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O OVO E A GALINHA: DA PERCEPÇÃO À INAUTENTICIDADE DO SER Prof. Dr. Durval Romagnollo

O Ovo E A Galinha Da PercepçãO à Inautenticidade Do Ser

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O OVO E A GALINHA:

DA PERCEPÇÃO À

INAUTENTICIDADE DO SER

Prof. Dr. Durval Romagnollo

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O OVO E A GALINHA:

DA PERCEPÇÃO À INAUTENTICIDADE

DO SER

Nome:

Clarice Lispector

Nascimento:

10/12/1920

Natural:

Tchetchelnik - Ucrânia

Morte:

09/12/1977

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O OVO E A GALINHA:

DA PERCEPÇÃO À INAUTENTICIDADE

DO SER

"Eu escrevo sem esperança de que o

que eu escrevo altere qualquer coisa.

Não altera em nada... Porque no

fundo a gente não está querendo

alterar as coisas. A gente está

querendo desabrochar de um modo

ou de outro..."

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O OVO E A GALINHA:

DA PERCEPÇÃO À INAUTENTICIDADE

DO SER

"Mas há a vida que é para ser intensamente

vivida, há o amor.

Que tem que ser vivido até a última gota.

Sem nenhum medo. Não mata."

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INTRODUÇÃO

CLARICE E O ATO DE ESCREVER

"Nasci para escrever. Cada livro meu é umaestréia penosa e feliz. Essa capacidade de merenovar toda à medida que o tempo passa é oque chamo de viver e escrever."

Eu escrevo simples. Eu não enfeito.

"Escrever é procurar entender, é procurarreproduzir o irreproduzível, é sentir até oúltimo fim o sentimento que permaneceriaapenas vago e sufocador. Escrever é tambémabençoar uma vida que não foi abençoada."

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"Enquanto eu tiver perguntas e não houverrespostas, continuarei a escrever."

"Eu acho que, quando não escrevo, estou morta.“

"... eu só escrevo quando eu quero, eu sou umaamadora e faço questão de continuar a seramadora. Profissional é aquele que tem umaobrigação consigo mesmo de escrever, ou entãoem relação ao outro. Agora, eu faço questão denão ser profissional, para manter minha liberdade."

"Escrevo por ter nada a fazer no mundo: sobrei enão há lugar para mim na terra dos homens.“

A hora da estrela

INTRODUÇÃO

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O HERMETISMO CLARICEANO

A síntese perfeita: “Sou tão misteriosaque não me entendo.”

"Suponho que me entender não é umaquestão de inteligência e sim de sentir, deentrar em contato... Ou toca, ou não toca".

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"Me chamam de hermética. Como é quese pode ser popular, sendo hermética? Eu mecompreendo. De modo que eu não souhermética para mim."

"Eu escrevo sem esperança de que o queeu escrevo altere qualquer coisa. Não alteraem nada... Porque no fundo a gente não estáquerendo alterar as coisas. A gente estáquerendo desabrochar de um modo ou de

outro..."

O HERMETISMO CLARICEANO

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I. PRINCIPAIS POSTULADOS DA

CORRENTE FILOSÓFICA EXISTENCIALISTA

1. A experiência interior ou subjetiva é consideradamais importante do que a verdade "objetiva", ou seja,busca-se a elucidação da existência humana (asubjetividade).

2. O homem se faz em sua própria existência: “nohomem, a existência precede a essência”. O ser dohomem se define pela inserção da existência numhorizonte temporal, histórico. A “existência” do homem éalgo temporário, paira entre o seu nascimento e a morteque ele não pode evitar.

3. O mundo, como nós o conhecemos, é irracional eabsurdo, ou pelo menos está além de nossa totalcompreensão; nenhuma explicação final pode ser dadapara o fato de ele ser da maneira que é. A morte, comosignificado concreto da finitude, é o parâmetro-limite paraa criação e recriação do projeto humano.

