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Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História Social Cultura (PUC-Rio) ANIMA Ano V – nº6 – 2015 história, teoria & cultura 19 O Personagem e seu Modelo: a ficcionalização de Lukács por Thomas Mann em A Montanha Mágica Kaio Felipe [Doutorando em Sociologia – IESP/UERJ] FELIPE, K. O personagem e seu Modelo: a ficcionalização de Lukács por Thomas Mann em A Montanha Mágica. Revista Anima. Ano V, n°6, 2015, p. 19-40. Resumo Georg Lukács produziu vasta crítica literária sobre as obras de Thomas Mann; no sentido inverso, em seu ro- mance A Montanha Mágica, Mann criou o personagem Leo Naphta, dotado de uma ideologia paradoxalmente revolucionária e tradicionalista, sugerindo uma apropriação do pensamento de Lukács, que até meados dos anos 1920 caracterizava-se por um “romantismo anticapitalista”. Este artigo pretende investigar esta ficcionali- zação operada por Mann em A Montanha Mágica, de forma a compreender como certos aspectos da visão de mundo lukacsiana foram apropriados para criar Naphta. Palavras-chave: sociologia da cultura, intelelectuais, literatura alemã. Abstract Georg Lukács produced vast literary criticism on the works of Thomas Mann; in reverse, in his novel The Magic Mountain, Mann created the character Leo Naphta, paradoxically endowed with a revolutionary and traditiona- list ideology, suggesting an appropriation of the thought of Lukacs, who until the mid-1920s was characterized by an "anticapitalist romanticism”. This paper intends to investigate this fictionalization developed by Mann in The Magic Mountain, in order to understand how certain aspects of the Lukácsian world view were appropria- ted to create Naphta. Keywords: Sociology of Culture; Intellectuals; German literature.

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ANIMA Ano V – nº6 – 2015 história, teoria & cultura

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OPersonagemeseuModelo:aficcionalizaçãodeLukácsporThomasMannemAMontanhaMágica

KaioFelipe[DoutorandoemSociologia–IESP/UERJ]

FELIPE,K.OpersonagemeseuModelo:aficcionalizaçãodeLukácsporThomasMannemAMontanhaMágica.

RevistaAnima.AnoV,n°6,2015,p.19-40.

Resumo

GeorgLukácsproduziuvastacríticaliteráriasobreasobrasdeThomasMann;nosentidoinverso,emseuro-

manceAMontanhaMágica,ManncriouopersonagemLeoNaphta,dotadodeumaideologiaparadoxalmente

revolucionáriaetradicionalista,sugerindoumaapropriaçãodopensamentodeLukács,queatémeadosdos

anos1920caracterizava-seporum“romantismoanticapitalista”.Esteartigopretendeinvestigarestaficcionali-

zaçãooperadaporMannemAMontanhaMágica,deformaacompreendercomocertosaspectosdavisãode

mundolukacsianaforamapropriadosparacriarNaphta.

Palavras-chave:sociologiadacultura,intelelectuais,literaturaalemã.

Abstract

GeorgLukácsproducedvastliterarycriticismontheworksofThomasMann;inreverse,inhisnovelTheMagic

Mountain,ManncreatedthecharacterLeoNaphta,paradoxicallyendowedwitharevolutionaryandtraditiona-

listideology,suggestinganappropriationofthethoughtofLukacs,whountilthemid-1920swascharacterized

byan"anticapitalistromanticism”.ThispaperintendstoinvestigatethisfictionalizationdevelopedbyMannin

TheMagicMountain,inordertounderstandhowcertainaspectsoftheLukácsianworldviewwereappropria-

tedtocreateNaphta.

Keywords:SociologyofCulture;Intellectuals;Germanliterature.

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IntroduçãoDois dos mais destacados pensadores do século XX foram o filósofo Georg Lukács

(1885-1971)eo romancistaThomasMann (1875-1955).Oprimeiroéconsideradoumdos

principaisexpoentesdomarxismoocidental,11graçasàobraHistóriaeConsciênciadeClasse

(1923),alémdeterinfluenciadomuitosestudosemestéticaecríticaliteráriaatravésdeen-

saioscomoATeoriadoRomance(1916);porsuavez,Manncriouobrasmarcadaspelaele-

gânciaformalepeladensidadefilosófica,destacando-seanovelaAMorteemVeneza(1912)

eosromancesAMontanhaMágica(1924)eDoutorFausto(1947).

Ambosdesenvolveramtrajetóriasintelectuaisquetêmemcomumumasúbitatransi-

ção ideológica entre as décadas de 1910 e 1920. Inspirado pela Revolução Russa, Lukács

abandonouo idealismode toques kierkegaardianosde seusprimeirosescritosemprolde

umadefesahegeliano-marxistadosocialismo,efiliou-seaoPartidoComunistaHúngaro.Jáo

romancistaalemão,apósaPrimeiraGuerraMundial,migroudeumconservadorismoapolí-

ticoedecadentistaparaumhumanismodemocrático,tornando-seassimumdosprincipais

(eraros)intelectuaispúblicosdeseupaísaapoiaraRepúblicadeWeimar(1918-33).

NestemesmoperíodoLukácseManncomeçaramadesenvolverumamútua influên-

cia:ocríticotinhaemaltaconsideraçãoaformacomquecontoscomoTonioKröger(1903)

lidavamcomaproblemática relaçãoentreartistae sociedade; jáo romancista se inspirou

emensaiosdohúngaroemAAlmaeasFormas(1911)paraescreversuanovelaAMorteem

VenezaeseulongoensaioConsideraçõesdeumApolítico(1918).Nosanosseguintes,mes-

mo o profundo distanciamento político-ideológico entre ambos não impediu que Lukács

continuasseaelegerManncomoumdosmaioresescritoresdesuaépoca,equeestede-

monstrassegratidãopelasinterpretaçõesdeseucrítico.

Opropósitodesteartigoécapturarummomentodecisivodarelaçãoentreambos:a

formacomoManntomouLukácscomoinspiraçãoparacriarLeoNaphta,umsoturnoperso-

11Vertentedopensamentomarxistacaracterizadapelaepistemologiahumanística(equepassaporumacríticadonaturalismocientificista),peloforteinvestimentonacríticacultural(tantodaarteeruditaquantodaculturademassa)epeloecletismoconceitual(cf.MERQUIOR,1987,p.19).NatradiçãodomarxismoocidentalháumamescladasanálisesdeMarx(1818-1883)comafilosofiadeHegel(1770-1831)e,nocasodaEscoladeFrank-furt,comasociologiadeGeorgSimmel(1858-1918)eMaxWeber(1864-1920)Dentreosprincipais“marxistasocidentais”podemsercitados,alémdeLukács,AntonioGramsci (1891-1937),MaxHorkheimer (1895-1973),HerbertMarcuse(1898-1979)eTheodorAdorno(1903-1969).

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nagemdeseuromanceAMontanhaMágicaqueapresentaideiasparadoxalmenterevoluci-

onáriasetradicionalistas.Essaficcionalizaçãopoderiaseridentificada,porexemplo,nofato

deNaphtaseraomesmotempo jesuítaecomunista,nessesentidorepresentandooasce-

tismoeoanseioporordemdeLukács,críticocontundentedaartemodernaedadecadência

moraldasociedadeburguesa.

