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xiste uma figura muito curiosa e fascinante, que dedica seu tempo a vagar pelas ruas, no intento de observar o que acontece ao seu redor, de captar algo de mais perene no cenário urbano. Este passante se locomove a pé – e sem pressa, como requer qualquer “trabalho” de análise da vida cotidiana que se preze. Tal perso- nagem atende pelo nome de flâneur e surgiu há muitos anos atrás. A cena moderna A industrialização nos séculos XVIII e XIX trouxe consigo o fenômeno da urbanização das cidades européias e, como conseqüência disso, a formação das multidões, dos grandes conglomerados hu- manos. A mudança de ritmo na vida dos habi- tantes da cidade foi marcante; o desenvolvimento da linha de montagem das grandes fábricas e a ide- ologia do “tempo é dinheiro” passou a ditar o aproveitamento do tempo no cotidiano das pes- soas. Houve a configuração de um novo tipo de experiência de vida, do tempo e do espaço. E foi durante o ápice dessa sociedade, nas décadas de 1830 e 1840, que ocorreu o aparecimento de uma figura que parecia alheia a tudo isso. Mas quem é o flâneur? É um observador que caminha tranqüilamente pelas ruas, apreendendo cada detalhe, sem ser notado, sem se inserir na paisagem, que busca uma nova percepção da cidade. E para situar a curiosa figura do flâneur no tempo, é preciso entendê-lo, antes de tudo, como uma figura nascida na mo- dernidade. Ele apareceu como o contraponto do burguês, que dedicava grande parte do seu tempo ao mundo dos negócios. A flânerie conseguiu solidi- ficar-se como a experiência própria daquele que gostava de perambular pelas ruas pelo simples prazer de observar ao seu redor; que não devia sa- tisfações ao tempo e tinha a rua como matéria- prima e fonte de inspiração. Mas não se pode tentar definir o flâneur sem men- cionar o universo da obra do poeta francês Charles Baudelaire, na qual este errante e misterioso ser teve sua gênese determinada. Nesta, é marcante o Julho/Dezembro de 2003 6 FERNANDA PASSOS, MARIANA GOUVÊA, RAPHAEL TOSTI E RODRIGO POLITO O novo flâneur Personagem da Era Moderna, o flâneur ainda incita o pensamento urbano contemporâneo O errante e misterioso flâneur teve origem na obra de Baudelaire

O novo flâneurpuc-riodigital.com.puc-rio.br/media/2%20-%20o%20novo%20... · 2008. 11. 14. · aspecto que trata das relações entre os fenômenos urbanos das multidões e a experiência

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xiste uma figura muito curiosa efascinante, que dedica seu tempo avagar pelas ruas, no intento deo b s e rvar o que acontece ao seuredor, de captar algo de mais perene

no cenário urbano. Este passante se locomove a pé– e sem pressa, como requer qualquer “trabalho” deanálise da vida cotidiana que se preze. Tal perso-nagem atende pelo nome de flâneur e surgiu hámuitos anos atrás.

A cena modernaA industrialização nos séculos XVIII e XIX trouxe

consigo o fenômeno da urbanização das cidadeseuropéias e, como conseqüência disso, a formaçãodas multidões, dos grandes conglomerados hu-manos. A mudança de ritmo na vida dos habi-tantes da cidade foi marcante; o desenvolvimentoda linha de montagem das grandes fábricas e a ide-ologia do “tempo é dinheiro” passou a ditar oaproveitamento do tempo no cotidiano das pes-soas. Houve a configuração de um novo tipo deexperiência de vida, do tempo e do espaço. E foidurante o ápice dessa sociedade, nas décadas de1830 e 1840, que ocorreu o aparecimento de umafigura que parecia alheia a tudo isso.

Mas quem é o flâneur?É um observador que caminha tranqüilamente

pelas ruas, apreendendo cada detalhe, sem sernotado, sem se inserir na paisagem, que busca umanova percepção da cidade. E para situar a curiosafigura do flâneur no tempo, é preciso entendê-lo,antes de tudo, como uma figura nascida na mo-dernidade. Ele apareceu como o contraponto do

burguês, que dedicava grande parte do seu tempoao mundo dos negócios. A flânerie conseguiu solidi-ficar-se como a experiência própria daquele quegostava de perambular pelas ruas pelo simplesprazer de observar ao seu redor; que não devia sa-tisfações ao tempo e tinha a rua como matéria-prima e fonte de inspiração.

