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PALÍNDROMO Teoria e História da Arte 2010 / n o 3 35 O neoclássico entre o ideal e a história: sobre a questão do anacronismo na obra de Winckelmann, Goethe e no ambiente artístico romano do final do século XVIII PROF A . DR A . CLAUDIA VALLADÃO DE MATTOS Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP Resumo Este artigo investiga a presença de importantes anacronismos no pensamento sobre as artes do filólogo clássico e estudioso de literatura e arte grega Johann Joachim Winckelmann, considerado o mentor do Neoclassicismo europeu, e observa suas continuidades na obra e na prática estética de um de seus mais eminentes seguidores: o poeta e teórico alemão Johann Wolfgang von Goethe. O artigo evidencia como na era do florescimento de um pensamento histórico sobre arte e sobre cultura em geral, a negação da história foi ainda um fator central no processo de apreciação do objeto artístico, manifestando-se em práticas como as visitas noturnas à luz de tochas a museus de arte antiga, que se tornaram usuais nas últimas décadas no século XVIII em Roma. Palavras-chave: anacronismo, Winckelmann, Goethe, século XVIII. Abstract T his paper investigates the presence of important anachronisms in the works of the classical philologist and art theorist, Johann Joachim Winckelmann, considered the mentor of European Neoclassicism. It also pursues this attitude in the aesthetical practice of one of his most imminent disciples, the German poet and theorist Johann Wolfgang von Goethe. The article will demonstrate that in the era of rapid development of historic approaches to art and culture, the negation of history persisted as a central element in the appreciation of art objects. Such anachronisms can be grasped by examining some interesting practices that marked the aesthetic sensibility of the period, such as night visits to museums of antique art, which became popular in the last decades of the eighteenth century in Rome. Keywords: anachronism, Winckelmann, Goethe, Eighteenth century.

O Neoclássico Entre o Ideal e a História- Sobre a Questão Do Anacronismo Na Obra de Winckelmann, Goethe e No Ambiente Artístico Romano Do Final Do Século XVIII

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Sobre anacronismo na história

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palíndromo Teoria e História da arte 2010 / no3 35

O neoclássico entre o ideal e a história: sobre a questão do anacronismo na obra de Winckelmann, Goethe e no ambiente artístico romano do final do século XVIII

Profa. Dra. ClauDia VallaDão De Mattosuniversidade estadual de Campinas, uNiCaMP

Resumo este artigo investiga a presença de importantes anacronismos no pensamento

sobre as artes do filólogo clássico e estudioso de literatura e arte grega Johann

Joachim Winckelmann, considerado o mentor do Neoclassicismo europeu, e

observa suas continuidades na obra e na prática estética de um de seus mais

eminentes seguidores: o poeta e teórico alemão Johann Wolfgang von Goethe. o

artigo evidencia como na era do florescimento de um pensamento histórico sobre

arte e sobre cultura em geral, a negação da história foi ainda um fator central no

processo de apreciação do objeto artístico, manifestando-se em práticas como as

visitas noturnas à luz de tochas a museus de arte antiga, que se tornaram usuais

nas últimas décadas no século XViii em roma.

Palavras-chave: anacronismo, Winckelmann, Goethe, século XViii.

Abstract this paper investigates the presence of important anachronisms in the works of the

classical philologist and art theorist, Johann Joachim Winckelmann, considered the

mentor of european Neoclassicism. it also pursues this attitude in the aesthetical

practice of one of his most imminent disciples, the German poet and theorist

Johann Wolfgang von Goethe. the article will demonstrate that in the era of rapid

development of historic approaches to art and culture, the negation of history

persisted as a central element in the appreciation of art objects. such anachronisms

can be grasped by examining some interesting practices that marked the aesthetic

sensibility of the period, such as night visits to museums of antique art, which

became popular in the last decades of the eighteenth century in rome.

Keywords: anachronism, Winckelmann, Goethe, eighteenth century.

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ach da sitz ich so da und verwandle mir den Marmor in leben mit Geist und fleisch und Blut (Wilhem Heinse)1

o século XViii é sabidamente o momento do nascimento de uma consciên-cia histórica propriamente dita, isto é, da problematização das relações entre presente e passado, que se radicalizaria nas décadas seguintes à revolução francesa, mas que já se tornara um sentimento vivo a partir dos anos de 1750. essa “cesura” permanente que se construía entre diferentes épocas da história era especialmente sentida com relação à antiguidade, expressando-se de forma clara na crescente popularidade dos defensores da posição dos “modernos” na famosa Querelle des anciéns et de Modérnes. a retomada dos modelos clássicos ao longo da segunda metade do século XViii deve ser compreendida no âmbito desse conflito. trata-se do último momento da relação anacrônica que a tradição tecera ao longo de séculos com o passado clássico, em meio à superação desse modelo em prol de um modelo histori-cista que se tornaria cada vez mais homogêneo a partir de 1800.