Cabeinvestigar,portanto,seManninspirou-senopensamentodeLukácsapósacon-

versão deste aomarxismo, em1918, oumesmona visão demundo da fase pré-marxista

destepensador;alémdisso,tambémpretendoanalisarseoutrosmodelos intelectuais(Eu-

genLeviné,ErnstBlocheCarlSchmitt)tambémpodemserassociadosaNaphta.

Aolongodoartigodialogo,comoscamposdasociologiadosintelectuaisedacríticali-

terária.Seumladoéprecisoapresentarascondiçõessociaisehistóricasemqueoautorde

AMontanhaMágicaeseucríticoestavaminseridos,poroutrocabeumainterpretaçãomais

imanente (masnão formalista) deste romance;nesse sentido, descrevoa seguir de forma

sucintaométodoficcionaldeThomasMann,emaisadianteanalisoodiscursodopersona-

gemNaphta,deformaarastrearsuasposiçõespolíticasefilosóficas.

OestilorealistadeThomasMann

SegundoocríticoMiklósSzabolcsi,Mannpodeserconsideradoumescritorfiliadoao

realismo.Szabolcsiconsiderarealistas“asobrasdeartequeevocamostraçosessenciaise

espelhamastendênciasbásicasdarealidadesocial,utilizandoasmáximaspossibilidadesde

consciênciasocialdasuaprópriaépoca”;alémdisso,otípicoescritorrealista“acreditaser

capazdeabrangeromundo,emsuatotalidadeouemsuaspartes,apartirdeumpontode

vistaexterno,compreendendo-lheasrelações”(SZABOLCSI,1990,pp.109-110).

É preciso, no entanto, qualificar esse realismo: a “totalidade” almejada porMann é

irônica;istoé,oautorestáconscientedacrisedatradiçãonaqualseancora:desdeosseus

primeirosromancesháumaatmosferadedecadência,comorevelamosmalogradosesfor-

çosdepersonagenscomoGustavAschenbach(AMorteemVeneza)paraenfrentaroesgo-

tamentodos ideaisformativoseafragmentaçãodaprópriaalma.Aquestãoéque,apósa

PrimeiraGuerraMundial,arevoluçãodeMuniqueem1919eocomeçoturbulentodaRe-

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públicadeWeimar,Manndeixoudeapostaremsoluçõesesteticistaseapolíticasparaessa

criseculturaleadotouumaposturamaisfirmeemproldatradiçãohumanística.

UmaconsequênciaformaldessanovavisãonocasoespecíficodeAMontanhaMágica

éotommaisfilosóficodosdiálogosentreospersonagens;écomoseaverborragiadasdis-

cussões fosse uma formade apontar a incessante busca pela Bildung (formação cultural),

porumareflexãosobreaexperiênciaquepermitisseumamadurecimentomoraleintelectu-

al. ThomasMann, portanto, cria personagens cujo processo formativo é necessariamente

problemáticoefragmentado,porquereflexodeumaépocainstável:

O romance tem intenção pedagógica, mas não é um Bildungsroman (ro-mancepedagógico)clássico.Nãoháheróiquenasequênciadaobrapassas-sepelaecoladavida,moldando-seatravésdelaousendomoldadoporela.HansCastorpéoopostodeFaustoouWilhelmMeister.(...)Aintençãope-dagógica(...)consisteemofereceràconsciênciadoleitoroselementospa-raoseuprópriopercursofenomenológico.NessesentidoaMontanhaMá-gicapodeserconsideradaumBildungsromandenovaqualidade,cujoheróiseriaopróprioleitor(FREITAG&ROUANET,1975,p.35).

Alémdisso,oprópriorecursoàironiatemumafunçãopedagógica(cf.REED,1974,p.

14),poisserveparadesestabilizarascertezasdoleitorquantoaocaráterdospersonagens,

namedidaemqueestessãoapresentadosemtramasoudiálogosnosquaissua“seriedade”

ou“coerência”épostaemxequedeformasutiledesconcertante.

ThomasMann,aodescreverseumétodorealista,dizqueoescritortemliberdadear-

tísticapara,apartirdo“materialreal”,operarum“atodetranscendência”euma“absorção

subjetiva”,atravésdasquaiscadadetalhesocialoupsicológicoépercebidonaquiloquetem

decaracterísticoetípico.Comisso,háumprocessodeapropriaçãonoqualaquiloquefoi

observadooriginalmente(istoé,a“realidade”)setornaapenasum“meiodeexposiçãode

umaideia,umaexperiência”(MARCUS,1987,p.57).

AindadeacordocomJudithMarcus,épossívelestabelecerumaanalogiaentreafor-

macomoManncria seuspersonagens comaquiloqueMaxWeber (1864-1920) concebeu

comotiposideais:decertamaneira,aquelessãoacentuaçõesanalíticasdeumoumaispon-

tosdevista,quepassamporuma“transformaçãopoética”.Ouseja,osromancesdeThomas

Mannteriamacapacidadedetornarvisívelaessênciademovimentos,direçõeseideologias

desuaépoca(cf.Ibidem,pp.66-67).

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AMontanhaMágica,nessesentido,éumdosromancesmaiscomplexosericosdeste

autor;ésimultaneamenteumaautobiografiaespiritual,umaalegoriaintricada,umromance

histórico,umareflexãosobreotempoe,porfim,conformevimosacima,umrepresentante

heterodoxodoBildungsroman.Emborasejaemalgunsaspectosumaparódiadestegênero

literário,emoutrosépossívelperceberumalúcidatomadadeposiçãodeMannemdefesa

dohumanismo(cf.REED,1974,p.226).

O protagonista deste romance éHans Castorp, um jovemengenheiro que visita um

primoenfermoemumsanatórionosAlpessuíços,edescobrequetemtuberculose;diante

dessediagnóstico,acabatendodepassarseteanosdesuavidanolocal.Durantesuaesta-

dia,Castorpaprendemaissobresimesmoeomundoàsuavolta,epartedeseuamadure-

cimentovemdasintensasdiscussõescomdoispedagogos:LodovicoSettembrini,umliberal,

republicanoeapólogodoprogressodacivilização,eLeoNaphta,sobrequemnosdeteremos

deformamaisminuciosa.

Naptha,oprofetadoTerror

UmdospersonagensmaisintrigantesdeAMontanhaMágica,Naphtaédefamíliaju-

dia,tendonascidonaEuropaoriental,maisespecificamentenafronteiraentreaGalíciaea

Volínia.12Seupai,umfanáticoreligioso,caiuemdesgraçaporsua“irregularidadesectária”e

foicruelmenteassassinadoemummotimpopular.Estatragédiamarcouprofundamentea

vidadeNaphta,quepassousuaadolescênciaabsorvidoemangústiasintelectuais:“absorto

emsombrioseamargospensamentossobreoseudestinoefuturo”,eleformava“oseues-

píritodemodoimpacienteedescontrolado”(MANN,2000,p.603).Suatendênciacríticae

cética, suapaixãopela lógicaesuadialéticaafiadao levaramaentraremconflitocomos

rabinosdesuacomunidade.

