós e nos define como aquilo que nós somos. Tomemos
emprestado o conceito explanado por Woodward (2009, p. 42), quando diz que:
“A cozinha é o meio universal pelo qual a natureza é transformada em cultura”. A
cozinha é também uma linguagem pela qual “falamos” sobre nós mesmos e sobre
nossos lugares no mundo. No início desta seção, cunhamos o conceito sujeito-
etnicorracial, ao que parece indispensável no discurso de Casa-grande e Senzala.
O autor resgata o lugar do afro-brasileiro a partir da cozinha sem conotação
diminutiva do seu prestígio. Ao contrário, afirma o seu potencial a partir de um
espaço genuinamente nacional do qual o brasileiro deve se orgulhar. A cozinha é
um espaço de encontro de diferentes hábitos, que transformam a natureza em
cultura e em sabor com aquilo que identificamos como bom e comum. É o caso da
feijoada. Hoje, é um prato típico da cozinha nacional. Apesar de a sua origem ser
contestada, reza o mito ser um prato inventado pelos escravos. O importante é que
com ela nos identificamos e por ela somos afirmados.
97
Casa-grande e Senzala passou a representar um divisor na interpretação
social do Brasil ao resgatar a miscigenação do povo de forma positiva, diferente
do pensamento hegemônico que, à época, postulava o determinismo biológico que
afirmava ser a mistura das sub-raças africanas e indígenas a causa da nossa
inferioridade comparada com as civilizações europeias. Para Freyre (1933), o
Brasil havia dado certo pela sua miscibilidade, hábito desenvolvido anterior
mesmo à colonização, o que ele chamou de flexibilidade do português por ter o
mesmo aprendido a conviver com outros tipos de culturas, o que fez da raça um
marcador desimportante, o que levou à sobreposição das diferentes fronteiras
étnicas que passaram a definir genuinamente uma civilização híbrida na zona
tropical.
O hibridismo da civilização brasileira foi refletido em Casa-grande e
Senzala sob muitas dimensões. Entre elas, a língua e sua variação, que passou a
ocupar um lugar trazido pelos diferentes contextos históricos e geográficos dos
grupos sociais que construíram a língua portuguesa brasileira. A língua é uma
construção social, portanto ela é dinâmica. Com ela, na casa-grande não havia
fronteiras rígidas entre o senhor e o escravo. Ela era o meio pelo qual cada um
significava aquele mundo social. Participava o escravo da educação do sinhozinho
ou da sinhazinha. Esses, ainda no berço, eram acompanhados pela (o) escrava (o)
com quem aprendiam as primeiras palavras. Nesse contexto, ao longo dos séculos,
como um fator variante, a língua foi amolecida pelos africanos, como expõe o
autor:
Da boca africana aliada ao clima – outro corruptor das línguas
europeias, na fervura por que passaram na América tropical e
subtropical. [...] A linguagem infantil brasileira, e mesmo a
portuguesa, tem um sabor quase africano: Cacá, pipi, bumbum,
tentem, nenen, tatá, papá, papato, lili, mimi, au-au, bambanho,
cocô, didinho, binbinha. Amolecimento que se deu em grande
parte pela ação da ama negra junto à criança; do escravo preto
junto ao filho do senhor branco (Ibidem, 1998, p. 331).
A interlocução entre os sujeitos sociais na casa-grande era na língua oficial
portuguesa, mas, ao mesmo tempo, muitos significados eram deslocados por
outros sentidos nas línguas e dialetos africanos falados e adaptados pela (o)
escrava (o), como nas canções de ninar:
98
Também as canções de berço portuguesas, modificou-as a boca
da ama negra, alterando nelas palavras; adaptando-as às
condições regionais; ligando-as às crenças dos índios e às suas.
Assim a velha canção “escuta, escuta, menino” aqui amoleceu-
se em “durma, durma, meu filhinho”, passando Belém de
“fonte” portuguesa, a “riacho” brasileiro. Riacho de engenho.
Riacho com mãe-d’água dentro, em vez de moura-encantada. O
riacho onde lava o timãozinho de nenê. E o mato ficou povoado
por “um bicho chamado carrapatu” (Idem, 1998, p. 327).
A casa-grande era um complexo rural, construído com base num sistema
econômico, latifundiário, monocultor e escravocrata. Socialmente, familiar e
patriarcal. Geograficamente, um “microssistema” colonial e, pela sua extensão
territorial, distante um do outro. A vida social e a cultura eram ressignificadas e ao
mesmo tempo misturadas e separadas. Eram constituídas por dois lados: a casa-
grande e a senzala, o branco e o preto, o europeu e o africano, o “sinhozinho” e o
moleque de “pancadas”. Era a fronteira dos extremos: de um lado o senhor e do
outro o escravo, mas, ao mesmo tempo, rompida pela emergência do hibridismo
gerado pelas trocas culturais, na língua, na culinária, na música e na religião, que
se fundiam sob os diferentes tipos sincretizados na alegria e na disposição trazidas
pelas danças dos terreiros nas festas dos santos. Para o autor:
foi ainda o negro quem animou a vida doméstica do brasileiro
de sua maior alegria. O português, já de si melancólico, deu
no Brasil para sorumbático, tristonho; e do caboclo nem se
fala: calado, desconfiado, quase um doente na sua tristeza.
Seu contato só fez acentuar a melancolia portuguesa. A risada
do negro é que quebrou toda essa “apagada e vil tristeza” em
que se foi abafando a vida nas casas-grandes. Ele que deu
alegria aos são-joões de engenho; que animou os bumbas-
meu-boi, os cavalos-marinhos, os carnavais, as festas de Reis
(Ibidem, p. 462).
De fato, tradições folclóricas são heranças herdadas do passado colonial e
ainda hoje é possível notar a presença da cultura afro-brasileira em todos os tipos
de manifestação popular no que diz respeito à música e à dança. Faz parte do
calendário cristão e muitas das manifestações são reconhecidas pelo Estado como
feriado nacional. O carnaval é exemplo. Hoje, ele está no imaginário social
brasileiro. A música é o samba enredo que narra o sentido da cultura nacional
celebrado com ritmo e gingado. Temos também o frevo, o maracatu, a congada, o
jongo, o mineiro-pau, e outros ritos que fazem a cultura popular e o folclore
brasileiro. Tudo isso faz de Casa-grande e Senzala uma síntese da riqueza do
99
Brasil ao resgatar o legado da diversidade que definiu a nação não pela raça, mas
pela cultura, que foi o determinante para nos afirmarmos enquanto brasileiros.
O outro elemento forte da cultura nacional resgatado em Casa-grande e
Senzala foi o sincretismo religioso. Um país de religião oficial Católica, a
flexibilidade foi determinante nas zonas e fronteiras culturais que misturou fé e
devoção, ligando os rituais cristãos aos orixás, fazendo uma matriz multicultural
da religião universal brasileira.
Verificou-se entre nós uma profunda confraternização de
valores e de sentimentos. Predominantemente coletivistas, os
vindos das senzalas; puxando para o individualismo e para o
privatismo, os das casas-grandes. Confraternização que
dificilmente se teria realizado se outro tipo de cristianismo
tivesse dominado a formação social do Brasil; um tipo mais
clerical, mais ascético, mais ortodoxo; calvinista ou rigidamente
católico; diverso da religião doce, doméstica, de relações quase
de família entre os santos e os homens, que das capelas
patriarcais das casas-grandes, das igrejas sempre em festas –
batizados, casamentos, “festas de bandeira” de santos
compadres, de santas comadres dos homens, de Nossas
Senhoras madrinhas dos meninos, que criou nos negros as
primeiras ligações espirituais, morais e estéticas com a família e
com a cultura brasileira.
Ainda que pareça ter um certo exagero, o otimismo exacerbado do autor ao
dizer dessa relação docial entre a casa-grande e a senzala, resgata o cotidiano, o
local da cultura, o lugar onde os interesses, as preferências, o gosto, e as escolhas
são negociados. No caso da religião, as festas e as manifestações de cultos têm a
capacidade de reproduzir outros tipos de territórios que não sejam os da casa-
grande ou a senzala. Guiados pela fé, no campo da religião as representações
sociais ganham outras conotações. Daí é compreensível as escolhas individuais e
coletivas como diz o autor. Tudo isso vai confluir para as escolhas pessoais, para
os compadrios em nome dos santos e de Deus.
Contudo, em Casa-grande e Senzala, o autor não se restringiu apenas em
afirmar positivamente sobre o cotidiano docializado do enclave colonial. Ele não
se eximiu de expressar todo realismo com que era desqualificado e reconhecido o
escravo na condição de coisa. Nesse sentido, ele retratou de forma contundente as
relações negativas e perversas, como também tratou de dizer da depravação moral
do cotidiano para com o escravo. No regime escravista, o engenho era o lugar
100
mais importante, porque o açúcar era o principal produto da economia agrária. Na
cadeia produtiva, o negro ocupava a função mais importante do ponto de vista da
produção, contudo, por outro lado, ocupava a posição mais baixa na escala
humana, tanto que, como indivíduo, ele não existia, o seu corpo estava alienado,
era uma coisa, um bem material do senhor. Haja vista que, a escolha do corpo
negro devia atender a um perfil de cultura no quadro social daquele sistema. O
qual considerava primordial: força e saúde e, que, moralmente, o negro fosse dócil
e obediente; Aquela sociedade prezava pela harmonia o que despotencializava os
conflitos sociais. Isto só era possível graças ao outro lado do engenho, daqueles
que faziam o controle - o senhor. Era na figura do senhor do sistema patriarcal que
toda a lógica do sistema girava na casa-grande. Por ela reproduzia-se e
perpetuavam-se os valores morais e sociais da sociedade escravagista.
Na casa-grande, o lugar de cada um era determinado pelo prestígio social,
que se dividia entre os que eram servidos e os que serviam; a relação era de uma
coexistência dos paradoxos: senhor e escravo conviviam sob o mesmo espaço
integrado e separado: o primeiro ocupava a sala de jantar, o segundo ocupava a
cozinha e, como tal, estava exposto a todo tipo de destratos sociais. A
subalternidade não se restringia apenas no servir à mesa. Na verdade, essa relação
tinha o seu início na tenra infância ao ser a criança escrava integrada numa
educação escravagista segundo a moral da família patriarcal. A educação
escravagista tinha como função inculcar na criança a relação do senhor e escravo,
ou seja, que o segundo visse no primeiro a gratidão, obediência e disciplina. A
criança branca era orientada por uma moral para produzir todo tipo de
desprestígio social e de sadismo para com a criança negra e esta era educada para
reconhecer a sua inferioridade com relação à criança branca; como tal devia estar
convencida de que socialmente, para a criança branca, ela era uma coisa, um
objeto ao seu alcance, algo de sua propriedade; à época, era muito usual na casa-
grande os pais presentearem o sinhozinho dando-lhe um negrinho, um tipo “mané-
gostoso”, e dele podia fazer o seu brinquedo ao prazer da sua imaginação. Ali
todo tipo de humilhação era comum. Sua sorte se misturava com o castigo e a
resignação de ser socializada num regime cuja estratificação nivelava na
inferioridade que sobre ela era imputada. (FREYRE, 1998).
101
Enfim, ao reerguer o passado patriarcal e escravagista e colocar o Brasil
entre as civilizações, Casa-grande e Senzala de fato representou a primeira visão
positiva do Brasil para o Brasil. Todavia, a incursão feita pelo autor, também
abordou o desrespeito, a depravação e a promiscuidade que mediava a relação do
senhor e escravo, mas, além disso, o autor faz o resgate da cultura afro-brasileira,
potencializa e reconhece a importância e a contribuição do africano na formação
social e cultural da civilização brasileira. Em Casa-grande e Senzala, a música, a
dança, a culinária, a língua e a religião formam a base da diversidade multicultural
e a identidade nacional.
3.2 O negro na sociedade de classes por Florestan Fernandes
Quando a escravidão foi abolida, o negro24
cativo deixou de ser coisa e
passou a existir como homem livre. Nesse mesmo contexto, no quadro
transicional pelo qual passava o Brasil, no setor econômico e social, ainda refletia
o pensamento de uma época imperialista que havia chegado ao fim. Com ela foi-
se embora a Monarquia e, agora, a sociedade haveria de se acostumar com o
espírito da modernidade, que trouxe consigo o Estado de Direito inspirado na
República liberal da igualdade e não mais do privilégio. Notadamente, Rio e São
Paulo passaram a liderar a política e a economia, principalmente no caso do
segundo e o oeste paulista, desde então, introduziu o trabalho livre no setor
cafeeiro. Novas relações de trabalho chegaram ao campo e, ao mesmo tempo, a
expansão da economia impulsionou o setor industrial. Dentro das primeiras
décadas do século XX, o país já contava com significativo avanço desse setor, o
que levou ao crescimento das cidades e à urbanização brasileira. Porém, nesse
novo cenário que se desenhava, a urbanização e a industrialização tornaram-se
concretos conscientes da realidade social que o negro precisava alcançar um lugar
de prestígio na paisagem urbana de mercados e fábricas. Contudo, o seu
despreparo profissional foi o determinante para que ele não alcançasse a igualdade
24
Fernandes (1964), na sua obra, A Integração do negro na sociedade de classes, para abordar a
questão do afro-brasileiro, utilizou as expressões “o negro” e “o mulato”. Neste trabalho, usamos a
categoria “o negro”, por ser uma expressão oficial usada pelo IBGE.
102
de competitividade com o branco imigrante, que encontrou melhores condições de
inclusão no emergente mercado que se despontava em São Paulo.
Em A integração do negro na sociedade de classes, entre os segmentos
étnicos, o negro era o que menos condições de competitividade possuía; isso o
colocava numa posição de desajuste social e tornava dramática a sua situação.
Além disso, tendo em vista a industrialização deflagrada, havia mudado também a
exigência no perfil do trabalhador e isso, quando somado à urbanização,
demandava por mão de obra qualificada, coisa que ainda estava longe da sua
realidade profissional. Na primeira metade do século XX, na cidade de São Paulo,
a maioria analfabeta, despreparada, sem estar à altura das ofertas do emergente
mercado, o negro encontrava-se encurralado, diz o autor, à beira de um abismo
social. Consciente de sua situação, ele entendeu que a sua ascensão social
dependia de profissionalização, emprego e renda, o que, desde então, os seus
problemas e a sua solução vieram a ser perseguidos por esses. Por outro lado, a
sua ressocialização não dependia apenas do seu esforço pessoal. Havia também
um segundo agravante que depunha contra ele, a cor de sua pele. Esse era o ranço
da raça, da sociedade escravagista reproduzido na sociedade livre, competitiva
que, embora se modernizasse, ainda era forte a mentalidade social de que a cor da
pele seria um marcador social e cultural, o causador de mal-estar, de destrato e de
racismo, como ele afirma:
Descobriu que ele não era rejeitado “por ser negro”, pura e
simplesmente. Mas, que a cor e outros caracteres raciais
serviam como um sistema de referência para mantê-lo como um
“estrato social inferior”, que não tinha acesso aos padrões de
vida e às garantias sociais desfrutados por outros grupos
nacionais, étnicos ou raciais (FERNANDES, 1978, p. 37).
Contra isso, o negro paulistano não aceitava a imagem de “preto” ou do
“homem de cor” construída pelo branco. O seu perfil político era de quem
buscava se afirmar como um sujeito de seu destino. Portanto, cabia a ele aceitar
viver sob o discurso da ordem dominante, de que os seus problemas eram apenas
de domínio social, ou então se opor ao discurso da igualdade racial e desconstruir
o mito de que no Brasil não havia racismo. Foi desse sentido que nasceu a então
“ideologia negra”, que tinha um fim: desmascarar a ideologia racial dominante e,
ao mesmo tempo, propor a integração econômica, social e política do negro na
sociedade paulistana (Idem, 1978, p. 94). Para o autor, o negro havia deixado o
103
campo e agora, como homem livre, senhor do seu destino, na cidade, ele buscava
um lugar no mercado de trabalho, disputava com o estrangeiro imigrante um lugar
na cadeia produtiva de uma cidade que expandia, e principalmente no setor
industrial. O negro da primeira metade do século XX acreditava que sua ascensão
social dependia de fazer valer a igualdade de direito preconizada na lei. Tinha
consciência de que sua integração dependia de educação, emprego, habitação e, ao
mesmo tempo, respeito à sua cultura e à cor de sua pele.
A integração do negro na sociedade de classes é o resultado de uma
pesquisa de cunho sociológico que tem como abordagem revelar um outro retrato
do Brasil, diferente de tudo visto até então sobre o negro. Nesse sentido, o autor
parte de dados amostrais que identificam os caminhos e os descaminhos do afro-
brasileiro após a Abolição, da sua transição do campo para a cidade. A forma com
que autor buscou retratar os espaços desiguais da paisagem urbana tornou-se algo
inovador pelo fato de sua abordagem dizer sobre os lugares desiguais vividos e
ocupados por esse segmento etnicorracial. Foi com base no passado ainda recente
que o autor buscou demonstrar os reflexos, o potencial de segregação que a
escravidão ainda fazia refletir sobre o negro na sociedade de classes. Para o autor,
isso ainda era um ranço herdado da escravidão e ainda muito presente nas relações
entre negros e brancos, desfavorável ao negro, visto que, além disso, comparado
com o branco, o seu preparo para o mundo do trabalho estava muito abaixo.
Na ordem competitiva não bastava ser livre, tinha que ter instrução, e isto
o negro não tinha. Como ocupar um lugar de status quando o alicerce, a base não
foi construída? Na ordem competitiva era assim: exigia-se a qualificação do
indivíduo, mas, para um recém-saído da escravidão, cujo conhecimento técnico
era somente de domínio das atividades agrárias, como se integrar na sociedade de
classes? Para o negro, após a Abolição, a busca pela ocupação foi de alguém que
aprendeu a subsistir na informalidade do mercado de trabalho com atividades de
baixo status social. A sua consciência de classe não era a de quem ocuparia o
“chão” da fábrica, porque, por muito tempo, este autopertencimento esteve longe
de ser a sua realidade por não possuir a qualificação requerida pelo mercado. Por
este exigir um perfil racial branco europeizado, a subida do negro na escala social
foi sendo adiada e afunilada. Na pirâmide, sempre esteve abaixo do branco. Como
se sabe, para o operário, no sistema capitalista, a sua relação de trabalho é
104
convertida em salário e é com ele, e através dele que o seu status de habitação,
saúde, alimentação é definido, ou seja, é definido o seu poder de consumo. Isto
explica o porquê de o sistema habitacional nas cidades ter ocorrido de maneira
desordenada. No caso do negro, além de baixa renda, a cor de sua pele pesava
contra ele, o que o colocava numa situação de incapacidade para galgar a ascensão
social. No que tange à moradia, de imediato a sua a saída foi ocupar os cortiços e,
mais tarde, pressionado pelo mercado imobiliário, foi empurrado do centro para
os morros e para as baixadas das periferias. De resto, só lhe sobram as áreas de
mananciais, irregulares, e áreas de risco que ganharam o nome de favela.
Na sua integração social na sociedade de classes, para que o quadro de
desigualdade fosse revertido, denunciar a sua verdadeira realidade era uma forma
de combater as injustiças que recaiam sobre ele. Ainda que de forma incipiente,
para a periferia de São Paulo foi muito importante a criação da “imprensa negra”,
uma iniciativa das comunidades afro-brasileiras, que através dos jornais evocava o
negro recém-saído do campo a lutar pelo seu reconhecimento social; ao mesmo
tempo, expunha a desigualdade com relação à habitação, trabalho e educação. As
vozes dessas comunidades revelavam o drama do cotidiano enfrentado duramente
pelo negro num lugar de desiguais. O espaço urbano da época apresentava,
segundo Fernandes (2008), o seguinte quadro:
Como cidade em crescimento rápido, São Paulo exercia enorme
atração sobre os grupos demográficos ou étnicos com
tendências migrantes. Por isso, não é de estranhar que se
convertesse em um dos centros urbanos que iriam polarizar as
variadas e desencontradas migrações internas das “massas
negras”, que se distribuíam pelo país logo após o colapso final
do regime escravo (FERNANDES, 2008, p. 78).
Foi neste tempo de franca expansão industrial e de crescimento de
serviços, que, no cenário urbano, o negro emergiu em busca de sua afirmação
como o dono da sua própria voz, passou a disputar um lugar no mercado de
trabalho enquanto ao mesmo tempo, aspirava ser um cidadão, alguém de prestigio
e de reconhecimento social. Mas, para isso, diz o autor, foi necessário ele
construir uma consciência social sobre si e, como grupo, desenvolver para-si o
arquétipo do coletivo negro, o que na verdade seria a sua consciência política e
social refletida através das organizações e dos movimentos sociais negros. Como
se sabe, toda consciência social nasce dos indivíduos e do desejo de se afirmar
105
enquanto pessoa e como grupo. Foi desse sentido que nasceu a “consciência
negra”. A partir dela foi que o negro passou a resgatar a sua história, e, para isso,
ele precisou criar uma identidade coletiva que refletisse a sua necessidade, assim
como as suas aspirações, ou seja, o seu desejo por reconhecimento de si e para-si
com diz Hegel (1998), porque, como parte desprestigiada da população, vivia, na
cidade de São Paulo, o desafio de resistir à desigualdade de classes entre negros e
brancos.
De fato, o negro recém-saído da escravidão sentia-se despreparado para
disputar um lugar de status no mercado de trabalho e, além disso, o preconceito
racial pesava sobre ele devido à cor da sua pele ser preta, um arquétipo real, parte
do imaginário social, um marcador com grande potencial de segregação que
impedia a sua ascensão social. Mas, mesmo assim, de outra maneira, ele
conseguiu articular a sua consciência social às formas coletivas ao exigir da
sociedade e do Estado a transformação social, de maneira que elevasse o prestígio
de sua “raça” e do seu segmento étnico como parte constituída da nação. Foi desse
entendimento que surgiram grupos e associações, uma das formas pelas quais o
negro conseguiu erguer a sua militância para então alcançar o seu
reconhecimento. À época, houve da parte da população afro-brasileira o interesse
de se associar a organizações e a clubes negros voltados para o seu prestígio, o
que se tornou uma prática, uma tendência em diversos estados e cidades
brasileiras.
Na cidade de São Paulo, foi fundada a Frente Negra Brasileira (FNB) em
1931. Esta alcançou reconhecimento nacional ao demonstrar a capacidade de se
articular com os outros estados brasileiros e abrir filiações, e, ao mesmo tempo, de
expor suas intenções, o que fez aumentar o número de associados. Desde a sua
fundação, os seus expoentes evocavam uma consciência nacional que tinha como
intenção a justiça social para com a população negra. Nota-se no parágrafo
seguinte o quanto a FNB, e a sua militância foram importantes, uma referência
nacional. Ela representava a voz daqueles que expressavam os problemas sociais
vividos naquele momento, como pondera um dos seus associados:
“Separar era uma contingência necessária. O negro estava
preparado nem técnica, nem psicológica, nem moralmente para vida
livre. Daí o que aconteceu no Brasil. A Frente Negra visava lutar
106
contra isso: a estratégia era reunir os negros para prepará-los, para
quebrar o seu medo e a sua covardia diante do branco, para dar-lhe
coragem e ousadia, na competição econômica e na defesa de seus
direitos. Mas, a Frente Negra lutava contra toda tentativa ou
tendência de separação racial. O lema político seria, pois: O Brasil é
dos brasileiros. O que se deve é fazer dos negros brasileiros
autênticos” (SANTOS, apud FERNANDES, 1978, p. 35).
Se até então o negro se encontrava com tal despreparo, como diz o autor,
era porque, de fato, faltava-lhe o principal - a cidadania; porque, sem ela, era
possível parecer ser uma atitude covarde de sua parte não se importar com a sua
causa coletiva, no entanto, não era essa a razão do que parecia ser a sua
indiferença: quando nem conhecemos ou nem vivemos um direito, o desejo de
aspirar a uma “boa vida” soa como privilégio e não como um direito de ter direito.
Por outro lado, havia uma militância ativa, mas que também fazia um movimento
de coexistência pacífica, ou seja, dentro da ordem, sem incentivar a divisão racial
entre negros e brancos, como ocorria em outros lugares, como nos Estados
Unidos. Aqui, o lema era unir sem dividir. O que a sociedade sempre temeu:
“UNI-VOS! UNI-VOS NEGROS! UNI-VOS TODOS. Deus
está conosco! Uni-vos, pela elevação moral, intelectual e
econômica da Raça! Pela Dignidade da Mulher Negra! Pela
dignidade e progresso do trabalhador negro! Pela afirmação
política da Gente Brasileira na Constituinte quando vier e
depois da Constituinte que vier! Pelo Brasil de nossos Avós!
(Idem, 1978, p. 35).
Observamos que o negro reivindicava as suas questões sociais pelo
caminho da conciliação, dentro da ordem social estabelecida. O que parecia ser a
sua intenção. Preservar a suposta união entre o seu mundo com o mundo do
branco. Ele queria fazer a “omelete sem quebrar os ovos”, ou seja, transformar a
sua realidade social sem retirar o branco da zona de conforto. Por outro lado, parte
das suas aspirações só ficou na intenção, apenas no campo do discurso. A
transformação como ele desejava não veio naquele momento, o mesmo não teve
força política para concretizar os seus projetos, restando para reverter um quadro
de desigualdade social, no qual o negro ficava abaixo do homem branco. A
situação da mulher negra ainda era pior: sobre ela recaía a desigualdade de raça e
de gênero, uma situação que ainda hoje pesa sobre ela. Não seria ingênuo o negro
de acreditar que o drama racial se resolveria pelo Estado de Direito, pelo caminho
da Constituinte? De que forma a FNB articulava a transformação social do negro
na sociedade de classes?
107
Em A integração do negro na sociedade de classes, o autor abordou três
propostas políticas apresentadas pelos frentes negrinos que acreditavam fazer a
transformação social através delas. A primeira tentativa estava em reverter a sua
situação através da lei, ao garantir a igualdade de direito entre negros e brancos,
apesar de se mostrar consciente de que a igualdade de direito não era o suficiente
para fazer a integração social na sociedade de classes. A segunda proposta
evocava o reconhecimento da sua cultura, à distribuição de renda e o seu acesso à
educação que, se assim fosse, garantiria a sua estabilidade econômica e os seus
direitos sociais estariam assegurados para as futuras gerações; e, a última e
terceira proposta tratava de fazer o resgate da sua história e do seu prestígio como
alguém que foi importante na formação do povo brasileiro e que deu a sua
imensurável contribuição para a economia, e para o desenvolvimento do país, o
que, em outras palavras, trazendo para interpretação na perspectiva do
reconhecimento, com base em Honneth (2007), o que a FNB desejava era o
autorrespeito e a autoconfiança. O que o negro buscava era o seu resgate moral
como indivíduo numa sociedade de iguais em que ele não era visto pelo Outro
como um igual. Ele buscava o prestígio e a estima das suas diferenças culturais
para que fosse reconhecido como igual na lei e, ao mesmo tempo, diferente na sua
cultura. Essa seria uma luta por reconhecimento numa sociedade de iguais em que
o autorrespeito e a autoconfiança eram fundamentais para a cidadania e para a
emancipação social.
