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183 183 I. Fundamentos e Motivos do Novo Regime Geral das Taxas Locais O recente pacote legislativo regulador das finanças locais, composto pela Lei das Finanças Locais (Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro), pelo Regime Geral das Taxas Locais (Lei n.º 53-E/2006, de 29 de Dezembro) e pelo Regime Jurídico do Sector Empresarial Local (Lei n.º 53-F/2006, de 29 de Dezembro), integram no seu âmbito um novo enquadramento jurídico conformador da figura da taxa, enquanto instrumento de financiamento municipal. Efectivamente, a Lei das Finanças Locais (Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro), tem subjacente uma intenção clara e inequívoca no sentido do desenvolvi- mento deste tipo de tributo. De facto, e ao contrário do regime legal anterior, o legislador adopta um conceito de autonomia tributária municipal muito mais ampla. Assim, e enquanto no regime anterior o município teria de se limitar à utilização de figuras tributárias definidas tipicamente na lei ordinária, o novo regime legal permite uma ampla liberdade cria- tiva, desde que os princípios gerais contemplados no n.º 2 do artigo 15.º da Lei das Finanças Locais se encontrem verificados, a saber: o princípio da equiva- lência jurídica, o princípio da justa repartição dos encargos públicos e o princípio da publicidade. Por outro lado, e contrastando igualmente com o regime anterior, o legislador adoptou uma concepção terminológica bastante mais clara, distinguindo as taxas dos preços, e eliminando a figura “híbrida” das tarifas, que, na realidade, não tinha qualquer tradição na nossa ordem jurídica. Efectivamente, enquanto que a taxa resulta de uma relação tipicamente tribu- tária (onde o sujeito activo adquire uma veste autoritária) visando regular os termos da contraprestação da prestação de uma utilidade pública fora do enquadramento do mercado (tipica mente, a remuneração da prestação de um serviço, a utilização de um bem do domínio público ou a compensação pelo levantamento de uma proibição, ou nos termos legais, já constantes da Lei Geral Tributária, da remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares), o preço decorre dos mecanismos típicos de mercado, maxime, do encontro da oferta com a procura num mercado concorrencial.. O Regime Jurídico do Sector Empresarial Local (Lei n.º 53-F/2006, de 29 de Dezembro), também não ignorou esta temática, regulando, na perspectiva dos preços, no n.º 3 do artigo 20.º que, “o desenvolvi- mento de políticas de preços das quais decorram receitas operacionais anuais inferiores aos custos anuais” deverá ser objectivamente justificada e “depende da adopção de sistemas de contabilidade analítica onde se identifique a diferença entre o desen- volvimento da actividade a preços de mercado e o preço subsidiado na óptica do interesse geral”. Por outras palavras, se o decisor pretender subsidiar uma determinada prestação, então essa subsidiação terá que ser casusticamente justificada, na óptica da eficiência social, sendo a margem dessa subsidiação suportado pelo orçamento municipal, nos termos do mecanismo previsto no artigo 31.º desse regime legal. 1 Finalmente, o Regime Geral das Taxas Locais (Lei n.º 53-E/2006, de 29 de Dezembro) vem desenvolver a temática, concretizando os princípios constantes da Lei das Finanças Locais. Neste âmbito, acolhe o princípio denominado de equivalência jurídica (artigo 4.º), referindo que o valor das taxas é fixado de acordo com o princípio da proporcionalidade e não deve ultrapassar o custo da O N O NOVO REGIME GERAL D O REGIME GERAL DAS T AS TAXAS D AXAS DAS A AS AUT UTARQUIAS L ARQUIAS LOC OCAIS AIS Carlos Baptista Lobo Mestre em Ciências Jurídico-Económicas Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Advogado, Paz Ferreira e Associados

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I. Fundamentos e Motivos do NovoRegime Geral das Taxas Locais

O recente pacote legislativo regulador das finançaslocais, composto pela Lei das Finanças Locais (Lei n.º2/2007, de 15 de Janeiro), pelo Regime Geral dasTaxas Locais (Lei n.º 53-E/2006, de 29 deDezembro) e pelo Regime Jurídico do SectorEmpresarial Local (Lei n.º 53-F/2006, de 29 deDezembro), integram no seu âmbito um novoenquadramento jurídico conformador da figura da taxa,enquanto instrumento de financiamento municipal.

Efectivamente, a Lei das Finanças Locais (Lei n.º2/2007, de 15 de Janeiro), tem subjacente umaintenção clara e inequívoca no sentido do desenvolvi-mento deste tipo de tributo. De facto, e ao contráriodo regime legal anterior, o legislador adopta umconceito de autonomia tributária municipal muitomais ampla. Assim, e enquanto no regime anterior omunicípio teria de se limitar à utilização de figurastributárias definidas tipicamente na lei ordinária, onovo regime legal permite uma ampla liberdade cria-tiva, desde que os princípios gerais contemplados non.º 2 do artigo 15.º da Lei das Finanças Locais seencontrem verificados, a saber: o princípio da equiva-lência jurídica, o princípio da justa repartição dosencargos públicos e o princípio da publicidade.

Por outro lado, e contrastando igualmente com oregime anterior, o legislador adoptou uma concepçãoterminológica bastante mais clara, distinguindo astaxas dos preços, e eliminando a figura “híbrida” dastarifas, que, na realidade, não tinha qualquer tradiçãona nossa ordem jurídica. Efectivamente, enquantoque a taxa resulta de uma relação tipicamente tribu-tária (onde o sujeito activo adquire uma vesteautoritária) visando regular os termos dacontraprestação da prestação de uma utilidadepública fora do enquadramento do mercado (tipica

mente, a remuneração da prestação de um serviço, autilização de um bem do domínio público ou acompensação pelo levantamento de uma proibição,ou nos termos legais, já constantes da Lei GeralTributária, da remoção de um obstáculo jurídico aocomportamento dos particulares), o preço decorredos mecanismos típicos de mercado, maxime, doencontro da oferta com a procura num mercadoconcorrencial..

O Regime Jurídico do Sector Empresarial Local (Lein.º 53-F/2006, de 29 de Dezembro), também nãoignorou esta temática, regulando, na perspectiva dospreços, no n.º 3 do artigo 20.º que, “o desenvolvi-mento de políticas de preços das quais decorramreceitas operacionais anuais inferiores aos custosanuais” deverá ser objectivamente justificada e“depende da adopção de sistemas de contabilidadeanalítica onde se identifique a diferença entre o desen-volvimento da actividade a preços de mercado e opreço subsidiado na óptica do interesse geral”. Poroutras palavras, se o decisor pretender subsidiar umadeterminada prestação, então essa subsidiação teráque ser casusticamente justificada, na óptica daeficiência social, sendo a margem dessa subsidiaçãosuportado pelo orçamento municipal, nos termos domecanismo previsto no artigo 31.º desse regime legal.1

Finalmente, o Regime Geral das Taxas Locais (Lei n.º53-E/2006, de 29 de Dezembro) vem desenvolver atemática, concretizando os princípios constantes daLei das Finanças Locais.

Neste âmbito, acolhe o princípio denominado deequivalência jurídica (artigo 4.º), referindo que o valordas taxas é fixado de acordo com o princípio daproporcionalidade e não deve ultrapassar o custo da

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Carlos Baptista Lobo

Mestre em Ciências Jurídico-EconómicasAssistente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Advogado, Paz Ferreira e Associados

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actividade pública local (óptica do custo) ou o bene-fício auferido pelo particular (óptica do benefício).Analisaremos adiante, os corolários desta definição,não sem antes realçarmos o facto do n.º 2 dessepreceito legal prever a possibilidade de realização deuma ponderação, permitindo o desenvolvimento depolíticas tributárias de desincentivo à prática de deter-minados actos ou operações.

Porém, quer este preceito, quer o artigo 5.º, queregula o princípio da justa repartição dos encargospúblicos adoptam posições de vasto conteúdodoutrinário que importa esclarecer.

II. A Justa Repartição dos EncargosPúblicos

A teoria geral que sustenta o financiamento das enti-dades do Sector Público tem evoluído recentemente.De um princípio de financiamento essencialmentepúblico, i.e., assente no Orçamento do Estado, asmodernas finanças públicas tem sucessivamentevindo a advogar um princípio de financiamentoconjunto relativamente a determinadas actividades deinteresse público.

Efectivamente, nos modernos sistemas de economiade mercado, as mais significativas receitas públicas –do ponto de vista quantitativo e qualitativo – são asreceitas tributárias, que encontram o seu fundamentona existência de um dever genérico de cobertura dosencargos públicos, que recai, potencialmente, sobre atotalidade dos membros de uma comunidade e, emconcreto, sobre aqueles que, de entre eles, se mostremnuma situação tal que indicie a existência de umadeterminada manifestação de riqueza (percepção deum rendimento, detenção de património ou reali-zação de um acto de consumo).

Ainda quando outras ideias possam sobrepor-se aeste fundamento genérico do tributo, como sejam osseus eventuais fins extra-financeiros (de políticaeconómica e social) - que não excluem os financeiros-, há a sublinhar que, em primeira mão, as receitastributárias representam uma forma de organizar aparticipação dos cidadãos na cobertura das necessi-dades públicas, garantindo a aplicação do princípio daigualdade tributária, essencial para a função financeirade redistribuição que compete ao Estado.

No entanto, encontramo-nos, hoje, numa encruzil-hada relativamente ao sistema clássico de financia-mento do Estado.

É desde já claro que a mundialização ou globalização,associada à sociedade de informação, significa uma

radical transformação da vida sócio-económica e emespecial da sua articulação com o território e com opoder, que são os três nexos fundamentais de toda apolítica de tributação. A enorme e acrescida, emboradesigual, mobilidade dos meios de produção e dasoperações, tanto de consumo, como de poupança esua aplicação, como ainda de produção, correspondea uma grande e aumentada liberdade de escolha dosagentes sociais e económicos em função dos regimesfiscais mais favoráveis, exercitando para actividadesconcretas a “votação com os pés” que exprime oargumento básico da competição fiscal.

A deslocalização pode, claramente, traduzir tantouma escolha entre regimes fiscais desigualmentefavoráveis/desfavoráveis, como uma opção a favor deum espaço de paraíso ou neutralidade fiscal absoluta(que poderá ser concretamente o ciberespaço), obri-gando os Estados a terem em conta, num jogoalargado, as posições e soluções dos outros e/ou aconcertarem-se quanto às formas, áreas e regras deregulação, quer da situação fiscal, quer de algumas dassuas realidades subjacentes (como, maxime, as opera-ções financeiras), ultrapassando em muito, emboradaí se possa partir para alargar soluções, o modeloclássico dos acordos da dupla tributação e prevençãoe repressão da evasão.

Esta acrescida — por vezes praticamente ilimitada —possibilidade de deslocalização não está igualmenterepartida: o capital financeiro e as respectivas opera-ções, bem como as acções [financeiras, comerciais,comunicacionais, de serviços, (...)] que se exprimematravés das redes de telecomunicações, têm o graumáximo de mobilidade e deslocalização possível.Muitas formas de prestação de trabalho (na suaforma dependente), de propriedade imobiliária, depropriedade intelectual ou industrial, situam-se clara-mente abaixo. E, quanto mais os factores deprodução sejam menos sofisticados e menos qualifi-cados e as operações de consumo, poupança ouinvestimento e se aproximem de uma certa materiali-dade grosseira, menor é a possibilidade de deslocali-zação ou plurilocalização anulando as tentativas dereforçar a fiscalidade nacional ou de a fazer cobrirmais perfeitamente as bases de incidência num planoestritamente nacional. Os contribuintes fogem paraparte incerta e o Estado não consegue persegui-los aí,se já o não faz na internacionalização globalizada dehoje, menos o fará no “céu superior” que é o ciberespaço.

Assim sendo, os sistemas fiscais tradicionais, assentesnos impostos sobre o rendimento e na tributação dovalor acrescentado, vão ver cada mais fugirem asrespectivas matérias tributáveis e vão tender a excluir,

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de modo tanto mais injusto e insistente quanto maisfácil é a evasão dos outros factores, o trabalho menosqualificado — dificultando assim a resolução doproblema do emprego e agravando as injustiças e asdesigualdades sociais — e a propriedade imobiliária— agravando porventura os seus problemas de gestãoe utilização, quer no espaço rural quer no espaçourbano. Quando tudo o resto foge, é isto o que resta— com crescente injustiça e ineficiência fiscal, jáevidentes nas evoluções recentes da fiscalidade maisdesenvolvida. É esta, infelizmente, a situação nacional:efectivamente, basta uma análise superficial paraconstatar que os níveis de tributação relativa têmaumentado nessas duas vertentes da realidadeeconómica: o Leviatão Fiscal tão temido pelos econo-mistas novecentistas manifesta-se em toda a sua inten-sidade no Portugal do Século XXI, agravado pela cres-cente erosão fiscal resultante do movimento de harmo-nização fiscal comunitária orientado pelo princípio datributação do Estado da Residência que afecta sobre-maneira dos países importadores de capital.

Pelo exposto, o prolongamento temporal dossistemas de tributação actual gerarão inevitavelmenteuma sucessiva deterioração da posição fiscal dosmenos favorecidos (que assentam a sua estrutura derendimento e património em formas estruturalmentemenos evoluídas, logo menos susceptíveis de deslo-calização) relativamente aos mais favorecidos (enten-dendo-se estes como os sujeitos cujas manifestaçõesde riqueza tributáveis assentam em realidade imate-riais, e consequentemente, de deslocalização extrema-mente facilitada). Poderá, pois, afirmar-se, que aevolução dos sistemas de tributação tendem, naprática, à criação de modelos degressivos de tribu-tação com sucessivos aumentos de tributação relativa-mente aos rendimentos do trabalho dependente, àdetenção de propriedade imobiliária e aos actos deconsumo indiferenciados2.

A injustiça que torna vítima da tributação os trabal-hadores menos qualificados e a propriedade menossofisticada, tendendo assim para retornar a formasprimitivas de tributação, próprias das sociedades pré-industriais ou da primeira sociedade industrial, exigesoluções novas, sob pena de gerar tensões fiscais (esociais) insuportáveis, ou mesmo tensões de maisamplo e puro sentido social (com o agravamento doemprego sobre a tributação do trabalho e doemprego ou pela tributação social)3.

Por outro lado, verifica-se uma falência sucessiva demeios alternativos de angariação de receita, peranteos novos ambientes desmaterializados4.

Pelo exposto, este efeito de globalização e de desin-termediação acarreta uma profunda mudança noplano das relações tributárias. Altera-se o mundo dosprotagonistas clássicos da relação tributária. Esteseram pessoas bem identificadas, pertencentes aclasses sócio-profissionais de estatuto perfeitamenteidentificado e tutelado pelo Estado, o que significavafacilidade de responsabilização, mecanismos internosde sancionamento, auto-regulação completada porhetero-regulação e poder sancionatório efectivo(embora nem sempre eficaz!). Sucede que essas enti-dades estão, pura e simplesmente, em mutaçãogenética, e em alguns casos, a desaparecer, levandocom elas a possibilidade de sancionamento efectivo eeficaz.

Não é difícil adivinhar a queda da teoria clássica emque assenta a aplicação de impostos. Nos termosdessa teoria eram necessários três factores genéticos enucleares: materialidade, território e poder político.

No que diz respeito à materialidade, esta encontra-seem crise. De facto, verifica-se, hoje, o enaltecer daimaterialidade, quer das manifestações de riqueza,(rendimento e património), dos actos de consumo(meramente electrónico), bem como dos sujeitos(embora, estes, nos padrões da teoria fiscal sejamsecundários, bastando a realidade económica.

O conceito clássico de território encontra-se, igual-mente, em crise. Os novos desígnios possíveis pelaacção das redes electrónicas são infinitos. Mas estainfinitude é diferente da do universo físico (se nãovingarem as teorias do universo cíclico), pois é umainfinitude ao alcance de cada um, através de umsimples terminal de computador colocado na divisãomais exígua de sua casa. O território deixa, pois, de tersignificado, não simplesmente por acção da globali-zação mas principalmente por acção da digitalizaçãoe do advento do espaço virtual, podendo cada sujeitocriar o seu próprio universo. Por outro lado, e emtotal movimento contra-corrente, a harmonizaçãocomunitária continua a assentar na imposição cega doprincípio da tributação no Estado da Residência emprejuízo do Estado Fonte5. Ora, a Fonte é dificil-mente deslocalizável; a Residência é, inversamente,fluida e totalmente dependente da vontade docontribuinte. Nestas condições, o planeamento fiscalé inevitável.

O poder político efectivo é, pelas razões supra referidas,inexercitável por natureza. No entanto, mantêm-se asilusões de alguns governantes de eventual controlo dociberespaço. Apesar disso, e talvez para não verificaremo fracasso, as declarações dos líderes das nações mais

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influentes do mundo vieram rapidamente afirmar queo ciberespaço era uma área livre de qualquer influênciaou actuação por parte dos Estados.

