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Iohn é extremamente prático. Não tem paciência alguma com a fé, tem um horror enorme à superstição e debocha abertamente de qualquer conversa sobre coisas que não possam ser tocadas e vistas e registradas em números. F Iohn é médico e talvez - (eu não diria isso a vivalma, claro, \:lt mas isso aqui é um papel morto e um grande alívio para minha ca- beça) - talvez essa seja uma das razões para eu não melhorar mais f inid (<-< rf.l rapl o. I.r»: (V'< o-: ti"' c\-•.•."v Sabe, ele não acredita que eu esteja doente! / ~<.r"' ;;.;. \ ~ \, E o que é que se po e fazer? .~ Se um médico altamente conceituado, o p).0prio marido da) pessoa, garante a amigos e parentes que real .ente não há nada de- mais com ela, só uma depressão nervosa-temporária - uma ligeira pv Tl I..- tendência histérica -, o que se há de fazer?' I Meu i,mão também é médico, também altamente concei""'i 1. Tradução de Stelamaris Coser. o PAPEL DE PAREDE AMAREL0 1 CONTOS EM TRADUÇÃO É muito raro que pessoas tão comuns como Iohn e eu consi- gam um casarão antigo para passar o verão. Uma mansão colonial, um imóvel de herança, eu diria até uma casa mal-assombrada, e atingir o auge da felicidade romântica - mas isso seria pedir demais ao destino! Mesmo assim, posso afirmar solenemente que tem algo estra- nho com a casa. Senão, por que seria alugada tão barato? E por que ficou sem inquilino por tanto tempo? Iohn ri de mim, é claro, mas isso já é esperado num casamen- to. '(/'3 ,\- ~~ /' -.;-' t--&F' I), (/' \ (f'"' ',,-'''Mas eu tenho que dizer o que sin- J,"'" '-\ \ ,cr' J ~. to e penso de algum modo". cr" 'r ) ..- \..)~1 \ " ,..., '\,.v . ff'- \ v- . J ,..- c" '" ,,(,:...~ ,..!'.:J '\.. ~ t". "\ ú" '0 I. \ C/V \..;,,1 ).. ( o papel de parede amarelo 21

O Papel de Parede Amarelo

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literatura

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  • Iohn extremamente prtico. No tem pacincia alguma coma f, tem um horror enorme superstio e debocha abertamente dequalquer conversa sobre coisas que no possam ser tocadas e vistase registradas em nmeros.F Iohn mdico e talvez - (eu no diria isso a vivalma, claro,\:lt mas isso aqui um papel morto e um grande alvio para minha ca-

    bea) - talvez essa seja uma das razes para eu no melhorar mais

    finid (

  • 22

    do, e diz a mesma coisa.(;/;,(-';;;. Assim, tomo fosfatos ou fsfitos - seja l o que for, e tnicos0::. ~e ar, e fao caminhadas e exerccios, e estou absolutamente proibida'V~ -G~tFabalhar" at estar bem de novo. ----.

    t)-v '" --......

    )e" Pessoalmente, discordo das idias deles.i

    Pessoalmente, acho que um trabalho agradvel, com a em-

    polgao e a novidade, me faria bem.Mas o que se pode fazer?Insisti em escrever por um tempo apesar deles; mas realmente

    me cansa muito - ter que fingir tanto sobre o assunto, ou ento en-

    frentar oposio cerrada.J (.'i.t./ s vezes tenho a fantasia de que, na minha condio, se tives-

    C),.;" 'vtse menos oposio e mais companhia e estmulo - mas Iohn diz que) }, .. "\h

    ~ a pior coisa que posso fazer pensar na minha condio, e confesso

    que isto sempre me deixa mal.

    Ento vou abandonar o assunto e falar da casa.

    Que lugar mais lindo! bem isolada e fica bastante recuadada estrada, a umas trs milhas da vila. Me faz lembrar lugares ingle-

    ses que a gente v descritos em livros, pois tem cercas vivas, murose portes com cadeados, e muitas casinhas separadas para os jardi-

    neiros e outras pessoas.

    Tem umjardim delicioso Nunca vi um jardim assim - grandee sombreado, cheio de caminhos entre os canteiros e caramanches

    de parreiras de uvas com bancos embaixo para sentar.