OjovemNaphtasóencontrouoseu lugarnomundoquandoseconverteuàCompa-

nhiadosJesuítas,graçasaumpadrequeconheceunumparque.Emsuaânsiadeabsoluto,

viaaIgrejaRomanacomoumapotêncianobreeespiritual,“contráriaàrealidadehostildo

mundo,eportantorevolucionária”(Ibidem:606).Naphta,contudo,nãoconseguiuprogredir

12AtualmenteestaregiãoestádivididaentreaPolônia,aBielorrússiaeaUcrânia.

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naOrdemgraçasà suasaúde frágileaoseu intelecto inquieto–pormaisquebuscassea

tranquilidadeascéticaquelevariaao“completoembotamentodavidaindividual”,as“ope-

raçõesespirituais”odebilitavam(cf. Ibidem,p.608).Comisso,tevequesemudarparaos

Alpes,ondesetornouprofessordeLatimnoginásioparaalunostuberculosos.

Aconversãodojudaísmoaocristianismoéapenasumadasváriasfacetasquemar-

camopensamentode LeoNaphta.Durante sua juventudeele tambémsimpatizou como

socialismo,queconheceugraçasaumdeputadodaregiãoeseufilho.Alémdisso,tinha“um

desejoapaixonadodeelevar-seacimadaesferadesuaorigem”(Ibidem,p.603).Segundoo

narrador, “Naphta tinha um instinto aomesmo tempo revolucionário e aristocrático; era

socialistaetambémdominadopelosonhodeparticipardeumaformadevidasoberba,dis-

tinta,exclusivaeordenada”(Ibidem,p.605).

Aolongodoromance,Naphtatravaconstanteseintensosembatesintelectuaiscom

Settembrini.Comsuaretóricaperigosamenterefinada,Naphtamuitasvezesapelaparaar-

gumentosrelativistas,dizendoque“verdadeiroéoqueconvémaohomem”,poisohomem

“representaamedidadascoisas,esuasalvaçãoéocritériodaverdade”(Ibidem,p.543).

Aotentardefini-loideologicamente,onarradornosdizqueNaphta“talvezfossetão

revolucionárioquantooSr.Settembrini,masoeranosentidoconservador,comorevolucio-

náriodoconservantismo” (Ibidem,p.627;grifosmeus).Estadefiniçãoépertinentediante

das fortescríticasqueNaphta fazaosvaloresburgueses:paraele,aEuropacapitalistaera

umsistemacondenadoàruína(cf.GOLDMAN,1992,p.140);emconversacomSettembrini,

chegaacolocaraLiberdadecomoumprincípioultrapassadoeatémesmoanacrônico:

...se acredita que o resultado das revoluções vindouras será a liberdade,iludiu-seredondamente.Oprincípioda liberdadecumpriuoseudestinoechegouaserantiquadonosúltimosquinhentosanos.(...)Todasasorgani-zaçõesverdadeiramenteeducadorassouberamsempreoqueemrealidadedeveseroúltimoobjetivodapedagogia:aautoridadeabsoluta,aobrigaçãodeferro,adisciplina,osacrifício,arenúnciaasipróprio,odomíniodaper-sonalidade.(...)Osegredoeaexistênciadanossaeranãosãoalibertaçãoeodesenvolvimentodoeu.Oqueelanecessita,oquedeseja,oquecriaráé–oterror(MANN,2000,pp.545-546).

NaphtacontémtodasasantinomiasculturaissobreasquaisMannhaviaponderado;

eleéadialéticaencarnada.Alémdisso,expressaahostilidademedieval,russae–eisuma

ironia–anti-semitapelausurae,porconseguinte,docapitalismo(cf.HEILBUT,1997,p.411).

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Alémdisso,estepersonagemexaltaa“vida”enquantoexpressãomáximadaKultur:13rejeita

oindividualismoburguêsepregaumaespéciedeholismocomunitário–ouseja,alivrede-

dicaçãodo“eu”ao“todo”.Paraopersonagemjesuíta,sóépossívelserlivreseintegrandoà

coletividade,pormeiodaautoidentificaçãodo indivíduocomum idealholístico. Esta tese

aparece,porexemplo,quandoNaphtaalegaque:

...a liberdadeeraumconceitodoRomantismoantesdoquedaÉpocadasLuzes,poiscomaqueletinhaemcomumoentrelaçamentoinextricáveldosimpulsos de expansão coletiva e do ensimesmamento apaixonadamenteindividualístico(MANN,2000,p.957).

Naphta também prega um coletivismo cristão e socialista: sua pregação ascética da

submissão do indivíduo à coletividade ganha ares demissão política quando ele coloca o

socialismocomoaúltimaexpressãodafécristã,atribuindoumsentidoreligiosoàRevolução

eàditaduradoproletariado.Apropósito,estafacetasocialistadopersonagemseráporme-

norizadamaisadiantenesteartigo.

Ummomentodaobraemquesetornaexplícitaavisãodemundotãorevolucionária

quantoreacionáriadestepersonageméquando,diantedaacusaçãodeSettembrinidede-

fender“umamoraleconômicaàqualsãoinerentesaservidãoeoaviltamentodapersonali-

dadedohomem”,Naphtarespondecategoricamente:“oprimeiropassoemdireçãoàver-

dadeira liberdade e humanidade seria abandonar essemedo covarde da ideia de reação”

(Ibidem:552).

TrêspossíveismodelosparaNaphta:Leviné,SchmitteBloch

AcombinaçãoexplosivadeideologiasdeNaphta,assimcomoasdescriçõestãominu-

ciosaserealistasdotipofísicoeintelectualdopersonagem,sãofatoresqueparecemsugerir

orecursoaalgummodelovivo;poroutrolado,éprecisoreconhecerqueesseefeitodeve-

rossimilhançaétípicodoestilorealista,semqueoautornecessariamentepreciseseancorar

13OconceitodeKulturremontaaopensamentodeHerder(1744-1803),oqualtrazumaênfasenasingularida-de,na individualidadehistórica.Kulturrefere-se,portanto,aumpadrãodevidaparticular,emúltimaanálisenãoimportável,centradoemprodutoshistóricosespecíficos“significativos”,maisdoqueempotencialidadesgerais.Esteconceitoevoca,portanto,umaacepçãohistoricistadacultura,“coletivaenãopessoal,expressivaenãoperfectiva,(...)empiricamentedadaaoinvésdeideal-normativa”(MERQUIOR,1997,pp.49-50).

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emumafigurahistóricadelimitida.Detodaforma,sobreoprocessodecriaçãodopersona-

gemNaphtacabedizerquedesdeoiníciodacomposiçãodoromanceThomasManntinhaa

intençãodecriardoiseducadorescomoexpoentesde“experiênciaseideias”(cf.MARCUS,

1987,pp.59-60).Mannimaginavaumduelopedagógicoentreumhumanistaeprogressista

eummísticoreacionário;contudo,osegundodestespersonagenssetornoumaiscomplexo

doqueerapensadoaprincípio.