Mas não se pode tentar definir o flâneur sem men-cionar o universo da obra do poeta francês CharlesBaudelaire, na qual este errante e misterioso serteve sua gênese determinada. Nesta, é marcante o

Julho/Dezembro de 20036

FERNANDA PASSOS, MARIANA GOUVÊA, RAPHAEL TOSTI E RODRIGO POLITO

O novo flâneurPersonagem da Era Moderna, o flâneur ainda incita o

pensamento urbano contemporâneo

O errante e misterioso flâneur teve origem na obra deBaudelaire

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aspecto que trata das relações entre os fenômenosurbanos das multidões e a experiência vivida etransmitida pelo escritor através de sua fort eexpressão poética.

Segundo ele, a multidão seria a usina de força doflâneur; isso estaria evidente em alguns de seus poe-mas, como Les petites vieilles e A une passante, quetraduzem a idéia do burburinho urbano e da pas-sante que, após ser minuciosamente observada eestudada pelo autor, corre o risco de nunca mais servista por ele. É durante o dia que os aspectos maiscaracterísticos da modernidade tendem a revelar-se; é quando a multidão se refaz, se consolida e amáquina a vapor põe-se novamente a produzir emlarga escala para abastecer a cidade faminta designificados.

É um cenário perfeito para o aparecimento dessafigura que está em todos os lugares e ao mesmotempo em nenhum lugar. Entre todos, porém sozi-nho. Esse ser aparentemente indecifrável, que é oflâneur, dividido entre o encantamento e o temor dacidade.

Poe e “O homem da multidão”O fascínio pela figura taciturna e misteriosa que

se destaca dentro da multidão remete também àobra do escritor norte-americano Edgar Allan Poe.No conto “O homem da multidão”, o narradorencontra-se sentado num café londrino olhando eidentificando cada integrante daturba que passa na calçada:“Conforme a noite avançava, pro-g redia meu interesse pela cena.Não apenas o caráter geral damultidão se alterava material-mente (...), mas a luz dos lampiõesa gás, débil, de início, na sua lutacontra o dia agonizante, tinha porfim conquistado ascendência,pondo nas coisas um lustro trêmu-lo, vistoso. Tudo era negro, mas esplêndido”. Énesta hora que, de repente, ele se percebe preso natentativa de decifrar uma figura representada porum velho decrépito. Angustiado e aflito, o narradorda história se levanta e começa a perseguir aquelepersonagem fascinante, em busca do desvenda-mento de seu mistério. No final da espreitada, a

sentença: “Este velho é o tipo e o gênio do crimeprofundo. Recusa-se a estar só. É o homem da mul-tidão. Será escusado segui-lo: nada mais saberei aseu respeito ou a respeito de seus atos”. Segundo aj o rnalista Eliane Salles, os primeiros f l â n e u r sbrasileiros surgiram no Rio de Janeiro entre o final

do século XIX e início do século XX.Alguns estudiosos citam LimaBarreto, Machado de Assis, Joa-quim Manoel de Macedo e, princi-palmente, João do Rio como exem-plos desta figura. Segundo João doRio, “flanar é ir por aí, de manhã,de dia, à noite, meter-se nas rodasda população, admirar o meninoda gaitinha ali à esquina, seguircom os garotos o lutador do Cas-

sino.” E para os que, porventura, associem o ato deflanar com o da vagabundagem ou falta do quefazer, João do Rio diria: “É vagabundagem? Talvez.Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque econtemplar, ter o vírus da observação ligado ao davadiagem. É ter a distinção de perambular cominteligência”.E, hoje em dia, em pleno século XXI,

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Para o flâneur, anoite seria a melhor

tradução para acidade pós-moderna

“O Homem da multidão”, de Poe: narrador angustiadopersegue velho misterioso pelas ruas

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seria anacrônico pensar na errante figura doflâneur?