Pelas razões expostas, a perspectiva clássica de tribu-tação, que se manteve quase intacta com a globali-zação (deixando de assentar na soberania nacional epassando para a soberania dos blocos regionais ou,eventualmente, para uma soberania mundial – pelomenos dos países mais desenvolvidos-), é completa-mente posta em causa pela digitalização e desmateria-lização, concertada com o movimento de concor-rência fiscal internacional.

Hoje a concorrência fiscal exerce-se de todas asmedidas possíveis, subalternizando-se, curiosamente,o recurso puro a taxas de tributação mais reduzidas.O enquadramento fiscal de um determinado instru-mento ou negócio é que é fundamental, dada a suaeficácia imediata no desenvolvimento de uma deter-minada actividade6.

Ora, uma forma de reacção a esta perda sucessiva dereceita fiscal proveniente de impostos é precisamentea imposição de taxas. Quer de forma consciente, quermesmo de forma inconsciente, a verdade é que osEstados tem vindo a promover um crescimentosucessivo das receitas provenientes de taxas,reduzindo as que resultam da aplicação de impostos.A tentação é demasiado forte: se o sujeito pretendeuma prestação pública então terá que sustentar umencargo financeiro; não existe deslocalização possível,e, por outro lado, existe uma aparente justiça, já quequem beneficia de uma prestação sustenta o seuencargo. Fixação do contribuinte, legitimação natributação e justiça impositiva são os motes de refe-rência desta nova política tributária.

Veja-se, do novo, o caso português. No respeitante àdespesa, os constrangimentos são claros eirrefutáveis:

a) Aumento da despesa pública proveniente doalargamento de competências do Estado;

b) Aumento da despesa pública proveniente doaumento da dimensão dos corpos administrativos desuporte à decisão;

c) Aumento da despesa pública decorrente doenorme esforço de investimento realizado nosúltimos anos na criação de infra-estruturas públicasque agora necessitam de manutenção;

d) Desenvolvimento e implementação de umprincípio de descentralização alargado;

e) Aumento de exigência por parte dos cidadãos aonível da prestação dos serviços pelo Estado;.No entanto, este movimento de expansão da despesadepara-se com uma tendência totalmente inversa dolado da receita:

a) Esgotamento do modelo tradicional de financia-mento público;

b) Redução significativa da taxa de crescimento dosimpostos sobre o rendimento das empresas;

c) Limitação da possibilidade de endividamento porvia da Lei da Estabilidade Orçamental e do Pacto deEstabilidade e Crescimento;

d) Redução das transferências proveniente do orça-mento comunitário, tendo em consideração anecessária redistribuição financeira inerente ao alarga-mento a Leste;

Será fácil concluir, perante este estado de coisas, queas entidades públicas se voltem para a única fonte dereceita própria disponível: a taxa.

A razão para a opção pelas taxas é essencialmentefinanceira: a angariação de receita que é urgente paraa manutenção dos padrões de fornecimento de utili-dades públicas.

No entanto, as vantagens das taxas vão muito alémdas relacionadas com a simples angariação de receitas.De facto, é inequívoca a fácil legitimação da cobrançadas mesmas, dada a perceptível vantagem imediataque é fornecida ao agente solicitador da contra-prestação pública, quer esta assuma a forma de umaprestação de serviços ou bens, a permissão deutilização de um bem do domínio público ou aoutorga de um qualquer título habilitador (licença ouautorização).

As razões subjacentes a este movimento de contracçãodos impostos e de expansão de taxas são, pois,evidentes. Mesmo a doutrina tradicional tende aformular uma posição de maior conformidade dastaxas relativamente ao princípio da igualdade tributária7.

Por outro lado, surgiram nos últimos anos novasdoutrinas relativas ao financiamento do fornecimentode utilidade públicas. Actualmente, ao contrário dopassado8, admite-se – e até se promove – um paga-mento faseado por parte dos utilizadores relativa-mente às utilidades públicas fornecidas. É esse ofundamento do postulado do Utilizador/Pagador.

Segundo este princípio é legítimo à entidade pública aefectivação de um reporte da despesa de investimento

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para o fornecimento de uma determinada utilidadeduradoura para os anos futuros, numa lógica assenteno princípio da igualdade entendido em termosdinâmicos: quem utiliza o bem vai sustentar osencargos do seu fornecimento e da sua manutenção9.

Esta lógica é ainda mais relevante se adoptar-moscomo modelos de referência os sistemas de forneci-mento de utilidades públicas com base em esquemasde project finance e de Parcerias Públicas e Privadas,tendo em consideração os constrangimentos dedespesa advenientes da participação de Portugal naUnião Económica e Monetária e do Pacto deEstabilidade e Crescimento.

Estes modelos adoptam a doutrina moderna definanciamento do fornecimento de utilidadespúblicas, adaptando-a lógicas de financiamentoprivado. No sistema de project finance, o consórcioprivado promove a construção da utilidade pública,sendo remunerado através dos rendimentos prove-nientes da concessão de exploração dessa utilidade10.Assim, neste modelo de Parcerias Público Privadas, asutilidades públicas são fornecidas por uma entidademista, que conjuga as potencialidades dos doissectores: o capital privado e a autoridade pública.Utilizando este tipo de iniciativa mista, é permitido aoEstado a prestação das referidas utilidades sem sesubmeter às limitações rígidas do endividamentopúblico, já que a aplicação de capital é efectuada peloparceiro privado. No entanto, tal como nas situaçõesenquadradas na categoria ampla de project finance,também a remuneração do custo do capital será efec-tuada através da cobrança de taxas de utilização aosutilizadores das mesmas, eventualmente subsidiadaspelo Estado, que poderá, dessa forma, comparticiparnos custos totais das utilidades através de transferên-cias orçamentais11.

Não se pretendendo nesta introdução esgotar asrazões que sustentam o exponencial aumento deimportância das taxas como instrumento de financia-mento público, poderá, no entanto, referir-se que essaimportância relativa tenderá para aumentar nos próxi-mos tempos.

As taxas permitem um alargamento da base tributárianuma medida superior à que poderia resultar de umaalteração do sistema de impostos, havendo, aindahoje, um largo espectro de realidades não tributadas,insuficientemente tributadas, ou ineficientementetributadas. Por outro lado, e uma vez que estão indis-sociavelmente relacionadas com uma determinadaprestação não são afectadas de forma sensível peloambiente de concorrência fiscal internacional.

Em termos de legitimação a taxa, devido à suanatureza relacional, encontra uma facilitada legiti-mação ao nível da cobrança, dado que o devedor teráuma percepção imediata de vantagem auferida, aocontrário do que acontece com os impostos.

Assentando em pressupostos relacionais estritos, aconstrução jurídica da taxa é, na grande maioria dasocasiões, relativamente facilitada devido ao estritonexo de causalidade existente. Por essa razão, tambémas funções de liquidação e cobrança são exercidas deuma forma leve e transparente, factores que numaperspectiva administrativa são decisivos.

Finalmente, o Estado é hoje um prestador de serviçosaos seus cidadãos em áreas que vão muito para alémdas directamente relacionadas com a soberania erestantes funções tradicionais. O modelo económico-social vigente, quer em Portugal quer na Europacomunitária aponta inevitavelmente para o EstadoBem-Estar. A iniciativa pública tem, pois, um papelfulcral na satisfação das necessidades dos cidadãos –é esse o fundamento da sua existência -. O aper-feiçoamento do modelo democrático-social doEstado moderno obriga a um sucessivo melhora-mento dos padrões qualitativos e quantitativos dasprestações públicas. Não poderá existir retrocessosocial nesta área sob pena da própria legitimidade doEstado se colocar em causa. Ora, a manutenção enecessário desenvolvimento destes padrões presta-tivos obrigará, obviamente, a uma tripla tarefa:

(1) uma melhor gestão dos recursos públicos, atravésdo desenvolvimento de uma Ciência daAdministração assente em padrões de eficiência eresponsabilização (realidades intrinsecamenteassociadas) e não em padrões burocráticos (quefundamentam uma estrutura decisória hierarquica-mente definida onde se esbatem as responsabilidadesfinanceiras ao nível das opções) e financeiramenteirresponsáveis (fundando-se os parcos processos deresponsabilidade financeira unicamente em violaçõesdo tecido legal e nunca em critérios de eficiência,eficácia e economicidade);

(2) à manutenção, pelo menos, dos níveis de receitapública actuais. Em caso inverso, colocar-se-á emcausa o próprio sistema democrático-social. Essacrise será perceptível, num primeiro momento, nosórgãos descentralizados (regiões autónomas e autar-quias locais) que pela sua reduzida dimensão sentirãonum primeiro momento enormes dificuldades finan-ceiras, mas, num segundo momento, atingirá inevi-tavelmente o Sector Público Administrativo. Assim,antes de se falar numa qualquer redução da despesa

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pública terá de analisar-se cuidadosamente quais osserviços públicos que estão a ser prestados. Nunca sepode dissociar a despesa pública da actividade presta-cional subjacente. Se isso for efectuado então toda aactividade pública é posta em causa12.

(3) à regulação eficiente dos mercados.Efectivamente, o movimento de privatizaçãoeconómica foi bastante mais alargado, abrangendonão só as unidades produtivas anteriormente naposse do Estado mas igualmente os própriosmercados. Os instrumentos tributários, maxime astaxas, são os instrumentos financeiros mais eficientesna eliminação das exterioridades (interiorizando asexterioridades negativos e socializando as exteriori-dades positivas) e para a definição de sistemas deacesso e de utilização de operadores a infra-estruturasem monopólio natural.

III. Fundamento e Legitimação dasReceitas Públicas Tributárias

Nos modernos sistemas de economia de mercado asreceitas tributárias que têm como fundamento “asse-gurar a comparticipação dos cidadãos na coberturados encargos públicos ou prosseguir outros finspúblicos”13, correspondendo a um “dever genérico decobertura dos encargos públicos”14.

Efectivamente, a actividade pública depende daexistência de uma estrutura de financiamento eficaz eeficiente. A criação de utilidades públicas15 dependede uma actividade financeira anterior provocadora dedesutilidade na esfera patrimonial privada: a cobrançado tributo.

O Estado, na sua actividade de satisfação das necessi-dades colectivas tem necessariamente de se financiarjunto dos seus cidadãos e empresas. Esse financia-mento das despesas públicas corresponde à afectaçãode meios financeiros à satisfação de necessidadescolectivas, resultando do exercício de poderes deautoridade (ius imperii)16, os quais assentam sempre norespeito pelo princípio da igualdade e pelo princípioda legalidade17, inerentes ao princípio do Estado deDireito18.

As receitas públicas coactivas, também designadaspelo conceito genérico de “tributo”, “representamuma forma de organizar a participação dos cidadãosna cobertura das necessidades públicas”19 e assentamnos seguintes elementos essenciais20:

Coacção ou obrigatoriedade decorrente de umacto de autoridade fundado na Constituição ou na

Lei, e não de um contrato ou de comportamentoslivres do credor e do devedor.

função essencialmente financeira (coberturados encargos públicos), organizando a participaçãodos cidadãos e outras entidades ou instituições nacriação de receitas, com base princípio da capacidadecontributiva e no princípio do benefício, em que sedesdobra o princípio da justa repartição dos encargospúblicos, mas que não exclui finalidades não finan-ceiras ou extra financeiras, desde que adequadamentelegitimadas pela Constituição ou pela Lei.

O princípio da justa repartição dos encargos públicos,além de um referencial geral de eficiência, constituiuma decorrência necessária do princípio da justiça,enquanto pressuposto material do Estado de Direito.Como refere Gomes Canotilho21, “o direito queinforma a juridicidade estatal aponta para a ideia dejustiça” a qual importa “equidade (fairness) nadistribuição de direitos e deveres fundamentais e nadeterminação da divisão de benefícios da cooperaçãoem sociedade (...)”. A justiça enquanto elemento inte-grante da própria ideia de direito encontraconcretização num conjunto de princípios materiais,entre os quais se conta a proibição do excesso, aprotecção da confiança e a igualdade na sua triplavertente de igualdade na criação e aplicação dodireito, igualdade de oportunidades e igualdadeperante os encargos públicos22.

O princípio da igualdade constitui-se como oelemento central do enquadramento constitucionaldo sistema tributário nacional, pelo que importapormenorizar o seu conteúdo.

A Constituição da República Portuguesa consagra oprincípio da igualdade dos cidadãos perante a lei (n.º1do artigo 13.º da CRP), afirmando que «ninguémpode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado,privado de qualquer direito ou isento de qualquerdever em razão de ascendência, sexo, raça, língua,território de origem, religião, convicções políticas ouideológicas, instrução, situação económica oucondição social» (n.º 2 do artigo 13.º da CRP). Aigualdade surge assim, e antes do mais, como umamanifestação do princípio da justiça enquanto postu-lado de tratamento igual do que é igual (justiça comu-tativa) e de tratamento desigual do que é desigual(justiça distributiva)23.

Os corolários desta concepção de igualdade no planotributário são evidentes: numa perspectiva horizontal,todos devem estar sujeitos às imposições públicas(igualdade formal); numa perspectiva vertical, cada

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um deve pagar na medida das suas possibilidades(igualdade material) – no limite, quem estiver nolimiar de sobrevivência poderá nem pagar, mas quemtiver recursos financeiros avultados não poderá seralvo de um “confisco” fiscal, ou de um nível de tribu-tação tal que se constitua como um “fardo excessivo”(excess burden), causador de perdas absolutas de BemEstar (deadweight losses). E, note-se, actualmente, aperda absoluta de Bem Estar resulta não só do limiarde promoção do ócio mas igualmente da potencialdeslocalização das fontes produtivas.

No entanto, numa sociedade moderna, o plano daigualdade tributária não se pode limitar à enunciaçãode corolários reflexos assentes num princípio daequivalência geral ou alargado válido unicamente paraa fundamentação dos sistemas tributárias anterioresao Estado Social de Direito.

O desenvolvimento de micro-mercados e a sofisti-cação do tráfego económico permite hoje o desen-volvimento de sistemas de contabilidade analítica naóptica dos custos públicos bem como a concretaidentificação do beneficiário, fundamentando o esta-belecimento de padrões de igualdade concretizadosem relações de correspondência entre o que o Estadopresta e o que o particular deve pagar. Relações deequivalência restrita ou casuística tornam-se, então,possíveis. A emergência do princípioutilizador/pagador não é mais do que uma meramanifestação desta realidade.

Adoptando uma perspectiva geral, a actuação finan-ceira do Estado, quer do lado da despesa, quer do ladoda receita imposta por acto de autoridade, encontra-seconstitucionalmente conformada pela obrigação de“promover a justiça social, assegurar a igualdade deoportunidades e operar as necessárias correcções dasdesigualdades na distribuição da riqueza e do rendi-mento, nomeadamente através da política fiscal”(alínea b) do artigo 81.º da CRP) sendo a “repartiçãojusta do rendimento e da riqueza” um objectivoconstitucionalmente atribuído ao sistema fiscal (n.º 1do artigo 103.º da CRP)24 e a promoção do “bem-estar e da qualidade de vida do povo e a igualdade realentre os portugueses, bem como a efectivação dosdireitos económicos, sociais, culturais e ambientais,mediante a transformação e modernização das estru-turas económicas e sociais” uma das tarefas funda-mentais do Estado (artigo 9.º, alínea d) daConstituição). Consequentemente, e como bemnotam António de Sousa Franco e Sérgio Gonçalvesdo Cabo, a nossa Constituição não estabelece umahierarquia ou um quadro de prioridades entre a funçãofinanceira e a função não financeira do sistema fiscal25.

Noutros termos, poderá sustentar-se que aConstituição impõe ao legislador uma configuraçãoinfra-constitucional do sistema tributário que tenhaem conta o fim da obtenção de receitas para fazerface aos encargos públicos, mas também o fimgenérico da promoção da justiça social, entendidacomo redução das desigualdades na distribuição dorendimento e da riqueza.

Numa perspectiva mais específica, não podemosesquecer a inserção dogmático-ideológica do nossotecido constitucional. O modelo europeu de EstadoSocial de Direito, que resulta tanto nosso texto consti-tucional como do direito comunitário primário(maxime do Tratado que institui a ComunidadeEuropeia (TCE)) tem implicações directas naconfiguração do sistema de angariação de receitapública. Assim, numa perspectiva macro-financeiranão é legítimo ao Estado tributar (logo causardesutilidade na esfera patrimonial privada) numaintensidade tal que supere as prestações públicas quefornece (fornecimento de utilidades pública), já quedaí decorreria uma perda absoluta de Bem-EstarSocial, situação que é proibida pela alínea d) do artigo9.º e pela alínea a) do artigo 81.º da Constituição26.

Temos pois um primeiro corolário macro-financeiro:a acção prestativa pública é subsidiária da acçãoprestativa privada, só se justificando a primeiraquando da acção do Estado resulte a produção de ummaior volume de utilidades27 na satisfação das neces-sidades dos cidadãos do que o decorreria de umaacção privada, ou quando o mercado seja genetica-mente incapaz de satisfazer determinado tipo denecessidades públicas.

Só assim se justifica que ocorra uma canalização derecursos financeiros extraídos à iniciativa privada (porvia da imposição de tributos) no sentido do financia-mento da acção pública. Não faria sentido que, numaperspectiva agregada, se admitisse a ocorrência deperdas absolutas de Bem-Estar só para se justificaracções prestativas públicas ineficientes28.