    ~\le estufas tambm mas.agora esto todas quebradas.

    MV~ Houve algum problema legal ligado a herdeiros e co-herdei-(/Jc .v ' v ros, eu acho, e o lugar ficou vazio durante anos, ."j.'''''~'~I t lh 'd"~d c .v 1\ir' I'." r sso a rapa a a I ela que t1v~~~:.antasl11~as no Impor-C ta - h algo estranho com a casa - posso sentir.

    At falei comiuhfisb~Ts~oite enluarada, mas ele

    disse que o que senti foi uma corrente de ar, e fechou a janela.~--.------ )b iiA.- r- ~(Ct)} Jtt ~

    s vezes fico zangada com Iohn sem razo. Tenho certeza

    que antes eu no era assim to sensvel. Deve ser por causa desseproblema nervoso.

    f d~ Mas Iohn diz que se me sinto assim vou descuidar do meu au-{)"V" tocontrole, ento fao o maior esforo para me controlar - na frente

    '.v""~JA,~fi"'dele,pelo menos, e isso me deixa muito cansada.r No gosto nada do nosso quarto. Queria um no andar de).1aixo, que abria para a varanda e tinha rosas por toda a janela, e

    umas cortinas antigas de chintz to lindas! Mas Iohn no me deuouvidos.

    Disse que l havia uma janela apenas e espao insuficiente

    para duas camas, e nenhum quarto ao lado onde ele pudesse ficar.

    (loA~ Ele muito cuidadoso e amoroso e quase no permi ue eume mexa sem me dar uma orienta o es ~~CJ.

    \'~ -vJJ..... Tenho uma receita que determina o que devo fazer a cada---:---.~

    hora do dia; ele me tira qualquer preocup-ao,e me sinto uma in-\ I ( ~.,.,...grata por no dar mais valor a isso.

    Cv Disse que vie~os y~r c s por minha causa, para eu des-'f cansar totalmente e respirar todo o ar puro possvel. "Seu exerccio~epende de sua fora, querida", falou, "e sua alimenta - de~de seu apetite; masar puro voc pode re~pirar o tempo todo". Ento

    ficamos no berrio no andar de cima da casa.

    .Jt';;;;;' um quarto grande, arejado, quase todo o andar, com jane-(Jv.. ~ .

    e ) Ias para todos os lados, e ar e sol em abundncia. Foi primeiro um\()berrio e depois sala de jogos e de esportes, eu imagino; pois as

    janelas tm grades para crianas pequenas, e h argolas e coisas nas

    pa~~e~. A"f\r~ 3'~pintura e o .papel de ,parede do a impresso de ali ter sido

    ~ cptftna escola de menmos. Esta arrancado - o papel - em pedaosIV' o ~~-------

    grandes em torno da cabeceira da minha cama, at mais ou menos aaltura-01e c;~ana~ ~ma rea g~de, be; embixo, do~.--- ,--.~ - - j1t.:{?

    ~ 2/; L 11. C1JJ)~~ , ? I f J / l" .iA'!'~ I .Il~ (J 23q~~3.14 :ro ?; 7;11( _ ~ 3!.t11 (C" '\ ID-\.~~ ~?J 1 s: 0'1). ~

  • outro lado do quarto. Nunca vi papel pior em toda minha vida.Um daqueles tipos de desenhos bem espraiados e espalhafa-

    tosos que pecam totalmente contra a arte. apagado o bastante para confundir quem busca segui-lo

    com o olhar, marcante o bastante para causar freqente irritao eprovocar o estudo, e quando voc tenta acompanhar as curvas tortase incertas durante um pequeno trecho, de repente elas se suicidam- precipitam-se em ngulos ultrajantes, destroem-se em contradi-es impossveis.

    A cor repelente, quase repulsiva; um amarelo sujo, apagado,estranhamente desbotado pela luz do sol que passa devagar sobreele.

    Iohn no sabe o quanto eu sofro de verdade. Ele sabe que no~h~a razo para eu sofrer, e isso ~ s~ r---.. . -

    =- LgtCo

  • 10 por causa de um mero capricho.Estou na verdade comeando a gostar do quarto grande, de

    tudo, menos daquele papel horrvel.De uma das janelas posso ver o jardim, aquelas prgulas mis-

    teriosas cheias de sombras, uma profuso de flores antigas, arbustose rvores retorcidas.