A cena e obscena pós-modernasNa pós-modernidade, o ritmo de vida tornou-se

ainda mais acelerado do que no século XIX; muitaspessoas trabalham o dia inteiro e, devido a isso, osetor de serviços passou a oferecer uma gama deopções que denunciam a falta de tempo das pes-soas, como se as 24 horas do dia não fossem maissuficientes. Academias funcionam de madrugada,assim como farmácias, cabeleireiros, videolocado-

ras, supermercados e ou-tras formas de comércio.As pessoas, apare n t e-mente, não dispõem maisde tempo – ou até mesmode paciência – para sairàs ruas, sem destino, ape-nas observando o que sepassa ao redor. O sujeitopós-moderno não se fixaem um determinado cen-t ro. Ele muda todo otempo e tem uma identi-dade fragmentada. Se-gundo Eliane Salles, “nu-ma sociedade na qual oautomóvel é sonho deconsumo e caminhar aesmo é um negócio ar-riscado para alguns, comas inquietações, com aviolência urbana, aflânerie, tal como ela foidefinida na modern i d a-de, parece não ter futuro”

A arte de andarEmbora não seja consi-

derado um típico f l â n e u r,o personagem Augusto ,criado por Rubem Fon-seca no conto “A arte deandar nas ruas do Rio deJaneiro”, seria um exem-plo do que possa ser essa

figura hoje. Durante o dia, ele cumpre seu papelsocial trabalhando na Companhia de Águas eEsgotos, de onde tira seu ganha-pão; e, à noite, elese torna um andarilho, que busca inspiração paraescrever um livro. É nesse momento que ele con-segue fazer algo que lhe dê prazer, que escape damesmice diurna. Seu real objetivo é encontrar umaarte e uma filosofia que o ajudem a estabeleceruma melhor comunhão com a cidade. O fato deperambular a pé à noite lhe proporciona uma visãomais real da cidade, de seus problemas e suasmazelas.

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A figura do flâneur surgiu como o contraponto do burguês, que dedicava seutempo ao mundo dos negócios

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A noite seria a melhor traduçãopara a cidade pós-moderna. Équando a cidade, modificada,ilegível, se torna mais cidade epode-se ter uma visão mais pro f u n-da e imparcial da mesma. O per-sonagem não está interessado emuma visão panorâmica, longínqua,fragmentada, mas em re c o n c i l i a ros detalhes com o todo da paisagemurbana. Augusto é a interseçãoe n t re todos os tipos de pessoas e,mais do que isso, é o elo comume n t re todas as partes da cidade.

Mas o que seria flanar nos diasde hoje?

O f l â n e u r é um ponto de tensões econtradições que divide a opiniãodaqueles que o estudam nos diasatuais. Alguns estudiosos falam quea flânerie contemporânea passoupara os s h o p p i n g c e n t e r s, com amovimentação diária de pessoasque não necessariamente vão aolocal para consumir, mas tambémpara “verem e serem vistas”. Agora,o f l â n e u r contracena com cidadãosc o n s u m i d o res, num cenário de réplicas, ilusões.Por que não flanar pela Internet? Ou mesmo pe-rambular de madrugada pelas ruas procurando amelhor opção de diversão dis-ponível? Teria o f l â n e u r do séculoXXI se transformado num adeptodo automóvel e do micro c o m p u-tador? Em depoimento a ElianeSalles, Renato Cord e i ro Gomes,C o o rdenador da Pós-graduaçãoem Comunicação Social da PUC-Rio, afirma que “só seria possívelassociar a perambulação dof l â n e u r ao s h o p p i n g e à Intern e tatravés de uma metaforizaçãodessa figura metropolitana, de ums i m u l a c ro”. As sociólogas MariaIsabel Mendes de Almeida e Kátia Tracy lançarameste ano, pela Editora Rocco, o livro Noites nô-

m a d e s, que aborda a mudança no perfil do lazern o t u rno dos jovens. Um novo jeito de aproveitar anoite, namorar e se relacionar com os amigos está

s u rgindo nas grandes cidades. Osjovens de hoje mudaram muito amaneira de se re l a c i o n a rem entresi, principalmente no que dizrespeito à vida boêmia. Há aaparição de um novo tipo def l â n e r i e, que transforma a noite emuma categoria fundamentalmenteespacial. Na primeira parte daobra, as autoras mostram como otítulo sugere que a noite de hoje énômade: rapazes e moças não têmum ponto fixo como lugar dee n c o n t ro. Há um eterno desloca-

mento. Quando saem à noite em busca de diver-são, os jovens nunca estão indo para um lugar