Em determinadas situações, a acção prestativapública é sempre justificável. Assim, se o mercado forincapaz – em termos genéticos – de satisfazer deter-minado tipo de necessidades que o Estado considerarelevantes (incluindo a redistribuição económicasocialmente eficiente atendendo aos diversos níveisde utilidade marginal da despesa), então não restaoutra opção de acção senão a que assenta na funçãoprestativa pública29.

Este juízo de eficiência ou de “proporcionalidade”deve igualmente ser efectuado numa óptica micro-

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financeira. Assim, se às entidades públicas sedepararem diversas propostas de tributação numdeterminado mercado, elas deverão adoptar a soluçãomais eficiente no caso concreto. Essas preocupaçõesde inserção de padrões de eficiência na decisãopública concreta encontram-se presentes no textoconstitucional: por exemplo, a alínea c) do artigo 81.ºda CRP estabelece claramente que incumbe aoEstado, «assegurar a plena utilização das forçasprodutivas, designadamente zelando pela eficiênciado sector público»; por sua vez, a alínea e) do mesmopreceito constitucional refere que lhe compete «asse-gurar o funcionamento eficiente dos mercados».Note-se que a preocupação do Estado no sentido deassegurar a plena satisfação das necessidades doscidadãos é inerente à sua própria definição. A acçãopública não pode, em consequência, ser geradora desituações ineficientes do ponto de vista social.

Não se advoga, porém, que o sistema tributário seencontra submetido a um princípio geral de neutrali-dade. O sistema tributário, entendido aqui no seusentido mais amplo como o conjunto de receitascoactivas desprovidas de carácter sancionatório, e porisso abrangendo quer os impostos quer outras figurastributárias que se lhes assemelhem, como é o caso dastaxas30, pode comportar a assunção de finalidadesextra-financeiras; podendo-se, assim, enunciar umprincípio da eficiência funcional do sistema tributário31.

Apesar das especialidades do regime constitucional-mente consagrado em matéria de impostos (cfr.artigos 103.º, n.º 2, 104.º e 165.º, alínea i) daConstituição), a verdade é que as taxas comungam,no nosso direito, como noutros32, dos fundamentos epressupostos legitimadores da tributação: decorremde um acto de autoridade fundado na Constituição ena Lei, por isso são receitas coactivas e obrigatórias enão receitas sujeitas ao princípio da liberdadecontratual, têm uma função essencialmente finan-ceira, isto é, de obtenção de receita para cobrir osencargos públicos, desde que outros imperativos deeficiência não sejam colocados, sem embargo de lhespoder estar associada uma função não financeira,embora dentro dos limites decorrentes do princípioda proporcionalidade ou da proibição do excesso,atendendo à estrutura bilateral da taxa e à sua relaçãocom a criação de utilidades concretas, determinadasou determináveis a favor do sujeito passivo.

No entanto, e diversamente do que acontece com osimpostos, o desenho jurídico da taxa é extraordinari-amente exigente. Tal resulta das características dascaracterísticas avançadas para a sua qualificação e queimplicam uma contrapartida específica, ou uma

bilateralidade qualitativamente considerada (a deno-minada equivalência jurídica).

A título meramente exemplificativo, e na matéria quenos interessa, o direito alemão faz corresponder ataxa (Gebühr) à observância estrita de um princípio deequivalência económica (Äquivalenzprinzip), traduzidoou na cobertura do custo administrativo(Kostendeckung) ou no benefício gerado para o sujeitopassivo (Vorteilsausgleichs), quando pretende aumentar,ou não distorcer, as padrões de eficiência dosmercados. Porém, na nossa ordem jurídica, e nostermos das diversas decisões judiciais a estepropósito, esta exigência de estrita correspondênciaentre custo administrativo ou benefício económico ea prestação pecuniária exigida é secundarizada face aoprimado do objectivo de angariação de receitapública. No entanto, esta finalidade financeira deveránecessariamente ser ponderada atendendo às outrasfinalidades potencialmente relevantes e que ultra-passam a preocupação puramente reditícia.

Efectivamente, as taxas comungam dos fins, objec-tivos e limites da tributação. Não há pois queestranhar que, conquanto estruturalmente assentes naprestação de utilidades concretas, determinadas oudetermináveis a favor do sujeito passivo33 e material-mente assentes no princípio da proporcionalidade34,as taxas possam ter, além das óbvias e necessáriasfinalidades financeiras (cobertura parcial ou total dosencargos com a prestação pública35), outras finali-dades seleccionadas pelo legislador de entre ouniverso de fins possíveis das receitas coactivas,compatíveis com o princípio do Estado Social deDireito36. Essas finalidades extra-reditícias podem passarpor: (1) objectivos de inserção de padrões de eficiêncianos mercados (superação de falhas de mercado)37; (2) deorientação de comportamentos (promoção oudissuasão38)39 40, ou, finalmente, (3) fornecimento dedeterminados bens essenciais a “preços” inferiores aospraticados em circunstâncias normais pelo mercado(fornecimento de bens semi-públicos)41.

Poderemos, pois, concluir no sentido de que aConstituição da República Portuguesa impõe aolegislador uma configuração típica do sistematributário tendo em consideração a obtenção dereceitas públicas. No entanto, os fins genéricos depromoção da justiça social e de aumento do nívelde Bem-Estar Social, obrigam à adopção desoluções legislativas economicamente eficientes,não se encontrando estabelecida uma hierarquiarígida entre a função financeira e as funções nãofinanceiras do sistema fiscal;

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IV. O Princípio da Legalidade(Tributária) e as Receitas PúblicasTributárias: da Especialidade das Taxas

Chegado este momento da nossa exposição, impor-tará analisar a especificidade do regime de legalidadeaplicável às taxas e que justifica a autonomizaçãodeste tributo perante as restantes figuras tributárias.

O artigo 6.º do Regime Geral das Taxas Locaiscontém uma enunciação meramente exemplificativados tipos tributários susceptíveis de revestirem anatureza de taxa municipal.

Porém, importa salientar que estes tributos, se foremmal configurados, poderão revestir facilmente a figurade imposto, padecendo consequentemente de ilegali-dade e inconstitucionalidade.

São bastante numerosos os processos judiciais rela-tivo a taxas criadas pelo Estado42, e por outras pessoascolectivas públicas de base territorial43. Tal demonstraa extraordinária complexidade da análise do regimejurídico aplicável às taxas.

No tocante às taxas, e mesmo sem a aprovação de um“regime geral das taxas e outras contribuições finan-ceiras”, da Lei Geral Tributária, resulta inequivoca-mente a sua exclusão do âmbito do princípio dacapacidade contributiva (artigo 4.º da Lei GeralTributária) e do princípio da legalidade na suavertente de reserva de lei formal ou reserva deParlamento (artigo 8.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária,que corresponde, como não poderia deixar de ser, àformulação dos artigos 103.º, n.º 2 e 165.º, alínea i) daConstituição). Tal resultado confirma, em termosclaros e inequívocos, o que quer a doutrina, quer ajurisprudência há muito tempo vinham defendendode modo quase unânime.

Constitui hoje posição consolidada da doutrina a nãosubmissão das taxas ao princípio da legalidade fiscalconstante do n.º 2 do artigo 103.º e da alínea i) do n.º1 do artigo 165.º da CRP. Estes preceitos estabelecemum princípio da legalidade qualificado que se traduzna necessidade dos elementos essenciais do imposto(taxa, incidência, benefícios fiscais e garantias doscontribuintes) serem definidos e concretizados poruma lei da Assembleia da República, ou por umdecreto-lei autorizado. Esse regime especial aplicávelaos impostos não é mais do que a decorrência doprincípio “no taxation without representation”, numalógica de auto-tributação. Quanto às taxas, o legis-lador constituinte preferiu inserir unicamente, em1997, no âmbito da reserva relativa da Assembleia daRepública a definição do seu Regime Geral. Tal opção

justifica-se pela importância concreta do mesmoenquanto diploma de enquadramento geral – reservade densificação parcial - e não pela especialidade darelação jurídica subjacente a essa forma tributária, queassentando essencialmente numa lógica de bilaterali-dade, permite, por isso mesmo, que os seus sujeitospassivos obtenham formas de tutela jurídica alterna-tiva dos seus direitos, ao contrário do que acontececom os impostos.

Nos impostos, e dada a sua característica de unilatera-lidade, a reserva de lei formal quanto aos seuselementos essenciais é justificada dado que constitui aúnica forma de salvaguarda dos direitos dos cidadãosa este propósito. Assim, o princípio da legalidadefiscal aplicável aos impostos assume uma importânciafundamental na concretização do equilíbrionecessário que importa estabelecer entre a pretensãodo Estado em tributar e o direito do contribuinte emcontribuir para a receita pública num montante justoe equitativo. É, pois, um princípio inerente aoconceito de Estado de Direito, na dimensão da segu-rança jurídica e protecção da confiança, bem como nadimensão da proibição do excesso e da protecçãojurídico-judiciária, e, no limite, à garantia indirecta deconcretização da igualdade tributária material atravésda necessária autorização prévia do contribuinte(exercida através do seu representante) na sua própriatributação.

Dada a configuração jurídica bilateral própria dastaxas não se torna necessária esta prévia autorizaçãoparlamentar para sua criação; a percepção imediata doeventual incumprimento do Estado relativamente àcontraprestação devida torna possível ao contribuinteo desencadeamento de meios jurisdicionais de tutelado seu direito. Tal possibilidade de reacção decorre daprópria legitimação da taxa que pressupõe concep-tualmente a existência de uma contraprestaçãoespecífica a favor do sujeito passivo, atendendo àscaracterísticas de exclusivismo e determinação quesão subjacentes a esse dever público de prestar.

No entanto, mesmo este aspecto nuclear das taxas éesquecido: por exemplo, não se compreende como asautarquias podem cobrar taxas de esgotos tomandocomo base de incidência o valor patrimonial dosimóveis. A incidência nada tem em comum com otributo. Este é só um exemplo da total anarquia quevigora no nosso ordenamento jurídico e que temnecessariamente de se resolver, não por via legislativa,mas sim por via judicial.

Relembre-se, a este propósito, que o núcleo funda-mental do conceito jurídico de taxa foi construído

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fundamentalmente pela doutrina italiana na primeirametade do século XX. Já então o intuito fundamentaldos cientistas do Direito era o da diferenciação destafigura tributária relativamente ao imposto e ao preço44.

Nestes termos, a taxa é, qualitativamente, umaprestação tributária – tributo - que pressupõe, oudá origem a uma contraprestação específica,constituída por uma relação concreta (que pode serou não de benefício) entre o contribuinte e umsujeito tributário activo tendo por objecto autilização privativa um bem do domínio público(taxa de utilização), a prestação de um serviçopúblico (taxa por prestação de serviços públicos45,ou a outorga de um título habilitador por motivosde eficiente regulação de um mercado (taxa poremissão de licenças ou autorizações).

Trata-se de uma receita pública, ligada a utilidadesauferidas por quem é obrigado a pagá-la, - um serviçoou a utilização de um bem público. De um ponto devista jurídico, a figura da taxa pressupõe inevitavel-mente uma contrapartida específica em favor docontribuinte por parte do sujeito activo (bilateralidadeda taxa contraposta à unilateralidade do imposto),assentando qualitativamente num princípio de equi-valência jurídica46.

Existe, no entanto, uma grande variabilidade doconteúdo jurídico do conceito, resultante de delimi-tações formais da respectiva noção financeira.

Em termos jurídicos e financeiros, a taxa assumepotencialmente diversas formas. A mais fácil eperceptível é a que resulta de uma concreta relaçãocom um serviço público: isto acontece nas taxasmunicipais que têm como contrapartida a passagemde certidões ou o pedido de informações ou registos,por exemplo, na área do urbanismo. O facto de umcontribuinte entrar em relação concreta com oserviço não significa, porém, que ele aufira uma utili-dade, no sentido de um benefício directo ou imediato:pode receber prestações úteis ou beneficiar daremoção de um obstáculo jurídico à sua capacidade;pode ser prejudicado (impedimento de construção,por exemplo); pode suportar o funcionamento doserviço (taxas de fiscalização). O aspecto fundamentalnão reside, pois, na sua voluntariedade nem naextracção de um benefício directo ou vantagemimediata, mas sim na utilização objectiva, pelocontribuinte, de meios organizados do Estado e paraos quais esta entidade incorre em custos.

Na utilização de um bem do domínio público, porseu lado, não há um serviço, mas um acto deutilização que dá origem à obrigação de pagar a taxa;

em princípio, será lícito dizer que esse acto corres-ponderá a uma forma de uso comum do bemdominial.

Existindo uma vantagem económica pela utilizaçãode um bem dominial, o princípio da igualdade – nasua vertente da equivalência - obrigará, em princípio,a que o sujeito contribua para os encargos gerais dacolectividade. No entanto, essa questão encontra-sedirectamente relacionada com os aspectos quantita-tivos, determinantes para a definição da equivalênciaeconómica.

No caso da emissão de títulos habilitadores está emcausa a regulação eficiente de um mercado. Só estafinalidade poderá salvar a constitucionalidade destestributos já que prestações pecuniárias devidas pelaemissão de títulos habilitadores socialmente injustifi-cados revestirão necessariamente a qualidade deimpostos já que o título administrativo que o sujeitose encontra obrigado a obter só vigora legalmentepara permitir a cobrança do tributo correspondente.Ora, tal não acontece se o título habilitador for essen-cial para a organização do mercado em causa. Assim,se um determinado sujeito económico necessita deuma especial protecção de mercado que lhe atribuatemporariamente um determinado poder demonopólio face a novos concorrentes potenciais deforma a desenvolver o seu projecto, então será legí-timo ao Estado fixar um montante equitativo a títulode emissão de licença que fique abaixo da rendamonopolista obtida – mas unicamente no limite deremuneração do risco de investimento -. Ao invés, nainexistência de custos irrecuperáveis (sunk costs), oEstado tem uma total legitimidade na tributação nomomento da atribuição do título habilitador tendoem vista a socialização de parte da renda monopolistaobtida por protecção pública da posição do mercadodo sujeito económico. Outra forma de conceber alicença ou a autorização administrativa como instru-mento regulatório/redistributivo será através dacriação de uma prestação tributária concomitantevisando a tributação “à cabeça” tendo em vista asocialização dos ganhos decorrentes da utilização debens do domínio público, ou a interiorização doscustos reflexos causados a terceiros por actividadessocialmente danosas, que de outra forma devem sertributados ao longo do tempo através das taxas deutilização. Em termos bastante simplificados, o objec-tivo da política tributária, ditado pelo princípio daeficiência na actuação pública, deverá ser o de fazerequivaler o custo (benefício) privado marginal aocusto (benefício) social marginal. Outros exemplospoderiam ser dados, no entanto, e no essencial, deveafirmar-se que as taxas por emissão de licenças são

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demasiado importantes para a regulação de mercadospara as reconduzirmos unicamente a um estrito para-digma de cobertura de custos.

Assim, em virtude do seu funcionamento «normal»: aprestação de certas utilidades divisíveis por bens que,em princípio, serão públicos e proporcionarão satis-fações genéricas e indivisíveis, a taxa parece distinguir-se bem do imposto e dos rendimentos patrimoniais.

Face à multidão dos casos concretos, suscitam-seporém muitas dúvidas, às vezes agravadas pela impro-priedade de algumas designações e regimes jurídicos.A pesquisa de critérios definidores do tipo de relaçãodo contribuinte da taxa com o serviço ou o bempúblico é dificultada pela ausência de um regimejurídico comum ou pela simples uniformidade dedesignações.

No entanto, é possível efectuar uma aproximaçãooperacional que permite distinguir as diversas situa-ções. Assim, e só a título de exemplo, o financiamentointegral da actividade urbanística pela generalidadedos contribuintes acarretaria uma evidente injustiçana repartição dos encargos públicos, já que se fariarecair sobre a generalidade dos cidadãos todo oencargo de financiamento de uma actividade cujosbenefícios se concentram, em larga medida, numgrupo certo e determinado de agentes: os proprie-tários fundiários e imobiliários; os promotores econstrutores; e, os utilizadores directos. Por outrolado, o financiamento da integralidade da actividadeurbanística através de taxas acarreta igualmente umaevidente injustiça, já que alguns (promotores eproprietários de uma determinada zona) sustentariamtodos os encargos de utilidades públicas usufruídaspor todos. Um equilíbrio é, portanto, necessário.

Deparamos, pois, com um sistema complexo, em queutilidades divisíveis e indivisíveis convivem conjunta-mente, tendo por beneficiários sujeitos determinadose indeterminados, sendo o seu financiamento efec-tuado através de taxas, impostos e contribuições espe-ciais locais e, ainda, por transferências do Orçamentodo Estado.