3.3 A cultura e a luta por reconhecimento
O presente capítulo, nas duas primeiras seções, abordou o reconhecimento
da cultura afro-brasileira resgatada por Freyre (1933) e a partir da própria
perspectiva do negro, e Fernandes (1964) pôs em debate a sua luta por
reconhecimento social na sociedade de classes. Mas, afinal, o que têm de
importante as obras Casa-grande e Senzala e A integração do negro na sociedade
de classe, para o conteúdo “população brasileira” do programa do livro didático
de Geografia do sétimo ano? As reflexões que foram apresentadas aqui tiveram
como objetivo resgatar dois momentos importantes do pensamento social
108
brasileiro, que, em diferentes épocas, cada um na sua perspectiva, reconheceu o
papel social do negro na formação do Brasil. O primeiro resgata o negro a partir
da cultura e, o segundo reconhece o negro a partir da sua própria perspectiva de
luta por reconhecimento.
Casa-grande e senzala foi publicada numa época em que o país buscava
se afirmar como uma civilização dos trópicos e, nesse sentido, a sua narrativa
sobre a formação do povo brasileiro Freyre (1933) defendia uma nação que havia
dado certo pela sua capacidade de fusão, de hibridizar e de colocar a cultura no
lugar da raça. O autor defende a tese de que, desde o início do processo de
colonização, o português, o dominante, não se importou com a raça como fator
determinante para erguer o projeto colonial. Preferiu aumentar a população pelo
processo de miscigenação, e, para isso, a cultura foi a variável mais importante na
formação da população brasileira. O lançamento de Casa-grande e senzala
coincidiu, à época, com a implantação do Estado Novo e, nesse tempo, o Brasil,
politicamente, buscava-se afirmar para si e para o mundo como uma nação que
pensava e valorizava a cultura brasileira como a identidade nacional. O sucesso de
Casa-grande e senzala se deve ao resgate e à valorização do encontro da cultura
das três raças, europeia, indígena e africana. Sobre a cultura africana, o autor
resgatou o seu sentido na música, na dança, na culinária, na língua e na religião, e
diz ser o Brasil uma nação híbrida, porque, para ele, a cultura representava o
espaço de encontro das diferenças de cada um. Daí que o resgate da cultura afro-
brasileira inicialmente se deve a esta obra, visto que a interpretação sobre o Brasil
até então retratava a “tristeza brasileira” como “Retrato do Brasil”, de Paulo
Prado, 1928, um dos expoentes da “Semana de Arte Moderna”. Ele apostava na
propensão do brasileiro à melancolia. Seria isto um determinismo biológico sobre
o social (PRADO, 1981, p. 92). Mas, para Freyre (1933), seria o oposto, a cultura
sobrepôs o determinismo geográfico.
Para Mota (2008, p. 67-69), a década de 30 vai se tornar o marco do
processo que ele diz ser 1933-1937 o “redescobrimento do Brasil” e, para ele,
Casa-grande e senzala “representava uma ruptura com a abordagem cronológica
clássica, com as concepções imobilistas da vida social do passado (e do
presente)”. Diz ainda o autor sobre a obra de Freyre (1933), ser difícil classificá-la
de acordo com os moldes tradicionais de se fazer ciência, tendo em vista sua
109
capacidade de dialogar com diversas áreas das ciências humanas: “Economia,
História, Sociologia, Antropologia, etc” (Idem, 2008, p. 71).
Hoje, qual é a importância dessa obra para os currículos e programas do
ensino de Geografia do Ensino Fundamental? Como já foi dito anteriormente,
Casa-grande e senzala resgatou a cultura brasileira na: música, dança, folclore,
culinária, religião e língua. Neste sentido, como no próximo capítulo em que os
dados da pesquisa foram analisados, observar-se-á que o usual são os autores de
livros didáticos de Geografia do sétimo ano, ao abordarem a cultura afro-
brasileira, fazerem o resgate a partir da dimensão da cultura, e são unânimes na
defesa dos elementos etnicorraciais representarem positivamente a identidade
nacional, como o carnaval, a capoeira, a culinária, a dança e a religião.
Por outro lado, A integração do negro na sociedade de classes teve como
abordagem a sua inserção na ordem competitiva capitalista. Nessa perspectiva, o
autor teve o rigor de mapear a realidade da cidade de São Paulo a respeito da
situação social que o negro enfrentava na primeira metade do século XX. Para o
autor, o negro seria a principal vítima da sociedade, porque, esse, ao transitar da
ordem escravista para a ordem capitalista, não foi preparado para viver em
condição paritária com o branco. Com isso, foi abandonado à própria sorte, e,
desde então, passou a enfrentar o drama da discriminação racial e, ao mesmo
tempo, a inércia da imobilidade social no “mundo dos brancos” (FERNANDES,
1978). A presente obra traça uma abordagem a partir da luta do negro por
reconhecimento social. Fernandes (1978) torna-se o mediador, aquele que dá a
palavra ao negro para que ele diga sobre a sua realidade social vivida na cidade de
São Paulo.
Dentre os marcadores sociais postos pelo negro, o autor colocou no centro
da discussão a questão da raça e da renda. Ou seja, para ele, seriam esses os
fatores impeditivos da mobilidade e da ascensão social do negro na sociedade de
classes. Nesse sentido, no próximo capítulo, muitos são os autores de livros
didáticos de Geografia do sétimo ano que trazem a reflexão a respeito da raça e da
renda como marcadores etnicorraciais que carecem de atenção, ao abordar a
cultura afro-brasileira na escola por parte do ensino, como será visto. Porque, no
campo do currículo, a cultura representa mais que conhecimento acumulado sobre
110
uma civilização. Para a Teoria Crítica, a cultura é um espaço de poder, de disputa
e de contestação.
Vista dessa perspectiva, A integração do negro na sociedade de classes é
uma obra contemporânea e importante. A sua reflexão no conteúdo “população
brasileira” do programa do sétimo ano é necessária, visto que a luta do negro por
reconhecimento deve passar pelo marcador raça, que ainda é um hiato das
relações raciais, e pelo marcador renda, já que, sem ela, torna-se impossível a
conquista plena da cidadania. Só se tem cidadania quando alcançamos os direitos
civis, políticos e sociais; ao contrario disso, é um engodo da democracia racial.
No próximo capítulo, o presente estudo busca refletir a perspectiva dos
autores a respeito da população negra no Brasil e analisa como que cada um
refletiu sobre a realidade social desse segmento etnicorracial a partir dos recortes
das narrativas feitas sobre o livro didático de Geografia do sétimo ano.
111
4. OS DISCURSOS DOS LIVROS DIDÁTICOS DE GEOGRAFIA
O capítulo 4 tem, como finalidade, apresentar a análise sobre os dados
coletados do total de dez livros didáticos de Geografia do sétimos ano, dos quais
foram selecionados textos e imagens cujos conteúdos curriculares abordavam o
negro no espaço geográfico, em diferentes momentos históricos e culturais, como
um dos segmentos etnicorracial mais importantes na formação do povo brasileiro.
Após acessar o denso material, observar e refletir sobre a formação
etnicorracial do povo brasileiro, notou-se que o negro é reconhecido na sua
diversidade cultural, entretanto, quando o critério de análise compara cor e raça,
ele ainda se encontra na posição mais elevada de desigualdade social com relação
ao branco.
No decorrer deste trabalho, ao longo das leituras feitas em livros didáticos e
das reflexões sobre as mesmas, foi possível perceber que diversas matrizes, como
a indígena a e africana, em diferentes momentos contribuíram na construção da
identidade brasileira. Historicamente, o Brasil é um país multicultural de
formação, visto que ele nasceu do encontro de várias etnias. Entretanto, os livros
didáticos mostraram narrativas históricas sobre o negro, das mais variadas, nas
quais ele aparece como o escravo, ou como aquele que apenas deixou um legado
de representações folclóricas, como culinária, música e dança. Por outro lado,
quanto a sua participação em outros segmentos, como na economia, a escravidão
ainda é o período de maior relevância, entretanto, sobre a sua participação na
economia da sociedade de classes, ou mesmo sobre a sua integração social nessa
sociedade, o que tem sido apresentado é a desigualdade social entre negros e
brancos, que, segundo o IBGE, ainda é discrepante.
Contudo, houve também autores que refletiram sobre a educação e sobre a
distribuição de renda, considerando-as causa da desigualdade, que, ainda hoje, é
um grande desafio no que tange à população negra.
Para refletir sobre essas questões apresentadas, o presente trabalho utilizou
o multiculturalismo como o fio condutor na análise, que, para este pesquisador,
112
tem o sentido de meio pelo qual se luta por reconhecimento político e social,
contra qualquer tipo de injustiça social.
Nesse sentido, nesta primeira seção, buscou-se fazer a revisitação das
relações intersubjetivas entre o senhor e o escravo, na casa-grande, no tempo da
escravidão, através das narrativas extraídas dos recortes e fragmentos dos livros
didáticos de Geografia do PNLD/MEC (BRASIL, 11/13).
4.1 O reconhecimento do escravo: da África à casa-grande
Antes dos portugueses aqui chegarem, as sociedades indígenas ocupavam o
que hoje é conhecido como o território nacional.
Quando os colonizadores portugueses desembarcaram pela primeira vez no litoral
brasileiro, as terras encontradas já eram habitadas havia milhares de anos por diversos
povos indígenas. Eles viviam, em geral, da caça, da pesca e de pequenas lavouras. Muitos
deles, quando os alimentos tornavam-se escassos em um lugar, logo partiam para outras
áreas em busca de fartura. Muitos desses povos indígenas mantinham línguas, hábitos
alimentares e tradições religiosas distintas, o que constituía uma enorme diversidade
cultural (BOLIGIAN, et al, 2009, p. 19).
Nota-se que a diversidade cultural estava no jeito do homem americano de
subsistir. Dito de outro modo, na forma de se apropriar do espaço e de significar
os lugares do espaço segundo a sua cultura. O fato de a sua cosmovisão ser
diferente da do homem europeu não lhe tirava o sentido social, já que, como
sujeito, sabia se apropriar e atribuir significados aos lugares os quais ocupava.
A prova do seu conhecimento e do seu domínio sobre o espaço estava no
manejo dos recursos naturais, como os utilizados sobre a fauna e a flora. O
respeito para com a natureza fazia com que os índios, ao utilizar tais recursos, os
mesmos não se esgotassem. Segundo a cultura das nações indígenas, cabia às
novas gerações fazer o seu manejo, assim como utilizar e cuidar de sua
preservação. Todavia, não foi essa a visão que se perpetuou sobre o índio.
Esta presente seção foi apresentada no GT Currículo, Imagens e Culturas, - do I Seminário
Internacional Imagens da Justiça, Currículo e Educação Jurídica, da Universidade Federal de
Pelotas, a Faculdade de Educação – Programa de Pós- Graduação em Educação e Grupo de
Pesquisa Gestão, Currículo e Políticas Educativas - e a Faculdade de Direito e o Curso de
Especialização em Direito Ambiental, em novembro de 2012, Pelotas, RS e publicada sua versão
completa nos anais do Seminário.
113
Historicamente, a imagem secular, inventada pelo colonizador, foi de um índio
indolente e selvagem.
De fato, a colonização no seu decurso civilizatório, através de um projeto
multicultural eurocentrista, embora este conceito não houvesse sido criado, impôs
o arquétipo do homem branco e cristão sobre os demais colonizados, pelo qual o
reconhecimento do Outro foi de alguém que precisava ser colonizado. Portanto, a
cultura fora deste padrão era considerada inferior. Hoje, esse paradigma caiu. Não
se interpreta a cultura de uma sociedade seguindo o critério superior e inferior.
Culturas são diferentes (LARAIA, 2002).
Sobre isso, o livro didático tem hospedado uma diversidade de sínteses
históricas e culturais sobre tipos de sociedades e povos. Neste trabalho,
especialmente, foi escolhida a cultura brasileira, com ênfase na contribuição dos
povos africanos sobre a formação do espaço geográfico brasileiro.
Para o campo do ensino de Geografia, uma das formas de se estudar a
formação do povo brasileiro é através da formação histórica, política e econômica
do território nacional. A palavra território é um conceito que explica o espaço na
sua dinâmica política. Neste sentido, o conceito pode variar de acordo com a
abordagem feita pelo autor. Utiliza-se o conceito de território para se referir a
lugar, como também para significar área delimitada fisicamente por fronteiras
geográficas. Explicado de outro modo, território significa disputa de poder sobre o
mesmo espaço, por grupos sociais diferentes. No caso da formação do território
brasileiro, a sua organização e as suas disputas sociais e econômicas incorreram
ao longo dos séculos de colonização, desencadeadas pelo colonizador europeu
sobre a sociedade indígena americana.
Durante os séculos XVI, XVII e XVIII, a ocupação do território brasileiro aconteceu de
várias formas, por exemplo: no Norte, por causa da exploração de drogas do sertão
(cacau, cravo, castanha-do-pará) na Amazônia; no Nordeste, houve a ocupação do interior
para criação de gado; no Sudeste e Centro-Oeste, em razão da descoberta de ouro e
pedras preciosas na região dos atuais estados de Minas Gerais e Goiás e do
desenvolvimento de uma agricultura e pecuária voltadas para atender principalmente os
mineradores. MAGALHÃES, C. [et al]. Perspectiva, 7º ano. São Paulo: Editora do Brasil,
2009, p.22.
114
Nota-se que a formação do território brasileiro nasceu da estratégia que se
usava para ocupar e dominar o lugar. A formação territorial brasileira sua
ocupação, só foi possível graças à estratégia de demografia pensada pelo
colonizador, cujo mecanismo desenvolvido tinha a imigração como incentivo para
povoar os domínios territoriais. Para ocupar, precisava produzir. À época, isto
custou abrir frentes para o interior, com investimentos e empreendimentos
econômicos de todos os tipos.
No início do século XVI, a ocupação portuguesa das terras que hoje compõem o território
brasileiro restringia-se a uma parte da faixa litorânea, onde primeiramente se desenvolveu
intensa exploração do pau-brasil, madeira abundante nessa região e muito valorizada no
mercado europeu. O povoamento, de fato, somente se iniciou com a introdução de
lavouras de cana-de-açúcar e de engenhos – que transformavam a cana em açúcar –
sobretudo no Nordeste e no litoral paulista. (BOLIGIAN, et al, 2009, p. 19).
A cana-de-açúcar tornou-se o negócio de então. Engenhos passaram a
existir e terras foram sendo apropriadas à medida que havia o incentivo para este
tipo de empreendimento. Como o autor afirma, a ocupação e o povoamento do
território brasileiro se estenderam do Nordeste ao litoral paulista. Isto só foi
possível graças à implantação de um modo de produção econômico sobre o
espaço, o qual atendia aos interesses econômicos dos grupos hegemônicos
coloniais.
A primeira forma de ocupação dos portugueses com objetivo de fixação no território
ocorreu por meio da implantação dos engenhos de cana-de-açúcar, principalmente no
Nordeste. Entre 1580 e 1640, questões relacionadas à sucessão do trono em Portugal
levaram a uma união dos países ibéricos (Espanha e Portugal). MAGALHÃES, C. [et al].
Perspectiva, 7º ano. São Paulo: Editora do Brasil, 2009, p.22.
A geoeconomia do açúcar foi amplamente planejada e, de fato, foi o que
deu sentido político para a ocupação do território nacional. O clima tropical e a
terra favoreciam a implantação dos engenhos. É verdade também que, para um
modo de produção que teve seu início no século XVI, fazia-se necessário uma
mão de obra que atendesse as demandas internas do então sistema econômico.
Para isso, pôde contar com o mercado de escravo trazido da África. A política
ultramarina da escravidão, durante muitos séculos, abasteceu o mercado brasileiro
com a mão de obra escrava. Foi um gerador de bens e serviços institucionalizado
e que se manteve ativo até o último quarto do século XIX. Por conta disto, o
tráfico internacional de escravo foi um grande negócio econômico. Contudo, o
mais desumano da Era Moderna.
115
À época, a África tornou-se a porta de entrada do tráfico e a saída de
escravos para o mundo. Do ponto de vista econômico, a escravidão transformava
seres humanos em moeda de troca. Isto foi possível por causa da mentalidade
cultural e dos acordos multilaterais dos setores privados e estatais das instituições
europeias e africanas que ambicionavam tais negócios. O negro era mercadoria
disponível no mercado internacional e, quanto mais se intensificava o tráfico,
maior era o fluxo migratório.
Pessoas migram motivadas por diversas razões. Migrar é deixar um lugar
cujas raízes são rompidas para recomeçar em outro lugar, cujas raízes são
reconstruídas sobre a continuidade e na descontinuidade. Sobre a migração
completa o autor:
O ato de migrar é complexo e envolve um conjunto de necessidades, desejos, sofrimentos
e esperanças. Ao longo da história, podemos citar exemplos de migrações que
envolveram tais aspectos: o que dizer dos milhões de escravos que foram trazidos à força
para o Brasil no período colonial? Ocorre migração forçada quando as pessoas são
obrigadas a sair do seu lugar de origem. Ou porque há situação de risco de morte
(catástrofes naturais, epidemias e guerras) ou porque são retiradas à força a fim de serem
comercializadas, ou ainda devido às condições impostas pelo regime político e
econômico. [...] Assim, devemos analisar não só os fatores que estimulam as migrações,
mas também os fenômenos decorrentes, como a aceitação ou rejeição para com os
migrantes no lugar de chegada, seus anseios, necessidades, conquistas e o papel que
desempenham na organização do espaço. BIGOTO et alli. Sociedade e Cotidiano, 7º. São
Paulo: Atual, 2009, p. 111.
Foi o que ocorreu com os africanos que aqui chegavam. A migração
custou muito caro para eles. Primeiro, foi um processo forçado e não espontâneo.
Segundo, foi aviltante. Utilizou-se do grau mais baixo do desrespeito humano
para com esta população. O transporte e o tratamento dispensados aos tripulantes,
então degredados, eram próprios de animais e não de gente. Visto desse ponto,
não lhes restava expectativa alguma ao chegar ao novo lugar. O destino estava
traçado. Expostos no mercado, o seu fim era pertencer a quem lhes comprasse.
Restava-lhes vir a ser a mão de obra, a força de trabalho do seu senhor.
Os autores também transcreveram um trecho do poema “Navio Negreiro”
de Castro Alves (1977), em que o poeta traduziu um pouco da condição desumana
e humilhante com que o escravo era recebido no tumbeiro, no decorrer da
travessia, ao ser transportado da África para o Brasil:
116
Navio negreiro
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus...
Quem são...
São os filhos do deserto
Onde voa em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados,
Que com os tigres mosqueados
Combatem a solidão...
Homens simples, forte bravos...
Hoje míseros escravos
Sem ar, sem luz, sem razão.
ALVES, Castro. Em: Antologia escolar brasileira. Rio de Janeiro: Fename, 1977. In.
BIGOTO et alli. Sociedade e Cotidiano, 7º. São Paulo: Atual, 2009, p. 112.
Nota-se que o escravo era exposto a todo tipo de destrato e, como tal,
sofria de dois tipos de violência: a física, com o castigo corporal, e a simbólica,
com a desconstrução de sua individualidade. Sobreviver ou morrer era o seu
único direito. Dispensava-lhe o ar e a luz. Privado da razão, era como se se
desconstruísse o seu Eu, ou seja, a sua identidade. A travessia de África para o
Brasil não só causava o sofrimento físico, como também o desrespeitava
moralmente. Hábitos e costumes eram trazidos apenas na memória. A lógica do
tráfico era capturar para comercialização de corpos, pois o mercado demandava
por homens possuidores de força física e não de homens para integrar à economia
do sistema açucareiro: isto era coisa para branco; o labor era necessário; e para o
preto, pensar era desimportante.
117
Neste sentido, a cidade do Rio de Janeiro, no século XVIII, ainda
mantinha um dos mercados mais intensos de venda de escravos de origem
africana. À época, os sobreviventes da travessia, a então “mercadoria” humana,
eram armazenados nos depósitos dos estoques dos armazéns do Valongo, e
algumas peças eram expostas nas vitrines das lojas daquele mercado, à espera de
comprador. Enquanto isso, a falta de higiene e a alimentação insuficiente eram os
vetores de proliferação de doenças entre os escravos expostos no Valongo
(HONORATO, 2008).
Sobre esta época, são muitos os fatos registrados em diários de viajantes,
tipo desenhos e pinturas que retratavam a condição na qual vivia o escravo. O
hábito de registrar coisas, por meio do uso da imagem, é uma prática muito
utilizada antes mesmo da invenção da escrita. O homem do período da Pré-
História já se utilizava de desenhos, símbolos e sinais, conhecidos como pintura
rupestre, para expressar suas representações. A imagem é um recurso facilitador,
pelo qual é possível compreender um determinado contexto social, que, com a
riqueza de seus signos, possibilita ao intérprete compreender a realidade
representada.
Hoje, sem exceção, os livros didáticos de Geografia se utilizam de fontes
imagéticas como recurso, cuja função é complementar o texto escrito. Entende-se
que a imagem é um recurso pedagógico importante, e, como tal, tem um papel
muito significativo na aprendizagem. Como recurso visual, os elementos
pictóricos, como significantes, despertam o olhar do leitor para o contexto
impresso.
Para interpretar as imagens presentes neste trabalho, foi utilizado o
conceito de significação iconográfica proposto por Panofsky (1979). Para este
autor, a leitura deve ser apreendida considerando os princípios subjacentes que
revelam o contexto social e, como também, o de raça e etnia,25
como propositura
da leitura de imagem.
Essa perspectiva é um recurso metodológico que possibilita compreender e
interpretar o tempo e o espaço sobre o fato social. Neste sentido, o presente
25
Acréscimo meu.
118
trabalho, na sua fase de coleta de dados, propôs-se a uma seleção de um conjunto
de imagens sobre diversos contextos que tratavam da população negra e sobre a
sua condição social, do tempo da Colônia aos dias atuais.
A imagem a seguir foi coletada do livro didático Adas (2006), Geografia
Construção do espaço geográfico brasileiro - 7º ano. São Paulo: Editora Moderna.
O título: Mercado de Escravos no Valongo - Rugendas, 1802-1855. A escolha
desta imagem não foi aleatória. Baseou-se no conceito de espaço geográfico
proposto por Adas (2006). Para o autor, o espaço geográfico é dinâmico e
histórico.
Abaixo, a imagem 01 apresenta uma cena do cotidiano, no Brasil do século
XIX, na cidade do Rio de Janeiro. O local era o Valongo. Este era um lugar, no
qual se mantinha uma intensa logística de importação de mão de obra escrava,
vinda das diversas regiões da África, para fazer o abastecimento e a manutenção
do mercado escravocrata, no sentido de fazer o suprimento das demandas para as
lavouras de café e de açúcar das regiões do Estado do Rio de Janeiro.
Rugendas (1835), na sua composição, retrata a dimensão de como era o
cotidiano do mercado de escravos no Valongo.
Imagem 01. Johann Moritz Rugendas, 1835. (ADAS, 2006, p. 37).
]]]]]]]]]]]]]]
119
Observam-se homens, mulheres e crianças em torno de uma panela sobre
uma fogueira; parecem estar preparando seu alimento. E, próximo aos joelhos de
um dos escravos, havia uma penca de bananas, complemento alimentar típico do
cardápio da dieta dos escravos. A alimentação dos escravos era uma preocupação
dos comerciantes, pois uma boa venda dependia do estado de saúde de cada um.
Com o objetivo de maximizar o preço de venda dos escravos
recém-chegados, os comerciantes lhes davam um tratamento
diferenciado que incluía banho e duas refeições diárias com
pirão de farinha de mandioca e fubá de milho. Procuravam
utilizar cozinheiros negros para conquistar maior confiança dos
africanos, também lhes davam frutas para evitar o escorbuto
(HONORATO, 2008, p. 117).
Ainda na imagem 01, à esquerda, um escravo se encontra deitado, coberto
com um tecido azul, provavelmente sem condições físicas para ficar de pé, coisa
que não era comum a um escravo, se prostrar, quando ali já se encontrava exposto
para a consumação da venda. Por parte dos comerciantes, havia um controle
sanitário para que a perda de peças fosse baixa. O autor aponta o outro lado do
controle sanitário:
Após serem desembarcados no porto da cidade do Rio de
Janeiro passavam pela chamada “visita saúde”. Caso fosse
constatado que estavam doentes ou eram portadores de alguma
moléstia contagiosa, ficavam em quarentena para tratamento
nos trapiches ou lazaretos da cidade; e só depois eram
conduzidos aos armazéns do Valongo, para serem postos à
venda (Idem, 2008, p. 117).
É pertinente ressaltar que a imagem 01 não era a realidade. Ela é uma
representação da realidade. É o ponto de vista do artista sobre a realidade por ele
representada, que como base em Manguel (2001): é uma narrativa sobre a qual o
artista, como intérprete, atribuiu um caráter temporal, retratando o mercado de
escravo do Brasil do século XIX.
Sobre esta situação, à época se dizia: “antes de 1840 o Brasil é presa do
tráfico de africanos; o estado do país é fielmente representado pela pintura do
mercado de escravos no Valongo” (NABUCO, 2000, p. 1). O país respirava
escravidão. A escravidão era uma instituição legal que contava com o apoio da
igreja e com o apoio dos setores mais conservadores da economia, o café e o
açúcar. A igreja fazia o controle moral da sociedade escravocrata. Na economia, a
importação da mão de obra mantinha aquecido o mercado Brasil e África. O
120
destino final da importação era o abastecimento do engenho de açúcar com
escravos, que passariam a se ocupar com o trabalho árduo dos canaviais.
Sua sorte estava lançada segundo o interesse de quem o adquirisse.
Homem, mulher, criança, sem exceção, eram submetidos à intensa dureza do
trabalho servil no engenho, como mostra na imagem 02:
Imagem 02. Engenho de açúcar em Itamaracá, Frans Post, de 1647. (ADAS, 2006, p.38)
Mas quem era o/a trabalhador/a do engenho? Que tipo de tratamento social
a ele/a era imputado? Conforme Cardoso (1990), o/a escravo/a era uma
propriedade do seu senhor, ele/a não tinha vontade própria, e vivia sob o regime
de trabalho compulsório. Como uma propriedade, o seu futuro não lhe pertencia.