Partindo desse contexto, o presente artigo pretende investigar a presen-ça de importantes anacronismos no pensamento sobre as artes do filólogo clássico e estudioso de literatura e arte grega Johann Joachim Winckelmann, considerado o mentor do Neoclassicismo europeu, e observar suas continui-dades na obra e na prática estética de um de seus mais eminentes seguido-res: o poeta e teórico alemão Johann Wolfgang von Goethe. Veremos como na era do florescimento de um pensamento histórico sobre arte e sobre cultura em geral, a negação da história foi ainda um fator central no pro-cesso de apreciação do objeto artístico através de práticas como as visitas noturnas a museus de arte antiga à luz de tochas, que se tornaram usuais nas últimas décadas no século XViii em roma.

a inquietação gerada pelos debates entre os “antigos” e “modernos” no espíri-to dos defensores dos anciéns pode ser considerada um dos motores da obra de Winckelmann. Para manter viva a ideia do antigo como único modelo a ser imitado, era necessário encontrar um caminho de acesso direto ao passado clássico em meio à crescente sensibilidade histórica de sua época. No início de sua obra encontra-se, assim, a seguinte pergunta: haveria, apesar de tudo,

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um meio confiável de acessar os nossos modelos antigos? seu primeiro livro, o Pensamentos sobre a imitação2, nada mais é do que a afirmação otimista de que, em meio a tantas portas fechadas, as grandes obras de arte legadas pela antiguidade seriam a “chave de ouro” para uma presentificação do passado e, portanto, também o locus por excelência do estudo do antigo. as famosas descrições que o autor realiza do apolo Belvedere, do torso Belvedere e do grupo do laocoonte nasceram, como veremos, dessa convicção. Mesmo em seu livro a História da arte na antiguidade, publicado em 1764, em que Win-ckelmann revela seu talento de historiador, perseguindo o desenvolvimento dos sucessivos estilos gregos ao longo do tempo, a nostalgia pelo antigo e o desejo de comunicação direta com a antiguidade ainda podem ser encontra-dos. Para ele tal “ilusão” permaneceu sempre viva, sendo de fato o próprio motor de sua atitude estética. a consciência da tensão entre o modelo anacrô-nico posto em movimento em suas descrições e a distância histórica exigida do historiador estavam, de fato, muito presentes no espírito do autor, como fica evidente no parágrafo final do livro onde, comparando seu objeto de dese-jo, i.e., a antiguidade, com o amante de Dibutade, a jovem coríntia que traçou o perfil da sombra projetada de seu amante na parede a fim de preservar sua imagem após sua partida definitiva, Winckelmann escreve:

resta-nos, como à amante, igualmente apenas a silhueta (schatten-riss) do nosso objeto de desejo; porém o mesmo desperta tanto mais nossa nostalgia (sehnsucht) com relação a ele e observamos a cópia do original com mais atenção do que teríamos feito se o possuísse-mos por inteiro. aqui ocorre-nos freqüentemente o mesmo que com pessoas que querem conhecer fantasmas e que acreditam vê-los onde não há nada: o nome da antigüidade tornou-se preconceito, mas mesmo esse preconceito não é sem utilidade.3

A Grécia diante dos nossos olhos: as descrições de Winckelmann

o interesse de Winckelmann pelas esculturas antigas, que ele conheceria de perto a partir de sua mudança definitiva para a itália no final do ano de 1755, pode ser explicado não apenas por seu gosto pessoal, mas também pelo status das artes plásticas no contexto das teorias dos signos correntes

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no século XViii. essas teorias atribuíam uma qualidade natural ao signo das artes visuais, em oposição ao signo considerado artificial da literatura4. as-sim, Winckelmann parece pensar a escultura como a arte capaz de atualizar o passado clássico de forma mais imediata devido à característica mais “uni-versal” de seu signo. ao mesmo tempo, se lembrarmos da célebre frase de seu discípulo, Goethe, sobre o grupo do laocoonte: “[...] gostaria de dizer que do modo como ele se encontra, ele é um raio fixo, uma onda petrificada no momento em que ia se chocar com a margem.”5, talvez pudéssemos pensar que o medium essencialmente espacial da escultura, em oposição à tempo-ralidade intrínseca à literatura, possa ter igualmente atraído Winckelmann, que poderia assim imaginar nas esculturas toda a Grécia condensada em um só momento6. a contemplação de esculturas antigas torna-se assim, para o autor, o ponto privilegiado de comunicação direta com o passado, em meio a uma cultura moderna que é essencialmente estranha ao antigo: “Procurar essas fontes significa viajar para atenas”, diria Winckelmann na abertura de seu primeiro livro7. e é exatamente por existir esse último fio de contato que podemos de forma legítima ainda afirmar os antigos como modelo.

Como a escultura antiga era fruto do olhar do artista que a realizou, ela podia ser pensada, por sua vez, como testemunho desse olhar, que era, de acordo com o autor, infinitamente mais perfeito que o moderno. Ver a escultura, tra-duzi-la em palavras, equivaleria assim para Winckelmann a inverter o caminho que leva do artista à obra, para alcançar, através da obra, o artista, o grego e, assim, o seu ideal. Diz Winckelmann: “É necessário conhecê-las (as obras) como a um amigo [...] graças a esse exato conhecimento se poderá julgá-las como Nicômaco julgou a Helena de Zeuxis: “toma meus olhos”, disse ele a um ignorante que queria criticar a imagem, “e ela te parecerá uma deusa”.8

as já tantas vezes citadas páginas que se seguem a esses primeiros comen-tários dos Pensamentos sobre imitação centram-se então numa espécie de enumeração das razões que fizeram o olhar grego superior ao dos artistas modernos. Porém aqui, aos poucos, Winckelmann substitui essa suposta capacidade se “seleção” do elemento ideal que ele atribuía ao artista grego por uma Grécia e um povo grego perfeitos em si (devido ao clima favorável, à cultura política etc.). olhar com os olhos dos mestres gregos seria, em