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Um novo jeito deaproveitar a noite,

namorar e se relacionar com os

amigos está surgindonas grandes cidades

F l â n e u r: em todos os lugares e, ao mesmo tempo, em nenhum

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específico. O importante é a circulação que fazempor vários locais. “Estes grupos de jovens estãocriando uma nova geografia para as cidades, queé muito transitória. O que importa é muito mais otrajeto do que o ponto fixo, o lugar-chave ondetudo acontece. Estes grupos não se reúnem maispor razões ideológicas, políticas ou culturais, comoacontecia nos anos 1960. O que interessa, paraeles, é experimentar as relações com os membro sdo grupo”, explica Maria Isabel Mendes de Almei-da.

O escritor Affonso Romano de Sant’Anna re s u m ebem a odisséia da garotada das noites nômades:“Deste modo, o fluxo, a dispersão ou, teoricamentedizendo, o deslizamento do significante, exemplifi-ca-se na conversão de sujeitos em objeto. O b j e t o sque, sendo significantes vazios, deixam de sersujeitos. Por exemplo, volta-se para casa tendobeijado muitas bocas e nenhuma pessoa”. Assim,como nas análises da imagem das multidões mo-d e rnas, o indivíduo, ainda hoje, é capaz de estarem grupo e potencialmente solitário, disperso, ca-rente, fragmentado.

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“Cada vez que você sai de casaé jogado em um turbilhão deimagens, mensagens, sensações.O que eu escrevo, o que eu colocoem livros é um relato do que euvejo e ouço por aí. O flâneur temo lado patológico de hiperv a-lorizar o passeio. E eu... eu souum ´flâneurlinha´ de Copaca-bana”, afirma o escritor e com-positor Fausto Fawcett .

Tendo o afamado Cervantes, narua Prado Júnior, em Copa-cabana, como ponto de partida,Fausto pode ir andando até oMaracanã, dar uma passada noM é i e r, inventar de beber umchope em Madureira, por exem-plo, ou mesmo dar uma voltapelos inferninhos da mesmaCopacabana, pois como ele mes-

mo diz: “no meu peito bate umcoração de boate, tudo pelo pra-zer de ir, de sair”.

Segundo Fawcett, dentro dosbares e de boates, observando aspessoas nas ruas à noite, você vaiencontrá-las um pouco maisirresponsáveis, enchendo a carapara aliviar seus pro b l e m a s .“Mas para descobrir tudo isso ép reciso gostar de observar acidade e conversar com as pes-soas”, acrescenta.

Para Fawcett, a noite tem umaaura de sensualidade, mistério,descoberta. “A noite é o lado es-curo da aventura urbana. Boê-mio seria uma palavra comple-tamente entrosada com a de-finição de flâneur. Para ser umflâneur, é preciso ser um boêmio.

O flâneur é aquele que tem umroad movie na alma.”

O compositor afirma ainda queexistem pessoas que vivem danoite e para a noite. “É como sedepois das sete, oito horas, todoscomeçassem a uivar e saíssempara caçar, ou para serem caça-dos. Passei grande parte daminha vida indo dormir às seteda manhã”, explica.

Quanto ao futuro da f l â n e r i e n ap ó s - m o d e rnidade, Fawcett afir-ma que, “devido à nossa queridaglobalização, o cinturão urbanoestá cada vez mais unido; of l â n e u r tem a possibilidade devasculhar todas as cidades pos-síveis, internas e externas. AI n t e rnet já é considerada o sextocontinente do mundo”.

Fausto Fawcett: o perfil do flâneur noturno

Há um novo tipo de flânerie, no qual a noite é umacategoria fundamentalmente espacial