É, obrigatório, neste ponto efectuar um ponto deordem, atendendo aos princípios constitucionais daeficiência, da justiça e da igualdade e da solidariedade.Assim, no que diz respeito à actividade municipalprestativa directa, ou resultante de investimentos47:

se as utilidades forem indivisíveis e os benefi-ciários indeterminados, decorrendo da sua existênciabenefícios em escala nacional ou regional, então o seufinanciamento deverá ser assegurado por transferências

do Orçamento do Estado resultantes do produto dacolecta dos impostos nacionais;

se as utilidades forem indivisíveis e os benefi-ciários determinados ou indeterminados, decorrendoda sua existência benefícios em escala municipal,então o seu financiamento deverá ser assegurado peloproduto da colecta dos impostos locais incidentessobre o património imobiliário.

se as utilidades forem divisíveis e os beneficiáriosdeterminados, decorrendo da sua existência benefí-cios na esfera individual, então o seu financiamentodeverá ser assegurado pelo produto da colecta detaxas urbanísticas.

Por outro lado, se da actividade prestativa públicaresultarem benefícios reflexos na contabilidade indi-vidual de um determinado individuo, justificar-se-á aimposição de uma contribuição especial, que nostermos da Lei Geral Tributária, segue o regime dosimpostos. Porém, no n.º 2 do artigo 5.º do RegimeGeral das Taxas Locais parece entender-se que olegislador pretendeu uma reconfiguração jurídica doregime aplicável nesta eventualidade. Assim, estabe-lece-se que “as autarquias locais podem criar taxaspara financiamento de utilidades geradas pela reali-zação de despesa pública local, quando desta resultemutilidade divisíveis que beneficiem um grupo certo edeterminado de sujeitos, independentemente da suavontade”.

Aliás, é nesta óptica compreensiva e global que deveráser entendido o sistema tributário urbanístico muni-cipal. O Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI)deverá assentar numa lógica de equivalência ampla,constituindo-se como um “Imposto deCondomínio”48, tendo em vista a repartição doscustos sustentados com utilidades indivisíveis abeneficiários indeterminados. Os proprietários dosimóveis constituem-se como sujeitos passivos,sustentando a este título todos os custos com amanutenção e amortização de infra-estruturas exis-tentes ou com a criação de novas utilidades indi-visíveis mas com destinatário determinado ou deter-minável49 50 .

Por sua vez, as (restantes) contribuições especiaistributarão os promotores pelas mais-valias latentesresultantes de acções dos organismos públicos. Estesbenefícios reflexos decorrentes de exterioridadespositivas seriam, desta forma, socializados.Consoante os exemplos recentes (Expo 98, PonteVasco da Gama, CRIL, CREL, CRIP, CREP), estascontribuições especiais denominadas de 2.ª Geração51

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incidirão sobre a valorização imobiliária sofrida porobras em concreto52. Por sua vez, este tipo de tributospoderão servir para a interiorização de exterioridadesnegativas, como acontece no Imposto Municipalsobre Veículos.

Às taxas competirá a repartição dos encargospúblicos resultantes da actividade de fornecimento deutilidades divisíveis a sujeitos determinados. Só nestaperspectiva poderá ser salvaguardada a equivalênciajurídica nas taxas urbanísticas.

De forma do âmbito tributário deverão ficar asdenominadas “Compensações Urbanísticas” cujasfinalidades são exclusivamente perequativas.

Este foi um simples exemplo operativo. Muitos outrospoderão (e deverão) ser efectuados sob pena damanutenção de uma anarquia tributária que beneficiaquem não deve e prejudica os que menos podem..

No entanto, numa perspectiva financeira, se aprestação outorgada pelo sujeito activo for muitoinferior à prestação exigida ao contribuinte pode-remos encontrar uma situação de ausência de propor-cionalidade na relação que pode quebrar a bilaterali-dade (equivalência qualitativa) inerente à taxa (a ideiade bilateralidade envolve necessariamente uma certaproporcionalidade quantitativa). Por outro lado, econforme se demonstrará, o princípio da eficiênciaprevisto constitucionalmente poderá obrigar o sujeitotributário activo a adoptar soluções tributáriaseficientes para efeitos de regulação do acesso ou doexercício em infra-estruturas em situação demonopólio natural (indústrias de rede, serviços deinteresse económico geral).

V. Os Termos Financeiros daEquivalência (Jurídica) Económica dasTaxas

Conforme foi referido, as taxas têm como elementoestrutural a prestação de utilidades concretas, numaóptica de prestação privada/contraprestação pública,fundamentando-se numa relação material de sinalag-maticidade, dependendo, a sua legitimidade, emprimeiro grau, da prestação de utilidade concretas –determinadas ou determináveis, presentes ou futuras(mas não meramente eventuais ou improváveis) – afavor do sujeito passivo. É pois essencial que a umaprestação do sujeito passivo corresponda uma contra-partida qualitativa, que fundamenta o juízo de equi-valência jurídica.

Porém, as questões relativas à definição dos termosda equivalência económica são substancialmente mais

complexas. A passagem do Estado liberal para oEstado Social de Direito53, com a consequenteevolução no plano dos fins do Estado (bem-estareconómico e social, promoção da igualdade material,efectivação de direitos económicos sociais e culturais,reforço da protecção dos direitos fundamentais e dasgarantias dos particulares contra a «administraçãoagressiva»), teve profundas consequências no planodo seu financiamento.

Tal transição levou “a que fosse preciso diversificar asfontes de financiamento do Estado”54, por contra-posição ao modelo do liberalismo político – em quefoi forjada a reserva de lei formal como elementoessencial da legalidade tributária –, em que o quadrode financiamento público assentava, basicamente, emimpostos, “ao mesmo tempo que se mudava profun-damente o sentido tradicional de tributação, ao qualvão passar a aparecer associadas finalidades extra-financeiras de natureza económica e social”. Comefeito, “tal supremacia dos impostos no quadro dofinanciamento público explicava-se não só pelacircunstância de permitir o controlo parlamentarsobre a medida do gasto público, mas também pelofacto de a generalidade das funções desempenhadaspelo Estado assegurarem a cobertura de necessidadesindivisíveis, que não podiam ser imputadas isolada-mente a cada contribuinte ou grupo decontribuintes”.

Como salienta o mesmo autor55, “se a tributaçãobaseada na capacidade económica dos cidadãos serevela como a forma mais justa de financiar asdespesas públicas quando elas se reduzem a umconjunto de gastos que iriam beneficiar toda a colec-tividade (...), já não é tão nítida a justiça de tal soluçãoquando as receitas obtidas pelo Estado se destinam asatisfazer necessidades individuais ou de grupos decidadãos que podem, por si próprios, assegurar pelomenos uma parcela dos custos desses serviços”56.

Finalmente, o desenvolvimento da ciência económicae financeira tornou possível a realização de análises derepartição de custos que anteriormente eram total-mente impossíveis, legitimando a cobrança de tribu-tos de base bilateral, amplamente mais apetecíveispelo Estado tendo em vista o financiamento dessasactividades prestativas públicas.

Ora, este movimento recente tem, como veremos deseguida, amplas implicações na definição dos termosde equivalência das taxas.

Tal como foi referido anteriormente, a criação detaxas constitui uma tarefa vinculada ao princípio geral

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da legalidade. Pelo exposto, a definição do quantum apagar pelo sujeito passivo a título de prestação pecu-niária decorrente de uma relação jurídica de taxanecessita de constar de um qualquer diploma legal ouregulamento administrativo. Tal decorre da necessáriahabilitação legal prévia (nullum tributum sine lege), tendoem vista a garantia da segurança jurídica e o princípioda tutela da confiança. Havendo essa habilitaçãoprévia, necessariamente corporizada num determi-nado instrumento jurídico público (lei ou regula-mento), serão aplicáveis todas as vinculações comum-mente apontadas à generalidade dos diplomas legais eregulamentares.

Por outro lado, não poderão ser ignoradas as vincu-lações decorrentes do direito comunitário. Assim, naperspectiva do princípio da não discriminação, serãocontrárias ao ordenamento comunitário todas astaxas que impliquem “desvios de comércio” nosfluxos intra-comunitários, quer na vertente positivada tributação (atendendo ao regime das liberdadesconstitucionais constantes do TCE), quer na vertentenegativa (nos termos do regime dos auxílios deEstado).

Especial atenção deverá ser dada, a este propósito, àconstante jurisprudência comunitária no sentido daenunciação de um princípio de tributação orientadopara os custos. O Tribunal de Justiça (TJCE) temdesenvolvido uma orientação muito restritiva a estepropósito, seguindo de forma muito próxima a doutrinagermânica. No acórdão Z vs. DBS, de 17 de Julho de1997, considerou preço excessivo ou não equitativo“uma contraprestação que não mantenha umarelação razoável com o valor económico da prestaçãorealizada”57. Esta formulação embora indicie umaorientação no sentido da estrita equivalênciaeconómica padece, porém, de uma extrema generali-dade, não concretizando o que entende como“relação razoável” ou “valor económico”. Para tornaroperacional este referencial genérico de equivalênciaeconómica é necessária uma investigação maisprofunda.

No acórdão United Brands58 o TJCE considerou comomeio objectivo para a determinação do grau de“excessividade” de um preço a comparação dos seuspreços de venda com os custos de produção. Apesardeste método apontar para a lógica da equivalênciarestrita não se poderá negar que a adopção de ummétodo de base comparativa é, claramente, prob-lemática, nomeadamente quando as prestações sãopúblicas, e muitas delas, fora do mercado. Estecritério comparativo foi, hoje, ultrapassado nosacórdãos referentes ao conceito de “direito remune-

ratório” para efeitos do imposto harmonizado sobreentradas de capital.

Nesta óptica, pode dizer-se que para o TJCE adistinção entre taxa e imposto assenta essencialmentena natureza remuneratória estrita (custos concretosda prestação pública desenvolvida em favor do parti-cular) da primeira em contraste com o imposto. Talfoi aflorado na sequência da Directiva 69/335/CEEdo Conselho, de 17 de Julho de 1969, relativa aosimpostos indirectos que incidem sobre as reuniões decapitais, com as últimas alterações que lhe foramintroduzidas pela Directiva 85/303/CEE doConselho, de 10 de Junho de 1985. Os acórdãosFantask (processo C-188/95) e Ponenti Carni são para-digmáticos na demonstração dessa posição, tendo talorientação jurisprudencial tido profundas reper-cussões em Portugal, dado que se repetiu nosacórdãos MODELO, SGPS SA (processo C-56/98)e SONAE – Tecnologias de Informação SA(processo C-206/99, acórdão de 21 de Junho de2001), que condenaram o Estado português a estepropósito atendendo à desconformidade da Tabelade Emolumentos dos Registos e Notariado com esseprincípio de equivalência económica estrita.

Esta configuração estrita da equivalência económicadas taxas tem sido igualmente desenvolvida na legis-lação comunitária ordinária. O artigo 12.º daDirectiva 97/67/CE, relativa aos serviços postais,estabelece peremptoriamente que os montantes daprestação deverão ser fixados tendo em consideraçãoos custos. O n.º 2 do artigo 17.º da Directiva98/10/CE, relativa às taxas de utilização da redepública fixa de telecomunicações e o n.º 2 do artigo7.º da Directiva 97/33/CE relativa às taxas de interli-gação repetem a mesma orientação. A concretizaçãodesta orientação extraordinariamente exigente quantoà equivalência económica obriga mesmo à separaçãocontabilística dos custos relativos a diferentesprestações (chinese walls)59 no âmbito de unidadesempresarias encarregues de serviços de interesseeconómico geral verticalmente integradas.

Atendendo ao primado do direito comunitário sobreo direito nacional importará tomar em consideraçãoesta orientação constante na configuração dos termosde equivalência económica das taxas, dado queexterioriza, de forma clara e inequívoca, uma prefe-rência pelas instâncias comunitárias de uma perspec-tiva assente na equivalência económica estrita quandoestá em causa a regulação eficiente de mercados.

No entanto, não é possível afirmar que o direitocomunitário obriga a uma harmonização dos termos

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de equivalência económica das taxas na óptica doestrito princípio da cobertura dos custos. Ora, essaharmonização violaria o princípio da subsidiariedade,já que incluiria matérias que estão fora dacompetência das instituições comunitárias. Noentanto, uma leitura atenta quer das decisões jurispru-denciais quer das directivas comunitárias revela umaoutra tendência. Assim, e só a título de exemplo, aquestão relativa aos emolumentos dos registos enotariado não teve subjacente o conceito de taxa, massim o facto de se saber que o regime nacional inte-grava ou não o conceito de “direito remuneratório”,que é substancialmente mais restrito que o conceitonacional de taxa60. Por outro lado, as diversas direc-tivas distinguem as taxas por prestação de serviços deregulação das taxas por utilização de bens do domíniopúblico, submetendo unicamente as primeiras a umprincípio de estrita cobertura de custos.

Ficou anteriormente assente que o princípio geral, noque diz respeito à definição do montante das taxas, éo da liberdade de conformação; não nos podemosesquecer que as taxas têm uma função essencialmenteredíticia. Essa função de angariação de recursospúblicos é, porém, quantitativamente formatadapelos objectivos extra-financeiros estabelecidos na leie na Constituição.

Assim, a configuração da equivalência económica quese estabelece entre a prestação do sujeito passivo e acontraprestação do Estado será necessariamente de“geometria variável”. Tal significa que a definição daprestação pecuniária do sujeito passivo dependerá emlarga medida do fundamento que legitima a exigênciada taxa.

Numa primeira aproximação, assente em padrõesgeneralistas, poderá referir-se que na ausência de qual-quer preocupação ou finalidade extra-financeira legal-mente consagrada, e uma vez que a taxa tem comoobjectivo principal a angariação de receita pública, adoutrina tem sistematicamente avançado a ideia deque não é exigível que ocorra uma equivalênciaeconómica entre as prestações dos particulares e osserviços prestados pelo Estado.

Esta característica foi especialmente salientada porAlberto Xavier, ao escrever61: “...é certo que doponto de vista económico só casualmente se veri-ficará uma equivalência precisa entre prestação econtraprestação. Entre o quantitativo da taxa e ocusto da actividade pública ou o benefício auferidopelo particular – aliás muitas vezes indeter-mináveis por não existir um mercado que ospermita exprimir objectivamente. Mas. Ao

conceito de sinalagma não importa a equivalênciaeconómica, mas a equivalência jurídica”.

É de notar que, desta forma, se desconsidera qual-quer juízo financeiro de equivalência, bastando asimples noção de contraprestação específica, emsentido estritamente jurídico.

O ponto de vista assim explicitado granjeou,também, os favores da jurisprudência do SupremoTribunal Administrativo e, por exemplo, no acórdãode 10 de Fevereiro de 198362, conclui-se: “daí que sóexista taxa quando se verifique um nexo sinalag-mático entre o pagamento do tributo pelo obrigado ea prestação da actividade pelo ente público, emboraesse carácter sinalagmático implique apenas umaequivalência ou correspondência jurídica e nãotambém económica”63.

Existem, no entanto, limites para esta liberdade dedefinição do montante quantitativo da prestação: olimite superior deverá ser necessariamente ponderadotomando em consideração o princípio da proibiçãodo excesso – se o montante for manifestamentedesproporcionada nem sequer existirá equivalênciajurídica dado o desfasamento entre a prestação parti-cular e a contraprestação pública64 -; o limite inferiordeverá atender ao conteúdo substancial da prestaçãopública que, no limite, poderá justificar o seu forne-cimento de forma gratuita quando estejam em causabens essenciais para a subsistência humana ou para avida em sociedade – limiar de sobrevivência -.

Esta liberdade (balizada) que é concedida à entidadeque tem a competência para a criação da taxa nadefinição do montante a pagar quando não existamfins extra-financeiros relevantes deverá, no entanto,respeitar integralmente o princípio da igualdade nasua vertente formal.

Porém, a definição de referenciais de proporcionali-dade é de fundamental importância mesmo nas taxascom finalidade de estrita angariação de receitapública. No entanto, quando esteja em causa aprestação de bens indivisíveis – bens públicos – abeneficiários determinados e uma vez que é impos-sível determinar quais os termos da repartição dosencargos públicos entre os diferentes beneficiários, aliberdade de definição dos termos da equivalênciaeconómica é muito ampla. Dada a impossibilidade derepartição dos custos concretos decorrentes daprestação pública será muito difícil a definição de umreferencial de proporcionalidade que fundamentequalquer juízo de equivalência económica65 66. Nolimite, e atendendo à impossibilidade de sindicânciados termos de equivalência económica devido a indi-

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visibilidade de prestação pública concreta, poderiajustificar-se a submissão destas realidades tributáriasao princípio da legalidade fiscal67.

O mesmo já não acontece quando estiverem emcausa prestações divisíveis68 (quer na óptica do custoquer na da utilidade). Nestas circunstâncias é possíveldefinir com alguma segurança os padrões de refe-rência do juízo de proporcionalidade que funda-mentam a equivalência económica. Uma contabi-lização analítica dos custos da actividade prestacionalpública ou a averiguação da utilidade económicaconcreta extraída pelo sujeito passivo no usufruto daprestação são suficientes para estabelecer essespadrões de referência, embora, como se referiu ante-riormente, exista uma ampla margem de confor-mação desses padrões se estiverem em causa unica-mente fins de angariação de receita pública.

Quando estão em causa taxas com finalidades extra-financeiras, a definição dos termos da equivalênciaeconómica são bastante mais complexas.