Sua sorte estava nas mãos do senhor, que sobre ele/a, tinha o direito de dar o
destino que lhe achasse justo. Segundo o autor, a situação, “como escravo, sua
condição era hereditária, e a propriedade sobre sua pessoa era transmissível por
venda, doação, legado, aluguel, empréstimo, confisco” (Idem, 1990, p. 104).
Mesmo assim, a relação interpessoal fazia próximos escravo e senhor.
Ambos conviviam no mesmo espaço. Da casa-grande ao engenho, a ordem era
obedecer. A repressão era necessária a qualquer manifestação contrária. No
engenho, o escravo que saísse da conduta era castigado. O uso do chicote era
recorrente naquele espaço.
Quando o castigo era aplicado por outro escravo, o feitor
colocava um segundo negro atrás da vítima, de chicote em
punho, para agir quando necessário e, levando mais longe ainda
suas preocupações tirânicas, colocava-se ele próprio em terceiro
lugar, para castigar o fiscal no caso em que este não cumprisse
o seu dever com bastante severidade. As duas tiras de couro da
ponta do chicote arrancavam, no primeiro golpe, a epiderme,
tornando o castigo mais doloroso; este era, em geral, de 12 a 30
121
chicotadas, depois das quais se tornava necessário lavar a chaga
com pimenta do reino e vinagre, para cicatrizar as carnes e
evitar a putrefação, tão rápida em clima quente (DEBRET,
Apud MELLO, 1973, p. 72).
Punir era necessário. Essa era a lógica do sistema escravocrata. O corpo
era peça estratégica do modo de produção e o que saísse de série estaria colocando
em perigo o rendimento, assim como os resultados da produção. Portanto, vez e
voz eram elementos desimportantes num escravo. Seus desejos e manifestações
pessoais eram proibidos. A ele cabia demonstrar força e trabalho. Do contrário, a
ordem era reprimir e o chicote era o instrumento recorrente no controle da
disciplina.
Na casa-grande, a relação entre senhor e escravo começava na infância. A
família patriarcal usava de destrato social para com o menino preto, que, com isso,
fazia diminuir sua autoestima, como também o levava a refletir sobre sua
condição de inferior ao se comparar com os meninos brancos. Nos seus primeiros
anos, na sua infância, era domesticado com valores morais recebidos dos adultos,
quando, então, era orientado para se tornar o brinquedo-acompanhante, o “saco de
pancadas” dos meninos brancos.
Suas funções foram as de prestadio Mané-gostoso, manejado à
vontade por nhonhô; apertado, maltratado e judiado como se
fosse todo de pó de serra por dentro; de pó de serra e de pano
como os Judas de sábado de aleluia, e não de carne como os
meninos brancos. [...] Nas brincadeiras, muitas vezes brutas,
dos filhos dos senhores de engenho, os moleques serviam para
tudo: eram bois de carro, eram cavalos de montaria, eram bestas
de almanjarras, eram burros de liteiras e de cargas as mais
pesadas. Mas principalmente cavalos de carro. [...] (FREYRE,
1998, p. 336).
O menino escravo era colocado como objeto de uso do seu sinhozinho.
Sujeitado aos seus desejos, desde então, sem referência de si, crescia vendo-se
refletido apenas na sua inferioridade animalesca.
Com a menina, não era diferente. Recebia uma criação semelhante à do
menino. Quando entrava na fase de “menina-mulher”, seu corpo passava à
propriedade de uso do seu senhor, e também o objeto de perseguição das
senhoras, conforme afirma a autora:
O desenvolvimento físico da escrava adolescente marca a
passagem da escrava animal de estimação para escrava objeto
sexual, com suas inevitáveis consequências na relação senhora-
122
escrava. A ideologia corrente que associa a negra ao prazer
sexual do branco, identificando em seu corpo o agente do
estupro institucionalizado, fez recair também sobre a escrava,
como se não bastasse a objetificação sexual, inconfessáveis
sentimentos de inveja das senhoras. (GIACOMINI, 1998, p. 79).
O desrespeito social não se limitava à mulher apenas como objeto sexual.
Na casa-grande, ela ocupava papéis e funções sociais como cozinheira e
arrumadeira. Como era uma sociedade escravocrata e hierarquizada, tais papéis
eram reconhecidos com desprestigio social, pois viver na servidão não permitia
ser diferente.
Esse desprestigio social começava quando o/a escravo/a ainda era criança.
A escravidão foi um regime, cuja estrutura social foi constituída por dois polos
antagônicos. De um lado, estava o senhor, e, do outro, o escravo. O ambiente
social de aprendizagem, tanto para a criança branca quanto para a criança preta,
era o mesmo, entretanto, os valores imputados a elas se diferenciavam. A primeira
era orientada para reproduzir toda forma de reconhecimento negativo e de
desprezo para com a segunda. Ela era educada para assumir a identidade de
senhor, enquanto a segunda era educada para assumir a identidade de escravo.
Como se sabe, a identidade é uma construção social (SILVA, 1995; 2000; 2003;
HALL, 2006a; 2006b; 2008; 2009). Ninguém nasce senhor e muito menos
escravo. Ambas as posições assumidas, pelas crianças, eram resultados da
educação patriarcal orientada conforme os padrões sociais da época.
É sabido que, na ordem escravocrata, o sistema de produção era sustentado
pelo trabalho escravo, oriundo do tráfico, mas isto não era suficiente para manter
o regime. O sistema precisava produzir novos escravos. Aos africanos nascidos no
Brasil, filhos de escravos, as instituições culturais se encarregavam de inculcar a
identidade de escravo, fazendo um vir a ser dessa relação.
Porque, embora fosse nascido na condição de escravo, era preciso
construir essa condição, que, em síntese, era um processo que tinha seu início na
infância. Tanto é que, mesmo quando o escravo era adquirido no mercado, a
preferência do comprador era por escravos de menos idade, porque isso facilitava
ao dono “adestrar” a peça, a coisa, segundo os valores morais daquela sociedade
(HONORATO, 2008).
123
Parafraseando Foucault (1987), esta lógica estava em produzir, no seio da
família patriarcal, “corpos dóceis” e utilitários não para a disciplina, como foi
posta pelas instituições do trabalho livre, como propunha o autor em “Vigiar e
Punir” (1987), mas para a servidão. A ordem de então era trabalhar, servir e
obedecer. Qualquer sentimento que colocasse a estabilidade social em perigo
significava ser necessário punir o corpo coisificado, como diz Ianni (1988, p. 56):
O caráter repressivo e violento do escravismo não se explicava
pelo medo que o senhor poderia ter da revolta ou vingança do
escravo. Não há dúvida de que esse era um dado da consciência
do senhor. Todo escravo aparecia, na consciência do senhor,
como sua propriedade e seu inimigo. Afinal de contas, a
condição escrava tornava o escravo e o senhor, ao mesmo
tempo e reciprocamente, inimigos. Mas seria incompleta a
explicação que se limitasse a situar a repressão e a violência
características do escravismo como produto do medo.
Para esse autor, a repressão e a violência, comuns na relação senhor e
escravo, constituíam a base da estrutura instituída do sistema de produção
escravista. Como tal, a produção de trabalho era de mais-valia absoluta sobre
aquilo que o escravo produzia e, como ele mesmo diz, era a mais-valia dupla:
estavam alienados ao senhor a produção do trabalho e o corpo do escravo; ambos
eram produtos de sua propriedade.
A escravidão mantinha um sistema de funcionamento completo e para o
escravismo, enquanto formação social, a violência e a repressão seguiam de
acordo com a exigência política, social e cultural, própria daquela época (Idem,
1988). A escravidão foi um período impagável, uma marca na formação social
brasileira. Um período tão importante que, ainda hoje, é abordado como conteúdo
obrigatório na disciplina de Geografia na educação básica. Ainda que tenha
deixado, como sua marca, a desigualdade social, estudar esta época tem servido
para reafirmar nossas raízes culturais e ampliar o sentido de pertencimento a
identidade nacional. Um povo sem memória é um povo sem identidade.
Nesta seção, a questão geradora que perpassou à discussão, foi saber, nos
livros didáticos de Geografia, como é abordada à relação intersubjetiva entre o
senhor e o escravo. Como objetivo, buscou abordar a relação moral com que era
reconhecido o escravo pelo senhor.
A revisão teórica sobre este período mostrou que o senhor reconhecia o
escravo apenas como peça de seu patrimônio. Isso contribuía, no dia-a-dia, para o
124
desprestigio social do negro, visto que isto era uma prática recorrente para o
primeiro na manutenção da ordem social.
Dos livros analisados, o resultado apontou a preferência dos autores por
uma abordagem economicista, na qual ressaltou o papel social do escravo como
mais-valia da produção escravista, em que o destaque é dado para o escravo como
peça central no trabalho compulsório. Ficaram relegados, a segundo plano, os
aspectos relacionais, psicossociais, que, no entendimento deste pesquisador, são
elementos importantes para compreender a complexidade dos papéis sociais do
senhor e do escravo naquela ordem social.
Contudo, o continente africano tem servido de pano de fundo ao retratar o
período dessa história. Num ensaio sobre o multiculturalismo, McLaren (2000, p.
111) explica que, ainda hoje, são recorrentes narrativas, nos currículos das
disciplinas de ciências sociais, em que a África é retratada “como um continente
selvagem e bárbaro ocupado pelas mais inferiores das criaturas que eram privadas
das graças salvadoras da civilização ocidental”. Para o autor, esta visão tem como
fim reafirmar a supremacia racial branca e a ideia de representação dos afro-
americanos como escravos, submissos e passivos. Seria uma visão cercada de
estereótipos culturais euro-americacentristas, sobre a cultura africana. A essa
visão conservadora, racialista, o autor denominou de multiculturalismo
tradicional, ou seja, uma forma de reconhecimento negativo da cultura do Outro.
Por outro lado, ao tratar a cultura afro-brasileira, abordada nos livros
didáticos, do período da escravidão, a mesma deve ser tensionada no sentido de
desconstruir estereótipos e desafiar preconceitos, de forma que possam promover
uma educação para a cidadania, recomenda Canen (2001a; 2001b; 2009a; 2009b).
Na presente seção, no que tange ao currículo de Geografia, o conteúdo que
tem como abordagem o espaço geográfico do tempo da escravidão pôde ver a sua
importância ao ressaltar o desprestigio social com que era reconhecido o escravo
naquela sociedade. Na verdade, ninguém nascia escravo, mas, já na infância, era
reconhecido com tal.
Sobre o reconhecimento, Honneth (2007) afirma ser este um processo
social, que, primeiramente, começa nas relações com a família. No nosso caso
específico, a casa-grande era um meio de socialização para uma educação
125
escravista. Os filhos de escravos cresciam em torno da mesa do senhor e, como
tais, eram conduzidos para o desprestigio social. Tanto um quanto o outro eram
um produto social, resultado da construção cultural das instituições da época, que,
como na família, fazia a reprodução das relações primárias de reconhecimento
social. Como se sabe, o reconhecimento incorreto pode funcionar como uma
forma de agressão e reduzir a pessoa a uma forma falsa e pejorativa (TAYLOR,
1994).
O fim do reconhecimento incorreto do africano como escravo só
aconteceu com a Abolição e com o advento da República, quando o negro, de
escravo, passou a cidadão. Com a República, mudanças estruturais ocorreram no
campo econômico, político e social o que refletiu sobre o ex-escravo, agora o
novo cidadão republicano. Este, agora, passava a lutar por direitos sociais. Seu
desafio estava em ser reconhecido, na esfera jurídica, para que se pudesse ver e
para que fosse visto como um sujeito de direito. Durante o século XX, a luta do
negro foi pela sua integração na sociedade de classes da ordem competitiva
(FERNANDES, 2008).
Nos anos trinta, no “Estado Novo”, embora vivendo em um regime
ditatorial, a cultura afro-brasileira ganhou relevância e tornou parte da cultura
brasileira. À época, o governo tinha em vista a homogeneização da cultura pelo
projeto nacionalista. Isto significava a construção de uma cultura comum em
detrimento da pluralidade cultural.
Para tanto, o governo pôde contar com o sistema educacional, que
funcionava como um disseminador da cultura estatal, ou seja, a educação servia
para fazer a reprodução das ideologias propostas pelos intelectuais a serviço do
Estado. Sobre este tipo de política, Hall (2006) lembra a importância do sistema
educacional que opera a favor do Estado.
A formação de uma cultura nacional contribuiu para criar
padrões de alfabetização universais, generalizou uma única
língua vernacular como o meio dominante de comunicação em
toda a nação, criou uma cultura homogênea e manteve
instituições culturais nacionais, como, por exemplo, um sistema
educacional (HALL, 2006, p. 49-50).
No que tange à cultura afro-brasileira, o sistema educacional serviu para
disseminar a figura do ex-escravo, que, agora, passava a ser visto como alguém
que fazia parte da cultura nacional.
126
Tratava-se de formar mentalidade comum à juventude mediante
a uniformização dos procedimentos pedagógicos e da
padronização de conteúdos, currículos e livros didáticos
impostos em âmbito nacional (MENDONÇA, 1990, p. 345).
Neste bojo, a cultura afro-brasileira ganhou importância no cenário
nacional, com reconhecimento das tradições na culinária e na religião, assim como
na música e na dança, diferentemente do pensamento racializado com que foi
abordado em “Os Sertões”, de Euclides da Cunha (1901), e em a “Evolução do
povo brasileiro”, de Oliveira Viana (1922), em que a mistura de raças era
responsabilizada pelo atraso do Brasil.
Ao contrário dessa visão, nos anos trinta do século XX, a história do
pensamento social brasileiro viveu uma “virada cultural” com a publicação de
“Casa-grande e Senzala” (1933) de Gilberto Freyre. Com ele, foi inaugurada uma
visão culturalista na interpretação do Brasil. No lugar da visão racialista,
pessimista, em que o atraso do Brasil estaria na mistura das raças, como
apontavam os autores citados acima, Freyre (1933) passou a explicar o Brasil pela
diversidade de cultura e não de raça.
Hoje, ainda é recorrente os livros didáticos de Geografia utilizarem a
perspectiva culturalista iniciado por Freyre (1933), para interpretar a diversidade
social brasileira, como será visto na próxima seção.
4.2 A cultura afro-brasileira: da cozinha ao hip hop
Cultura é um conceito amplo que possui muitos sentidos. Seu significado
vem de Kultur no alemão, que simbolizava os aspectos espirituais de uma
comunidade, e de Civilization, no francês, que significava as realizações materiais
de um povo. Tais sentidos foram reunidos na língua inglesa na palavra Culture,
que passou a significar todas as possibilidades da realização humana (LARAIA,
2002, p. 25) e, desde então, este conceito tem sido ampliado por outras línguas e
linguagens, agregando diferentes significados, que vão do universal ao particular,
através do modo com que cada pessoa se vê e se representa no espaço.
Esse significado derradeiro mostra que cultura é uma representação social
e, que, como tal, está intrinsecamente relacionada às linguagens e às
127
representações simbólicas, ou seja, com tudo aquilo que é significado pelo
homem. Não é, portanto, uma coisa que emana do sobrenatural; é um constructo
social, é fruto da ação humana e da sua materialidade, o que faz ela ser dinâmica e
dialética. Como produto da materialidade, sua produção varia de tempo e de lugar
e com sentidos diferentes. Vale ainda dizer: ela é produzida, primeiro, na mente
das pessoas e, a posteriori, na ação política assentida e significada, nas relações e
nas contradições sobre si mesma.
Nesta presente seção, o objetivo é refletir sobre a cultura de matriz afro-
brasileira apresentada pelos autores dos livros didáticos de Geografia, nos quais se
buscou compreender como essa matriz, com suas diferenças culturais, são
reconhecidas dentro das suas diferenças.
Para discutir essa questão, foi apresentado um conjunto de textos extraídos
dos livros didáticos de Geografia numa perspectiva histórica e social, em que o
pesquisador não se prendeu a fatos isolados e a elementos estanques. Ao
contrário, diante da diversidade de textos que tem como abordagem a cultura
nacional, buscou identificar os discursos afro-brasileiros e os sentidos pelos quais
foram consagrados no imaginário social, assim como o seu reconhecimento no
currículo escolar.
Num segundo momento da presente seção, buscou-se identificar as
tendências: i) a cultura crítica, que é vista como um território contestado; ii) e a
cultura pós-crítica, que é considerada um campo discursivo, cuja diferença
cultural é reconhecida dentro da diferença.
Sobre a cultura nacional, para Hall (2006), ela é forjada com o objetivo de
unificar aquilo que é comum e de desenvolver o sentido de pertença de um povo.
Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir
sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a
concepção que temos de nós mesmos. [...] As culturas
nacionais, ao produzir sentidos sobre “a nação”, sentidos com
os quais podemos nos identificar, constroem identidade. Esses
sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a
nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e
imagens que dela são construídas (HALL, 2006, p. 50-51).
Nesse caso, a construção da cultura nacional, como um discurso
construído, para o campo da educação, é vista sob uma perspectiva crítica, que
128
deve passar por um processo seletivo determinado pelos grupos hegemônicos.
Esses grupos agem em comum acordo com o Estado, que, através do mercado
editorial, com os seus especialistas, fazem a seleção do que deve e o que não deve
ser significado como cultura e, com isso, a cultura é selecionada e distribuída
através dos livros didáticos.
No Brasil, o governo federal, através do Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação – FNDE, desenvolve uma política nacional de
cunho universal, através do Programa Nacional do Livro Didático – PNLD, sob a
chancela do Ministério da Educação e Cultura – MEC, que, hoje, se ocupa em
distribuir, para todas as unidades escolares de ensino público, o livro didático de
todas as disciplinas do currículo nacional comum, do ensino fundamental e médio.
Entendemos que essa política faz do livro didático o currículo oficial, com poder
de inculcar no imaginário de cada geração aquilo que foi legitimado pela cultura
nacional comum, ou seja, aquilo que deve parecer comum a todos. Contudo, por
outro lado, mostra o lado excludente da seleção.
Neste processo seletivo, culturas são eleitas e culturas são excluídas.
Quando a cultura é vista deste ponto, no campo do currículo, vai além de “um
modo de vida”, como aquele primeiro significado apresentado na abertura desta
seção. Uma visão crítica sobre cultura no livro didático põe, em questão,
perguntas do tipo: por que uma cultura é incluída e outra é excluída? Por que uma
cultura é reconhecida de forma positiva e outra é reconhecida de forma negativa?
Sobre a cultura nacional, no que tange à inclusão da matriz afro-brasileira,
essa passou a ser incluída pela cultura nacional e de forma positiva, a partir dos
anos 30, com a publicação de Casa-grande e senzala de FREYRE (1933), que,
pioneiramente, passou a interpretar o Brasil com base no paradigma culturalista, o
oposto do paradigma racialista que, até então, era utilizado pelos pensadores e
intérpretes do pensamento social brasileiro, que tinham o cuidado de divulgar a
história oficial, que teve a sua origem nos “guardiões” do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro – IHGB, (SCHWARCZ, 1993).
A nação, cuja mistura de raças estava determinada a fracassar, viu nascer,
com o paradigma culturalista, novas luzes sobre um Brasil que começava a se
descobrir e a se valorizar pelas diferenças culturais, pelas quais se reconhecia e
129
não se condenava por isso. Ao mesmo tempo, é importante ressaltar que a
valorização da cultura nacional não minimizava o racismo brasileiro. Ao contrário,
a exaltação das diferenças bifurcava-se para a sua valorização e, ao mesmo tempo,
para a afirmação do mito da “democracia racial” (FERNANDES, 1978).
Por isso, sobre este período, não podemos incorrer no romantismo ingênuo
de pensar que todas as culturas passaram a ser reconhecidas, como também não
podemos “jogar fora a água do banho com o bebê”, ou seja, embora não ocorresse a
integração das “raças” e culturas, não podemos deixar de afirmar que o período em
questão foi significativo, representou um salto político, sobretudo porque o
reconhecimento do Brasil reverberou para a educação que passava a refletir sobre
tendências pedagógicas menos tradicionalistas e mais democráticas, desencadeadas
por reformas no âmbito da educação, como ressalta Moreira (1990, p. 91-92):
As reformas elaboradas pelos pioneiros representaram um
importante rompimento com a escola tradicional, por sua ênfase
na natureza social do processo escolar, por sua preocupação em
renovar o currículo, por sua tentativa de modernizar métodos e
estratégias de ensino e de avaliação e, ainda, por sua insistência
na democratização da sala de aula e da relação professor-aluno.
Consequentemente, no bojo dessas reformas, em 1937 foi criado o
Instituto Nacional do Livro – INL, na gestão do então ministro, Capanema
(SCHAFFER, 2001). Desde então, o livro didático tem sido uma política de
Estado, que, é notório observar, ao longo de sua trajetória tem alcançado uma
melhoria de cunho qualitativo e quantitativo. Ele é o espaço no qual a cultura
oficial passa por um processo seletivo, para então chegar ao público específico – o
aluno. Nesse caso, a cultura nacional, abordada no livro didático não é um
conjunto de conteúdos selecionados aleatória e desinteressadamente e, muito
menos, algo que seja neutro sem pretensão de quem elabora. É certo que sua
organização tem um fim em si mesmo, no qual subjaz o interesse implícito e
explícito dos grupos hegemônicos que têm o poder de sistematizar, selecionar e
legitimar, para daí passar a ser feita a sua distribuição, através dos órgãos
governamentais como o PNLD/FNDE26
do governo federal, às unidades
escolares.
Estas sistematizações assinalam os “territórios” da cultura de
onde se selecionam componentes do currículo. Os critérios para
26
Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação.
130
selecioná-los entre eles mesmos são os seguintes: buscar os
elementos básicos para iniciar os estudantes no conhecimento e
acesso aos modos e formas de conhecimento e experiência
humana, as aprendizagens necessárias para a participação numa
sociedade democrática, as que sejam úteis para que o aluno
defina, determine e controle sua vida, as que facilitem a escolha
e a liberdade no trabalho e no lazer e as que proporcionem
conceitos, habilidades, técnicas e estratégias necessárias para
aprender por si mesmo (SACRISTÁN, 2000, p. 60).
O currículo tem a função social de mediar e de facilitar a apreensão da
cultura oficial. Esta última é sistematizada por disciplinas em que, cada uma, vai
tratar das especificidades de acordo com sua área de conhecimento. Atualmente,
no caso da disciplina de Geografia, a cultura nacional aparece prescrita nos
Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs de Pluralidade Cultural, em que o
mesmo recomenda:
Conhecer a diversidade do patrimônio etnocultural brasileiro,
cultivando atitude de respeito para com pessoas e grupos que a
compõem, reconhecendo a diversidade cultural como um direito
dos povos e dos indivíduos e elemento de fortalecimento da
democracia (BRASIL, 1997, p. 143).
A partir dessas referências oficiais, dos livros didáticos de Geografia
analisados foram selecionados trechos de textos que retratam a cultura afro-
brasileira acerca do seu valor como parte do patrimônio nacional. Para isso,
observou-se que os autores foram cuidadosos na adequação dos textos, que,
tiveram como fim, atender os objetivos propostos pelos Parâmetros Curriculares
de Pluralidade Cultural e de Geografia (1997).
A priori, pôde se notar que os autores são recorrentes em destacar a música
e a dança, assim como a religião e a culinária como marcadores da cultura
nacional. Se a cultura nacional é um discurso construído, como afirmou Hall
(2006), ela é também um discurso seletivo, que se segue segundo o interesse
político e ideológico dos grupos hegemônicos, sendo eles quem determina o que
deve ser prescrito no livro didático ou não, o que serve como um mecanismo de
distribuição e de controle. Neste caso, hoje, podemos afirmar, a cultura afro-
brasileira encontra-se presente nos livros didáticos, em diversas perspectivas
epistemológicas, como descrevem os autores a seguir.
Neste parágrafo, o marcador destacado foi a música. Diz o autor:
131
A influência cultural dos diversos grupos indígenas deu-se, sobretudo por meio da
culinária, como no uso do milho e da mandioca, e da incorporação de palavras do
vocabulário de diversos grupos indígenas. Os africanos, durante o período da escravidão,
contribuíram com a religião, especialmente com a prática do candomblé e umbanda, na
música27
, com a utilização de instrumentos como o atabaque e o pandeiro [...], e na
língua (SAMPAIO, 2009, p. 15).
Hoje, o samba, é instituição nacional. Mas, no século XX, atabaques e
pandeiros eram instrumentos marginalizados e reconhecidos como “coisas” de
negros. Para a sociedade que não se aceitava mestiça, a música nascida no morro,
desceu a ladeira, chegou ao “asfalto”, um espaço de brancos, e esse se sucumbiu
ao samba.
Música é feita de ritmo, melodia e harmonia. É meio pelo qual o intérprete
representa o mundo que vê e que sente. Como linguagem ela é arte, sensibiliza e
ao mesmo tempo democratiza espaços, como os mostrados na imagem 03.
À direita, o desfile da escola de samba “União da Ilha” na Marquês de
Sapucaí, Rio de Janeiro. Um retrato da manifestação democrática, um
caleidoscópio cultural da mistura de cores, raças, classes e religiões, no qual se
celebra a festa mais popular do Brasil.
À esquerda, o festival de Parintins, apresentação folclórica do boi-bumbá,
a maior manifestação regional do Amazonas. Lendas indígenas e ribeirinhas são
representadas por canto e dança.
27
Grifo nosso.
Imagem 03. Manifestações Populares (SAMAPAIO, 2009, 40)
132
A contribuição cultural dos povos africanos à cultura brasileira é grande. Elementos dessa
herança podem ser percebidos na nossa música, dança28
, [...] (MAGALHÃES et alli,
2008,p.41).
Na dança, é grande a contribuição da cultura negra, como mostra a
imagem 04. O desfile das escolas de samba na cidade do Rio de Janeiro, o ícone
midiático do carnaval nacional, mostra o “samba no pé”, que entretém e agrega
todas as classes e culturas. O carnaval da Avenida Marquês de Sapucaí representa
a integração do morro com o asfalto, celebra as misturas embaladas nos sambas
enredos, que traduzem a nossa história na boca e no pé.