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4. A falta de sentido, a liberdade conseqüenteda indeterminação, a ameaça permanente desofrimento, dá origem à ansiedade, à descrençaem si mesmo e ao desespero; há uma ênfase naliberdade dos indivíduos como a sua propriedadehumana distintiva mais importante, da qual nãopode fugir. Esta situação considerada na suasingularidade gera a angústia de um existirdevorado pelo tempo.

Para Heidegger, o ser habita a linguagempoética e criadora, na qual se pode lembrá-loconjuntamente, a fim de não cair no esquecimento.Elevar-se até o ser seria “habitar” nele por meioda literatura.

I. PRINCIPAIS POSTULADOS DA

CORRENTE FILOSÓFICA EXISTENCIALISTA

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II. EXISTENCIALISMO E FENOMENOLOGIA

EM CLARICE LISPECTOR

"Não se pode dar uma prova de existência do queé mais verdadeiro, o jeito é acreditar. Acreditarchorando.“

"A eternidade é o estado das coisas neste momento.“

"Quem não é um acaso na vida?“

A hora da estrela

"Vida e morte foram minhas, e eu fui monstruosa,minha coragem foi a de um sonâmbulo quesimplesmente vai.“

A paixão segundo G.H.

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"Ser um ser permissível a si mesmo é a glória deexistir.“

"O cacto é cheio de raiva com os dedos todosretorcidos e é impossível acarinhá-lo. Ele te odeia emcada espinho espetado porque dói-lhe no corpo essemesmo espinho cuja primeira espetada foi na suaprópria grossa carne. Mas pode-se cortá-lo empedaços e chupar-lhe a áspera seiva: leite de mãesevera.“

"Não é que vivo em eterna mutação, com novasadaptações a meu renovado viver e nunca chego aofim de cada um dos modos de existir. Vivo de esboçosnão acabados e vacilantes. Mas equilibro-me comoposso, entre mim e eu, entre mim e os homens, entremim e o Deus.“

Um sopro de vida

II. EXISTENCIALISMO E FENOMENOLOGIA

EM CLARICE LISPECTOR

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III. ARTICULAÇÃO ENTRE

O LITERÁRIO E O FILOSÓFICO

O conto apresenta uma reflexão sobre

a linguagem e sua tentativa de apreender

os objetos através da percepção, ao

mesmo tempo em que transpõe os liames

da literatura em direção ao filosófico, mais

precisamente o existencialismo.

Presentes os temas clariceanos: a

crise da linguagem, a crise existencial, a

preferência pela trama ao enredo e a busca

infindável do “indizível” da linguagem.

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III.1. A FENOMENOLOGIA DA PERCEPCÃO

A busca das essências na fenomenologiade Merleau-Ponty se efetua no contato diretocom o vivido, sendo que o ato perceptivoemerge de uma relação de encontro eimbricamento do sujeito e do objeto.

A percepção revela o mundo comotranscendente aos nossos reducionismos(pensamento de sobrevôo) – contatoperceptivo, pré-tético.

A descrição fenomenológica se dá antesmesmo das conceituações sobre as coisas, noplano pré-reflexivo, excluindo tanto oprocedimento da análise reflexiva quanto o daexplicação científica.

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O corpo vivido transcende o corpofisiológico fazendo com que as relações e oslimites entre o sujeito e o objeto se tornemdeslocáveis e ambíguas.

A experiência sensível é uma espécie deentendimento anterior a qualquer clivagemsujeito-objeto ou consciência-mundo.

O corpo é veículo do ser no mundo;assim, indagar sobre o corpo torna-se umindagar sobre a existência.

III.1. A FENOMENOLOGIA DA PERCEPCÃO

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Tal como o corpo exprime o espírito, a falaexprime o pensamento. Não há relaçãoexterior entre fala e pensamento; a fala é aprópria presença do pensamento no mundosensível.

Para Merleau-Ponty, o olhar é justamente oaparelho que tem a capacidade de “concentrara visibilidade esparsa e de acabar o que estáesboçado no espetáculo” (1971, p. 315).