Em1919,diantedarevoluçãooperáriaemMunique,oautorse impressionoucoma

“misturaexplosivaderadicalismointelectualjudeuedemisticismocristãoeslavo”ecomos

“elementosrusso-quiliasto-comunistas”(LÖWY,2008,p.90).AefêmeraRepúblicaSoviética

naBavária,tevecomoumdeseuslíderesEugenLeviné(1883-1919),umemigrantejudeuda

altaclassemédiadeSãoPetersburgo.Socialistaeutópicoporexcelência,elerepresentava

umtipoderevolucionárioaristocrático,semelhanteaRobespierremasdiferentedeLênin,

EngelseoutrospregadoresdarevoluçãoproletárianoséculoXX:Leviné(e,comoveremos,

tambémLukács)portavaavisãodemundosegundoaqualhomenssábiosestãodispostosa

mostraraatitudeapropriadacomorespostaàfalsaatitudedasmassas.Outracaracterística

dessesrevolucionáriosaristocráticoséoseuascetismo:estavamsempreprontosparaosa-

crifício.Leviné,antesdeserexecutado,dissequeoscomunistaseram“homensmortosem

sursis”(MARCUS,1987,pp.78;120-121).ÉplausívelqueManntenhausadoalgunsaspectos

destelíderrevolucionárioparacriarNaphta,nosentidodequeopersonagemdeixoudeser

simplesmenteumreligiosoconservadorparaganharumaideologiamaisambígua.

OutrointelectualdaépocaquepodeserassociadoaojesuítadeAMontanhaMágica,

devidoaoseuconservadorismodetom“decisionista”,paradoxalmenteantimodernoerevo-

lucionário, é Carl Schmitt (1888-1985). Quando questionado por Pierre-Paul Sagave sobre

esta possível inspiração para a figura deNaphta,Mann alegou que apenas ouviu falar de

Schmitt,nãotendochegadoaleralgodesteautornaépocadaescritadoromance(cf. Ibi-

dem:63);porém,certostextosdeSchmittnadécadade1920–dentreelesumcomosuges-

tivonomeCatolicismoRomanoeFormaPolítica(1923)–sugeremcertassemelhançasentre

seupensamentopolíticoeodeNaphta,aindaquenãointencionais.Exemplodissoéquando

Schmittafirmaqueocatolicismopossuiuma“forçacriadoraracional”que“dáumadireçãoà

escuridãoirracionaldaalmahumana,semlevá-laàforçaatéaluz.Elanãodá,comooracio-

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nalismotécnico-econômico,receitasparaamanipulaçãodamatéria”(SCHMITT,1985apud

FERREIRA,2004,p.28).

OfilósofoErnstBloch(1885-1977)tambémpodeseraproximadodeNaphta;emam-

bosseencontraria“aassociaçãojudaísmo/catolicismo/comunismo,aarticulaçãoentrecris-

tianismomedieval e revolução bolchevista, de umponto de vista judeu” (LÖWY, 2008, p.

88). Não há, contudo, nenhum traço de sua obra ThomasMünzer, Teólogo da Revolução

(1921)nabibliotecadeThomasMann;assimcomoSchmitt,aaproximaçãoaquiémaissuge-

ridapeloscomentadores(nocaso,MichaelLöwy)doqueporintençãoexplícitadoescritor.

Breveinterlúdiosobreoromantismoanticapitalista

Saindodessescasosparticularesparaumaconsideraçãogeral,épertinente ressaltar

queopróprioZeitgeistdosanos1920permitiaasassociações religiosase ideológicasque

caracterizavamNaphta:judeu-jesuíta,jesuíta-comunistaejudeu-comunista.Sobreasegun-

dadessasmesclas,oescritorRobertMusil(1880-1942)chegouadizerqueerauma“ironia

construtiva”traçarsemelhanças,aindaquedesconcertantes,entreumclérigoeumbolche-

vique, pois issopermitia o aparecimentoda “verdadenuae crua”: a disciplinamilitar e o

fervorquecaracterizatantooscristãosascéticosquantoosrevolucionáriosrussos(cf.MAR-

CUS,1987,p.112).Jáaassociaçãoentrejudaísmoecomunismoganhouforçaprincipalmen-

te depois dos experimentos revolucionários emBerlim, Budapeste eMunique, emque se

destacaram lideranças de etnia judaica como Leviné, Rosa Luxemburgo (1871-1919), Béla

Kun (1886-1939) e o próprio Lukács; aliás, esta associação entre semitismo e comunismo

aindaserviriaparaaargumentaçãoracialistadonascentePartidoNacional-Socialista.

SegundoMichaelLöwy,“Naphtarepresentaotipo idealdoromânticoanticapitalista,

e,emparticular,daversãojudiadessacorrentecultural”(LÖWY,2008,p.96).Esteroman-

tismorevolucionário-utópicorecusatanto“ailusãoderetornoàscomunidadesdopassado”

quantoa“reconciliaçãocomopresentecapitalista”,eprocuraumasaídana“esperançado

futuro”;nessacorrente,“anostalgiadopassadonãodesaparece,massetransmudaemten-

sãovoltadaparaofuturopós-capitalista”(Ibidem,p.16).

Uma fórmula capaz de resumir a visão demundo romântico-revolucionária foi dada

porninguémmenosqueLukács,aoanalisarDostoiévski(1821-1881)emumensaiode1943:

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...omundocriadoporDostoiévskiconfundecaoticamenteosideaispolíticosdopróprioautor.MasessemesmocaoséaverdadeiragrandezadeDostoi-évski,oseupossanteprotestocontratudoaquiloqueéfalsoenegativonasociedadeburguesamoderna.(...)Osseusheróisdefinemessequadroco-mo“idadeáurea”,eodescrevemcomoosímbolomaispoderosodesuasaspiraçõesmaisprofundas. (...)OspersonagensdeDostoiévskisabemqueisso,emseutempo,nãopassadeumsonho:maselesnãopodemnemque-remseparar-sedessesonho. (...)A instintiva, selvagemecegarevoltadospersonagens(...)dirige-sesempreparaaquelaidadeáurea(LUKÁCS,1968,p.173).

EstadigressãosobreDostoiévskiésurpreendentementereveladorasobreoromantis-

moanticapitalistaque iluminaaobrade juventudedopróprio Lukács.Basta lembrarque,

emATeoriadoRomance,opensadorhúngarodemonstracertopessimismoculturalaocon-

ceberoromancecomo“epopeiadeummundoabandonadoporDeus”(Idem,2009,p.89);

porém, há um veio utópico quando afirma que as obras dos russos Tolstoi (1828-1910) e

Dostoiévski desvelampotencialidades não só estéticas,mas tambémpolíticas; enfim, per-

tencemaumnovomundo(cf.Ibidem,p.160).Destaforma,tambémemLukács“aidadede

ourodopassado(...)iluminaocaminhoparaofuturo”(LÖWY,2008,p.30).

GeorgLukács:messianismoeânsiapeloabsoluto

AdespeitodaspossíveisaproximaçõesquepodemserfeitasentreopersonagemNa-

phtacomaspectosdavisãodemundodeLeviné,SchmitteBloch,ahipótesecentraldamai-

oriadosestudiososquantoàinspiraçãodeThomasMannparacriarestepersonagemdeA

MontanhaMágicarecaisobreafiguradeGeorgLukács.