Nota-se, entretanto, ao observar os livros didáticos, que a música e a
dança, de herança afro-brasileira, (MOTA, 2008), até o início do século 20 foram
marginalizadas. Todavia, a partir do “Estado Novo”, com novas políticas
educacionais, houve o incentivo pelas manifestações populares oriundas desse
segmento e o governo passou a reconhecê-las como parte da cultura oficial. Hoje,
a cultura afro-brasileira se integra à cultura nacional e tem sido uma referência da
nossa brasilidade, da nossa identidade, daquilo que nos define e nos afirma.
Com a religião não foi diferente. O Brasil, um país que havia assumido
oficialmente a religião católica, só tempos depois passou a reconhecer as demais
matrizes e credos religiosos como aqueles que compõem o quadro sincrético das
manifestações de diferentes vertentes no país. No caso das religiões afro-
brasileiras, o candomblé, a umbanda, a quimbanda e outras, coube ao Estado fazer
o seu reconhecimento e, como de direito de liberdade de expressão religiosa,
foram enquadradas como religiões oficiais, “apesar da repressão sofrida pelos
povos africanos durante o período de escravidão, suas manifestações culturais, tais
como a música, a religiosidade”29
(DANELLI, 2007, p.43). Daqueles que para
aqui foram forçados a migrar, é sabido que, consigo, trouxeram apenas seus
corpos. Suas memórias e suas visões de mundo imaterial, como a religiosidade, a
experiência com o sobrenatural, vieram na mente de cada um e aqui foram
ressignificadas. Desse modo, ainda que houvesse a repressão sobre estas
diferentes matrizes, visto que isto foi real, ao mesmo tempo essas mesmas
matrizes buscavam formas de resistir à repressão oficial. Hoje, a liberdade de
28
Grifo nosso. 29
Grifo nosso.
133
culto religioso é garantida na Constituição, embora os conflitos e tensões
continuem a existir.
Atualmente, na educação formal, abordar a religiosidade de matriz
africana como uma práxis de ensino tem sido um desafio para o docente. Isto
porque, até a homologação da lei 10.639/03, esta temática estava silenciada, ou,
quando aparecia nos programas e currículos, era recorrente deparar com textos e
imagens com conteúdos estereotipados que reafirmavam a discriminação. Hoje,
com a lei, outras demandas apareceram, como aponta Silva (2005), ao que ele se
refere como despreparo do docente para abordar a temática religião:
A propósito, os PCNs sugerem posturas diferenciadas, mas as
políticas educacionais precisam ir muito além, promovendo a
qualificação de docentes para os desafios contemporâneos. Isto
significa investir em parcerias com o movimento social, com a
academia, entre outros setores, a fim de alfabetizar gestores e
seus subordinados sobre os temas que o processo histórico
atesta terem permanecido à margem do contexto escolar, a
exemplo de questões também de ordem cultural como o racismo
e a intolerância religiosa (SILVA, 2005, p. 122).
Sobre este contexto, há, portanto, também de se enfrentar o racismo e
intolerância religiosa, ainda hoje tabus que, como tais, devem ser combatidos
através de um ensino para a diversidade. Esta constatação, feita pelo autor, reforça
a ideia de que é urgente a ampliação de programas de formação continuada para
docentes. Antes da homologação da lei 10639/03, no Brasil, o ensino superior não
oferecia, em seus currículos de licenciaturas, disciplina que tratasse da cultura
afro-brasileira de forma combativa ao racismo e à intolerância. Essa negação é
histórica vem dos tempos da Colônia o reconhecimento negativo. Havia por parte
das estruturas socioculturais o assentimento da satananização das religiões de
matriz afro-brasileira.
Atualmente, a religião afro-brasileira é conteúdo obrigatório no currículo
da educação básica. Entretanto, para este pesquisador, o maior desafio é a
formação continuada do professor, que depende de parcerias de todos os tipos de
instituições voltadas para a produção do conhecimento e daquelas que militam
pela causa. Muitos têm sido os estados e municípios que fazem investimentos na
formação de professor, entretanto, ainda insuficiente para qualificar a sua maioria.
Por outro lado, ao mesmo tempo, em que se busca a qualificação, os livros
134
didáticos atuais têm enfatizado a importância de se conhecer a cultura afro-
brasileira e seus marcadores culturais. Como já vimos até aqui, desde que a
cultura afro-brasileira se tornou cultura oficial, ela passou a fazer parte dos
currículos e programas. Hoje, podemos ver os diversos tipos de manifestação,
como, por exemplo, a imagem abaixo, em que o autor destacou uma manifestação
religiosa (SAMPAIO, 2009):
De tradição iorubá, Iemanjá é considerada, pelas religiões de matriz
africana, a rainha dos mares. Em várias regiões do Brasil, é costume de seus
devotos cultuá-la nos festejos, com flores e cantos. No campo da simbologia, o
elemento água representa força, liberta e abre caminhos, que na mitologia afro,
Iemanjá é sinônimo de resistência, de mulher destemida, que soube invocar as
forças da natureza e abriu o caminho para o mar (PALITOT, 2007, p. 03). Nota-se
a transição entre a realidade e o mundo imaterial. O mito de Iemanjá fundamenta-
se na família, na autovalorização feminina em oposição à opressão e ao
machismo, enquanto, por outro lado, o sobrenatural é o subterfúgio na resolução
dos problemas do mundo material.
Outra forma de manifestação e de resistência afro-brasileira é a capoeira.
Para Danelli (2007), a capoeira alegra o país.
Imagem 04. Oferendas à Iemanjá. (SAMPAIO, 2009, p.15)
135
O Brasil está mais alegre ao som dos berimbaus, que soam nas praças, nas rodas de
capoeira no bailado dos corpos negros. É a estética da resistência. É o mostrar-se ao
mundo, com dignidade. É o saber cultural de um povo forjado na luta que está inscrito
para sempre na história da identidade brasileira.” (DANELLI, 2007, p. 44).
Mas isso nem sempre foi assim. A capoeira nasceu como instrumento de
luta usado por escravos e quilombolas contra a repressão colonial. Após a
Abolição, ela sofreu um golpe do judiciário, que proibiu sua manifestação. Só em
1932, o Estado reconheceu-a como cultura nacional e, desde então, deixou de ser
uma ameaça social. Hoje é um ícone da identidade nacional, como mostra a
imagem 06.
Hoje, a capoeira está presente em diversos espaços sociais. Na escola, por
exemplo, sua valorização e seu resgate têm como marco a lei 10.639/03, que, de
acordo com a LDB 9394/96, propõe o seguinte artigo:
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de
ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o
estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. § 1o O
conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá
diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a
formação da população brasileira, a partir desses dois grupos
étnicos, tais como o estudo da história da África e dos
africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a
Imagem 05. Capoeira: luta & dança (PIRES & PIRES, 2009, p. 68).
136
cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na
formação da sociedade nacional, resgatando as suas
contribuições nas áreas social, econômica e política,
pertinentes à história do Brasil (BRASIL, 2004).
Agora, a capoeira é reconhecida como arte e, como tal, deve ser
reproduzida, como cultura nacional. Todavia, nem sempre foi assim. Se hoje a
capoeira é reconhecida como cultura oficial e se tornou um ícone nacional, no
passado custou muita luta com o poder político para conseguir esse respeito
social. A capoeira, até a década de 30, era marginalizada e quem a praticava era
considerado um “capoeira”, aquele que seria sem moral, vingativo, traiçoeiro. Se
hoje ela é praticada por todas as “raças” e classes, foi porque os movimentos
sociais negros lutaram não apenas com o corpo, mas contra o preconceito à sua
cultura para que as suas diferenças culturais fossem prestigiadas e se tornassem
importantes na cultura nacional,
Na culinária não foi diferente. Conhecida nacionalmente como um prato
tipicamente afro-brasileiro, reza o mito fundacional que a feijoada foi criada pelos
africanos, como afirmam os autores: “Em nossa culinária, que é uma das mais
diversificadas do mundo, encontramos a influência de povos como os africanos,
que criaram a feijoada” [...] (PIRES e PIRES, 2009, p.68). Entretanto, fontes
históricas afirmam ser a feijoada uma culinária conhecida dos europeus antes
mesmo de aqui chegar e que, no Brasil, no século XIX, era um dos pratos
preferidos da elite carioca. Portanto, a lenda de que ela teria vindo da senzala não
passaria de uma “bela estória” (ELIAS, 2007, SILVA e GOMES, 2008). Longe de
contradizer tais fontes, contudo, entendemos que, popularmente, a feijoada foi
institucionalizada como um ícone tipicamente afro-brasileiro.
Enfim, os marcadores que aqui foram grifados, música, dança,
religiosidade, capoeira e feijoada, sob a apresentação dos autores dos livros
didáticos de Geografia do sétimo ano, são considerados instituições que compõem
a cultura nacional.
Hall (2006) chama isso de tradições inventadas, narrativas do mito
fundacional do país. Diz ele:
Tradições que parecem ou alegam ser antigas são muitas vezes
de origem bastante recente e algumas vezes inventadas.
Tradição inventada significa um conjunto de práticas..., de
natureza ritual ou simbólica, que buscam inculcar certos valores
Imagem 05. Capoeira: luta & dança (PIRES & PIRES, 2009, p. 68).
137
e normas de comportamentos através da repetição, a qual,
automaticamente, implica continuidade com um passado
histórico adequado [...] (HALL, 2006, p. 54).
Na nossa tradição inventada, os marcadores afro-brasileiros, certamente,
no passado, foram relegados e até mesmo proibidos. No presente, são
reconhecidos como patrimônio material e imaterial, uma conquista social e
política, que, têm sido importantes como marcadores da identidade nacional.
Hoje, a Constituição Federal (1988) dispõe no seu Artigo 215, inciso
primeiro, o papel de o Estado fazer a proteção das “manifestações das culturas
populares, indígenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do
processo civilizatório nacional” e, na LDB 9394/96, o Artigo 26 diz ser
obrigatório, no currículo nacional de base comum, a inclusão dessas culturas; para
complementar, foi acrescentado o Artigo 26 A, pela lei 10.639/03, que tem como
fim fundamentar o caráter político e epistemológico desta obrigatoriedade.
Neste sentido, do conjunto de textos extraídos dos livros didáticos de
Geografia, o recorte, a seguir teve, como fim, abordar cultura como espaço de
reconhecimento da diferença afro-brasileira na diferença e como lugar de
transformação social. Ao mesmo tempo, para isso, foram reconhecidas também as
múltiplas linguagens de diferentes grupos e indivíduos com as quais cada um
trazia a sua diferença:
Em meados da década de 1980, muitos jovens se encontravam com bastante frequência
no Largo São Bento, no centro da cidade de São Paulo. Eles faziam parte de um
movimento político-cultural denominado hip hop, em que discutiam as condições sociais
do negro em nossa sociedade. Nesse lugar, eles se expressavam por meio da arte, como a
dança, a música, a poesia e o grafite, e assim mostravam suas posições diante dos
problemas. A atuação do grupo nessa área era intensa. Além de divulgar o movimento,
não permitiam atitudes discriminatórias e reivindicavam seus direitos, exercendo,
portanto, uma luta cidadã. Ao delimitar uma área e nela atuar, esse grupo estabelecia
diferentes relações; entre elas destacam-se o poder que exerciam sobre aquele espaço e a
identidade negra. Assim, sua atuação pode ser identificada como a delimitação de um
território. Porém, a delimitação de um território não acontece sem conflitos. Esse grupo,
por exemplo, encontrou resistência de pessoas que apresentavam posições contrárias, o
que resultava em embates. Isso pode ocorrer quando um grupo social delimita um
território e o utiliza para se expressar, para mostrar sua posição político-cultural.
Território pode ser definido, portanto, não apenas como a configuração política de uma
cidade, estado ou país, mas um espaço construído em embates políticos, culturais, sociais
e econômicos. A delimitação de territórios pode ocorrer tanto na cidade como no campo,
os quilombos e as áreas indígenas são exemplos de territórios. BIGOTTO, J. F. [et al.].
Geografia sociedade e cotidiano: espaço brasileiro, 7º ano. São Paulo: Escala
Educacional, 2009, p. 8-9.
138
Tal fragmento de texto foge ao estilo dos recortes até então apresentados,
de discurso elogioso no tocante ao reconhecimento da música, dança, comida e
religião de matriz afro-brasileira, como marcadores da cultura nacional. Para esses
autores, a cultura é vista como um território de contestação e de gestão de
conflitos. A dança e a música, a poesia e o grafite, são meios que grupos e
indivíduos têm para dizer e contradizer o Outro. Neste sentido, a arte é o pano de
fundo e, ela tem um potencial para dinamizar. Ao mesmo tempo, os atores sociais
conseguem interagir na diferença da diferença com outros grupos sociais, em
torno de um mesmo projeto comum o que, geralmente, tem como fim a busca da
liberdade e da justiça social. Imagem 06:
Como mostrado nesta imagem, hoje, jovens buscam novos espaços em que
eles se sentem com liberdade para expressar suas opiniões e, ao mesmo tempo,
mostrarem a arte de cada um. No espaço urbano é possível de se ver como que os
micros lugares, muitas vezes, são ressignificados pelos atores sociais que buscam
expressar o seu ponto de vista sobre o que eles pensam de si e da sociedade. A
arte é linguagem. As diferentes linguagens, sejam elas do esporte, da música ou da
dança, têm se tornado cenas nas cidades do cotidiano, jovens de todas as cores,
raças, e credos buscando o seu espaço, ou seja, a sua liberdade de dizer sobre si e
Imagem 06. Jovens no Ibirapuera. (BIGOTO, 2009, p. 9)
139
sobre ou outros. Isto porque a cultura tem um significado crítico e de contestação.
Por outro lado, pode ser observado, nos diferentes espaços, que a desigualdade
social ainda atinge diretamente os jovens de origem negra. Eles trazem a herança
histórica de desigualdade reproduzida pelo sistema político e econômico e, contra
isso, os jovens negros têm buscado espaço alternativo, como o hip hop, no qual
colocam a voz e protestam contra a opressão social e racial.
Enfim, retomando o topo dessa seção, a cultura afro-brasileira, como
cultura oficial, teve seu reconhecimento pelo Estado a partir dos anos trinta - de
marginalizada, tanto na música quanto na religião, passou a ser reconhecida e a
fazer parte da cultura nacional. No bojo do ideário nacionalista, Casa-grande e
senzala, Freyre (1933), trouxe uma nova abordagem sobre a interpretação do
Brasil, ao substituir o marcador raça por cultura. Isto levou à inversão de
reconhecimento que, até então, imputava às “raças” inferiores o atraso social do
país, agora, a diversidade etnicorracial passava a ser reconhecida pelo Estado e
este reconhecimento colocava o Brasil com os olhos voltados para o futuro, como
o país que se assumia multirracial.
No âmbito da educação, a incorporação da cultura afro-brasileira pelo
Estado como cultura oficial se efetivou com a criação da política nacional do livro
didático (1938). Desde então, esta política avançou e, atualmente, o currículo
nacional comum da educação básica tem passado por uma nova roupagem,
principalmente com a homologação da lei 10.639/03, cujo objetivo tem sido o
reconhecimento da cultura afro-brasileira e o combate ao racismo (BRASIL,
2004).
O que se conclui é que existe, uma intrínseca relação política entre
sociedade, Estado e educação. A sociedade é controlada por grupos hegemônicos
que utilizam mecanismos sutis para situar o discurso dominante de cultura como o
necessário e único e, ao mesmo tempo, o Estado, o monopólio legítimo do poder
por ele, culturas são oficializadas e outras, não. Nesta lógica reprodutivista, a
educação segue a dinâmica econômica e política da sociedade, retroalimentando
os interesses dos grupos dominantes que optam por certos temas e discursos em
detrimentos de outros. Numa abordagem crítica de cultura, para complementar,
Moreira e Silva (2002, p. 26) colocam que a “educação e currículo são vistos
140
como profundamente envolvidos com o processo cultural,” porque, para eles, a
cultura é um campo de disputa e de possibilidade na transformação social.
Finalizando, nesta perspectiva, a seção apontou que, para maioria dos
autores, o discurso sobre a cultura afro-brasileira passa pelo reconhecimento dos
marcadores culturais, música, dança, religiosidade, capoeira e comida
(SAMPAIO, 2009; MAGALHÃES, 2008; DANIELLI, 2007; PIRES & PIRES,
2009). Ao mesmo tempo, observa-se que esses autores foram redundantes na
linguagem elogiosa ao destacar a importância, a influência e a contribuição da
cultura afro-brasileira através desses marcadores. Não obstante, o presente
pesquisador manteve sua proposta inicial de que os fragmentos textuais e
imagéticos seriam refletidos à luz da abordagem crítica e pós-crítica de cultura.
Neste sentido, as narrativas foram analisadas dentro de uma perspectiva histórico-
social e os discursos “elogiosos” foram tensionados com vista no passado social
do negro, o qual era firmado em preconceitos e estereótipos.
Bigoto (2008), dentre os autores dos livros didáticos, foi o único a
apresentar uma abordagem da cultura para além da intenção elogiosa. Ele debateu
a cultura como um espaço de contestação, um lugar em que se luta pela
transformação social, como mostra o seu recorte na página 137. Para completar,
ele ilustrou o seu texto com uma imagem que inspira arte como linguagem, com
hip hop, grafite e poesia, daqueles que lutam contra a opressão e pelo direito de
ter direito na diferença.
Vimos, então, nesta seção, que o livro didático ocupa um lugar estratégico
entre cultura, sociedade e escola. Ele é o espelho sobre o qual rebatem interesses,
políticos e ideológicos, que se materializam através do currículo. Este último não
é apenas um conjunto de conteúdos organizado por técnicos e distribuído pelo
governo às escolas. Ao contrário, o currículo é um campo de disputas e de arranjo
econômico e social, pelos quais se refletem épocas, saberes e ideologias.
141
4.3 Raça e renda: negros e brancos em espaços desiguais
Nesta penúltima seção, os textos apresentados, extraídos dos livros
didáticos de Geografia do sétimo ano, abordam a exclusão do negro dos espaços
sociais, com base no conceito de raça e renda. Com efeito, fomos educados, na
cultura do pensamento liberal, a identificar a exclusão, com maior frequência,
pelos indicadores sociais e não pelos marcadores raciais com um sentido social.
Isto fez com que, com o tempo, fosse gerada no inconsciente nacional a ideia de
que a causa da desigualdade entre negros e brancos não seria uma questão de
preconceito racial, mas apenas de preconceito social. A ideia que vingou e se
fixou no imaginário nacional, portanto, foi a de que o preconceito no Brasil é
social, fazendo cair no esquecimento a desigualdade de raça. O Estado e a cultura
dominante avalizaram esse discurso. Dessa forma, não fazia sentido assumir o
racismo, já que a sociedade se orientava em viver “plenamente” uma democracia
racial.
No país da República, “todos são iguais”, isso já estava consumado desde
a Constituição de 1891; no mesmo sentido, nos anos trinta, o nacionalismo
também propalava esse ideal de igualdade, o que fazia esquecer as contradições à
época e, desde então, o racismo teria ficado para trás, o mesmo havia sido
sepultado junto com a escravidão no século passado.
Porém, há sem dúvida, controvérsias sobre esse ideal de igualdade de
inspiração liberal. Para Fernandes (1978; 2008), isto não passou do que ele
chamou de “mito da democracia racial”. Acerca desse período de otimismo, de
afirmação positiva, o autor diz ser a situação do negro a mais aviltante: o mesmo
foi alijado de direitos sociais e sua garantia de igualdade estava apenas na lei. A
ele faltava o acesso à educação, à igualdade de oportunidade e a uma cidadania e
segundo seu ponto de vista, é possível que, ainda hoje, esta realidade não se
mostre tão diferente da que ele dizia.
Hoje, a disparidade entre negros e brancos ainda persiste no quadro social
brasileiro. Na verdade, a trajetória do negro conta com um agravante histórico - no
passado, foi-lhe negada a igualdade de oportunidade e isto se arrasta atualmente
fazendo-nos acreditar ser essa causa de ele não ter conquistado a sua plena
paridade de status com o branco. Basta olhar para o atual judiciário brasileiro, no
142
seu degrau mais alto – o Supremo Tribunal Federal (STF) _ lugar sobre o qual se
espelha a realidade desigual, na proporção de Ministros por cor e gênero. No total,
são dez. Sua divisão: Ministros, homens e brancos, sete; Ministros, homens e
negros, um; Ministras, mulheres e brancas, duas; Ministras, mulheres e negras,
zero. O homem negro perde por cor e por gênero; encontra-se atrás do homem
branco e da mulher branca. A mulher negra perde em todas as comparações. Ela
está ausente neste espaço. Por quê?
O fato de o homem negro e de a mulher negra encontrarem-se em menor
número em ocupação de status elevado comparados com o homem e com a
mulher branca, em qualquer setor social de trabalho, não pode ser atribuído a sua
incapacidade intelectual, mas à sua trajetória social, que teve a sua origem num
passado excludente. De fato, historicamente, estes fazem parte de um grupo da
população brasileira que até então se encontrava fora do direcionamento dos
setores de políticas universais efetivas e também de políticas de ação afirmativa.
Por isso, nesse sentido, o objetivo especifico desta seção é apresentar os recortes
textuais que tratam da causa da desigualdade entre negros e brancos, apontada
pelos autores sob duas abordagens diferentes. Em uma, a causa principal da
desigualdade seria a raça e, na outra, a renda, ou seja: a primeira discute os efeitos
da discriminação racial e a segunda acusa a má distribuição de renda.
Na perspectiva deste pesquisador, raça e renda são indicadores que
permitem cartografar a realidade social de uma sociedade, de representar os seus
avanços e contradições. Um conceito não excluiria o outro: renda serviria para
mostrar a distribuição e o acesso ao status quo e raça, para mostrar a estrutura
hierárquica, em que se construíram historicamente os estratos sociais. Raça é uma
“velha” questão do mundo, desde quando já se utilizava do conceito para
hierarquizar e discriminar gente. Ocorre que, na Modernidade, o conceito foi
ressignificado politicamente e ganhou espaço no campo das Ciências Naturais no
século XIX e alcançou o status de ciência por certo tempo, até deixar de ser no
campo da Biologia (MUNANGA, 1999, p. 21).
Hoje, quando nos referimos ao conceito “raça” no que tange ao estudo da
população, geralmente, o sentido recorrente, pelo qual ele é lembrado, é o
biológico. Historicamente, na Era Moderna, o discurso de raça foi
143
institucionalizado a partir de significados que se baseiam nos referenciais de
linhagem sanguínea, cor da pele, tamanho do crânio e etc., criado pela suposta
“ciência” que se tornou determinante na hierarquização da população, classificada
em raça superior e inferior. O pensamento racial moderno se misturava, assim,
com o projeto de colonização europeia, quando, no século XV, o conceito de
humanidade foi colocado em dúvida a partir da descoberta dos povos negros,
ameríndios, melanésios, etc., que, à época, foram classificados pelos europeus
como raças inferiores (Idem, 1990). Tal crença inspirou teorias e doutrinas raciais
que serviram de pano de fundo para justificar o trabalho compulsório e o
ultrajante tratamento social que o colonizador passou a exercer sobre os
ameríndios e africanos. Isso teve duração até final do século XIX, quando a
escravidão foi abolida no Brasil.
Entretanto, a Abolição não significou o fim da supremacia racial europeia
sobre os povos racialmente hierarquizados. O então século XX, que estava
começando, pôde assistir, no decorrer de sua história, ao desdobramento do
projeto “civilizatório” iniciado no século XIX pelo imperialismo em África e Ásia
a se materializar com o desencadeamento da Primeira e da Segunda Guerra
Mundial, que teve como seu “ideal” (a Segunda Grande Guerra) alcançar a pureza
da raça, o que levou à ascensão do nazismo e findou com o holocausto
(MUNANGA, 1999). De certo, o saldo de exclusão social do século XX foi
herdado de uma época cujo pensamento firmava-se em torno do hiato raça, e que,
ainda hoje, separa o indivíduo em superior e inferior por uma perspectiva histórica
e não biológica.
Embora as ciências naturais, através da genética, comprovem que raça não
existe e isto ser incontestável, para as ciências sociais o sentido biológico de raça
não é determinante. As mesmas operam com outros paradigmas diferentes do das
ciências naturais. Para as Ciências Sociais, raça tem um sentido político e social e,
como tal, sempre foi usada para hierarquizar e classificar pessoas em inferior e
superior (QUIJANO, 2005). Basta olhar para a história da eugenia mundial: países
ditos democráticos, tanto na Europa como na América, desenvolveram políticas
públicas e privadas eugenistas, baseadas no aperfeiçoamento do homem e na sua
evolução, a cada geração, pela busca do perfil de um ser saudável, belo e forte
(DIWAN, 2007, p. 22).
144
Mas, ao mesmo tempo, raça ultrapassou o campo teórico e se materializou
como política de Estado. Desde sua adoção, gente foi classificada e hierarquizada,
assim como exterminada em nome da raça “pura” – a história é testemunha. A
questão que se põe atualmente é: como desierarquizar pensamentos e estruturas
sociais que foram hierarquizados segundo o paradigma racial?
Na opinião de Ikawa (2008), raça desde sempre serviu para:
(...) a construção de hierarquias morais convencionais não
condizentes com o conceito de ser humano dotado de valor
intrínseco ou com o princípio de igualdade de respeito (...). Se a
raça foi utilizada para construir hierarquias, deverá também ser
utilizada para desconstruí-las (IKAWA, 2008, apud
LEWANDOWSKI, 2012).
Este pensamento foi acolhido recentemente na jurisprudência brasileira,
com base no parecer do Ministro do STF, Ricardo Lewandowski, em 2012, que se
posicionou e votou favorável à “adoção de cotas raciais para o ensino superior”.
Para tal, à época, em suas argumentações, entre muitas das referências, esta autora
foi uma delas, que ele citou, por refletir sobre a raça na perspectiva social. No seu
entendimento, as cotas representam um meio à universidade. Uma das formas de
se permitir àqueles que têm menos possibilidades, e que no passado foi negado o
direito de alcançar a igualdade de direito, de chegar ao ensino superior. Hoje, as
cotas tem a função de fazer a reparação social. Atualmente, essa desigualdade
social ainda resvala sobre seus descendentes afro-brasileiros, que continuam
carecedores de reconhecimento e de igualdade de status (FRASER, 2007, p. 118).
Neste mesmo sentido, Hall (2006) diz ser raça uma construção de
linguagem com sentidos ideológicos diferentes. Segundo o autor:
A raça é uma categoria discursiva e não uma categoria
biológica. Isto é, ela é a categoria organizadora daquelas formas
de falar, daqueles sistemas de representação e práticas sociais
(discursos) que utilizam um conjunto frouxo, frequentemente
pouco específico, de diferenças em termos de características
físicas e corporais, etc. – como marcas simbólicas, a fim de
diferenciar socialmente um grupo de outro (HALL, 2006, p.