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última instância, portanto, presentificar essa Grécia ideal.

o passado, porém, presentifica-se nas esculturas de forma peculiar. Nelas, ele não é palpável e concreto, não se encontra ao alcance das mãos, mas atualiza-se através de uma beleza manifesta de forma extremamente sutil; de fato, tanto mais sutil, quanto mais divina9. esse elemento quase intangí-vel, mas que apaga as distâncias entre passado e presente, será o objeto de contemplação por excelência para Winckelmann e a matéria-prima de suas famosas descrições. as descrições que Winckelmann realiza das mais famosas esculturas antigas, presentes à sua época no cortile do Belvedere, visavam tornar essas obras vivas e, através delas, abrir um túnel no tempo e transportar o observador para a idade de ouro da Grécia. assim, podemos ler em sua famosa descrição do apolo Belvedere, por exemplo:

Com admiração meu busto parece alargar-se e elevar-se [...] e me sinto transportado para Delos e para as florestas sagradas dos lobos (lykos), locais honrados pela presença de apolo, pois minha imagem parece tornar-se viva e adquirir movimento, assim como a bela de Pigmalião.”10

Para capturar a imagem em sua origem e em toda sua relação com o mundo clássico, Winckelmann ao mesmo tempo retoma e modifica a tradição retó-rica da écfrase, uma técnica que visava a enárgea, isto é, pôr uma imagem, como viva, diante dos olhos do espectador. Porém, enquanto que a écfrase implicava em uma descrição literária que geraria uma imagem viva na mente do observador, a técnica de Winckelmann visava reanimar o mármore, isto é, soprar vida à imagem que estava fisicamente presente, porém muda e inaces-sível. Para não abandonar a escultura, trocando-a por uma imagem mental, e animá-la a partir de sua materialidade, Winckelmann desenvolveu uma téc-nica descritiva própria que alternava a descrição das formas visíveis da pedra com a imagem viva da figura representada, completando com a imaginação o elemento perdido com a passagem do tempo. ao final, a corporeidade da escultura era preservada e ela adquiria o movimento e a vida que lhes haviam sido roubados pelos anos e pela distância. o exemplo mais célebre dessa es-pécie de “restauro” pela palavra encontra-se na descrição que Winckelmann

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faria do torso Belvedere:

Vejo nos contornos poderosos desse corpo a força insuperada dos violentos gigantes, que se indignaram contra os deuses e foram por ele derrotados nos campos flegueus: e ao mesmo tempo, imagino nos traços suaves desse contorno, que faz o edifício do corpo leve e móvel, o voltar-se ágil do mesmo na luta contra aquelóo, que com metamorfoses multiformes não pôde escapar às suas mãos. em cada parte desse corpo revela-se, como em uma pintura, todo o herói em um feito determinado, e podemos ver, como vemos o objetivo cor-reto na construção racional de um palácio, a qual feito cada uma das partes serviu.”11

Nessas descrições, Winckelmann parece não só acreditar que seu método per-mitiria colocar a própria obra diante dos olhos do observador, mas igualmente aboliria a dimensão temporal recuperando sua forma e seu espírito originais.

a presença de Winckelmann em roma como cicerone da elite europeia que realizava o Grand tour pela itália como parte de sua formação e a publicação das suas descrições das esculturas do Belvedere promoveram e dissemina-ram uma nova atitude do observador diante do legado clássico. Nas palavras de adelheid Müller, “com o aparecimento de Winckelmann nos episódios de viagens do século XViii foram estabelecidos novos parâmetros ideais para a recepção da antiguidade. [...] os monumentos antigos e testemunhos da arte tornaram-se portadores de memória e criaram a ilusão de se poder encontrar a Grécia [...] em solo italiano”12. os jovens viajantes, seguindo os passos de Winckelmann, passaram a buscar uma relação viva, emocional e essencialmente anacrônica com a obra de arte e com o mundo clássico. uma relação que exigia uma imaginação vigorosa, algo que não faltava ao menos a um desses grand turistas: o poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe.

“Também eu na Arcádia”: Goethe e a Antiguidade

Poderíamos afirmar que todos os escritos de Goethe sobre arte (assim como sua poesia) alimentaram-se do mesmo sentimento de ruptura entre homem

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e mundo e entre passado e presente, que décadas antes também havia mo-bilizado Winckelmann.

a relação de Goethe com as artes remonta à sua juventude. entre os anos de 1770 e 1775, no contexto de seu envolvimento com o movimento sturm und Drang, o tema se tornou particularmente relevante em sua obra. esse grupo de jovens intelectuais, que lançaria as bases para o romantismo na alemanha, avaliava que o princípio mimético das artes não poderia mais se sustentar diante da consciência histórica moderna e propunha a substituição do seu vínculo com o mundo externo (mimesis) por um compromisso com o mundo interno do artista. a expressão da força criativa do artista, visto como gênio, torna-se, então, para Goethe, o objetivo último da arte.

essa posição inovadora e radical que Goethe sustentava nesses anos de ju-ventude sofreria, no entanto, uma guinada após sua viagem à itália. Diante da visão das ruínas antigas, o poeta reavaliou suas convicções anteriores, tornando-se novamente otimista com relação ao restabelecimento de um vín-culo saudável entre homem e mundo, sob a inspiração dos antigos. Durante a viagem, Goethe cunha para si um novo vocabulário clássico, inspirado princi-palmente em Winckelmann, cuja História da arte na antiguidade ele leria na itália, em italiano, na edição comentada de Carlo fea, publicada em 1786.