JoséGuilhermeMerquior(1941-1991),porexemplo,afirmaemOMarxismoOcidental

(1986)queoretratoliteráriomaisconhecidodeLukácséum“fascinante,maspoucosimpá-

ticopersonagem”:Naphta,“ojesuítavermelho”(MERQUIOR,1987,p.136).Emsuaerrante

necessidadedeabsoluto,LukácsapresentavaoqueMann,pormeiodeNaphta,descreveu

como“umtremendoanelodeautoridade”(Ibidem,1981,p.158).

Merquior provavelmente baseou esta hipótese em Leszek Kolakowski (1927-2009),

queemsuaobraMainCurrentsofMarxism(1976)teceaseguinteconsideraçãosobreoper-

filintelectualdeLukács:

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LukácsisdepictedinliteratureastheJesuitNaphtainThomasMann'sTheMagicMountain: ahighly intelligent characterwhoneedsauthority, findsit,andrenounceshisownpersonalityforitssake.Lukácsinfactwasatrueintellectual,amanofimmenseculture(…),butonewhocravedintellectualsecurityandcouldnotenduretheuncertaintiesofascepticalorempiricaloutlook. In the Communist party he foundwhatmany intellectuals need:absolutecertaintyindefianceoffacts,anopportunityoftotalcommitmentthatsupersedescriticismandstillseveryanxiety.Inhiscase,too,thecom-mitmentwassuchastoafforditsownassuranceoftruthandinvalidateallotherintellectualcriteria(KOLAKOWSKI,1978,p.306).

DefatoatrajetóriaintelectualdeLukácséturbulentaerepletadesobressaltos.Desde

seusprimeirosescritossobreestéticaépossívelperceber“asmaistensaseintensasconota-

çõesexistenciais”(MERQUIOR,1987,p.94).OsensaiosreunidosemAAlmaeasFormassão

marcadosporumaantíteseentre“a‘vida’–equiparadaamilrelaçõescontingentesecarac-

terizadapelafaltadeautenticidade–ea‘alma’,fontedealtasescolhasexistenciais,tentan-

doimporsentidoàmerafaticidadedasimplesexistência”(Ibidem,p.94).

O jovem Lukács, portanto, tem seu pensamento marcado por uma nostalgia pelos

temposqueaperfeiçãoeraumacoisa “natural”,emque se faziaagrandearte “ingenua-

mente”,combinando-seperfeitamentecomavida.JánestaetapaLukácsémarcadoporum

conservadorismoestético,nosentidodeumagranderejeiçãodosrumosdaartemoderna.O

artistahodierno,segundoLukács,nãoconseguesedisciplinar,estandoentregueasimesmo,

a “umadança triunfalbêbadaeorgiásticadaalmapelas florestas imprevisíveisdas sensa-

çõesanímicas”(LUKÁCS,2015,p.100).

EmumprefácioautocríticoqueescreveuparaaTeoriadoRomanceem1962,Lukács

definiuretrospectivamenteasimesmocomoum“anticapitalistaromântico”,alegandoque

esteensaio,escritoentre1914e15,eraumaexpressãodeseu“desespero”diantedaEuro-

paemmeioàPrimeiraGuerraMundial.Lukácsrecorda-sequenaépocaseperguntava,em

umtomapocalíptico:“Quemnossalvadacivilizaçãoocidental?”(Idem,2009,pp.7-18).

PoucosanosdepoisLukácsseredimiudamelancoliaedopessimismodesuasprimei-

ras obras,masmanteveo viés utópico e a busca por uma redenção escatológica. Emno-

vembrode1918,apósmuitohesitar,decidiudeformasúbitaingressarnoPartidoComunis-

ta,epoucosmesesdepoissetornouComissáriodoPovoparaaCulturaeaEducaçãoname-

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teóricarepúblicasoviéticanaHungria.Pregandooengajamentototalemnomedeumamo-

raldosacrifício,omessiânicoenfimencontrouoseumessias.

AindaqueestepensadortenhaencontradonoPartidoComunistaalgopróximodaor-

dem e estabilidade pela qual tanto ansiava, suas colisões com outros comunistas foram

constantes,apontodeLêninoacusarde“radicalismodeesquerda” jáem1920(cf.MAR-

CUS,1987,p.121).Apesardisso,emsuaobraHistóriaeConsciênciadeClasseLukácsoscila

entreaheterodoxiateórica(consideravaqueateoriamarxistatinhavalidadehistórica,con-

trariandoassimavulgatamarxista),masortodoxiapolítica;opensadorhúngarobuscoufa-

zer“davitóriadoleninismoamoladeumaelucidaçãodanaturezafilosóficadomarxismo”

(MERQUIOR,1981,p.158).EisumdosváriostrechosdeHistóriaeConsciênciadeClasseque

revelamessetomsoteriológico:

Somenteaconsciênciadoproletariadopodemostrarasaídaparaacrisedocapitalismo.Enquantonãoexistiressaconsciência,acriseserápermanen-te, retornaráao seupontodepartida, repetiráessa situaçãoatéque, (...)apósinfinitossofrimentoseterríveisatalhos,aliçãopedagógicadahistóriaconcluioprocessodaconsciêncianoproletariadoecoloca-lhenasmãosaconduçãodahistória(LUKÁCS,2003,pp.183-184;grifosnooriginal).

SegundoMerquior,amisturademarxismoecríticaculturalromânticaemLukács,as-

sim como sua argumentação “apresentadamais por asserção do que por qualquer lógica

demonstrativa”(MERQUIOR,1987,p.114),tiveramumefeitodeletérionomarxismocomo

heurísticasociológica,poisotransformaramemuma“‘visãodemundo’carregadadedog-

matismoegirandoemtornodeumamitologiadeconsciênciadeclasse” (Ibidem,p.132).

Baseando-se em Kolakowski,Merquior afirma que a conseqüência imprevista disso que é

queoromantismoearejeiçãodaciênciaedaindústria(associadasàreificaçãocapitalista)

“deramàobradeLukácsopoderdedesvendarameduladamitologiamarxista(...).Lukács

revelouoromantismoocultodoprópriomarxismo”(Ibidem,p.133;grifosmeus).

Sendoassim,nosprimeirosanosda fasemarxistadopensamentodeLukácsaindaé

possível perceber uma continuidade com o romantismo anticapitalista de sua juventude;

pode-seafirmarqueaguinadaideológicadeLukácsconsistiunatransposiçãodeseuidealde

harmoniadodomínioestéticoparaodomíniopolítico.(cf.VANDENBERGHE,2012,p.353).

NaépocadesuaconversãoaomarxismoLukácsacreditavaqueoobjetivosupremodosocia-

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lismo era a substituição da realidade presente por uma “forçamaior” que corresponda à

“dignidadedohomem”,eissoerauma“questãomoral”(MARCUS,1987,p.145).Oabsoluto

étransformado,emvida,nopossível;ouseja,a“utopianostálgica”dojovemLukácssecon-

verteemumavisãodemundoquesatisfaziaseudesejoporuma“transcendência imanen-

te”,porumaharmoniaterrena.