    De outra tenho uma vista linda da baa e de um pequenocais particular que pertence propriedade. H uma bela alameda

    {sombreada que vai do cais at a casa. ~~ im~gino ve!:~o-~ , as caminhando n:sses muitos caminhos e passarelas, ma.s J~hn ~ec-,.J,? "'1llertotl para eu-no me entregar de jeito ne~hum ~ fantas~as:E~e~IZl' que com o meu grau de imaginao e hbito de inventar histrias,

    uma debilidade nervosa como a que tenho pode levar a todo tipo defantasias alucinadas, e que preciso usar minha vontade e bom sensopara controlar a tendncia. Por isso, eu tento.

    s vezes penso que se eu estivesse bem pelo menos para es-crever um pouco, aliviaria a presso das idias e descansaria.

    Mas vejo que fico bastante cansada quando tento. to frustrante no ter quem me acompanhe e aconselhe no

    trabalho! Iohn diz que quando eu estiver realmente bem vamos con-vidar os primos Henry e [ulia para uma visita demorada; mas dizque seria melhor colocar fogos de artifcio no meu travesseiro doque ter essas pessoas to estimulantes por aqui, agora.

    ov,t\f) \l~ .'~Gostaria de melhorar mais rpido.r \ lh .

    JC' \-

  • r,) U

    /

    profisso melhor que essa. Acredito realmente que ela pense que es-

    crever foi o que me deixou doente!Mas posso escrever quando ela est fora, e consigo enxerg-Ia

    ao longe atravs destas janelas.Tem uma janela que d vista para a estrada, uma estrada linda

    e sombreada, cheia de curvas, e uma outra que se abre para o campo.

    tambm um campo lindo, cheio de grandes olmos e prados que

    parecem veludo.Esse papel de parede tem uma espcie de desenho por baixo

    num tom diferente, e particularmente irritante, porque s d para

    ver sob uma luz especfica, e mesmo assim sem clareza.Mas, nos lugares onde no est desbotado e o sol bate do jeito

    certo - posso ver um tipo de figura estranha, provocante, disfor-

    me, que parece esconder-se, amedrontada, por trs daquele desenho

    principal tolo e bvio.. r' ') L vem a irm subindo a escada!-,

    * * *

    Bem, o feriado de Quatro de Julho terminou! As pessoas fo-

    ram todas embora e eu estou esgotada. Iohn achou que me faria bem

    ter um pouco de companhia, ento s vieram para c minha me e

    Nellie e as crianas durante uma semana.

    Claro que no fiz nada. [ennie cuida de tudo agora.

    Mas me cansou assim mesmo.John diz que se eu no me recuperar mais rpido vai me man-

    dar para Weir Mitchell no outono.Mas no quero ir para l de jeito nenhum. Tenho uma amiga

    que esteve uma vez nas mos dele e disse que ele igual a Iohn e meuirmo, s que pior ainda!

    Alm disso, um trabalho enorme ir para to longe.

    28

    Sinto que no vale a pena mexer minha mo para nada, e es-

    tou ficando tremendamente irritadia e mal-humorada.

    Choro toa, e choro a maior parte do tempo.

    Claro que no choro quando Iohn est aqui, ou outra pessoa,mas quando estou sozinha.

    E agora fico bastante s. Freqentemente Iohn precisa ficar

    na cidade por causa de pacientes graves, e Jennie boa e me deixasozinha quando quero.

    A ando um pouco pelo jardim ou por aquela linda alameda,

    sento na varanda perto das rosas, e fico bastante tempo deitada aquiem cima.

    Estou gostando mesmo do quarto apesar do papel de parede.

    Talvez por causa do papel de parede.Ele no me sai da cabea!

    Deito aqui nesta grande cama imvel- acho que est pregada

    no cho - e sigo aquele desenho durante horas. to bom quantofazer ginstica, posso lhe afirmar. Comeo, digamos, na parte de

    baixo, l no canto onde o papel no foi afetado, e decido pela mi-

    lsima vez que vou sim acompanhar o traado deste desenho semsentido at chegar a algum tipo de concluso.