Os critérios para a sua aferição serão necessariamentemuito mais exigentes do que o que decorre de umasimples enunciação do princípio da proibição doexcesso.

Poderemos, a este respeito, enunciar quatro padrõespossíveis de medição da proporcionalidade, na ópticada equivalência jurídica exigida pelo artigo 5.º doRegime Geral das Taxas Locais, considerando arelevância dos fins assumidos pelo legislador69:

(1) se a taxa tiver como único fundamento a angaria-ção de receita pública, então a entidade pública temuma ampla esfera de liberdade na definição daprestação exigida, unicamente condicionada peloslimites constitucionalmente admissíveis - princípio daproibição do excesso e não transformação da taxanuma receita de tipo sancionatório -. Estamos, pois,no campo da equivalência ampla;

(2) se a taxa tiver como finalidade a prossecução deum objectivo extra-financeiro constitucionalmentetutelado, a fixação do montante da taxa dependerá daintensidade dos objectivos que se visam prosseguir;por exemplo, a protecção do ambiente, a equidadeurbanística ou a qualificação territorial poderãofundamentar a exigência de uma prestação superiorao custo administrativo da prestação pública. Nestecaso poderemos enunciar o princípio de equiva-lência funcional agravada70 ; por sua vez, as taxaspoderão ser fixadas em valores muito inferiores aoscustos administrativos, e no limite, não seremcobradas tendo em vista a promoção de finalidadessociais– estamos, pois, no campo da equivalência

funcional subsidiada71;(3) se a taxa tiver unicamente como fundamento aestrita repartição de custos de uma actividade presta-cional pública, ou a correcção de incapacidade demercado, então na óptica do princípio da eficiência eda tutela do Estado Bem-Estar, previsto na alínea d)do artigo 9.º e na alínea e) do 81.º da Constituição, omontante a fixar não poderá se afastar dos custos dosserviços prestados pelas entidades públicas(Kostendeckung) ou na utilidade ou benefício geradopara o sujeito passivo (Vorteilsausgleichs). Estamos pois,no campo da equivalência estrita72 73.

(4) finalmente, se a taxa tiver como fundamento acorrecção de incapacidade de mercado, então naóptica do princípio da eficiência e da tutela do EstadoBem-Estar, previsto na alínea d) do artigo 9.º e naalínea e) do 81.º da Constituição, o montante a fixarcorresponderá à clonagem de uma situação eficienteem sede de mercado (a situação de concorrênciaperfeita), ou seja o referencial do custo marginal ou,na inexistência de custos, a utilidade marginal média.Estamos pois, no campo da equivalência neutra oucorrectora, típica do novo regime dos “preços”locais..

Quer a equivalência ampla quer as equivalênciasfuncionais agravada e subsidiada assentam na lógicadas finanças activas. No primeiro caso, a funçãoessencial da taxa é a angariação de recursos públicos.No entanto, essa pretensão de maximização da receitapública não pode colocar em causa a bilateralidade dotributo. É nestas situações que o juízo de propor-cionalidade é mais complexo, e onde se pode geraruma maior controvérsia. O interesse público naangariação de recursos públicos colide frontalmentecom o interesse privado de minimização da cargatributária. Em caso de confrontação, a soluções sópode ser aferida jurisdicionalmente, à luz do princípioda proibição do excesso.

Na solução do caso concreto, deverão evitar-seponderações assentes na capacidade contributivasubjectiva do contribuinte (ou quaisquer outros indi-cadores indirectos simplificados, tais como o volumede negócios ou o cash-flow gerado), que no limitepoderiam originar decisões díspares para casos objec-tivamente equivalentes.

Os limites do juízo de ponderação deverão, tambémaqui, assentar no princípio da eficiência funcional dosistema tributário, atendendo aos efeitos do tributonos níveis do Bem-Estar Social, devendo evitar-se, atodo custos, situações de “excess burden” e “deadweightloss”, ou seja, perdas absolutas de Bem-Estar, já que,

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desta forma, os efeitos negativos da tributação (inlimine, o efeito de propensão para a inércia), poderãosuperar os eventuais efeitos positivos (a aplicação dorecursos públicos angariados na satisfação das neces-sidades públicas). De facto, se o sujeito deixar derealizar a actividade económica a que se propõem,não ocorre qualquer melhoria do Bem-Estar Socialpor via da iniciativa privada, nem será angariada arespectiva receita pública

Finalmente, na legislação nacional, as vinculaçõeslegais directas a um princípio de estrita cobertura decustos são praticamente inexistentes74. No entanto, talnão significa que o Estado esteja desvinculado do seucumprimento em determinadas situações concretas.O caso mais evidente é o das taxas reguladoras. Se aoEstado compete efectuar uma gestão eficiente domercado, então o custo da regulação e supervisão nãopode ser superior ao aumento do Bem-Estar Socialque advém de tal função. Nessa óptica, e na inexis-tência de falhas de mercado (que podem e devem sercorrigidas através da política tributária), o custoespecífico e efectivo da actividade constitui-se comolimite quantitativo de tributação. Se for cobrado ummontante adicional, então o Estado está a introduzirilegitimamente no mercado custos adicionais quereduzirão, inevitavelmente, os padrões de Bem-EstarSocial, violando inapelavelmente o ordenamentoconstitucional (cfr, alínea d) do artigo 9.º e alíneas a)e b) do artigo 81.º).

Porém, ao existirem falhas de mercado relevantes(maxime exterioridades negativas ou existência demonopólios naturais), os organismos públicosdeverão obrigatoriamente proceder à sua correcção,corrigindo o mercado distorcido. Este é o funda-mento da regulação activa de mercados, e que servede fundamentação à equivalência neutra ou correc-tora, e que se corporiza na criação, através do Estado,de condições de mercado que se aproximem do para-digma da concorrência perfeita. (v.g., taxa por reali-zação, manutenção ou reforço de infra-estruturasurbanísticas– óptica dos custos -, taxa por utilizaçãodo espectro radioeléctrico75 ou de recursos hídricosou de subsolo – óptica da utilidade).

No entanto, os casos mais dramáticos de desvirtua-mento tributário ocorrem no âmbito das taxasurbanísticas. Atendendo às funções do Estado naactividade urbanística, bem como à estrutura dosistema tributário aplicável, deveremos necessaria-mente concluir que uma taxa com a configuração da“Taxa Municipal de Urbanização” terá que respeitarum modelo estrito de equivalência económica, alémda necessária equivalência jurídica. No entanto, os

tribunais têm julgado sucessivamente pela desnecessi-dade dessa equivalência estrita, apelando a conceitosduvidosos tais como a equivalência virtual ou mera-mente potencial. Ora, essas práticas autárquicas,confirmadas pelas decisões jurisprudenciais, têmcontribuído para a desregulação do mercado imobi-liário. Efectivamente, os municípios cobram taxassem qualquer possibilidade de realização decontraprestação (as infra-estruturas são necessaria-mente construídas pelos promotores), adquirindouma tal dependência dessa receita que os imperativosde ordenamento eficiente do território são substi-tuídos pela necessidade de angariação maximalista derecursos financeiros, formalizando-se uma aliançaentre promotores/reguladores. O caso maisdramático é mesmo o das denominadas “Taxas deCompensação Urbanística” que, tendo uma finali-dade perequativa, ou seja, directamente redistributivana óptica das opções de planeamento urbanístico, são,porém, utilizadas como fonte de angariação derecursos gerais tendo em vista a satisfação das neces-sidades de toda a colectividade.

Esta nova perspectiva de equivalência jurídico-económica das taxas é de urgente implantação porparte das instâncias jurisdicionais. Só assim se criarãocondições para o desenvolvimento sustentado,aumentando o nível de exigência dos sistemascontabilísticos, e promovendo-se uma gestão porobjectivos susceptível de medição. A taxa não é,portanto, um “preço” ou um “imposto”, é, sim, umdos mais importantes instrumentos do Estado naangariação de recursos públicos e na regulaçãoeficiente dos diversos mercados.

Notas

1- Qualquer intenção de repercussão desta subsidiação deinteresse geral nos restantes utilizadores do bem poderá darorigem a um “imposto” redistributivo, o que é, em princípio,proibido nos termos constitucionais. De facto, só em circuns-tâncias excepcionais se poderá tolerar este tipo de “subsidia-ção cruzada”, nomeadamente, quando estivermos na presençade exterioridades ou outras falhas de mercado.2- Portugal constitui um caso paradigmático. Nos últimosanos, a contribuição da tributação sobre o trabalho depen-dente aumentou exponencialmente face aos outros rendi-mentos. Concomitantemente, o nível de tributação sobre apropriedade imobiliária tem aumentado sucessivamente,sendo esse, aliás, o único resultado financeiro da denominada“Reforma da Tributação sobre o Património”. Relativamente aeste último aspecto, a situação aproxima-se da total insus-tentabilidade à medida que as isenções em sede de ImpostoMunicipal de Imóveis forem terminando no tempo.Relativamente à tributação do consumo, o aumento da taxa deIVA em 2%+2% constitui o mais acabado exemplo de medidatributária regressiva.3- É previsível, em primeira linha, o ressurgir da tributação do

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património, a que já vamos assistindo nos países mais desen-volvidos da Europa e em muitos Estados norte-americanos.Também em Portugal já se vislumbrou essa tendência com aproposta de tributação unitária do património, proposta porMedina Carreira (Proposta de Reforma da Tributação do Património,Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal n.º 182, CEF, 1999),assente, num primeiro momento, na racionalização do regimeda contribuição autárquica, num segundo, na articulação comeste de um imposto sobre sucessões e doações (injustificada-mente desaparecido), e num terceiro momento uma tributaçãoglobal e unitária do património. A delimitação de um novoconceito estratégico nacional, em que se localize Portugal nomundo conforme os seus objectivos, interesses e valores, éuma das nossas prioridades fundamentais actuais, e daídeverão extrair-se consequências do domínio das mais diversaspolíticas externas extra-europeias. E uma dessas áreas comconsequências importantes, porque dela depende toda a movi-mentação de capitais e dos outros factores de produção e a sualocalização no espaço mundial (concorrência fiscal), é a que serefere aos regimes tributários em geral (tanto internos comointernacionais) e, sobretudo, os regimes tributários dos capitais(comparação dos regimes nacionais; normas nacionais unila-terais; acordos de dupla tributação e de luta contra a evasão dafraude; cooperação entre administrações no domínio da super-visão, controlo, fiscalização e repressão).4- Para a resolução destas questões basilares, existem doisdiferentes posicionamentos: a perspectiva radical, que aban-dona totalmente as estruturas actuais de tributação do rendi-mento ou do consumo, propondo novos impostos ou taxascomo a Bit Tax, a Transaction Tax (imposto sobre as transfe-rências electrónicas de fundos), a Telecom´s Tax (taxa adicionalàs facturas de serviços de telecomunicações), ou a PC Tax(exigida na aquisição ou registo do computador); a outraperspectiva é denominada como sendo conservadora, adap-tando os anteriores conceitos às novas realidades - esta é aperspectiva adoptada pelos principais Governos e pelaOCDE. Ambas as propostas faliram. A primeira por devido àinexistência de um acordo político global relativamente àmatéria. A segunda devido à total inadequação dos métodosantigos para a tributação de novas realidades. De facto, a terri-torialidade (ou pretensa territorialidade, pois o melhor termoseria a universalidade), adquire nesta sede uma importânciafundamental. Nestes termos, a noção de residência fiscal, depessoas físicas e colectivas deverá ser redefinida. O mesmo sepassa com a noção de local de entrega ou de consumo. Urge,de novo, repensar as ancestrais opções de tributação na origemou no destino. Pelo exposto, importa reformular todo oconceito de territorialidade. A situação geográfica do sujeitopassivo já não importa. De facto, a prestação do serviço podeser efectuada através de um servidor de acesso situado emqualquer parte do mundo, com acesso directo por parte desujeitos, independentemente da sua situação geográfica. Oposicionamento destes servidores em paraísos fiscais nãooferece qualquer problema. Neste campo, a redefinição doconceito de estabelecimento estável é paradigmática. O localdo servidor é um critério falível. Será que se deverá abandonaro conceito de estabelecimento estável adoptando-se umaperspectiva radical de tributação na residência? Tal procedi-mento teria a vantagem de clarificar radicalmente o esquemade imputação de rendimento, abandonando o conceito detributação na fonte para tributação exclusiva na residência, emanalogia ao disposto ao artigo 8.º da Convenção modelo daOCDE, relativo aos rendimentos provenientes de actividadesaéreas e marítimas internacionais. Porém, tal perspectiva temigualmente desvantagens: origina desigualdades na tributaçãorelativamente a serviços prestados por residentes e não resi-

dentes, promovendo um incremento de receita para o Estadoexportador sem compensação directa ao Estado onde se situaa fonte do rendimento. Obviamente, que esta questão poderiaser resolvida com a imposição de uma retenção na fonte noEstado fonte, com o consequente atribuição de um créditofiscal a utilizar no país da residência. A única solução paraevitar esta confrontação é a definição de um conceito de esta-belecimento estável virtual em contraposição à centenáriadefinição de estabelecimento estável físico. Estes são,somente, alguns dos exemplos possíveis de enunciar a estetítulo.5- Foram estas as soluções que basearam a arquitectura doúltimo movimento de harmonização fiscal comunitária datributação directa, v.g.. as Directivas de Tributação daPoupança e dos Juros e Royalties. No entanto, a sua géneseencontra-se na Directiva Fusões e na Directiva Mães-Filhas. É,portanto, natural, a enorme erosão fiscal que se tem sentidonos Estados importadores de capital, sendo Portugal, maisuma vez, um (mau) exemplo.6- Basta analisar as medidas contidas no Código de Condutapara constatar esta realidade. Os Centros de CoordenaçãoBelgas são um bom exemplo. Um bom exemplo de estratégiafiscal nacional é igualmente a iniciativa do governo espanholno sentido da criação de um enquadramento favorável aocomércio electrónico, propondo para o efeito um enquadra-mento fiscal favorável.7- Igualdade aparente, dado que um dos aspectos essenciais daigualdade em sentido material, traduzida na função de redis-tribuição económica a cargo do Estado, exercida através dasfiguras tributárias disponíveis, poderá ser posta em causa nocaso de se entender a taxa como sustentação integral do custodo serviço, em sentido amplo. As ponderações de eficiênciadeverão sempre englobar a redistribuição económica, que é,indiscutivelmente, uma condição necessária para o aumentodo Bem Estar Social da colectividade.8- De acordo com a teoria financeira clássica, as utilidadespúblicas deveriam ser pagas pelos contribuintes presentes enão pelos contribuintes futuros. Note-se que, de acordo coma doutrina financeira actual, o Estado poderá endividar-se paraproceder à construção da utilidade, e depois poderá recuperaro seu investimento através da imposição de taxas. Esta lógicaé totalmente distinta dos mandamentos da doutrina clássica,que advogava um total impedimento do recurso ao créditopúblico, logo à construção de utilidades duradouras comrecurso a receitas não efectivas, dado que tal originaria uminevitável abuso do recurso a esse tipo de receitas. Esse afas-tamento liminar das receitas credíticias como meio de financia-mento do Estado derivava do entendimento segundo o qual,ao permitir-se o seu recurso, o decisor financeiro iria inevi-tavelmente abusar dessa possibilidade. A explicação para esteabuso é simples, e assenta numa lógica de legitimação dopróprio decisor financeiro (o governante): de facto, e segundoos ditames mais básicos da teoria da escolha pública, o que ogovernante pretende é aumentar a sua legitimidade perante osgovernados (eleitores) de forma a estender o seu poder. Ora,a sua legitimidade depende do nível de popularidade. Essapopularidade depende essencialmente dos dois factores essen-ciais no processo de decisão financeira: (1) o fornecimento deutilidades públicas para a satisfação das necessidades públicas;(2) o nível de desutilidade privada (cobrança de impostos)provocada para a sustentação da acção pública. O decisor serátanto mais popular quanto maior for o número de utilidadespúblicas fornecidas e quanto menor for a desutilidade privadaprovocada. Ora, o recurso indiscriminado ao crédito públicooriginaria uma tentação grande demais á qual nenhum decisorresistiria: ele poderia fornecer utilidades num momento