Lukács,portanto,buscavaincessantementeo“sentidodavida”,amoralabsolutadas

coisaseacontecimentos.Enquantoesforçodeclarificaçãodosentidoedireçãodouniverso

social,suaobra–e,consequentemente,adeváriosautoresligadosaomarxismoocidental

que inspirou–descendediretamentedoculturalismoexistencialdeAAlmaeasFormase

TeoriadoRomance.EsseelementoécrucialparaentenderLukácseseusherdeiros,porque

demonstra,demododecisivo,“queoânimosoteriológicoportrásdomessianismorevoluci-

onáriodomarxismoocidentalnasceudosmesmosimpulsosromânticoseirracionalistasque

motivaram a ruptura da arte moderna com a sociedade liberal e a civilização industrial”

(MERQUIOR,1981,pp.159-160;grifosnooriginal).

LukácseNaphta:ascetismoeabordagemreligiosadocomunismo

Adespeitodo intensodiálogo intelectualquedesenvolveramao longodequatrodé-

cadas, ThomasMann e Georg Lukács se encontraram pessoalmente apenas uma vez, em

Viena,noanode1922.Tiveramumaconversanaqual trataramdaproblemática situação

éticadaarte, istoé,de suamissãoe função. Lukácsexpôsas suas teorias,asquaisMann

achoudeumaabstraçãoquaseinquietantequeseconfundiacomapurezaeanobrezainte-

lectual(cf.BRODE,1975,p.131).

Naépocadoencontro,MannestavatrabalhandoemumcapítulodeAMontanhaMá-

gica,chamado“MaisAlguém”,emquefoiintroduzidoopersonagemLeoNaphta,cujafigura

foiretratadasegundoumparadigmafísicoeintelectualquemuitolembraLukács.Asseme-

lhançasnãosãoapenasfísicas(porexemplo,onarizaduncoeoslábiosfinos),mastambém

étnicas(osdoissãojudeus),ideológicas(ambossãocríticosdaburguesiaedefendemarevo-

luçãocomunista)eaténomododeargumentação(marcadopelaabstraçãoepelorigordia-

lético).OfatodeosenhoriodeNaphtaeSettembrinisechamarLukacekparecereforçar,de

forma sarcástica, essa inspiração (cf. Ibidem, p. 132). AnthonyHeilbut ressalta categorica-

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menteoparentescoentreopensadorhúngaroeNaphta: “Emsuaextrema feiúrae argu-

mentação implacável ele émodelado emGyörgy Lukács, cujos poderes persuasivos eram

taisque‘enquantoelefalava,eleestavacerto’”(HEILBUT,1997,p.411).

EntreoselementosqueconectamestepensadorhúngaroeopersonagemdeAMon-

tanhaMágicatambémpodemserelencadosalgunsdecunhobiográfico.Pesa,porexemplo,

ofatodequeThomasManneraamigodopaidofilósofohúngaro,quechegoualhepedir

paradissuadirseufilhodaperigosavidarevolucionáriaqueestavavivendo;aliás,estefoium

dospretextosparaoencontroentreambosem1922.Mannpossivelmente se inspirouna

famíliadeLukácsparacomporatensarelaçãoentreNaphtaesuamãeeirmãos,assimcomo

orespeitosorelacionamentocomopai(cf.MARCUS,1987,p.82).

Ocomponente“lukacsiano”destepersonagempode,contudo,serencontradodefor-

mamaisprecisaedecisivanãoemsuahistóriadevidaouemsuafisionomia,massimem

suapersonalidade,emseuaspectoespiritual,intelectual.TantoNaphtaquantoLukácscom-

partilhamaaspiraçãoporformasmaisnobresdeexistência;aéticalukacsianabuscasuperar

adeKant(1724-1804),consideradainsatisfatóriaelimitadaàesferado“ordinário”edo“co-

tidiano”. A verdadeira ética estaria baseada no “milagre, graça e salvação” (cf. Ibidem, p.

137).Dentreostraçoscompartilhadosporambos,contudo,osdoisprincipaissãooascetis-

moeaabordagemreligiosadocomunismo(cf.Ibidem,pp.105-106).

Sobre o comportamento ascético, cabe dizer que já em seu ensaio sobre Theodor

Storm(1817-1888),emAAlmaeasFormas,Lukácslouvavaoartistaquesededicaintegral-

menteaotrabalho.Oestilodevidaburguêspossuioaspectode“umtrabalhoforçado,de

umahediondaservidão(...)queimpõeafirmedisciplinadotrabalhoaosseusentusiastas”

(LUKÁCS,2015,p.100);aliás,nestepontoopróprioThomasMannseidentificacomLukács.

Hánoartistaburguês(bürger),cujo“tipoideal”éStorm,adorexistencialdeumromântico

tardio;eleécaracterizadopelarenúncia,resignaçãoeautodisciplina.Lukács,portanto,pro-

fessaumascetismoradical:arteevidaintelectualpressupõemumdistanciamentodeuma

“vidafracassadaearruinada”(Ibidem,p.100).

MannseinspirounesseensaiodeLukácsparafazeraapologiadoascetismoburguês

emConsiderações de umApolítico: identificou-se com a preponderância do ético sobre o

estético,davida sobreaobra,daordemsobreoestadodeânimo,doduradouro sobreo

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momentâneo,dotrabalhoserenosobreagenialidade(cf.MANN,1978,pp.123-124).Pode-

seiralémeafirmarqueManncompõearigidezquedefineocaráterdeLeoNaphtatambém

a partir domodelo lukacsiano. Há neste personagem, assim como no pensador húngaro,

umaaspiraçãopor“dogma”,por“existênciaregrada”–nocasodeLukács,pelaadesãoao

PartidoComunista;emNaphta,atravésdavidaestruturadanumainstituiçãojesuíta.

O narrador deAMontanhaMágica traça uma interessante comparação de Naphta

comJoachim,umsoldadodoexércitoalemãoqueéprimodoprotagonistaHansCastorp:

Cadaqualdosdoisdeviaolharcomsimpatiaaprofissãodooutroeperce-beroparentescoestreitoqueexistiaentreelaeaprópria.Eramcastasmili-tares,tantoumacomooutra,eissosobmuitosaspectos,odoascetismoeodahierarquia,odaobediênciaeodopundonorespanhol.Esseúltimode-sempenhavaumpapel importantíssimonaordemdeNaphta,que tinhaasuaorigemnaEspanha(...).MasoqueosmundosdeNaphtaeJoachimti-nhamemcomum,antesdemaisnada,eraarelaçãocomosangueeoaxi-omadequenãosedevia impediramãodederramá-lo(MANN,2000,pp.610-612).

Aautodisciplinadopersonagemjesuítalhedavaumelementoheróicoqueédescrito

comosua“coragem”–eoatosupremodecorageméseusuicídio,nopenúltimocapítulode

AMontanhaMágica.Quando seuduelopedagógico comSettembrini chega ao ápice,Na-

phtaapelaparaahonradeseuadversárioeodesafiaparaumduelodearmas.Odesfecho

nãopoderiasermaistrágico:

–Osenhoratirouparaoar–disseNaphta,controlando-se,enquantobai-xavaaarma.Settembrinireplicou:–Euatirocomoquero.–Atireosenhornovamente.–Nempensonisso.Agoraéasuavez.(...)–Covarde!–bradouNaphta,ecomessegritohumanoadmitiuqueerapre-cisomaiorcoragemparaatirardoqueparaservirdealvo.Levantouentãoapistoladeummodoquenadamais tinhaemcomumcomumcombate,edescarregou-anaprópriacabeça(MANN,2000,p.972).