    Tenho algumas noes bsicas de desenho, e sei que essa coi-

    a no foi planejada segundo qualquer regra de irradiao, ou alter-

    nncia, ou repetio, ou simetria, ou outra coisa de que eu j tenha

    uvido falar.Ele se repete, claro, nas tiras do papel, mas no de outra

    maneira.Olhada de certo modo, cada faixa fica sozinha, com curvas

    Inchadas e floreios - uma espcie de imitao barata do estilo rom-

    nico com delirium tremens - contorcendo-se para cima e para baixom colunas isoladas cheias de futilidade.

    Mas, por outro lado, elas se ligam diagonalmente, e os tra-

    29

  • ~V os espalhados fogem em grande~g~nais de ~su-al como uma oro de algas marinhas nadando em ritmo de totalperseguio.-. ~oisa toda segue horizontalmente, tambm, pelo menos as-

    sim me parece, e fico exausta tentando decifrar qual a ordem queleva o desenho nessa direo.

    Usaram uma faixa horizontal como frisa na parede, e issocontribui maravilhosamente com a confuso.

    H um canto do quarto onde o papel est quase intacto e l,quando a iluminao lateral pouca e o sol j baixo brilha direta-

    " ;:f' jnente sobre ele, quase consigo imaginar um ponto de irradiao,\ p,\Jl . afinal, --.;s interminveis figuras grotescas parecem formar-se ao re-

    dor de um centro comum e precipitar- rim queda vertiginosa, coma mesma loucura.-~,--- Me cansa acompanhar o desenho. Acho que vou dormir umpouco.

    ***

    No sei por que escrevo isto.-.~ Eu no quero.

    C!~ ~. No me sinto capaz.v \.6~ E Iohn acharia um absurdo. Mas eu tenho !}e dizer o que,i,I / sinto e penso de algum modo - um alvio enorme'/\~ - Mas o esforo est se tornando m~lvio.r;'I/::' .CCl'-' Ametade do tempo agora fico extremamente ociosa e deitadal,.,c demais.

    [ohn diz que no posso perder minhas foras, e me faz tomarleo de fgado de bacalhau, e muitos tnicos e coisas assim, para nofalar da cerveja preta e do vinho e da carne malpassada.

    Querido John! Ele me ama muito, e detesta me ver doente.

    30

    Tentei ter uma conversa sria com ele outro dia e dizer que eu gos-taria muito que me deixasse ir visitar o primo Henry e Iulia.

    ::d Mas ele falou que eu no seria capaz de ir, nem de agentarquando chegasse l; e no consegui defender bem minha causa por-ue comecei a chorar antes de chegar ao final.

    Para mim est se tornando um grande esforo pensar comclareza. s essa fraqueza nervosa, suponho.

    i ,@EmeucaroTOhnmepegouemseUSbraoseSimPlesmenteme carreg~u par,a cim~ e me colocou na cama, sentou ao meu lado eleu para num ate que ISSOcansou minha cabea.

    Disse que eu era sua querida, seu conforto e tudo que ele ti-nha, e que devo cuidar de mim por causa dele, e ficar bem.

    p4 Diz que ningum, fora eu mesma, pode me tirar disso, queI \ devo usar minha fora de vontade e autocontrole e no permitir que

    fantasias tolas me descontrolem.H um conforto pelo menos, o beb est bem e feliz, e no

    precisa ficar neste berrio com o papel de parede horrvel.ri' Se no o tivssemos ocupado, a querida criana teria! Que

    O'''''flicidadeter escapado! Ora, eu no gostaria, por nada no mundo,que um ~ me~uma coisiuha..peqJJ.eilll-Li.mp!=essi.anwt,vivessenum quarto assim.

    Nunca pensei nisso antes, mas foi sorte Iohn ter-me mantidoaqui, afinal, posso agentar muito melhor que um beb, entende?

    Claro que no toco mais nisso com eles - sou inteligente obastante -, mas continuo vigiando o papel do mesmo jeito.

    H coisas nesse papel de parede que ningum conhece ou co-nhecer, exceto eu.

    Por detrs desse desenho externo principal, as formas confu-as se tornam cada dia mais ntidas.

    sempre a mesma forma, s que em grande nmero.E parece uma ;nulher se abaixando e se arrastando 120~

    -~"C'r;J;;;;;I C t-;

  • desenho. No gosto nada disso. Fico imaginando - comeo a pensar

    - gostaria que [ohn me levasse para longe daqui!