É importante observarmos, no entanto, que essa virada teórica representou apenas uma nova solução para o problema de fundo que encontramos ao longo de toda a sua longa produção: sua oscilação entre o ideal e a história. Na itália e em contato com as teorias e métodos de Winckelmann, Goethe se convence que a arte grega, saudável e impregnada de realidade, poderia e deveria tornar-se modelo para os artistas modernos, ajudando-os a reverter sua condição subjetiva. Para Goethe, tanto as esculturas clássicas quanto o próprio solo italiano (a paisagem) seriam testemunhas de um mundo passa-do, capaz de tornar-se vivo novamente através de um olhar estético.

o que fundamentalmente atraiu Goethe nas teorias de Winckelmann foi a sua viva descrição da relação dos antigos com a natureza, um dos pontos centrais do seu Pensamentos sobre a imitação. No livro, Winckelmann de-

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fendia a tese de que a natureza amena da Grécia favorecera o desenvolvi-mento de uma civilização onde o homem encontrava-se em total harmonia com o mundo circundante e que essa harmonia teria gerado uma arte “for-te”, “saudável” e “verdadeira”, cujos resultados podiam ser observados nas obras de arte que sobreviveram da antiguidade clássica. Diz Winckelmann no primeiro parágrafo do livro:

o bom gosto que se espalha cada vez mais pelo mundo, começou a formar-se sob o céu grego. todas as criações de povos estrangeiros chegaram à Grécia apenas como primeiras sementes e adquiriram ali, no país que – diz-se – Minerva destinou como morada aos gregos, à preferência de todos os demais países, como o país que produziria cabe-ças inteligentes devido às amenas estações do ano ali encontradas.13

Goethe acolheria essa ideia de uma Grécia caracterizada pela harmonia en-tre homem e natureza, transformando-a no horizonte utópico do homem moderno. ao fazer uma descrição dos antigos, numa biografia de Winckel-mann que ele publicaria em 1805, ele diria:

o homem e o humano eram respeitados como os mais altos valores, e todo seu interior era representado e observado com grande sentido na sua relação como o mundo exterior. o sentimento ainda não tinha sido fragmentado pela observação e tal divisão praticamente incurá-vel ainda não havia se processado na saudável força humana.14

a prova de que o homem moderno era capaz de se aproximar desse “senti-mento antigo” era fornecida de acordo com ele, pelo próprio Winckelmann: “uma tal natureza antiga, na medida em que podemos atribuí-la apenas a um de nossos contemporâneos, reapareceu em Winckelmann (...).”15

o pensamento de Goethe sobre arte girará, a partir de sua viagem à itália, em torno dessa ideia de restabelecimento de uma relação “verdadeira” e “saudá-vel” entre homem e mundo, o que pressupunha uma comunicação direta, não histórica, com o universo da arte clássica. assim como Winckelmann, Goethe procuraria aprender sobre o sentimento dos antigos através do estudo das

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obras e dos monumentos clássicos, pois os via à maneira de seu antecessor: como verdadeiros testemunhos desse passado, espécies de túneis no tempo, através dos quais era possível se comunicar diretamente com a Grécia.

No que diz respeito à paisagem, Goethe superaria a ambiguidade presente na obra de Winckelmann no que se refere à prática da “seleção”, ou não, de elementos ideais entre artistas gregos. Do ponto de vista de Goethe, a Grécia torna-se ela mesma ideal. isto é: os gregos tinham o ideal diante dos olhos ao realizarem suas criações, e ao longo de sua viagem pelo sul da itália ele sente-se transplantado ao mundo helênico. essa posição era compartilhada por alguns intérpretes de Winckelmann à época, como Chris-tian friedrich Hagedorn, que em seu livro Betrachtungen über die Mahlerey (observações sobre a Pintura), publicado em 1762, também defenderia que a paisagem grega era de fato bela em si.

lendo os trechos referentes à passagem por Nápoles e em seguida pela sicília, na Viagem à itália de Goethe, podemos de fato observar como a pai-sagem italiana transforma-se para ele na paisagem da própria Grécia. sobre a questão o estudioso de Goethe Norbert Miller comentaria:

ele chegou à ilha de trinakria, na qual os antigos comentadores ti-nham situado tantas das viagens aventurosas de odisseus, exata-mente com essa atitude de viajante à mercê do destino (...) agora, como poeta, ele viaja, profundamente mergulhado em Homero e na Grécia primitiva, pelo país cuja luz e cuja natureza mais e mais come-ça a identificar com a Grécia.”16

De fato, ao chegar a Nápoles em seu retorno da sicília, Goethe escreveria a seu amigo Herder:

No tocante a Homero, é como se me houvessem retirado a coberta de cima dos olhos. as descrições, os símiles etc. nos parecem poéti-cos, mas são, de fato, de naturalidade indizível, embora traçados com uma pureza e uma profundidade de sentimentos que nos faz assustar. (...) agora que tenho presente em minha mente todas essas costas