Naphta,portanto,morreuna“horacerta”,justoquandoqueria;aautodestruiçãovem

quando,vencidopelaenfermidade,“confessa”queosesforçosdeautonegaçãoerecusaà

vidaforamemvão.Sólherestaentãoosacrifício(cf.MARCUS,1987,pp.123-127).

OascetismodeLukácstambémflertoucomotemadosuicídio,oquenãosurpreende

dadaaagoniaexistencialquemarcousuavidaeobranadécadade1910.Osuicídiodesua

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amante IrmaSeidler (1883-1911) teveum impactodevastadoremseupensamento, inspi-

randodiretamenteoensaioDapobrezadoespírito:umdiálogoeumacarta(1911).Eisum

trechododiálogoemqueosuicídiodeSeidlerganhaumcomponentedegesto,dedecisão

existencial,inspirandoaprópriacontinuidadedaempreitadaintelectualdeLukács:

Masagoratudoestáclaro;essedesfechosemsentido,absurdo,essacatás-trofe sem tragédia, é, paramim,uma sentençadivina.Retiro-meda vida.Assimcomonafilosofiadaarteapenasogêniotemodireitodeexistir,navidaapenasohomemagracidadopelabondadedeveriapoderexistir.(...)Osuicídioéumacategoriadavida,eeuestoumortojáfaztempo.(...)Poris-sosuamortesetornouumasentençadivinaparamim.Elatevedemorrerparaqueminhaobraseconsumasse,paraquenãomerestassemaisnadanomundoforaminhaobra(LUKÁCS,2015,p.256).

Quantoàrelaçãoentrereligiosidadeecomunismo,caberessaltar,emprimeirolugar,

queThomasMann,emapenasumaconversa(e,éclaro,lendoosescritosestéticosdohún-

garo), conseguiu captaro caráter religiosode Lukácse transpô-loemNaphta.Manncom-

preendeuacontinuidadeentreosdiferentes“estágiosvitais”deLukács:oestético,oéticoe

opolítico (cf.MARCUS,1987,p. 132).A influênciadeErnstBloch levouopensamentode

Lukácsparaumadireçãoutópica;MartinBuber(1878-1965)oinspirouadaraesseelemen-

toutópicoumacoloração religiosaeatémessiânica.Nesse sentidopode-seafirmarquea

“etapaética”deLukácscomeçaem1915,portantoécontemporâneaàescritadaATeoria

doRomance(cf. Ibidem,pp.132-133)–algoque,comovimos,éexplícitonocapítulofinal,

sobreosescritoresrussoseo“novomundo”quepermitemvislumbrar.

Emsegundolugar,tantoLukácsquantoNaphtaestãoconvictosdanecessidadedacru-

eldade,dosacrifíciohumanoparaofimescatológico,sejaeleaglóriadeDeusoua“totali-

dade imanente”. Se emO bolchevismo como problemamoral (1918), ensaio escrito uma

semanaantesdesuaconversãoaomarxismo,Lukácsaindanãocompartilhavada“aceitação

metafísicaqueépossível extrair obemdomal, queépossível (...) chegar à verdadepela

mentira”(LUKÁCS,1975apudMACHADO,2004,p.148),poucodepoiselepassouaacreditar

que, “para sealcançaronovomundo,énecessário sacrificar-se– ‘deumaéticamística à

cruelRealpolítica’”(MACHADO,2004,p.150).QuantoaNaphta,emumadesuasconversas

comSettembrini,opersonagemjesuítalhecriticao“individualismoliberal”eo“absolutismo

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esclarecidodoeu”,edefendeaiminênciade“ideiassociaismenosefeminadas,(...)ideiasde

disciplinaededocilidade,decoaçãoedeobediência”(MANN,2000,pp.620-622).

Emterceiro,épossívelestabelecerumparaleloentresuasconversões.Naphtasupe-

rousuacriseexistencialapóssefiliaràCompanhiadosJesuítas;concebiaa IgrejaRomana

como“umapotêncianobreeespiritual,querdizerantimaterial,contráriaàrealidadehostil

domundo,eportantorevolucionária”(Ibidem,p.605;grifosmeus).Porsuavez,Lukácsen-

controunomarxismoumarespostaparaasdúvidasangustiantesquepermeiamsuaobrade

juventude.Nessesentido,consideravatalvisãodemundocomoalgomaisqueumaciência

social:eraumareligião,econsequentemente implicavaemumsacrificium intelectus.Esse

fervorpodeserencontrado,porexemplo,emsuadefesadométododialético:

Emmatériademarxismo,aortodoxiaserefereanteseexclusivamenteaométodo.Ela implicaaconvicçãocientíficadeque,comomarxismodialéti-co, foiencontradoométodode investigaçãocorreto,queessemétodosópóde ser desenvolvido, aperfeiçoado e aprofundado no sentido dos seusfundadores(...).Essaconcepçãodialéticadatotalidade(...)éoúnicométo-docapazdecompreenderereproduzirarealidadenoplanodopensamento(LUKÁCS,2003,pp.64;78-79;grifosmeus).

Emquartolugar,LukácscompartilhacomaféjudaicaanoçãodeumDeusdominante

e justo; assim comoNaphta, acredita que, ao fazer a “escolha correta”, o indivíduo pode

sacrificar“seueuinteriornoaltardaidéiaelevada”.Sendoassim,seurigoréticoquebeirao

fanatismo e suamoral de convicção (“os fins justificam osmeios”) têm como corolário a

convicçãodequeaviolênciaénecessáriaemcertas“situaçõestrágicas”,emprolda“salva-

çãodasociedade”(cf.MARCUS,1987,pp.139-140;146).Umdeseusprimeirosensaiosmar-

xistas,TáticaeÉtica(1919),evocaumavisãovoluntaristadapolítica:“Poisadecisãoprecede

ofato.Quemreconhecearealidade–entendidanosentidomarxiano–éamoenãoescravo

dosfatosvindouros”(LUKÁCS,2005apudVEDDA,2012,p.47;grifosnooriginal).

Porfim,éinteressantenotarcomotantoo“jesuítavermelho”daficçãoquantoo“an-

ticapitalistaromântico”davidarealsãomarcadosporumintensomessianismo;bastalem-

brar,deumlado,aadesãoespetaculardeLukácsaocomunismo;dooutro,Naphta,emuma

daspassagensmaisdesconcertantesdeAMontanhaMágica,dissertaemumtomprofético

sobrearevoluçãosocialistacomorestauraçãodoImpériocristão:

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...oproletariadodomundo,hojeemdia,opõeahumanidadeeoscritériosdaCidadedeDeusàdepravaçãoburguesa-capitalista.Aditaduradoprole-tariado,essaexigênciadesalvaçãopolíticaeeconômicadosnossostempos,temosentido(...)deumaab-rogaçãotemporáriadoconflitoentreoespíri-toeopoder sobo signodacruz,o sentidodese triunfar sobreomundodominando-o, (...)o sentidodoReino. (...)Oproletariado retomouaobradeGregório; sente arderno seu íntimoo zelopiedosodo grandepapae,como ele, tampouco poderá impedir as suas mãos do derramamento desangue.Sua incumbênciaéespalharo terrorparaa salvaçãodomundoeparaaconquistadoobjetivodaredenção,queéarelaçãofilialcomDeus,sem a interferência do Estado e das classes (MANN, 2000, p. 550; grifosmeus).