Deslocamento temporal ou “tempoconstituinte”:

III.1. A FENOMENOLOGIA DA PERCEPCÃO

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“Ver um ovo nunca se mantém no presente,mal vejo um ovo e já se torna ter visto um ovo hátrês milênios”, bem como para um futuro: “Ver umovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo”(p. 49).

A busca do narrador visa instalar-se nomundo perceptivo no qual sujeito e objeto semisturam. O caminho da razão e dospressupostos lógicos é recusado pelonarrador por serem incapazes de expressaresse mundo perceptivo:

“Tomo o maior cuidado de não entendê-lo.Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu oentender é porque estou errando. Entender é aprova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo”(p. 50).

III.1. A FENOMENOLOGIA DA PERCEPCÃO

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Jogo da visibilidade (ver x olhar)

“O ovo me vê. O ovo me idealiza? O ovo me

medita? Não, o ovo apenas me vê – É isento da

compreensão que fere” (p. 50).

É impossível uma visão eidética do objeto

longe da via perceptiva, reveladora do real, da

essência:

“Fora de cada ovo particular, fora de cada ovo que

se come, o ovo não existe” (p. 53).

III.1. A FENOMENOLOGIA DA PERCEPCÃO

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No domínio originário as cisões sujeito e

objeto, pensamento e linguagem, conteúdo e

forma, perdem qualquer sentido. Pensar

pensamento sem linguagem, ou o conteúdo

sem a forma, equivale a quebrarmos a casca

do ovo:

“Pego mais um ovo na cozinha, quebro-lhe a

casca e a forma. E a partir deste instante nunca

existiu um ovo” (p. 54).

III.1. A FENOMENOLOGIA DA PERCEPCÃO

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Nessa mesma linha, observa-se a procura emaproximar-se da expressão originária:

“Que mal, porém, tem eu me afastar da lógica?Estou lidando com a matéria-prima. Estou atrás do quefica atrás do pensamento” (p. 17).

“... quero me alimentar diretamente do plasma”(1993,p. 13).

Para sobrevivermos, necessitamos nos adequaràs visões habituais do mundo que nos cerca. Oaprisionamento no “eu” afeta a capacidade depercepção, impede o corpo de se diluir no contatopré-tético com o mundo, no resgate do ser bruto:

“A (galinha) que pensou que eu significa ter um si-mesmo.As galinhas prejudiciais ao ovo são aquelas que são um“eu” sem trégua. Nelas o “eu” é tão constante que elas jánão podem mais pronunciar a palavra „ovo‟” (p. 53).

III.1. A FENOMENOLOGIA DA PERCEPCÃO

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A posição de “agente disfarçado” é atribuídaao escritor, sempre deslocado no seu tempo,exatamente por romper com a visão cotidiana dascoisas e que, no contato com seu “ovo”, tentaexpressar o mundo de forma originária.

“Faço parte da maçonaria dos que viram uma vezo ovo e o renegam como forma de protegê-lo” (p. 54).

A obra literária provoca ressonâncias com aanálise fenomenológica porque se caracteriza peloperspectivismo, cuja fonte é o seu traço deincompletude ou potencialidade, no qual onarrador está sempre se deslocando.

“Há uma coisa que me escapa o tempo todo.”(Lispector, 1993, p. 78).

III.1. A FENOMENOLOGIA DA PERCEPCÃO

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Como no “momento epifânico” daspersonagens clariceanas, a revelação do mundosensível só se dá porque o momento da perpepçãopermite a troca de posições e o intercâmbio entreobservador e coisa observada. É o que ocorre nasrupturas com o cotidiano (Ana em Amor)

“Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto paraque esta não explodisse” (1982, p. 22).

e nas imagens de animais, tão presentes namaioria de seus textos:

“Às vezes eletrizo-me ao ver bicho. Estou agoraouvindo o grito ancestral dentro de mim: parece quenão sei quem é mais a criatura, se eu ou o bicho”(1993, p. 54).

III.1. A FENOMENOLOGIA DA PERCEPCÃO

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As personagens clariceanas têmparadoxalmente como obstáculo o medo e aangústia do desconhecido. Daí a duplalibertação: da personagem, que consegue atingira experiência sensível no momento epifânico, eda autora, que consegue liberar a palavraatravés de sua obra artística.