    * * *

    to difcil conversar comJohn sobre meu caso, 'porque ele

    to sho.e.porque me ama tanto.~- ~------~

    Mas tentei, ontem noite.Era noite de lua. A lua entra aqui com seu brilho por todos os

    lados, assim como o sol.s vezes detesto v-Ia, ela se esgueira to lentamente, e sem-

    pre entra por uma janela ou por outra.Iohn estava dormindo e eu detestaria acord-Ia, ento fiquei

    quieta e observei a luz da lua sobre as ondulaes daquele papel de

    parede, at ficar com arrepios.

    _ "'f ':A figura esmaecida de trs parecia sacudir o desenho da~~-oV"~, como se quisesse escapar.

    Levantei suavemente e fui l sentir se o papel realmente se

    movia, e quando voltei Iohn tinha acordado."O que , menina?", ele disse. "No saia por a andando assim

    - voc vai sentir frio".Achei que era um bom momento para conversarmos, ento

    falei que realmente eu no estava melhorando aqui e gostaria que

    me levasse embora."Mas como, querida!", disse ele, "nosso contrato vence em

    trs semanas e no vejo como partir antes"."Os consertos no esto prontos l em casa, e no posso de

    forma alguma sair da cidade agora. Claro que se voc estivesse em

    perigo eu poderia e iria embora, mas na verdade voc est melhor,

    querida, mesmo que no perceba. Sou mdico, querida, e sei. Vocest ganhando peso e cor, seu apetite est melhor, e estou me sentin-

    32

    do bem mais tranqilo em relao a voc.

    "No estou pesando nada mais do que antes, nem o mesmo",falei; e meu apetite pode ser melhor noite, quando voc est aqui,mas pior de manh, quando voc est fora".

    "Deus abenoe este coraozinho!", ele disse, com um gran-

    de abrao, "pode ficar doente o quanto quiser! Mas agora vamos

    melhorar as horas de sono indo dormir, e conversamos sobre issoamanh de manh!".

    "E voc no vai embora?", perguntei com tristeza.

    "Mas, querida, como posso? So s trs semanas mais e en-to faremos uma viagem agradvel por alguns dias, enquanto Iennieapronta a casa. Querida, voc est realmente melhor!".

    "Melhor no corpo, talvez -" comecei e parei imediatamente,porque ele se sentou bem reto e me fitou com um olhar to duro ereprovador que no pude dizer mais nem uma palavra.

    "Minha querida", disse ele, "suplico a voc, pelo meu bem

    e pelo bem de nosso beb, assim como por seu prprio bem, que

    nunca deixe aquela idia entrar na sua cabea nem por um instante!

    No existe nada to perigoso, to fascinante, para um temperamen-

    to como o seu. uma fantasia boba e falsa. Voc no confia em mimcomo mdico quando lhe afirmo isto?".

    Ento, por essa razo, claro que no falei mais nada, e da a

    pouco dormimos. Ele pensou que eu tinha dormido primeiro, mas

    (

    no dormi, e fiquei l deitada durante horas, tentando decidir se

    aquele desenho da frente e o desenho de trs realmente se moviamJuntos ou separadamente.

    ***

    Num tipo de desenho como esse, na luz do dia, h uma falta

    eqncia, um desprezo pela lei, que no pra de irritar qualquerti

    33

  • 34 35

    mente normal.A cor em si j horrorosa, incerta e enfurecedora, mas alm

    disso o desenho torturante.Voc pensa que o compreendeu e dominou, mas quando j

    est acompanhando bem o padro, ele d uma cambalhota, e pron-

    to! Bate na sua cara, derruba, pisa em voc. como um pesadelo.O padro de desenho externo um arabesco florido que me

    lembra um fungo. Se voc conseguir imaginar fungos articulados,

    uma interminvel fileira de fungos brotando e crescendo em com-

    plexidades sem fim - isso mesmo, algo assim.

    Quer dizer, s vezes!H uma peculiaridade marcante nesse papel, algo que nin-

    gum parece notar exceto eu, o fato de mudar quando a iluminao

    muda.Quando o sol bate forte pela janela leste - sempre fico espe-

    rando por aquele primeiro raio, longo, direto - ele muda to rapida-

    mente que quase no consigo acreditar.