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presente, sem ter que provocar qualquer desutilidade para arealização dessa utilidade nesse mesmo momento. A sua popu-laridade subiria exponencialmente... Por outro lado, o controloparlamentar também não seria eficiente, dado que os represen-tantes do povo nunca trocariam um evento certo no presente(a realização da utilidade) por um evento incerto no futuro (arealização da mesma utilidade quanto as receitas efectivasfossem suficientes). Ora, de acordo com a doutrina clássica,esta tendência inevitável traria consequências eticamentereprováveis dado que seriam as gerações futuras a pagar asutilidades fornecidas às gerações presentes (os filhos pagariamas despesas dos pais). Cfr., sobre esta assunto, Eduardo PazFerreira, Da Dívida Pública e das Garantias dos Credores do Estado,Almedina, 1995.9- Tomando como base os argumentos da doutrina clássica,que afirmava que seria eticamente reprovável a transposiçãode encargos presentes para as gerações futuras, a modernadoutrina responde nos seguintes termos: porque é que terãode ser as gerações presentes a ter que sustentar com osencargos de utilidades que só serão gozadas pelas geraçõesfuturas? Numa lógica assente na justiça distributiva, será legí-timo que cada um contribua tendo em consideração o bene-fício que retira da utilidade fornecida.10- São, por exemplo, os esquemas possibilitaram aconstrução da Ponte Vasco da Gama, das novas auto-estradase dos novos hospitais.11- O equilíbrio das posições públicas e privadas é inevitavel-mente colocado em causa quer nos projectos desenvolvidosatravés de Parcerias Públicas e Privadas quer nos projectosdesenvolvidos em project finance. Essa situação é constatadapela própria Comissão Europeia que vê nestas operações apossibilidade do Estado proceder a uma subsidiaçãoencapotada dos seus parceiros privados. Este facto, já anali-sado por diversas vezes nas concessões tradicionais, e quesuscitou, por exemplo, a aprovação da legislação comunitáriarelativa à transparência das relações financeiras entre osEstados-membros e as empresas públicas, bem como atransparência financeira relativamente a certas empresas(Directiva n.º 80/723/CEE, de 29 de Julho, alterada pelaDirectiva n.º 93/84/CEE, de 30 de Setembro e pela Directivan.º 2000/52/CE, de 26 de Julho), que não sendo directamenteaplicável a estas operações de per si, contém uma linha deorientação bastante restrita em sede concorrencial. Porém, emnosso entender, a questão essencial não resulta do eventualfavorecimento consciente do parceiro privado, mas sim deuma eventual situação de desigualdade posicional, em que osinteresses do parceiro privado se sobrepõem aos interesses doparceiro público. Esta sobreposição que resulta da diferençade posicionamento negocial para o desenvolvimento donegócio é facilmente explicável através da teoria da escolhapública. O parceiro privado tem como único interesse o lucrofinanceiro. O seu investimento tem como objectivo a prosse-cução de uma remuneração que justifique a aplicação do seucapital. Ora, o parceiro público não só se encontra numaposição desfavorável uma vez que não dispõe dos meios finan-ceiros, como o seu objectivo também não será o lucro, massim o desenvolvimento de uma actividade que visa a satisfaçãode uma necessidade pública. Sendo as operações referidaseminentemente financeiras, o parceiro público vir-se-á numasituação esquizofrénica: sendo uma operação financeira deverávisar o lucro (que é o que o seu parceiro privado pretende), noentanto, sendo uma entidade pública terá como objectivo asatisfação da necessidade pública, subalternizando o aspectolucrativo. Estas tendências divergentes (já profusamente enun-ciadas relativamente à vocação empresarial do Estado e à justi-ficação da existência de um Sector Empresarial do Estado) são

mais evidentes numa relação micro-económica assente numprojecto específico com um parceiro privado que defendeintransigentemente a sua posição. Além destes factores deordem genética, contribuirão ainda para o enfraquecimento daposição do parceiro público os seguintes factos: (1) tem menosrecursos técnicos que o parceiro privado que por definição éespecializado na área do investimento (o que originadistorções significativas ao nível dos elementos previsionaisinvariavelmente em desfavor do parceiro público, e, nummomento posterior, impossibilitará este de exercer valida-mente a sua posição num eventual contencioso); (2) o procedi-mento de decisão administrativa (e política) é mais pesado queo procedimento de decisão empresarial privado, o que permiteao parceiro privado uma melhor adaptação ao procedimentopré-negocial (para não falar da desresponsabilização políticaque decorre da rotatividade democrática: o decisor que adju-dica não é o decisor que paga…); (3) os recursos financeirospúblicos são insuficientes, pelo que o equilíbrio financeiro doprojecto depende quase totalmente dos recursos privados.12- As distorções em sede de Bem-Estar Social decorrentesdas análises estritamente financeiras são evidentes. Porexemplo, se dois Directores-Gerais tiverem 1000 unidadesmonetárias de orçamento e forem instados a reduzir as suasdespesas, o Director-Geral A que reduziu o seu orçamentopara 800 unidades monetárias e produziu 500 unidades deserviço público é, na óptica estritamente economicista, superi-ormente avaliado face ao Director-Geral B que não reduziu oseu orçamento, gastando as 1000 unidades monetárias masque produziu 2000 unidades de serviço público, e que é, faceao primeiro, muito superior em sede de eficiência. Assim,antes de se falar em reduzir despesa pública tem de se analisaros níveis actuais de eficiência na prossecução das necessidadespúblicas; antes de se falar em reduzir os funcionários públicoshaverá que analisar os índices de produtividade não só dosfuncionários individualmente considerados mas, principal-mente, de todos os departamentos públicos.13- Cfr. António de Sousa Franco, Finanças Públicas e DireitoFinanceiro, Vol. I, pág. 301 e Vol. II págs. 58 a 61.14- Cfr. António de Sousa Franco, Finanças Públicas e DireitoFinanceiro, Vol. II, cit., pág. 58. Sobre os deveres fundamentaise sua relação com o “Estado Fiscal” cfr. José Casalta Nabais,O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Coimbra, Almedina,1998, págs. 185 a 221.15- Cfr. António de Sousa Franco, Finanças Públicas e DireitoFinanceiro, Vol. I, cit., págs. 3 a 6, e págs. 11 e segs.16- Não resultam do exercício de poderes de autoridade asreceitas patrimoniais nem as receitas creditícias, embora estasúltimas, tal como as primeiras, possam ter alguns aspectos doseu regime moldados por normas de direito público. Cfr.António de Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito Financeiro,Vol. I, cit., págs. 300 a 301, e Vol. II, cit., págs. 51 a 57 e 80 a128.17- Sobre o princípio da constitucionalidade cfr. GomesCanotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 4.ª ed.,Coimbra, Almedina, 2000, págs. 245 a 248. Sobre o princípioda legalidade em geral cfr. Gomes Canotilho, ob. cit., págs. 255e 256 e 701 a 724. Sobre o princípio da legalidade como funda-mento e limite das receitas públicas cfr. António de SousaFranco, Finanças Públicas e Direito Financeiro, Vol. II, cit.,págs. 48 e 49.18- Cfr. Sobre o princípio do Estado de Direito e suas impli-cações cfr. Gomes Canotilho, ob. cit., págs. 243 a 279.19- Cfr. António de Sousa Franco, Finanças Públicas e DireitoFinanceiro, Vol. II, cit., pág. 58.20- Cfr. António de Sousa Franco, Finanças Públicas e DireitoFinanceiro, Vol. II, cit., pág. 59.

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21- Ob. cit., pág. 245.22- Cfr. Gomes Canotilho, ob. cit., págs. 416 a 422.23- Cfr. António de Sousa Franco e Sérgio Gonçalves doCabo, “O Financiamento da Regulação e Supervisão doMercado de Valores Mobiliários” in: Estudos em Homenagem aoProfessor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Vol. V, Almedina, 2003,págs. 425 e segs.24- Note-se que a noção constitucional de sistema fiscal(contida no n.º 1 do artigo 103.º da Constituição) é uma noçãofuncional ou finalística, cuja razão de ser abrange todas asespécies tributárias na medida em que as mesmas possam serobjecto de uma consideração integrada face aos resultadosconstitucionalmente desejados: a satisfação das necessidadesfinanceiras do Estado e de outras entidades públicas e a repar-tição justa do rendimento e da riqueza. Atente-se aliás em que“a satisfação das necessidades financeiras do Estado e deoutras entidades públicas” corresponde ao fim imediato detodas e quaisquer receitas coactivas (tributos). Cfr. AlbertoXavier, Manual de Direito Fiscal, Lisboa, 1974, págs. 35 a 55.25- Cfr. António de Sousa Franco e Sérgio Gonçalves doCabo, “O Financiamento da Regulação e Supervisão doMercado de Valores Mobiliários”, cit., págs. 425 e segs.26- As preocupações de redistribuição não invalidam estaconstatação básica, já que a utilidade marginal do consumo deuma prestação pública de assistência por parte de um cidadãomais desfavorecido é em muito superior ao custo marginal detributação do montante equivalente a um cidadão mais favore-cido. Pelo exposto, a redistribuição económica aumenta osníveis de Bem-Estar Social. Cfr. Nazaré Cabral, A RedistribuiçãoEconómica, AAFDL, 2002.27- Quer na perspectiva quantitativa (maior quantidade debens produzidos) quer na perspectiva qualitativa (melhor quali-dade de bens produzidos). No entanto, na perspectiva qualita-tiva, o Estado tem optado por regular a actividade prestativaprivada, estabelecendo obrigações de “interesse económicogeral” ou de “serviço universal”, visando a boa satisfação dasnecessidades dos seus cidadãos, de acordo com padrões dequalidade ou imperativos éticos. Cfr. Eduardo Paz Ferreira,Direito Económico, AAFDL, 2003.28- É esta a justificação para o movimento de privatizaçãoeconómica, quer dos mercados quer das empresas.Efectivamente, se o mercado é eficiente na satisfação de umdeterminado tipo de necessidades dos cidadãos não caberá aoEstado arrogar-se a essa função. No limite, se a iniciativaprivada e a iniciativa pública forem capazes de satisfazer anecessidade com igual nível de eficiência, deverá deixar-se essafunção à iniciativa privada pois da canalização dos recursosfinanceiros para a unidade pública de prestação da utilidaderesultariam encargos administrativos significativos (os custosadministrativos de cobrança de tributos).29- António de Sousa Franco apresenta como causas de inca-pacidade de mercado a existência de bens públicos (benscolectivos, na sua terminologia), os custos decrescentes e oefeito de monopólio, a ocorrência de exterioridades e aexistência de incerteza e risco na actividade económica. Cfr.António de Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito Financeiro,Vol. I, cit., págs. 25 a 33.30- Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição daRepública Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, CoimbraEditora, 1993, pág. 457.31- Cfr. Nuno Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, II Vol., CEF,2002, págs. 185 a 187.32- Cfr. Augusto Fantozzi, Diritto Tributario, Torino, UTET,1994, págs. 53-56; F. Javier Martin Fernandez, Tasas y PreciosPublicos en el Decrecho Español, Madrid, Marcial Pons, 1995, ;Louis Trotabas, Jean-Marie Cotteret, Droit Fiscal, 7e éd., Paris,

Dalloz, 1992, págs. 17 e 18; Tipke/Lang, Steuerrecht, 15 Aufl.,Köln, O. Schmidt, 1996, págs. 48 a 49; Heinrich WilhelmKruse, Lehrbuch des Steuerrechts, I, München, Beck, 1991, págs.40 a 41.33- Cfr. Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, 2.ª edição,Coimbra, 1972, págs. 11 e 12.34- Cfr. Alberto Xavier, Manual, cit., pág. 44.35- No limite, e quando estiverem em causa prestações essen-ciais (saúde, segurança, administração da justiça, educação,assistência social), poderá assentar-se a prestação pública empadrões de gratuitidade.36- Sobre o Estado Social de Direito, cfr. Marcelo Rebelo deSousa, Direito Constitucional I, págs. 297 e ss. e Jorge Miranda,Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, Tomo I, 5ª ed.,1996, págs. 94 e 95.37- Em determinados casos, a taxa poderá constituir o meca-nismo eficiente de regulação do mercado, fixando o quantita-tivo da prestação na lógica mais aproximada possível ao demercado de concorrência perfeita (custo ou utilidademarginal), nomeadamente nos casos em que as infra-estru-turas relativamente às quais se pretende tributar a utilização seapresentam como monopólios naturais, ou, no caso das taxasurbanísticas (eliminando-se, por via autoritária, os custos deuma negociação colectiva multilateral), ou quando esteja emcausa o fornecimento de bens públicos ou semi-públicos.38- Nuns casos entender-se-á que é conveniente não dissuadiros cidadãos de utilizarem o serviço: (serviços de polícia,sanitários, etc.); nestes casos tender-se-á, quando taxa exista, amanter o seu custo a nível muito baixo, no fito de evitar quese renuncie ou fuja ao uso do serviço. Noutros casos, porém,pretender-se-á dissuadir o contribuinte de um uso precipitadoou imoderado do serviço - é o que sucede, com variantesconsoante os países, com os serviços judiciais: as taxas respec-tivas (custas) dão elevado rendimento, não tanto por razõesfinanceiras, como para evitar o recurso precipitado ouquereloso aos tribunais.39- Assim, tal como resulta do artigo 7.º da Lei GeralTributária, as taxas podem ser orientadas, quer na sua estru-tura, quer no seu montante, quer por objectivos de favoreci-mento do emprego, da poupança e do investimento social-mente relevante; quer por objectivos de competitividade einternacionalização da economia portuguesa e, em geral, porfinalidades económicas, sociais, ambientais ou outras. Comodemonstram António de Sousa Franco e Sérgio Gonçalves doCabo, (in ob. cit) a jurisprudência mais recente doBundesverfassungs-Gericht tem vindo a reconhecer a admissi-bilidade constitucional de taxas orientadoras de comporta-mentos (Lenkungsgebühren), nomeadamente tendo comoprincípio legitimador a protecção do ambiente (Umweltschutz),com fundamento no princípio do interesse geral ou bemcomum (Gemeinwohlprinzip). Assim, embora a taxa continue ater como elemento distintivo essencial face ao imposto a suaestrutura bilateral ou sinalagmática, como há muito vem sendoreconhecido entre nós pela jurisprudência do SupremoTribunal Administrativo e do Tribunal Constitucional, oprincípio da equivalência que, em Portugal, sempre foi enten-dido como equivalência jurídica, à luz do princípio da propor-cionalidade, não pode deixar de ser permeável a objectivos denatureza extra-financeira, desde que adequadamente legiti-mados pela Constituição e pela lei.40- António de Sousa Franco e Sérgio Gonçalves do Caboadmitem que as taxas podem assumir funções extra-finan-ceiras legitimadoras de distorções ao princípio da propor-cionalidade, conquanto tais distorções se mantenham dentrode limites constitucionalmente admissíveis, isto é, não trans-formem a taxa numa receita de tipo sancionatório, e respeitam

O Novo Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais - Carlos Lobo

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o que classificam por proporcionalidade das distorções àproporcionalidade estrita. Isto é, as distorções ao princípio daproporcionalidade sempre terão que se conter dentro dasexigências próprias do princípio legitimador de tais distorções.Por exemplo, se o fundamento é a protecção do ambientehaverá limitar as distorções ao estritamente necessário paraatingir a função extra-financeira da taxa sem, no entanto, sacri-ficar os seus fundamentos e modos de legitimação. Assim,referem que “pela doutrina constitucional em matéria de apli-cação do princípio da proporcionalidade em sentido amplo(Übermaßverbot), divisando nele os sub-princípios da conformi-dade ou adequação de meios (Geeignetheit), que exige eficáciaou susceptibilidade dos meios para atingir os fins (a taxa teráque ser um meio adequado, em abstracto, para atingir o fimextra-financeiro), da exigibilidade ou da necessidade(Erforderlichkeit), que implica a limitação, em concreto, dossacrifícios ou desvantagens que a sua adopção implica (a taxaterá que corresponder, em concreto, à «menor ingerênciapossível» para atingir o fim extra-financeiro), e da propor-cionalidade em sentido restrito (Verhältnismaßigkeit) queimporta uma ponderação dos custos e benefícios face aoobjectivo constitucional ou legalmente legitimado que sepretende atingir (a taxa terá que conter uma justa ponderaçãoda «carga coactiva» que lhe é inerente)”. Cfr. António de SousaFranco e Sérgio Gonçalves do Cabo, “O Financiamento daRegulação e Supervisão do Mercado de Valores Mobiliários”,cit..págs. 425 e segs..41- Assim, se o Estado pretender fornecer bens semi-públicos(por exemplo, ensino universitário, serviços de transporteferroviário ou rodoviário, serviços de saúde, entre outros)poderá exigir aos particulares um montante inferior ao custoda prestação pública. As utilidades criadas são concretas edeterminadas e o utilizador é identificado – logo susceptíveisde serem fornecidas numa lógica de mercado -, no entanto, odecisor político decidiu, tendo em consideração os constrangi-mentos constitucionais, num outro sentido, optando porfornecer esses bens a um custo inferior ao custo real, o queimplica uma subsidiação do consumo dessas utilidades atravésda canalização de recursos provenientes dos impostos.42- É o caso da “taxa de radiodifusão” objecto de inúmerosarestos do Tribunal Constitucional (cfr., por último, o acórdãon.º 354/98, de 12/5/1998), das “quotas dos sócioscontribuintes para as casa do Povo” (Acórdãos n.ºs 82/84 e372/89) e das “contribuições de empregadores para aSegurança Social” (Acórdãos n.ºs 363/92 e 1203/96). Foi ocaso das taxas cobradas pelos antigos organismos de coorde-nação económica, v. g. as “taxas de peste suína, dos rumi-nantes e de comercialização” (Acórdãos do TribunalConstitucional n.ºs 369/99, 370/99, 473/99 e 96/2000 e doSTA de 13/12/2000, 2.ª secção, proc.º n.º 24931; de17/3/1999, 2.ª secção, proc.º n.º 18836, de 13/1/1999, 2.ªsecção, proc.º n.º 20259, de 7/10/1998, 2.ª secção, proc.º n.º20989), as “taxas do Instituto dos Produtos Florestais”,primeiro consideradas conformes à Constituição (cfr. Acórdãodo STA de 12/12/1990, 2.ª secção, proc.º n.º 12002) e depoisjulgadas inconstitucionais (Acórdão do TribunalConstitucional n.º 248/93, de 18/3/1993 e Acórdão do STAde 22/2/1996, 2.ª secção, proc.º n.º 13577), as “taxas a favordo Instituto do Azeite e Produtos Oleaginosos” (Acórdãos doSTA de 18/12/1986, 1.ª subsecção, proc.º n.º 21140; de28/19/1986, pleno da secção, proc.º n.º 17965; de 24/7/1985,2.ª secção, proc.º n.º 3231; de 28/3/1985, 2.ª subsecção, proc.ºn.º 21202), e as “taxas a favor da Comissão Reguladora dosProdutos Químicos e Farmacêuticos” (Acórdãos do STA de22/7/1986, 2.ª subsecção, proc.º n.º 19997; de 21/3/1985, 1.ªsubsecção, proc.º n.º 21227). Cfr. Eduardo Paz Ferreira, ob. cit..