A passagem para a vivência sensível só sedá na obra de Clarice Lispector através e graçasà angústia e ao medo, que provoca a epifania erevela atributos inusitados das personagensbem como desvela o ser autêntico.

“Como te dizer? É terrível e me ameaça. Sintoque não posso mais parar e me assusto” (p. 23).

III.1. A FENOMENOLOGIA DA PERCEPCÃO

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Se Clarice acentua o aspecto concreto dapalavra é porque acredita que o significante é ocorpo, a matéria onde o ser se inscreve e se diz:

“E se tenho aqui que usar-te palavras, elas têmque fazer um sentido quase que só corpóreo, estou emluta com a vibração última” (Lispector, 1993, p. 81).

A liberação das palavras consiste nãosomente em deformar, mas em revelar o incomum,o não visto, em produzir a sensação deestranhamento que toma conta dos personagensclariceanos. Na ânsia de tornar visível a essênciaque se cola ao próprio visível, mas que não épercebida em razão dos rótulos, das idéias pré-concebidas com as quais etiquetamos as coisas, éque o escritor se volta para a vivência imediatacom o mundo:

III.1. A FENOMENOLOGIA DA PERCEPCÃO

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...na pintura como na escritura procuro verestritamente no momento em que vejo – e não veratravés da memória de ter visto num instantepassado. O instante é este. O instante é de umaiminência que me tira o fôlego. O instante é em simesmo iminente. Ao mesmo tempo que eu o vivo,lanço-me na sua passagem para outro instante.(Lispector, 1993, p. 81)

Assim, contatamos uma relação deinterpenetrabilidade mútua entre a percepção, ocorpo, a vida do escritor e a construção de suaobra artística. A linguagem, nossa forma deexpressão, está de tal forma imbricada com o“corpo vivido” que torna impossível qualquerdiscurso neutro e objetivo, longe de nossavivência perceptiva.

III.1. A FENOMENOLOGIA DA PERCEPCÃO

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“A crítica da linguagem e da vida, justamente seela é radical, ela envolve inteiramente uma prática dalinguagem e da vida” (p. 27).

O que é mágico na linguagem é que ela éplurisignificativa, sempre podemos nos instalarnela e criar um novo sentido, reinstituirmos suafunção originária.

Vida e escritura em Clarice Lispector estão detal forma imbricadas que para a escritora viver éescrever e escrever é viver:

“Escrever é procurar entender, é procurarreproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim osentimento que permanecia apenas vago e sufocador”.

III.1. A FENOMENOLOGIA DA PERCEPCÃO

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A busca da expressão em Clarice só se dáatravés de uma intensificação da experiênciaperceptiva, daí o entrelaçamento entre vida e obra.Atrás de suas personagens, o autor é apenas maisuma, o que lhe permite dizer:

“Escolher a própria máscara é o primeiro gestovoluntário humano”.

Clarice é aquela que busca dizer o “indizível”,que tenta

“captar a quarta dimensão do instante já que de tãofugidio não é mais porque agora tornou-se um novoinstante que também não é mais” (1993, p. 13).

“E, no entanto, cada vez que vou escrever é comose fosse a primeira vez. Cada livro meu é uma estréiapenosa e feliz. Essa capacidade de me renovar toda àmedida que o tempo passa é o que eu chamo de viver eescrever” (1992, p. 99).

III.1. A FENOMENOLOGIA DA PERCEPCÃO

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III.2. EXISTENCIALISMO

A galinha é o ser humano, objeto doconhecimento filosófico.

O ovo é o mistério, o conhecimento que nos énegado e que, ao final, pode ser desprovido demensagem. O ovo é a essência, não do homem,mas de todo o cosmos.