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e promontórios, golfos e baías, ilhas e línguas de terra, rochedos e praias, colinas cobertas de arbustos, suaves pastagens, campos fér-teis, jardins adornados, árvores bem cuidadas, videiras pendentes, montanhas de nuvens, e planícies, escarpas e bancos rochosos sem-pre radiantes, com o mar a circundar tudo isso com tantas variações e tanta variedade – somente agora, pois, a odisséia tornou-se para mim uma palavra viva.”17

ainda em 1817, portanto muitos anos após seu retorno a Weimar, quando Goethe finalmente decide retomar os diários da viagem para publicação, essa experiência da itália como Grécia ainda estava claramente presente em seu espírito, ganhando forma através da rica teia de significados construída pela epígrafe que então acrescentou ao livro: auch ich in arkadien! (“tam-bém eu na arcádia!”). o jogo entre citação e literalização do famoso mote – “et in arcadia ego” – explorado, entre outros, pelo pintor Nicolas Poussin, não poderia ter sido melhor escolhido para expressar o sentimento de Go-ethe diante da natureza italiana. Como é conhecido, a frase em latim que Poussin inserira em duas de suas pinturas deveria funcionar como “memen-to mori”, lembrando que até mesmo na arcádia a morte estaria presente (um quadro um pouco anterior de Guercino liga-se também a esta mesma tradição). Goethe literalizaria a frase: “eu”, “eu-Goethe”, também na arcádia, ao mesmo tempo em que assimilaria o sentido original da mesma através da citação, como observa erwin Panofsky, apontando para a relação crucial entre morte e antiguidade. 18

investigar, estudar essa natureza grega, familiarizar-se com ela, compreen-dê-la em todos os seus aspectos torna-se possível para Goethe e de fato revela-se como uma tarefa central durante sua viagem. Daqui advém igual-mente uma parte de seu interesse pela ciência, que, infelizmente, teremos de deixar de lado neste artigo.19

No que fiz respeito às esculturas clássicas, Goethe foi, como dissemos aci-ma, igualmente um seguidor assíduo de Winckelmann, vendo na imitação dos antigos o caminho seguro para a construção de uma arte “saudável” na modernidade. o entusiasmo de Goethe com relação às artes como veículo

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de abolição das distâncias históricas concretizou-se, pouco depois de seu re-torno da itália, em um programa para as artes, posto em prática em Weimar entre os anos de 1799 e 1805 e conhecido como Weimarer Preisaufgabe (premiações de Weimar). o programa possuía, do ponto de vista do desen-volvimento das artes na alemanha do período, um caráter marcadamente conservador, de resistência sistemática à nascente estética romântica, que ele próprio, ironicamente, ajudara a fundar. Porém ele pode ser mais bem compreendido se o observarmos do ponto de vista de sua relação com o classicismo peculiar de Goethe. Como bem afirmou ernst osterkamp, “Go-ethe via nas premiações (...) primeiramente e acima de tudo a possibilidade de transformar em prática suas visões teóricas sobre arte construídas desde sua viagem à itália.”20

o tema das premiações que, quase sem exceção, propunha uma composi-ção a partir das épicas de Homero revela claramente a intenção do poeta. De acordo com ele, seguir os gregos na preferência por Homero ajudaria os artistas modernos a escolherem um objeto adequado à sua arte e a criarem de forma mais “natural”. assim, por ocasião do Prêmio de 1799, ele justifica-ria a escolha do tema com as seguintes palavras:

“[...] a poesia de Homero fornecera [aos gregos] o mito com tanta plasticidade, naturalidade, vivacidade e coerência interna de maneira que nunca ocorria da imaginação artística lançar mão do informe, fan-tástico e do confuso. também os artistas modernos, alienados frente à natureza e submetidos à ilusão da imaginação, deveriam procurar nas cenas simples, naturais e elevadas a uma forma significativa-to-tal, presentes na ilíada e na odisséia, seu apoio e orientação.”21

Como é conhecido, com o fracasso do programa de estímulo às artes em Weimar e com a distância da experiência italiana, o otimismo de Goethe com relação à possibilidade de fazer reviver a Grécia na modernidade torna-se mais tímido. seu texto sobre a coleção dos irmãos Boisserée em Heidelberg, publicado em 1816, por exemplo, revela uma nova consciência histórica au-sente no período italiano e logo após seu retorno à alemanha. tratando do impacto da coleção sobre o observador diz o poeta:

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então ele reconhece que, aqui, o mais puro e o mais útil devem ser alcançados pelos caminhos da história. [...] e ele reconduzirá as pre-ciosas obras que estão nos ocupando aqui, ao seu lugar de direito, manuseando sua forma de tal maneira que o mais profundo conhece-dor da história lhe atribuirá com prazer seu lugar no grande círculo do mundo artístico universal.” 22