43- É aqui especialmente relevante o universo de taxas criadopelas autarquias locais cujo controlo de constitucionalidade ede legalidade tem dado origem a uma abundantíssimajurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e doTribunal Constitucional, de que se citam, a título de exemplo,as “taxas de reposição de pavimentos” (Acórdão do STA de21/6/2000, 2.ª secção, proc.º n.º 23279), as “taxas pela reali-zação de infra-estruturas urbanísticas” (Acórdão do TribunalConstitucional n.º 410/2000, de 3/10/2000, proc.º n.º364/99), as “taxas pela instalação de publicidade em prédiosurbanos” (Acórdão do STA de 29/3/2000, 2.ª secção, proc.ºn.º 20227 e Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 32/99, de12/1/2000, proc.º n.º 104/99 e 63/99, de 2/2/1999, proc.º n.º513/97) “taxas pela publicidade em veículos” (Acórdão doSTA de 19/5/1999, 2.ª secção, proc.º n.º 22564 e Acórdão doSTA de 20/1/1999, 2.ª secção, proc.º n.º 21005), “taxas pelaocupação da via pública” (Acórdão do Tribunal Constitucionaln.º 515/2000, de 29/11/2000, proc.º n.º 46/2000) e as “taxaspela ligação dos prédios à rede geral de esgotos” (Acórdão doSTA de 24/2/1988, 2.ª secção, proc.º n.º 4778). Sobre isto cfr.Saldanha Sanches, Poderes Tributários dos Municípios e LegislaçãoOrdinária, Fiscalidade, Abril 2001, págs. 117-133. Cfr. EduardoPaz Ferreira, ob. cit..44- Particular destaque assumiu na época a interessantedisputa entre Giannini e Berliri, relativamente à temática doeventual carácter obrigatório da taxa descrita por EduardoPaz Ferreira, (in “Ainda a Propósito da Distinção entreImpostos e Taxas: O caso da Taxa Municipal devida PelaRealização de Infra-Estruturas Urbanísticas”, cit., págs. 65 esegs.). Para Giannini, a taxa consistia na “prestação pecuniáriadevida a um ente público, em virtude de uma norma legal, e namedida em que esta o estabeleça, para a realização de umaactividade do próprio ente que afecte de modo particular oobrigado” (A.D. Giannini, Istituzioni di Diritto Tributario, 5.ªed,Milão, (1951), págs. 50 e segs. Esta noção foi contestada porBerliri, para quem a taxa deveria enquadrar-se num âmbitoconceptual mais amplo e geral baseado na carga impositiva,contestando a validade da caracterização assente na naturezaobrigatório do tributo (Berliri, Principi di Diritto Tributario I,Giuffré, Milão, 1952.). Deste modo, define a taxa como sendo“a prestação espontânea de dar ou fazer que tem por objectouma soma em dinheiro, (...), e que constitui uma condiçãonecessária para conseguir um determinado benefício, a qualnão poderá ser restituída após a obtenção desse benefício”.Para este autor, aquilo que separa o imposto da taxa é a circuns-tância de o primeiro ser uma obrigação legal, enquanto que asegunda resulta de um mero acto de vontade do particular, quese coloca voluntariamente na situação de lhe ser exigida umataxa. Adoptando-se esta posição, aceitava-se a partir daí, que ataxa resultava de um acordo de vontades entre o sujeitopúblico e o sujeito privado, assimilando-se, em termos deregime, aos preços. A esta tomada de posição, Giannini reagiuimediatamente, sustentando que “o imposto e a taxa têm (...) amesma natureza jurídica. Ambos estão na origem de uma obri-gação ex lege, a qual surge logo que se verifica o pressuposto defacto ao qual a lei liga e têm por objecto a prestação de umasoma de dinheiro na quantia inderrogavelmente fixada pelaprópria lei”. Passados alguns anos, Berliri reconsiderou a suaposição, moderando-a, e passou a definir a taxa como sendo“uma obrigação jurídica de direito público de conteúdo obri-gatório que nasce da lei (acto normativo) em relação com aprestação de um serviço público ou ao desfrute de um bempertencente ao domínio ou ao património indisponível de umente público” (Berliri, Corso Istituzionale di Diritto Tributario, I,Giuffré, Milão, 1965, pág. 84. Também, na edição de 1972 dePrincipi di Diritto Tributario II, Giuffré, Milão, pág. 160).Ponto

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comum a todas as posições doutrinárias é a referência à taxacomo uma remuneração ligada a uma contraprestação, inde-pendentemente do facto da relevância, ou não, do acto devontade do sujeito de se colocar no âmbito da sua área deincidência. Cfr. Eduardo Paz Ferreira, ob. cit, págs. 75 e segs.)45- Não consideramos que o terceiro tipo de taxa enunciadona Lei Geral Tributária - a remoção de um obstáculo jurídicoà actividade de um sujeito (vulgarmente denominada comolicença, ou mais precisamente, como a prestação pecuniáriaexigida pela emissão da licença enquanto acto administrativo)-mereça ser considerado como autónomo, já que se reconduztipicamente a uma taxa por prestação de serviços. No entanto,se o obstáculo imposto pelo ordenamento jurídico foi “artifi-cial”, como no caso dos “monopólios fiscais” teremos umverdadeiro imposto.46- Não contende com a necessária equivalência jurídica ofacto da satisfação proporcionada pela prestação públicapoder ser futura. Com efeito, no mesmo Acórdão n° 76/88 doTribunal Constitucional, admitiu-se que o facto de a taxa emapreciação se destinar a financiar um “novo sistema inter-ceptor de esgotos», que ainda se não encontrava em funciona-mento, não era relevante, na medida em que se iria reforçar umsistema já existente; no mesmo sentido avançou, aliás, oAcórdão n° 452/87, de 9 de Dezembro (In: Acórdãos doTribunal Constitucional, 10.º volume, págs. 169 e segs.) que, aoapreciar as taxas de registo e licenciamento de cães, expressa-mente admitiu a constitucionalidade do artigo 18.° doDecreto-Lei n.° 317/85, que obrigou a que as receitas delasprovenientes fossem afectas às despesas inerentes à profilaxiada raiva, designadamente a construção de canis e das estru-turas necessárias ao efectivo controlo da população canina efelina. Da mesma forma, entendeu o Supremo TribunalAdministrativo (Acórdãos de 15 de Outubro de 1969, 17 deDezembro de 1969 e 18 de Junho de 1971) (Respectivamentein: Acórdãos Doutrinais, ano X, n° 98. págs. 238 e segs.; ano IXn.° 100, págs. 513 e segs. e ano X, n° 119) págs. 1617 e segs.)que a contrapartida pelo pagamento da taxa pode consistirapenas no funcionamento de um serviço de fiscalização quepoderá actuar no futuro. No entanto, se essa prestação futurafor meramente eventual, ou, se por qualquer circunstância elase tornar virtualmente impossível, então o nexo de bilaterali-dade fica inequivocamente fracturado.47- Cfr. Carlos Baptista Lobo, A Tributação do Urbanismo, no prelo.48- Só assim se justificam os poderes de determinação dastaxas do imposto pelas Assembleias Municipais. Ummunicípio que pretenda fornecer e manter infra-estruturasgerais de boa qualidade deverá aplicar uma taxa superior. Pelocontrário, um município que pretenda manter a taxa maisreduzida não poderá prestar o mesmo tipo de utilidades.49- O IMT, constituindo-se como um imposto sobre a trans-missão da propriedade imobiliária não tem qualquer funçãourbanística relevante. Pelo contrário, os seus efeitos sãonefastos já que insere padrões de rigidez adicional ao mercadoimobiliário, sendo unicamente justificável se entendido naóptica de um “Imposto de Registo”. No entanto, não se podedesprezar a receita originada pela aplicação deste impostotendo em vista o financiamento municipal e o alargamento dasfontes de receita tributária, já que efectivamente, existe umamanifestação indirecta de capacidade contributiva. Porém, osmesmos efeitos reditícios poderiam ser alcançados, de formamenos distorcida, através da aplicação do IVA e da criaçãosubsequente de um fundo de compensação intermunicipal emfavor dos municípios do interior, de forma a salvaguardar-se oprincípio da coesão económica e social..50- Por sua vez, os Impostos sobre o Rendimento (IRS e IRC)tributarão as mais-valias imobiliárias realizadas e os rendi-

mentos prediais, de acordo com o princípio da capacidadecontributiva.51- Cfr. Casalta Nabais, “A Fiscalidade de Urbanismo:Impostos e Taxas” in: O Sistema Financeiro e Fiscal do Urbanismo,cit,, págs. 50 a 52.52- No limite, poderiam ser concebidas eventuaiscontribuições especiais por mais-valias resultantes de altera-ções do plano urbanístico, tendo como incidência a diferençaentre edificação média e edificação concreta numa óptica estri-tamente perequativa (intra e inter-plano, abrangendo, nesteúltimo caso, a remuneração dos proprietários afectados peloscondicionalismos das REN e da RAN por parte dos benefi-ciados proprietários de terrenos urbanos ou urbanizáveis deoutros concelhos não tão condicionados).53- Sobre isto, cfr., Marcelo Rebelo de Sousa, DireitoConstitucional I, págs. 297 e segs. e Jorge Miranda, Manual ...,Tomo I, cit., págs. 94 e 95.54- Eduardo Paz Ferreira, Ainda a propósito da distinçãoentre impostos e taxas ..., cit., pág. 71.55- Idem, Ainda a propósito da distinção entre impostos etaxas ..., cit., pág. 71.56- Também Casalta Nabais, O Dever Fundamental de PagarImpostos, cit., pág. 688 refere o princípio do benefício commodo de legitimação dos tributos bilaterais.57- Parágrafo 39.58- Acórdão do TJCE, United Brands, referente ao processoC-27/76, de 14 de Fevereiro de 1978.59- Cfr., por exemplo, artigo 12.º da Directiva 97/67/CE;artigo 14.º da Directiva 96/92/CE; artigo 8.º da Directiva97/33/CE60- O Tribunal de Justiça analisou a matéria de direito em refe-rência a um requisito presente na Directiva que regula oImposto sobre a Entrada de Capitais que se baseava na possi-bilidade de imposição cumulativa excepcional de um tributode natureza remuneratória. A densificação do conceito deremuneração foi efectuada de um modo estrito por parte doTribunal comunitário, adoptando uma postura baseada noprincípio da equivalência estrito. Ora, o que está em causa nãoé a configuração de um tributo que não seja remuneratóriocomo sendo um imposto, mas sim a cumulação de um tributoque vise remunerar o serviço de registo, e só isso, numa lógicasemelhante à doutrina desenvolvida no que diz respeito àsmedidas de efeito equivalente a direitos alfandegários, com umverdadeiro imposto que é o imposto harmonizado sobrereunião de capitais. Nada se refere quanto à qualificaçãojurídica do tributo em questão, entendendo-se simplesmenteque não tem carácter remuneratório estrito (tendo em contanão só os custos, materiais e salariais, que estão directamenteligados à realização das operações de registo cujo direito emcausa constitui a contrapartida, mas também a fracção dasdespesas gerais da administração competente que sãoimputáveis a estas operações).61- Cfr. Manual, cit., págs. 43-44.62- Acórdão cit., pág. 584.63- Também o Tribunal Constitucional (acórdãos n° 205/87.cit., pág. 2611 e n° 76/88, cit., pág. 351) se pronunciou nomesmo sentido. Nesse sentido, ver, ainda, o Parecer n° 59/86da Procuradoria-Geral da República, in BMJ, n° 366, pág. 160,bem como o Parecer n° 92/86», in D.R, II Serie, de IX deFevereiro de 1988.64- Mesmo sem se excluir que a forma de determinação domontante do tributo em causa possa funcionar como indíciopara a sua qualificação como taxa ou imposto, entende oTribunal Constitucional que apenas a manifesta despropor-cionalidade entre o montante do tributo, por essa forma deter-minado, e o custo do serviço público (o carácter "completa-

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mente alheio" a este) poderá levar a que o tributo em questãodeva ser encarado, de um ponto de vista jurídico-constitu-cional, como verdadeiro imposto. De facto, a sua vertentequalitativa, o princípio da proporcionalidade, tal como enten-dido pelo nosso Tribunal Constitucional, equivale a umprincípio de proibição do excesso, reservando-se o juízo deinconstitucionalidade apenas para os casos de “desproporçãointolerável” ou “violadora do princípio da confiança que vaiincito na ideia de Estado de direito”. Este entendimento éperfilhado no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 640/95(pelo qual foi apreciada a conformidade à Constituição dosaumentos das portagens da ponte sobre o Tejo operados pelaPortaria n.º 351/94, de 3 de Junho,). Aí se pode ler que: “Emmatéria tributária não cabe ao Tribunal Constitucional, emlinha de princípio, controlar as opções do legislador ou daAdministração nas escolhas que estes fazem para estabelecer oquantum dos tributos, quer se trate de impostos, de taxas oude contribuições especiais (...), conquanto não sejam poster-gados (...) certos princípios constitucionais de incidênciagenérica – como os da igualdade ou da proibição do excesso(proporcionalidade)” (In D R, 2.ª Série, de 20 de Janeiro de1996). O princípio da equivalência jurídica das taxas, ou poroutras palavras, da proporcionalidade, na sua vertente qualita-tiva, é entendido assim como um limite ao excesso ou aoarbítrio e não como exigência de um princípio de equivalênciaou de cobertura de custos, noções estas mais exigentes que aadoptada pelo nosso Tribunal Constitucional.65- No limite, poderia utilizar-se o referencial da utilidadeeconómica para o sujeito passivo. No entanto, e em nossaopinião, este critério só poderá ser utilizado com alguma segu-rança quando estejam em causa prestações divisíveis.Compreende-se, igualmente, que atendendo ao escopo essen-cial da taxa - a angariação de receita pública - não sejanecessário haver necessariamente um benefício para quempaga o que é claramente demonstrado com o recurso aoexemplo da taxa de justiça. Neste caso, o sujeito desencadeouo exercício de uma prestação pública – a administração dajustiça – tendo o Estado sustentados custos para o efeito. Ora,independentemente do resultado final, e da voluntariedade ouinvoluntariedade da acção do sujeito passivo, existiu uma efec-tiva prestação pública que legitima o Estado a cobrar uma taxapara esse efeito. Cfr, por exemplo, Sousa Franco, FinançasPúblicas, Vol. I,. cit. págs 63 e segs Teixeira Ribeiro, “NoçãoJurídica de Taxa”, cit., pág., 291. Na jurisprudência do TribunalConstitucional refiram-se os acórdãos n.° 161/87, cit.; n°412/87, in: Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13.° volume,págs. 1187 e segs. e n.° 67/90, in: Acórdãos 15.° volume, págs.241 e segs. Do Supremo Tribunal Administrativo recorde-sepor todos, o citado Acórdão do Pleno de 31 de Janeiro de1975, pág. 1182.66- Traço igualmente típico da contraprestação e que, dealguma forma, se conjuga com a referida na nota de rodapéanterior, consiste em os serviços prestados pelo Estado nãoterem de reverter em benefício exclusivo daquele que paga ataxa. Trata-se uma característica que pode ser formulada nostermos em que o faz Teixeira Ribeiro (“Noção Jurídica deTaxa”, cit., pág. 291), quando sublinha que o facto de se obtersatisfação de necessidades individuais não implica que seexclua a satisfação de necessidades colectivas. É essa ideia quese encontra vertida no acórdão do Supremo TribunalAdministrativo de 18 de Junho de 1971 (Pleno), onde se podeler: “e também não é forçoso que a utilidade proporcionada ouo serviço utilizado revertam em benefício exclusivo do seudestinatário directo e imediato, sobre quem recai o pagamentoda taxa. Essa utilidade pode difundir-se no público em geralmas, de qualquer modo, a prestação está, sem dúvida cone-