O ovo não existe mais. Como a luz de umaestrela já morta, o ovo propriamente dito não existemais. – Você é perfeito, ovo. Você é branco. – Avocê dedico o começo. A você dedico a primeira vez.(p. 1)

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“Eles” = imanência da condição humana

Os objetos de conhecimento se apresentamimediatamente à consciência, desconsiderando quaisquerpressuposições. O ser precede a idéia. A existênciaprecede a essência.

– Será que sei do ovo? É quase certo que sei. Assim:existo, logo sei. (p. 1)

O objeto que se dá a conhecer imediatamente é ohomem. Para desvendar o ser (dasein), interroga-sesobre si mesmo, coloca-se em questão e reflete sobreseu próprio ser.

O ovo ainda é o mesmo que se originou naMacedônia. A galinha é sempre tragédia mais moderna.Está sempre inutilmente a par. E continua sendoredesenhada. Ainda não se achou a forma maisadequada para uma galinha. Enquanto meu vizinhoatende ao telefone...

III.2. EXISTENCIALISMO

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O desvendamento do ser é objeto da filosofia porqueeste não está claramente dado, uma vez que vive umaexistência inautêntica, isto é, a vida cotidiana.

A galinha vive como em sonho. Não tem senso derealidade. Todo o susto da galinha é porque estãosempre interrompendo o seu devaneio. A galinha é umgrande sono. (p. 3)

É absolutamente indispensável que eu seja umaocupada e uma distraída. (p. 4)

Os ovos estalam na frigideira, e mergulhada nosonho preparo o café da manhã. Sem nenhum senso darealidade, grito pelas crianças que brotam de váriascamas, arrastam cadeiras e comem, e o trabalho do diaamanhecido começa, gritado e rido e comido, clara egema, alegria entre brigas, dia que é o nosso sal e nóssomos o sal do dia, viver é extremamente tolerável, viverocupa e distrai, viver faz rir. (p. 5)

III.2. EXISTENCIALISMO

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Os três aspectos dessa vida inautêntica são:

1. FACTICIDADE: o homem está jogado no mundo(conjunto de condições geográficas, históricas, sociais eeconômicas) sem que sua vontade tenha participadodisso.

E me faz sorrir no meu mistério. O meu mistério é que euser apenas um meio, e não um fim, tem-me dado a maismaliciosa das liberdades: não sou boba e aproveito. (...)Etambém o tempo que me deram, e que nos dão apenaspara que no ócio honrado o ovo se faça, pois tenho usadoesse tempo para prazeres ilícitos e dores ilícitas,inteiramente esquecida do ovo. Esta é a minhasimplicidade. (p. 5)

O tempo que me é dado é referência clara à finitude daexistência bem como à reflexão restrita a essa existência.

III.2. EXISTENCIALISMO

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2. EXISTENCIALIDADE ou TRANSCENDÊNCIA: o serhumano existe como antecipação de suas própriaspossibilidades. O verdadeiro ser do homem consiste emobjetivar aquilo que ainda anão é. Assim, ele é um ser quese projeta para fora de si mesmo, sem jamais sair dasfronteiras do mundo no qual está submerso.

O que me revela que talvez eu seja um agente é aidéia de que meu destino me ultrapassa: pelo menos issoeles tiveram mesmo que me deixar adivinhar, eu eradaqueles que fariam mal o trabalho se ao menos nãoadivinhassem um pouco; fizeram-me esquecer o que medeixaram adivinhar, mas vagamente ficou-me a noção deque meu destino me ultrapassa, e de que sou instrumentodo trabalho deles. Mas de qualquer modo era só instrumentoque eu poderia ser, pois o trabalho não poderia ser mesmomeu. (p. 5)

III.2. EXISTENCIALISMO

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A partir do estado de angústia abre-se para ohomem uma alternativa: fugir de novo para oesquecimento de sua dimensão mais profunda (oser) e retornar o cotidiano; ou superar a própriaangústia, manifestando o seu poder detranscendência sobre o mundo e sobre si mesmo.

Segundo Sartre, (...) Portanto o homem sedefine pelo seu projeto. Esse ser material superaperpetuamente a condição que lhe é dada; revela edetermina sua situação, transcendendo-a paraobjetivar-se, pelo trabalho, pela ação ou pelo gesto.