63).
O ponto de vista apresentado por Hall vem ao encontro dos argumentos
defendidos aqui por este pesquisador, que se pautou na tese de raça como
construção social. O conceito de raça serve, antes de mais nada, para desmascarar
145
a desigualdade de distribuição de renda e de direitos sociais, como habitação,
saúde e educação. Não faz mais sentido, portanto, operacionalizar com o
significado biológico, sobretudo se for ao que se refere às políticas sociais de ação
afirmativa. Tomando emprestada a afirmação de Ikawa (2008), raça serviu para
construir hierarquias, e agora deve servir para desfazer as hierarquias deixadas
pelas doutrinas raciais. A questão que se põe é: como desconstruir as hierarquias
sociais deixadas pelas doutrinas racialistas?
Para o ensino de Geografia, no conteúdo do livro didático sobre
“população”, raça é um conceito utilizado por muitos autores e escamoteado ou
negado por outros. Nos recortes textuais analisados, é possível identificar a
preferência autoral pelo uso do termo raça, enquanto outros utilizam o discurso de
renda.
No ensino de Geografia, os conceitos lugar, território e paisagem são
categorias utilizadas para explicar o espaço geográfico e a relação do homem com
ele. Quando abordamos uma questão social, localizamo-la a partir do lugar, do
território que, historicamente, se encontra na paisagem. Nos presentes recortes, foi
possível observar a desigualdade por raça e cor, com também, numa escala social,
notar que o negro ocupa um lugar desigual, nas paisagens do território nacional.
Como os autores confirmam:
[...] as paisagens humanizadas de um lugar são construídas e modeladas por uma enorme
quantidade de pessoas. Portanto, para entender como o espaço geográfico está organizado
no presente, é preciso compreender um pouco das relações sociais, da vida dessas
pessoas, numa perspectiva histórica. [...] Você já viu que a paisagem acumula parte da
história, ou seja, que na paisagem podemos encontrar formas de diferentes idades. Essas
formas são uma herança de outros tempos, quando havia outras relações humanas, às
vezes muito diferentes das que existem hoje. Vejamos as heranças deixadas pelos povos
que construíram o Brasil. SENE, E de & MOREIRA. Geografia: ontem e hoje – 7º
ano. São Paulo, Scipione, 2009, p.89 -90.
O contexto histórico, para o qual os autores apontam, aborda a condição de
trabalho a que o escravo era submetido. Tempo em que os africanos foram
forçados a migrar para o outro lado do Atlântico, para trabalhar no fabrico do
açúcar, no engenho, acabando por obrigá-los, a cada um, à construção de uma
nova identidade, já que o território não era mais o seu e a história que passavam a
construir não era mais sobre a mesma paisagem.
146
Hoje, sabe-se, embora os africanos tenham migrado como escravos,
ninguém nascia escravo. A escravidão era uma instituição que legitimava as
estruturas sociais a fazerem escravos. Dizem os autores:
Desde sua captura em solo africano, os escravos eram tratados como peças que só
precisavam de manutenção ou reposição. Os portugueses colonizadores não se
preocupavam em saber sobre sua língua, cultura ou procedência étnica. (Idem, 2009).
A dimensão humana do africano importado era desimportante para o seu
dono. Seu reconhecimento vinha de sua força e da destreza, qualidades
indispensáveis no seu trabalho. Ao ser negociado, os consumidores tinham
preferência por corpos sem defeitos, com dentes saudáveis. Esses indicativos
davam a certeza de que sua vida produtiva seria longa e um bom negócio para
quem o comprasse.
Os negros, trazidos como escravos no período da colonização brasileira, não compunham
uma população homogênea- originaram-se de diferentes grupos étnicos africanos.
Calcula-se que, durante o período da metade do século XVI à primeira metade do século
XIX (até 1850), cerca de 4 milhões de negros foram trazidos ao Brasil. De acordo com o
Censo 2000, os negros compõem cerca de 6,6% da população e se concentram
principalmente nos estados do Maranhão, Bahia, Minas Gerais, São Paulo e Rio de
Janeiro. BIGOTO et alli. Sociedade e Cotidiano, 7. São Paulo: Atual, 2009, 91-92.
De fato, o Brasil, desde o século XVI, foi o lugar que mais recebeu
africano. Hoje é o país que tem a maior concentração de população negra fora da
África; na verdade, apenas a Nigéria - um país africano - tem população negra
maior que a do Brasil. É um contingente populacional significativo, que ajudou a
fazer a história desse país e, contudo, até hoje, uma grande parte dessa população
luta por recursos básicos para sua subsistência, ainda é a parcela menos
favorecida. Para Boligian (2009) e outros, a causa desta questão volta-se para a
distribuição de renda e educação. Expõem:
A concentração da renda no Brasil é, certamente, o maior motivo das desigualdades
sociais existentes. Uma parte razoável da população brasileira vive em condições
extremamente precárias de moradia, educação e saúde, enquanto uma parcela bem menor
apresenta elevados padrões de vida. BOLIGIAN [et al.]. Geografia espaço e vivência: a
organização do espaço brasileiro, 7º. São Paulo: Atual, 2009, p.52
Para esses autores, a concentração de renda seria a maior causa das
desigualdades sociais, que acaba por polarizar o desenvolvimento social, ficando
de um lado a minoria rica e, do outro, a maioria pobre privada de infraestrutura e
de acesso a serviços de qualidade. De fato, essa é uma realidade que pode ser vista
147
a olho nu. Na maioria dos espaços urbanos e rurais do país, a desigualdade ainda
permanece e tudo isso tem uma explicação histórico-social:
Com a intensificação das pressões inglesas para o fim do tráfico negreiro e com a edição
da Lei Eusébio de Queirós, de 1850 (que proibiu a vinda de novos escravos), os
proprietários de terras, especialmente de fazendas de café – atividade predominante no
pais na segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX - , passavam a
incentivar a vinda de imigrantes para substituir a mão de obra escrava. (VESENTINI &
VlACH, 2009, p. 33-34).
A vinda do imigrante branco, a partir de meado do século XIX, de fato foi
um agravante para o negro, porque, à medida que o processo de abolição foi se
acelerando, ele também foi se deslocando para a cidade em busca de outras
condições de vida. Na cidade, ele passava a disputar com o branco imigrante um
lugar no mercado de trabalho e, certamente, o imigrante tinha um grau de
instrução ou uma profissão que o colocavam à frente. Concluímos que, a ponte
para a cidadania, desde então é a educação. Sem o mínimo de instrução, a
condição de ascensão social torna-se quase que impossível.
Hoje, o que herdamos foi um país desigual. O século XX assistiu à luta
pelo acesso à educação como um bem fundamental para a cidadania plena. É
como disse Boligian (2009): hoje, a parcela mais rica, além de garantir o acesso à
educação, vê seus filhos estudarem nas melhores escolas e universidades. Por
outro lado, a outra parcela da população, vive uma realidade oposta, inclusive no
ensino superior, como nos conta Reis (2007, p. 50-51):
As oportunidades entre negros e brancos não se deram de forma
igualitária, e isto se refletiu também na realidade educacional. O
espaço acadêmico é, atualmente, onde esta realidade se expressa
com maior intensidade. [...] estudos demonstram que somente
2% dos jovens negros chegam aos cursos superiores, o que
levou a ações no sentido de reverter positivamente este quadro
(HENRIQUE, 2001 Apud, REIS, 2007).
Acredita-se que, com o tempo, com as políticas de ação afirmativa para o
ensino superior, que estão sendo amplamente implementadas, esse quadro vá
sofrer alteração. No entanto, sabemos que o déficit social na trajetória do negro é
histórico e, por isso, está longe de chegar em condições de igualdade com a
população branca. Quando falamos de trajetória social, estamos nos referindo ao
direito de acesso a bens e serviços. Para tanto, seria função do Estado promover
políticas sociais eficientes, que atendessem os anseios da população negra, que
148
durante muito tempo esteve alijada e longe de acesso aos direitos sociais. O
agravante maior é que, ainda hoje, isto reflete na estrutura educacional do país.
Como pensar cidadania se o direito social fundamental, que é a educação, até
então foi excludente? Em todos os tempos, em todas as pesquisas feitas até então
pelos órgãos oficiais, a população de raça negra, comparada com a população de
raça branca, tem sido menos favorecida a bens a serviços. Por quê? É redundante
dizer, mas uma população que durante séculos viveu na condição de coisa, com
direito só a subsistência, ao ser levada ao status de cidadão, se não conquistou
educação e renda, torna inerte a mobilidade social.
A educação é o ponto central da mobilidade da população negra, isso todos
sabem. O difícil era o acesso a esse direito oferecido pelo serviço público, quando,
nas primeiras décadas do século XX, o controle do ensino da educação básica
estava com o Estado e com o setor conservador da igreja. Isso mostra que a
cidadania tão esperada, inclusive pelos movimentos sociais negros, como a FNB,
não aconteceu. Só muito mais tarde, com a Reforma da LDB com a Lei 5692/71, é
que de fato vai se iniciar o processo de democratização do ensino, com a expansão
do primeiro e do segundo graus atingindo os lugares mais distantes do país,
beneficiando as populações de poder aquisitivo mais baixo.
Durante todo o século XX, a população negra comparada com a população
branca foi a que menos acesso a bens e serviços alcançou. A lógica da sociedade
capitalista é simples para se compreender: a ascensão só vai ocorrer à medida que
o indivíduo seja colocado em igualdade de condição para a competitividade na
sociedade que presume a liberdade e a igualdade. Todavia, se a igualdade de
condições não estiver à altura dos outros pares, àqueles que possuírem menores
condições de competitividade, certamente a chance para vencer também será
menor.
Para entender como essa divisão ainda persiste e de forma tão desigual,
uma pesquisa do Dieese30
aponta o analfabetismo ainda como um fator de
exclusão, como mostra o mapa 01, na página seguinte. Em cada região do IBGE, a
cor negra e parda são as que demonstram ter maior número de analfabetos
absolutos do país.
30
Cf. (DANELLI, 2007, p. 45),
149
Do resultado apresentado no mapa, sobre o número de analfabetos ser
maior entre negros e pardos, a autora argumenta:
Durante muito tempo acreditou-se que a “mistura” de povos fazia do nosso país uma
democracia racial, isto é, um país sem racismo, onde todos seriam tratados da mesma
forma e teriam as mesmas oportunidades. No entanto, em nosso país há um racismo
disfarçado contra negros e indígenas, levando grande parte da população a não reconhecer
sua própria origem. Prova disso é que muitas pessoas que poderiam ser classificadas
como pardas ou negras se autodeclaram brancas. DANELLI. Geografia. São Paulo:
Editora Moderna, 2007, p.45.
Portanto, para essa autora, a causa número um do analfabetismo ainda se
perpetuar sobre a população negra estaria no racismo disfarçado, ou seja, segundo
a lei, todos são iguais, entretanto, a via de acesso à igualdade estaria fechada para
a população negra.
Neste mesmo sentido, para Carvalho e Pereira (2009), a cor e o sexo são
fatores de exclusão e o grupo mais atingido seria o dos negros. Os autores dizem:
As desigualdades sociais existentes entre as pessoas não resultam exclusivamente das
condições econômicas. Há pelo menos dois outros fatores que exercem grande influência
nesse sentido, e cuja importância merece ser registrada. Ainda é muito forte o tratamento
discriminatório e desigual a que as pessoas são submetidas no Brasil apenas por causa de
Mapa 01: Danelli, (2007), Projeto Araribá.
150
suas condições de cor ou sexo, segundo o levantamento realizado pelas últimas pesquisas
do IBGE. Da mesma maneira, entre brancos e não brancos as diferenças são grandes.
Comparando-se o rendimento médio das populações preta e parda (segundo denominação
utilizada pelo IBGE) com a branca, constatou-se que os primeiros receberam em 2001 a
metade do que receberam os brancos. E aqui, também, as maiores diferenças de
rendimentos foram encontradas entre os mais escolarizados, com 12 ou mais anos de
estudo. CARVALHO, M. B & PEREIRA, D. A. C. Geografia do mundo: Brasil, 7º
ano. São Paulo: FTD, 2009, p.122-123.
Para esses autores, a cor e o sexo são dois fatores que contribuem para a
manutenção da discriminação racial, associados ao preconceito de gênero e de
raça. Para eles, tal disparidade reflete diretamente no mercado de trabalho:
Ao comparar os rendimentos, os homens pretos e pardos ganham cerca de 30% menos do
que as mulheres brancas, o que parece ser uma forte indicação de que no Brasil a cor da
pele é motivo de discriminação maior ainda do que a condição de gênero. Diante desses
dados, não seriam necessários longos argumentos nem explicações complicadas para
convencer qualquer um da importância dessa discussão, sobretudo quando consideramos
que a população brasileira, além de ser majoritariamente constituída de mulheres
(conforme nos indicam os próprios dados do IBGE), é visivelmente uma população
mestiça, com elevada quantidade de negros; estes, no entanto, aparecem nas estatísticas
populacionais como minoria absoluta, diante da maioria branca e parda que os últimos
censos têm revelado. (Idem, 2009).
Para os autores, a disparidade de salário entre negros e bancos e entre o
homem negro e a mulher branca tem suas raízes na formação social do Brasil.
Para eles, a mesma elite que escravizou, após a Abolição usou de subterfúgios,
como o mito da “democracia racial” para escamotear o drama social e racial no
qual o negro vivia e, com isso, se eximiu de uma reparação para com o mesmo.
Eles ponderam:
[...] São muitas as explicações para origens dessa atitude de discriminação. Para
enumerá-las, com certeza seríamos remetidos inclusive à própria história da formação do
país e de sua sociedade, como a imposição de valores pela colonização europeia, as
disputas territoriais com os indígenas e os séculos de mão de obra negra escravizada. Não
é o caso, aqui, de nos desviarmos para as análises desses episódios. [...] De qualquer
forma, não poderíamos encerrar nossa abordagem da geografia da população brasileira
sem fazer referência a aspectos que evidenciam uma geografia que é também de injustiças
e discriminações. Omitindo tais aspectos, contribuímos para alimentar mitos comuns e
muito difundidos para caracterizar a população brasileira, como o de “democracia racial”,
uma situação em que prevaleceria uma condição de igualdade de oportunidades para
todas as pessoas, independentemente da cor da pele ou da origem etnicorracial de cada
um (Ibidem, 2009).
Infelizmente, não foi esse o caminho tomado. Na verdade, o caminho
bifurcou-se para a desigualdade e para a invisibilidade do negro e, para o branco,
em privilégio e poder. Graças à estrutura social e econômica historicamente
151
construída, seu presente, comparado com o do branco, continua desigual. Isto
porque:
Durante quase meio século, permaneceu soberana e intocável
uma ideologia racial que colidia com as bases ecológicas,
econômicas, psicológicas, sociais, culturais, jurídicas e políticas
de uma sociedade multirracial, de estrutura secularizada, aberta
e em diferenciação tumultuosa! [...] Na ânsia de prevenir
tensões raciais hipotéticas e de assegurar uma via eficaz para a
integração gradativa da “população de cor”, fecharam-se todas
as portas que poderiam colocar o negro e o mulato na área dos
benefícios diretos do processo de democratização dos direitos e
garantias sociais. Pois é patente a lógica desse padrão histórico
de justiça social. Em nome de uma igualdade perfeita no futuro,
acorrentava-se o “homem de cor” aos grilhões invisíveis de seu
passado, a uma condição subhumana de existência e a uma
disfarçada servidão eterna (FERNANDES: 2008, p. 363,309).
Cabe ao Estado brasileiro desafiar, com políticas efetivas, tais
desigualdades, criando mecanismos de combate ao racismo e mecanismos outros
que façam com que o negro salte a linha de pobreza. Como diz esse autor, fazer
acontecer a ascensão vertical do negro. Para isso, acreditamos ser necessário
desafiar a barreira de raça e de classe, o que exigiria política de reconhecimento
que resgatasse sua história e sua autoestima social. Por outro lado, acreditamos ser
necessário vencer a barreira de classe e fazer a redistribuição de renda, com
políticas de ação afirmativa voltadas para a educação e para os jovens negros que
aspiram ao mercado de trabalho e que vivem em estado de vulnerabilidade, como
aqueles que são maioria fora da escola. Não é possível reverter esse quadro
desigual sem este enfrentamento, visto que a realidade social ainda é carregada de
discriminação. Como dizem os autores:
Devido às condições socioeconômicas a que foi historicamente submetido, esse grupo
apresenta atualmente menores índices de qualidade de vida, sendo muitas vezes vitima de
atitudes discriminatórias ou preconceituosas. [...] A população caracterizada como parda
é resultante do processo de miscigenação e, de acordo com o Censo 2000, compreende
quase 40% da população brasileira. Em geral as pessoas que compõem esse grupo muitas
vezes se autodeclaram morenas ou mulatas. Assim como os negros, grande parte das
pessoas desse grupo enfrenta problemas econômicos e, especialmente as mais pobres,
também sofrem com atitudes discriminatórias. [...]BIGOTO et alli. Sociedade e
Cotidiano, 7º. São Paulo: Atual, 2009, 91-92.
Ainda no mesmo texto, os autores discutem a autodeclaração de
pertencimento etnicorracial e a posição de quem se assume pertencente a um
grupo. Argumentam:
152
No recenseamento, ao classificar os grupos por raça e cor, corre-se o risco de não
quantificar corretamente a porcentagem de cada grupo diante da população total. As
pessoas podem assumir sua identidade de acordo com as suas posições políticas,
condições socioeconômicas ou consciência étnica. Muitas vezes, indivíduos optam por
negar a sua verdadeira origem para se proteger de discriminação racial ou econômica. Há,
por exemplo, um número considerável de orientais, negros, pardos e índios que não se
assume como tal. Portanto, na realidade, não é a cor da pele que acaba definindo o grupo
a que uma pessoa pertence, mas sim a consciência e a posição que ela assume diante da
sociedade. (Idem, 2009).
De fato, a consciência é o lugar primeiro que norteia e define a pessoa a
assumir sua identidade. Porém, a cor da pele é também um marcador de sua
identidade. A consciência é a posição que a pessoa assume sobre o que ela é, ou
seja, sobre aquilo que vem do Eu interior e de sua formação psicossocial, de como
ela aprendeu a se olhar interior e exteriormente. As características físicas são
marcadores que permitem à pessoa se identificar a proporção que ela se vê
refletida no Outro, com aquilo que o seu Eu diz sobre ela mesma. Neste sentido, o
Eu reflete a autoconfiança, o autorrespeito e a sua autoestima (HONNETH, 2007).
A cor da pele como representação social ultrapassa as propriedades
biológicas do homem. Como um marcador racial, ela agrega representações,
linguagens e sentidos diversos, pelos quais, se não houver uma identidade
construída positiva, a pessoa se vê refletida nos estereótipos negativos e
desenvolve um potencial para se vitimar na estereotipia dominante que a cerca.
Nesse caso, o corpo torna-se “um dos locais envolvidos no estabelecimento das
fronteiras que definem quem nós somos, servindo de fundamento para a
identidade” (WOODWARD, 2009, p. 15) e, essa, como tal, é dinâmica e
complexa, o que possibilita mudar e sempre.
Como diz esta autora:
A representação inclui as práticas de significação e os sistemas
simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos,
posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados
produzidos pelas representações que damos sentido à nossa
experiência e àquilo que somos (Idem, 2009, p. 15).
Nós nos assumimos, portanto, enquanto pessoa, de acordo com aquilo que
refletimos no outro. Ou seja, se fomos educados num sistema carregado de
estereótipos, em cujas representações a pele (preta) foi vista de forma distorcida,
significada de forma negativa, associada à “sujeira”, à “cor do carvão”, ao “feio” e
etc., não houve, para o negro, a construção de uma identidade positiva, porque a
153
significação tem poder, porque a significação é linguagem. A palavra pele é um
signo linguístico, é a junção do significante e do significado. Como significado,
são muitos os conceitos que lhe dão sentidos. O significado de pele-preta, no
campo das Ciências Políticas e Sociais, não tem o mesmo sentido que tem no
campo da Biologia. A conotação se dá de acordo com as ideologias e o
posicionamento político dos grupos e indivíduos, no seu campo, e para cada
ciência.
Somos aquilo que construímos sobre nós mesmos. Por meio da linguagem,
socializamos com aquilo que nos faz existir enquanto gente. A consciência
política e cultural, ou seja, a forma com que significamos e damos sentido às
coisas do espaço, é resultado de como nós nos construímos e nos representamos
para o outro. Vale dizer, esta construção não é fixa, ela é dinâmica. Só é fixa a
mudança. Portanto, identidade é mutável, e a cultura é determinante sobre ela.
Na presente seção, abordou-se a desigualdade social e a discriminação
racial, um drama que atinge, ainda hoje, a população negra no Brasil. Estudos
mostraram essa população ser a que menos tem acesso à saúde, à habitação e à
educação e, quando tem, é de forma bastante precária, como afirmou (DANELLI,
2007). No que tange ao seu padrão social, pardos e negros, comparados aos
brancos, têm renda menor e ainda sofrem o agravo da discriminação racial
institucionalizada, herança, um ranço do passado (BIGOTO et alli, 2009).
Na verdade, a história do negro começa desigual. Chegou como escravo e
o branco como senhor. O branco era o conquistador e dominador. O negro, o
conquistado e dominado. Como tal, não era indivíduo, seu corpo não tinha
“alma”. Racializá-lo era papel da casa-grande e da igreja. Reconhecedoras de sua
subserviência e de sua inferioridade, dispensavam-lhe tratamento desigual. Com a
Abolição, um novo quadro social foi formado, sua realidade transformada e novas
perspectivas surgiram, porém sob o desafio de aprender a conviver com a sua
invisibilidade e a parca presença de direitos sociais, que lhe deixava fora da ordem
competitiva, sem a mobilidade social (FERNANDES, 2008).
À época, a República garantiu-lhe os direitos individuais na Constituição
de 1891 Art. 72, § 2º que diz “Todos são iguais perante a lei”, entretanto esta
igualdade, ainda hoje, não se materializou em efetivas políticas sociais que
154
proporcionassem o acesso à renda e o combate ao racismo, o que gerou
obviamente a falta de renda e a persistência do racismo.
A falta de renda e a discriminação racial a alguém é o seu não
reconhecimento ou o seu reconhecimento negativo. Contra isso, teríamos de
assumir, de fato, políticas sociais de ação afirmativa, que viabilizassem a
redistribuição de renda e o reconhecimento da cultura da pessoa. Se tal não ocorre,
fica abalada a sua autoestima.
Neste sentido, tomamos emprestado o conceito “paridade participativa” de
FRASER (2007), e “boa vida” de HONNETH (2007), como também o conceito
de raça como construção social, proposto por HALL (2009a; 2009b) e
MUNANGA (2004), por entender que, juntos, são elementos centrais para o
reconhecimento na redistribuição de renda e no combate ao racismo no que tange
à população negra no Brasil. Para Fraser (2007), o caminho viável para o
reconhecimento da população negra, alijada da sociedade, seria promover
mecanismos de integração que a colocassem em condição paritária, ou seja, com
poder de competir com os outros. A autora acredita que, se houver distribuição de
renda e acesso a status, isso seria suficiente para reduzir a desigualdade social.
Para Honneth (2007), a dimensão econômica é importante para alguém que se
sinta fora da sociedade, vivendo alguma forma de desrespeito social. No entanto,
apenas colocá-lo em condição paritária, não seria suficiente para seu
reconhecimento. Para o autor, o reconhecimento se daria ao se considerarem
outras dimensões do sujeito, passando pelas dimensões do Eu primeiramente, pela
esfera da família, lugar em que ocorrem as primeiras formas de reconhecimento e
autoconfiança e, a posteriori, na esfera jurídica, lugar em que o reconhecimento se
dá na luta pelos direitos sociais, na busca do autorrespeito. Para esse autor, é
fundamental o sujeito adquirir, no seio de suas relações primárias (a família), o
reconhecimento do outro. Seria pelo outro que se buscariam as primeiras formas
de reconhecimento e a autoconfiança. Consequentemente, na esfera jurídica (na
sociedade), buscaria estabelecer políticas culturais e de identidade, no sentido de
promover a integridade social, gerando o autorrespeito e a autoestima.
Outra forma de se lutar por reconhecimento encontramos nos conceitos
que Hall (2009a; 2009b) e Munanga (2004) quando defendem raça como uma
155
construção social. Ambos não utilizam do entendimento secular com base no
campo biológico, das ciências naturais, ao contrário disso, eles discutem raça a
partir da diferença e da hierarquia/social das ciências sociais, com base em outros
paradigmas, em que o primeiro propõe “uma nova lógica política”
multiculturalista, em que o particular desafia o universal, e a igualdade e a
diferença são invocadas a tensionar as relações culturais e jurídicas da sociedade
liberal democrática. Para o primeiro, raça, hoje, opera sob rasura; seu sentido
biológico, cunhado nas teorias raciais do passado, caiu; contudo, ficou de pé o
conjunto de crenças e doutrinas e uma sociedade forjada na hierarquia social
deixados pelo discurso da raça. Para o segundo, raça ganhou conotação mais
doutrinária e política, em que parte dessas doutrinas foi incorporada pelo
nacionalismo e pelas ideologias de Estado como o caso do nazismo. No caso do
Brasil, o efeito, ou seja, a estratificação produzida por ela está no pós-escravidão,
assunto amplamente abordado neste trabalho. Como se sabe, após a Abolição,
instituiu-se um Estado desigual, hierarquizado, no qual havia, de um lado
cidadãos inclusos e, do outro, ex-escravos lutando pela inclusão.
Com efeito, cada autor aqui contribuiu para esta seção, à medida que cada
um teve algo a dizer sobre renda e desigualdade de raça. No caso da população
negra, que luta ainda hoje por acesso à renda e no combate ao racismo, a saída
seria a promoção de políticas de reconhecimento que consigam atender as
questões centrais: a renda e o antirracismo. Neste sentido, comungamos com o
pensamento de Fraser (2007) e Honneth (2007). Para a primeira, reconhecer é
colocar em igualdade de condições os pares para competir, e para o segundo, é
necessário o reconhecimento da cultura e da identidade. Essas duas formas de
reconhecimento, juntas, colocariam o negro em condição de igualdade de
competição o que, ao final, o levaria a ter prestígio social e cultural.