    Por isso que o vigio sempre. luz do luar - a lua brilha no quarto a noite toda quando tem

    lua - eu no poderia afirmar que ele era o mesmo papel. noite, em qualquer tipo de luz, ao entardecer, luz da lm-

    pada e, o pior de tudo, luz da lua, ele se transforma em barras!Quer dizer, o padro externo, e a mulher atrs dele fica absoluta-

    mente ntida.No percebi por um bom tempo qual era a coisa que aparecia

    atrs, naquele desenho obscuro embaixo, mas ~9astant~certeza de que uma mulh:r.

    Na luz do dia ela fica quieta, contida. Fico imaginando que r-.o padro de desenho do ~pcl..q.ue"a-mantm to parada. algo to

    intrigante! Isso me deixa quieta por ho~Fico tanto tempo deitada, agora. Iohn diz que bom para

    mim - e dormir o mais que puder.

    De fato, ele comeou com o hbito de me mandar deitar poruma hora aps cada refeio.

    um pssimo hbito, estou convencida disso, porque, vocsabe, eu no durmo.

    E isso estimula a falsidade, porque no digo a eles que estouacordada - oh, no!

    O fato que estou ficando com um pouco de medo do Iohn,Ele, s vezes, parece muito estranho, e at Iennie est com

    uma cara inexplicvel.

    Me ocorre de vez em quando, s como hiptese, ., que talvezseja o papel!

    Fiquei observando Iohn quando ele no sabia que eu estavaolhando, vindo de repente ao quarto com as desculpas mais inocen-tes, e peguei-o vrias vezes olhando para o papel! E Iennie tambm.Peguei Iennie uma vez com a mo no papel.

    Ela no sabia que eu estava no quarto, e lhe perguntei, com avoz baixa, uma voz bem baixa, da maneira mais controlada possvel,

    o que ela estava fazendo com o papel - ela se virou rpido, como se

    tivesse sido pega roubando, e me pareceu muito zangada - e per-guntou porque eu a amedrontava assim!

    Ento ela disse que o papel manchava tudo que encostavanele, que tinha achado manchas amarelas em todas as minhas rou-

    pas e nas de Iohn, e gostaria que fssemos mais cuidadosos!

    Isso parecia uma razo inocente, no ? Mas sei que ela estavastudando aquele desenho, e estou decidida que ningum vai deci-

    fr-Ia a no ser eu!

    ***

    A vida agora est muito mais animada do que antes. Sabe,

  • tenho algo mais a esperar, a prever, a observar. Realmente me ali-mento melhor, e estou mais quieta do que era.

    Iohn est to contente em me ver melhorando! Riu um poucooutro dia, e disse que eu parecia estar florescendo apesar do meupapel de parede.

    Cortei o assunto com uma risada. No tinha inteno algumade lhe dizer que era por causa do papel de parede - ia debochar demim. Podia at querer me levar embora.

    No quero partir agora antes que o descubra. Tem mais umasemana, e acho que vai ser suficiente.

    1"-' (P'sh trtPLv> ~r" d~~cf Cv c~",(a 'JC?'\.JvC'.r::J .

    ",,' ",9f\. Oy1 d (,,,(.,

    J ) stou me sentindo to melhor!No durmo muito noite porque to interessante observar

    as evolues; mas durmo muito durante o dia.a dia me deixa cansada e perplexa.H sempre brotos novos nos fungos e novos tons de amarelo

    por toda parte. No consigo saber direito quantos so, apesar de ha-ver tentado contarcom muito cuidado.

    o ~marelo mais estranho que existe, esse papel de parede!'-----./

    Faz-me pensar em todos os amarelos que j vi - no os tons bonitos.---:- ~dos botes-de-ouro, mas as coisas velhas, ruins e podres.

    Mas tem algo ma'i; cc;m~esse-p~tei no ins-tante em que entramos no quarto, mas com tanto ar e sol no erato ruim. Agora tivemos uma semana de chuva e nevoeiro, e com asjanelas abertas ou no, o cheiro est a.

    A~sta-se pela asa toda."Encontro-o pairando sobre a sala de jantar, passando esquivo

    v,,"'para a sala de estar, escondendo-se no corredor, minha espreita naC

    "tI..- v escada.'"