Estetrechodeixaexplícitaarelaçãoentreopersonagemeseumodelo.Naphtaviaa

“salvaçãodomundo”comoamissãodoproletariado,eestatambémeraademandamarxis-

tasupremadeLukács;o“terror”édefinidoporamboscomoumatoreprovável,masverda-

deiro e tragicamentemoral.Nesseponto as noções lukacsianas e os pronunciamentos de

Naphtasetornampraticamenteidênticos(cf.MARCUS,1987,p.147).

ArelaçãoentreNaphtaeLukácséquestionadaporHanspeterBrode,paraquemare-

laçãodopersonagemcomopensadorhúngaroseria“esquemáticaesuperficial”(cf.BRODE,

1975,p.132), afinalopersonagem tem ideias cristãs, conservadoraseaténiilistasque se

distinguemfortementedafilosofiadahistóriahegeliano-marxistaàqualLukácsaderiu.Bro-

de,porém,citaumacartaemqueThomasMannconfessaarelaçãoentreNaphtaeLukács

emumacartaaseuamigoMaxRychner,em1947:“Lukácsdealgumamaneirameaprecia(e

aparentementenãosereconheceunafiguradeNaphta)”(Ibidem,p.132).

ThomasMann,contudo,emoutrasocasiõesnegouainspiração,edissequeoperso-

nagemerafrutodesuaimaginação–oqueestariaevidentenapeculiarmisturadejesuitis-

mo e comunismo. Lukács não se reconheceu publicamente como o personagem; em seu

ensaioÀprocuradoburguês (1945)chegouadefinirNaphtacomo“porta-vozdeumacos-

movisãoreacionária,fascistaeantidemocrática”.(LUKÁCS,1945apudBRODE,1975,p.132)

EmumaentrevistaaJudithMarcus,contudo,opensadorhúngaroadmitiununcaterdúvidas

de queo personagemdeAMontanhaMágica tinha alguns aspectos “emprestados” dele,

mesmoquedeformairônica(MARCUS,1987,pp.63-65).ApartirdessaafirmaçãodeLukács,

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Marcusafirmaquesófoiapartirdaqueleencontrode1922queManndeuformaaNaphta;

foigraçasàquelaúnicaconversaqueoescritorviueouviuopersonagem(cf.Ibidem,p.69).

Conclusão

Nesteartigoprocureiargumentarque,emborasejapossível traçaranalogiasentreo

personagem Leo Naphta de AMontanha Mágica com figuras como Carl Schmitt e Ernst

Bloch,ainterpretaçãomaisconsistenteapontaparaumaficcionalizaçãodeGeorgLukács.

É verdadeque se podediluir essa inspiração alegando, tal comoMichael Löwy, que

Naphtanãoseassemelhaanenhummodeloreal,pois“representaotipoidealdoromântico

anticapitalista,e,emparticular,daversãojudiadessacorrentecultural”(LÖWY,2008,p.96).

Quando,contudo,nosdeparamoscomo“coquetelexplosivodemessianismoutópico,defé

escatolológica, de anticapitalismo romântico, de moralismo revolucionário” (VANDEN-

BERGHE,2012,p.362)quehánaobradeLukácsentreasdécadasde1910e1920,édifícil

acreditarqueThomasMann(que,comovimos,leuváriosensaioseconheceupessoalmente

opensadorhúngaro)nãotenhaaproveitadopelomenosalgunsaspectosdapersonalidadee

dopensamentodeLukácsparaconceberNaphta.

Talvezumdosmaiscontroversospersonagens intelectuaisdoséculoXX,Lukácsvivia

umapersistentebuscaporumasaídadavidacotidianaparaalcançaruma“verdadeira”rea-

lidade.Seusescritosdejuventudesãomarcadosporuma“concepçãoéticaelitistaeesteti-

zante”(cf.MACHADO,2004,pp.147-150),aqualémantidamesmodepoisde1918,quando

finalmenteencontraoseusentidoexistencialnoengajamentopelarevolução.

LeoNaphtaé tão revolucionárioquantoLukács,e tãoavessoàmodernidadequanto

ele.Hádiferençasnosdetalhes,masquenoextremotambémseassemelham:deumlado

temos um judeu convertido ao cristianismoque leva seu desespero existencial às últimas

consequências,ecometesuicídiocomosefosseumatoheróico;dooutro,temosumateue

marxistaque, frustradocomos impassesdaartemodernaecomadecadentemoralidade

burguesa, resolve suaprofundaangústia intelectual sacrificandoo seu intelecto, comuma

conversãoreligiosaaomarxismo.

Lukács,portanto,encarnoucomoninguémodramaexistencialdaintelectualidadedo

séculoXX:as ideologiasestéticasepolíticassãosucedâneasdasreligiões.Porsuavez,Na-

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phta é umanotável expressão literária desses radicalismos ideológicos, tanto reacionários

quanto revolucionários. Mais do que isso: o “jesuíta comunista” deAMontanhaMágica

tambémencarnouoniilismoqueacometeuboapartedessaintelligentsia:“a‘transcendên-

cia’tematizadanafiguradeNaphtapermanece(...)nanegatividade.Nãoindicaumaforma

desobreviveràsintempériesdonossotempo”(FREITAG&ROUANET,1975,p.47).Ohuma-

nistaSettembrini,seurival,certavezapontouparaHansCastorposperigosespirituaisque

acarretavamocontatocomaquelaestranhafigura:“Suaformaélógica,massuanaturezaé

confusão”(MANN,2000,p.555).Omesmotalvezsepossadizerdopensadorhúngaro...

ÉprecisoreiterarqueThomasMannnãoconheciaostextosdafasemarxistadeLukács

quandoestavaescrevendoAMontanhaMágica;sóhavialidoAAlmaeasFormaseATeoria

doRomance(cf.MARCUS,1987,p.63).Issodemonstraaforçavisionáriacomquecaptouas

possibilidades inerentesnotiporeligiosodo jovemLukács,poiscriouumpersonagemcuja

defesa do comunismo, povoada por um tommessiânico e soteriológico, assemelha-se de

forma intrigantecomadopensadorhúngaro.Otomparadoxalmentenostálgicoeutópico

quecaracteriza,porexemplo,osensaiosdeAAlmaeasFormaspermitiramàintuiçãopoéti-

cadeMann,assimqueconheceupessoalmenteesteensaísta,terminardecomporumretra-

toficcionalintrigante,noqualpolítica,éticaereligiãosemesclamcomfervornumpersona-

gemque,décadasdepois,aindapodeservistocomoumanotávelalegoriadasturbulências

ideológicasquemarcaramaEuropaeomundonoséculopassado.

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