Fomos educados a tratar a desigualdade com política de igualdade. Usar a
política da diferença para tratar a desigualdade é um desafio que está sendo posto
pelas políticas atuais, de ação afirmativa. De fato, hoje as políticas de ação
afirmativa estão em diferentes esferas da sociedade brasileira e, nesse caso, a
educação tem sido a que mais tem ganhado destaque pelas travadas e calorosas
discussões sobre leis e políticas de cotas raciais que abriram o acesso para o
ensino superior. No que tange à educação básica, a implementação da lei
156
10.639/03 trouxe como proposta o resgate da cultura afro-brasileira, um desafio
que propõe tensionar as relações sociais e combater o racismo, o que ainda
persiste manchar o tecido pluricultural formador da população brasileira.
Pedagogicamente, no total de todas as argumentações aqui apresentadas, e no que
esse trabalho pretende avançar, estaria o custo de buscar a orientação adequada da
cultura afro-brasileira e dos apontamentos de raça, racismo, e renda, para um
público tão especifico, discente do sétimo ano, e, para isso, entendemos ser
necessário desenvolver uma linguagem que vá ao encontro do que aponta a lei
10.639/03.
4.4 A descolonialidade do ensino de Geografia
Até aqui, os nossos esforços foram concentrados no sentido de construir
uma síntese histórico-social e espacial da narrativa do negro deslocado com a
diáspora africana a partir do século XVI para as colônias portuguesas da América,
e especialmente para o Brasil, em que a luta por reconhecimento entre o senhor e
o escravo durante séculos foi um embate de vida e morte, em que o primeiro
soube fazer da violência o império da força para a manutenção do seu
reconhecimento sobre o segundo. Do outro lado, ao mesmo tempo, a luta pela
emancipação fazia também formas de resistir na religião, na música, na dança e
nos quilombos, lugares e espaços pelos quais cultivavam a igualdade daqueles que
lutavam contra as forças opressoras do senhor. Como mostra o capítulo 2 desse
trabalho, no mundo, até o século XVI, havia dois tipos de identidades globais: a
europeia e a não europeia. De acordo com os paradigmas da Geografia,
conceitualmente o mundo era pensado com base nos parâmetros biológicos das
ciências naturais, em que a raça era o marcador social que definia o potencial
natural de população e meio, e que se distribuía entre superior e inferior segundo
La Blache (1921). Ademais, foi criada a classificação de civilizado, do homem
europeu, branco, cristão, ao selvagem, ao homem americano, africano, asiático,
preto e amarelo, de religião primitiva. Essa dimensão reproduziu a crença na
explicação pela geografia tradicional de que a raça era o marcador determinante
das diferenças entre os povos. Nesse caso, a Geografia como ciência se baseou no
157
método naturalista que tinha como um fim a crença na natureza, de que o meio era
um determinante do espaço; ou seja, o meio geográfico era determinante sobre o
meio social. Esse paradigma prevalece como uma verdade e é usada pelas ciências
naturais e pela Antropologia positivista até as três primeiras décadas do século
XX, no Brasil considerado pelo pensamento social o período do “espetáculo das
raças” (SCHWARCZ, 1993). Nesse sentido, no ensino de Geografia, com base no
método descritivo da geografia tradicional, todo o direcionamento tinha como
perspectiva a importância da descrição das coisas no espaço. O que importava era
descrever os lugares e não o que os homens faziam com as coisas dos lugares.
Visto deste ponto, para a geografia tradicional o homem, o seu fazer social, ou
seja, a sociedade, era menos importante do que as leis naturais que explicavam as
coisas no espaço e a sua localização. No caso da população mundial, a sua
distribuição e a sua localização no globo seguiam o critério civilizatório de raça
superior de um lado, e raças inferiores do outro e essa ideia, até o século XVI,
seria hegemônica. Isso fundamentou os elementos do discurso imperialista
reproduzido para o mundo na versão de que o Continente Africano representava o
berço das raças inferiores e do homem primitivo e que, para inverter esse quadro,
civilizar seria necessário. Tamanho foi o peso político e ideológico desse discurso
que a Conferência de Berlim, 1884, selou o destino da África, que foi dividida
entre os impérios cujo fim só veio com a descolonização pós Segunda Guerra
Mundial.
Essa ideia se tornou uma “narrativa mestra” e hegemônica de que a África,
na escala civilizatória, expressava a inferioridade do continente para o mundo.
Mas quem construiu esse discurso? Interessava a quem dizer que os africanos
eram inferiores? Seriam inferiores a quem? Para responder a essas questões, não
podemos perder de vista que, no século XIX, historicamente, os Estados
modernos buscavam se afirmar a partir das instituições democráticas e, para isso,
utilizavam dos mecanismos de controle e de reprodução da invenção da cultura
comum nacional da qual cada país deveria se orgulhar de pertencer. A criação da
escola pública teve um importante papel no sentido de sistematizar a cultura, o
saber em forma de conhecimento científico, organizado em forma de disciplinas
para então ser reproduzido e ensinado como o conhecimento oficial do currículo
escolar. Mas, ao mesmo tempo, como diz Foucault (2009):
158
A organização das disciplinas se opõe tanto ao princípio do
comentário como ao do autor. Ao do autor, visto que uma
disciplina se define por um domínio de objetos, um conjunto de
métodos, um corpus de proposições consideradas verdadeiras,
um jogo de regras e de definições, de técnicas e de
instrumentos: tudo isto constitui uma espécie de sistema
anônimo à disposição de quem quer ou pode servir-se dele, sem
que seu sentido ou sua validade estejam ligados a quem sucedeu
ser seu inventor. Mas o princípio da disciplina se opõe também
ao comentário: em uma disciplina, diferentemente do
comentário, o que é suposto no ponto de partida, não um
sentido que precisa ser redescoberto, nem uma identidade que
deve ser repetida; é aquilo que é requerido para a construção de
novos enunciados. Para que haja disciplina é preciso, pois, que
haja possibilidade de formular, e de formular indefinidamente,
proposições novas (FOUCAULT, 2009, p. 30).
Neste sentido estruturalista pensado pelo autor, seria a função da disciplina
buscar a construção de novos significados. Nesse caso, com o surgimento da
disciplina de Geografia, uma criação do Estado nacional que, como tal, estava a
serviço do discurso dos grupos hegemônicos, vai reproduzir, através dos livros
didáticos, os estereótipos sistematizados com validade científica, com base nas
produções do século XIX, de que o Continente Africano era constituído por
paisagens naturais exóticas, selvagens, com povos primitivos e de raça inferior e
sem cultura. No Brasil, não foi diferente a reprodução dessas ideias nas disciplinas
de Geografia. Neste trabalho, no capítulo 2, isso ficou claro para nós, ao
retomarmos as obras de dois autores brasileiros de livros didáticos de Geografia,
do início do século XX, Delgado de Carvalho (1884-1980) e Aroldo de Azevedo
(1910-1974), que durante décadas reproduziram em seus discursos uma África
continental sem cultura e de raça inferior. Só mais tarde substituirão esse
paradigma de raça pelo paradigma de cultura.
Hoje, a abordagem da cultura afro-brasileira no ensino de Geografia não
deve ser vista como uma mera reprodução de conteúdos esvaziada de interesse de
raça, e estanque. Ao contrário disso, a visão proposta no capítulo 2 trata do
resgate da cultura afro-brasileira com base no vir-a-ser da diferença e da
igualdade como conceitos centrais do multiculturalismo emancipatório, que, na
verdade, tem como fim o reconhecimento social e cultural do negro no currículo
do ensino de Geografia. O currículo aqui é visto como um campo de contestação e
de disputa das culturas selecionadas e incluídas e excluídas e, no caso da cultura
159
afro-brasileira, a intenção foi saber em que medida, em que perspectivas ela é
representada pelos autores dos livros didáticos de Geografia.
Para isso, o capítulo 3 abordou a categoria raça a partir do pensamento de
Freyre (1993) na perspectiva de “Casa-grande e senzala”, e do pensamento de
Fernandes (1964) na perspectiva da “A integração do negro na sociedade de
classes”. Na verdade, a escolha desses dois autores e, especificamente, dessas
duas obras, tem a ver com a forma com que o conteúdo a respeito da cultura afro-
brasileira foi apresentada nos dados desta pesquisa, (capítulo 4), quando foi
observado o resgate da música, da dança, da culinária e da religião, pelo primeiro
autor, e a luta pela integração do negro na sociedade classes resgatada no segundo,
e essa visão de classe social, posta por ele, pode ser vista nos conteúdos dos livros
didáticos de Geografia do sétimo ano, pelos autores que fazem a abordagem de
classe e renda ao explicar a diferença social entre negros e brancos.
No caso de Casa-grande e senzala, a obra é uma referência do pensamento
social brasileiro no estudo do negro e da cultura afro-brasileira. O autor faz uma
incursão histórico-social da contribuição cultural do negro na formação do povo
brasileiro desde o século XVI quando houve o encontro do colonizador português
com o africano. Freyre (1933), com essa obra, pôs o Brasil entre as civilizações ao
defender a tese de que o valor nacional estaria na miscigenação, ou seja, ele
substituiu a visão pessimista do determinismo biológico de raça pela mistura das
diferentes culturas e raças e isso foi o que tornou a formação do povo brasileiro o
melhor da sua civilização. Para ele, nem os obstáculos naturais, como o clima,
impediu a integração entre as diversas culturas. Neste caso, um dos lugares que o
autor buscou resgatar foi a cozinha da casa-grande, porque este era o espaço de
encontro das diferentes linguagens, em que a natureza (o tempero) era
transformada em cultura, como os ingredientes das diferentes culinárias que fazia
o sabor da identidade da cozinha nacional. Do mesmo jeito, ele resgata o ritmo e
a dança e a religião como elementos importantes da cultura nacional e, isso, hoje,
a partir do seu resgate, tem sido reproduzido nos conteúdos dos currículos e
programas dos livros didáticos de Geografia como parte da cultura oficial.
Mas, por outro lado, ao mesmo tempo, o autor mostrou também um outro
espaço da casa-grande ao descrever o cotidiano da luta de vida ou morte por
160
reconhecimento do senhor e do escravo. No capítulo 4, foram selecionados
fragmentos de textos de diversos autores que têm como abordagem este embate
entre as duas partes, o senhor e o escravo, em que este é retratado desde a sua
saída de África, no seu tráfico, submetido à condição de coisa pelo senhor na
casa-grande, lugar onde era rebaixado à condição de animal. Porém, ninguém
chegava escravo ou nascia escravo, na verdade, eram apenas pessoas submetidas e
desconstruídas ou construídas como coisa, para que assim se visse na condição de
escrava. Uma construção social seria o destino dado pelas mãos e pelo
consentimento do senhor na casa-grande, quando ainda criança o sinhozinho
recebia então, de presente, uma criança negra escrava, como um animal de
estimação com quem ele deve brincar, usar, castigar como um brinquedo
qualquer. Na sociedade patriarcal escravagista isto era legal e moral.
Isto confirmava que a escravidão era um sistema perverso e
desumanizador. Mas “Casa-grande e Senzala” é a obra que permite olhar a
formação do povo brasileiro sobre o cotidiano, o que, às vezes parece comum,
corriqueiro, mas que, ao mesmo tempo, denota os diversos tipos de sentimentos e
valores morais, sociais e culturais. O cotidiano revela a sobreposição de gente
com gente, que não é reconhecida como gente, e que assume um lugar sobre o
mesmo espaço, ao mesmo tempo separados e misturados.
Sob outra perspectiva, Fernandes (1964), em a “A integração do negro na
sociedade de classes”, vai deixar um legado na história do pensamento social
brasileiro ao resgatar a cultura afro-brasileira do ponto de vista do negro na luta
por reconhecimento social. A partir da urbanização, ele busca colocar a sua
cultura como parte da cultura nacional, ou seja, enquanto em “Casa-grande e
Senzala” a obra retratava o escravo e o senhor, no campo, em “A integração do
negro na sociedade de classes”, o negro é retratado como o homem livre, o
habitante da cidade, ou seja, o cidadão, aquele que agora passava a disputar um
lugar na ordem competitiva capitalista com o branco. Fernandes (1964) vai
resgatar a voz do negro na condição de homem livre que vivia o drama da divisão
social, consequência do ranço da escravidão e do racismo que pesava contra ele,
um marcador racial (a cor da sua pele), o que por muito tempo tornou-se um hiato
que o afastou do acesso à cidadania plena. O autor pôs em questão também a sua
luta como meio de buscar o reconhecimento social, pois a sua esperança estaria na
161
distribuição de renda e na crença de que a cidadania viria à proporção que
houvesse o acesso à educação. Nesse sentido, a obra mostra as demandas sociais
postas pelo negro desde o pós-abolição o que, desde então, mostrava como ele
lutava por reconhecimento e por reparação, já que, como cidadão, o Estado não
oferecia políticas públicas, direitos sociais.
Entendemos que, se hoje existimos enquanto civilização, foi graças ao
processo de colonização portuguesa, com africanos e indígenas, porém, isso
custou caro à construção do Brasil, cujo passado ficou marcado pela escravidão
dos africanos e, isto, até hoje, arrola uma dívida para a sociedade, por ainda não
haver construído de fato a cidadania plena dos afro-brasileiros. Para reverter este
quadro no campo do currículo do ensino de Geografia, é fundamental iniciar o
processo de descolonização do seu ensino enquanto disciplina, porque, hoje, para
resgatar a cultura afro-brasileira através dela, a sua desconstrução é a pedra
fundamental que erguerá todo um novo processo, visto que, até aqui, os seus
paradigmas dominantes foram eurocêntrico, branco, e cristão. Com base nisso é
que foi concebido o currículo do curso de Geografia no ensino superior e
consequentemente para a educação básica, sendo esta concepção sentida até hoje.
Ao evocar o resgate da cultura afro-brasileira no ensino de Geografia,
estamos convencidos de que é fundamental fazer a descolonização dos
paradigmas dominantes que justificam esta ciência como disciplina escolar. Para
isso, entendemos que a base do processo de descolonização estaria em
compreender o que fizeram de nós e, de agora em diante, o que fazer daquilo que
fizeram conosco. Como pontapé inicial desse processo, como conceitos basilares
do homem moderno, estão, sine qua non, a compreensão do uso do conceito da
diferença e da igualdade. A compreensão e o uso político da diferença como um
conceito da moral foi o que produziu o reconhecimento desigual entre o senhor e
o escravo, durante o tempo da Colônia e do Império. As instituições Estado,
família e igreja consensaram que o africano não tinha alma, e isso era o mesmo
que não ter direito, e justificavam ser a sua natureza de animal; como tal, devia
ficar a serviço do homem branco cristão. Abordar a escravidão, dizer sobre ela do
ponto de vista economicista, seria escamotear a sua dimensão política e filosófica
que justificava a sua manutenção secular.
162
Há quem interessava a permanência da escravidão? Em que medida esse
sistema mundial deixou de ser legal e passou a ser imoral? Qual a relação da luta
pelo fim da escravidão com a expansão do capitalismo? A existência e o fim da
escravidão estavam intrinsecamente construídos num campo maior, um campo
que envolve a natureza jurídica do que seria a diferença e a igualdade desde que
foi erguido o colonialismo, de como o europeu reconhecia o não europeu, quais
seriam os sistemas de classificação e de hierarquização criado para descrever os
diferentes de europeus. A questão central estaria no tipo de reconhecimento.
Todavia, enquanto foi de interesse manter a escravidão, o africano foi reconhecido
pelo europeu como diferente e biologicamente de raça inferior. Este não teria alma
e nem cultura, portanto, a sua diferença servia de parâmetro para discriminar de
forma negativa perante aos iguais. Ao mesmo tempo, à medida que o europeu foi
também construindo a sua cidadania, foi concebendo o sujeito moderno, o
indivíduo, aquele que tinha o direito civil e o político e, posteriormente, o social; a
ideia de natureza jurídica sobre a escravidão construiu a sua base na doutrina
liberal, que passou a contestar os fins jurídicos e filosóficos que justificavam a
escravidão.
Neste contexto, é possível notar que a escravidão, a sua história e o seu
fim, foi acompanhada de luta e de pressão, tanto interna quanto externa, nascida
do pensamento liberal europeu, do entendimento de juristas e militantes
abolicionistas, que lutavam pela igualdade de direito. Dessas perspectivas, não
fazia mais sentido a manutenção de gente excluída pela diferença na condição de
escravo. A escravidão passou a ser vista como uma instituição imoral, à medida
que ela feria o princípio da individualidade, da liberdade, ou seja, de que todos os
homens fossem iguais. Com base nos princípios liberais, ninguém nascia para a
escravidão. Ela seria uma condição criada pelo homem, um ranço do Ancien
Regime que não tinha mais lugar na Modernidade. Ainda que tardia, na
Modernidade só cabia o sujeito de direito.
Foi desse ponto de vista, da luta por reconhecimento que, nesse capítulo,
fizemos a montagem da narrativa do discurso de cultura e raça do negro dos livros
didáticos de Geografia do sétimo ano. A intenção foi trazer diversos trechos desta
história iniciada no século XVI, em que o africano foi justificado socialmente
como o escravo, em que o mesmo viveu todo tipo de reconhecimento negativo na
163
casa-grande, mas, ao mesmo tempo, juntos e separados, no cotidiano daquele
regime, foi capaz de resistir com as suas diferenças culturais. No segundo
momento da presente narrativa, foi discutida a sua condição social a partir de
diversas colagens da sua condição de ex-escravo, de homem livre, de homem
urbano, daquele que, no século XX, disputava, na ordem competitiva, um lugar
com o homem branco, entretanto, em desvantagem, porque não foi feita a ele a
devida reparação social. Se no passado a raça foi o marcador determinante da sua
exclusão como diferente, agora, na sociedade livre, a renda era a condição
fundamental para a sua ascensão e a sua integração na sociedade de classes como
igual.
Hoje, a luta do negro por reconhecimento se estendeu para além da
questão de classe e raça. No campo da educação, no âmbito do currículo, busca-se
resgatar a cultura sob um ponto de vista positivo. A emergência da lei 10.639/03
nasceu desse sentido, para resgatar e para recontar a sua história e a sua cultura,
não da “narrativa mestra” com base nos cânones ocidentais. Com a lei 10.639/03,
o que se espera é construir um currículo com base na pedagogia da educação das
relações etnicorraciais, em que erija o reconhecimento da diferença na diferença e
que o conceito raça seja retomado na perspectiva sociológica, no sentido de
tensionar as hierarquias e tensionar o mito da superioridade e dos estereótipos
culturais. Acreditamos, para isso, ser necessária a descolonialidade das estruturas
brancas do ensino de Geografia. Mas como fazer isso? O que propor?
Em primeiro lugar, devemos nos perguntar: como ciência de matriz
europeia, a Geografia Moderna, em toda a sua época de existência, vem
cumprindo a sua função social. No século XIX, esteve a serviço do imperialismo.
No século XX, a serviço do Estado. Mas, e hoje, como uma disciplina da
educação básica, que tipo de ensino nós queremos? Em que medida esta disciplina
de origem na Física, pode, hoje, auxiliar na compreensão do homem como sujeito
social?
Hoje, temos, como ponto superado, que a Geografia é uma ciência social.
Portanto, como tal, a sua função é desafiar, é explicar as contradições sociais do
espaço e não se limitar a descrevê-lo apenas. Nesse sentido, partimos da premissa
164
de que primeiro ela se construiu sob o paradigma físico, natural, com base no
meio como um determinante do espaço.
Depois, como Geografia Humana, encontrou no marxismo o método para a
explicação social do espaço pelos determinismos econômicos oriundos do mundo
das técnicas e dos modos de produção, o que explicaria a luta de classes. Agora, o
foco sai do espaço físico e do econômico, dominado pelo mundo das técnicas, e
recai a ênfase sobre o sujeito social. Isso não significa negar a importância desses
espaços, mas é preciso fazer a descolonialidade de cada um para que possa
emergir o sujeito social. Na descolonialidade no ensino de Geografia, vem
primeiro o sujeito e não o espaço. O sujeito é o mais importante. Ele é que
significa e dá sentido ao que denominamos de espaço. A descolonialidade estaria
interessada em saber quem são os sujeitos que construíram e constroem material e
simbolicamente os espaços da cultura sob a tensão dialógica e dialética dos
diferentes e desiguais. A descolonialidade está preocupada em perguntar a quem
interessa que os sujeitos sociais sejam reproduzidos como diferentes e iguais nas
narrativas discursivas do currículo de Geografia. A descolonialidade pergunta por
que sujeitos sociais estão afirmados com estereótipos no espaço.
O ensino de Geografia é um campo político e pedagógico que requer ser
tensionado pelo processo de descolonialidade sobre aquilo que discrimina,
diminui e reconhece de forma negativa o sujeito social. Nesse sentido,
entendemos que a descolonialidade, primeiramente, evoca novas epistemologias
e, para isso, requer desconstruir as “narrativas mestras” reproduzidas como
verdades imutáveis nos livros didáticos de Geografia do sétimo ano. Esse estudo,
não seria suficiente, e não é nossa intenção esgotarmos todas as possibilidades,
porque elas são infinitas, históricas. Mas o que propomos aqui é pensar o ensino
de Geografia a partir da descolonialidade, como mostra a seguir, a conclusão.
165
5. CONCLUSÃO
Atualmente completou uma década a homologação da Lei 10.639/03, que
alterou a LDB 9394/96 no seu Artigo 26 e acrescentou o Artigo 26 A, e tornou
obrigatório o ensino da história da África e da cultura afro-brasileira para todas as
disciplinas da educação básica. Desde então, esforços e iniciativas têm sido
criados no campo das políticas educacionais no sentido de fazer a sua
implementação. Com base na lei, as Diretrizes Curriculares da Educação das
Relações Etnicorraciais da História da África e da Cultura Afro-brasileira visam
ao reconhecimento social e, ao mesmo tempo, ao combate do racismo que ainda
pesa contra a população negra. Diante desses fins e para justificar a relevância
desse estudo, foi feito um levantamento no banco de dados da Coordenação de
Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior – CAPES dos últimos dez anos, para
verificar em que medida, no campo da educação, a questão racial no ensino de
Geografia tem sido objeto de interesse dos pesquisadores. No levantamento desses
dados, foram consultadas as seguintes palavras: multiculturalismo e geografia,
racismo e livro didático, lei 10.639/03 e ensino de geografia e geografia e
racismo. Da busca, foram selecionados 20 resumos que versavam sobre as
palavras pesquisadas, contudo, apenas 1 autor abordou na sua pesquisa o racismo
e o preconceito na escola, com vistas para os fundamentos das Diretrizes
Curriculares da lei 10.639/03. Diante disso, entendemos que ainda existe uma
distância muito grande sobretudo entre o que se propõe como educação das
relações etnicorraciais, e o que, de fato, tem sido pensado no campo da pesquisa
sobre este debate no ensino de Geografia. Neste sentido, entendemos ser
importante o objetivo geral desse estudo: resgatar a importância do negro e da
cultura afro-brasileira no ensino de Geografia, com vistas para o
multiculturalismo emancipatório na construção da cidadania plena e da
democracia racial.
Para alcançar esse objetivo, o presente estudo buscou construir um
referencial teórico com base na seguinte pergunta: considerando o
multiculturalismo como um campo de reconhecimento social, como o negro e a
cultura afro-brasileira são representados nos paradigmas do ensino de Geografia?
Para isso, com base nas tendências e abordagens do paradigma da geografia
166
tradicional, retomamos os clássicos, como os “Princípios de Geografia Humana”
de La Blache (1921) e “Geografia Humana” de Brunhes (1956) para verificar em
que medida esse autores reconheciam socialmente os povos africanos.
Concluímos que, para eles, o negro era considerado o homem selvagem, sem
cultura e de raça inferior quando comparado ao homem europeu. E foi essa a ideia
que durante muitas décadas se perpetuou no ensino de Geografia no Brasil, como
também mostraram os primeiros autores de livros didáticos, Carvalho (1935;
1949; 1963; 1967) e Azevedo (1943; 1958; 1959; 1965; 1976), que reproduziram
em seus discursos pedagógicos hegemônicos que o negro não tinha cultura e fazia
parte das raças inferiores e de que era sem cultura. Com base nisso, buscou-se
saber como o negro fora reconhecido pelo paradigma da geografia crítica, cujas
tendências e abordagens estavam voltadas para a explicação das desigualdades
sociais. Para esse paradigma, negros e brancos seriam iguais, e a causa da
desigualdade entre eles seria derivada de fatores sociais, como a má distribuição
de renda e a falta de oportunidade; todavia, não por questões raciais. No caso do
racismo, a geografia crítica reconhecia a sua existência, mas raça não foi a
abordagem central, e sim a luta de classe, uma das inquietações postas pelos
autores brasileiros. Estaria em voga, nos anos 80, o paradigma crítico de base
marxista refletido pelos autores nacionais no ensino de Geografia cuja tensão e
debates estavam voltados para as desigualdades sociais explicadas pelo campo
econômico com base na organização do espaço pelo modo de produção capitalista
e socialista.
Vimos que ainda existe uma lacuna no ensino de Geografia a ser suprida
no que tange à “raça” como um marcador de desigualdade social e de racismo
cultural no que se refere às relações sociais no âmbito da educação e, para avançar
sobre esta questão, buscou-se resgatar o negro e a cultura afro-brasileira como
conteúdos importantes do currículo do sétimo ano. Neste sentido, com base no
multiculturalismo emancipatório, o presente estudo buscou tensionar o conteúdo
do sétimo ano sobre o negro e a cultura afro-brasileira e, como fim, propôs refletir
sobre a ideia da descolonialidade do ensino de Geografia, mas, ao final dessa
conclusão, voltaremos a abordar sobre ela. Vimos que o multiculturalismo
emancipatório, como um campo de análise, é flexível, dialético e dialógico com
outros campos como o da Filosofia do Direito; na verdade, ele preconiza a luta
167
por reconhecimento do sujeito com base na igualdade e na diferença; ele vê a
“raça” como um marcador de desigualdade social, e, sobretudo, tensiona a práxis
da educação, em que os conteúdos dos livros didáticos não são vistos como mera
reprodução, ao contrário, são reconhecidos como discursos carregados de poder,
raça, classe, etc. Para que pudéssemos avançar mais sobre a discussão, no capítulo
3 resgatamos duas obras do pensamento social brasileiro: a primeira, “Casa-
grande e senzala” (FREYRE,1933), um marco da abordagem da formação do
povo brasileiro, em que mostra um Brasil que havia dado certo pela miscibilidade.