A arte sob o signo de Pigmalião

Voltemos, no entanto, nosso olhar novamente para o período em que Goe-the viajou pela itália. esse é o momento de seu maior entusiasmo quanto ao poder da obra de arte de vencer as amarras do tempo, fazendo-se reviver no presente. um exame minucioso do ambiente frequentado por Goethe em roma demonstra, no entanto, que tal entusiasmo era largamente comparti-lhado por outros grand turistas e artistas que ali circularam, revertendo-se inclusive em algumas práticas curiosas, como o hábito, registrado no diário de vários viajantes ilustres, como Karl Philipp Moritz, Herder, stendahl, Ma-dame de staël e o próprio Goethe, entre outros, de realizar visitas noturnas à luz de tochas aos principais museus de arte antiga de roma.23

a leitura desses diários convence-nos da estreita relação existente entre as formas de percepção da escultura antiga inauguradas por Winckelmann em suas descrições das estátuas do Belvedere e essa nova experiência estéti-ca. o desejo de fazer reviver a obra diante dos próprios olhos, abolindo as distâncias temporais, é uma constante nesses relatos. Karl Philipp Moritz, que esteve em roma ao mesmo tempo em que Goethe explorava a cidade, descreve da seguinte maneira o impacto da visita noturna que realizou ao Museu Pio-Clementino:

aqui é sempre uma festa para nós, quando um grupo de amigos se reúne para observar as estátuas do Belvedere à noite à luz de tochas. – Nunca se desperdiça tal oportunidade, porque cada uma dessas observações é um ganho seguro para o espírito, que por nada será roubado posteriormente. e a diferença é tão perceptível que quase não se pode dizer que se viu essas grandes obras da arte, caso não

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as tenha visto freqüentemente sob esta forma de iluminação. as mais sutis elevações se tornam visíveis aos olhos, e aquilo que antes pare-cia apenas uniformidade aparece novamente como diversidade. Pelo fato de toda essa diversidade formar um único todo, vê-se aqui todo o Belo que se pode ver de uma só vez, o conceito de tempo desapa-rece e tudo se comprime em um momento, que poderia durar para sempre, caso fôssemos apenas seres observadores.24

também Herder escreveria, após sua passagem por roma, um pequeno poema evocando o efeito surpreendente da flama sobre o mármore:

o welchen schatz des Holden und des GotenHast Du, o Kunst, in manchen stein gesenkt!Wie quillt’s hervor, wenn mit den flammenglutenDen toten stein die lebensfackel tränkt!(Herder)25

a ideia de abolição das distâncias temporais aparece não apenas no desejo de ver a escultura clássica como viva diante dos próprios olhos, mas a própria adoção da prática de olhar obras de arte sob tal luz parecia ser compreendida, no século XViii, como uma re-encenação da forma como os gregos olhavam e julgavam suas obras. em seu romance Corinne, publicado em 1807, Madame de staël, inspirada em sua própria experiência romana, descreveria o episódio de uma visita noturna que sua personagem principal teria feito ao ateliê do escultor antonio Canova, em companhia de seu admirador lord Nelvil, onde tal paralelo entre a recepção antiga e a moderna é explicitada:

Corinne e o lorde Nelvil terminaram sua jornada indo ver o ateliê de Canova, o maior escultor moderno. Como já era tarde, ele se mostrou à luz de tochas e as estátuas ganharam muito com essa forma de serem vistas. os antigos também julgavam assim, uma vez que as colocavam freqüentemente em suas termas, onde o dia não conse-guia penetrar. Na claridade da flama as sombras pronunciadas amor-tecem o brilho uniforme do mármore e as estátuas parecem figuras pálidas, que possuem um caráter comovente de graça e de vida.”26

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talvez este seja também uns dos motivos que atraiu e fascinou o próprio es-cultor Canova para a prática. De acordo com diversos relatos, Canova tinha o costume de terminar suas obras à luz de vela e as expunha ao público à luz de tochas em seu ateliê.27 alessandro D’este, filho de antonio D’este, um grande amigo de Canova, confirmaria tal método de trabalho em uma nota biográfica sobre o artista que publicaria em 1864: “Noto que foi costume de Canova termi-nar suas obras em mármore à luz de vela e recordo tê-lo visto muitas vezes em minha tenra idade com uma vela na mão a misturar com a espátula as meias tintas para adoçar as passagens entre as várias partes do nu.” a mesma prática foi relatada por Charlotte anne eaton, uma inglesa que conheceu o artista: “[...] a superfície externa, como de direito, é dele para formar e aperfeiçoar, e os últimos toques de acabamento ele geralmente os dá à luz de vela.” 28

o período experimentou um verdadeiro anseio pela presentificação do passado. De fato, o efeito ilusório de estar diante de algo vivo era, muitas vezes, considera-do a medida da qualidade de uma obra de arte. Herder escreveria, por exemplo, em seu tratado sobre as artes plásticas (Plastik), publicado em 1778: “uma está-tua deve ter vida: sua carne deve ser avivada, seu rosto e sua expressão devem falar. temos de acreditar que estamos a tocá-la e senti-la e que ela se esquenta sob nossas mãos. temos de vê-las diante de nós e sentir que ela nos fala.”29

essa imposição à imaginação do observador era a condição radical neces-sária para manter um vínculo vivo com o passado clássico. em um período em que a distância histórica se impunha à consciência do sujeito, apenas o desejo intenso e nostálgico com relação ao passado poderia garantir a abolição das distâncias, mesmo por poucos minutos e circunscrito à expe-riência estética. Como observou o historiador da arte oskar Bätschmann, o observador se viu transformado em Pigmalião, o mítico artista apaixonado por sua própria estátua de Galatéia, que a vê ganhar vida sob as mãos da deusa Vênus, apiedada de seu sofrimento.30 tal experiência estética, frágil e passageira, abolia os limites históricos transformando o passado em algo ao alcance das mãos, uma ilusão que, de fato, tinha seus dias contados e se apagaria diante do historicismo do século XiX.