III.2. EXISTENCIALISMO

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Já experimentei me estabelecer por contaprópria e não deu certo; ficou-me até hoje essamão trêmula. (p. 5)

Ao problematizar o ser, conclui-se que éinautêntico e em última instância finito.

Ser galinha é a sobrevivência da galinha.Sobreviver é a salvação. Pois parece que vivernão existe. Viver leva a morte. Então o que agalinha faz é estar permanentementesobrevivendo. Sobreviver chama-se manter lutacontra a vida que é mortal. Ser galinha é isso. Agalinha tem o ar constrangido. (p. 2).

III.2. EXISTENCIALISMO

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3. RUÍNA: é o desvio de cada indivíduo de seuprojeto essencial, em favor das preocupaçõescotidianas que o distraem e o perturbam, confundindo-o com a massa coletiva. O eu individual é sacrificadoao persistente e opressivo eles. O ser humano é umser-para-os-outros, quando deveria ser uma ser em-si.

E a galinha? O ovo é o grande sacrifício dagalinha. O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida.O ovo é o sonho inatingível da galinha. A galinha amao ovo. Ela não sabe que existe o ovo. Se soubesseque tem em si mesma o ovo, perderia o estado degalinha. (p. 2)

A (galinha) que pensou que “eu” significa ter umsi-mesmo. As galinhas prejudiciais ao ovo são aquelasque são um “eu” sem trégua. Nelas o “eu” é tãoconstante que elas já não podem mais pronunciar apalavra “ovo”. (p. 3)

III.2. EXISTENCIALISMO

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Inclusive, faço um mal aos outros que,francamente. O falso emprego que me deram paradisfarçar a minha verdadeira função, pois aproveitoo falso emprego e dele faço o meu verdadeiro... (p. 5)

ANGÚSTIA: é o único sentimento e modo deexistência humana que pode conduzir o homem aoencontro de sua totalidade como ser e juntar ospedaços a que é reduzido pela imersão namonotonia e na indiferenciação da vida cotidiana.

É uma traição contra si mesmo: deixa-sedominar pelas mesquinharias do dia-a-dia.

Na angústia, todas as coisas do mundodesaparecem bruscamente como desprovidas dequalquer importância.

III.2. EXISTENCIALISMO

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O ovo é uma exteriorização. Ter uma casca é dar-se.- O ovo desnuda a cozinha. Faz da mesa um planoinclinado. O ovo expõe. – Quem se aprofunda num ovo,quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendooutra coisa: está com fome. (p. 1)

O que ameaça o angustiado está em tudo e emlugar algum ao mesmo tempo, envolvendo o o homemcom um sentimento de estranheza radical.

De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo.

Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente perceboque não se pode estar vendo um ovo. Ver o ovo nunca semantêm no presente: mal vejo um ovo e já se torna tervisto o ovo há três milênios. – No próprio instante de sever o ovo ele é a lembrança de um ovo. – Só vê o ovoquem já o tiver visto. – Ao ver o ovo é tarde demais: ovovisto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um diachegar a ver o ovo. – Olhar curto e indivisível; se é quehá pensamento; não há; há o ovo. (p. 1)

III.2. EXISTENCIALISMO

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DESAMPARO: a estranheza radical provocada pelaangústia faz com que o homem sinta-se completamente perdido edesvalido.

Há casos de 2 agentes que se suicidam: achaminsuficientes as pouquíssimas instruções recebidas e se sentemsem apoio. Houve o caso do agente que revelou publicamenteser agente porque lhe foi intolerável não ser compreendido, e elenão suportava mais não ter o respeito alheio: morreu atropeladoquando saía de um restaurante. Houve um outro que nemprecisou ser eliminado: ele próprio se consumiu lentamente nasua revolta, sua revolta veio quando ele descobriu que as duasou três instruções recebidas não incluíam nenhuma explicação.Houve outro também eliminado, porque achava que “a verdadedeve ser corajosamente dita”, e começou em primeiro lugar aprocurá-la; dele se disse que morreu em nome da verdade comsua inocência; sua aparente coragem era tolice, e era ingênuo oseu desejo de 1lealdade, ele compreendera que ser leal não écoisa limpa, ser leal é ser desleal para com todo o resto. Essescasos extremos de morte não são por crueldade. É que há umtrabalho, digamos cósmico, a ser feito, e os casos individuaisinfelizmente não podem ser levados em consideração. Para osque sucumbem e se tornam individuais é que existem asinstituições, a caridade, a compreensão que não discriminamotivos, a nossa vida humana enfim. (pp. 4,5)