    \ -'\

    36

    Penetra em meus cabelos.At quando vou andar de bicicleta, se viro minha cabea de

    repente para surpreend-Ia -l est o cheiro!Um odor to peculiar, tambm! Tenho passado horas tentan-

    do analis-Ia, descobrir que cheiro esse.No ruim - no comeo -, e bem leve, mas o odor mais

    sutil, mais duradouro que j encontrei.J~ ~este temp~ mido terrvel, acordo de noite e o yej--~n-

    durado acima de mim.'- -

    Isso a pr~plO me perturbava. Pensei seriamente em colocarfogo na casa - para atingir o cheiro.

    Mas agora me acostumei a ele. A nica coisa que posso pen-sar que ele igual cor do papel! Um cheiro amarelo!

    H uma marca muito engraada nesta parede, bem prximado rodap. Uma listra que percorre todo o quarto. Passa atrs decada mvel, exceto a cama, uma faixa longa, reta, at pegajosa, comose tivesse sido esfregada muitas vezes. ~

    Queria saber como foi feita e quem a fez, e para que a fizeram.Roda e roda e roda - roda e roda e roda - me deixa tonta!

    ***

    Descobri mesmo uma coisa, finalmente.Depois de tanta observao durante a noite, quando ele muda

    tanto, afinal descobri.

    a desenho da frente se mexe mesmo - lgico! A mulher portrs dele o sacode!

    s vezes penso que h muitas mulheres atrs, e s vezes ape-nas uma, e ela rasteja em volta bem depressa, e o movimento que fazrastejando sacode tudo.

    Ento, nos locais bem claros ela fica parada, e nos pontos

    37

  • mais escuros ela se agarra nas barras e as sacode com fora.

    E o tempo todo ela est tentando saltar para fora das grades.Mas ningum conseguiria escapar daquele padro de desenho - ele

    estrangula tanto; acho que por isso que tem tantas cabeas.Elas passam para o outro lado, e a o desenho as estrangula e

    as coloca de cabea para baixo, e faz seus olhos ficarem brancos!

    Se essas cabeas fossem cobertas ou retiradas no seria to

    mau.

    ,j,vJ~ Acho que essa mulher sai durante o dia!

    C .lJ.- E posso lhe dizer - em particular - porque eu a vi!_'.v

    . ) G.> Posso v-Ia de cada uma das minhas janelas!

    a mesma mulher, eu sei, porque est sempre se arrastando,r /...J

    ",; ti" e a maioria das mulheres no rasteja luz do dia.v

    !.' Eu a vejo naquela alameda longa e sombreada, rastejandoo fI}. _. para cima e para baixo. Vejo-a naquelas parreiras, rastejando porI C ('"v- ) todo o jardim.

    , .'"

  • Viva! Este o ltimo dia, mas o bastante. Iohn est pernoi-tando na cidade, e s vem hoje ao anoitecer.

    Iennie queria dormir comigo - a falsa!Mas eu disse a ela quesem dvida eu descansaria mais passando uma noite sozinha.

    Foi uma idia inteligente porque, na verdade, eu no estavanada sozinha! Logo que a lua nasceu e aquela pobrezinha comeoua rastejar e sacudir o padro do desenho, levantei-me e corri para

    , d-Ia.k ~e ela sacudia, uxava e ela sacudia, e antes da ma-nh chegar tnhamos descascado muitos metros do papel.c- -----=-

    Uma faixa da altura de minha cabea, em volta da metade do

    quarto.E ento quando o sol chegou e aquele padro terrvel come-

    ou a rir de mim, decidi que terminaria isso hoje de qualquer ma-

    neira!Vamos embora amanh, e esto levando meus mveis para

    baixo de novo para deixar as coisas como eram antes.[ennie olhou para a parede assustada, mas eu disse a ela bem

    alegremente que tinha feito aquilo de pura raiva daquela coisa hor-

    rorosa.Ela riu e disse que at faria a mesma coisa, mas que eu no

    devia me cansar.Como ela se traiu dessa vez!Mas estou aqui, e ningum vai tocar nesse papel a no ser eu

    - ningum com vida!Ela tentou me tirar do quarto - isso ficou bem patente! Mas

    eu disse que ele estava to quieto, vazio e limpo agora que eu achavaque ia me deitar e dormir o quanto pudesse, e que no me acordas-sem nem para o jantar - eu chamaria quando acordasse.