Para a época, o autor foi ousado em desafiar o paradigma naturalista biológico
determinista de raça ao propor a cultura como o elemento de integração e de
construção da identidade nacional. É verdade que, com a reflexão trazida por essa
obra, o Brasil deixava de ser visto como uma nação que estava fadada ao fracasso
pela mistura de raças, uma vez que a mistura de cultura e de povos fizeram uma
nação diferente e não inferior às civilizações europeias. Na segunda obra, “A
integração do negro na sociedade de classes” (FERNANDES, 1964) retratou a
condição social do negro, a sua disputa pelo reconhecimento social e moral no
espaço urbano. Nesta obra, estaria o negro vivendo os desafios da sociedade
competitiva, urbana e industrial pela atraente força do capitalismo, mas, ao
mesmo tempo, a liberdade sem a cidadania mostrava a sua desigualdade social.
Para resgatar a importância do negro e da cultura afro-brasileira, optou-se
pela técnica de pesquisa de bricolagem, com que foi possível fazer uma grande
montagem de narrativas, uma colcha bricoleur “negro-afro-brasileira”
confeccionada nas seguintes partes do capítulo 4: a primeira bricolagem tratou do
reconhecimento que o escravo recebia desde a sua saída em África, até o seu fim,
na casa-grande, lugar em que para o senhor existir era necessária a sua extensão
social, a do escravo. Na escravidão, durante todo o tempo, pôde-se notar que a
luta por reconhecimento era uma disputa de vida ou morte entre o senhor e o
escravo. Na verdade, como bem este estudo apontou, ninguém nascia escravo. A
escravidão era uma condição moral e social, uma instituição legal que autorizava
o Outro a viver num estado de sub-humanidade. A segunda bricolagem tratou da
cultura como resistência, em que “Casa-grande e senzala” resgata o cotidiano da
cozinha como um espaço bricoleur, de múltiplas linguagens que se sobrepuseram
nas misturas das culinárias reinventadas pelos africanos e, nesse mesmo sentido, a
168
obra faz o resgate da capoeira, da música, da língua e da religião. Para o autor,
seria tudo isso elementos de integração, de reinvenção de uma cultura que já não
seria mais europeia, africana ou indígena, mas a cultura nacional afro-brasileira.
E, na terceira bricolagem, os marcadores de raça e de renda foram objetos de
comparação do desenvolvimento social e cultural entre negros e brancos e
concluiu que, no que tange ao salário, moradia, e educação, o primeiro
encontrava-se em desvantagem com relação ao segundo. E, a quarta e última
bricolagem abordou a dimensão epistemológica do multiculturalismo
emancipatório no ensino de Geografia. Se por um lado, ele visa à emancipação, à
afirmação daqueles que lutam por reconhecimento e desafiam preconceitos, por
outro, é também um campo de contestação. Explicado com outras palavras, há
teorias e movimentos sociais que se opõem contra o multiculturalismo, que
acreditam ser essa uma tendência perigosa, o que poderia provocar separação ao
invés de agregar.
O multiculturalismo emancipatório é uma categoria de análise que, na
metodologia deste estudo, nos permitiu confeccionar uma grande colcha e de
fazer diversas sobreposições de conhecimento e de áreas de diferentes tipos de
narrativas para compreender, histórica e socialmente, tempos e lugares diferentes.
Nesse sentido, o reconhecimento social é determinante, visto que, ele se dá de
acordo com a moral e a com a política, como também com a Ciência Moderna
que, como uma crença, por muito tempo reconheceu o negro na condição de
Outro como o selvagem, sem cultura e de raça inferior. Esse quadro só foi
revertido graças à luta pelos direitos civil, político e social sinônimos de
cidadania. Com isso, a escravidão deixou de ser um “negócio bom” e, de acordo
com o conceito jurídico feria a dignidade humana. Ao mesmo tempo, as doutrinas
liberais preconizava a máxima de que todos são iguais diante da lei, independente
de raça, cor da pele, religião e etnia.
Quanto ao ensino de Geografia, vimos que nos discursos que foram
analisados, recortados dos livros didáticos, os seus autores abordaram a
importância do negro e da cultura afro-brasileira a partir de suas crenças e
paradigmas. Observou o sentido da escravidão como uma “narrativa mestra” em
que o negro aparece como aquele que contribuiu na formação do Brasil, na
economia, na culinária, na língua, na religião e outros. Por outro lado, a integração
169
social do negro na sociedade de classes foi tensionada pelo racismo, em que a cor
da pele ainda funciona como um marcador, um gerador de desigualdade social e
cultural entre negros e brancos. Acreditamos que, nos livros didáticos, os seus
conteúdos são frutos da trajetória intelectual, política e ideológica de cada autor, e,
nesse caso, cada um deles fala de um lugar de onde expressam suas crenças de
raça e cultura ao abordar a importância do negro e da cultura afro-brasileira.
Portanto, nesse caso, o que se espera para os próximos livros didáticos não seriam
novas metodologias de como trabalhar a cultura afro-brasileira a partir da
homologação da lei 10.639, mas entendemos que é preciso primeiro buscar novas
epistemologias acerca do que se pensa como reconhecimento da cultura afro-
brasileira, ou seja, precisa-se construir novos pensamentos, com vistas nas
narrativas dos estudos pós-coloniais, em que o Outro fala de si na condição de
sujeito e não de objeto narrado e reconhecido pela visão eurocêntrica. Para isso,
defendemos ser necessário a descolonialidade, que representa, desconstruir,
reinventar, reescrever, resgatar, desafiar preconceitos e estereótipos. Neste
sentido, o multiculturalismo emancipatório é dialético e dialógico, e isto significa
que a luta pelo reconhecimento da cultura é uma disputa cotidiana e como tal deve
ser vista, como processo em que se deseja o reconhecimento da diferença do
Outro na diferença.
Historicamente, a escravidão se deve à estrutura social herdada do mundo
medieval, em que reconhecimento era marcado pela honra e pelo estamento o que
definia o reconhecimento desigual entre os homens. Na verdade, essa estrutura foi
a base de criação do homem universal do Iluminismo: racional, criador da ciência
moderna, dos paradigmas positivistas, crenças deterministas, de parâmetros
hegemônicos naturalista e biológico de branco, cristão, heterossexual, raça
superior, civilizado, diferente do Outro; porque, para o europeu, o Outro não
existia como homem, e igual. O Outro seria o não europeu: o oriental, o africano,
o asiático, o americano, o exótico, o selvagem, a raça inferior. Enfim, esses
antagonismos e binarismos seriam frutos da classificação e hierarquização do
eurocentrismo. Hoje, evocar o resgate do negro e da cultura afro-brasileira na
perspectiva do multiculturalismo emancipatório requer defender a igualdade de
direito perante a lei e, ao mesmo tempo, defender a diferença para afirmar a
existência do Eu e do Outro. O Eu só existe por causa do Outro. No caso do
170
ensino de Geografia, o multiculturalismo emancipatório, como uma categoria de
análise dialética e dialógica evoca a bricolagem histórico-social da luta por
reconhecimento do negro nesse estudo desde o século XVI. Seria limitador refletir
sobre o reconhecimento do Outro com base em apenas um ramo ou uma área da
ciência. O multiculturalismo emancipatório abre para o diálogo, para as
montagens e para as sobreposições de narrativa de todos os tempos e lugares
sobre os diferentes paradigmas. Porque, na verdade, o tempo histórico é
sincrônico, diacrônico e simultâneo. Ao mesmo tempo fenômenos sociais ocorrem
e em tempo diferente. O multiculturalismo como emancipação, abre para
possibilidades de reconhecimento do Outro em qualquer tempo e espaço. Ele
reconhece os diferentes sujeitos sociais e as polifonias, porque, para ele, vale a
performance no lugar da obra acabada, como diz Harvey (2003).
Apontamentos finais: a emancipação é ação, é luta por reconhecimento
entre o Eu e o Outro que pensam diferentes e vivem, na diferença e na igualdade,
uma construção histórica da política moderna, da construção do sujeito de direito.
Nesse sentido, para que de fato ocorra o resgate do negro e da cultura afro-
brasileira, através de ações efetivas multiculturais que levem à emancipação
humana, é preciso primeiramente a descolonialidade do ensino de Geografia.
Entretanto, a descolonialidade é processo, é disputa, é tensão. Isso significa que se
parte do pressuposto de que a descolonialidade não teria resposta engessada,
acabada. Ela não se prende a receitas de como fazer o reconhecimento do
diferente. A descolonialidade desafia a pensar o Outro na diferença da diferença.
Para isso é preciso pensar o reconhecimento do Outro na sua totalidade, numa
dimensão histórico-social, política, econômica e filosófica.
Como fazer a descolonialidade do conteúdo do sétimo ano do ensino de
Geografia, no que tange ao negro e à cultura afro-brasileira com base no
multiculturalismo emancipatório? Para responder, fizemos os seguintes
apontamentos que certamente são passíveis de mudanças à medida que este estudo
for aprofundado com base na dialética e no diálogo por outros pares.
1. O multiculturalismo emancipatório ele é meio e não um fim em si
mesmo. Ele visa à emancipação do Outro, ele é histórico-social, é
dialético e dialógico, é o vir-a-ser entre o Eu e o Outro, ele é de
171
natureza social, portanto, sempre esteve presente nas relações
sociais desde que o homem passou a desejar o seu bem estar. Ele é
o motor histórico-social motivador da luta por reconhecimento
social no jogo das diferenças;
2. Historicamente, houve, na Modernidade, a construção dos direitos
civis, políticos e sociais, assim como a Ciência Moderna, as
Revoluções políticas e econômicas, a industrialização e a
urbanização. Tudo isso propiciou, no Estado Moderno, o
nascimento do indivíduo da luta por reconhecimento do sujeito de
direito, e isso requereu o debate da igualdade e da diferença numa
sociedade estamental em transição, marcada pela honra em que o
Outro (o burguês) lutava pela igualdade de direito. Ao mesmo
tempo, nas sociedades coloniais, como é o caso do Brasil, a luta
por reconhecimento foi marcada pela disputa de vida e morte entre
o senhor e o escravo pela manutenção do status quo. Com base na
moral e nas instituições sociais permanentes, o senhor foi mantido
como tal enquanto justificou manter a estrutura social escravagista.
Neste sentido, hoje, resgatar a importância do negro e da cultura
afro-brasileira, como já foi colocado aqui, exige que evoquemos a
descolonialidade como debate. Por quê?
3. A descolonialidade contesta os discursos oficiais hegemônicos
construídos como “narrativas mestras” com macro poder de
explicação;
4. Para a descolonialidade, raça é um conceito, uma construção social
de dimensão política, ideológica e científica, que, embora tenha
esvaziado o seu poder de explicação no campo biológico,
continuou sendo lida sob “rasura”, visto que a sociedade atual se
encontra organizada e hierarquizada social e politicamente
racializada por esse discurso;
5. Para a descolonialidade, a igualdade é um conceito contestado,
uma vez que, quando um sujeito é inferiorizado, discriminado,
impedido à cidadania plena, evoca-se a diferença para reparar a
desigualdade de direitos desiguais para os desiguais;
172
6. Para a descolonialidade, a diferença não é um bloco homogêneo da
consciência social, em que todos pensam sem conflitos e
contestações. Por exemplo, “ser negro” no Brasil não significa que
exista uma forma única, acabada, congelada, engessada, em que a
diferença não teria lugar. “Ser negro” é uma identidade social
construída, é dialética e dialógica e é marcada pela diferença na
diferença. Nesse caso, a descolonialidade está voltada para
interpretar a diferença da diferença na luta por reconhecimento
social daquele que luta pela diferença;
7. A descolonialidade contesta a escravidão como “narrativa mestra”
com base no determinismo econômico que explica o projeto
colonial construído a partir do século XVI, como foi o caso do
Brasil. Para a descolonialidade é preciso retomar e reconstruir os
discursos que sustentaram as instituições de cada época e que
“naturalizaram” a diferença social binária do senhor e do escravo,
do sinhozinho e do “muleque de pancadas”, da casa-grande e da
senzala, por aqueles que se viram estereotipados e afirmados de
forma negativa;
8. A descolonialidade contesta a explicação histórica linear no que
tange à formação política territorial do Brasil. Para a
descolonialidade, a territorialização é vista como um processo
social que se territorializa e se desterritorializa, cuja base está na
cultura material e simbólica capaz de marcar a identidade coletiva
de um povo não determinada na essência de ser europeu, africano,
indígena, ou outro, mas afirmar na pluralidade das culturas, do
encontro das diferenças e do reconhecimento social entre o Eu e o
Outro.
A descolonialidade é processo, é contestação e ao mesmo tempo significa
possibilidade de transformação social pelos sujeitos sociais no cotidiano. Isto
significa que pensar esse processo no currículo do ensino de Geografia vai
depender de cada sujeito social. Isto é: quem é o sujeito que produz o currículo,
qual é a sua trajetória? Fala de onde? Ao mesmo tempo quem é o sujeito que
reproduz e produz o currículo na práxis? Quais são os seus interesses políticos e
173
ideológicos no que tange ao reconhecimento do Outro? Tudo isso envolve a
complexidade do processo que ocorre no tempo sincrônico, diacrônico, com
continuidade e descontinuidade. Em cada lugar, há caminhos e descaminhos
semelhantes e desiguais. Portanto, para a descolonialidade, mais importante do
que os resultados são os processos.
174
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187
7. APÊNDICE
QUADRO SELETIVO
DISCURSOS SOBRE O NEGRO NO LIVRO DIDÁTICO DE GEOGRAFIA
DO 7º ANO: ESPAÇO, TERRITÓRIO, LUGAR, PAISAGEM, REGIÃO E
POPULAÇÃO.
Coleções Espaço Território
GEOGRAFIA
(ADAS)
ECONOMIA
COLONIAL
A partir de 13 de
1888 (data da Lei
Áurea), as
relações
escravistas de
trabalho foram
proibidas por lei e
substituídas pelas
relações
assalariadas de
trabalho ou de
produção, ou seja,
o trabalho deixou
de ser escravo e
passou a ser pago
(assalariado).
Entretanto,
devemos lembrar
que, antes da Lei
Áurea, já havia
pessoas
trabalhando em
troca de
pagamento em
dinheiro. p. 36
CAPÍTULO 3
188
A
CONSTRUÇAO
DE ESPAÇOS
GEOGRÁFICOS
NO BRASIL
1. Espaço
geográfico e
economia
colonial
Fig. 3.2, p. 37:
Dois momentos
da história do
trabalho no
Brasil. Em cima,
à esquerda,
Mercado de
escravos, gravura
de Johann Moritz
Rugendas, cerca
de 1835.
A
CONSTRUÇÃO
DE ESPAÇOS
GEOGRÁFICOS
NAS
ECONOMIAS
COLONIAL E
PRIMÁRIO-
EXPORTADOR
A
Figura 3.3
Detalhe de
Engenho de
açúcar em
Itamaracá,
gravura de Frans
Post, de 1647. p.
38
Figura 3.9. OS
189
CAMINHOS DA
TROPA
Pouso de
tropeiros, óleo
sobre madeira, de
1827, do artista
inglês Charles
Landseer (1799-
1874), que esteve
no Brasil e
retratou vários de
seus aspectos.
OS ESPAÇOS
GEOGRÁFICOS
DA ZONA DA
MATA
Figura 4.7
Engenho de
açúcar, aquarela
de Johann Moritz
Rugendas (1802-
1858), desenhista
e pintor alemão
que viajou pelo
Brasil entre 1821
e 1825 e retratou
vários aspectos
do país. p. 55.
A EXPANSÃO
DA
CAFEICULTUR
A
Figura 6.6
Derrubada da
Mata Atlântica no
sec. XIX, do
desenhista e
pintor alemão
Johann Moritz
Rugendas (1802-
1858). Rugendas
190
esteve no Brasil
entre 1821 e
1825,
aproximadamente
, e registrou, entre
outras coisas, a
derrubada da
Mata Atlântica,
no Vale do
Paraíba, para o
plantio de café.
Observe a
utilização da mão
de obra escrava.
p. 81
GEOGRAFIA
(MOREIRA;
SENE)
GEOGRAFIA
CRÍTICA
GEOGRAFIA,
ESPAÇO E
VIVÊNCIA
CAPÍTULO 1 - O TERRITÓRIO BRASILEIRO:
CARACTERÍSTICAS GERAIS
BRASIL: TERRITÓRIO E FRONTEIRAS
Extensão territorial do Brasil;
A posição geográfica do território brasileiro;
Brasil: limites e fronteiras.
CAPÍTULO 2
Extensão Territorial do Brasil; posição geográfica do território
brasileiro; pontos extremos; os fusos horários; Brasil: limites e
fronteiras; Território brasileiro no século XVI, XVII, XIX, XX
e XXI, numa perspectiva histórica.
191
TERRITÓRIO BRASILEIRO NO SÉCULO XVII
Figura: Johann Moritz Rugendas – Moinho de açúcar. p. 20
TERRITÓRIO BRASILEIRO NO SÉCULO XVIII
Figura: Johann Baptist Spix e Karl Friedrich Philipp von
MMartius – Lavagem de Diamantes em Curralinho – Arquivo
Nnacional – Rio de Janeiro p. 21
UNIDADE II
TERRITÓRIO E POPULAÇÃO BRASILEIRA
Isto aqui, ô, ô... É um pouquinho de Brasil, Iaiá...
Desse Brasil que canta e é feliz, feliz, feliz
É, também, um pouco de uma raça
Que não tem medo de fumaça, ai, ai
E não se entrega não...
BARROSO, Ary. Ary Barroso 100 anos: homenagem ao
mestre. p. 37
GEOGRAFIA,
SOC. E
COTIDIANO
DIFERENTES TERRITÓRIOS
Em meados da década de 1980, muitos jovens se encontravam
com bastante frequência no Largo de São Bento, no centro da
cidade de São Paulo. Eles faziam parte de um movimento
político-cultural denominado hip hop, em que discutiam as
condições sociais do negro em nossa sociedade.
Nesse lugar, eles se expressavam por meio da arte, como a
dança, a música, a poesia e o grafite, e assim mostravam suas
posições diante dos problemas. A atuação do grupo nessa área
192
era intensa. Alem de divulgar o movimento, não permitiam
atitudes discriminatórias e reivindicavam seus direitos,
exercendo, portanto, uma luta cidadã.
Ao delimitar uma área e nela atuar, esse grupo estabelecia
diferentes relações. Entre elas, destaca-se o poder que exerciam
sobre aquele espaço e a identidade negra. Assim, sua atuação
pode ser identificada como a delimitação de um território.
Porém, a delimitação de um território não acontece sem
conflitos. Esse grupo, por exemplo, encontrou resistência de
pessoas com posições contrárias, o que resultava em embates.
Isso pode ocorrer quando um grupo social delimita um
território e o utiliza para se expressar, para mostrar sua posição
político-cultural. P. 8
Território pode ser definido, portanto, não apenas como a
configuração política de uma cidade, estado ou país, mas um
espaço construído em embates políticos, culturais, sociais e
econômicos. P. 9
A delimitação de territórios pode ocorrer tanto na cidade como
no campo. Os quilombos e as áreas indígenas são exemplos de
territórios. P. 9
Os atuais quilombos são áreas formadas por comunidades
negras (descendentes ou não de escravos) que geralmente
vivem em áreas rurais onde produzem para a sua
sobrevivência. No passado, parte dos quilombos se referia a
uma área ocupada por escravos fugitivos das propriedades dos
senhores ou que tinham obtido alforria. Eles buscavam viver
em liberdade, mesmo que, para isso, tivessem de lutar contra a
Coroa portuguesa ou os latifundiários.
MAPA – BRASIL: distribuição espacial dos quilombos por
município (2000). p. 10
TERRITÓRIO POLÍTICO-ADMINISTRATIVOS E SEUS
GOVERNANTES
A construção do território brasileiro
Brasil.
Distribuição dos grupos indígenas antes da chegada
dos colonizadores.
Terra Brasílis.
Brasil: Capitanias hereditárias (séc. XVI).
Brasil: atividades econômicas – século XIX.
193
Fronteira do Brasil Colonial. p. 17-21
A FORMAÇÃO DOS ESTADOS BRASILEIROS
Brasil: 1940 e 2009 (Mapas). p. 22
GEOGRAFIAS
DO MUNDO
CAPÍTULO - FORMAÇÃO DO TERRITÓRIO E DA
GEOGRAFIA DO BRASIL
Fronteira de um planeta Terra chamado Brasil
PARA VIVER
JUNTOS
DIVERSIDADE CULTURAL DO BRASIL
Os primeiros europeus que aqui chegaram, no século XVI, se
depararam com a exuberância da paisagem e com os indígenas
que habitava essas terras, cujos traços físicos e costumes eram
desconhecidos por eles. A miscigenação de indígenas, negros
africanos e brancos europeus resultou na mistura étnica e
cultural que deu origem ao povo brasileiro. Ao longo dos
séculos XIX e XX, a vinda de imigrantes, como os italianos, os
alemães e os japoneses, contribuiu para ampliar a diversidade
étnica e cultural da população.
Assim, os traços culturais de cada um desses grupos foram
contribuindo para a formação da cultura brasileira,
caracterizada pela mescla de referência linguística, religiosa,
gastronômica, etc. Entre as principais contribuições dos
colonizadores portugueses, podemos citar o uso do português
como língua oficial do Brasil e a religião católica. p.15
AS INFLUÊNCIAS CULTURAIS
194
A influência cultural dos diversos grupos indígenas deu-se
sobretudo por meio da culinária, como no uso do milho e da
mandioca, e da incorporação de palavras do vocabulário de
diversos grupos indígenas. Os africanos, durante o período da
escravidão, contribuíram com a religião, especialmente com a
prática do candomblé e umbanda, na música, com a utilização
de instrumentos como o atabaque e o pandeiro, na língua e na
culinária.p.15
PERSPECTIVA A FORMAÇÃO DO TERRITÓRIO BRASILEIRO
Configurando o Brasil: a história de sua formação
PROJETO
ARARIBÁ
LOCALIZAÇÃO DO TERRITÓRIO BRASILEIRO
Extensão do território
O Brasil é o 5º maior país do mundo, com uma área de
8.514.876 km². Os países que superam essa área são Rússia,
Canadá, China e Estados Unidos.
A localização do território brasileiro e as distâncias entre seus
pontos extremos ajudam a explicar a predominância de climas
tropicais e de horários diferenciados em nosso país. p.12
FORMAÇÃO DO TERRITÓRIO BRASILEIRO
A formação do extenso território brasileiro resultou de um
longo processo de expansão colonial iniciado com a chegada
dos europeus.
A chegada dos portugueses à América
Expansão territorial
PROJETO
RADIX
O TERRITÓRIO BRASILEIRO: EXTENSÃO E
LOCALIZAÇÃO NO MUNDO
Limites e fronteiras do território brasileiro
195
DISCURSOS SOBRE O NEGRO NO LIVRO DIDÁTICO DE GEOGRAFIA DO 7º
ANO: PERSPECTIVAS PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES
ETNICORRACIAIS
Coleções Lugar Paisagem
GEOGRAFIA
(ADAS)
GEOGRAFIA
(MOREIRA;
SENE)
A PLURALIDADE CULTURAL
BRASILEIRA
Você já viu que a paisagem acumula parte
da história, ou seja, que na paisagem
podemos encontrar formas de diferentes
idades. Essas formas são uma herança de
outros tempos, quando havia outras relações
humanas, às vezes muito diferentes das que
existem hoje. p.89
Desde sua captura em solo africano, os
escravos eram tratados como peças que só
precisavam de manutenção ou reposição.
Os portugueses colonizadores não se
preocupavam em saber sobre sua língua,
cultura ou procedência étnica. [...] Após
séculos de segregação e preconceito social,
os afro-brasileiros demonstram querer
redescobrir as raízes de sua raça. Esse
movimento é motivado pela contribuição,
cada vez mais evidente, que dão à cultura
nacional. Hoje, várias das manifestações
mais brasileiras – na musica, dança ou
196
culinária – têm algum tributo a pagar aos
escravos que, mesmo a contragosto,
cruzaram o Atlântico trazendo consigo
genes e costumes que formaram o espírito
nacional.
QUEM somos, afinal? Os Caminhos da
Terra. São Paulo, juh. 1998. p. 64- 65
GEOGRAFIA
CRÍTICA
GEOGRAFIA,
ESPAÇO E
VIVÊNCIA
GEOGRAFIA,
SOC. E
COTIDIANO
GEOGRAFIAS
DO MUNDO
PARA VIVER
JUNTOS
PAISAGEM E CULTURA
Ao longo do tempo, a sociedade transforma
as paisagens de acordo com seus interesses
e necessidades. Novas construções, como
habitações, edifícios, templos religiosos,
ruas, avenidas e outras edificações,
incorporam-se à paisagem, ou mesmo
substituem parte de sua forma original.
O resultado dessa interferência sobre o
meio produz, nas paisagens, características
que revelam os traços culturais dos grupos
sociais que habitam essas regiões. [...]. p.16
Por todo o território brasileiro restam
algumas comunidades quilombolas
constituídas por descendentes de escravos
foragidos na época da escravidão. Os
habitantes dessas comunidades têm uma
ancestralidade africana comum e procuram
preservar seus hábitos culturais, como as
crenças religiosas, a culinária e as técnicas
197
de construção de suas casas. Parte dessas
comunidades sobrevive da agricultura e
reside em habitações construídas de pau-a-
pique com chão de barro socado.
No Sul do Brasil, a influência cultural de
povos europeus, como os italianos e os
alemães, expressa-se na paisagem por meio
dos estilos arquitetônicos das habitações,
dos materiais utilizados nas construções,
etc. (p16)
QUESTÕES GLOBAIS
1. Estas fotografia retratam traços
culturais do povo brasileiro
expressos na paisagem de diversas
localidades.
a) Associe as imagens aos textos
abaixo e escreva no caderno a
sequência numérica correta.
Fotografias página 34
4. O texto abaixo foi escrito por Darcy
Ribeiro, antropólogo e autor do livro O
povo brasileiro. Leia e responda às
questões.
[...] Isso é o Brasil, uma Roma melhor
porque mestiça, lavada em sangue negro,
em sangue índio, sofrida e tropical. Com as
vantagens imensas de um mundo enorme
que não tem inverno e onde tudo é verde e
lindo, e a vida é muito mais bela... E é uma
gente que acompanha esse ambiente com
uma alegria de viver que não se vê em outra
parte. Esse país tropical, mestiço, orgulhoso
de sua mestiçagem [...] (p.34)
a) Qual é o principal assunto
tratado no texto? O texto
ressalta o caráter mestiço
do povo brasileiro.
198
b) Escreva um titulo para esse
texto. Resposta pessoal.