em 2005 os historiadores da arte alexander Nagel e Christopher Wood pu-

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blicaram um texto sobre o tema do anacronismo no renascimento italiano. a partir da análise de uma obra de Carpaccio, os autores argumentavam que, ao contrário do que pensavam os historiadores da arte modernos, o século XV ainda possuía uma relação fundamentalmente anacrônica com o passa-do clássico, baseada em um modelo substitutivo no qual objetos modernos podiam ocupar o lugar de obras antigas, herdando seu valor de antiguidade em uma espécie de corrente através do tempo e garantindo assim o acesso ao passado. Dizem os autores:

“a tese aqui proposta [...] é a de que todos os artefatos – não ape-nas esculturas, mas também cadeiras, pintas, mesmo igrejas – eram compreendidos no período pré-moderno como tendo uma dupla historicidade: poderia-se saber que eles tinham sido fabricados no presente, ou no passado recente, mas ao mesmo tempo os valoriza-vam e os usavam como se fossem coisas muito antigas. isto não era uma questão de auto-ilusão, ou indolência, mas era função de todo um modo de pensar sobre a historicidade dos artefatos, que segui-damente foi mal interpretado pela moderna disciplina da história da arte. as imagens eram compreendidas como emblemas de tipos, ti-pos associados com origens míticas e difusas e reinforçando continui-dades gerais, ou de categorias através de seqüências de emblemas. um emblema, ou réplica, efetivamente substituindo o outro.”31

o século XViii perdera sem dúvida essa capacidade de construir elos segu-ros entre o passado clássico e o presente, que os autores encontram ainda no século XV. Porém, talvez por essa mesma razão, podemos perceber cla-ramente em uma parcela considerável dos artistas e intelectuais do “século das luzes” uma intensa nostalgia pelo mundo antigo. tal relação não mediada pela história, perdida com a modernidade, era ainda buscada na arte. a ex-periência estética passaria a ser o lugar de realização desse desejo ardente de tocar o passado, dessa experiência anacrônica que em breve se tornaria um jogo estranho para o homem essencialmente histórico do século seguinte.

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Notas1 tradução livre: “ah, sento-me aqui assim e transformo para mim mesmo o mármore em vida com espírito, carne e sangue.”

2 Winckelmann, Johann Joachim, Gedanken über die Nachahmungder Griechischen Werke in der Malerei und Bildhauer-Kunst, apud Pfotenhauer, Helmut und Miller, Norbert (org.) früh-Klassizismus: Position und opposition: Winckelmann, Mengs, Heinse. frankfurt a.M.: Deutsche Klassiker Verlag, 1995.

3 Winckelmann, Geschichte der Kunst des altertums, Darmstadt: Wissenschaftliche Buch-gesellschaft, 1993, p.393.

4 sobre o tema ver: Márcio seligmann silva, “introdução/intradução: Mimesis, tradução, er-nargeia e a tradição da ut pictura poesis”, in: lessing, laocoonte ou sobre as fronteiras da Pin-tura e da Poesia (tradução e notas de Márcio seligmann silva), são Paulo: iluminuras, 1998.

5 “ich möchte sagen, wie sie jetzt steht, ist sie ein fixierter Blitz, eine Welle, versteinert im augenblicke, da sie gegen das ufer anströmt.” Goethe, Goethe Werke, Hamburger ausga-be, Munique, 1981, vol.Xii, p.60. uso aqui a tradução de Márcio seligmann silva em: Phaos, n.2, p.184, com pequenas modificações

6 sem dúvida a afirmação de Goethe denuncia sua leitura do laocoonte de lessing. Porém a questão mediática não parece estar totalmente ausente das reflexões de Winckelmann. Barbara Maria stafford, por exemplo, vê no conceito de “nobre simplicidade” (edle einfalt) que Winckelmann desenvolve já no Gedanken uma espécie de solução para a questão de como transpor a ideia de “grandeza quieta” (stille Grosse), que, tanto na literatura, quanto

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no teatro, era expressa pelo conceito de juste milieu, um estado de harmonia construído através da resolução de uma pertubationes animi (paixão), para as condições do meio espa-cial da escultura: “(...) in the visual arts, unlike drama where the representation of action is successive, the idea of a normative, scarcely visible indeterminate inhabiting the just milieu raises the question of just how one percieves such quietude and stillness. it is at this crucial juncture that the doctrine of simplicity enters.” a solução viria através da associação que Winckelmann estabelece entre simplicidade e Contorno, aquilo que a faz visível. Barbara stafford, “Beauty of the invisible: Winckelmann and the aesthetics of imperceptibility”, in: Zeitschrift für Kunstgeschichte, 1980, p. 68.

7 Winckelmann, Gedanken, p.14. usamos aqui e nas demais traduções do Gedanken a versão de Herbert Caro e leonardo tochtrop em: Winckelmann, reflexões sobre a arte antiga, Por-to alegre: Movimento/urGs, 1975, realizando as modificações necessárias. as demais tra-duções do alemão onde o nome do tradutor não esteja mencionado, são de nossa autoria.