xionada com a actividade exercida pelo onerado com a taxa, eque é portanto, também nela interessado” (in: AcórdãosDoutrinais, ano X, n° 119, pág. 1620. No mesmo sentido, oAcórdão da 2.ª Secção de 17 de Dezembro de 1969, in:Acórdãos Doutrinais, ano IX, n° 167, págs. 167 e segs.). Amesma ideia encontra-se, de resto, presente na jurisprudênciada Comissão Constitucional, que sustentou a constitucionali-dade da taxa de radiotelevisão, defendendo: “... parece claroque é atribuído um carácter sinalagmático à obrigação de paga-mento de taxa: embora imposta unilateralmente pelo Estado avinculação de uma prestação aos particulares detentores detelevisores, o certo é que o mesmo Estado oferece comocontrapartida a existência e funcionamento de um serviçopúblico de transmissão à distância de imagens não perma-nentes”. Esta vertente da contraprestação, que fora especial-mente desenvolvida no Parecer de 3 de Abril de 1978 doConselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, emtermos que a Comissão Constitucional expressamentesufragou, viria a ser também reconhecida pelo TribunalConstitucional, por exemplo no Acórdão n.º 76/88,produzido a propósito da tarifa de saneamento da CâmaraMunicipal de Lisboa, em que foi confirmada a existência deuma obrigação sinalagmática, porquanto a Câmara propor-ciona “... à população em geral, o serviço específico e divisível,de recolha, depósito e tratamento de lixos” (pág. 350). Cfr.Eduardo Paz Ferreira, Ainda a propósito da Distinção entre Taxa eImposto, cit., págs. 78 e segs.67- A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativoassinalou a propósito do financiamento dos organismos decoordenação económica, que se não pode pretender que existasinalagma quando um serviço público apenas se limita àprestação de utilidades indivisíveis, assim evidenciando, pelanegativa, mais um sinal característico da contraprestação. Bemilustrativo dessa posição o acórdão do Supremo TribunalAdministrativo de 31 de Janeiro de 1975 (Pleno), em que seafirma que “não será admissível configurar essa necessáriacontraprestação do ente público na simples utilidade geral domesmo, ou nos serviços que presta, em geral, ou num sectordeterminado”, concluindo que “… de outra forma, acabariaafinal por se eliminar a distinção entre taxa e imposto, unifi-cando os respectivos conceitos”. Ainda em ligação com aúltima característica identificada, pode sublinhar-se uma outraconsistente em ser legítimo à lei estabelecer uma presunçãoquanto à existência de benefícios e quanto ao universo dosdestinatários. Escreveu, a este propósito, o ConselhoConsultivo da Procuradoria-Geral da República, no seuParecer de 13 de Abril de 1978 refere: “...do mesmo modoquanto à satisfação subjectiva: Não descaracteriza a figura dataxa a ausência desta satisfação, pois a lei pode presumir que ofuncionamento do serviço cria utilidades sociais objectivas”(pág. 3468). Tal entendimento foi reafirmado pelo TribunalConstitucional, ainda a propósito da taxa de saneamento daCML quando, confrontado com a impossibilidade de definirexactamente o universo de utentes, reconheceu como bom ocritério apontado pela Câmara – todos os consumidores deágua da EPAL- ponderando: “No entanto, é de ter em atençãoque, pela própria natureza do serviço em questão, éverdadeiramente impossível uma determinação rigorosa douniverso dos utentes. A isto acresce que o esquema de identi-ficação previsto naquela deliberação não se configura comoilógico e irrealista Na verdade o índice escolhido para esseefeito envolve uma presunção muito forte de que os sujeitostributados realmente utilizam o serviço de recolha, depósito etratamento de lixos, pois que, por via de regra, todo o consu-midor de água é também “produtor de lixo” (pág. 350). Cfr.Eduardo Paz Ferreira, Ainda a propósito da Distinção entre Taxa e

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Imposto, cit., págs. 78 e segs.68- Quando os bens fornecidos foram susceptíveis de divisão,referem António de Sousa Franco e Sérgio Gonçalves doCabo tal poderá fundamentar um juízo de política tributáriacomplexo, devendo o decisor ponderar a justeza de imposiçãode formas de tributação que onerem a generalidade doscontribuintes quando, perante utilidades divisíveis, se registaum benefício a favor de certos e determinados sujeitos. Cfr.António de Sousa Franco e Sérgio Gonçalves do Cabo, ob. cit,págs. 430 a 438.69- Efectivamente, no seu acórdão n.º 200/2001, de 6 de Maiode 2001, o Tribunal Constitucional reafirma a suajurisprudência contida no acórdão n.º 484/00, de que “ocontrolo judicial baseado no princípio da proporcionalidadenão tem extensão e intensidade semelhantes consoante se tratede actos legislativos, de actos da administração ou de actos dejurisdição. Ao legislador (e, eventualmente, a certas entidadescom competência regulamentar) é reconhecido um conside-rável espaço de conformação (liberdade de conformação) naponderação dos bens quando edita uma nova regulação. Estaliberdade de conformação tem especial relevância ao discutir-se os requisitos da adequação dos meios e da proporcionali-dade em sentido restrito. Isto justifica que perante o espaço deconformação do legislador, os tribunais se limitem a examinarse a regulação legislativa é manifestamente inadequada (...)”.Tal não significa a atribuição de um margem ampla de liber-dade ao legislador na definição dos termos da equivalênciaeconómica da taxa. Pelo contrário, exige uma maior vinculaçãodo mesmo aos fins constitucionalmente tutelados.70- Cfr. a abundante jurisprudência recente do STA relativa àstaxas por realização de operações fora de Bolsa; por exemplo,o acórdão do STA de 19 de Maio de 2004, referente aoprocesso 026384 (http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/).71- Subsidiada através de transferências orçamentais.72- Esta orientação estrita de equivalência assenta na investi-gação de autores ligados às teorias causalistas, como Pugliesee Jarach, que se dedicaram, cuidadosamente, à conceptuali-zação da figura a partir deste elemento de equivalência estrita.Efectivamente, Pugliese (in: Le tasse nella scienza e nel diritto posi-tivo italiano, CEDAM, Padua , 1930, pág. 47) refere-se à taxacomo sendo “uma prestação obrigatória paga ao Estado porquem utilize, de modo particular, serviços jurídico-administra-tivos cuja gestão é inerente à soberania do Estado”. ParaJarach (in: Curso Superior de Derecho Tributario vol. I, BuenosAires, 1957, págs. 180 e 181) a taxa destina-se essencialmente“a fazer pagar os que recebem um serviço na ocasião e comocontraprestação desse serviço”. O âmbito da contraprestaçãoé sucessivamente desenvolvido pela doutrina. Assim, numaperspectiva quantitativa, ou seja de medida de cobertura decustos, Stefani ( in: Economia della finanza publica, 3.ª ed.,CEDAM, Padua, 1983, pág. 132) define a taxa “como a somainferior ao custo de produção que um sujeito paga ao entepúblico para obter, a sua solicitação, um serviço ou umaprestação pública”. Numa perspectiva menos redutora quantoao limite da cobertura dos custos da prestação pública poisconcebe pelo menos uma relação de equivalência, Alvarez deCienfuegos concebe a taxa como o “pagamento dos gastos, oude parte deles, originados pela prestação de um serviçopúblico, sustentados pela pessoa que solicitou a sua prestação”(in: Hacienda Pública, 3.ª ed. Librería Prieto, Granada, 1950,pág.. 127).73- Conforme já referimos, a doutrina alemã e, consequente-mente, a doutrina comunitária têm vindo a acolher a orien-tação do estrito custo incorrido pela autoridade administrativacomo medida geral de equivalência. A legislação espanholatambém não é omissa a este respeito. O artigo 7.º da LTPP

estabelece positivamente o princípio da equivalência. Nostermos deste artigo, “as taxas tenderão a cobrir o custo doserviço ou da actividade que constituam o seu facto tribu-tável”. Este princípio de equivalência estrita é, todavia,moderado por um imperativo constitucional espanhol quefundamenta o estabelecimento do princípio da capacidadeprodutiva, ou da capacidade económica, nos termos do artigo8.º da mesma lei, segundo o qual “na fixação das taxas ter-se-á emconta, quando o permitam as características do tributo, acapacidade económica das pessoas que devem suportá-las”. Oartigo 19.º vem desenvolver estes aspectos, estabelecendo oselementos quantitativos das taxas. Nestes termos, estabelece-seque a fixação do montante da taxa a pagar pela utilizaçãoprivativa ou aproveitamento especial do domínio público,deverá ser feito tomando como referência o valor de mercadocorrespondente (o que é um pouco incongruente dado o posi-cionamento extra-mercado que é inicialmente enunciado nadefinição legal do tributo) ou a utilidade derivada dessautilização privativa ou aproveitamento especial. No que dizrespeito a taxas por prestação de um serviço ou pela realizaçãode uma actividade, estas não poderão exceder, nos termos don.º 2 do artigo 19.º, no seu conjunto, o custo real ou previsíveldo serviço ou actividade de que se trate, ou, na sua ausência, ovalor da prestação recebida. A lei refere, ainda, os critérios atomar em consideração para a quantificação da obrigaçãotributária. Assim, deverão tomar-se em consideração os custosdirectos e indirectos, inclusive os de carácter financeiro, amor-tização do imobilizado e, se tal for o caso, os necessários paragarantir a manutenção de um funcionamento razoável doserviço ou actividade para cuja prestação ou realização se exige ataxa, independentemente do encargo orçamental com o qual sesatisfaçam. No que diz respeito à quantificação do montante apagar por razão de incidência de preço público, determina oartigo 25.º da LTPP que este será estabelecido a um nível quecubra, como mínimo, os custos económicos originados pela reali-zação das actividades ou da prestação de serviços a nível queresulte equivalente à utilidade decorrente dos mesmos (princípioda equivalência estrito). Excepcionalmente, quando existamrazões sociais, culturais ou de interesse público que assim o acon-selhem, poderão estabelecer-se preços públicos que resulteminferiores aos parâmetros referidos, se previamente se adoptaremas medidas orçamentais necessárias para a cobertura do preçosubvencionado (n.º 2 do artigo 25.º). Verifica-se, no caso dospreços públicos, uma dupla limitação da carga tributária.Primeiramente, uma limitação negativa de montante, correspon-dente ao custo económico para a realização da prestação, e cumu-lativamente um limite máximo correspondente à utilidade privadapercebida pelo beneficiário da prestação. Nestes termos, toda aconstrução jurídico-económica do tributo assenta numa lógicaestrita de preço, no entanto, erigido por entidades públicas. Essalógica, possível, na actividade de fornecimento de prestaçõesqualificáveis no conceito amplo de bem privado, ou seja, bemimbuído das características necessárias para ser fornecido pelomercado, é temperada pela possibilidade de fornecimentodesse bem com uma contrapartida pecuniária menor, se tal forrequerido na lógica de prossecução de uma política social,cultural ou de interesse público (fornecimento de bens semi-públicos). No entanto, nos termos da lei, esta prática revesteuma natureza excepcional, e o seu financiamento por via doorçamento do Estado deverá ser previamente assegurado.74- À excepção das tarifas municipais. Assim, nos termos don.º 3 do 20.º da Lei n.º 42/98, de 6 de Agosto (Lei dasFinanças Locais), “as tarifas e os preços, a fixar pelos municí-pios relativos aos serviços prestados e aos bens fornecidospelas unidades orgânicas municipais e serviços municipali-zados, não devem, em princípio, ser inferiores aos custos

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directa e indirectamente suportados com o fornecimento dosbens e com a prestação dos serviços”. Importa, no entanto,efectuar duas observações: 1) as tarifas referidas não são maisdo que taxas potencialmente sujeitas a um referencial de equiva-lência funcional subsidiado, que o legislador parece quererafastar; 2) a norma não é minimamente imperativa mas simorientadora, dado que utiliza os termos “não devem, emprincípio”75- O espectro radioeléctrico enquanto infra-estrutura essen-cial de suporte à realização de comunicações electrónicasconstitui-se como um dos mais importantes activos físicos doEstado. Compete ao Estado a gestão eficiente do espectroradioeléctrico, quer na perspectiva da concessão de direitos deutilização, da gestão dessa utilização, e do controlo e fiscali-zação de eventuais abusos. O espectro radioeléctrico, apesarde se configurar como um bem do domínio público, é suscep-tível de apropriação individual. Um operador que disponha deuma determinada frequência não só a utiliza para a prestaçãodo serviço que disponibiliza aos consumidores (frequênciaenquanto infra-estrutura de suporte à prestação de serviços detelecomunicações electrónicas), como dispõe de umverdadeiro poder monopolista (face aos concorrentes actuaise, igualmente, perante os concorrentes potenciais). Assim, dautilização do espectro e da protecção monopolista que resultada sua detenção, os operadores extraem inequívocas vantagenseconómicas. A importância do espectro radioeléctrico para omercado das telecomunicações enquanto infra-estrutura desuporte à transmissão de imagem, som e dados justifica aintervenção do Estado na sua organização. Ao Estado compe-tirá a organização do mercado, através da garantia jurídica doacesso ao mercado e da fiscalização do cumprimento dasespecificações técnicas, bem como a gestão de todas asfrequências disponíveis. Estas funções estão cometidasnormalmente a uma entidade reguladora do mercado das tele-comunicações, atendendo à especificidade e tecnicidade dasmesmas. No entanto, existe uma outra vertente de acçãopública que não estando directamente relacionada com agestão das frequências é essencial para a correcta organizaçãodo mercado. Essa vertente traduz-se precisamente na explo-ração da utilização do espectro radioeléctrico. Nestas circuns-tâncias, o Estado deverá promover a mais eficiente exploraçãodo espectro radioeléctrico, atribuindo as frequências aosoperadores que delas retirem a maior utilidade social. Essaponderação de utilidade só pode ser efectuada através dautilização de instrumentos económicos, mormente, os instru-mentos tributários. Efectivamente, os operadores retiram umautilidade económica da utilização da infra-estrutura de comu-nicações que é o espectro radioeléctrico. Ora, competirá aoEstado fomentar a correcta utilização das frequências,atribuindo-as aos operadores que melhor as conseguiremutilizar atendendo aos objectivos de política pública quesubjazem ao mercado das telecomunicações e ao serviçouniversal exigido. Por razões assentes no princípio da igual-dade, na vertente do benefício ou da equivalência, se os opera-dores retiram vantagens económicas da utilização de um bemque é de todos, a apropriação individual do bem pública impli-cará a exigência de uma contribuição a favor do Estado. Essacontribuição não serve mais do que para compensar o Estadopela permissão de utilização privativa de um bem do domíniopúblico. Esse pagamento em nada contraria as suas obrigaçõesfiscais em sede de sistema fiscal geral, já que desenvolvem umaactividade económica normal, as obrigações de sustentação doserviço universal, numa óptica de coesão económica social eterritorial ou as obrigações de pagamento da taxa porprestação de serviços prestados pela ANACOM. Em Portugalencontra-se cometida à ANACOM a gestão do espectro

radioeléctrico. Na realidade, e conforme demonstrámos, estafunção poderá ser cindida em duas sub-funções básicas: i)Prestação de serviços de gestão do bem do domínio público;e ii) Exploração, por conta do Estado, do bem do domíniopúblico. Verifica-se, pois, a existência de duas funções de dife-rente natureza cometidas actualmente à ANACOM nostermos da legislação em vigor, a que deverão corresponderdois tipos diferenciados de contraprestação a suportar pelosoperadores: uma taxa por serviços prestados por parte daANACOM enquanto entidade organizadora, reguladora efiscalizadora do mercado; e uma taxa de utilização do bem dodomínio público, destinada a remunerar a utilização desse bempúblico, nomeadamente como contrapartida da utilidadeobtida pela sua utilização por parte dos operadores de teleco-municações que utilizam o espectro radioeléctrico enquantoinfra-estrutura de suporte à prestação de serviços. As taxas porprestação de serviços que sustentam os serviços prestadospela ANACOM deverão assentar numa estrita óptica decobertura de custos de regulação, devendo ser vistas enquantocontribuições para os custos associados com o controlo esupervisão deste mercado. São precisamente estas tarefas asque se encontram previstas enquanto potencialmente remu-neráveis através de “taxas administrativas” nos termos do n.º1 do artigo 12.º da Directiva n.º 2002/20 – “DirectivaAutorizações”. Além das taxas por prestação de serviços, aANACOM cobra ainda taxas de utilização do espectroradioeléctrico. Estas taxas, ao contrário das primeiras, nãoassentam numa lógica de contrapartida por actividade públicarealizada, fundamentando-se, ao invés, na sinalagmaticidadeinerente à utilização económica de um bem do domíniopúblico. As taxas por utilização do espectro radioeléctrico são,portanto, distintas das taxas por prestação de serviços degestão do espectro, sendo cobradas pela ANACOM, não atítulo próprio, mas sim por conta do Estado. Relativamente àsua conformidade comunitária, as taxas por utilização doespectro radioeléctrico encontram-se expressamente previstasno n.º 1 do artigo 13.º da Directiva “Autorizações”. A própriatributação da utilização do espectro que fomenta a suautilização eficiente. Só desta forma é que agentes que nãoretirem o benefício devido da sua utilização poderão sersubstituídos por outros que o façam.

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