Professor: espera-se que o
aluno explore o conceito de
mestiçagem.
c) Por que o autor afirma que
o Brasil é “orgulhoso de
sua mestiçagem”? Resposta
pessoal. p.34
PERSPECTIVA
PROJETO
ARARIBÁ
PROJETO
RADIX
DISCURSOS SOBRE O NEGRO NO LIVRO DIDÁTICO DE GEOGRAFIA DO 7º
ANO: PERSPECTIVAS PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES
ETNICORRACIAIS
Coleções Região População
GEOGRAFIA
(ADAS)
A IMIGRAÇÃO
ESTRANGEIRA
Em 1850, a Lei Eusébio de
Queirós proibiu o tráfico de
escravos para o Brasil. O
problema da falta de mão de
obra para a cafeicultura se
agravou devido à elevação de
preço de venda desse tipo de
trabalhador. Para se ter uma
ideia, por volta de 1845, o
preço médio de um escravo era
378 mil-réis; em 1865, ele
triplicou, passando para 1.059
mil-réis. Além disso, havia as
fugas em massa e os ataques a
engenhos por um movimento
abolicionista cada vez mais
199
ativo no país.
Diante dessa situação, os
fazendeiros passaram a
considerar a possibilidade de
empregar trabalhadores livres
(assalariados). O que não se
sabia era onde consegui-los,
uma vez que o número de
brasileiros disponíveis para
trabalhar na cafeicultura era
insuficiente para atender às
reais necessidades. P. 85
APROFUNDAMENTO
LEITURA
COMPLEMENTAR
“A QUESTÃO DA TERRA”
ATIVIDADES
2. Observe esta fotografia, que
registrou uma colheita de café
em 1882.
a) Que tipo de mão de obra era
utilizada na cafeicultura
mostrada na foto? Como você
sabe?
b) Você verificou que entre os
trabalhadores há crianças.
Quanto você imagina que uma
criança ganhava por dia de
trabalho?
Legenda:
Imagem: In: FERREZ, G. A
fotografia no Brasil: 1840-
1990. Rio de Janeiro: Fundação
Pro-Memória, 1985.
200
CAPÍTULO 11
PAÍS DE
INDUSTRIALIZAÇÃO
TARDIA OU
RETARDATÁRIA
APROFUNDAMENTO
Leitura Complementar
“O Quadrilátero Ferrífero” p.
175
Atividades
3. Analise, com atenção , a tela
da pintora paulistana Tarsila do
Amaral (1886-1973) e
responda:
a) Na sua opinião, por que a
pintora deu esse titulo à sua
obra?
b) Que outros elementos
servem para confirmar a sua
resposta?
c) Nessa tela, há
predominância de que grupo
étnico? Tente explicar a razão
disso. p. 176
RESPOSTA:
Na tela Operários de Tarsila do
Amaral (1933), predominam
pessoas de origem europeia e
alguns mestiços brasileiros. A
presença de apenas dois negros
na tela mostra a exclusão a que
o negro foi submetido. Mesmo
depois da abolição, os negros
não foram incluídos na
sociedade: a eles foram dados
direitos elementares como
trabalho e escola, resultando na
201
triste situação em que os
afrodescendentes vivem ainda
nos dias de hoje. p. 50
GEOGRAFIA
(MOREIRA;
SENE)
O CRESCIMENTO
DEMOGRÁFICO E A
PLURALIDADE CULTURAL
A população brasileira
começou a crescer mais rápido
após a liberação da entrada de
outros imigrantes europeus, em
1808. Entretanto, as correntes
migratórias só se
intensificaram a partir do
momento em que foi proibido o
tráfico de escravos (Lei
Eusébio de Queirós, de 1850)
e, sobretudo, a partir da
abolição da escravidão (Lei
Áurea, de 1888). p.87
GEOGRAFIA
CRÍTICA
CAPÍTULO 2 – A
POPULAÇÃO BRASILEIRA
1.O CRESCIMENTO
DEMOGRÁFICO
2. ESTRUTURA DA
POPULAÇÃO POR IDADE E
SEXO
3. AS MIGRAÇÕES
[...] A partir de 1850, quando o
tráfico de escravos cessou, a
imigração se intensificou.
Antes disso, já ocorria
imigração, mas em número
pouco expressivo.
Com a intensificação das
pressões inglesas para o fim do
tráfico negreiro e com a edição
da Lei Eusébio de Queirós, de
1850 (que proibiu a vinda de
novos escravos), os
202
proprietários de terras,
especialmente de fazendas de
café – atividade predominante
no país na segunda metade do
século XIX e primeira metade
do século XX - , passaram a
incentivar a vinda de
imigrantes para substituir a
mão de obra escrava. p.33-34
GEOGRAFIA,
ESPAÇO E
VIVÊNCIA
REGIÃO SUDESTE
ATIVIDADES
Análise de Imagens (p.104)
Café- Candido Portinari (1935)
Gazo – Tarsila do Amaral (1924)
Observe as paisagens retratadas
pelos artistas brasileiros Candido
Portinari (1903-1962), na
imagem A, e por Tarsila do
Amaral (1886-1973) na imagem
B.
Agora, realize as atividades a
seguir no caderno:
a) Nas paisagens retratadas
pelos artistas, vemos
alguns aspectos que
marcaram a economia e o
processo de urbanização
na região Sudeste, nas
CONCENTRAÇÃO DA
RENDA AGRAVA AS
DESIGUALDADES SOCIAIS
A concentração da renda no
Brasil é, certamente, o maior
motivo das desigualdades
sociais existentes. Uma parte
razoável da população
brasileira vive em condições
extremamente precárias de
moradia, educação e saúde,
enquanto uma parcela bem
menor apresenta elevados
padrões de vida. P. 52
203
primeiras décadas do
século XX. Que aspectos
são esses?
b) Que imagem remete às
atividades desenvolvidas
no campo? Justifique sua
resposta.
Resposta do livro (p. 74).
Análise das Imagens
a) Na imagem A, vemos
características da
cafeicultura e, na imagem
B, a artista retratou
alguns aspectos da
urbanização, como o
surgimento das fábricas,
dos automóveis, de ruas e
avenidas.
b) A imagem A, pois nela
podemos ver o trabalho
no campo, a plantação e
as sacas de café.
GEOGRAFIA,
SOC. E
COTIDIANO
POPULAÇÃO, RAÇA, COR E
ETNIA
Existem muitas expressões,
com concepções diferentes,
para denominar os grupos que
compõem uma sociedade. De
forma simplificada, para
designar um grupo social com
base nas referências
linguísticas, culturais, no
autopertencimento e no
reconhecimento, utiliza-se a
expressão etnia. p. 88
Para se referir aos grupos de
acordo com a sua constituição
física, aparência e origem
(ameríndios, africanos,
europeus, entre outros), utiliza-
se o conceito de raça, como
negros, brancos e amarelos.
Atualmente essa expressão é
muito discutida, pois tem
204
origem em definições
biológicas que por muito tempo
foram utilizadas para justificar
preconceitos.
Quando queremos saber
quantos são e como vivem as
pessoas e os grupos que
compõem a sociedade de um
determinado pais, região,
estado, cidade, bairro, entre
outros, nos referimos à
população.
O órgão responsável pelos
levantamentos de dados e
pesquisas sobre a
caracterização da população
brasileira é o Instituto
Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE). [...] Para
fazer o recenseamento da
população brasileira, o IBGE
utiliza o critério de cor e raça,
baseado no autopertencimento,
e especifica cinco categorias;
branca, parda, preta, amarela e
indígena. P. 88
Os dados sobre a população
são necessários para que se
possa compreender melhor o
país, assim como organizar e
planejar o destino dos recursos
públicos. Além disso, essas
informações podem ser
utilizadas por instituições
públicas e privadas para
diversas finalidades. P 88
QUEM SOMOS (TEMA
TRANSVERSAL–
PLURALIDADE
CULTURAL)
A população brasileira resulta
205
de um intenso processo de
miscigenação, isto é, a mistura
de etnias e culturas. Esse
processo vem ocorrendo desde
a ocupação de nosso território
pelos colonizadores
portugueses. p. 89
GRÁFICO: Constituição da
população brasileira segundo a
raça e a cor.
p. 89
SORRISO NEGRO (Música)
(...) Um sorriso negro
Um abraço negro
Traz felicidade
Negro sem emprego
Fica sem sossego
Negro é a raiz da liberdade (...)
BARBOSA, Adilson,
CARVALHO, Jair e
PORTELS, Jorge. Em: Bodas
de Ouro de Dona Ivone Lara.
Sony Music, S/d. p. 90
Os negros, trazidos como
escravos no período da
colonização brasileira, não
compunham uma população
homogênea- originaram-se de
diferentes grupos étnicos
206
africanos.
Calcula-se que, durante o
período da metade do século
XVI à primeira metade do
século XIX (até 1850), cerca de
4 milhões de negros foram
trazidos ao Brasil.
De acordo com o Censo 2000,
os negros compõem cerca de
6,16% da população e se
concentram principalmente nos
estados do Maranhão, Bahia,
Minas Gerais, São Paulo e Rio
de Janeiro. Devido às
condições socioeconômicas a
que foi historicamente
submetido, esse grupo
apresenta atualmente menores
índices de qualidade de vida,
sendo muitas vezes vitima de
atitudes discriminatórias ou
preconceituosas. p. 91 [...]
[...] A população caracterizada
como parda é resultante do
processo de miscigenação e, de
acordo com o Censo 2000,
compreende quase 40% da
população brasileira. Em geral
as pessoas que compõem esse
grupo muitas vezes se
autodeclaram morenas ou
mulatas. Assim como os
negros, grande parte das
pessoas desse grupo enfrenta
problemas econômicos e,
especialmente as mais pobres,
também sofrem com atitudes
discriminatórias. p. 91
CONSCIÊNCIA DE RAÇA E
COR
207
* Imagem de uma criança
branca e outra negra, numa
piscina.
No recenseamento, ao
classificar os grupos por raça e
cor, corre-se o risco de não
quantificar corretamente a
porcentagem de cada grupo
diante da população total. As
pessoas podem assumir sua
identidade de acordo com as
suas posições políticas,
condições socioeconômicas ou
consciência étnica. Muitas
vezes, indivíduos optam por
negar a sua verdadeira origem
para se proteger de
discriminação racial ou
econômica. Há, por exemplo,
um número considerável de
orientais, negros, pardos e
índios que não se assume como
tal.
Portanto, na realidade, não é a
cor da pele que acaba definindo
o grupo a que uma pessoa
pertence, mas sim a
consciência e a posição que ela
assume diante da sociedade.
(p.92)
ATIVIDADE – (Leitura e
Debate)
Consciência de raça e cor
Leia o texto a seguir e depois
discuta as questões com os
208
colegas.
A cor dos brasileiros
Deu na imprensa: o pessoal do
IBGE está tendo o maior
trabalho para identificar a cor
dos brasileiros. É como se
caíssemos naquela velha
pergunta do programa dos
Trapalhões: casada, solteira ou
tico-tico no fubá? Pelas
respostas que os recenseadores
têm recebido, deu tico-tico na
cabeça. Se somos meio
brancos, somo também meio
negros, meio índios, meio...
O Brasil é mestiço, e não sabe
definir exatamente qual a sua
cor.
Até mesmo na Bahia, onde a
negritude é tão louvada em
música e letra e onde um dos
maiores sucesso do pré-axé foi
o samba-regae “Eu sou negão”,
computou-se um total de mais
de 300 variantes de cores
citadas nas entrevistas. Um
verdadeiro arco-íris na velha
São Salvador, “a terra do
branco mulato, a terra do preto
doutor”, segundo o compositor
Dorival Caymmi.
O Dia,
Rio de Janeiro, 17 de agosto de
2000
1. Você concorda que
nem todas as pessoas
têm consciência de sua
verdadeira origem, cor
ou raça? Por quê?
209
2. Por que se afirma que
o Brasil é um país de
mestiços?
3. Algumas organizações
que atuam contra o
preconceito racial
afirmam que parte da
população negra não se
classifica como tal
quando interrogada
pelo censo
demográfico. Em sua
opinião, por que isso
acontece?
4. Que prejuízos podem
ocorrer quando um
número considerável
de pessoas nega a sua
origem?
5. E você, a que grupo
(cor e raça) pertence?
Justifique.
RESPOSTA
1. Resposta pessoal.
2. Porque o processo de
miscigenação no Brasil
foi intenso e resultou
em uma população
com uma grande
diversidade. Os pardos,
que resultaram da
mestiçagem, formam o
segundo maior grupo
que compõe a
população brasileira.
3. Isso é resultado do
processo de exploração
a que submetido o
negro no Brasil, desde
o período da
colonização até os dias
atuais. Assumir-se
como negro implica
fazer parte de um
grupo com baixa
qualidade de vida, que
apresenta os piores
índices sociais e que
ainda enfrenta
preconceitos e
210
discriminação.
4. O grupo pode receber
menor número de
investimentos por parte
do governo federal e
reduz-se o poder de
barganha das
instituições que lidam
com ações afirmativas.
5. Resposta pessoal. p. 35
ESCOLARIDADE
Em sua opinião, que
dificuldade uma pessoa
analfabeta enfrenta?
Você acha que, em nosso país,
todas as pessoas têm as
mesmas oportunidades de
acesso à educação? p.101
No Brasil, 13% da população é
analfabeta e 30,5 analfabeta
funcional. [...]
[...] Além da taxa de
analfabetismo, há outros dois
elementos que constituem o
indicador de escolaridade:
a média de anos de
estudo da
população – no
Brasil a média é de
9,8 anos entre
brancos e 7,7 entre
negros e pardos
(IBGE, 2004);
atraso escolar – no
Brasil essa
situação chega a
34,2% na região
Nordeste e 12,9%
na região Sul de
jovens cursando
séries que não
211
correspondem à
faixa etária
adequada (IBGE,
2000). p. 103
EXERCÍCIOS
1. Responda às questões:
a) Qual é a diferença
entre etnia e raça?
A etnia se refere a um grupo
social que assume e se
reconhece como portador de
características linguísticas ou
culturais semelhantes. A etnia
tem caráter social, a raça tem
um caráter que leva em
consideração as características
físicas, a aparência e a origem
semelhantes (brancos, negros,
ameríndios, etc).
b) Por que o conceito de
raça pode levar a
preconceitos?
Porque se baseia nas
características físicas.
MOVIMENTOS
POPULACIONAIS (CAP. 6)
QUE MOTIVOS LEVAM ÀS
MIGRAÇÕES
O ato de migrar é complexo e
envolve um conjunto de
necessidades, desejos,
sofrimentos e esperanças. Ao
longo da história, podemos
citar exemplos de migrações
que envolveram tais aspectos: o
que dizer dos milhões de
escravos que foram trazidos à
212
força para o Brasil no período
colonial? [...]p.111
MIGRAÇÕES FORÇADAS
Ocorre migração forçada
quando as pessoas são
obrigadas a sair do seu lugar de
origem. Ou porque há situação
de risco de morte (catástrofes
naturais, epidemias e guerras),
ou porque são retiradas à força
a fim de serem
comercializadas, ou ainda
devido às condições impostas
pelo regime político e
econômico.
Leia atentamente alguns
trechos deste poema de Castro
Alves:
Navio negreiro
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, senhor Deus!
Se é loucura.... se é verdade
Tanto horror perante os céus...
Ó mar! Por que não apagas
Com a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?
Astros! Noite! Tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei dos mares, tufão!...
213
Quem são estes desgraçados,
Que não encontraram em vós
Mais o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são...
São os filhos do deserto
Onde a terra esposa a luz
Onde voa em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados,
Que com os tigre mosqueados
Combatem na solidão...
Homens simples, forte bravos...
Hoje míseros escravos
Sem ar, sem luz, sem razão.
ALVES, Castro. Em:
Antologia escolar brasileira.
Rio de Janeiro: Fename, 1977.
(p.112)
GEOGRAFIAS
DO MUNDO
DESIGUALDADE E
DIVERSIDADE NA
POPULAÇÃO BRASILEIRA:
OS NEGROS E AS
MULHERES
214
Ainda é muito forte o
tratamento discriminatório e
desigual a que as pessoas são
submetidas no Brasil apenas
por causa de suas condições de
cor ou sexo, segundo o
levantamento realizado pelas
últimas pesquisas do IBGE.
Da mesma maneira, entre
brancos e não-brancos as
diferenças são grandes.
Comparando-se o rendimento
médio das populações preta e
parda (segundo denominação
utilizada pelo IBGE) com a
branca, constatou-se que os
primeiros receberam em 2001 a
metade do que receberam os
brancos. E aqui, também, as
maiores diferenças de
rendimentos foram encontradas
entre os mais escolarizados,
com 12 ou mais anos de
estudo.
Ao comparar os rendimentos,
constatou-se ainda que os
homens pretos e pardos
ganham cerca de 30% menos
do que as mulheres brancas, o
que parece ser uma forte
indicação de que no Brasil a
cor da pele é motivo de
discriminação maior ainda do
que a condição de gênero.
Diante desses dados, não
seriam necessários longos
argumentos nem explicações
complicadas para convencer
qualquer um da importância
dessa discussão, sobretudo
quando consideramos que a
população brasileira, além de
ser majoritariamente
constituída de mulheres
(conforme nos indicam os
215
próprios dados do IBGE), é
visivelmente uma população
mestiça, com elevada
quantidade de negros; estes, no
entanto, aparecem nas
estatísticas populacionais como
minoria absoluta, diante da
maioria branca e parda que os
últimos censos têm revelado.
[...]
São muitas as explicações para
origens dessa atitude de
discriminação. Para enumerá-
las, com certeza seríamos
remetidos inclusive à própria
história da formação do país e
de sua sociedade, como a
imposição de valores pela
colonização europeia, as
disputas territoriais com os
indígenas e os séculos de mão
de obra negra escravizada. Não
é o caso, aqui, de nos
desviarmos para as análises
desses episódios. [...] De
qualquer forma, não
poderíamos encerrar nossa
abordagem da geografia da
população brasileira sem fazer
referência a aspectos que
evidenciam uma geografia que
é também de injustiças e
discriminações. Omitindo tais
aspectos, contribuímos para
alimentar mitos comuns e
muito difundidos para
caracterizar a população
brasileira, como o de
“democracia racial”, uma
situação em que prevaleceria
uma condição de igualdade de
oportunidades para todas as
pessoas, independentemente da
cor da pele ou da origem
etnicorracial de cada um.
p.122-123
216
AMPLIANDO OS
HORIZONTES
Mitos e realidades da
população brasileira (texto
complementar. p 124-125
PARA VIVER
JUNTOS
A FORMAÇÃO DO POVO
BRASILEIRO
Durante a colonização
portuguesa, povos africanos
foram trazidos como escravos.
Inicialmente trabalharam na
produção da cana-de-açúcar, no
atual Nordeste brasileiro;
depois no garimpo das minas.
(p.38)
O POVO BRASILEIRO
No censo demográfico do
IBGE de 2000, a maioria dos
brasileiros declarou ser de cor
branca (54%), seguidos pelos
pardos ou mestiços (cerca de
40%), pretos (pouco mais de
5%), amarelos (orientais, como
japoneses ou coreanos, cerca
de 0,5%) e indígenas (0,4%).
AFRODESCENDENTES E
OUTROS GRUPOS ÉTNICOS
A presença de
afrodescendentes é mais forte
nas regiões Nordeste e Sudeste,
áreas que mais utilizaram a
217
mão de obra escrava africana.
Nessas duas regiões, as
maiores do país em população,
também se percebe facilmente
influência cultural africana no
vocabulário, culinária, na
dança e na música, entre outros
elementos.
Assim, pode-se dizer que o
brasileiro é um povo
particularmente miscigenado e
multicultural. p.39
DIVERSIDADE ÉTNICA
Os grupos étnicos formadores
do povo brasileiro são o
indígena, o branco europeu e o
negro africano.
A forte miscigenação que
caracteriza o país ao longo de
sua história torna os brasileiros
de norte a sul um povo de
costumes, culinária e tradições
bem variados. p.40
PERSPECTIVA
CAPÍTULO 4 – QUEM VIVE
NO BRASIL?
A ORIGEM DO POVO
BRASILEIRO p.40
A contribuição cultural dos
povos africanos à cultura
brasileira é grande. Elementos
dessa herança podem ser
218
percebidos na nossa música,
dança, religião e culinária. p.41
DIVERSIFICANDO
LINGUAGENS
O Brasil e seu povo são,
frequentemente, retratados por
meio de manifestações
artísticas. Leia um exemplo a
seguir e observe a obra de
Tarsila do Amaral.
Lourinha Bombril (Parate y
mira)
Para e repara
Olha como ela samba....
p.43
PROJETO
ARARIBÁ
REGIONALIZAÇÃO DO
TERRITÓRIO BRASILEIRO
O que é regionalização?
Dividir para melhor governar
Por que regionalizar (p.22-23)
NORDESTE: OCUPAÇÃO E
ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO
O CANAVIAL E A
ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO
A FORMAÇÃO DA
POPULAÇÃO BRASILEIRA
A miscigenação trouxe grande
diversidade de traços culturais
na formação da população
brasileira. (p.42)
Os povos africanos
Assim como os indígenas, os
povos africanos pertenciam a
diferentes grupos étnicos,
vindos de varias regiões da
África, e representavam,
numericamente, boa parte do
total da população no período
219
Ao longo do século XVI, a
organização do espaço nordestino
esteve relacionada à economia
canavieira, que proporcionou
poder político e econômico à
região no período colonial.
Alguns aspectos
socioeconômicos ligados à
produção açucareira marcaram a
organização do espaço:
formação de latifúndios,
ou seja, concentração de
grandes ares destinadas à
plantação de cana-de-
açúcar;
desenvolvimento de
monocultura, isto é,
cultivo de apenas um
produto, nesse caso a
cana-de-açúcar;
trabalho escravo com
pessoas trazidas da
África. p.117
REGIÃO SUDESTE
ATIVIDADE
COMPLEMENTAR
Compreender um texto
CHICO REI
O texto a seguir nos conta a
história de Galanga, que era rei
em sua terra natal, o Congo, na
África, e foi trazido para o Brasil
como escravo. Vamos saber
como ele voltou a ser o rei de seu
povo, mesmo tão distante de sua
da colonização.
Aproximadamente 4 milhões
de africanos foram trazidos
para trabalhar como escravos
no Brasil, entre os séculos XVI
e XIX.
Apesar da repressão sofrida
pelos povos africanos durante o
período de escravidão, suas
manifestações culturais, tais
como a música, a religiosidade,
a dança e a comida, compõem
a cultura brasileira. Basta
lembrarmos duas das “marcas
registradas” do Brasil: a
feijoada e o samba. p.43
Hoje, milhares de famílias de
descendentes dos povos
escravizados vivem nas
comunidades remanescentes de
quilombos (onde se localizam
os antigos quilombos),
existentes em muitos estados
brasileiros. p.43
O MITO DA DEMOCRACIA
RACIAL
Um dos aspectos levantados
pelos censos brasileiros é a
distribuição da população
segundo cor ou raça. Para
realizar esse levantamento, o
IBGE apresenta cinco grupos
étnicos, definidos, de modo
geral, pela cor da pele, para que
as pessoas se autoclassifiquem.
Observe a figura 11. p.45
Durante muito tempo
220
terra natal. (p.162-163).
acreditou-se que a “mistura” de
povos fazia do nosso país uma
democracia racial, isto é, um
país sem racismo, onde todos
seriam tratados da mesma
forma e teriam as mesmas
oportunidades.
No entanto, em nosso país há
uma racismo disfarçado contra
negros e indígenas, levando
grande parte da população a
não reconhecer sua própria
origem. Prova disso é que
muitas pessoas que poderiam
ser classificadas como pardas
ou negras se autodeclaram
brancas.
Ao comparar, por exemplo, as
taxas de analfabetismo da
população brasileira, dividida
por cor ou raça, verificamos a
enorme desigualdade: 7% da
população branca é analfabeta,
e entre a população parda e
negra esse valor dobra, sendo
15,6% e 14,6%
respectivamente. A figura 12
mostra o analfabetismo por
região demonstrando que as
diferenças relacionadas à cor
da pele somam-se às diferenças
regionais. p.45
ATIVIDADE
SAIBA MAIS
A capoeira
221
“De origem remota e
controversa, é verdade que a
capoeira é brasileira. Foi aqui
que fincou suas raízes e criou
mitos e lendas, como a que
envolve o mestre Besouro e
tanto outros, na afirmação da
resistência contra a opressão. A
capoeira, hoje, é parte do
cenário urbano. Perseguida por
quase trezentos anos, era
praticada às escondidas.
Marginalizada, era jogo que se
jogava por alguns corajosos.
Era apenas uma tradição dos
negros.
Herança deixada pelos negros
bantos, vindas de Angola como
escravos, foi cultivada e
praticada por escravos
fugitivos que, ameaçados de
recaptura, defendiam-se usando
a técnica. Para não levantar
suspeitas, os movimentos de
luta foram adaptados às
cantorias africanas para que
parecessem uma dança. [...]
O Brasil está mais alegre ao
som dos berimbaus, que soam
nas praças, nas rodas de
capoeira, no bailado dos corpos
negros. É a estética da
resistência. É o mostrar-se ao
mundo com dignidade. É o
saber cultural de um povo
forjado na luta que está inscrito
para sempre na história da
identidade brasileira.”
ARAÚJO, Zulu. A afirmação
da capoeira. p. 47
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PROJETO
RADIX
MÓDULO 3 – A
POPULAÇAO BRASILEIRA
[...] Essa pluralidade da cultura
brasileira tem origem na
formação do nosso povo, que,
como já vimos, aconteceu a
partir do encontro de diferentes
povos: os indígenas, que
habitavam essas terras há
milhares de anos; os europeus,
principalmente os portugueses
colonizadores; os africanos; e
diversos povos imigrantes,
entre eles italianos, alemães,
espanhóis, japoneses e árabes.
Cada um desses povos deixou
uma herança cultural que hoje
está presente em nosso modo
de vida. Os portugueses
deixaram as marcas mais
profundas em nossa cultura,
como a língua e a religião
católica, a mais praticada no
país. Os indígenas nos legaram
hábitos como tomar banho
diariamente, descansar em rede
e utilizar alimentos como
mandioca e o milho. Em nossa
culinária, que é uma das mais
diversificadas do mundo,
encontramos a influência dos
africanos, que criaram a
feijoada e o vatapá; dos
portugueses, que introduziram
os doces à base de leite e ovos;
dos italianos, que trouxeram a
pizza, macarronada, a polenta
e a lasanha; dos japoneses, que
nos apresentaram o suchi e o
sashimi, entre outros. p.68