8 Winckelmann, Gedanken, p.14.

9 Barbara stafford comenta o seguinte a esse respeito: “[Winckelmann] relates the spiritualiza-tion which occurs in Greek sculpture depending on whether a hero or a god is represented, and explains that alteration by means of a process of subtraction or distillation in which the divine forms become so attenuated ‘dass nur allein der Geist in derselben gewirkt zu haben scheint’.” stafford, op.cit., p.72. esta concepção é muito próxima da definição que Moses Mendelssohn dá do sublime (erhaben) como um sentimento que nasce da apreensão de objetos “cuja gran-deza não pode ser abarcada de uma só vez pelos sentidos.” Mendelssohn, citado em: Marcio seligmann-silva, “Do Delicioso Horror sublime ao abjeto e à escritura do Corpo”, in: ana luiza andrade et allii (org.), leituras do Ciclo, florianópolis: aBraliC, 1999, pp.123-136.

10 Winckelmann, “Beschreibung des apollo Belvedere”, in: Winckelmann Werke, vol.1, Ber-lim e Weimar: aufbau Verlag, 1969, p.63.

11 Winckelmann, “Beschreibung des torso im Belvedere zu rom”, in: Helmut Holtzhauer (org.), Winckelmanns Werke, Berlim e Weimar, 1969, p.58.

12 adelheid Müller, “Winckelmann als Cicerone,” in Max Kunze ed., römische antiken-sammlungen im 18. Jahrhundert, exh. cat. (stendal, Winckelmann Museum, 1998), p. 155-163, aqui, p. 163.

13 Winckelmann, reflexões sobre a arte antiga, op. cit., p. 39.

14 Goethe, “Winckelmann und sein Jahrhundert”, in: Goethe Werke, op.cit., vol.12, p.103.

15 idem, ibidem.

16 Norbert Miller, “Der Dichter ein landschaftsmaler”, in: schulze, sabine (org.), Goethe und die Kunst, catálogo de exposição no schirn Halle frankfurt, frankfurt a.M: Hatje, 1994, p.399.

17 Goethe, “italienische reise”, in: Goethe Werke, op.cit., vol.11, p.323. a tradução para o português de sérgio tellaroli, usada aqui, encontra-se em: Goethe, Viagem à itália 1786-

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1788, são Paulo: Companhia das letras, 1999, p.379. infelizmente ela é uma edição incom-pleta, não incluindo as anotações da segunda estada de Goethe em roma.

18 sobre o tema, ver: erwin Panofsky, “et in arcadia ego: Poussin e a tradição elegíaca”, in: significado nas artes Visuais, tradução Maria Clara Kneese e Jacó Guinsburg, são Paulo: Perspectiva, 1976, pp. 377-409, e louis Marin, “Panofsky e Poussin na arcádia”, in: sublime Poussin, tradução Mary Barros, são Paulo: edusp, 2001, pp. 97-119.

19 sobre a relação entre arte e ciência em Goethe ver meu artigo: “a pintura de paisagem entre arte e ciência: Goethe, Hackert, Humboldt”, in: terceira Margem, ano Viii, n. 10, 2004, p.152-169.

20 Cf. ernst osterkamp, “aus dem Gesichtpunkt reiner Menschlichkeit. Goethes Preisaufgabe für Bildende Künstler 1799-1805”, in: Goethe und die Kunst, op.cit, p.312

21 idem, p.315.

22 Goethe, Goethe Werke, op. cit. Vol. 12, p. 143.

23 sobre tais práticas ver meu texto: “Visitas à luz de tochas: Guiando o olhar através dos museus de escultura antiga no final do século XViii e início do XiX”, in: Phaos. revista de estudos Clássicos, n 2, 2002, p.95-112.

24 Karl Philipp Moritz, Werke, vol.2 (reisen, schriften zur Kunst und Mythologie), frankfurt a.M.: insel Verlag, 1993, p.414.

25 uma tradução literal do poema poderia ser: “oh, que tesouro de graça e bondade/ tu, ó arte, mergulhaste em certas pedras!/ Como jorra quando a tocha da vida/ embebe a pedra morta com o brilho da chama!

26 Madame de staël, Corinne ou l’italie, Paris: librairie de firnin Didot frères, 1846, p.168.

27 De acordo com Charlotte anne eaton, Canova teria construído um ensamble de luminária ao redor de seu “Hercules e lica”, quando ele foi colocado na casa de torlonia, seu mece-nas. Cf. eaton, rome in the Nineteenth Century, londres, 1852, p. 298

28 antonio D’este, Memorie di antonio Canova, frança, 1864, p. 32.

29 Herder, Plastik, citado em Michael Diers, “Nach-) lebende Bilder. Praxisformen klassizis-tischer Kunsttheorie”, in: Dieter Burdorf e Wolfgang schweickard (org.), Die scöne Verwi-rrung der Phantasie. antique Mythologie in literatur und Kunst um 1800, tübingen: francke vlg., 1998, p.177.

30 oskar Bätschmann, “Pygmalion als Betrachter. Die rezeption von Plastik und malerei in der zweite Hälfte des 18. Jahrhunderts”, in: Der Betrachter ist im Bild. Kunstwissenschaft und rezeptionsästhetik, Berlim, 1992, pp. 237-278.

31 alexander Nagel e Christopher Wood, “towards a New Model of renaissance anachro-nism”, in: the art Bulletin, vol. 87, n. 3 (set. 2005), p. 403-415, aqui p. 405.

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