    Ento ela saiu, e os empregados se foram, e as coisas se foram,

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    e nada ficou a no ser essa grande cama pregada no cho, com ocolcho de lona que encontramos nela.

    Dormiremos l embaixo esta noite, e iremos para casa de bar-co amanh.

    Gosto bastante do quarto, agora que est vazio de novo.7 Como aquelas crianas rasgaram tudo aqui!

    jsta cabeceira est cheia de de dentes!Mas tenho que i; trabalhar.Tranquei o quarto e joguei a chave l embaixo no caminho

    da frente.

    No quero sair, e no quero que ningum entre at Iohn che-

    WL~gar. ero impression-lo.Tenho aq"Uhriacorda escondida que nem Iennie consegu

    achar. Se aquela mulher escapar e tentarJygir, eu posso amarr-Ia!Mas esqueci que no consigo alcan~o-se--mitJflver

    algo em que subir!Esta cama no se mexe!Tentei levant-Ia e empurr-Ia at eu ficar torta, e ento fiquei

    tcom tanta raiva que dei uma mordida nela em um canto - mas ma-chucou meus dentes.

    A descasquei todo o papel que consegui alcanar estando em\p no cho. terrivelmente grudado e o padro deve adorar isso!Todas aquelas cabeas degoladas e olhos esbugalhados e fungos tre-mulantes do guinchos de deboche!

    Estou ficando com tanta raiva que posso fazer algo desespera-do. Pular pela janela seria um exerccio excelente, mas as grades sofortes demais at para tentar.

    [Alm do mais, eu no faria isso. Claro que no. Sei bem queum passo desses inapropriado e pode ser mal interpretado.

    No gosto nem de olhar para fora das janelas - tem tantas

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  • ( ()~j J J\()/~()

    ! ~\dlquelas mulheres rastejando, e elas se arrastam to rpido.Df 'I:.I\~V I' ...Ser ue tmlas..e~papel como.eu-safr.Mas-egcra's' ou em amarrada pela corda que escondi t~

    (]0vJfV be~c no vai conseguir me...colo~strada liQ~Suponho que vou ter que voltar para dentro do padro.do

    desenho quando chegar a noite, e isso difcil!r to agradvel ficar solta neste quarto enorme e rastejar em

    ,J.;...P"'tA-J volta d~uarto do jeito que eu quiser!No quero sair daqui. No vou, mesmo que [ennie me pea.Porque l fora voc tem que rastejar no cho, e tudo verde

    em vez de amarelo.Mas aqui posso me arrastar no assoalho, e meu ombro se en-

    caixa bem naquela mancha comprida em volta da parede, e assimno perco o rumo.

    Ih, Iohn est na porta!No adianta, jovem senhor, no conseguir abri-Ia!Como ele chama e bate!Agora est gritando e pedindo um machado.Seria uma pena quebrar essa porta to linda!

    7 "Iohn, querido!", disse eu na voz mais suave, "a chave est l

    ~

    ~C;V" fora, perto dos degraus da entrada, g~ixo de uma folha de bana-. J"nelra ..---o>

    Isso o deixou calado por uns minutos.Depois ele falou - de um jeito bem suave, "Abra a porta, mi-

    nha querida!"."No posso", disse eu. "A chave est perto da porta da frente,

    debaixo de uma folha de bananeira!".E ento repeti isso vrias vezes, bem gentilmente e devagar,

    e disse tantas vezes que ele teve que ir ver, e a encontrou, claro, eentrou. Parou bruscamente na porta.

    "Que aconteceu?", gritou. "Pelo amor de Deus, o que est fa-

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    zendo?".

    Continuei rastejando do mesmo jeito, mas olhei para ele porcima do ombro .

    . "~nsegui sair, at que enfim", eu disse, "a esar de voc e de. Iane, ~ arranquei quase to~I, assim no podem me prenderl de novo!":- ~ -- ~

    (;

    '" O~ por que ser que o homem desmaiou? Mas caiu des-maiado, sim, e atravessado justamente no meu caminho perto daparede, de mo~~ que ~iveque rastejar por cima dele a cada volta!

    )1--. [l/v.' \d~b-{/ ."I.c ".../t. ,

    I

    Lui; Ctudio KleuimBiblioteca Particular

    [email protected]

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