III.2. EXISTENCIALISMO

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1. lealdade: problematização da relação do sercom o outro no que tange à limitação de suarealização e de sua liberdade pela liberdade do outro.

2. agentes: aqueles que se dão conta de quevivem uma existência inautêntica e despertam para abusca do eu autêntico.

As experiências narradas são tentativas detranscendência, todas falhas e com desfecho mortal oude alienação.

Mas para a galinha não há jeito: está na suacondição não servir a si própria. Sendo, porém, o seudestino mais importante que ela, e sendo o seu destinoo ovo, a sua vida pessoal não nos interessa. (p. 3)

III.2. EXISTENCIALISMO

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A perspectiva existencialista de ClariceLispector vem ao encontro do dilema do homemmoderno desacreditado das ideologias e de simesmo ante os fatos históricos ocorridos no séculode extremos e catástrofes. Contexto de guerras friase quentes, ódio e divisão, fome e miséria extremas,torturas e genocídios, ditaduras e perdas de todasas conquistas humanistas realizadas ao longo doséculo XIX.

III.2. EXISTENCIALISMO

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CONCLUSÃO

CLARICE POETA

"Quer me mandar algumas coisas? Você époeta, Clarice querida. Até hoje tenho remorsodo que disse a respeito dos versos que vocême mostrou. Você interpretou mal minhaspalavras. Você tem peixinhos nos olhos, vocêé bissexta. Faça versos, Clarice, e se lembrede mim. Você nunca é falante, barulhenta. Oque você escreve nunca dói nem fere osouvidos. Você sabe escrever baixo. E suaassinatura, Clarice, é você inteirinha:Clara...Clarinha...Clarice.“

Manuel Bandeira.

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VISÃO DE CLARICE LISPECTORCarlos Drummond de Andrade

Clarice,veio de um mistério, partiu para outro.

Ficamos sem saber a essência do mistério.Ou o mistério não era essencial,era Clarice viajando nele.

Era Clarice bulindo no fundo mais fundo,onde a palavra parece encontrarsua razão de ser, e retratar o homem.

O que Clarice disse, o que Clariceviveu por nós em forma de históriaem forma de sonho de históriaem forma de sonho de sonho de história(no meio havia uma barataou um anjo?)não sabemos repetir nem inventar.São coisas, são jóias particulares de Clariceque usamos de empréstimo, ela dona de tudo.

Clarice não foi um lugar-comum,carteira de identidade, retrato.

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De Chirico a pintou? Pois sim.

O mais puro retrato de Claricesó se pode encontrá-lo atrás da nuvemque o avião cortou, não se percebe mais.

De Clarice guardamos gestos. Gestos,tentativas de Clarice sair de Claricepara ser igual a nós todosem cortesia, cuidados, providências.Clarice não saiu, mesmo sorrindo.Dentro delao que havia de salões, escadarias,tetos fosforescentes, longas estepes,zimbórios, pontes do Recife em bruma envoltas,formava um país, o país onde Claricevivia, só e ardente, construindo fábulas.

Não podíamos reter Clarice em nosso chãosalpicado de compromissos. Os papéis,os cumprimentos falavam em agora,edições, possíveis coquetéisà beira do abismo.Levitando acima do abismo Clarice riscavaum sulco rubro e cinza no ar e fascinava.

Fascinava-nos, apenas.Deixamos para compreendê-la mais tarde.Mais tarde, um dia... saberemos amar Clarice.